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RESUMO
O presente artigo tem por objetivo relatar o processo e os resultados obtidos em
experimentação realizada a partir de um estudo entre a relação dos corpos
homoafetivos e transexuais e o Teatro do Oprimido, tendo como base a obra de
Augusto Boal, Arco-íris do desejo. Os jogos teatrais desenvolvidos e praticados pelo
autor, buscam celebrar não apenas a autoaceitação, mas também o amor-próprio.
Com a aplicação desses jogos na experimentação, os participantes puderam se
conectar consigo mesmos e criar laços entre eles, a partir do momento em que se
permitiram respeitar e entender seus corpos, suas dores e fragilidades, abrindo-se a
essas questões. Ao final de cada encontro, foi proposta a reflexão sobre as atividades
realizadas, em que os oficineiros registraram suas impressões e percepções. No
encerramento da oficina os participantes foram estimulados a escrever cartas de amor
endereçadas a eles mesmos, em que puderam externar seus sentimentos de amor-
próprio e de autocuidado e celebrar seus corpos dentro e fora do teatro.
ABSTRACT
The following article’s objective is to disclose the process and results of an experiment
derived from a study regarding the correlation between homoaffective and transexual
bodies and Teatro do Oprimido, based off of the book by Augusto Boal, Arco-Íris do
Desejo. The theatrical games developed and executed by the author look to celebrate
not only self acceptance but also self love. As the games carried out throughout the
experiment, the participants were able to connect with themselves and create bonds
between each other once they allowed themselves to respect and understand their
own bodies, their wounds and fragilities, opening up to these issues. By the end of
each meeting, we proposed deliberation over the activities conducted in a guided
conversation, where the members shared their impressions and perceptions of the
day. At the end of our workshop, the participants were encouraged to write love letters
to themselves, where they were able to externalize their feelings of self love and self
care and celebrate their bodies, in and out of theater.
Keywords: Theater; Teatro do Oprimido; Celebration of Love; LGBTQIAP+ Bodies;
Arco-íris do desejo; Augusto Boal.
INTRODUÇÃO
NÃO RECOMENDADOS À SOCIEDADE
E não precisa-se ir longe para perceber que crimes como esse sempre
aconteceram no Brasil. Desde a invasão portuguesa nas terras da antiga Vera Cruz,
o sangue de pessoas que podemos considerar como homoafetivas é derramado.
Tibira, indígena Tupinambá, é a primeira vítima de homofobia datada no Brasil. Sendo
considerado sodomita e bruto, Tibira é amarrado à boca de um canhão e tem seu
corpo estilhaçado no forte de São Luís, no Maranhão em 1613 (TREVISAN, 2018, p.
565). Embora o crime contra a vida de Tibira seja datado de 400 anos atrás, ações
hediondas como essas são reproduzidas até hoje, sejam por meio de violências
físicas, sejam por meio de violências verbais, consideradas mais "sutis", como
demonstra FONSECA.
AMAR É ÉTICA
Pensamos ser trabalhoso e ingênuo o processo de conceitualização do amor,
e é evidente que esse é, também, parte do problema. O amor que não se ensina e
não se entende, o sentimentalismo arrebatador e paralisante que nos é introduzido
pela mídia desde que a indústria cultural é indústria, pode parecer para muitos
extremamente convidativo, mas é também irreal e positivista — certamente destrutivo,
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O amor se torna político assim que se torna uma escolha. Amar a si mesmo é
se posicionar contra opressões sistemáticas que alimentam e movimentam o
mercado. Amar o outro é fundamentar vínculos e estabelecer redes de solidariedade
em um contexto capitalista que prospera com o individualismo e com a
competitividade. No fim, o amor é o que o amor faz.
Entendendo a proposta de Hooks do amor como ação e as questões acerca
do afeto e do amor entre pessoas homoafetivas, nos perguntamos: de que forma o
teatro pode ser um aliado na luta LGBTQIAP+ pela vivência do amor público? Surge
então, por meio do encontro da luz do sol com as gotículas de águas do teatro, o
Arco-íris do desejo, idealizado por Augusto Boal.
METODOLOGIA
CELEBRAÇÃO DAS BORBOLETAS
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A kinesfera é tudo que podemos alcançar com todas as partes do corpo, perto ou longe, grande ou
pequeno, com movimentos rápidos ou lentos etc.
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RESULTADOS
A PALAVRA CANTADA QUE É O SEU NOME ou VOCÊ É UM SOLDADO
"Você é você
Nada mais
Nada menos
[...]
Ele teria orgulho
[...]
Assim como eu" AG.
sons ou frases, falas como “você é capaz”, “você é digna” foram ditas pela
personagem. Para além de um simples jogo, observamos como foi importante
expressar esse sentimento de orgulho por meio da fisicalidade (da fala e do corpo)
que o exercício se propõe a trazer. Uma questão similar encontra-se na carta de AL.
"Sou aquela pessoa que estava lá o tempo todo. Sou a menina imperfeita dos seus sonhos. [...] Escolhi
renascer a partir da palavra. Escolhi renascer a partir da palavra cantada que é o seu nome. [...] Apenas
lembre-se que tudo tem um fim. E tá tudo bem ter um fim, acabar. [...] Eu não sei como você me
resgatou do nosso próprio interior [...]uma hora, o rastro do seu sangue vai te mostrar que suas
lágrimas e apertos NUNCA foram em vão." AL.
"Você é um soldado
Mas só porque esse mundo ainda faz de você um soldado
E só porque falta igualdade
[...]
E só porque falta cuidado
[...]
E só porque a solidariedade não está
[...]
E da igualdade, do cuidado e da solidariedade é que vem a sua força de ser soldado para acabar com
esse mundo e fazer outro em que ninguém precise ser soldado" J.
do teatro (BOAL, p.27, 1996). Em sua carta, J. traz a visão de um corpo que foi
formatado para enfrentar uma guerra; enfrentar batalhas que foram criadas
socialmente para determinados corpos. No jogo “Inter-relação de personagens”, J.
ocupou o lugar de antagonista da cena, trazendo exatamente a questão das batalhas
que determinados corpos vivenciam. Na cena, víamos duas pessoas em uma relação,
na qual uma questionava o tamanho da vestimenta da outra. Ao conversarmos sobre
o que foi produzido, levantamos a questão do corpo queer sempre ter de estar
preparado para enfrentar a violência ao redor, seja ela vinda de pessoas que
conhecemos ou não. Essa violência, muitas das vezes, é responsável por construir
uma espécie de “carcaça” de proteção, impedindo que boas intenções (afeto) possam
atravessar o indivíduo.
Ao final da roda, pudemos trocar opiniões sobre a experiência da oficina como
um todo e como, esse pequeno espaço com um total de seis horas foi crucial para
expurgar sentimentos que estavam presos dentro de todas ali, como demonstra os
depoimentos abaixo.
“Na vida todo mundo recebe porrada e quando vemos um lugar seguro em que nos propomos ficamos
instigados pois é muito diferente da realidade.” AL.
"Achei muito interessante e necessário ter participado [...] Gostei do desenho e do caminho até o
exercício final de como tudo foi passado, da forma do Boal e os levantamentos lançados e me sinto
muito grata." N.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
PELO DIREITO DE SERMOS PÚBLICOS
Ser uma pessoa LGBTQIAP+ no Brasil é uma luta constante por sobrevivência
e por visibilidade. Diariamente, somos confrontados por notícias de vários dos nossos
que falecem muito mais cedo do que deveriam, vítimas de um sistema violento e
intolerante. E não é apenas nas ruas que o ódio se presentifica: muitas das vezes,
nossos antagonistas estão dentro de nossas casas, os próprios entes queridos da
família; o primeiro lugar que deveria dar afeto e amor, vira-nos o rosto. E é essa lacuna
presente dentro da pessoa LGBTQIAP+ que se intensifica, gerando indivíduos que
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não reconhecem o amor e, assim, não o vivenciam, nem de forma pública e nem de
forma privada.
Entendendo essa questão e na busca de como o teatro pode ser um elemento
transformador no ato de amar entre a população LGBTQIAP+, percebemos que o
Arco-íris do desejo de Augusto Boal poderia contribuir de forma positiva a essa
pesquisa.
E de fato, ao aplicarmos os jogos de Boal, pensados no século passado em
um público totalmente diferente, percebemos o quanto esses jogos concebidos para
expor de forma cênica as opressões dos indivíduos resultam em momentos de
partilha e conversa acerca de questões tão pessoais, profundas e sisudas. A obra de
Boal auxilia a revelar na cena os antagonistas que cercam nossas vidas e a descobrir
de forma coletiva de que maneira podemos virar o jogo e, assim, deixarmos de ser
soldados.
Ao observar as cartas escritas e os momentos de troca, enxergamos que por
meio das propostas da linguagem escolhida pelo grupo, pudemos, de forma coletiva
trabalhar cenicamente a falta do afeto e as opressões que essa carência resulta,
observando situações cotidianas de determinados corpos e situações que permeiam
a própria trajetória.
A oficina “Celebração das Borboletas” permitiu evidenciar as transformações
que envolvem esse corpo queer que, desfazendo-se do seu casulo, pode, de uma
simples larva, alçar voos como uma borboleta, escolhendo renascer através da
palavra. E com orgulho, finalizamos esse artigo como o começamos: com um enxerto
do Manifesto Queer:
“Ser queer não é sobre um direito à privacidade; é sobre a liberdade de ser
público, de simplesmente sermos quem somos (ACT UP, 1990, n.53).”
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOOKS, Bell. Tudo Sobre o Amor, Ed. Elefante, São Paulo, 2021.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso, Ed. SCHWARCZ S.A., São Paulo,
2018.
ACT UP. Manifesto Queer, Revista Chão de Feira, n.53, São Paulo, 2016.
FERNANDES, Luis Felipe. Pai é indiciado por torturar filho gay e ameaçar arrastá-lo
pela rua em Três Lagoas (MG). UOL, 2012. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/02/pai-e-indiciado-por-
torturar-filho-gay-e-ameacar-arrasta-lo-pela-rua-em-tres-lagoas-ms.amp. htm.
Acesso em 22 Setembro 2022.
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ANEXOS
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Fonte: De autoria do grupo, 2022.
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