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A CELEBRAÇÃO DO AFETO HOMOAFETIVO POR MEIO DO ARCO-


ÍRIS DO DESEJO DE AUGUSTO BOAL

Adailton dos Santos Junior


Diego Calleffo
Felipe Galvão
Indigo Sote1

RESUMO
O presente artigo tem por objetivo relatar o processo e os resultados obtidos em
experimentação realizada a partir de um estudo entre a relação dos corpos
homoafetivos e transexuais e o Teatro do Oprimido, tendo como base a obra de
Augusto Boal, Arco-íris do desejo. Os jogos teatrais desenvolvidos e praticados pelo
autor, buscam celebrar não apenas a autoaceitação, mas também o amor-próprio.
Com a aplicação desses jogos na experimentação, os participantes puderam se
conectar consigo mesmos e criar laços entre eles, a partir do momento em que se
permitiram respeitar e entender seus corpos, suas dores e fragilidades, abrindo-se a
essas questões. Ao final de cada encontro, foi proposta a reflexão sobre as atividades
realizadas, em que os oficineiros registraram suas impressões e percepções. No
encerramento da oficina os participantes foram estimulados a escrever cartas de amor
endereçadas a eles mesmos, em que puderam externar seus sentimentos de amor-
próprio e de autocuidado e celebrar seus corpos dentro e fora do teatro.

Palavras-chave: Teatro; Teatro do Oprimido; Celebração do Amor; População


LGBTQIAP+; Arco-Íris do Desejo; Augusto Boal.

ABSTRACT
The following article’s objective is to disclose the process and results of an experiment
derived from a study regarding the correlation between homoaffective and transexual
bodies and Teatro do Oprimido, based off of the book by Augusto Boal, Arco-Íris do
Desejo. The theatrical games developed and executed by the author look to celebrate
not only self acceptance but also self love. As the games carried out throughout the

1 Graduandos do curso de Teatro na Universidade Anhembi Morumbi do ano de 2022.


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experiment, the participants were able to connect with themselves and create bonds
between each other once they allowed themselves to respect and understand their
own bodies, their wounds and fragilities, opening up to these issues. By the end of
each meeting, we proposed deliberation over the activities conducted in a guided
conversation, where the members shared their impressions and perceptions of the
day. At the end of our workshop, the participants were encouraged to write love letters
to themselves, where they were able to externalize their feelings of self love and self
care and celebrate their bodies, in and out of theater.
Keywords: Theater; Teatro do Oprimido; Celebration of Love; LGBTQIAP+ Bodies;
Arco-íris do desejo; Augusto Boal.

INTRODUÇÃO
NÃO RECOMENDADOS À SOCIEDADE

Ser queer não é sobre um direito à privacidade; é


sobre a liberdade de ser público, de simplesmente
sermos quem somos. [...] somos um exército de
amantes porque somos nós quem sabemos o que
amar quer dizer. Desejo e luxúria também. Nós os
inventamos. Nós saímos do armário, encaramos a
rejeição da sociedade, enfrentamos pelotões de
fuzilamento, apenas para nos amarmos uns aos
outros! (ACT UP, 1990, n.53)

Esse é um pequeno trecho do Manifesto Queer, escrito em 1990 durante a


pandemia da AIDS pelo ACT UP, grupo estadunidense que se dedicava a lutar pelas
vítimas do vírus. Sem essa informação, ao ler o manifesto, facilmente poderíamos
interpretá-lo como um texto que comenta nossa atualidade, já que, embora tenha
havido avanços significativos no reconhecimento de seus direitos, ser uma pessoa
LGBTQIAP+ ainda é um desafio para grande maioria, principalmente no Brasil.
Segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e
Intersexuais (ILGA), o Brasil é o país da América Latina que mais mata pessoas
LGBTQIAP+ (ANF, 2021).
E não precisamos ir longe para entender essa realidade: Gabriel, 22 anos,
assassinado no mês de junho (mês em que se celebra o orgulho LGBTQIAP+) a tiros
enquanto se preparava para cortar o cabelo. (TOMAZ; PAIVA, 2021). Como muitos,
Gabriel tinha sonhos, desejos, família, um amor. Com o poder de uma bala movida
pelo ódio, a vida de Gabriel foi interrompida pelo preconceito e pela intolerância.
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E não precisa-se ir longe para perceber que crimes como esse sempre
aconteceram no Brasil. Desde a invasão portuguesa nas terras da antiga Vera Cruz,
o sangue de pessoas que podemos considerar como homoafetivas é derramado.
Tibira, indígena Tupinambá, é a primeira vítima de homofobia datada no Brasil. Sendo
considerado sodomita e bruto, Tibira é amarrado à boca de um canhão e tem seu
corpo estilhaçado no forte de São Luís, no Maranhão em 1613 (TREVISAN, 2018, p.
565). Embora o crime contra a vida de Tibira seja datado de 400 anos atrás, ações
hediondas como essas são reproduzidas até hoje, sejam por meio de violências
físicas, sejam por meio de violências verbais, consideradas mais "sutis", como
demonstra FONSECA.

Por muito tempo fui o “viadinho da escola”, e era


assim como me chamavam. Nem sei ao certo se
as pessoas sabiam meu nome, pois o termo
viadinho era o que me definia em muitos
momentos. [...] As mais remotas lembranças da
minha infância já me colocam escutando dos
amigos, colegas e vizinhos os codinomes: “viado”
e “bicha”. (FONSECA, 2016, p. 14)

Desde pequena, a pessoa LGBTQIAP+ sente na pele os espinhos do


preconceito, tanto dentro da sala de aula, quanto dentro de casa. Ao falar sobre a
vivência no lar, um lugar ao qual se atribui a ideia de afeto e aconchego, muitos
afirmam ser o espaço onde vivenciaram as primeiras marcas da intolerância e da
violência, vindas de pessoas que deveriam dar suporte e afeto. Tal afirmativa pode
ser corroborada com um fato ocorrido em 2013, no Mato Grosso do Sul, em que um
agropecuarista foi indiciado após torturar seu filho homossexual, ameaçando arrastá-
lo pelos pés com uma caminhonete. (FERNANDES, 2013).
Observada essa questão, entramos em um tópico de suma importância à
temática que buscamos trabalhar: o amor e o afeto.

AMAR É ÉTICA
Pensamos ser trabalhoso e ingênuo o processo de conceitualização do amor,
e é evidente que esse é, também, parte do problema. O amor que não se ensina e
não se entende, o sentimentalismo arrebatador e paralisante que nos é introduzido
pela mídia desde que a indústria cultural é indústria, pode parecer para muitos
extremamente convidativo, mas é também irreal e positivista — certamente destrutivo,
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e propulsiona a lógica capitalista às alturas, porque é interessante para o mercado


sempre ter ausências a suprir.
Na maioria dos filmes e livros, deparamo-nos sempre com casais de específica
cor, gênero, idade e endereço, vivendo emoções incomunicáveis, inapreensíveis e
incontroláveis; e disso cria-se um mal-estar geral: o medo irracional de que o amor
simplesmente acontece com os outros, mas nunca com você. A existência torna-se,
então um esforço em ser amado, subordinado à crença de não-merecimento e à
frustração, que assombra as pessoas em todas as relações. Todavia, amar não
precisa ser apenas um conto de fadas ou um fruto da imaginação; amar pode ser uma
realidade.
Amor, para Bell Hooks, é agir. Em seu livro Tudo Sobre Amor, a educadora e
ativista sugere uma nova abordagem para a acepção do termo: tratar o substantivo
como verbo.

Somos com frequência ensinados que não temos


controle sobre nossos “sentimentos”. [...] Pensar
que as ações moldam os sentimentos é uma forma
de nos livrarmos de suposições aceitas
convencionalmente, como a de que pais amam
seus filhos, de que alguém simplesmente "caí" de
amores sem exercer desejo ou escolha, [...]Se nos
lembrarmos constantemente de que o amor é o que
o amor faz, não usamos a palavra de um jeito que
desvaloriza e degrada o seu significado. Quando
amamos, expressamos cuidado, afeição,
responsabilidade, respeito, compromisso e
confiança. (HOOKS, 2021, p. 51)

Partindo dessa nova definição, é possível entendermos que as relações


consanguíneas não são amorosas por natureza e que, por vezes, o próprio núcleo
familiar é responsável por produzir concepções distorcidas sobre afeto e amor. Como
nosso primeiro contato e principal referência para relações interpessoais, nossos pais
estabelecem despropositadamente nossa compreensão daquilo que computa o afeto,
e, em famílias disfuncionais, isso pode significar associar por anos e anos carinho
com violência, como demonstra Hooks.

Quando entendemos o amor como a vontade de nutrir o


nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa, fica
claro que não podemos dizer que amamos se somos
nocivos ou abusivos. Amor e abuso não podem coexistir.
(HOOKS, 2021, p.44)
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O amor se torna político assim que se torna uma escolha. Amar a si mesmo é
se posicionar contra opressões sistemáticas que alimentam e movimentam o
mercado. Amar o outro é fundamentar vínculos e estabelecer redes de solidariedade
em um contexto capitalista que prospera com o individualismo e com a
competitividade. No fim, o amor é o que o amor faz.
Entendendo a proposta de Hooks do amor como ação e as questões acerca
do afeto e do amor entre pessoas homoafetivas, nos perguntamos: de que forma o
teatro pode ser um aliado na luta LGBTQIAP+ pela vivência do amor público? Surge
então, por meio do encontro da luz do sol com as gotículas de águas do teatro, o
Arco-íris do desejo, idealizado por Augusto Boal.

ARCO-ÍRIS DOS INDESEJADOS


O Arco-íris do desejo é um dos sete desdobramentos do Teatro do Oprimido,
criado e idealizado por Augusto Boal. O trabalho de Boal surgiu por volta dos anos 70
como uma forma de resistência às ditaduras latino-americanas. Havia um processo
de repressão contra a América Latina e, também, contra as minorias e a esquerda.
O trabalho de Boal tem como objetivo desenvolver a percepção de mundo, tanto do
artista quanto do espectador, desenvolvendo o diálogo, a troca de ideias, do real,
daquilo que vivemos, sendo um tipo moderno de teatro, quase contemporâneo.
Também chamado de teatro terapia, o Arco-íris do desejo é um método criado
por Boal que reflete os estudos, técnicas e ensinamentos do Teatro do Oprimido –
que amadureceu com o exílio do teatrólogo na Europa e resultou no método que
conhecemos hoje – trabalhando com as opressões internalizadas nas pessoas, a fim
de entendê-las, debatê-las, contorná-las e alcançar um estado superior, aquele que
se almejava desde o início: o desejo.

Diferente da América Latina, em que os problemas e as


agressões são muito claras e visíveis, como por exemplo
a agressão policial contra as minorias, o racismo, a
homofobia e xenofobia, ao chegar na Europa, Boal se
deparou com outros tipos de problemas. Lá, as pessoas
sentiam um vazio interno, a ponto de não conseguirem
realizar seus sonhos e desejos, a ponto de cometerem
suicídio. E a partir dessa perspectiva, Boal começa a
desenvolver o método do “arco íris do desejo”, em que
visamos um desejo e encontramos as problemáticas que
me impedem de alcançá-lo. A partir daí, surge a
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dramaturgia que recria diversos momentos, imagens e


falas, que trazem a possibilidade de discutirmos interna
e externamente, as barreiras que me impedem de
alcançar o meu sonho, o meu desejo. A partir disso, os
problemas são discutidos em grupo; o acolhimento é
muito importante. (BOAL, 2002, p. 70-80)

Escolhemos trabalhar com o Arco-íris do desejo exatamente por conta do


acolhimento que ele proporciona e por trazer uma perspectiva de vida real, que rompa
com os papéis impostos para a comunidade LGBTQIAP+. Trabalhar com esse
método é desnudar-se de qualquer preconceito, de qualquer tipo de vergonha ou
trauma que possa assombrar nossa vida, nosso consciente e inconsciente, não de
forma a esquecê-los, mas sim numa tentativa de entendê-los.
Assim, pode-se buscar um debate que nos favoreça de modo a superá-los e
compreendê-los, alcançando o objetivo, que parecia estar tão distante. Muitas
pessoas homossexuais têm suas sexualidades ignoradas ou oprimidas e acabam por
acreditar que amar é errado, que existe apenas um método de amar
[heterossexualidade], quando isso não é verdade. Trabalhar esses impedimentos,
entendê-los e superá-los de forma dramática-terapêutica é caminhar em direção à
celebração do amor homoafetivo.

METODOLOGIA
CELEBRAÇÃO DAS BORBOLETAS

Após pesquisa e estruturação do plano de aula, iniciamos os trabalhos


contatando o Centro Cultural da Diversidade de São Paulo, localizado no Itaim Bibi,
zona sul da capital paulista. O espaço público onde se localiza o Teatro Décio Prado
de Almeida, o CCD, como é chamado, é o único centro cultural público de São Paulo
destinado a programação 100% LGBTQIAP+, sendo, por isso, ideal para a aplicação
da nossa pesquisa.
Acordado com a direção do espaço, iniciamos as inscrições utilizando um
formulário online para a realização da atividade, focando em indivíduos que se
identificassem como homoafetivos (gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais, entre
outras sexualidades). Com um número considerável de inscritos (16 pessoas),
fizemos o contato e iniciamos a oficina de dois dias.
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No primeiro dia, após a apresentação de todo mundo, iniciamos com um breve


aquecimento corporal, baseado na Kinesfera de Laban2, utilizando o corpo para criar
uma dança improvisada, chamada de "Dança do Dia". Posteriormente, realizamos o
"Jogo do Mosquito", com a finalidade de aquecer e descontrair os participantes. Já
aquecidos, iniciamos o "Jogo dos Gostos", no qual, os integrantes caminham pelo
espaço e, ao dizer coisas que gostam, os demais se aproximam (caso gostem
também) ou se afastam (caso não gostem). Buscamos com este jogo o entrosamento.
Posteriormente, as pessoas foram estimuladas a andar pelo espaço e a parar na
frente de alguém, formando duplas. Cada dupla buscou o olhar de seu parceiro. Aos
poucos, foram introduzidas as questões: "fale uma parte que achou bonita na
pessoa", "um conselho que daria a ela" e "uma música que te dou de presente". Ao
fim desse exercício, as duplas finalizaram com um abraço. Após essa introdução,
começamos a aplicar exercícios de Boal, a fim de instigar a linguagem cênica
proposta pelo livro Arco-íris do desejo, com os jogos "A Imagem das Imagens" e a
“Imagem Antagonista”. No final do encontro, foi realizada uma roda de conversa para
discutir as devolutivas sobre o primeiro dia.
No segundo dia, iniciamos os trabalhos solicitando que os participantes
fizessem uma roda e em seguida escolhemos um deles para iniciar o aquecimento
coletivo com o objetivo de estimular a consciência corporal. Ao término do
aquecimento, pedimos para que todos andassem pelo espaço para que fosse
aplicado o primeiro jogo do dia: “Atmosfera de Neve”, aludido no livro 200 jogos para
atores e não atores de Augusto Boal. Em seguida propusemos o jogo “Baile da
embaixada”, seguidos dos jogos “O contrário de si mesmo” e “Despertar do
personagem adormecido”. Ao final desse encontro, propusemos uma nova atividade
na qual cada participante escreveu uma carta de amor para si mesmo. Realizamos,
ainda, uma roda de conversa para discutir as devolutivas do sobre o segundo
encontro e sobre a oficina.

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A kinesfera é tudo que podemos alcançar com todas as partes do corpo, perto ou longe, grande ou
pequeno, com movimentos rápidos ou lentos etc.
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RESULTADOS
A PALAVRA CANTADA QUE É O SEU NOME ou VOCÊ É UM SOLDADO

O primeiro resultado que se pôde observar é o número de participação na


oficina. Para obter um bom número de pessoas inscritas, foi realizado um
impulsionamento nas redes sociais e divulgação em grupos com pessoas
LGBTQIAP+ que poderiam se interessar pelo conteúdo do trabalho. Com a inscrição
a partir do Formulário Google, a oficina conseguiu angariar 16 participantes, sendo
que 70% poderia estar presente nos dois dias. Ao criar um grupo no WhatsApp com
os integrantes da oficina, pode-se perceber que poderíamos ter um número menor de
participantes, tendo em vista que algumas pessoas não retornaram o contato.
Chegado o dia da oficina, às 17h, horário previsto para o início das atividades,
não havia chegado ninguém, apenas uma participante que não havia se inscrito
formalmente. Alguns momentos depois, uma das pessoas inscritas chegou e, para
não atrasar o cronograma e em respeito as pessoas que vieram, começamos os
trabalhos, com os instrutores participando de alguns exercícios para que um quórum
suficiente fosse construído. Já no segundo dia, outras duas pessoas inscritas
formalmente foram para o encontro, totalizando a participação de quatro pessoas na
oficina. Algumas pessoas contatadas tiveram problemas ou questões pessoais que
as impediram de estar presentes e outras não retornaram o contato.
Entendendo o quórum reduzido, utilizamos para avaliação dos resultados,
além das cartas de amor escritas pelas participantes, o diário de bordo dos encontros
escrito pelos condutores. Para início, observa-se o trecho da carta de A.G. abaixo:

"Você é você
Nada mais
Nada menos
[...]
Ele teria orgulho
[...]
Assim como eu" AG.

Um dos primeiros jogos realizados foi a “Imagem das Imagens”, no qual o


grupo deveria construir, a partir de imagens menores, uma imagem maior. Nessa
imagem, AG. foi a protagonista, tendo AL. como antagonista. Observamos após ouvir
as impressões de AG., como o ato de enfrentar a antagonista revelava a questão do
orgulho que ela descreve em sua carta. Ao propor que a imagem começasse a emitir
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sons ou frases, falas como “você é capaz”, “você é digna” foram ditas pela
personagem. Para além de um simples jogo, observamos como foi importante
expressar esse sentimento de orgulho por meio da fisicalidade (da fala e do corpo)
que o exercício se propõe a trazer. Uma questão similar encontra-se na carta de AL.

"Sou aquela pessoa que estava lá o tempo todo. Sou a menina imperfeita dos seus sonhos. [...] Escolhi
renascer a partir da palavra. Escolhi renascer a partir da palavra cantada que é o seu nome. [...] Apenas
lembre-se que tudo tem um fim. E tá tudo bem ter um fim, acabar. [...] Eu não sei como você me
resgatou do nosso próprio interior [...]uma hora, o rastro do seu sangue vai te mostrar que suas
lágrimas e apertos NUNCA foram em vão." AL.

Ao fazermos um exercício que trabalhava a questão dos pronomes que a


pessoa usava, percebemos que AL. trazia uma força ao dizer os seus, usando esse
enfrentamento, inclusive, no jogo da “Imagem Antagonista”, em cena com um dos
condutores. Na cena, víamos uma pessoa (AL.) em um mau momento, enfrentando
uma segunda figura (Condutor) com a mesma “força” que trazia em seus pronomes.
Em um momento de roda, conversamos sobre como a questão do amor,
principalmente em relação à população trans e travesti, é negada em diversos
âmbitos. O interessante é que a cena realizada a partir das imagens construídas por
AL. e pelo condutor revertia a situação, trazendo a possibilidade do corpo travesti ser
amado e revelando os empecilhos que se encontram no caminho para alcançar esse
afeto.

"Eu tenho medo de você...não, tenho medo disso..." AL (Em cena)

Ao observarmos a carta de J., vemos presente de forma bem clara o conceito


de espect.-ator que Boal propõe em seu trabalho:

"Você é um soldado
Mas só porque esse mundo ainda faz de você um soldado
E só porque falta igualdade
[...]
E só porque falta cuidado
[...]
E só porque a solidariedade não está
[...]
E da igualdade, do cuidado e da solidariedade é que vem a sua força de ser soldado para acabar com
esse mundo e fazer outro em que ninguém precise ser soldado" J.

Segundo Boal, o ser humano tem uma possibilidade única de se observar em


uma espécie de “espelho imaginário” e, essa ação de se auto-observar é a essência
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do teatro (BOAL, p.27, 1996). Em sua carta, J. traz a visão de um corpo que foi
formatado para enfrentar uma guerra; enfrentar batalhas que foram criadas
socialmente para determinados corpos. No jogo “Inter-relação de personagens”, J.
ocupou o lugar de antagonista da cena, trazendo exatamente a questão das batalhas
que determinados corpos vivenciam. Na cena, víamos duas pessoas em uma relação,
na qual uma questionava o tamanho da vestimenta da outra. Ao conversarmos sobre
o que foi produzido, levantamos a questão do corpo queer sempre ter de estar
preparado para enfrentar a violência ao redor, seja ela vinda de pessoas que
conhecemos ou não. Essa violência, muitas das vezes, é responsável por construir
uma espécie de “carcaça” de proteção, impedindo que boas intenções (afeto) possam
atravessar o indivíduo.
Ao final da roda, pudemos trocar opiniões sobre a experiência da oficina como
um todo e como, esse pequeno espaço com um total de seis horas foi crucial para
expurgar sentimentos que estavam presos dentro de todas ali, como demonstra os
depoimentos abaixo.

“Na vida todo mundo recebe porrada e quando vemos um lugar seguro em que nos propomos ficamos
instigados pois é muito diferente da realidade.” AL.

"Achei muito interessante e necessário ter participado [...] Gostei do desenho e do caminho até o
exercício final de como tudo foi passado, da forma do Boal e os levantamentos lançados e me sinto
muito grata." N.

"Foi gostoso, troca de afeto e interação tranquila com as pessoas." J.

"Muito necessário" AG.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
PELO DIREITO DE SERMOS PÚBLICOS

Ser uma pessoa LGBTQIAP+ no Brasil é uma luta constante por sobrevivência
e por visibilidade. Diariamente, somos confrontados por notícias de vários dos nossos
que falecem muito mais cedo do que deveriam, vítimas de um sistema violento e
intolerante. E não é apenas nas ruas que o ódio se presentifica: muitas das vezes,
nossos antagonistas estão dentro de nossas casas, os próprios entes queridos da
família; o primeiro lugar que deveria dar afeto e amor, vira-nos o rosto. E é essa lacuna
presente dentro da pessoa LGBTQIAP+ que se intensifica, gerando indivíduos que
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não reconhecem o amor e, assim, não o vivenciam, nem de forma pública e nem de
forma privada.
Entendendo essa questão e na busca de como o teatro pode ser um elemento
transformador no ato de amar entre a população LGBTQIAP+, percebemos que o
Arco-íris do desejo de Augusto Boal poderia contribuir de forma positiva a essa
pesquisa.
E de fato, ao aplicarmos os jogos de Boal, pensados no século passado em
um público totalmente diferente, percebemos o quanto esses jogos concebidos para
expor de forma cênica as opressões dos indivíduos resultam em momentos de
partilha e conversa acerca de questões tão pessoais, profundas e sisudas. A obra de
Boal auxilia a revelar na cena os antagonistas que cercam nossas vidas e a descobrir
de forma coletiva de que maneira podemos virar o jogo e, assim, deixarmos de ser
soldados.
Ao observar as cartas escritas e os momentos de troca, enxergamos que por
meio das propostas da linguagem escolhida pelo grupo, pudemos, de forma coletiva
trabalhar cenicamente a falta do afeto e as opressões que essa carência resulta,
observando situações cotidianas de determinados corpos e situações que permeiam
a própria trajetória.
A oficina “Celebração das Borboletas” permitiu evidenciar as transformações
que envolvem esse corpo queer que, desfazendo-se do seu casulo, pode, de uma
simples larva, alçar voos como uma borboleta, escolhendo renascer através da
palavra. E com orgulho, finalizamos esse artigo como o começamos: com um enxerto
do Manifesto Queer:
“Ser queer não é sobre um direito à privacidade; é sobre a liberdade de ser
público, de simplesmente sermos quem somos (ACT UP, 1990, n.53).”
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOOKS, Bell. Tudo Sobre o Amor, Ed. Elefante, São Paulo, 2021.

BOAL, Augusto. O Arco-Íris do Desejo: o método Boal de Teatro e terapia, Editora


Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1996.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso, Ed. SCHWARCZ S.A., São Paulo,
2018.

ACT UP. Manifesto Queer, Revista Chão de Feira, n.53, São Paulo, 2016.

FONSECA, Robson Rodrigo Pereira da. O viadinho da escola: Discursos sobre a


homossexualidade masculina na escola, Universidade Federal de Santa Catarina
(Trabalho de Conclusão de Curso), Florianópolis, 2016.

TOMAZ, Kleber; PAIVA, Deslanges. Jovem é morto a tiros em barbearia na Grande


São Paulo; família suspeita de homofobia. O Globo, 2021. Disponível em:
https://g1.globo.com/google/amp/sp/sao-paulo/noticia/2021/06/25/jovem-e-morto-a-
tiros-em-barbearia-na-grande-sp-familia-suspeita-de-homofobia.ghtml. Acesso em 22
Setembro 2022.

CARDOSO, Priscila. Brasil é o país que mais mata pessoas da comunidade


LGBTQIA+ no mundo. ANF - Agência de Notícias da Favela, 2021. Disponível em:
https://www.anf.org.br/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-pessoas-da-comunida de-
lgbtqia-no-mundo/. Acesso em 22 Setembro 2022.

FERNANDES, Luis Felipe. Pai é indiciado por torturar filho gay e ameaçar arrastá-lo
pela rua em Três Lagoas (MG). UOL, 2012. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/02/pai-e-indiciado-por-
torturar-filho-gay-e-ameacar-arrasta-lo-pela-rua-em-tres-lagoas-ms.amp. htm.
Acesso em 22 Setembro 2022.
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ANEXOS

FIGURA 1: Oficineiros em cena no “Jogo do mosquito”, 03/11

Fonte: De autoria do grupo, 2022.

FIGURA 2: Oficineiros em cena. Jogo: imagem das imagens refeita, 04/11.

Fonte: De autoria do grupo, 2022.


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FIGURA 3: Oficineiros em cena. Jogo: Inter-relação dos personagens, 04/11.

Fonte: De autoria do grupo, 2022.

FIGURA 4: Oficineiros em cena. Jogo: Imagem das imagens, 03/11

.
Fonte: De autoria do grupo, 2022.
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FIGURA 5: Oficineiros em cena. Jogo: Inter-relação de personagens, 04/11

Fonte: De autoria do grupo, 2022.

FIGURA 6: Oficineiros em cena. Jogo: imagem das imagens, 03/11.

Fonte: De autoria do grupo, 2022.


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FIGURA 7: Oficineiros em cena. Jogo: O contrário de si mesmo, 04/11.

Fonte: De autoria do grupo, 2022.

FIGURA 8: Oficineiros em cena. Jogo: Imagem antagonista, 03/11.

Fonte: De autoria do grupo, 2022.


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FIGURA 9: Flyer de divulgação da oficina

Fonte: De autoria do grupo, 2022.

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