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As MbSí.

)ES NA Él'OCA lONTEMPORANEA 233

No estrangeiro, a principal m.issão ortodoxa russa foi a


do Japão, que floresceu com o padre Nikolai, à qual nos
referiremos em outro capítulo. Além disso, houve missões
ortodoxas na China, na Coreia e no Cáucaso. Por último, a
igreja ortodoxa russa estendeu-::c;e até o continente americano,
cujo e1npreendimento mais amplo foi no Alasca, ainda que
esse se tenha detido quando a Rússia, no ano 1887, vendeu a
península aos Estados Unidos. Houve um bom número de
imigrantes russos que foram para a América do Norte e
alguns para a América do Sul, para as regiões de São Paulo
e de Buenos Aires. A primeira igreja ortodoxa russa na
América Latina organizou-se em Buenos Aires no final do
séc. XIX, e a primeira sede episcopal foi a de São Paulo,
estabelecida no ano 1934.
Como era de esperar, a Revolução Russa trouxe um novo
período na história da igreja e do país. Visto que Igreja per­
deu o apoio econômico e político do qual dependiam suas
missões, estas sofreram grandemente, sobretudo nos primei­
ros anos depois da Revolução. Além disso, fora dos territóri­
os dominados pelos bolcheviques, produziram-se cismas que
refletiam diversas atitudes com relação à situação política
da Rússia.

C. As missões protestantes

O séc. XIX caracterizou -se pela expansão colonial e


missionária do protestantismo. Vários países protestantes,
especialmente a Grã-Bretanha, estenderam seu poder
econômico e político a regiões distintas do Globo. O império
que a Grã-Bretanha construiu chegou a ser o mais amplo
que a história já conheceu, com milhões de súditos, abar­
cando diversas culturas antiquíssimas. Por sua vez, os Estados
Unidos continuaram seu trabalho de expansão em direção a
oeste, algumas vezes pela colonização, outras mediante
compras de territórios e outras mediante a conquista armada.
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234 _____ _
HISTÓRIA DO MOVIMENTO MISSION.I\RIO
"

Os descobrimentos do capitão Cook, em suas viagens pelo


sul do Pacífico, abriram para o mundo - muito especialmente
para Inglaterra, que gozava então da hegemonia marítima -
novos horizontes. Era de esperar que tudo isso fizesse
despertar um novo interesse missionário na Inglaterra e nos
demais países protestantes. Foi de fato o que aconteceu, mas
é necessário assinalar que a expansão protestante do séc. XIX,
especialmente a que partiu dos Estados Unidos, foi muito
mais independente da colonização política e econômica que
a expansão católica romana dos séculos anteriores. Se houve
missionários ingleses e holandeses nos territórios em que esses
países estabeleceram interesses coloniais, também houve
grandes empreendimentos missionários nos países em que
os interesses políticos e econômicos da Inglaterra, dos Estados
Unidos e das demais potências protestantes ainda não
haviam surgido. Um exemplo notável disso é a missão de
Adinoram Judson na Birmânia, que estudaremos no próximo
capítulo.
Outro fator importante no desenvolvimento das missões
protestantes foram as agências de missões, que passaram a
ter o caráter do que Spener havia chamado de uma ecclesiola
in ecclesia - uma comunidade particularmente comprometi­
da dentro da igreja em geral. O movimento missionário eu­
ropeu do séc. XIX caracterizou-se por grupos de cristãos com
um grande fervor missionário que trabalharam à margem
(e, em certas ocasiões, apesar) de certas denominações pro­
testantes. Nos Estados Unidos, o movimento missionário
adquiriu vigor com o espírito do trabalho voluntário, ou vo­
luntarismo, um aspecto importante da ideologia do individua­
lismo que marcou tanto a Europa como os Estados Unidos
durante o final do séc. XIX e o princípio do séc. XX.

1. O precursor: William Carey

Um dos maiores missionários de todos os tempos e o


principal precursor do movimento missionário moderno é
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William Carey, que nasceu na Inglaterra, no ano 1761, em


um.a família de classe média baixa intimamente ligada com
a igreja da Inglaterra. Quando tinha 6 anos de idade, seu
pai veio a ser professor de escola, o que permitiu ao jovem
William ocupar uma posição de certo grau de educação,
apesar dos recursos limitados da família.
Lendo um periódico que o p8i recebiél como professor
de escola, Carey soube pela primeira vez das viagens do
capitão Cook, que lhe despertaram o interesse pelas terras
distantes e por tudo o que se relacionava com geografia. Tam­
bém, desde a infância, William Carey manifestou um vivo
interesse, que continuou por toda a vida, pelas ciências na­
turais.
Quando tinha apenas 16 anos, seu pai enviou-o a um
povoado próximo para aprender o ofício de sapateiro. Ali,
em contato com outro aprendiz um pouco mais velho que
ele, Carey descobriu na vida cristã profundidades até então
desconhecidas, e decidiu tornar-se batista.
Quando seu matrimônio o obrigou a buscar uma base
econômica mais ampla, empreendeu novas atividades,
dedicando-se ao ensino e ao ministério, mesmo sem
abandonar o ofício de sapateiro. Durante esse período, com
a finalidade de ensinar geografia a seus discípulos, preparou
um globo terrestre feito de couro no qual assinalou as
diferentes terras conhecidas. Além disso, fez para o seu
estudo pessoal um mapa mais detalhado no qual apareciam
os nomes de diversas regiões, bem como o caráter e a
religião de seus habitantes. Tudo isso lhe foi dando uma
visão mundial que mais tarde seria importante para sua
carreira missionária. Ao mesmo tempo, dedicou-se a
estudar latim, grego, hebraico, holandês e italiano, com o
que deu mostra de uma habilidade linguística que logo
lhe seria muito útil.
Mediante o estudo da Bíblia e inflluenciado por seus
conhecimentos de geografia, Carey chegou à conclusão de
que a tarefa missionária era obrigação dos cristãos não só do
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período apostólico, mas de todas as épocas. Foi essa


convicção que o levou a publicar seu tratado An Enquiry into
the Obligations of Chrístians to Use Means for the Conversion of
the Heathens (Um estudo sobre as obrigações dos cristãos de
empregar meios para a conversão dos pagãos). No mês de
m.aio do ano 1792, pregou para a Associação de Ministros
Batistas seu famoso sermão sobre Isaías 54.2-3, cujos dois
pontos principais eram: "Esperai grandes coisas de Deus" e
"Empreendei grandes coisas por Deus". No mês de outubro
do mesmo ano, e como consequência dos esforços de Carey,
foi constituída a Particular Baptist Society for Propagating the
Cospe! among the Heathen (Sociedade Batista Particular para
a Propagação do Evangelho entre os Pagãos). No começo,
essa sociedade era formada por um número reduzido de
ministros e amigos de Carey, e seu orçamento anual era
insignificante - menos de catorze libras esterlinas. Apesar
da limitação da quantia, Carey começou a se preparar para
partir para a Índia com o médico John Thomas, que antes
havia estado nesse país.
A princípio, as dificuldades pareciam insuperáveis.
A esposa de Carey negou-se a segui-lo até a Índia, e somente
permitiu que partisse com o filho mais velho de ambos.
A reposta de Carey foi que, se ele possuísse todo o mudo,
com gosto o daria para estar com ela e com seus filhos, mas
não podia abandonar a obrigação missionária por essa
razão. Outra dificuldade apareceu quando se descobriu que
o Dr. Thomas tinha dúvidas que impediam sua partida da
Inglaterra. Por último, todos sabiam que a Companhia
Britânica das Índias Orientais não via com simpatia a chegada
de missionários às suas colônias, e que faria todo o possível
para evitá-la.
Apesar de todas essas dificuldades, Carey continuou fir­
me em seu propósito. Sua esposa concordou por fim em
acompanhá-lo e, após longas gestões, fizeram-se os arranjos
necessários para que Dr. Thomas e a esposa fizessem o
mesmo.
As M1S.'3()ES NA Íil'OCA CONTEMPORÂNEA 237

No final do ano 1793, William Carey e seus acompa­


nhantes desembarcaram na cidade de Calcutá, sem notificar
as autoridades de sua chegada, pois, se o fizessem, correriam
o risco de ser enviados de volta para a InglateITa. O plano de
Carey consistia essencialmente em ganhar o próprio sustento
e o de sua família, para desse modo não ter de depender
economicamente da sociedade que havia ficado na Inglaterra
e que havia custeado sua viagem. Para isso, contava com a
ajuda do Dr. Thomas. Mas logo viu que o amigo, apesar de
ser um cristão sincero e bom médico, era totalmente incapaz
de administrar as próprias finanças. O dinheiro que haviam
trazido da Inglaterra com eles logo se tornou insuficiente, e
o Dr. Thomas contraía dívidas sobre dívidas, que colocavam
sob suspeita o caráter dos missionários. A tudo isso se
acrescentava a dificuldade de que Carey e seus acompa­
nhantes não podiam tomar o título oficial de missionários, o
que causaria sua expulsão da Índia por parte das
autoridades da Companhia. Essas dificuldades ilustram a
situação complexa de muitos missionários da época, que
tinham de desfrutar certos benefícios e legitimação por parte
do império, mas reter, por sua vez, certa autonomia para
realizar o trabalho missionário desejado. Carey, portanto,
tentou estabelecer-se em vários lugares, trabalhando em
qualquer ocupação que parecesse oferecer a possibilidade
de um ingresso modesto. Ao mesmo tempo, ocupava-se com
o estudo do bengali e com a pregação aos indianos 1 .Visto
que esse período durou vários anos, aproveitou-o também
para aprender o sânscrito e para começar a traduzir a Bíblia
para o bengali. Quando todas as circunstâncias pareciam
estar contra o seu empreendimento, Carey escreveu para a
Inglaterra as seguintes linhas memoráveis: "Minha posição
já se torna insustentável [... ] há dificuldades por toda parte,

1
[NA] Daqui em diante, usaremos o termo "indianos" para nos referirmos
a uma pessoa nativa da Índia, e o termo "hindu" para nos referirmos a
uma pessoa cuja fé é o hinduísmo.
238 HtSTÓRI!\ DO MOVlMENTO MlSSlONÁRIU

e muitas mais adiante. Portanto, teremos de seguir em


frente".
Seu espírito indomável levou-o a pedir que fossem envia­
dos da Inglaterra outros missionários que pudessem ,
participar da grande tarefa que devia ser realizada na lndia.
O plano de Carey consistia em reunir um número de famí­
lias em uma pequena comunidade na qual todos comparti­
lhassem os gastos, e tanto homens quanto mulheres
participassem de diversos aspectos da <:;bra missionária. Em
resposta a suas petições, chegaram à India outros missio­
nários para colaborar com ele.
A chegada desse contingente de reforços foi a ocasião
que levou Carey a se estabelecer em Serampore, território
que pertencia aos dinamarqueses. Quando os novos
companheiros chegaram, as autoridades britânicas não
permitiram seu desembarque em Calcutá, e por essa razão
passaram para Serampore, que se encontrava do outro lado
da baía, na frente da colônia britânica. Depois de longas
gestões e vendo que o governador dinamarquês de
Serampore mostrava-se favorável ao trabalho missionário,
Carey decidiu mudar sua missão para esse lugar, onde
aconteceram os maiores empreendimentos de Carey e de seus
companheiros.
O trabalho que realizaram os missionários britânicos em
Serampore foi surpreendente. Um dos recém-chegados,
Ward, tinha o ofício de impressor e dedicou-se a imprimir as
bíblias que Carey traduzia. Outro, Marshman, mostrou ser
homem de tanto caráter quanto Carey, dedicando-se à obra
docente. O próprio Carey continuou ampliando cada vez
mais suas habilidades linguísticas, de maneira que logo che­
gou a dominar vários idiomas da Índia, para os quais escre­
veu gramáticas e dicionários. Quando morreu, Carey havia
traduzido a Bíblia, ou porções dela, para pelo menos 35 idi­
omas e dialetos da Índia. Hoje sabemos que alguns de seus
trabalhos carecem do rigor linguístico necessário para pro­
duzir traduções aceitáveis e compreensíveis. Contudo, o que
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ficou marcado na história foi a paixão de Care_y em traduzir


a Bfülia e torná-la acessível às comunidades da India em seus
próprios idiomas.
Uma mudança no governo local pôs no poder um
governador que via com simpatia a obra de Carey. Com o
propósito de preparar adequadamente os empregados da
Companhia das Índias, esse governador estabeleceu um
colégio no qual se ensinava, entre outras coisas, os idiomas
da região. Carey foi convidado para a cátedra de bengali.
Depois de consultar seus colegas, decidiu aceitar o convite,
mesmo assim sempre entregou ao fundo comum da missão o
dinheiro que recebia em pagamento de seus trabalhos
docentes. Essa atividade facilitou o contato com os indianos
de diversas regiões do país que, portanto, podiam ajudá-lo a
traduzir porções bíblicas e outras literaturas para seus
respectivos idiomas e dialetos. Dessa maneira, a imprensa
de Serampore chegou a produzir literatura cristã em 42
idiomas.

2 [NA] Um "brâmane" é um homem que pertence à casta alta na sociedade


indiana e que pratica o hinduísmo.

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