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CAPACETES DE
AÇO
A GUERRA NO SECTOR
NORTE

SAMUEL BACCARAT

São Paulo - 1932

Este livro foi composto e impresso nas


oficinas da Empresa Grafica da "Revista dos
Tribunaes" em São Paulo, á rua Xavier de
Toledo, 72.

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CAPACETES DE AÇO

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Edição digital e gratuita da obra escrita em 1932
pelo Dr Samuel Baccarat
organizado pela

SOCIEDADE VETERANOS DE 32 – MMDC


Fundada por combatentes da
Revolução Constitucionalista de 1932 a 7 de julho de 1954

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Foto 1: Samuel Baccarat anos 30 – ACERVO
GILMAR DOMINGOS DE OLIVEIRA

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Coordenação Geral e Diagramação
Rodrigo Gutenberg

Organizadores:
Marilina Baccarat, Cássio Martin,
Rodrigo Gutenberg, Tadeu de Monjardin,
Virgínia Helena Quadrado, Camila Giudice.

Ilustrações:
Camila Giudice

Fotografias n.2 & 3:


Associação dos Combatentes de 1932 de
Santos
Fundada em 27 de junho de 1958.

Fotografia Samuel Baccarat, n.1:


Gilmar Domingos de Oliveira

Copyright © 2021 - Sociedade Veteranos de 32 – MMDC


Baccarat, Samuel (1.892 – 1.935)
Capacetes de Aço (1.932 – 2.021)

VERSÃO DIGITAL E GRATUITA, DA OBRA


HISTORIOGRAFICA CAPACETES DE AÇO
SOCIEDADE VETERANOS DE 32 - MMDC©
Fundada a 7 de julho de 1.954
MONUMENTO E MAUSOLÉU AO SOLDADO CONSTIUCIONALISTA
DE 1932
PRAÇA IBRAHIM NOBRE, São Paulo/SP
Utilidade Pública pela Lei Estadual 5.530 de 14 de janeiro de 1960 e Decreto
Municipal 8.790 de 23 de maio de 1970
R.O.H. 001

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Antes de prosseguir com o proposto até
aqui, gostaria de agradecer...
O apoio que tive e tivemos da Associação
dos Combatentes de Santos, já mencionada na
técnica, na pessoa de seu presidente Dr
Murilo Pinheiro Lima Cypriano. Destacamos o
Sr Gilmar Domingos de Oliveira, Jornalista,
membro do Instituto Histórico e Geográfico
de Santos, 2º Tesoureiro da Associação dos
Combatentes de Santos e que se dedica, há
muitas décadas, como preocupação em sua
vida, cuidar da memória da Revolução de
1932 de Santos. Foi ele que gentilmente
ofereceu, em formato digital, três
importantíssimas fotografias de santistas
que combateram na Revolução de 1932, entre
elas, raras imagens do Dr Samuel Baccarat,
objeto de nosso trabalho. A fotografia do
Dr S. Baccarat nunca havia sido publicada.
Acertadas as medidas de direito autoral,
temos, assim, raras e ótimas imagens de
combatentes santistas de 32 nesta obra
especial.

A congregação entre Sociedade Veteranos de


32 e Associação dos Combatentes de Santos,
neste trabalho, oportunizou um enorme
reavivamento histórico e juntos,
conseguimos trazer para o século XXI a obra
Capacetes de Aço, que contém apenas uma
edição com mil exemplares, sendo assim,
hodiernamente, rara e até então acessível
para pouquíssimas pessoas.

Agora, podemos perpetuar este livro e


conseguir dar uma garantia de que os
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escritos do Dr Samuel ecoam-se por mais
este milênio, pelo menos.

Seria injusto não ressaltar o apoio e dicas


cruciais que recebi do jornalista Sergio
Willians, Presidente do Instituto Histórico
e Geográfico de Santos e diretor cultural
da Sociedade Humanitária de Empregados do
Comércio.
Sergio, encaminhou-me aos arquivos de
jornais que se encontram digitalizados.
Desta maneira, centenas e mais centenas de
páginas de jornais dos anos 20 e 30 puderam
ser pesquisadas, adicionada em nosso banco
de dados e enriqueceu o fatos que compõem
este repertório.

Agradeço a equipe organizadora, sem ela


este trabalho não teria sido concluído em
apenas dois meses e aos prefaciadores,
escolhidos com carinho para que pudessem
contribuir com esta edição. À escritora
Marilina Baccarat de Almeida Leão, premiada
acadêmica paulista, neta de José Baccarat,
irmão do Dr Samuel e que foi prefeito e
delegado em Santos, nosso muito obrigado
pela chancela da obra, que mesmo em domínio
público, foi-lhe pedido permissão para esta
reedição.
Professor Tadeu de Monjardin, que logo
aceitou a missão de digitalização e que
reforçou a equipe com a Dra Virgínia Helena
para a mesma atribuição.
A artista plástica e escritora Camila
Giudice é uma parceira intelectual de
muitos anos, coautora de História & Arte: O
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Relicário da Revolução de 32 (Editora
Matarazzo), com tão pouca idade tem uma
vasta obra relacionada ao movimento
constitucionalista, de tanto merecer, não
há como não agradecê-la.

O cineasta Cássio Martin também percorre


essa longa estrada sem fim, carregando a
memória de 32 nos ombros, tendo produzido o
único filme a respeito da Revolução de 32.
Um grande incentivador e homem que me
concedeu credencias para que ao seu lado
pudesse trabalhar.

O pesquisador Filipe Oliveira, um


importantíssimo bastião que assegura a
memória da Revolução de 1932 com a
especificidade dos combates do Setor Norte,
tendo dedicado já há muitos anos, esforços
físicos, financeiros e estudos técnicos
para que hoje, quase um século depois,
possamos entender o que foi grandioso
município de Queluz antes, durante e depois
da Epopeia Constitucionalista. A
notoriedade de seu trabalho é referendada
pelos diversos órgãos com os quais já
contribuiu e as atividades de qual
participa. Sem o apoio de Filipe, ficaria
difícil conhecer os locais de combate da
cidade onde mora.

A presença do acadêmico e intelectual


paulista Sr Malcolm Forest traz toda a
nossa herança do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo em pessoa, só

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dizendo isso já resumo a importância de sua
chancela neste trabalho.
Gratifico a queridíssima Cinthia Amorim que
em uma fase difícil de conclusão desta
obra, trouxe-me o alento e a força para a
conclusão.

Aos presidentes da Sociedade Veteranos de


32 – MMDC, Dr Carlos Romagnoli e Comendador
Luiz Fernando de Souza Marcondes - ambos
descendentes de combatentes da revolução e
que também foram diretores da Sociedade
Veteranos de 32 - por confiarem em meu
trabalho, bem como toda a diretoria e
quadro associativo MMDC.

Sempre grato, tenho que agradecer você,


querido irmão de ideal, paulista de todos
os cantos do Brasil, não só de São Paulo.
Sei o quanto você, assim como todos nós,
presa pela memória deste grandioso
movimento cívico, redentor e completo de
coisas que são tão importantes para nós que
chamamos de valores.

Rodrigo Gutenberg
Historiador MMDC

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ÍNDICE

PREFACIADORES CONVIDADOS
CARLOS ROMAGNOLI.........................19
LUIZ FERNANDO DE SOUZA MARCONDES.........21
MARILINA BACCARAT........................25
CAMILA GIUDICE...........................28
CASSIO MARTIN............................30
TADEU DE MONJARDIN.......................31
RAPHAEL BARBOSA..........................33
EDUARDO CÉSAR WERNECK....................36
LUCAS PUPILE.............................38
FILIPE OLIVEIRA..........................41
GILMAR DOMINGOS DE OLIEIRA...............42
SERGIO RIGHI.............................43
MALCOLM FOREST...........................46

CAPACETES DE AÇO
DEDICATÓRIA................. ............47
PREFÁCIO.................................47
CAPACETES DE AÇO.........................48
OS PRIMEIROS DIAS........................49
D. POLITICALHA...........................51
POR UM TRIZ..............................55
OS CHEFES................................57
QUITAÚNA.................................59
VIDA NOVA................................61
RECOMPOSTO O BATALHÃO....................63
UMA NOITE NA IGREJA......................64
A GUERRA, A GUERRA.......................66
PERFIS...................................68
QUEDA DE QUEUZ...........................77

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JOÃO
PINHO....................................79
PINHEIROS................................80
O COMANDO DO SETOR.......................81
SERVIÇO DE SAÚDE.........................83
ATRINCHEIRA..............................84
A BOIA...................................85
PESSOAL DA INTENDÊNCIA...................86
A MUAMBA.................................90
O P.C. ..................................90
A LUTA...................................92
BATISMO DE FOGO..........................95
BOMBARDEIO AEREO.........................95
ENGENHARIA...............................96
O BLINDADO...............................97
OS MORTOS................................97
FERIDOS..................................99
MUNIÇÃO..................................99
OS “PATRIA AMADA”.......................100
ROCHA MARQUES...........................100
RETIRADA DE PINHEIROS...................101
ESPIONAGEM..............................103
EM PINDAMONHANGABA......................104
GUARATINGUETÁ...........................106
OS CHEFES...............................108
AS PECTOS DA CIDADE.....................110
O CAPACETE DE AÇO.......................113
HOSPEDE DO PAES LEME....................114
BOMBARDEIO DE GUARATINGUETÁ.............116
APARECIDA...............................118
ESPIÕES.................................119
FORNECIMENTOS...........................120
O CONVÍVIO..............................122
ARMISTÍCIO..............................131
A REUNIÃO DE GUARÁ......................133

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Caros leitores, vocês estão prestes a
conhecerem ou se aprofundarem numa das
páginas mais espetaculares da história de
nosso Estado de São Paulo e porque não
dizer do Brasil.

A Revolução Constitucionalista de 1932 é um


dos episódios mais impressionantes da
história da humanidade onde um povo se
levantou em armas bradando pela instalação
de uma Assembleia Constituinte e, por
conseguinte, a promulgação de uma nova
Constituição haja vista que a anterior
havia sido rasgada por Getúlio Vargas.
Embora no campo das armas São Paulo tenha
sido vencido pelo poderio federal,
moralmente São Paulo saiu vencedor visto
que, em 1934 fora promulgada a tão almejada
Constituição do Brasil.

No meu entender esta obra escrita pelo


Soldado Constitucionalista de 32, Dr.
Samuel Baccarat, “Capacete de Aço”, é
praticamente um diário que, de forma
fidedigna, relatara os acontecimentos
vivenciados por ele durante a Revolução no
Setor Norte.

Mister salientar que meu pai Armando


Romagnoli, também, lutara no Setor Norte,
quem sabe ombreando o Ilustre Dr. Samuel
Baccarat. Que orgulho para minha família!

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Meu respeito e admiração ao Historiador
Rodrigo Gutenberg pela brilhante iniciativa
de modernizar esta obra singular da
Literatura da Revolução Constitucionalista
de 1932, episódio épico da história deste
Estado.

Dr Carlos Romagnoli
Presidente da Sociedade Veteranos de 32 – MMDC

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Nos capítulos do livro Capacetes de Aço em
que o Dr Samuel Baccarat escreve sobre os
combates do qual participou, me lembra
muito o mesmo estilo do meu avô, há a mesma
euforia, espírito de combate, energia,
inteligência e potência cívica, para reger
o que tocar, é como que se a energia
empregada em 1932 estivesse presente até o
fim de suas vidas.

Samuel relata vários dos combates do setor


norte da revolução que meu avô também
participou, os dois combateram sempre na
mesma localidade, e nos últimos dias de
guerra, nas mesmas trincheiras,
literalmente, pois com o a saída da Força
Pública em 28 de setembro, os batalhões de
voluntários e unidades do Exército tiveram
que se reorganizar e muitos dos batalhões
patrióticos foram misturados.

Samuel Baccarat, saiu de Santos com a


Milícia Cívica. Chegando em São Paulo, essa
Milícia foi para Quitaúna, sede do 4º R.I –
Regimento de Infantaria. Neste quartel os
santistas foram treinados e subdividida
para vários setores da guerra, por exemplo
o 7º (B.C.R.) Batalhão de Caçadores da
Reserva que atuou no Setor Sul e o 8º
B.C.R., este tão relatado no livro que
veremos a seguir é onde estava lotado o Dr
Baccarat.

Meu avô, Geraldo Faria Marcondes serviu na


Revolução de 1932 lotado no 5º B.C.R,
também criado em Quitaúna, no seio do então
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4º Regimento de Infantaria, onde serviu o
pai do Carlos Romagnoli, presidente da
Sociedade Veteranos de 32, do qual sou
vice-presidente e meu avô, que também foi
presidente. Então vejamos, estamos falando
dos mesmos heróis, no mesmo local, pelo
mesmo ideal.
O 5º foi comandado pelo 1º tenente do
Exército Brasileiro Francisco Adolpho
Rosas, incorporada ao Destacamento do
Coronel José Joaquim Andrade, mesmo
destacamento do qual pertencia o 8º B.C.R.

Meu pai, se chamava Fernão, e recebeu este


nome em homenagem ao Fernão Salles, que era
meu tio-avô e foi combatente da Revolução
de 1932, combatente que comandou uma
companhia do Batalhão "Paes Leme" e que no
já nos primeiros dias da revolução dirigiu-
se com o Batalhão para a fronteira de Minas
Gerais, avançando sobre a cidade de Pouso
Alegre. Falecendo em um duro combate, onde
a troca de tiros correu por longas horas,
no dia 25 de julho.

Absolutamente, quando olhamos para a


Revolução de 1932 através dos relatos dos
combatentes e os livros de História, a
gente compreende que essa é uma das maiores
marcas de nossa identidade, onde todo o
povo do Brasil lutou pelo seu Estado e pelo
Brasil. A Revolução de 1932 teve diversos
focos fora de São Paulo, com a deflagração
em 9 de julho, várias lideranças e
autoridades tentaram se sublevar em todas
as regiões do Brasil, mas foram sufocadas,
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só São Paulo e Mato Grosso lutaram até o
fim da guerra.

Nos dias atuais temos um São Paulo nesta


situação lastimosa, onde diversos problemas
da administração pública são crônicos e
agudos, ao contrário de 1932, que o nosso
governador foi aclamado pelo povo e o
opressor era o Governo Federal, não o
Estadual, como ocorre hoje.

Uma, dentre tantas medidas que se deve


fazer para resolver os problemas de nosso
estado é o fomento a cultura do civismo, e
isso é mais que a do patriotismo, enquanto
formarmos cidadãos civilistas, mais pessoas
preocupadas com o andamento correto de
nosso estado e nosso país, teremos."

Comendador Luiz Fernando de Souza


Marcondes.
Vice-Presidente da Sociedade Veteranos de
32 - MMDC

22
23
DR. SAMUEL BACCARAT

Dr. Samuel Baccarat nasceu em 4 de


fevereiro de 1892, em Espirito Santo do
Pinhal. Casou-se com Alda Arruda
Baccarat, filha do Doutor Brás de
Oliveira Arruda...
Dr. Samuel e Alda tiveram dois
filhos: Paulo Arruda Baccarat e Maria
Thereza Arruda Baccarat...
Dr. Samuel foi o 9° filho de Elias
Baccarat, nascido em 5 de janeiro de 1841,
em Toul-França e de Ana Cândida Baccarat,
brasileira.
Elias Baccarat (pai do Dr. Samuel)
era filho de Samuel Baccarat e Jeanne
Schenche, descendentes da família dos
cristais Baccarat, que ficaram na França.
Então, o Dr. Samuel herdou o nome do avô.
Elias Baccarat, como era o filho
caçula, foi o único que foi enviado para
o Brasil, em 1868 sendo registrado como
negociante, pois o industrial, daquela
época, era chamado de negociante.
Elias Baccarat se casou com Ana
Cândida Baccarat e tiveram oito filhos e
uma filha. Dr. Samuel ficou sem o pai com
apenas dois anos de idade, pois Elias
Baccarat faleceu em 1894, com cinquenta e
três anos, deixando Dr. Samuel com dois
anos de idade e o mais velho, com
dezenove anos.
Dr. Samuel cursou o ginásio em
Jacareí-SP.
Em sua juventude, Samuel gostava de
cavalgar na sociedade Hípica de Santos...

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Em 1915, formou-se na faculdade de
direito do largo São Francisco, em São
Paulo e logo iniciou sua carreira de
ilustre advogado...
Foi deputado estadual pelo PRP, no
biênio 1925-1927. O pai do Dr. Samuel
(Elias Baccarat) era judeu francês e
praticante da religião judaica, assim como
são judaicos todos o Baccarat da
França...
Mas, por ocasião de seu casamento, a
igreja católica apostólica romana,
ajuramentou Elias Baccarat, obrigando-o a
assinar um documento, onde ele se
comprometia a não impedir que os filhos
fossem criados com a doutrina da igreja
católica apostólica romana. De tal modo,
todos seguiram a religião da mãe Ana
Cândida Baccarat...
Em 1934, Dr. Samuel, juntamente com
a esposa Alda Arruda Baccarat, viajou
para a Europa, com o intento de assistir à
festa de canonização de Dom Bosco. Mas,
foi contraído por uma crise de apendicite
e veio a falecer na Clinique Bouchard, em
Marselha, na França, com quarenta e dois
anos de idade...
O translado do seu corpo, para o
Brasil, foi com o avião das forças aéreas
brasileiras e foi sepultado em Santos, no
cemitério Paquetá, com um grande
acompanhamento...
Foi um brilhante advogado, querido e
amparado por todos os irmãos, pois tinha,
apenas, dois anos, quando seu pai veio a
falecer...

25
Tinha o escritório na rua Santo
Antônio, 107 e a sua residência era na
Av. Conselheiro Nébias, 450, em
Santos,SP...
Eu, como sobrinha neta de Samuel
Baccarat, tenho muito orgulho de carregar
o sobrenome Baccarat...
Dr. Samuel lutou na revolução
constitucionalista de 1932 e disso ele
guardava um grande orgulho...
Esse livro, “Capacetes de Aço”, todos
os Baccarat o guardam com muita
altanaria...
E com essa reedição, organizada pelo
professor Rodrigo Gutenberg, a altivez da
família Baccarat vai ser bem maior...

Marilina Baccarat de Almeida


Leão Escritora Brasileira

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“(...) A trincheira é um mundo à parte, que
só pode conhecer quem nela penetrou. Tem o
condão de apertar os homens por um vínculo
estreito de solidariedade(...)” Samuel
Baccarat

Samuel Baccarat em sua comovente obra


“Capacetes de Aço”, relata sua participação
no maior movimento cívico da história
paulista. O autor destina esta obra em suas
palavras “restritamente a fixar no papel a
glória imorredoura de um punhado de moços
idealistas(...).

Entregando-o à publicidade, quero conciliar


os moços da minha Terra a servi-la sempre
com extremado carinho, para que possamos
legar aos porvindouros uma nação com
patrimônio moral tão sólido como o daquela
que recebemos nossos antepassados(...)”

E assim o fez.
Suas palavras eternizaram estes valorosos
homens, e a atmosfera de um 32 que jamais
veremos novamente. Homens de corações
nobres, vivos em nossas memórias.
Como uma profecia, se marcava a
grandiosidade deste momento nos passos
destes destemidos heróis que colocaram à
disposição seu bem maior, acompanhados pela
entusiasmada e fervorosa paixão da
população que tanto se dedicou ao que
acreditavam. 1932 sempre será grandioso.
Glorificado seja Samuel Baccarat, sua
história e sua luta, recebendo nosso preito
de eterna gratidão. E que sejamos capazes
27
de dignificar seu amor à São Paulo, onde
seu combate clamou “por um futuro maior, de
paz, de trabalho, de igualdade social e de
fraternidade.”

Camila Giudice
Pintora Paulista que retrata a Revolução
Constitucionalista de 1932. Pertence à
família de grandes combatentes, heróis de
32.
São Paulo, 22 de dezembro de 2020.

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CAPACETES DE AÇO
Dentre vários relatos registrados em livros, CAPACETES DE
AÇO faz parte de um seleto grupo de especial valor, esta
obra rica em detalhes, leva o leitor diretamente ao campo de
batalha, sem deixar passar nenhum fato importante. Neste
livro podemos acompanhar a jornada de Samuel Baccarat desde
o seu primeiro dia de engajamento até os seus últimos passos
na linha de frente. Assim também como outros autores,
que participaram dos combates em 1932, Samuel Baccarat traz
um testemunho fiel de vários acontecimentos, relembra seus
companheiros de luta, sacrifícios e perdas. Valoriza e
demonstra toda sua admiração pelos mais diversos
profissionais, militares e civis, que tanto se empenharam
nesta epopeia de 32. Reconhece e enaltece os demais
Brasileiros, de outros Estados, que abraçaram a mesma causa
e cerraram fileiras como verdadeiros irmãos em armas.
Também confirma a grande diferença entre as forças de
Getúlio Vargas e o Exército Constitucionalista, este que,
mesmo nos seus piores momentos do conflito, nunca deixou de
lutar.

CAPACETES DE AÇO deixa expresso o sentimento que manteve o


ímpeto da grande maioria dos Paulistas até o fim:
“Mais que o poder das armas do inimigo, havia o poder da
força de S.Paulo, que era o ideal supremo de liberdade, que
nos embalsamava o coração. São Paulo era o direito e a
força.” (pagina 97).

De tudo mais que se possa ler e estudar sobre a Revolução


Constitucionalista de 1932 é imprescindível conhecer o lado
humano e real desta guerra, a vida do Soldado voluntário na
linha de frente, dentro das trincheiras, o elo mais frágil
desta corrente, sem treinamento, sem experiência militar mas
com inabalável convicção em sua missão:
“Dissolveu-se o conclave, que ficará famoso na história de
S.Paulo, um juramento ficara selado na consciência de todos
nós. Morreríamos todos, em S.Paulo, ou esmagaríamos o
adversário” (pagina 173).
Importante conhecer e entender o espírito e a alma destes
jovens que lutaram com tanta bravura e idealismo mesmo
sabendo que a tão sonhada vitória já não seria mais
possível.
Cássio Martin
Cineasta/Pesquisador

29
Pólvora, cercas, trincheira. O relato do combatente
Samuel Baccarat traz em toda realidade e tensão da guerra
os nobres sentimentos que moveram milhares de voluntários
paulistas, que crente na vitória final contra o regime
ditatorial da República, que como um diálogo com os
mortos, ecoam em nossos tempos atuais suas críticas e
conclusões como vívido combate ainda à ser concluído. As
diversas traições que a pátria mãe em sua organização
positivista e corrupta, que pouco valoriza o sangue e suor
das milhares de almas brasileiras que neste solo sagrado
paulista, se convertem em revolta e fúria contra as forças
ditatoriais, fazendo todo o Brasil e o ordenamento
constitucional se submeterem à ampla revisão, mesmo na
derrota do fogo. As descrições reais e carregadas da
poeira da pólvora e da terra vermelha, castigada pelas
bombas, é um dos muitos trunfos do sábio combatente da
Lei, Sammuel Baccarat, que evoca à vida eterna os
batalhões e seus ideais de libertação e emancipação
política, bélica e econômica da terra; o nível final que
toda nação sabiamente letrada no livro e nas armas, chega
certamente e da qual a própria história aguarda ansiosa. A
leitura de Capacetes de Aço é envolvente, real, fotográfica
na descrição de cenários e detalhes, que partindo da
cidade de Santos passando pela capital para finalmente
chegar ao front nas trincheiras e ninhos de metralhadoras
e canhões, tem o pleno poder de envolver em realismo da
história viva e sangrenta, à reflexão para questões que
permanecem presentes na vida de cada brasileiro e de sua
relação com o ainda cego e elitista em corrupções, governo
federal. A traição mais indígna que São Paulo sofreu
mantém perpetuando dor e sangue não apenas no solo
paulista, este que representa demograficamente um perfil
de todo o Brasil, como também na relação ainda
clientelista e anti industrial tal qual nos primórdios dos
tempos de Vargas. Um modelo que pouco evoluiu em suma desde
a antiga colônia portuguesa, e sempre presente em críticas
dos paulistas, acostumados com o poder industrial da
inovação e mudanças, sedentos por um Brasil
verdadeiramente rico e contemplador de seus filhos, não
somente um carrasco cobrador de injustos impostos e
cultuador de inócuos cargos públicos. Em tempos sombrios e
de pouca inspiração organizacional do Estado, Baccarat nos
convida com realidade viva e força de combate, mão à mão,
homem à homem, bala à bala, à emitir luz aos nossos dias,
formando dialética e memória única que se sobrepõe à
história sem vida e sabotada oficial jamais contada
propositalmente nos currículos escolares, que tanto
manipulam paulistas e brasileiros em um mesmo triste fim.
Capacetes de Aço é uma obrigação nos novos anos que virão

30
à cada brasileiro que deseja se libertar da ditadura
federal e de se emancipar como povo proprietário de facto
de sua terra, cultura, educação e autonomia. Abrindo
trincheira à sabotagem da história e da educação
escravagista, enviando como resposta granadas aos
corruptos e mostrando à eles, mais uma vez, que o poder
emana do povo, mais uma vez representando e lutando por
todos os brasileiros, os paulistas em sua sangrenta linha
de frente. Que fique bem claro que os ideiais aqui
apresentados, continuam bem vivos em nossas linhas de
frente e que muitas gerações ainda virão devidamente
educadas com nossos esforços, para derrotar as forças
ditatoriais e emancipar nosso país à liberdade que tanto
almeja.

Tadeu de Monjardin – Prefácio – Capacetes de Aço –


Samuel Baccarat – Dezembro de 2020.

31
Há 88 anos atrás o estado de São Paulo protagonizava o
último conflito armado da história do Brasil, uma
verdadeira guerra civil envolvendo brasileiros em ambos os
lados do conflito, cada qual defendendo a sua posição, seja
territorial ou de pensamentos. São Paulo com o apoio do
estado de Mato Grosso liderou esta epopéia, popularmente e
oficialmente conhecida como Revolução Constitucionalista
de 1932, contra a ditadura que começara a ser imposta
pelo governo federal através do presidente Getúlio Vargas.
Os clássicos episódios de guerra ocorreram majoritariamente
nos arredores das fronteiras do estado em várias frentes de
combate: norte, sul, leste e litoral, por meio de ataques
aéreos, marítimos e terrestres. Este episódio da história
do Brasil começara na verdade em 1930 quando o então
candidato derrotado Getúlio Vargas ascende ao poder
através de um movimento armado, justamente um golpe
militar, ainda com as características do Tenentismo,
depondo o então presidente Washington Luiz e impedindo a
posse do candidato eleito Júlio Prestes. Passado todo esse
tempo a Revolução Constitucionalista de 1932 continua
sendo debatida e analisada, seja por pesquisadores,
entusiastas, curiosos, em escolas e, como não podia deixar
de ser, em pleno ano de 2020, por meio de redes sociais
através de grupos e páginas especializadas no assunto.
Nota-se que é um assunto delicado e complexo, o qual se
inicia bem antes de 1932 e mesmo após todo esse tempo
ainda há muitas informações e opiniões diversas sobre as
causas do movimento e seus desdobramentos. A literatura
sobre a Revolução Constitucionalista de 1932 é farta,
incluindo o lançamento de diversos livros sobre o assunto
nos últimos anos que são frutos de pesquisas de vários
autores que provavelmente se basearam em literaturas mais
antigas e próximas aos episódios da década de 1930. Após o
movimento revolucionário vários autores se arriscaram em
contar os episódios do conflito através de diferentes
visões: publicações de vários cabeças e chefes do
movimento como o Cel. Euclydes de Figueiredo, Bertholdo
Klinger, Hernani Donato e outros; publicações de
autoridades das diversas cidades que presenciaram o
movimento revolucionário, como o ex-prefeito da cidade de
Cachoeira, hoje Cachoeira Paulista, o Sr. Agostinho Ramos;
até chegarmos em publicações de autores que estavam ali na
frente de batalha, que vivenciaram os dias desse conflito
armado diretamente dentro de trincheiras combatendo bala a
bala com o adversário e enfrentando as adversidades, como é
o caso de Paulo Duarte e o próprio
Samuel Baccarat.
Escrever o prefácio de uma obra lançada naquela época
por pessoas que vivenciaram e conheceram o movimento
revolucionário a fundo não é uma tarefa fácil, requer muita
responsabilidade para que nada seja distorcido, mas ao
mesmo tempo é uma honra, sendo que aceitei a incumbência
com muito prazer. Samuel Baccarat era advogado, foi
32
deputado estadual por dois anos e na eclosão do movimento
paulista aderiu à causa o mais breve possível. Começou como
milhares de irmãos de causa constitucionalista: como
voluntário e soldado raso. Sua obra “Capacetes de Aço” é de
suma importância para que o leitor possa ter uma visão
privilegiada de um combatente, daquele que esteve no
movimento revolucionário desde o seu início até seu fim e
pôde vivenciar com plenitude o dia a dia das tropas
paulistas. Sua obra é verdadeiramente uma homenagem a seus
companheiros de luta formados através do batalhão Maranhão
e posteriormente o 8º B.C.R. (Oitavo Batalhão de Caçadores
da Reserva), enaltecendo os sentimentos de um povo que
abraçou a causa paulista, sem distinção de camadas sociais,
sem distinção de idade, cor, posição ou preconceito. Velhos
inimigos que esqueceram suas diferenças e partiram ao
front de combate unidos: TUDO POR SÃO PAULO! A obra mostra
uma visão inicial de conflitos e dúvidas que pairavam no ar
na eclosão do movimento e que poucos leitores atuais têm
conhecimento e avança para o lado belo, se assim podemos
dizer, de uma guerra, com o desfile dos batalhões pelas
ruas das cidades a caminho do front de combate, com bandas,
entusiasmo das tropas e da população.
O excelente trabalho descritivo feito por Samuel
Baccarat em “Capacetes de Aço” é aqui reafirmado por este
humilde pesquisador da Revolução Constitucionalista de 1932
que é natural da mesma localidade a qual o 8º B.C.R.
atingiu primeiro e onde Baccarat estava designado: a cidade
de Cachoeira Paulista, no front norte de combates. Desta
localidade o batalhão seguiu por diversas outras
localidades como Queluz, Pinheiros, Lavrinhas, Cruzeiro, a
própria Cachoeira Paulista e Guaratinguetá.

Sinto um arrepio pela espinha ao passar os olhos pelas


histórias retratadas em “Capacetes de Aço”, ao ler a
narração dos locais de combates e aos momentos de risos,
choros, lutas, perdas, vitórias e derrotas que nossos
soldados paulistas passaram na frente de batalha, ainda mais
por conhecer os locais os quais nosso autor narra em sua
obra. Imediatamente vêm a mente as imagens dos momentos que
estivemos dentro das trincheiras paulistas, das igrejas,
estações ferroviárias e prédios públicos que serviam a todos
eles durante o conflito.

Sinto um arrepio pela espinha ao passar os olhos pelas


histórias retratadas em “Capacetes de Aço”, ao ler a
narração dos locais de combates e aos momentos de risos,
choros, lutas, perdas, vitórias e derrotas que nossos
soldados paulistas passaram na frente de batalha, ainda mais
por conhecer os locais os quais nosso autor narra em sua
obra.
Sinto um arrepio pela espinha ao passar os olhos pelas
histórias retratadas em “Capacetes de Aço”, ao ler a
narração dos locais de combates e aos momentos de risos,
33
choros, lutas, perdas, vitórias e derrotas que nossos
soldados paulistas passaram na frente de batalha, ainda
mais por conhecer os locais os quais nosso autor narra em
sua obra. Imediatamente vêm a mente as imagens dos momentos
que estivemos dentro das trincheiras paulistas, das
igrejas, estações ferroviárias e prédios públicos que
serviam a todos eles durante o conflito. Ao andar dentro de
uma trincheira é inegável você não se imaginar dentro da
narração contida em “Capacetes de Aço” e ouvir o zunido das
balas dos fuzis, a explosão das granadas e projéteis de
morteiros, o som dos aviões adversários e pensar em quantos
homens perderam suas vidas ou tiveram o sangue derramado em
solo para defender suas ideologias. A obra de Samuel
Baccarat nos remete há 88 anos atrás, os três meses de
conflito do último conflito armado do Brasil, uma obra que
sem sombra de dúvidas deve ficar ao lado de outras grandes
obras já citadas como as de Euclydes Figueiredo, Paulo
Duarte, Hernani Donato, Agostinho Ramos, entre tantos
outros. Que os leitores atuais e gerações futuras possam
ter acesso a esse tipo de material imprescindível para o
entendimento de nossa história e que todos possam dar o
devido valor a leitura, principalmente nas escolas. Como já
dizia Samuel Baccarat: TUDO POR SÃO PAULO!

Raphael de Carvalho Barbosa é arquiteto de software, neto


de voluntário combatente paulista e pesquisador da
Revolução Constitucionalista de 1932. É também
responsável por manter um museu particular na cidade de
Cachoeira Paulista/SP que tem por objetivo resgatar
objetos e artefatos ligados à sua cidade e a causa
paulista.

Cachoeira Paulista, 22 de dezembro de 2020

34
Prefácio...

As pessoas não imaginam o que é ser Paulista !

Meu avô materno – Octacílio de Souza Werneck – herói


de 1932, onde lutou nas trincheiras do Setor Norte cansou
de me explicar isso, enquanto viveu !

Circulando pelas trincheiras de Queluz, Pinheiros,


para depois ser “empurrado” até Lorena onde foi preso e
deportado para o Rio de Janeiro, passou poucas e boas
(será mesmo...) ao vivenciar esta página de nossa
História, e também do Brasil.

Hoje, existe um grupo imenso de pessoas de todo tipo


tentando desconstruir esta epopeia... Para que ? Lutaram na
mesma ? Leram alguma coisa, com isenção, sobre a Revolução
de 1932, que era Constitucionalista sim, e, jamais
separatista !

Claro, como paulista, estudei (e muito...) e um dia


resolvi escrever um livro “A Guerra de 1932”, e, ao
vasculhar a memória do período, logo, esbarrei em “Capacetes
de Aço”, e na experiência do então jovem Samuel Baccarat...

Ele é impiedoso ! Ótimo !

Fala sobre sangue... suor... e lágrimas...

Mas, também fala de traição e desertores, apontando nomes e


fatos que não devem ser esquecidos, “o 40 RI sob o comando
do major Bandeira de Melo foi um exemplo. Quase toda sua tropa
debandou em Pindamonhangaba”. Que triste...

Também abordou o “cupim”, da corrupção, em plena guerra,


“... havia o pedido... havia a saída do mesmo... mas, não
havia a chegada”. Que nojo...
Claro, aponta um velho problema sempre escondido e negado
pela História oficial – os saques realizados pelas tropas
ditatoriais ! “O que não foi saqueado ficou inútil, inclusive,
em Pinheiros o estabelecimento comercial de varejo”. Que
vergonha...

E do sofrimento da população civil...

... “Guaratinguetá foi outra das cidades


despovoadas. As famílias procuravam abrigo nas cidades
da retaguarda fugindo ao fogo do inimigo”. Afinal, como
dito, “Deus sabe o que teriam passado se permanecessem

35
à mercê da ferocidade ditatorial”. Lamentável...

Fala ainda do dia-a-dia...

...“Quando se pedia emprestado um agasalho fino ou,


um objeto caro dizia-se, empreste-me essa merda”.
Ou, das mortes nas trincheiras...

... “Em Pinheiros também ocorreram combates muito


sangrentos. Basta dizer que o 3º RI da Praia
Vermelha, com um efetivo de 1.600 homens, colocado
frente às tropas paulistas ali estacionadas, foi
duas vezes recomposto, voltando ao final, com um
efetivo de 700 homens”. Estarrecedor...
Sim... foi uma guerra.. e isto não pode ser
esquecido...

Por isso, parabenizo o trabalho do caríssimo Rodrigo


Gutenberg no carinho do resgate de nossa memória. Nunca é
fácil ! Porém, a empreita é necessária e muitíssimo bem-
vinda !

Afinal, 1932 não pode ser esquecida !

EDUARDO CÉSAR WERNECK

Colecionador e pesquisador de campo da Revolução de 1932,


Cirurgião-Dentista
Especialista, Mestre e Doutor em Ortodontia
Autor do livro
“A Guerra de 1932 – onde o entusiasmo era indescritível”

36
Pólvora n'Alma

Quando fundei, em 2013, aos 17 anos, a Orgulho de Ser


Paulista, – hoje um laboratório de ideias pró-
independência centrado em história e cultura da
Paulistânia – percebi que a maioria dos paulistas havia
tido sua história roubada por forças antagônicas,
estrangeiras e perversas despertas num episódio do nosso
passado, precisamente em 1932. Nos anos que se seguiram,
me dediquei especialmente a divulgar a Revolução
Constitucionalista, quase que esquecida pelo povo.
A despeito do esquecimento, a Nossa Guerra é
fundamental não só para se entender o passado, mas também
para se entender o presente e o futuro. 1932 é um ano que
carrega em si demasiada importância, um ano que precisa
ocupar o protagonismo do debate histórico, e não apenas
ser um rodapé inexpressível nos livros, didáticos ou não,
da nossa era. Nada acontecido desde a revolta dos
paulistas alcançou um peso tão volumoso na nossa
essência.
Incontestavelmente, a Revolução Constitucionalista
de 1932 mostrou o brio dum povo que, diferente de muitos
dos seus vizinhos, se uniu por um bem comum. Essa data
congrega a coragem, a abnegação e a unicidade do povo
paulista. Lá, não havia homens, não havia mulheres, não
havia brancos, não havia pretos, não havia jovens, não
havia velhos. Lá, eram todos Paulistas lutando por uma
Constituição, por uma legalidade, por um Estado de
Direito, por uma paz, pelo bem e pela moral. Os inimigos?
A ditadura, o ditador e seus capachos que, tomados pelo
delírio do poder, enviaram seus filhos para matar os
nossos ou para serem mortos por nós. Não há perdão para
tal crime.
Neste livro, Baccarat nos apresenta a vida nas
trincheiras. Tal relato nos leva quase um século para o
passado e nos faz sentir o cheiro de pólvora, o barulho
das balas e canhões, o medo da morte que poderia vir de
cima, o choro preso ou o soluço abafado daqueles que
deixaram sua casa sem saber se algum dia regressariam, a
súplica de quem, humilde, se punha a pedir pela vida de
quem amava.
Baccarat nos traz também os momentos de paz durante a
guerra. Nos conta sobre a missa, sobre as mulheres da
retaguarda, sobre a comida, sobre as criaturas heroicas
ou ordinárias. Baccarat, inclusive, nos introduz aos

37
acontecimentos que precederam o conflito. Tudo neste
livro é proveitoso.
Entretanto, embora pareça, esta obra ilustre não é
apenas um Tratado Histórico, mas também Cultural. Desde a
visão geral que o livro fornece até as entrelinhas e
minúcias nos deixam a par duma movimentação da Grande Alma
do povo paulista. Por isso, peço que se atentem a tudo, a
cada palavra posta, a cada intenção por trás da mesma, a
cada relato. Isto feito, olhem para cada uma das pessoas
ao seu redor, olhem para cada pessoa que ocupe qualquer
uma das funçõe que ocupavam aqueles que Samuel Baccarat
descreveu. Quão diferente estão? Se estiverem, por qual
motivo? Qual será a melhor maneira de serem? Como atingir
este desejo?
Lhes peço isso porque a instituição que fundei e em
que trabalho, a Orgulho de Ser Paulista, leva anos a
tecer ideias culturais. Sabemos que, sem nenhuma exceção,
em todos os povos do mundo, cultura e história são
indissociáveis, simbióticas e parte dessa Grande Alma ou
consciência coletiva dum povo. «Capacetes de Aço»
proporciona a experiência de viajar a um tempo que não
mais existe e analisar, com os questionamentos de hoje,
como, quando e por qual motivo nosso rumo mudou. Se nosso
espírito indômito despertou a luta, esta nos marcou a
pele para toda a eternidade. Sabemos também que nossos
ancestrais fizeram ou julgaram ter feito TUDO por São
Paulo.
Hoje, entretanto, o paulista parece dormir. Após a
derrota de 1932, toda sorte de opressão foi lançada sobre
nós. Enfrentamos humilhações, desonras, escândalos,
roubos, calúnias. Injúrias e difamações e inúmeros outros
sofrimentos. A corda de Brasília, outrora do Rio de
Janeiro, está posta no nosso pescoço e nos é dito para
sermos o que não somos.
Não devemos cair em ilusões e pensar que a luta de 1932
começou ali ou que vencemos a batalha (ou a guerra) no
campo das ideias. Essa narrativa nos foi oferecida como
um prêmio de consolação, que é mais uma maneira de nos
manipular. A luta não começou naquele ano, a luta não
terminou aquele ano. A luta continua. Gerações e gerações
de paulistas virão ou já estão aqui entre nós, sob a
égide do Apóstolo Soldado para lutar pela nossa
liberdade. À Paulistânia não resta muito tempo de
cativeiro. Tal como a onda que fez gritarmos «Tudo por
São Paulo», virá aquela em que diremos «Tudo pela
Paulistânia, sagrada terra dos paulistas», por isso, eu
quero ao Brasil «Tudo é por São Paulo», eu quero dizer a

38
São Paulo «Tudo é por ti», eu quero dizer ao mundo «Vida
Eterna ao povo paulista». O livro que vocês carregam é um
capítulo da longa luta pela liberdade da Paulistânia.

Lucas Pupile, fundador do laboratório


de ideias Orgulho de Ser Paulista

39
PREFÁCIO DO LIVRO SAMUEL BACCARAT

Sou um privilegiado por poder percorrer as


trincheiras da frente norte, em busca de artefatos da
Revolução Constitucionalista de 1932. A cada peça que
encontro é uma memória resgatada...
Moro na pitoresca cidade de Queluz, onde Samuel
Baccarat teve seu batismo de fogo na Fazenda P. Moraes,
próxima a divisa do Rio de Janeiro. A cada munição
encontrada eu penso: “Quem foi o ultimo a tocar nesta
munição? Um soldado que a perdeu num desespero para
carregar o seu fuzil? Um Cabo que talvez em uma retirada
desordenada de seu posto a teria deixado cair?...Ou até
mesmo o próprio Baccarat poderia te-la perdido...

A igreja local de Queluz (localizada a esquerda da


estação para quem vem do Salto) foi um “lar temporário”
para alguns soldados. E foi nesta mesma igreja que nos
dias de hj tem como patrono Nossa Senhora do Rosário que
Samuel Baccarat recebeu o seu CAPACETE DE AÇO que dá o
nome a esta gloriosa obra... Sou um privilegiado por
viver nesta cidade e ajudar a redescobrir e preservar
parte da história da Revolução constitucionalista de
1932.

Cada artefato conta a historia de um soldado anônimo


que deu sua vida por São Paulo e que será eternizado na
historia deste solo...

Filipe da C. Oliveira
Colecionador e pesquisador de campo da Revolução de
1932

CAPACETES DE AÇO – Epílogo

40
Convidado por Rodrigo Alves Oliveira Gutenberg à comentar o
livro de autoria de Samuel Baccarat , “ Capacetes de Aço “
publicado em novembro de 1932, onde o autor narra sua
participação na Revolução Constitucionalista, quero antes
de mais nada agradecer deferência.
Dentre a farta literatura existente sobre a guerra civil de
1932 a obra do advogado santista falecido precocemente em
1934, pode não ser o mais completo relato de toda a
campanha militar empreendida pelos revoltosos paulistas,
mas, com certeza foi a primeira a ser publicada, pois
encerrados os combates em 02 de outubro, no dia 15 de
novembro o livro já tinha seu lançamento anunciado nos
jornais da cidade de Santos.
E esta urgência no lançamento da obra se justificava.
Afinal o conteúdo do livro, na forma de diário, relatava
fatos e eventos que envolveram grandes contingentes de
voluntários que saíram do litoral santista. Era a história
de vida e morte de uma boa parte dos quase 3.000 homens que
a cidade de Santos enviou para todas as frentes de luta, em
particular a Frente Norte – Vale do Paraíba – SP. Onde
perderam a vida quase metade dos 48 heróis santistas que
não voltaram para casa, e também ocorreram encarniçadas e
mortíferas batalhas.
Samuel Baccarat aparentemente não disparou nenhum tiro em
combate, pois atuou como oficial intendente, cuidando do
abastecimento e organização das tropas, mas certamente
viveu para nos descrever com detalhes interessantes, o dia
a dia destes heroicos guerreiros.
Teve também o privilégio de cruzar com personagens que já
se destacavam e viriam a se projetar na vida política e
social da nossa região e do Estado de São Paulo,
transmitindo para o leitor sua opinião, sem ocultar seu
posicionamento pessoal.
Samuel Baccarat faleceu com apenas 37 anos de idade, um ano
e meio após o final da guerra e do lançamento de seu livro,
mas ainda teve tempo de participar ativamente dos embates
políticos e sociais que começaram a ocorrer neste período
conturbado da nossa história e atuou na formação e criação
de entidades que teriam relevante função nas transformações
que viriam a ocorrer no cenário político paulista.

Gilmar Domingos de Oliveira é jornalista e membro do


Instituto Histórico e Geográfico de Santos e da Associação
dos Ex- Combatentes de 1932 de Santos.

Samuel Baccarat nos deixou como herança um relato épico de


valor inestimável sobre o Movimento Constitucionalista de
1932.

41
Escrito numa linguagem extremamente clara e objetiva, em
contraste com outras literaturas da época, proporciona uma
leitura agradável que desperta o interesse do leitor da
primeira à última página.

O autor presta um testemunho à posteridade da luta daqueles


que, vivendo sob os desvarios de um governo ditatorial, foi
obrigado a empunhar armas no anseio de colocar o país
novamente nos rumos da democracia, dentro da Lei e da
Ordem.
Alistando-se voluntariamente, Baccarat atuou em diversas
frentes da guerra no Setor Norte, e sofreu junto com os
seus companheiros de armas, não somente as agruras de uma
luta heroica contra um inimigo que contava com recursos
ilimitados, mas com a sabotagem e a traição daqueles que
apesar de usarem os mesmos uniformes confeccionados pelas
nossas valorosas mulheres, procuravam obter vantagens
imediatas com o desvio e roubo de bens de suma importância
à manutenção das frentes de batalha, bem como vantagens
futuras na política após o término da guerra.

O título "Capacetes de Aço" é uma justa homenagem ao item


da equipagem do soldado que tem a intenção de proteger a
cabeça, área muito exposta numa luta de trincheiras.

Quando eclodiu o Movimento Constitucionalista de 1932,


nossos comandantes acharam por bem equipar nossos Soldados
da Lei com capacetes de aço, item que havia caído em desuso
após o advento das armas de fogo nos campos de batalha, mas
que foi reintroduzido na equipagem do soldado após o
general francês Adrian, durante a I Grande Guerra, observar
um de seus soldados livrar-se de um ferimento de estilhaço
por estar usando uma panela para proteger a cabeça.
Coube à industria paulista encarar o desafio para projetá-
lo e construí-lo, sendo que, durante o curto espaço de
tempo de duração do conflito, foram produzidos quatro
modelos, um diferente do outro, sempre com mudanças que
proporcionaram maior proteção ao combatente, bem como a
otimização na linha produção.

A reedição desse livro, publicado originalmente em 1932,


vai contribuir para manter sempre viva a lembrança e o
exemplo daqueles que não mediram sacrifícios, numa luta
desigual, para devolver ao nosso povo a liberdade de
decidir os rumos de sua vida e de seu futuro.

Prof.Sérgio Righi

42
Prof. Sérgio Righi
43
Capacetes de aço

Nota de Malcolm Forest

32, Ontem, Hoje e Sempre.

Meu pai, Paul Donovan Kigar, sempre me dizia: “meu filho, a


guerra é uma coisa terrível!” Ele fora oficial da Marinha
de Guerra Note-Americana e viveu os momentos angustiantes
de 1939 a 1945.

Hoje e sempre almejamos a paz!

Minha mãe, D. Lygia, carioca, desde muito jovem ouvia


notícias sobre São Paulo, o movimento contra a ditadura e
pela Constituição. Era muito inteligente e propagou os
ideais paulistas e constitucionais com seus colegas na
escola. Por isso ganhou o apelido carinhoso de Paulistinha.
Ary Barroso, inspirado naquela jovem de 13 anos, compôs, em
1934 a marchinha de carnaval “Paulistinha Querida”.

O Brasil é uma terra de paz e 1932 encerrou um longo ciclo


de guerras e revoluções.

Até os anos 60 a memória da revolução constitucionalista


estava bem viva. Lembro-me, na minha infância, de assistir
grandes desfiles do 9 de julho, vistos por mim e minha
família de um prédio na Rampa do Túnel, túnel este hoje
chamado Túnel 9 de Julho. O povo acorria em grande número,
muitos vestidos com roupas vermelhas. Lembro-me que minha
mãe salientou isso. Balões de São João com a bandeira de
São Paulo, branca, vermelha e negra,flutuavam no ar. As
comemorações eram marcantes e todos estavam envolvidos.

Legado de um Patrimônio Moral

O exemplo cívico de São Paulo jamais será esquecido. No


entanto, cabe sempre relembra-lo e instigar e estimular nas
novas gerações a busca do direito, da dignidade e do amor à
pátria.

Os Capacete de Aço

O diário de uma jornada épica, cujo título inspira-se nos


capacetes dos nossos revolucionários paulistas, forjados
nos moldes dos antigos capacetes da primeira guerra
mundial, com a contribuição do Laboratório de Ensaios de
Materiais (LEM), da Escola Politécnica de São Paulo,
lançando a semente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas
do Estado de São Paulo, nome que o Laboratório receberia,
em 1934, é o relato vivido e envolvente do que se passou em

44
1932 visto de uma ótica santista. Leitura saborosa para
todos que cultuam nossa memória, nossos ideais.

Mais do que um Estado, um País.

Que lições tirar deste passado glorioso? Como era o Brasil


de 1932 e como está hoje? Vemos, hoje, efetivamente uma
balbúrdia nas instituições e na organização do Estado
Brasileiro: o Poder Judiciário ditando leis, querendo
legislar, ditando as ações da Presidência da República e
restringindo-as. O Poder Legislativo restringindo as ações
do Executivo. Parece que apenas a Presidência da República
está menos sujeita a tal ingerência de poderes... Onde
está o Poder Moderador? Hoje, como ontem, o Brasil clama
por justiça, legalidade, bom senso e patriotismo. Em 32
pegarmos em armas, hoje as guerras são assimétricas e
biológicas e os inimigos mundiais.

Recordar é viver diz o velho bordão. Recomendo a leitura de


“Capacetes de Aço” aos jovens e velhos de nosso país.

Parabéns a Rodrigo Gutenberg e sua equipe de colaboradores


e à Sociedade Veteranos de 32 - MMDC pela valorosa
iniciativa.

Malcolm Forest

Presidente do Clube dos 21 Irmãos Amigos de São Paulo


Vice-Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo

45
46
DEDICATÓRIA

A São Paulo

vítima da traição mais negra, mais invencível


na pureza dos seus ideais:
oferecemos todos os sofrimentos que curtimos
nesta longa campanha;
o sangue dos Mortos;
o soluço das Mães;
o desespero das nossas dores;
a energia das esposas;
as esperanças das mocidade;
o ardor dos soldados.
Por um futuro maior, de paz, de trabalho, de igualdade
social e de fraternidade.

PREFÁCIO

Este livro é consequência de um compromisso que assumi com


os rapazes do 8º B.C.R. (Batalhão de Caçadores da Reserva),
Corpo a que pertenci, na Revolução Constitucional com que
S. Paulo, em 1932, iluminou sua historia.
Prometi-lhes que nossa vida de guerra não cairia no olvido,
antes que eu gravasse no papel os episódios mais salientes.
Cumpro agora o prometido.
Não é propriamente um livro. É uma recordação dos dias que
juntos passamos, lutando por São Paulo e pela Lei. Não
tive qualquer preocupação de forma: vazei-o todo em estilo
simples e corrente, de quem está habituado a escrever sem
prévio borrão.
Tudo quanto afirma sob a responsabilidade do meu nome é
rigorosa verdade. Os livros desta natureza constituem
precioso elemento para o historiador de amanhã. São
depoimentos em que se estribarão os juízes do futuro e, por
isso mesmo, devem ser, acima de tudo, verdadeiros. O que
não é meu eu o declarei.

Pode parecer a muitos que falei demais de mim. Não o fiz


por vaidade. Narrando, tão somente, fui forçado a dizer
aquilo que testemunhei.
Se fosse um romance, seria justificável que usasse outra
linguagem. Advogado, redigi-o como se redigem os

47
depoimentos. Não lhe almejo outro sucesso que não seja a
amizade dos meus companheiros de guerra. Para eles, para os
nossos mortos, para nossa Terra, tive sempre voltado meu
pensamento.
Escrevi sem qualquer apontamento, a não ser os boletins do
Batalhão, sempre tão parcos em elementos, sem poder obter,
sequer, informações ou lembretes. É apenas produto da
memória que, como se sabe, é falha.
Entregando-o á publicidade, quero concitar os moços da
minha terra a servi-la sempre com extremado carinho, para
que possamos legar aos porvindouros uma nação com
patrimônio moral tão solido como o daquela que recebemos
dos nossos antepassados.

CAPACETES DE AÇO

- Dr Samuel, revolução em S. Paulo!


Era Fausto Sadi, que indo na manhã daquele domingo nevoento
para a caça, avisava-me do inesperado movimento, trazendo
nas mãos um exemplar da “Tribuna”. Avidamente li a noticia
que circundava o clichê do general Isidoro, generalizando-
se logo os comentários. De certo, sabia-se que o Governo de
23 de maio encabeçava a arrancada, apoiado em chefes
militares, forças regulares e no povo paulista.
Cerca de uma hora mais tarde tilintou o telefone, recebendo
eu a notícia que o Dr. Carvalhal Filho desejava falar-me.

- Alô, Samuel.
- Viva S. Paulo!
- Você já sabe? O ponto de concentração é no quartel de
polícia, á rua S. Leopoldo.

Quando atingi este quartel, já encontrei muitos outros


civis armados de fuzil e municiados. Sebastião Almeida
Prado, Murilo Oliveira, os Molina Cintra, pai e filho,
rapazes do comércio, apenas conhecidos de vista, populares
que afivelavam sobre suas roupas de trabalho e correame,
tudo como se aquilo fosse uma coisa adrede preparada.
Era a revolução paulista que vinha atender a um dos mais
prementes reclamados da opinião publica, na sua mais alta
expressão, alastrando-se por todas as camadas.
Era, afinal, a união sagrada da gente paulista, em volta de
um mesmo ideal grande de liberdade. Era, afinal, a hegira
do paulistismo.
O Padre Feijó ressuscitava do seu tumulo, para vir
conclamar a sua gente, para o grande prélio da emancipação
pelas armas. Fernão Dias Pais Leme, da nave da igreja do
Mosteiro de S. Bento, vibrava sob o peso dos séculos,
assistindo o renascer da raça bandeirante, com a mesma
indômita coragem que levara a desbravar o sertão inóspito e

48
agressivo, espalhando o signo da Cruz, emblema de
civilização, pelos mais longínquos sertões da nossa terra.
São Paulo ressurgia.
Tomando canhestramente o fuzil, metidos os pentes de
munição nas cartucheiras, ali ficamos á espera. Esperando o
que, não se sabia bem ao certo. Esperando um ataque, viesse
ele de onde viesse. O mar estava aberto; o Forte de Itaipu
não se definira por nós. Era preciso esperar com
previdência.

Mais gente ia chegando e daí a pouco já não havia armas.


Cada um arranjava-se como podia; revolveres, facões, velhos
trabucos, até espetos e paus. Era preciso vencer. Chefes,
entretanto, não havia.
A hora do almoço apareceu o Dr Cirilo Jr., que desejava
falar com os cabeças. Era o que absolutamente, estava
faltando. Conversou com toda gente.
Pelas 13 horas apareceu-nos um major da F.P. (Força
Pública), que colocou toda aquela massa em forma e ordenou
a marcha para o edifício da imigração, no Macuco. O major
Spindola Mendes, o valente oficial que mais tarde tanto se
devia assinalar na campanha, assumia, o comando das forças
civis da invicta cidade de Santos.
A marcha através da cidade, dos primeiros voluntários
santistas, se fez sob o delirante entusiasmo da população,
que os aclamava. E aquele gérmen de tropas chegou ao novo
quartel, três vezes maior. Por todo o caminho foi
engrossando em número. Gente que vinha nos bondes descia
rapidamente e saia a correr atrás de nós. Nesse dia não se
fez outra coisa que receber e aquartelar o povo,
representado por pessoas de todas, absolutamente todas suas
camadas, sem distinção de idade, cor, posição ou
preconceito. A fraternidade se fazia perfeita. Velhos
inimigos abraçavam-se risonhos, esquecendo antigas rixas,
sob a magia quente da saudação fervorosa á nossa terra:
TUDO POR SÃO PAULO!
Estava fundada a MILÍCIA CÍVICA DE SANTOS, a heroica e
gloriosa agremiação que granjeou imediatamente a estima da
cidade, imortalizando em seus anais os nomes de seus
beneméritos dirigentes.

OS PRIMEIROS DIAS

Uma azafama continua.


O sórdido casarão destinado antigamente a receber
imigrantes, estava todo tomado como deposito de café.

49
Pairava no ar uma poeira fina e penetrante, que em breve
gerava uma bronquite em cada um de nós.
Os soldados amontoavam-se, acotovelavam-se sobre as pilhas
de sacos vazios, sobre taboas, sobre tudo, enfim, que
pudesse aguentar um corpo cansado. A guarda se fazia
incessantemente, arma ao ombro, num vai e vem continuo.
Artur Yarman, Carolino Rodrigues, Ladeira, Raposo F.º todos
percorriam as ruas escuras que cercavam o improvisado
quartel, olhar vigilante na escuridão da noite. A cada
momento corria um boato. Um troço de marinheiros,
desembarcados na Ponta da Praia, marchava contra nós; um
grupo de estivadores vinha para o ataque.
Nós estávamos por tudo.
Uma tarde, logo após o estalar do movimento, os boatos
recrudesceram. O quartel ficou impedido e as forças de
rigorosa prontidão. Deu-se um balanço e se constatou que
necessitávamos de mais gente, pelo que alguns saíram para a
rua, num verdadeiro recrutamento. Gente, mais gente para
defesa da cidade! Redigiu-se ás pressas um boletim, que
Reinaldo Gonçalves atiraria do seu avião, pedindo ás
senhoras santistas que nos mandassem seus maridos e filhos
para defender a cidade. Fui levar o original á tipografia
Brasil.
A porta encontrei-me com quatro moços, sendo um deles
solteiro. Expus-lhes a situação e lhes pedi que fossem no
meu automóvel tomar uma arma ao nosso lado. Um sorriso
amarelo esboçou-se nos lábios dos “valentes”.

- Quando for preciso nós iremos...


- Mas é preciso ir agora; existem sérios receios de um
ataque.
Ninguém se mexeu.
Mais tarde se viu.
Um deles era estrangeiro; o outro acomodou-se numa função
de retaguarda, a despeito dos seus verdes anos; o terceiro
esteve implicado num caso de traição perto de Queluz e o
último encostou-se...

Tudo por S. Paulo!

Entrementes nossa organização melhorava Uriel Carvalho,


Haroldo Levi, Cornélio França, Roberto Caiubi, Álvaro
Junqueira, Machado, todos porfiavam em formar alguma coisa
daquele caos inicial. E a figura do comandante Spindola
começou a se impor. As primeiras camas apareceram, um
serviço de alimentação, armas, até que nos transferimos
para o confortável edifício do Grupo Cesário Bastos, onde
nossas instalações melhoravam todos os dias.
Uniformes, Corpos de Saúde e de Engenharia, serviço de
Cozinha, Intendência, Material Bélico, Secretaria.

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Dentro em pouco a ordem era perfeita, os primeiros oficiais
foram graduados; o batalhão Maranhão surgia garboso para o
primeiro desfile.
O Governo Paulista, na ânsia de mostrar seu nacionalismo
sadio, manifestara o desejo de dar aos batalhões de
patriotas os nomes dos Estados brasileiros. O nosso chamou-
se Maranhão, em homenagem ao comandante Spindola que, filho
do Norte, mostrou-se mais paulista que muita gente nascida
a sombra dos cafezais.

*
* *

D. POLITICALHA

S. Paulo deve toda sua desgraça ao Partido Democrático.


De parte idealistas conhecidos e alguns homens de boa fé,
nas hostes do barrete vermelho amontoavam os descontentes
de toda ordem, os falhados na política, os despeitados, a
quem, num dia de mau humor, o chefe republicano não
correspondera a um cumprimento ou a uma bajulação. Foram os
democráticos que envenenaram a opinião pública, com uma
campanha caluniosa contra os nossos homens, que por todo o
país se estendeu a convicção de vivermos no meio de uma
horda de salteadores. Ser político, em S. Paulo, apoiando o
Governo do Estado, era ser marcado com o ferrete da
ignomínia.
Não é aqui o lugar apropriado ao estudo desse trecho de
nossa História Política. Recentemente um notável comentador
das nossas coisas, Renato Jardim, aplicou a essa gente o
corretivo da sua crítica tão mordaz quanto justiceira.
Aqui, neste livro, destinado restritamente a fixar no papel
a glória imorredoura de um punhado de moços idealistas,
mostraremos a atuação dos homens que abriram ao invasor que
nos assaltou, em outubro de 1930, as portas de S. Paulo, na
ânsia desmedida de mando e de vingança.
Aberta a conscrição na MILÍCIA CÍVICA DE SANTOS, logo
começou um burburinho pela cidade. O Partido Democrático,
não pela voz austera do Dr Assunção Neto, mas pela do Dr.
Waldemar Leão, opunha-se terminantemente a apoiar o
alistamento, porque a MILÍCIA era um “antro do perrepismo”.
A desculpa ocultava, apenas, a covardia que mais tarde se
estadeou perfeita e acabada. A MILÍCIA, comandada por um
oficial apolítico, formada por elementos inteiramente
afastados dos partidos, tinha em suas fileiras dois homens
que outrora foram políticos em Santos – eu e o Dr.
Sebastião A. de Almeida Prado. Mas nós ambos estávamos de
fuzil ao ombro, como soldados rasos, fazendo todos os

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serviços, desde a guarda ao quartel até o transporte de
pesados fardos e condução de armas e munições.
Não se podia negar a dois paulistas o direito de tomar
armas pela sua terra, no momento mais crítico da sua vida.
Nenhuma força humana poderia negar-nos o dever de defender
S. Paulo, quaisquer que fossem os nossos credos.
Mas a campanha prosseguiu. Na sede do P.D. (Partido
Democrático) fazia-se alistamento. Anunciava-se abertamente
ser ali um dos centros de conscrição, até que o Major Reis
Jr., no comando militar da Praça, proibiu terminantemente
tal prática, fazendo ressaltar que os partidos estavam fora
de cogitações.
Diversos acordos foram tentados, tudo em pura perda.
Vale a pena narrá-los.
Certa ver apareceu na MILÍCIA (ainda na Imigração), o Dr.
A. Feliciano. Fechou-se na secretaria com alguns dos
responsáveis pela vida da nova entidade. Foi-lhe oferecido
o posto de 2º tenente, para que viesse colaborar em nosso
meio, com a segurança de que nenhum lugar de destaque teria
eu na campanha.
Era poça coisa para muita vaidade!
Afinal o moço fingiu aceitar, marcando-se para o dia
seguinte a vinda de 200 democráticos. No dia seguinte e nos
outro ninguém apareceu.
Uma noite, com ares de Napoleão, lá esteve o Dr. Waldemar
Leão. Correu tudo, examinou, perguntou muita coisa e nunca
mais deu sinal de vida. Mais tarde ficou-se sabendo que
toda essa encenação era destinada a esconder a fraqueza do
P.D.
Uma madrugada ordenou-se que dois caminhões seguissem para
a Capital. Íamos buscar fardamentos, armas e munições.
Leopoldo Braz de Souza, Aldo Rutigliano, Mimi Carvalho,
Luiz Araújo Cintra, Linhares e eu.
O frio da manhã nevoenta cortava até os ossos. Carregados
os carros, fui encontrar-me com o comandante Spindola, que
seguira no auto do Dr. Olivério Amaral. Recebemos, eu e
este brilhante colega, o encargo de sondar o ambiente, para
ver quando seria possível seguir para a frente o primeiro
contingente praieiro.
Fomos procurar o Dr. Altino Arantes, para pedir-lhe que nos
apresentasse ao General Klinger. Momentos após estávamos no
gabinete do chefe militar, que nos recebeu afavelmente. Em
caminho eu havia exposto ao Dr. Altino a situação incomoda
em que nos achávamos em Santos, pedindo-lhe que obtivesse a
interferência do Dr. Morato, para fazer cessar aquela
situação desagradável. Havíamos combinado procurar o
presidente do P.D. Em meio da nossa palestra com o General,
entrou na sala aquele professor.
- Vão vocês falar ao Dr. Morato, ordenou o Dr. Altino.
Fomos e fizemos uma exposição franca. Neste momento o Dr.
Morato apresentava ao General o Dr. Celidonio Filho, “para

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ficar no gabinete”, como pessoa de absoluta confiança
(dele, Morato, naturalmente).
Ouvidos com atenção, transmitiu o chefe pedeista ao novo
auxiliar de gabinete a solução do assunto. O Dr. Celidonio
Filho já estava senhor da trama. Carregou o senho. Levantou
tremebundo o fura-bolo e disse: - não há nada a resolver. O
caso está resolvido. Os senhores terão a solução em Santos.
Aliás, eu ignoro a existência dessa MILÍCIA, pois nada
comunicaram ao M.M.D.C.
- Perdão, atalhei. Nós não temos nada a comunicar. A
MILÍCIA está comandada por um oficial nomeado pelo Cel
Salgado. Estamos, pois, oficializados.
A conversa terminou aí, com o maior desapontamento do Dr.
Altino, cujo testemunho invocamos naquele momento, para que
não nos faltasse em qualquer tempo. A solução, de fato, não
custou a vir.
Continuando na rota que se traçara, o Dr. Feliciano fora
procurar o Cel Salgado, tentando apossar-se da MILÍCIA. O
saudoso comandante da F. P. deu-lhe um ofício (este fato
foi-me narrado pelo comandante Spindola) para que ele Dr.
Feliciano, se dirigisse ao com. Spindola, em Santos.
É escusado dizer que o papel não chegou às mãos do
destinatário.
Tamanho foi o cerco em volta do Cel Salgado, que este
recorreu ao Dr. Ibrahim Nobre, para que obtivesse a solução
desejada.
Nesta altura chegara a Santos, nomeado Delegado Técnico, o
Dr. Elias Machado, fazendo anunciar que vinha com poderes
“quase discricionários”. Quem esteve nas frentes de combate
e viu o papel importante que as Delegacias Técnicas ali
desempenhavam, MAS EM QUALQUER PARCELA DE MANDO, e, muito
menos, DISCRICIONÁRIO, pode avaliar o ridículo do anúncio
da chegada do ex - Prefeito Municipal, vindo um dia para
Santos no culote do tenente João Alberto, de quem era homem
de confiança. O certo, entretanto, é que o Dr. Elias
Machado quis embasbacar o indígena, tentando passar a
pílula do discricionarismo, até esbarrar na energia serena
do Prefeito Dr. Aristides Bastos Machado, que lhe aparou as
azas.
Certa noite, após os serviços internos da MILÍCIA, fomos à
Polícia Central, em busca de notícias. Eu, Oliverio Amaral
e Uriel Carvalho. Havendo me dirigido ao gabinete do
comando da Praça Militar, ali encontrei o Dr. Ibrahim
Nobre, o Dr. Itapema Alves, o Delegado Técnico, o Dr.
Soares de Melo e o Cel Bemvindo de Melo, que no momento me
foi apresentado. Passamos para uma sala contigua, onde se
começou a falar das divergências levantadas em Santos, a
propósito do alistamento de voluntários, fato esse que
precisava cessar. Estivemos todos de acordo. Ali estava o
Cel Bemvindo, munido de uma portaria do Com. Salgado,
encarregando-o de organizar os batalhões. Ele vinha assumir

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o comando das forças civis, em Santos. De tal arte, dizia-
se, teriam termo as dissensões locais.
Observei, então, que era preciso esclarecer a posição do
Major Spindola, ao que me responderam que ele continuaria
no lugar em que se achava. Mas a uma observação qualquer,
alguém da roda disse que sendo a portaria do Cel Bemvindo
posterior a do Spindola, a deste estava evidentemente
revogada.
Era golpe!
Dei-me por satisfeito, retirando-me, não sem estranhar o
ter sido chamado para a conversa, eu que era soldado raso,
sem a menor responsabilidade na direção miliciana.
Procurei os companheiros e apressadamente nos dirigimos ao
nosso quartel, onde foram dobradas as sentinelas, com a
recomendação de não deixar passar ninguém, mesmo “que fosse
o General Klinger”, sem ordem do oficial de dia. De caminho
eu havia posto os companheiros ao par da situação,
mostrando que se preparava, na sombra, sob nomes de pessoas
insuspeitas como os coronéis Salgado e Bemvindo, doutores
Ibrahim Nobre e Soares de Melo, uma farsa democrática.
Entendiam “os empreiteiros de obra feita”, que tal arte,
afastado o Major Spindola, facilmente se assenhorariam da
MILÍCIA. Embora muito superficialmente conheça o Cel
Bemvindo, penso hoje que laboravam eles em lamentável
equívoco, pois esse oficial não se prestaria ao papel que
lhe reservavam.
Acordado o comandante Spindola e posto ao correr dos
acontecimentos, quis, no primeiro momento, pôr-se de lado,
julgando ser o pomo da discórdia. Protestamos. Ele teria
nossa inteira solidariedade. A essa altura a tropa toda já
conhecia os manejos democráticos, estando, na quase
totalidade, disposta a sair para outros corpos, caso nos
viesse a faltar o comando do primitivo chefe. Confortado
por inequívocas provas de afeição, o comandante Spindola
reassumiu a posição de lutador invejável que é, e dispôs-se
a resistir. Uriel Carvalho foi ao telefone e comunicou-se
com Ibrahim Nobre. Poderiam vir tomar conta da MILÍCIA.
Trouxessem, porém, bastante gente armada, pois nós
resistiríamos até o último cartucho.
Era a bomba!
Só então verificou o Major Elias Machado que não havíamos
engolido a broma. Ibrahim Nobre pediu a Uriel que fosse
novamente à Central e ali tudo se esclareceu, desistindo o
Cel Bemvindo da missão em que estava.
O golpe falhara...
A campanha de acintes, porém, ainda estava de pé.
Um dia fui ao gabinete do juiz de direito da 1º vara cível,
o valente paulista Dr. J. B. Leme da Silva, onde encontrei
numeroso e seleto grupo. Os drs. Manuel Gomes de Oliveira,
Soares de Melo, Pedro Chaves, Ariosto Guimarães, Renato
Pinho, além dos demais membros de uma famosa comissão de

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discursadores, que “tinham vindo levantar o moral da
cidade”, ao invés de – todos moços – pegarem de um fuzil,
seguindo para as livras de frente.
De novo foi exposto o problema da pacificação política da
cidade. Declarei que estava por tudo. Dissessem o que
queriam de mim, até o sacrifício supremo de abandonar a
fileira e recolher-me ao meu lar. Alguns acharam isso a
coisa desejada, mais o Dr. Leme da Silva, imediatamente
apoiado pelos demais magistrados, opôs-se tenazmente,
dizendo que seria castigo enorme para quem estava
praticando o “crime” de defender sua terra, com a
reiteração do propósito em que estava, de dar tudo a S.
Paulo. Era dizerem o que queriam.
Nada mais disseram.
Os fatos subsequentes mostraram os verdadeiros intuitos
daquela gente. O Dr. Feliciano foi o mais impenitente
derrotista que Santos hospedou. Obteve a nomeação de um
derrotista impenitente e conhecido inimigo de S. Paulo,
para juiz de paz, provocando dos juízes de direito a
recusa de empossá-lo, o que só foi feito pelo Dr. Lincoln
Feliciano, primeiro juiz de paz e irmão daquele
democrático. Não parou ai o Dr. Feliciano. A censura
telefônica o apanhou em flagrante tentativa de levante
contra S. Paulo, sob o nome de Antonio da Silva. Amigo e
discípulo amado do Sr. Marrei Jr., acaba de solidarizar-se
com este na hora da derrota, renegando as palavras que
dissera e atirando-se de borco aos pés do Sr. Getúlio
Vargas, depois de, anteriormente a 23 de maio, tudo ter
feito para entregar S. Paulo amordaçado ao Sr. Osvaldo
Aranha.

*
* *

POR UM TRIZ

O Major Reis Jr. Prendera o Tenente Romer.


O motivos eu ignoro. Com Carlos Lisboa Jr. Fui encarregado
de levá-lo ao Q.G. do General Klinger, onde chegamos alta
madrugada. Tivemos de esperar até o dia seguinte, pois o
General, fiel às máximas que ensinava, de economizar o
corpo e o espírito, dormia. Nós também tratamos de dormir
pelos sofás e espreguiçadeiras, até o dia raiar.
Tomando conhecimento do caso, o General Klinger quis
apaziguar e devolveu o Tenente Romer, com um memorando em
que declarava merecer ele a confiança e que tudo não
passava de um mal entendido. Regressamos todos.

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No posto de veículos de Cubatão, outra novidade. Estávamos
presos. Nenhum argumento convenceu o guarda. Resolvi
telefonar para a Central, onde atendeu o Dr. João de
Magalhães, que explicou o equívoco. O guarda nos confundira
com o Sr. Mauro Conceição, que devia ser preso como
derrotista, e efetivamente foi. Estávamos livres.
Rumamos para a cidade, tendo ficado, porém, estabelecido,
que passaríamos pela Central. Propôs, entretanto, o Tenente
Romer, que fossemos primeiramente ao quartel da Força
Pública, a rua S. Leopoldo, pois necessitava falar ao
respectivo comandante, Capitão Aranha, daquela corporação.
Chegados, o referido oficial desde logo tomou conhecimento
dos fatos passados em S. Paulo, com o Tenente Romer, lendo
avidamente o despacho lançado no ofício do Major Reis, na
2º Região Militar. Não há negar que, à primeira vista, pelo
menos, a solução da pendência deixava mal o Major Reis Jr.,
cuja ordem de prisão, a Romer, não fora mantida. O Capitão
Aranha, alvissareiro, propôs que antes do Tenente Romer se
apresentar ao Q.G. de Santos, fossem buscar o Cel Índio do
Brasil, a Ponta da Praia, pois, certamente, o Major Reis
Jr., replicaria alguma coisa e eles, ato contínuo,
efetuariam a prisão desse leal soldado. Todos aceitaram.
Nessa altura julguei do meu dever de paulista intervir.
- Os senhores não estão raciocinando bem; a menos que
estejam decididos a trair a revolução.

- Por que?
- Pois é lá razoável que os demais oficiais do Exército
deixem de prestigiar o colega, preso, assim, por oficiais
da F.P.? Pois é razoável que o comandante militar da Praça
seja preso por oficiais que estão sob suas ordens nessa
mesma Praça? Não sabemos que o forte de Itaipu, que vem de
aderir a nossa causa, é a maior segurança de Santos? Como
criar-se, de início, um caso entre o Exército e a F. P.?

Todos ouviam em silêncio. Ao término das minhas palavras o


Capitão Aranha foi o primeiro a concordar, dizendo que
agira menos pensadamente. Tirou cópia de todos os papéis,
para mostrá-lo ao Cel Índio. Eu mesmo, único datilografo,
no momento, fiz as cópias.
A esse tempo dizia-se que o Cel Índio do Brasil andava
magoado com o fato de estar sob o comando de um major,
embora o E. N. Para resolver essa situação foi pouco depois
nomeado comandante militar de Santos o Valente Cel Taborda,
recém chegado do Rio e, dias depois, o lealíssimo Melo
Matos, figura empolgante de chefe, soldado e cidadão.
E dessa maneira, por um triz, talvez, pudemos evitar um
grave conflito entre as forças armadas, que pelejavam por
S. Paulo e pela Constituição.
Toquei neste incidente da prisão do Tenente Romer, apenas
para narrar a última parte dos acontecimentos. Não é justo,

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porém, que deixe o caso em suspenso, com desdouro para o
digno Major Reis Jr.
O Tenente Romer, aliás um moço educado, penetrou na sala do
comando e entregou os papeis. O Major Reis Jr. Estava
assentado em um sofá e leu tudo calmamente. Terminada a
leitura, disse: - considero-me preso. Levantou-se,
naturalmente, o incidente, do qual tomou conhecimento o
General Klinger. Afinal tudo se explicou. Os termos do
despacho lançado o ofício em que se comunicava a prisão do
Tenente Romer eram, de fato, indelicados, indignos de serem
dirigidos ao Major Reis, a distinção personificada. Eram
assim os chefes militares. Quando estendiam-se com a faca e
o queijo na mão, não olhavam para as expressões usadas. O
Chefe do Estado Maior, que despachara o papel, teve,
afinal, de explicar os termos usados e o General, com sua
habilidade e fino espírito, resolveu tudo
satisfatoriamente, com prestígio do comandante de Santos.
E continuamos, ainda, por muito tempo, a ter o Major Reis
Jr. entre nós.
A admiração que me casou o Major Reis Jr., não é uma
impressão de momento. Pude observá-lo durante algum tempo,
verificando sua cultura, inteligência, delicadeza de
sentimentos e, principalmente, seu amor a S. Paulo.
De uma feita recebi no quartel da MILÍCIA, ordem para me
apresentar com meu automóvel ao Q.G. Eu era, a esse tempo,
chauffeur. Chegado, apresentei-me. Devia ir a S. Paulo
conduzindo o Major Reis e o Tenente Nascimento, outro
Militar digno da admiração paulista, filho do nosso Estado.
Em casa do comandante tive “ordem” de entrar. Recebeu-me o
sua senhoria em sua sala de visitas, onde havia uma linda
mobília forrada de veludo amarelo-abóbora. Mandou-me
assentar, ao que obtemperei que não o faria naquela
poltrona, pois, empoeirado como estava, a sujaria.
Respondeu-me aquele chefe:
- Pois sente-se. Se minha mobília ficasse marcada pelo seu
corpo, nunca mais a limparia. Seria a marca de um soldado
paulista. E acrescentou: - Eu seria o homem mais feliz se
terminasse minha carreira neste movimento. Meu anhelo é
morrer defendendo esta sua grande terra.
E foi leal até o fim, quando tantos...

*
* *

OS CHEFES

Não terminarei esta primeira parte sem me referir aos


chefes que conheci em Santos.

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Ao rebentar o movimento, logo após a adesão de Itaipu,
tivemos o comando do Major Loreti.
Homem calmo, afável, nunca dava uma ordem. Pedia que se
executasse um serviço qualquer, com brandura. Foi
comandante do hoje lendário Itaipu, a fortaleza que decidiu
da resistência paulista e que devera ter se tornado o
último reduto constitucionalista.
Do Major Reis Jr. já falamos linhas atrás. Militar culto,
com noção exata das coisas, inteiramente senhor do ideal
por que se batia, foi um ótimo soldado da Constituição.
O Cel Taborda exerceu o comando poucos dias. Assisti sua
chegada ao Q.G. de S. Paulo. Vinha com alguns companheiros,
disfarçado em pescador, pés descalços, cansado ainda da
enorme caminhada que fizera para atingir S. Paulo, guiado
pelo fanal do seu idealismo. Ao atravessar a rua
Conselheiro Crispiniano, para a alfaiataria onde ia tomar
medida para um uniforma, o povo o conheceu, rompendo em
majestosa aclamação, ao valente que de tão longe nos
estendia os braços. O que foi o comandante Taborda, dirá a
crônica dos acontecimentos do sul. Dirá, sobretudo, a
atitude elevada que teve ao rejeitar a Chefatura de
Policia, depois da paz, e dirá, ainda melhor que tudo, a
alta página de civismo que escreveu, ao retirar-se par ao
Rio, recomendando calma e paciência ao heroico povo
paulista. Essas palavras de Brasílio Taborda hão de ser um
dia gravadas em ouro, como gravadas ficaram no coração de
todos nós.
Por fim tivemos o Cel Melo Matos, com quem servi poucos
dias, por ter seguido para a frente Norte. Dos contatos que
tivemos, entretanto, ficou-me impressão de ser um homem
integral. Forte de corpo e de espírito, não se abateu nem
mesmo diante da fatalidade. Mentalidade sadia, leal e
corajoso, a esperança não o abandonou jamais. Conhecida a
atitude da F. P., ele acreditava ser possível resistir no
seu setor, que era o litoral.
Os fatos falam mais que as palavras.
No dia 1 de outubro anuncia-se no Q.G. o Cel Índio do
Brasil, que fora comunicar o imediato recolhimento das
forças de seu comando, que atuavam na região de Xiririca,
juntamente com outras. Era a deserção, quando iam em meio
os entendimentos para a paz. A ordem fora manter as
posições, enquanto se parlamentava.
Assim, porém, não cumpriu o alto comando da F. P., havendo
ordenado ao comandante do 6º B.C.P. o recolhimento acima
aludido. Pois bem, nesse momento, perfeitamente ao par da
situação criada, o Cel Melo Matos transmitia ao comandante
de forças, em Xiririca, o seguinte telegrama, que ficara na
história da revolução como um marco glorioso do nosso
caráter: “Acabo comissiona-lo posto capitão. Autorizo
recompensar dedicações e atos valor. Mais vale morrer livre
que viver desonrado”.

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Mas tudo estava consumado.
O Cel Melo Matos conservou toda dignidade até o derradeiro
momento. Quando se anunciou que o Cel Herculano de Carvalho
e Silva assumira o governo de S. Paulo, ao invés de ir para
a cadeia, o chefe de Santos reuniu sua oficialidade e, após
exposição franca, libertou cada um dos compromissos
assumidos, dissolvendo o comando.
Se aqui não nascera, era, entretanto, um autêntico
paulista.

*
* *

QUITAÚNA

Anunciara-se, finalmente, a partida do primeiro contingente


miliciano para as frentes de combate. Para onde iríamos?
Todos ignoravam. Sabia-se que o ponto de concentração era
Quitaúna.
Na tarde prefixada a cidade estava em alvoroço. Aprestava-
se a partida. Uriel Carvalho, Haroldo Levi, Paulo
Guimarães, arrancaram os galões que tinham sobre os ombros
e formaram na fileira como soldados rasos. O entusiasmo
transbordava de todos os corações. Formada a coluna ao lado
do quartel, a banda de música do Corpo Municipal de
Bombeiros rompeu a canção do Soldado. Toque de sentido e em
marcha. A frente do comandante Spindola, a oficialidade,
pessoal das repartições e a tropa. O povo, por todo o
trajeto, delirava. S. Paulo andava de boca em boca, pairava
sobre todas as cabeças, embalsamava o ar! Agitavam-se
bandeiras, os clarins punham notas de alegria na tarde
festiva, os tambores furavam compassados, marcando a
cadência da marcha.
Em milhares de olhos as lágrimas saltavam brotando dos
corações.
Ao passar pelo comando da Praça, todas as autoridade4s
civis e militares aguardavam a tropa; firmes e em sinal de
continência.
- Olhar à direita!
E os soldados da Lei voltavam o pescoço na direção
indicada, em saudação militar.
Ao atingirmos a rua do Comércio já não havia caminho. O
povo, na sua mais alta expressão – do magistrado ao
vendedor de jornais – manifestava a mais íntima comunhão de
sentimentos.
- Viva São Paulo!

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Era a expressiva consubstanciação do nosso fervor cívico.
Mulheres, velhos, crianças, moças, tudo vibrava num mesmo
anseio. As sacadas embandeiradas cobriam os rapazes com as
bênçãos da terra Andradina.
Tudo por S. Paulo!
No largo Marquês de Monte Alegre a forma se desfez. Era
impossível passar.
- A um de fundo!
E lentamente aquela enorme fileira foi-se escoando em busca
dos vagões.
Afinal a partida.
Ouviram-se os clangores do hino nacional. Momento supremo.
Entre os abraços estreitados, coração a coração, nos
derradeiros beijos de despedida de quem partia para a luta
e para a glória, misturavam-se os anhelos de liberdade e de
justiça.
A Cruz Vermelha, Filial de Santos, mandara uma ambulância
completa, sob o comando do Dr. Guilherme Gonçalves.
Era o primeiro carro.
Ao silvar da locomotiva o trem começou a locomover-se. O
enstusiasmo tocou as raias do indescritível.
Viva S. Paulo!...
Vila a Lei!
Viva a Constituição!
A curva do caminho interceptou a visão.
Salve S. Paulo invicto de Feijó e Fernão dias!
Salve terra gloriosa que tais filhos tem! Teus ideais são
imperecíveis, porque não se jugula o pensamento. Há de ser
livre a terra de tão grande povo.
Salve S. Paulo!

Só pela madrugada atingira-se Quitaúna.


Organizadas as forças, foram agregados rapazes de diversas
precedências e o corpo regular surgiu pronto para a guerra.
Estava formado o nosso batalhão, o 8º B.C.R. (Batalhão de
Caçadores da Reserva), que nos campos ensolarados do
chamado Norte de S. Paulo havia de se cobrir de glória.
Composto pelos milicianos, Falange Acadêmica, elementos dos
Tiros de Guerra 11 e 598, Batalhão Operário e rapazes de
outras localidades, a oficialidade assim se constituiu:

COMANDANTE GERAL MILÍCIA CÍVICA DE SANTOS – MAJOR BERNARDO


SPINDOLA MENDES;
AJUDANTE - 2º TENENTE MOACIR SAMPAIO;
APROVISIONADOR – 1º TEN RAFAEL XAVIER MARTINS LADEIRA;
MÉDICOS – 1º TEN PLÍNIO CAMARGO E 2º TEN ALCEBÍADES SALES;
DENTISTAS – 1º TEN LUIZ LUTOSA DA SILVA E 2º TEN IRINEU
CAMARGO;

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1º COMPANHIA – COMANDANTE - 2º TEN VENEFREDO PRUDENTE DE
TOLEDO;
COMANDANTES DE PELOTÕES - 1º SARGENTO BENTO BRAGA FILHO, 3º
SGT CRISTALINO MESQUITA E 3º SGT MERIVAL EMERICH

2º COMPANHIA – COMANDANTE - 1º SGT HERMETO RIBEIRO VIEIRA;


COMANDANTES DE PELOTÕES - 3º SGT PAULO CASTRO, 3º SGT
ALBINO MONTEIRO E 3º SGT ANDRÉ FREIRE;

3º COMPANHIA – COMANDANTE - 1º SGT HENRIQUE PAMPLONA


FRAGOSO; COMANDANTES DE PELOTÃO - 2º SGT NUNO BRAGA; 3º SGT
GUMERCINDO PEREIRA DA SILVA E 3º SGT LOURENÇO GASPARINI

Foi agregado um grupo de metralhadoras sob o comando da


brigada Kueleo.
A 30 de julho partia o 8º B.C.R. para a frente Norte, tendo
sido passado em revista, na estação férrea, pelo Exmo.
General Klinger, comandante supremo das Forças
Constitucionalistas.

*
* *
VIDA NOVA

O destino era Cachoeira.


Ali acantonado, o 8º viu-se desde logo partindo. A 1º
Companhia seguiu para Queluz, comandada pelo Tem Valfredo,
por ordem do Coronel Palimércio Rezende, onde tomou
posição.
O setor designado para esse primeiro grupo, era Salto. Logo
depois seguiram as forças restantes, que foram acantonar na
fazenda P. Moraes, tomando posição. Foi uma dura prova,
para batismo de foto. A entrada dos rapazes se fez sob
nutrida fuzilaria e estonteante bombardeio aéreo, que
desnorteava.
Nossa campanha começara sob maus auspícios.
Queluz é uma pequena cidade paulista, perdida na divisa com
o Estado do Rio. Seus hábitos são mais fluminenses e seu
comércio se fazia quase todo com o Rio de Janeiro.
Pequenina, semeada de casas velhas, sem movimento, é uma
relíquia do passado. O Q.G. estava situado em um antigo
casarão acaçapado, a esquina do jardim público.
Comandava o nosso sector o Major Agnelo de Morais, do
Exército. Era um guapo oficial, homem até bonito. Cheio de
corpo, sempre muito bem posto, fino havana nos lábios,
chapéu de cortiça. Um dândi fardado.

61
Quando o Comandante Spindola se apresentou, ele estava
assentado a um canto de mesa, olhar perdido, queixo fincado
na mão direita, cotovelo sobre o móvel.

- Pronto, Major. Sou o comandante do 8º B.C.R., tropa


fresca que vem se por à sua disposição.
- Sente-se, respondeu ele em tom desanimado. Sua tropa é
regular?

- Mais ou menos, eis que é composta em sua quase totalidade


de reservistas. Além disso, rapazes de alto moral e
decididos.

- Qual o quê; essa gente não da nada.

E depois de uma pausa (quase diríamos menopausa) - nós


estamos mal; muito mal, mesmo. Não temos material, nem
munições. Eu conspirei. O culpado de tudo isso é o Dr.
Paulo de Moraes. Apresentei-lhe o agente de uma casa norte-
americana, que nos daria o armamento necessário e a
munição, por quarenta mil contos. 20 aeroplanos a
250:000$000 cada um e os respectivos aviadores, a 3:000$000
mensais. Mas o homem não quis. Dizia que S. Paulo não
poderia pagar.
Em todo caso o senhor tome posição. É na fazenda Garcez,
ali adiante.

O Major Spindola não estava ainda em si, de novo. Estava


perplexo.
Com um comandante desses nós íamos à glória... O Major
Agnelo era mal visto. Corriam a seu respeito notícias pouco
lisonjeiras. Dizia-se que no sul, em 1930, ele deixara
perder 400 homens. Não inspirava confiança.
Trabalhava com ele o Capitão Tito Lamengo, de quem
falaremos adiante. Não era melhor.
A força tomou posição no Garcez, donde se transferiu para a
fazenda Moraes, no dia 2 de agosto.
Nessa altura fui me encontrar com o Batalhão, pois não
havia, por vários motivos, seguido para Quitaúna. Ia
comigo, em meu automóvel particular, o sargento Álvaro Melo
Jr., que imediatamente se incorporou, vindo mais tarde a
adquirir o nome de Sargento Boa Vida.
A tropa necessitava de tudo, motivo que nos levou a
regressar incontinenti a Santos, em busca de suprimentos.
Quando voltei de novo, já o Batalhão estava disperso.
Naquele mesmo dia 2, quando me despedi do Comandante
Spindola, ele disse: - hoje vamos progredir. Foi
determinado um avanço.
Mas a verdade é que, ao invés de atacar, fomos atacados.
Mais tarde, no correr da campanha, esses fatos foram muito
repetidos, principalmente no setor da Mogiana.

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O combate se travou duro. A oficialidade pirou. Do Maj
Agnelo não se soube e, muito menos, do Cap Lamengo. O Tem
Venefredo sumiu, deixando sua tropa abandonada em meio do
foto. Este fato está bem determinado no seguinte trecho do
boletim do dia 13 de agosto, do comando da Unidade:

“É também excluído, por não ter correspondido a confiança


de que foi depositário. O 2º Ten Venefredo Prudente
Toledo, que comandava a 1º Companhia deste Batalhão, a qual
abandonou em pleno fogo, no dia 31 de julho último”.

Vê-se bem que se os de mais oficiais desapareceram no


combate do Salto, o Ten. Venefredo sumiu a 31, quando no
início das hostilidades.
O brigada Kueleo não foi mais valente; pirou, abandonando
as suas metralhadoras e foi excluído pelo mesmo boletim.
Diante de tais fatos, não é preciso ser profeta para
adivinhar o que houve. Desmantelo completo do Corpo,
espalhando-se os soldados pelas cidades marginais a Central
do Brasil.
Tivemos muitos prisioneiros e um morto – João Pinho, que lá
ficou no cemitério de Queluz, sepultado pelas mãos piedosas
de seu irmão Valdomiro, que conosco se bateu até o fim.
O Comandante Spindola e Ladeira foram empregados nos
serviços de abastecimento e transportes, em Queluz.
Parecia, de tal arte, extinto o esperançoso Corpo formado
de santistas.
Mas não havia de ser assim.

*
* *

RECOMPOSTO O BATALHÃO

Quando regressávamos de Santos, a notícia já andava pro


toda parte. Em Pindamonhangaba estavam os primeiros
santistas. Depois, Lorena, Cruzeiro e Cachoeira.
Toca a reunir.
Com Uriel Carvalho andei por seca e Meca, até que o
Batalhão se juntou todo em Cachoeira, onde acantonamos em
velha e abandonada usina de laticínios.
Distribuídos novos fardamentos que eu trouxera de Santos,
mantas, agasalhos, vasilhame; o Cel Palimércio mandou
distribuir armamento e correames e tocamos todos para
Queluz, onde o Comandante Spindola reassumiu o comando,
reorganizando o 8º B.C.R.
Em Cruzeiro encontrei um grupo numeroso, quase 20 soldados,
já adidos ao Batalhão Baía. Amadeu Derito, Luiz Cherto,
Antonio e Ciro Freitas Guimarães, Harding, Marinho Sá e
mais alguns. Resolvi pedi-lhos ao Cel Sampaio, com quem

63
pela primeira vez me defrontei. Confesso que foi penosa a
impressão que tive. Mais tarde modifiquei inteiramente meu
juízo a respeito desse militar, tendo, mesmo, por ele,
sincera admiração. Eu era ainda soldado. Chegando ao Q,G,
do referido oficial, ele, tomando conhecimento da minha
identidade, fez-me assentar e se dispôs a ouvir-me.

- Venho pedir-lhe que autorize alguns soldados do 8º


B.C.R., a voltarem ao nosso Corpo. Eles estão aqui desde a
retirada do Salto e nosso Corpo está sendo reorganizado.

- Pode levá-los; eles aqui nada mais fazer que comer. Nem
guarda dão. Portaram-se no Salto como covardes.

- Perdão, Coronel, atalhei logo, covardes foram os oficiais


do Destacamento, que sumiram. A maior patente vista foi um
3º Sgt (o Comandante Spíndola estava em P. Morais).
Luiz Cherto secundou.
O Coronel não esperava a replica e quis explicar:

- Mesmo que não houvesse oficiais, eles não deveriam sair


sem ordem de retirada.

- Mas essa ordem andava por lá, em todos os lados, no


clássico “salve-se quem puder”.

- Foi um rebate falso: pode levar seus homens.

Cumprimentei-o e sai, como já disse, penosamente


impressionado. Mas o feitio do bravo soldado era esse.
Áspero em aparência, era um ótimo coração. Terei muitas
oportunidades de me referir a sua pessoa. Quero, porém,
desde logo, assinalar que me inspira hoje verdadeira
simpatia, pelo modo leal e brilhante porque o vi conduzir-
se em toda a campanha. Foi mesmo com alegria que fui servir
em seu Destacamento, após a retirada de Pinheiros. Chama-se
Antonio de Paiva Sampaio.

*
* *

UMA NOITE NA IGREJA

Quando o nosso trem chegou a Queluz, tivesse de alojar os


soldados. Deram-nos para isso um armazém da estação férrea
e três vagões de carga. Isso, na guerra, é a coisa mais
comum. Dentro em pouco havíamos alojado todos os camaradas,
mas, nós ficamos sem alojamento. Haroldo Levi, que estava
há dias confortavelmente instalado em um banco da estação,

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teve a surpresa de constatar que seu apartamento tinha novo
ocupante. Mas nem tudo estava perdido e, é velha regra –
soldado não se aperta. Uma companhia do Batalhão
Piratininga estava acantonada em Queluz, pois deveria na
manhã seguinte atacar Engenheiro Bianor, recentemente
ocupada pelos ditatoriais. Soubemos que muitos se haviam
alojado na igreja local. A igreja de Queluz é diferente de
todas as outras igrejas que conheço. Confunde-se facilmente
com um armazém qualquer, por ser um prédio de aspecto
comum, no alinhamento da rua. Entramos, Haroldo, Uriel,
Carvalho e eu, os três, a esse tempo, soldados rasos. O
interior do templo estava todo iluminado. Sobre os bancos,
em esteiras, com um conforto acima do normal, os rapazes do
Piratininga, envolvidos em lindos cobertores de
quadradinhos verde-amarelos. A abundância de cômodos era
tamanha, que sobravam duas grossas esteiras, sobre as quais
nos acomodamos deliciosamente, a cabeça apoiada nas
bisacas, agasalhados pelas mantas. Era o meu primeiro dia
de campanha e o dormi em companhia de Uriel. Curiosa
circunstância, porque o meu último dia de luta, em
Guaratinguetá, também dormi com Uriel, lado a lado ao
magnífico palacete do Cel Virgílio Rodrigues Alves. A esse
tempo era ele Capitão e eu 1º Tenente.
Na manhã seguinte tivemos agradável surpresa. Junto de cada
um de nós um capacete de aço. Positivamente Papai Noel
andara por ali, tomando-nos por componentes do Piratininga.
Quem a boa árvore se chega, a boa sombra se acolhe...

Valeu-nos o fato muitas reclamações, pois o pessoal do 8º


supunha que havíamos arranjado os capacetes na Intendência
e... também queriam.
Nesse dia o Maj Spindola reorganizou sua Unidade, formando
a nova oficialidade, assim constituída, depois dos
necessários comissionamentos, feitos pelo Cel Theophilo
Ramos e confirmados pelo Cel Euclydes Figueiredo,
comandante da 2º D.I.O (2º Divisão de Infantaria em
Operações):

COMANDANTE GERAL DA MILÍCIA CIVIL DE SANTOS – MAJOR


SPÍNDOLA;

AJUDANTE – 1º TEN RAFAEL XAVIER MARTINS LADEIRA;


APROVISIONADOR – 2º TENENTE SAMUEL BACCARAT;
MÉDICOS – 1º TEN DR. LEONEL PEREIRA DA CUNHA;

DENTISTAS – 2º TEN IRINEU CAMARGO; 2º ANTONIO MARQUES;

FARMACÊUTICO - 2º TEN LEOPOLDO TEUBER;

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COMANDANTES DE COMPANHIAS: 2º TEN ESTANISLAU CUSTODIO, 2º
TEN JOAQUIM FERNANDES E 2º TEN JOAQUIM FERNANDES E 2º TEM
ANDRÉ FREIRE, ESTE DA 3º CIA EM FORMAÇÃO;

COMANDANTE DE PELOTÕES: 2º TEN CRISTALINO MESQUITA, 2º TEN


PAULO CASTRO, 2º TEN NUNO BRAGA, 2º TEN HENRIQUE FRAGOSO,
2º TEN GUMERCINDO PEREIRA DA SILVA E 2º TEN HERMETO RIBEIRO
VIEIRA;

Estava o 8º novamente em plena forma, iniciando o período


áureo de sua existência como tropa que se impôs à
consideração de outros batalhões e dos superiores, sob
cujas ordens serviu. Provado nos duros embates anteriores,
surgia o glorioso Corpo do Exercito Constitucionalista em
plena eficiência.
Nesse mesmo dia recebi o encardo de processar as primeiras
folhas de pagamento, devendo partir na manhã seguinte para
S. Paulo.

*
* *

A GUERRA, A GUERRA...

Dos nomes acima enunciados devo fazer um capítulo, traçando


a largas pinceladas o perfil de cada um, como preito da
mias sincera homenagem a tão valentes companheiros,
paulistas denodados e verdadeiros e ainda como expressão da
minha profunda saudade da campanha que juntos fizemos.
Antes, porém, quero referir dos fatos interessantes pelo
seu aspecto anedótico.
Nessa última noite de Queluz, depois de instalada a tropa o
mais comodamente possível, fui pedir agasalho ao Cap Jaime
Marcondes, reformado da F. P. e advogado na Capital,
exercendo, então, o cargo de Delegado Militar da cidade.
O Cap Jaime, meu velho conhecido, recebeu-me amistosamente.
Sabendo o que eu queria, levantou-se de manso sobre o
cotovelo e me disse no tom mais fraternal possível:

- Ora viva. Que prazer hospedá-lo. Vou arranjar uma cama


cômoda. Olhe, deite-se nesse colchão, atrás da porta.
Travesseiro não tem, mas você dobra a ponta do colchão.
E deitou-se de novo, enquanto eu me acomodava.
Não se podia dormir. A cada instante o ordenança batia na
porta, para comunicar uma ocorrência. Cerca de 1 hora da
manhã, novas batidas:

- Capitão, capitão!
- Que é isso, cabo?

66
- Está aí fora, uma força que acaba de chegar e precisa ser
alojada.

O Cap Jaime, estremunhado, coçou a cabeça algum tempo e


ordenou com uma voz muito mansa e arrastada, de bom
pindense:
- O cabo, aloja essa gente do lado esquerdo da cadeia.
- E os presos capitão?
- Que presos, cabo? Do lado de fora.
- De fora, seu capitão? No sereno?
- Sim, que tem isso? Eles deitam-se cobrem-se com suas
mantas e descansam até amanhã.

E tornou a dormir, enquanto eu me ria desabridamente.

No dia seguinte ele soube do meu comissionamento em 2º Tem


e mostrou-se muito satisfeito com o fato, dizendo-me: - Não
se esqueça de mandar pregar um galão bem bonito na farda.
Preguei-o de esparadrapo, que era o mais comum no mercado.
Ao seguir para S. Paulo deixei com o Cap Jaime a bisaca de
soldado. Quando regressei Queluz caíra em poder da ditadura
e só fui encontrar o Cap Jaime, muito tempo depois, a porta
do Correio Militar, em Cruzeiro.
Grandes e naturais expansões de alegria. Perguntei-lhe pela
bisaca. Ele fez um grande esforço e disse:

- Está comigo. Meu ordenança guardou.


- Aquilo pouco vale, respondi. Só me fazem falta uns óculos
de reserva que havia.

A esse tempo um sargento que o acompanhava interveio:

- Uns óculos iguais a esses que vossa senhoria usa, seu


tentente?
- Isso mesmo.
- É, esses óculos o cabo está usando.

Não me contive que não risse muito. Imagino o transtorno


que o uso do óculos terá produzido no vaidoso cabo, dado
meu adiantado astigmatismo. No mínimo o cabo, a estas
horas, está com os olhos virados pelo avesso.
Ainda hoje, quando o Cap Jaime me vê, comunica que os
óculos estão com ele.
Foi promovido a major.

*
* *

67
PERFIS

Vou retratar os companheiros que iniciaram a nova fase do


meu querido 8º B.C.R.
Como já disse, falo-ei em homenagem a tão valentes
companheiros, como preito de saudade e gratidão. Não penso
em ridiculariza-los, e se alguma vez apontar fatos mais ou
menos picarescos de alguns deles, será tão somente para ser
verdadeiro, o que no correr desse livro não perdoarei a mim
mesmo.

*
* *

SPÍNDOLA

Maranhense e oficial da Força Pública do Estado de São


Paulo, um tipo alto, magro, moreno. Simpático e quase
bonito. Valente e até temerário. Nunca dormiu sossegado,
sem saer que toda sua tropa estava em segurança. Corria
toda sua linha e as dos flancos, afim de verificar as
falhas existentes e consertá-las. Em Pinheiros, onde
estivemos mais de 30 dias, nada se resolvia no E. M.
(Estado Maior) sem sua opinião.
O comandante Spindola tinha traços bem característicos.
Reclamava, mesmo quando intimamente estava achando tudo
bom. Uma vez eu lhe disse que não era possível fazer o
serviço melhor do que estava. Ele ficou de senho carregado.
Tempos depois, referindo-se a esse mesmo serviço, disse-me:

- Em Pinheiros, sim, o serviço era último.


- E as suas reclamações?
- Ora, a gente reclama sempre, para o pessoal não amolecer.

Era um homem Franco, que dizia tudo quanto sentia, fosse


onde fosse e a quem fosse. Sendo esse o meu feitio, demo-
nos sempre muito bem.

Uma vez, em Pinda, houve um incidente entre nós, que


pareceu sério no momento, mas que daí por diante constituiu
mote obrigatório nas nossas palestras.
Estava eu fazendo pagamento as praças, quando alguém lhe
foi reclamar que não estava com o nome na lista. Ele veio,
acompanhado do Cap. Rocha Marques, subcomandante e me
inquiriu no meio de todos os soldados:

- Por que o senhor não colocou o nome desse soldado na


folha?
- Porque ele andou pirado o mês inteiro e só agora aparece
para receber.

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- Pois para evitar dúvidas futuras, saque vencimentos para
todos os extraviados. Recolher-se-a o dinheiro dos que
estão o dinheiro dos que não aparecem.

Eu achava que isso era absurdo e discutimos sobre o caso.


Afinal ele, exasperado e vendo que não levava a melhor na
discussão (não fosse eu advogado), disse rispidamente:

- O senhor leva tudo para o terreno da discussão. Saque o


dinheiro, porque eu não vou ficar com os saldos.
- Nunca tivemos negócios. Respondi-lhe calmamente; mas
acredito.

Ele retirou-se.
Muitos dias depois (já revogada a ordem anterior)
conversávamos no acampamento, com o Dr Carvalhal Filho,
então incorporado. Eu contei um episódio que se dera comigo
e o Cap Sandim, na retirada de Pinheiros, e que relatarei a
seu tempo. O comandante ouviu, riu-se muito e me perguntou:

- Mas você teve coragem de dizer isso?

O Dr. Carvalhal atralhou: - O Samuel sempre foi mal criado.


O comandante riu-se de novo e acrescentou com a sua voz
aflautada: - isso é verdade. Você não viu a resposta que
ele me deu lá em Pinda? – nós nunca tivemos negócios...

Rimo-nos todos. Daí por diante, cada viés que se falava em


dinheiro, um dos da roda dizia pilhericamente: nós nunca
tivemos negócios...

O comandante Spindola era verdadeiramente querido da tropa.


E, verdade seja dita, merecia esse bem-querer. Era enérgico
e era bom.
De uma feita, no acampamento de Pinheiros, levantando-se
saiu ao terreiro e cumprimentou a todos. Joaquim Esteves,
um soldado muito malandro, meio escondido por detrás do
caminhão do café, respondeu:

- Bom dia, papai.


O Maj encabulou e sem saber bem que caminho tomar,
perguntou:
- Onde é que você tirou esse papai?
- Uai! Toda gente diz que o senhor é o pai de nós todos.
O comandante não disse mais nada.
No curso deste livrinho muito me referirei ao Maj Spindola
cuja amizade reputo uma das melhores conquistas da campanha
que fiz.

*
* *

69
LADEIRA

O ladeira é advogado em Santos. Oficial da Reserva,


incorporou-se como 1º Ten. Pouco tempo serviu no 8º B.C.R.,
porque foi nomeado Delegado Militar de Pinheiros.
Na campanha faz frio, de modo que é preciso alimentar as
calorias orgânicas. Às vezes o Ladeira aumentava e a gente
o conhecia logo por que, ao iniciar a caminhada, dava uma
caída com o corpo. Um soldado dizia que ele derrubava as
cadeiras, referindo-se ao quadril.
Um companheirão. Sua farta nessa atraía hospedes em boa
quantidade, a começar pelo comandante do Destacamento, o
Cel Lamego. O Ladeira levava suas funções muito a serio,
mas procurava facilitar tudo ao 8º, que constituía motivo
de grande orgulho para ele. Encrencava com todos, mas no
frigir dos ovos tudo acabaça bem. Tudo não. Uma vez ele nos
pregou uma peça valente. Na Intendência de Pinheiros,
depois de encerrados todos os serviços, o pessoal, a portas
fechadas, jogava o pôquer de tostão. O Ladeira, zeloso da
sua autoridade, andava implicado com aquilo. Eu estava em
Cachoeira. Mario Santos, soldado nosso, mas adido à
Delegacia Militar, apareceu fora de horas, na Intendência,
procurando uma carta.

Não havia carta alguma, informou o Sgt Boa Vida, da janela.


Havia sim. Ele estava informado. Fizessem o favor de abrir
a porta que ele mesmo procuraria na correspondência.
O que o Mario queria era ver se estavam jogando, Verificado
isso, saiu sem mais se preocupar com a famosa carta.
Cinco minutos depois bate o Ladeira a porta e, forçando-a,
apreende o baralho, fichas e 35$000, comunicando o fato ao
Estado Maior., o que valeu uma reprimenda aos jogadores.
Ninguém se esqueceu do caso e o Sgt Boa Vida ainda jura que
o Ladeira lhe pagará os 35$000.
*
* *

LEONEL
Era o médico do Batalhão.
Muito moço, clinicava em Capivari, quando estalou o
movimento. Incorporou-se logo e nos seguir até quase o fim,
quando um mal entendido nos privou da sua companhia, com
grande mágoa de todos, não obstante ter sido substituído
pelo gozadíssimo Mario Costa, de quem, a seu tempo,
falarei.
O Leonel tinha uma carinha de criança, imberbe, fisionomia
doce e contemplativa. Era um meigo. Cuidadoso em extremo,
cumpria à risca com os seus deveres.

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Narrarei um fato para mostrar sua índole boa. Cada vez que
morria um soldado nosso, os outros “ficavam por conta”, o
que significa, ficarem indignados. Morrera Othoniel Marques
Teixeira e tínhamos ido vê-lo ao necrotério. A vista do
companheiro tombado mais ainda nos tocou. Retirávamo-nos
quando Leonel, médico e afeito a essas coisas perguntou-me:
- Baccarat, você ainda tem aquelas laranjas?
- Sebo. Um companheiro morto e você a procurar laranja.
Coma m...
O Leonel não se levantou da posição em que estava, sentado
numa beirada de barranco. Já na rua refleti que tinha sido
por demais grosseiro e daí a alguns minutos voltei,
pretextando saber do enterro. O Leonel ainda estava na
mesma posição e conversamos longamente, como dois bons
amigos que sempre fomos no pouco tempo em que o destino nos
colocou lado a lado. Que ótimo companheiro!
Encontrei-o depois do armistício, em S. Paulo. Estava ainda
fardado e me declarou que só poria roupa de paisano em
Capivari, onde vestira a farda.

*
* *

IRINEU CAMARGO

Do Irineu se podia dizer que era um menino fugido do


colégio. Pequenino, franzino, tipo perfeito do caboclinho,
falando arrastado, como paulista genuíno. Trabalhador
infatigável, não se acostumava fora da campanha. Obteve
licença para ir a Santos e sofreu longo suplicio porque,
adoecendo, passou muitos dias sem poder regressar. Esteve
até o último dia.

*
* *

ANTONIO MARQUES

Era alto, moreno, tipo quase de bugre. Sempre sorrindo,


nesse permanente sorriso revelava sua alma simples e boa.
Prestou bons serviços, como dentista e enfermeiro. Serviu
até o final.

*
* *

LEOPOLDO TEUBER

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Dizia-se que Leopoldo era comissário de café em Santos.
Cara agressiva, ótimo coração. Era abnegado. Não tínhamos
farmácia, de modo que o cargo de Leopoldo não tinha função.
Nem por isso ele se privava de trabalhar. Era médico, na
falta do efetivo, enfermeiro, padioleiro, tudo, enfim, onde
pudesse ser útil. Uma vez estava o P.S (Pronto Socorro)
instalado em uma choupana de sapé, no lugar chamado
Mangueiras, perto de Pinheiros. Passando no caminhão da
boia, vi um homem inteiramente nu, deitado no terreiro
sobre um cobertor. Era o Leopoldo, que sem cerimônia alguma
fazia um tratamento antirreumático, tomando banho de sol.
Encrencava periodicamente com o sargento Canto, outro tipo
gozadíssimo, de quem falarei com minúcia, por causa de
boia. Brigavam mais continuavam sempre muito amigos.

*
* *

ESTANISLAU CUSTODIO

Segundo tenente da Força Pública, foi-lhe entregue sempre


um posto de responsabilidade, terminando a campanha como
capitão comandante de sub-setor. Entroncado, forte, tinha
uma voz aflautava e falava solenemente quando transmitia
uma ordem.
Muito engraçado nas expressões que usava. Em uma das minhas
viagens a S. Paulo, pediu-me que legalizasse uma
autorização para sua excelentíssima esposa receber
vencimentos. Fi-lo, com o reconhecimento de sua firma pelo
comandante do Batalhão.
Pronto o documento, disse-me ele:
- Dr., faça-me mais um favor. Entregue esse papel para a
minha ingrata. O endereço está nesse envelope.
Bom oficial.

*
* *

JOAQUIM FERNANDES

O Fernandes era um tipo fora do comum. A boa vontade


personificada num grande trapalhão. Dir-se-ia que o
Fernandes enroscava-se nos cabelos das pernas. Embrulhava
as ordens mais simples, confundindo tudo. Muito
trabalhador, nunca descansava sem cumprir todas as
instruções que recebera. Andava invariavelmente com um
capacete de aço, que uma bala amolgara na aba. Tinha
orgulho nisso. De fato, no dia dessa amolgadura o Fernandes
nascera de novo.

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Reformado como sargento-ajudante, na Força Pública, estava
comissionado em 2º Ten. Era porteiro do Palácio do Governo.
Quando foi da retirada de Pinheiros, abandonadas as cidades
de Cruzeiro, Cachoeira e Lorena, correu a notícia que o Dr
Gama Rodrigues fora preso, porque estava nomeado
Interventor em São Paulo, encarregado de instalar seu
governo em Lorena. Não sei se era isso verdade em, parece,
os fatos posteriores não confirmaram. Ao saber disso o
Fernandes mostrou-se muito surpreso e disse:
- O Dr. Gama Rodrigues! Conheço muito: muitas vezes
escrevi-lhe o nome, quando ia visitar o Presidente do
Estado.
Ficava-se, assim, sabendo que aquele ex-deputado era
assíduo em Palácio e não usa cartão de visita.
Um simples, o Fernandes e, por isso mesmo, um bom.
Trabalhou na Intendência, comigo, com solicitude e
lealdade. Guardo dele boa recordação.

*
* *

ANDRE FREIRE

O André! Melhor diria – o formidável André.


Baixote, moreno carregado, a feição enquadrada numa barba
preta e cerrada. Foi chefe do abastecimento, com grande
eficiência e depois, após muitas encrencas com o comando,
foi para a trincheira. Sargento do Exército, comandou com
muito tino, sendo o autor de uma celebres patrulhas, em que
fazia proesas, valendo-lhes os galões de 1º Ten. Durasse
mais a revolução e seria capitão.
Quase nos derradeiros dias, em Guaratinguetá, sua terra,
saiu acompanhado de mais um oficial, do sargento Mário
Ferreira e Silva e soldado Antonio Freitas Guimarães, para
um reconhecimento que ficou celebre.
Alguns quilômetros adiante da fazenda Jararaca, onde
estávamos acampados, entrou ele em contato com o inimigo,
representado por um cavalariano, logo que desceram do auto
em que tinham ido. Estavam, portanto, na boca do gato. O
Antoninho Freitas estava armado de um Fuzil Metralhadora,
mas com tanto azar que a arma se lhe embaraçou entre os
joelhos e o para-brisa do carro.
O André, inteligente, entrou logo em conversa com o
adversário, que nada desconfiou a princípio.
- Que força está aqui à direita? Perguntou o André.
- Ainda que mal pergunte, quem são vossas senhorias?
- É o 3º Regimento de Infantaria, da Praia Vermelha.
Estavam os nossos fartos de saber, pois até então esse
Regimento fora duas vezes recomposto, em consequência da
pontaria do 8º.

73
O André voltou-se solene para o Mário, que era o chofer e
ordenou:
- Dê marcha ré. Nós erramos o caminho e temos de
estabelecer ligação com outras forças. O cavalariano estava
despistado e nossa gente salva, se não fosse o sargento
Mario, que, não compreendendo o truque do André,
obtemperou:
- Qual o que tenente. Vossa senhoria está enganado. O
caminho é este mesmo. Esse desgraçado é carioca, nosso
inimigo.
Nessa altura o carioca (cariocas eram chamados os
adversários) olhou para o bibi do chofer, onde estava
escrito: 8º B.C.R. TERROR DOS CARIOCAS.
Abriu a boca no mundo:
- Às armas! Inimigo!
O André não foi mole; pirou logo. Saíram, porém, soldados
inimigos de todos os lados e prenderam o outro oficial, o
Mário, o Antoninho e o respectivo F. M., além de um
caminhão. Tudo pela burrada do Mário.
Depois disso o Ciro Freitas Guimarães, primo do
prisioneiro, comentava:
- O Antoninho deve ter apanhado muito, porque, com certeza,
disse desaforo à beça.

*
* *

CRISTALINO

Um moço alto, sargento do Exército Nacional. Eram dois


irmãos no batalhão, ele e o Antonio Mesquita. O Cristalino
tinha imã para granada; tiro dado sobre o 8º ia explodir na
trincheira dele. Foi ali que em uma linda tarde de agosto
foi ferido Januário dos Santos. Corria mansamente o dia,
quando, súbito, apareceram dois aeroplanos no horizonte.
Ronronavam sinistramente. Uma vaga esperança aninhava-se em
alguns corações.
- É nosso!
- Nossa é a munição que ele já vai mandar para cá.
O grande pássaro de aço passava ameaçador sobre as nossas
cabeças, roncando sem cessar. De repente uma brusca parada
de motor, uma caída sobre a aza e o silvo característico –
ooonnn... bum – Todos se atiravam de bruços. Todos não. O
Comandante Spíndola permanecia de pé, como que desafiando a
morte. Sereno, calmo, parecia não temê-la. O abutre passou
e tomou rumo das trincheiras, repretindo a mesma terrível
manobra.
Ooonnn... bum!
- Foi na trincheira do Cristalino!

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Momentos depois após o telefone tilintava. Pediam a
padiola.
Primeiro desceu um soldado com a perna varada por um
estilhaço, logo depois vinha o Januário, pálido de morte,
deitado, as mãos cobrindo o ventre. Já a ambulância estava
esperando e o levou para Cruzeiro, onde foi operado. Dois
dias após era dado à sepultura. Sua morte fora
consequência de uma imprudência. Quando os companheiros se
deitavam no fundo da trincheira, ele, indiferente ao
perigo, sentara-se num barranco. A granada explodira, indo
um estilhaço penetrar-lhe o ventre, alojando-se junto da
coluna vertebral, depois de algumas perfurações nos
intestinos.
Pobre Januário!
Nesse dia ainda desceu outro. Era um rapaz louro; vinha
como que aparvalhado, sem articular palavra. Eu e o
sargento Canto o tomamos nos braços, conduzindo-o até o
automóvel. No hospital ele articulou algumas palavras.
Perguntando sobre o que sentia, pelo Dr. Navajas, disse,
mostrando o flanco:
- Levei um soco aqui.
Estava em estado de choque, pela violenta deslocação do ar.
Nesse dia o Cristalino acertara no milhar, como se dizia.
Apareceu mais tarde. Vinha ainda mais branco e mais gago,
engolindo em seco, como se a granada se lhe tivesse
atravessado na garganta. Lutou como um valente o
Cristalino.
Tinha uma cisma com uns meus calções azuis. Ainda hei de
dá-los ao Cristalino... na próxima revolução.

*
* *

PAULO CASTRO

O Paulo era, como se dizia na gíria, como o macaco. Só


queria gozar. Tudo lhe era pretexto para boas gargalhadas.
Um farrista notável, não perdia vaza. Folgazão como só ele.
Lutava gracejando. De uma feita apareceu-me na Intendência
e vestiu-se de cabeça aos pés. Ficou como um dândi e... foi
de novo para a trincheira. Não sei o que fez com tanta
roupa em acomodações tão pequenas.

*
* *

NUNO BRAGA

Moreno forte, meio rengo, falando apressado, o Nuno nunca


estava parado. Enérgico, dava ordens rispidamente. Sua

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rispidez, porém, era apenas externa, porque o Nuno era de
índole boa. Um dia amanheceu azucrinado e, chegando-se ao
terreiro, deu com o Buick, um soldadinho brejeiro, vestido
com uma longa blusa de lã. Não se conteve.
- Que é lá isso, seu Buick? Aparecer assim, apaisanado no
P.C.?
No dia seguinte encontrei o Nuno em mangas de camisa,
chapéu de palha, sem perneiras.
- Que é isso, seu Nuno; apaisanado junto do P.C.?
- Ai, seu doutor, desta vez vossa senhoria me apanhou no
artigo.

*
* *

GURMECINDO

Pouco contato tive com o Gurmecindo, em campanha. É que


quase sempre, ele se incumbia de longínquas posições, como
no célebre setor da Boa Vista, para onde o comando de
Pinheiros mandava gente por castigo.
O Gurmecindo terminou a campanha como 1º Ten, depois de um
labutar constante.

*
* *

HERMETO

Era 1º Sgt da ativa do Exército Nacional. Serviu pouco


tempo, por ter sido apanhado por teimosa moléstia, que o
reteve ao leito muito tempo. Em Pinheiros desaveio-se com o
comando, retirando-se do Batalhão. O Hermeto era nosso
velho conhecido. Sempre foi um militar dedicado e bom
companheiro.

*
* *

FRAGOSO

Era da ativa, como o precedente. Falar do Fragoso é falar


da própria dedicação militar.
Todas as posições difíceis, distantes, quase inacessíveis,
foram confiadas ao seu esforço. Quando se queria dizer que
um lugar era longe, dizia-se: é lá para os lados do
Fragoso. Tão distante ele ficou, nas últimas posições, que
tivemos de estabelecer um posto para o reabastecimento e
remuniciamento numa aba de morro, com cargueiros e

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caminhões, entregue ao comando do Fernandes. Foi
sucessivamente promovido até capitão, pelos inolvidáveis
serviços que prestou. Bom, amável, feitio alegre, está S.
Paulo a dever-lhe larga soma de dedicados serviços. Não se
esqueçam disso os paulistas.

*
* *

QUEDA DE QUELUZ

A reorganização militar do 8º Batalhão de Caçadores da


Reserva, não importa dizer que ele tivesse terminado a
série dos reveses com que se iniciou na luta pela
constitucionalização do país. De então por diante, todos os
reveses ele os enfrentou com ânimo forte, efetuando com
segurança todas as operações de guerra.
Nesta altura, manda a lealdade que se diga sem rebuços, que
o 8º estava com fama de tropa de má qualidade, olhada de
soslaio e com desconfiança.
O mal não estava na rapaziada ou na disposição com que se
apresentavam. Era, apenas, falta do treino de campanha,
coisa que adquirimos, tomando desde logo posição tão
avantajada na guerra, que o Coronel Euclydes Figueiredo
dizia que atrás de uma linha guarnecida pelo 8º, ele dormia
descansado.
Entrementes a situação de Queluz tornava0se cada vez mais
precária. O Cap Trigueirinho, da Força Pública, servindo no
Q.G do Coronel Theophilo Ramos, também da Força Pública,
(que mais tarde deveriam ambos tomar parte tão saliente no
desfecho da luta) seguiu comigo para Cruzeiro, em máquina
da Central. Eu me dirigia à Cachoeira, para onde continuei
no automóvel de linha. Trigueirinho conferenciou
telefonicamente com o Comandante Geral da F. P., expondo
com franqueza a situação. Eram necessários reforços
urgentes, pois o inimigo, mais bem armado e otimamente
municiado, ganhava terreno. Em caminho conversamos
longamente. Com aquele seu feitio amável expôs detidamente
os fatos. Ia tudo muito mal. Não havia armas automáticas,
munição escassa, poucos oficiais. Esta última revelação
causava-me verdadeiro estupor, porque em todo o trajeto,
para onde quer que se viajasse, viam-se carros de Estado
Maior, as sedes do Quartel General, as posições de
retaguarda, enfim, atopetadas de oficiais de todos os
matizes, do “pátria amada” ao do Exército Nacional,
especialmente estes. Cachoeira era um enxame.
Na manhã seguinte regressei a Queluz em trem especial do
Major Euclides Machado, que vinha em nome do Comando Geral
da Força Pública, verificar visualmente. Trocamos longas
impressões, repeti-lhe o que ouvira do Cap Trigueirinho e

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ele a tudo prometia providenciar. Ali mesmo, naquele vagão,
dizia, trouxera todos os oficiais que estavam no Q.G.
Outros viriam. De fato, encontrei um automóvel de linha, da
Companhia Paulista, cheio deles.
As providências, entretanto, foram tardias. Ouvia-se da
cidade o pipocar da fuzilaria, cada vez mais próximo. A
ponte sobre o Paraíba fora minada, pondo-se sentinelas em
suas pontas, para evitar imprudências. O tenente Lima
substituíra o tenente Fernandes no comando da 2º Cia.
Nossas forças foram tomar posição no caminho de Areias, no
lugar denominado Capela de S. Roque. A luta se estabeleceu
titânica. O 8º não cedia um passo. Era bala por bala. O
Comandante Spíndola, como sempre, pois, a atuação desse
homem nunca ofereceu altos e baixos – era uma e firme. Mas,
a situação geral piorava.
A 10 de agosto o Coronel Theophilo, que comandava o
Destacamento, deu ordem de retirada
O P.C. e o pronto de socorro, seguiram logo para Cruzeiro,
em caminhões, pernoitando no lugarejo de Pinheiros, que
mais tarde seria teatro das nossas maiores glorias. A tropa
seguiu a pé, carregando todo o material de guerra. Pela
madrugada de 11 chegou a Silveiras, dirigida pelo
Comandante Spíndola, onde, tomados os caminhões, atingiu
Cachoeira, vindo daí para Cruzeiro, pela Central.
Foram trinta quilômetros , a mata a dentro, por um trilho
que mal deixava passar um homem. E aquela fileira
interminável, vergada sob o peso dos fuzis, Fuzis
Metralhadoras e das pesadas, caminhava de ânimo satisfeito,
sabendo que na guerra um revez não representa derrota, mas
constitui incentivo para novas pelejas. É um axioma
militar, que muito mais difícil é a retirada que o avanço.
Se é verdade que as grandes batalhas imortalizaram muitos
generais, não menos verdade é que as retiradas constituíram
páginas imarcessíveis na história das guerras, inspirando
a Retirada da Laguna, de Taunay e o Anábase, de Xenofonte.
Na retaguarda crepitava o fogo da queimada, complemento
forçado das retiradas. Não perdemos um homem. Tudo são e
salvo. O sacrifício imenso que despendera o 8º era apenas o
cumprimento solene da jura que fizéramos – TUDO POR S.
PAULO!

A ponte foi dinamitada, com grande tristeza para mim e par


ao meu sobrinho René, que perdemos nossos automóveis,
postos, sem requisição, ao serviço da nossa força. A ponte
saltou antes que eles tivessem passado e só nos ficou o
consolo de deitar-lhes fogo, para evitar o aproveitamento
pelo inimigo. O de René era um Ford novo em folha. Viva S.
Paulo!
Esta retirada valeu ao 8º o primeiro elogio, partido desse
homem parco em gestos como esse, o comandante Spíndola e,
por isso, mais relevante.

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Disse o boletim nº 5, de 12 de agosto:

“Quer este comando deixar expressa sua satisfação, pela


maneira briosa por que se portou a tropa durante a retirada
da Capela de S. Roque até esta cidade, dando, em todos os
instantes, prova eloquente do alto espírito de patriotismo
e abnegado sacrifício que a anima, em prol da causa que ora
move o Exército Constitucionalista.”
“Louvo-a, por isso, e concito-a a manter, sempre, esse
mesmo estado de ânimo, pois que, dessa forma, abreviaremos
a consecução dos fins objetivados nesta campanha”

O elogio do Comandante não caiu em saco furado. A tropa o


tomou em seu verdadeiro sentido, escrevendo as páginas mais
brilhantes da campanha constitucionalista, em que se
empenhou S. Paulo contra o Brasil.

*
* *

JOÃO PINHO

Somente no boletim do dia 13 foi dada baixa a João Pinho,


morto gloriosamente no combate do Salto, no dia 2, Não
cheguei a conhecê-lo, a não ser pela tradição que deixou
entre nós. Era valente e destemido. O desastre do Salto
custou-nos caro, porque além dessa morte tivemos muitos
feridos e extraviados, tendo custado, quase a dispersão da
tropa toda. Só o ânimo bandeirante e a grandeza de nosso
ideal impediu que nos dissolvêssemos, o que também nos
impediria de vingar a morte do companheiro tombado.
Caído João, seu irmão Waldomiro o amparou nos braços.
Ele e Leopoldo Monteiro. Debalde procuram chamá-lo à vida.
Inútil. Ele já se desprendera do invólucro que conduzira
com tanta bravura, alando-se par ao infinito, para lá, do
alto, nos acompanhar e abençoar pelo restante da campanha.
Glória a ti, João Pinho, que soubeste, com o sacrifício,
mostrar aos companheiros que ficavam que a morte é melhor
que o cativeiro.
Possa teu sangue moço e quente regar a árvore da liberdade
que replantamos no solo de Fernão Dias e que se há de
esgalhar por nossa terra, recolocando-nos na posição que o
nosso trabalho conquistou.
Gloria a ti, João Pinho, nosso primeiro mártir, nosso
querido irmão. A tua memória viverá para sempre no coração
da tua gente.

*
* *

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PINHEIROS

A 14 de agosto seguia o valente 8º para Pinheiros, com a


organização anterior e um efetivo de 240 homens. Íamos
servir no Destacamento do Capitão Tito Lamego, o de Queluz,
já arvorado em tenente-coronel. Era chefe do seu Estado
Maior o capitão, depois major e tenente-coronel Celso
Veloso.
Eram seus oficiais o tenente Álvaro, um homenzarrão forte,
barba preta, a bondade em pessoa; tenente Godói,
encarregado do material bélico, um homem miúdo, amável,
prestativo. Ambos eram primeiros sargentos do Exército
Nacional, comissionados.
Pinheiros é uma pequena localidade, embora sede de
município. Havia lá uma figura estranha – o Prefeito, cujo
nome nunca eu soube. Era miguelista, transformado, agora,
no mais ardente constitucionalista. A virada era
explicável. O coronel Novais era o chefe perrepista do
lugar. Ao estalar o movimento, com as costas quentes por um
famoso capitão Varela, o comandante militar da Praça, o
Prefeito invadira a casa do seu adversário, virando-a pelo
avesso, sem respeitar, ao menos, o dormitório da
excelentíssima senhora daquele político. O que não foi
saqueado, ficou inútil, inclusive um estabelecimento
comercial de varejo. Visitei essa casa e pude constatar a
“valentia” do homem. Exibia em plena face um formidável
tumor canceroso, que lhe tomava parte da boca. Seus
adversários diziam: “Deus que o marcou é que alguma coisa
nele encontrou!”.
A localidade é pequena; cinco ou seus ruas. Ao centro uma
igreja reformada em suas partes dianteira e traseira, com a
média caindo aos pedaços. Templo espaçoso e antiquíssimo,
em meio de uma colina fortemente inclinada e tendo a um
lado o cemitério, em lamentável estado de abandono.
Terra pobre, embora cercada de ótimas fazendas.
Lá conhecemos as do Major Pinto e Coronel Emiliano Novaes,
que foram amabilíssimos com a nossa tropa, fornecendo
abundantemente ótimas laranjas, galinhas e até um peru.
Boa gente, paulista da gema, que tudo fazia por nos
agradar.
Pinheiros, como já disse mais de uma vez, foi teatro das
nossas maiores glórias, pois ali combatemos e dizimamos o
inimigo durante trinta e dois dias ininterruptos. Basta
dizer que o 3º R. I. (Regimento de Infantaria), da Praia
Vermelha, com efetivo de 1.600 homens, colocado frente a
nós, foi duas vezes recomposto, voltando, afinal, com um
efetivo de 700 homens.
Nosso pessoal tinha boa pontaria...

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* *

O COMANDO DO SECTOR

Já ficou esclarecido que era comandante do sector o


tenente-coronel Tito Lamego, servindo como chefe do E. M. o
Cap Celso Veloso. Mais tarde, com a retirada de Lamego,
Veloso assumiu o comando, vindo para o E. M., o Maj Mena
Barreto.
Falarei, portanto, primeiramente, dos novos chefes.
Do Ten Cel Lamego já alguma coisa ficou dita.
Era um homem pequenino, mas entroncado.
Não diremos que fosse medroso, mas... cauteloso, ele era.
Sempre mal humorado, reclamando munição. Parecia um
obsedado. Metido em um sobretudo preto, um capacetezinho de
campanha enterrado até as orelhas, ia e vinha como se fora
a estátua do desânimo. Não fazia cerimônia para pregar seu
derrotismo. Fosse diante de quem fosse, ele rompia em
explosões. Não era, porém, malcriado como o seu
companheiro, embora este fosse muito mais militar.
O Coronel Lamego andava embeiçado por um sargento do E. N.
(Exército Nacional), comissionado em 2º Ten e
sucessivamente promovido até Capitão, e que ele julgava um
herói.

De uma feita recebi a visita do meu amigo Leôncio Perez, de


Lavrinhas, que de automóvel, em companhia de um Tenente,
vinha trazer a bandeira do nosso Batalhão, guardada desde
muito naquela localidade. E como o Sr Perez tivesse umas
requisições para regularizar, fomos ao Q.G. O Coronel
Lamego, nesse dia, “estava por conta do a
à toa”. Mandou que o senhor Perez se entendesse com o
tenente Álvaro e, reparando no tenente, perguntou
asperamente:
- E o senhor, que veio aqui fazer?
O rapaz perfilou-se e informou que viera trazer a nossa
bandeira.
- Por que não me trouxe dez cunhetes de munição?
- Porque ninguém nos entregou isso. Respondeu o moço com
firmeza.

O Lamego “perdeu a chave” e explicou:


- Eu não desdenho da bandeira nacional. Mas aqui está
faltando é munição.
Nas vésperas da queda de Pinheiros correu um boato
celeremente pelos nossos meios – O Lamego pirou.
Tinha se exonerado do comando, indo dirigir... sapadores e
abrir trincheiras.

Dizia-se que ele, certo dia, tivera esta tirada:

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- Eu nada tenho com isto. Apenas estou aqui por ser amigo
do coronel Andrade; nem sou paulista.
Se não fosse um oficial, já me teria entregado.
Apesar da boa fonte, donde proveio a informação, não posso
abandoná-la. Dizia-se também que o coronel Lamego sempre
nos tratava delicadamente, salvo nos seus naturais momentos
de mau humor, Veloso era sempre indelicado, A queixa contra
ele era generalizada. Mas, era um valente soldado,
competente e cuidadoso. Se não deu remédio à posição de
Pinheiros, é porque já pegou o comando muito tarde. Era um
homem alto, magro, pardo, bem posto, trajando-se
decentemente, sempre com um chapéu de cortiça, senho
carregado, como se fora um feitor. Tinha solene implicância
com os “pátria amada”.

Quando tive de processar a folha de pagamento de agosto, o


nosso comandante oficiou ao do setor, pedindo apresentação
ao Quartel General de São Paulo, como era praxe nos outros
lugares onde tínhamos servido. Veloso negou logo e
asperamente quis justificar meu batalhão, explicando que o
major Novaes, chefe do Serviço de Intendência, em
Cachoeira, exigia sempre.

Para que eu fui dizer isso? Veloso deu com o punho cerrado
na mesa, que não se partiu pelo muito cuidado que o
marceneiro tinha tido no escolher a madeira. Fosse o major
Novaes mandar na casa dele, que ele mandaria na sua.
-Perdão capitão, atalhei logo, o major Novaes não faz
exigências. Não estou me queixando dele. É mesmo um homem
muito amável, que sempre me tratou com a maior
cordialidade.
- O senhor está tocando numa tecla que irrita. Eu também
nunca o desconsiderei.
Era demais e respondi com energia:
- Isso não, o senhor não tem feito outra coisa. Grosseiro,
não comigo, mas com todos. As queixas são aqui
generalizadas.
- Pois vão queixar-se com o bispo!
- É a prova do que eu estou dizendo – grosseiro.

O caso parou ai e ele não me deu o ofício, mas, no salvo-


conduto, declarou o que devera declarar no ofício.
Não foi preciso que nós nos queixássemos ao prelado da
diocese, o virtuoso D. Epaminondas. Dias depois Pinheiros
caia. O já Cel Veloso foi para a estrada e defrontou-se com
um grupo de soldados, que se retiravam, comandados por um
tenente.
Pôs-se à frente dos rapazes e, gritando com o comandante, o
chamou covarde. Ato contínuo a força aperrou as armas,
intimando-o a retirar a frase, sob pena de fuzilamento. E
ele a retirou tranquilamente.

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O tenente fizera as vezes do bispo.
Mas o coronel Veloso era um soldado de verdade, competente,
leal, inteiramente integrado na causa constitucionalista.
Faço-lhe justiça e, por isso mesmo, não lhe guardo rancor
ou animosidade. Basta ter sido um defensor decidido de S.
Paulo.
Devemos, agora, descrever o cenário das operações.

*
* *

O SERVIÇO DE SAÚDE

O hospital estava instalado no prédio do grupo escolar, o


melhor da localidade. Instalações muito rudimentares, pois
se tratava mais de um posto de saúde, dadas as instalações
hospitalares de Cruzeiro. Era chefe dos serviços o Cap
Klier, do Exército Nacional. Como médicos civis serviram os
clínicos de Santos – Dr Marcílio, Dr Clóvis de Lacerda, Dr
Hugo Ribeiro, Dr Emílio Navajas Filho, comissionados em
capitães e, por uns dias, o Dr Runes, além do Dr Leonel
Pereira da Cunha, do 8º B.C.R.

Além dessas pessoas e dos enfermeiros, morava no hospital o


nosso capelão, Padre Israel, um valente paulista, lente do
Seminário de Taubaté. O Padre Israel se apresentava de
batina aberta na garganta, para que se visse que debaixo da
sotaina estava a farda. Nos momentos difíceis costumava
também por um formidável parabelum. Quase sempre de
capacete de aço, folgazão, jovial, falava carregando
extremamente nos érres. Sua saudação habitual era um álacre
“sim senhorrr”...
Na missa era engraçado vê-lo, no final, aos pés do altar,
rezando a Salve Rainha:
- Sarve rainha, mãe de Misericórdia. Vida doçura, esperança
nossa. Sárve!
Era o encarregado dos enterramentos, função de que se
desempenhava com a maior solicitude, rezando também as
missas pelos mortos.
O Dr Hugo Ribeiro não era um homem; era um vagão
restaurante. Tinha sempre doces, biscoitos, chocolates. Até
bons agasalhos distribuía de quando em vez. Costumava
envolver o pescoço em um lindo “cachecol” feito com as
cores da bandeira paulista. Os demais médicos, notadamente
Clóvis e Navajas, completavam o quadro dos magníficos dias
de boa camaradagem que ali passamos.

O Clóvis era genioso. Quando desabou um abrigo nas


trincheiras do Capitão Sandim, este, perdendo cinco homens

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soterrados, atribuiu a culpa aos médicos. Respondeu-lhe
energicamente Clóvis, chefe do serviço indo quase às vias
de fato. Navajas ia até as linhas de fogo buscar mortos e
feridos.
No hospital tivemos alguns casos interessantes.
Um soldado do 5º R. I. foi apanhado pela carga de shrapnel.
Ficou com o corpo crivado de ferimentos levíssimos,
buraquinhos na pele, pintados logo com iodo e posto o
ferido em serviço. Um outro pintou também a testa com iodo,
porque uma bala, furando o capacete de aço, fizera com que
o rebordo deste lhe arranhasse a cabeça.
*
* *

A TRINCHEIRA

Materialmente falando, a trincheira é um fosso que se abre,


para abrigar o soldado contra as balas adversárias. Mas por
trincheira não se deve tão somente entender esse abrigo,
mas alguma coisa mais, um todo de circunstâncias, de
aspectos, de costumes, que fazem o encanto da vida de
guerra. A trincheira é como se fosse a nossa casa. No
“ninho”, o soldado se deita e ao fim de certo tempo, como
que ele toma o jeito do corpo. Tudo na trincheira nos
prende, encanta e seduz. A boia na hora certa, a água
escassa por ter de vir de longe. As costas de um
companheiro, o pipocar das balas nos parapeitos, o roncar
sinistro do avião sobre a cabeça, o obus que rebenta
próximo, atirando mil estilhaços por cima da barranca, o
chuveiro do schrapnel que se encrusta em derredor, o
vocabulário... ah! O vocabulário da trincheira!
Chama-se aos companheiros nomes que, na cidade, teria como
imediata resposta um tiro.
Merda é corriqueiro e serve para exprimir tudo; do ótimo ao
infame. Quando um combate estava no auge, desafiando o
entusiasmo: - “nós entramos naquela merda com vontade”.
Quando se pede ao companheiro, por empréstimo, um agasalho
fino ou um objeto caro: - “empresta-me essa merda”. Quando
a boia não presta: -“levem para fora essa merda”.
Aliás, na trincheira, os palavrões assumem as nuanças mais
delicadas do dicionário. Há elogios que não se prodigalizam
a qualquer... Enfim, a trincheira é um mundo a parte, que
só pode conhecer quem nela penetrou. Tem o condão de
apertar os homens por um vínculo estreito de solidariedade.
Dois inimigos que seriam capazes de se comerem no lardo do
Rosário, ali dariam a vida, um pelo outro. Quantas vezes eu
a vi como um traço de união, onde os preconceitos sociais
cavavam abismos. Ali não há cores, nem condições. Tudo é
igual debaixo do cáqui da farda, porque iguais são todos na
defesa de um ideal, que anima igualmente as consciências.

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Materialmente, o fosso é de diversas formas. Em longas
retas, interrompidas, em curvas, em zigue-zague, em grega,
de mil modos, conforme a posição e a probabilidade de ser
varada, isto é, atingida de flanco pelo adversário. As boas
trincheiras têm abrigos, onde o soldado se acolhe na hora
do bombardeiro e que consiste em um buraco, cavado na
parede, na direção do fogo contrário. São cobertas pela
lona dos impermeáveis, com o anteparo dos sacos de terra ou
areia. De espaço se fazem os “ninhos”, onde são instaladas
as metralhadoras pesadas, que por isso mesmo são chamadas
“pata choca.”

*
* *

A BOIA

Na campanha não há o toque de rancho dos quartéis. Pela


manhã eu me levantava, cerca de 4 horas e ia à cozinha,
verificar se tudo estava a postos. Ao dar os bons dias, o
sargento Mário, chefe, dizia-me imperturbavelmente:
- Pronto, seu tenente. Nós somos madrugadores e joviais.
Em enormes caldeirões de alumínio, muito limpos, a água
fervia. Eu voltava para o leito e cochilava ainda um pouco.
Pelas 5 horas vinha um ajudante de cozinha:
- Seu tenente, está tudo pronto.
- Sargento Canto, gritava eu, café.
- Pronto, seu “pátria amada”.
Frio de rachar os ossos, mais frio, porém devia estar para
os soldados que haviam velado a noite toda, enrrodilhados
no ninho da trincheira ou rondando nas perigosas patrulhas
avançadas.
Carregávamos o caminhão. Café, bolachas, pão, cigarros,
fósforos, agasalhos, correspondência, jornais, cartões em
branco, papel, envelopes, lápis, tudo, enfim, que tivesse
utilidade.
Rumávamos para o P.C. Onde éramos recebidos com verdadeiras
casquinadas de alegria E enquanto nos davam os soldados,
muito alegres, os bons dias, informava-mos das ocorrências
da noite e nos azucrinavam o juízo com mil e um pedidos.
Não poucas vezes tivemos, eu e o Canto, de dar-lhes os
próprios agasalhos que trazíamos, porque eles davam sumiço
a tudo. Entregávamos e ficávamos ao frio. Mas aqueles
rapazes eram como que pedaços dos nossos corações.
Com o prelúdio de qualquer pedido mais afoito, vinha logo
um “papo”.
- Seu tenente, dizia-me o “Trinta Kilos”, a coisa esta
noite não foi sopa. Eu estava de vigia, quando ouvi um
barulho na grota. Pensei que fosse caça, mas ouvi fala.

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Taquei mecha na negrada e foi um correr que Deus nos acuda.
O italiano passou logo o F.M. que foi uma derrota!
- Muitos mortos ou feridos?
- Ainda não se sabe. Adora de dia, com o sol, é que a gente
vai ver. Também essa gente é danada. Não deixa ninguém;
carregam tudo. Seu tenente, o senhor não terá por lá mais
algum pulove como esse seu?
- Não, não tenho mais, era o último.
- Quem sabe se o senhor me dava esse mesmo? Depois, com
mais facilidade arranjava outro. Olhe que na trincheira faz
frio...
O “Trinta” é o Antonio Duarte Neto, filho do Duarte da
Recebedoria de Rendas. Eram dois irmãos, ele e o Juca,
cada qual mais folgazão e melhor soldado.
Pelas onze horas, almoço. Feijão, arroz, carne, batatas,
bacalhau, xarque, bananas, laranjas, farofas, “corned-
Beef”, era a comida habitual, abundante e sadia.
Algumas vezes me perguntavam se havia muito salitre na
comida...
Gente terrível!
A tarde não havia propriamente jantar. Era um lanche forte.
Farofa e café. Bifes com ao e café, este invariavelmente.
Macarronada e carne. Mas tudo à vontade. Doce e chocolate,
de vez em quando.
A boia era transportada do P.C. para as trincheiras, em
meias latas de gasolina, com tampa e alça. Quase sempre à
hora do almoço, aparecia o “pemba” vermelho. Roncava por
cima da gente e, nesses momentos, ficava-se rouco de
recomendar aos rapazes que se escondessem, para não
denunciar o acampamento. Era inútil. Lata às costas,
capacete de aço, tudo reluzindo ao sol, lá iam eles subindo
pelos caminhamentos, tranquilos, calmos, indiferentes, como
se a morte não lhes estivesse rondando de perto. Súbito –
pá, pá, pá... uma rajada de metralhadora. Podiam atirar,
ninguém estugava o andar.

*
* *

PESSOAL DA INTENDÊNCIA

Muitos rapazes serviram comigo na Intendência do 8º B.C.R


(Batalhão de Caçadores da Reserva). De todos guardo a
melhor lembrança, excetuando um, cujo nome aqui não
escreverei, para seu castigo, e que sempre serviu de pomo
de discórdia. Canto, Álvaro Melo, Pires Lopes, Chancharulo,
Julio Soulié, Leopoldo Azevedo (Dino), Orlando Chasseraux
(Chassa), Fernando Carilo, José Camargo Soares, André

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Freire, Ciro Freitas Guimarães, Carvalhal Filho, Bernardino
Rodrigues, Otelo Mauri e muitos outros. Revesavam-se.
Vinham uns e iam outros.
A chegada do Dr Carvalhal Filho foi solene. Muito baixo,
gordo, a farda tanto poderia servir nele como no senhor
Getúlio Vargas. Vinha com apresentação do Cel Euclydes,
para ser incorporado ao Batalhão, onde tinha um filho, o
valente João e um genro, meu sobrinho René. Do Q.G. foi
para nosso P.C., donde, por sua vez, o encaminharam para a
Intendência.
- Pronto, Samuel. Vim servir sob seu comando. Mas quero
serviço e trabalhar de verdade.
Eu estava gostando daquela disposição.
- Olha João, a cana aqui é dura.
- Que é dura eu sei, Hoje vou instalar-me. Arranje-me uma
cama.
A muito custo arranjou-se-lhe uma catre, um colchão e um
travesseiro.
- Fronha e lençol?
Uma gargalhada estalou pela sala.
Eram trastes desconhecidos naquelas bandas.
Não obstante ele não descansou. Arranjou uns caixões e fez
alguns moveis. Faltando qualquer coisa, saiu a procurar. Na
volta encontrou junto de sua cama... uma mamadeira cheia de
leite. Achou muita graça, e no dia seguinte, começou o
serviço regular de correio, até que foi nomeado agente de
ligação entre o nosso Corpo e o Q.G. do Cel Sampaio, em
Guaratinguetá, prestando serviços até as vésperas do
armistício, quando teve de acompanhar a S. Paulo, seu filho
Osvaldo, também incorporado, em consequência de uma
operação.
O Dino era uma preciosidade. Fazia doces, bolos, bons
pratos; pregava galões nas fardas, emendava lenços para
fazer toalhas, cuidada da arrumação das casa e das coisas,
sendo extremamente cuidadoso; dava as roupas a lavar e mais
serviços de uma boa dona de casa. Ficou, por isso, com o
apelido de D. Dulce.
Ainda hoje sinto falta de dona Dulce.

O Chassa sofria de uma pleurite que o impedia de ir para a


trincheira. Mal chegava a ela, vinha-lhe febre. Serviu
muito bem na Intendência. Cumpria rigorosamente as ordens
recebidas, com Valdir Porchat, de quem era muito amigo. O
Valdir, coitado, de saída levara uma bala na perna que pôs
rengo. Mal entrou em combate, pela primeira vez, feriu-se.
Várias vezes tentou voltar, mas inutilmente. Contava-se que
mal o Valdir entrava na trincheira, uma bala perdida
aparecia ziguezagueando e perguntava por ele. O Soulié era
medico dos automóveis. Revistava-os todos os dias,
concertando os defeitos. Em realidade, de concerto estava
ele precisando. Ferido em P. Morais, andou muito tempo

87
extraviado, até que apareceu carregando seu inseparável
fuzil, a que ele chamava “boneca”. Naquele combate ficara
meio soterrado, donde ter-se-lhe deslocado um rim. Andava
tristonho, até que não mais resistiu e foi licenciado.
O Álvaro Melo fez jus ao apelido sargento Boa Vida. Não
havia folga que não aproveitasse para dormir. Uma vez o
Ladeira chegou à Intendência e o encontrou dormindo.
Retirou nove fuzis que lá estavam guardados e os recolheu
ao material bélico, contando-me o fato muito depois. O
Melinho só por mim soube do caso. Era rapaz de confiança e
acabou indo para a trincheira.
Pouco tempo esteve o Ciro na Intendência, apenas enquanto
convalesceu de uma gripe intestinal. Muito inteligente e
carinhoso, soldado consciente, deu ótima conta do recado,
cercado de muita estima. Pires Lopes e Chancharudo eram
sargentos reservistas do E. N. (Exército Nacional) e
exerciam funções de sargenteantes, aliás, a contento geral.
O Pires sabia novidades como ninguém. Seis dias antes do
armistício, ele me comunicou o verdadeiro pé da situação.
Não acreditei, mas os fatos confirmaram. Em S. Paulo,
falando das negociações para a paz, ele me disser
exatamente o que aconteceria, dias antes do final. É
jornalista. O Chancha era exatíssimo nos serviços e,
despida a farda, apareceu-me um autêntico almofadinha.
Do meu pessoal restam três tipos, ou melhor, dois, porque o
terceiro, embora muito meu afeiçoado, era ordenança do
comandante – o cabo Sebastião Caetano da Silva. Dos outros
dois já tenho falado – o Canto e o cozinheiro Mario.

Quando ouço falar que em outros setores a guerra se


desenvolveu em um ambiente execrável de traições, fico
admirado, porque, entre nós a regra era a absoluta
lealdade, o espírito de sacrifício elevado a mais alta
potência.
Os três nomes acima não fugiam a essa regra.
O Caetano era conhecido pela alcunha de Índio, por ser, de
fato, um aborígene do Amazonas. Era curioso vê-lo
pronunciar algumas palavras da sua língua, quando alguém
queria bromar com ele. Ordenança do comandante, era como
que a sombra mesma do seu superior. Bronzeado, troncudo,
carregava sempre umas armas antidiluvianas, nas quais,
aliás, punha a máxima confiança.
O comandante tinha o vício de chupar cana. O Caetano, o de
procurar cana para o comandante. Seu único defeito era, de
vez em sempre, apanhar uma carraspana. Nessas ocasiões
Spindola se enraivecia e o mandava “deportado” para a
Intendência. Ao cabo de três dias me aparecia em casa, a
pretexto de uma visita ou outra qualquer coisa. Eu já sabia
apreciar a sinceridade do companheiro. Para mim o Caetano,
além de particular afeição que me voltava, tinha alguma
coisa que me prendia o coração: uma amizade dedicada por

88
meu filho Paulo, que fora soldado, como ele, na Milícia de
Santos. Eram muito amigos, apesar da enorme diferença de
idade, pois era homem de cerca de 40 anos, ao passo que o
Paulo mal dobrara os 15. O destino os separou. Caetano para
o Norte, Paulo para o litoral. Mas nunca se esqueceram.
Muitas vezes, em uma roda, o Caetano contava proezas do
arco da velha. Eu supunha ser algum “papo” referente a ele,
aproximava-me sem ser percebido. Eram “papos”, mas do
Paulo, a quem ele elevava às nuvens, descrevendo-lhe as
qualidades e mostrando, no fim, uns santinhos que meu filho
lhe dera.

O Mario era preto como azeviche. Mas a cor tingia apenas a


epiderme. Seus sentimentos eram imaculados. Na retirada de
Pinheiros conduziu num caminhão, de Lavrinhas para
Cruzeiro, quase metade do 8º B.C.R. Cada vez que ele partia
em busca dos companheiros, alguém lhe dizia que o caminho
já estava cortado. Ele me recomendava a família e partia
desassombrado.
Antes de ser chofer fora cozinheiro. Um dia cismou que ia
ser substituído. Na manhã seguinte, quando eu ia seguir
para o acampamento, apareceu-me Mário todo fardado de novo,
capacete de aço, mochila nas costas e fuzil a tiracolo.
- Pronto seu tenente. Estou para ir para a trincheira,
antes que me mandem.
Eu olhei para aquela figura exótica e não me contive de
rir.
- Descansar armas, ordenei. Vá para a cozinha, seu
pernóstico. Antes, porém, venha tirar o retra, que eu não
posso perder essa chapa. E fi-lo fotografar.
Um paulista de verdade.

O canto; o grande Canto; o impagável Canto. Um número.


Sargento reservista do E. N., era esse seu maior padrão de
gloria. Ao menor contratempo, empertigava-se e dizia:
- Eu não sou “pátria amada”, heim! Terceiro sargento do
Exército. Vê lá como te portas comigo, do contrário te
fomentas direitinho, como manda a lei!
Era-me impossível passar sem ele. As vezes cisamava e ia
para a trincheira do Cristalino, Seu velho amigo. Dias
depois o serviço estava encrencado. O comandante reclamava
e eu respondia invariavelmente: - mande-me o Canto.
Um dia o comandante mandou chamá-lo. Que descesse e viesse
para a Intendência, assumir a chefia do abastecimento.
Mandou-lhe um bilhete e daí há pouco estava o Canto na
Intendência com a “muamba” toda.

*
* *

89
A MUAMBA

Tudo quanto o soldado tem, guarda dentro de um saco. É a


sua fortuna. Fardas, perneiras, sapatos, canecas, canecas,
mantas e, principalmente, o que “desaperta” dos
companheiros. O “desaperto” é mais forte que a disciplina e
o companheirismo. Chama-se “desapertar” aquilo que o vulgo
chama furtar. O ingênuo que deixar alguma coisa de jeito,
está “desapertado”. O Fragoso, uma noite, adormeceu
vestido. Na manhã seguinte estava sem perneiras, que tinham
sido “desapertadas” das suas próprias pernas. Conta-se que
um oficial do Exército, instruindo uma turma de
voluntários, dissera que tivessem muito cuidado com o
“desaperto”, que era cois comum. Ao terminar a instrução
estava sem o capote. Haviam “desapertado”.
O “desaperto” é quase lícito. O Joaquim Esteves era o
mestre na matéria. Na sua barraca havia um verdadeiro
bazar. Um dos nossos soldados implicava com o capacete que
tinha, tipo inglês e a que chamávamos “Xangai”. Queria um
tipo francês e foi encomendá-lo ao Joaquim.
-Para hoje eu não tenho. Para amanhã posso arranjar até
dois.
- E o preço?
- O último eu vendi por 3$000. Este eu posso deixar por
dois.
No dia seguinte o negocio estava concluído.
Nas retiradas as “muambas” são um transtorno, mas ninguém
as deixa. Há soldados que carregam duas e três. Encontrei
uma na Intendência, dada a guardar, com quatro capacetes de
aço, que, sem demora, distribui por alguns soldados ainda
desprovidos desse ótimo utensílio de guerra.

*
* *

O P.C.

Em Pinheiros tínhamos o P.C. (Posto de Comando) instalado


em uma palhoça, o comandante dormia em um girão de madeira
e o restante do pessoal, como podia, em qualquer canto. No
P.C. estava o telefone, acionado pelo Ciro Ruiz. O Ciro
resistia a todas as provações da guerra, mas quando o
aeroplano roncava, o telefone podia tilintar...
Os telefones de campanha são simples, de modo que ao
acionar a manivela, dá sinais em todos os aparelhos, e é
preciso chamar algumas vezes a pessoa com quem se quer
falar até que ela atenda.
As vezes o Ciro estava ao telefone, chamando o Q.G.
- Q.G... Q.G... Q.G...
Rrrrrroonnn, fazia um avião aproximando-se.

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E o Ciro:
- Q... Q... Q...
Ele já era um pouco gago. Gaguejava o resto.
Em Guaratinguetá, na fazenda Jararaca, o P.C. esteve
instalado em umas barracas, metidas em baixo de frondoso
cafezal. A primeira vez que lá fui, ainda dormiam. Na maior
estavam deitados, logo à boca, o Reginaldo e o Ciro; por
trás deles o subcomandante Rocha Marques. No fundo o
comandante. Curto de vista eu não vi o Spindola. Procurei-o
em volta e também não o vi. O Rocha Marques perguntou logo
pelas novidades. Eu me sentei no barranco, costas voltadas
para o fundo da barraca e abri o saco delas:
- O comandante hoje vai ficar por conta.
- Por que?
- Por que? O Fernando foi fazer um serviço em Pinda, com
que o canhão o pirou. Ele e o primo, o Padeirinho.
- Pirou?...
- Pirou, sim senhor, levando o melhor caminhão. E se fosse
isso só não era nada. O sargenteante também pirou só não
era nada. O sargenteante também pirou e não sei onde meteu
a folha de pagamento. Foi espairecer em S. Paulo. Quando o
comandante acordar temos estrilo. Ele quer que a gente ande
atrás de todo o mundo. Por que ele não anda?
Todos se riam perdidamente. Era o Spindola que acordara no
fundo da barraca e também se ria, gozando todo o meu
desapontamento quando o visse.

Súbito ele disse lá no fundo:


-Qualquer dia roubam toda a Intendência e você junto.
Voltei-me mansamente.
- Ah! O Senhor estava aí? Que mal gosto, dormir lá no
fundo. Pois, olhe, o que eu tinha a dizer já está dito.
A seguir fomos tomar café numa hilaridade que não cessava.
Quantas saudades!
No P.C. ficava o Reginaldo; o Regi, como nos o chamávamos.
Ainda agora, ao redigir estas notas, corro os olhos pelos
boletins que ele fazia, com uma paciência evangélica. Bom
menino. Menino porque, embora pelos vinte e tantos, o Regi
parece uma criança, de pequeno. Pequenino, mas de coração
grande. Em uma das minhas idas a Santos, os seus amigos de
lá quiseram mandar-lhe uma lembrança e fizeram confeccionar
um culote azul, na alfaiataria, Era uma graça o culote do
Regi; parecia de boneco.
Dia e noite ele estava alerta no seu posto. Culote e
perneiras, camisa de meia, dependurado em um enorme
revolver, cachimbo na boca, sorridente e alegre.
- E os “peixes”?
Peixes eram os boatos. Era um insaciável devorador de
peixes. Legítimo emulo, nesse particular, do Cel Sampaio.

91
* *

A LUTA

Durante 32 dias a luta se desenvolveu sem tréguas, na


região de Pinheiros. O 8º ficou firme na trincheira,
vencendo, possivelmente, uma das maiores etapas. Ao cabo de
22 dias fui pedir um descanso ao Cel Euclydes Figueiredo,
em Cruzeiro. O simpático chefe constitucionalista
respondeu-me prontamente – que tropa vou pôr no lugar de
vocês?
E enquanto alguns se matavam na trincheira, semanas e
semanas a fio, S. Paulo regurgitava de almofadinhas,
vestidos de camisas de campanha compradas na Casa Mappin,
culotes de flanela da Casa Fuchs, perneiras lustrosas,
entupindo todas as vastas repartições do M.M.D.C. e do
Correio Militar.
Nesta repartição encontrei uma vez um colega, moço, forte,
fanfarrão, desses que tem um cemitério por conta própria.
- Em que Corpo está você servindo?
- Sou estafeta.
- Estafeta?!...
-E então? É um lugar muito perigoso, por que os aviões
metralham os automóveis na estrada.
Pura mentira. Nunca me metralharam e eu traçava dia e
noite pelos caminhos. Foi isso uma lenda inventada para
disfarças covardias.
Um outro moço foi para Cachoeira e voltou logo, albergando-
se no Correio Militar. E havendo alguém estranhado aquilo,
explicou que não pudera ficar na frente porque lhe haviam
dado um fuzil, que se espatifara, ao descansar arma, no
choque contra o solo. Era, com certeza, o fuzil do Buster
Keaton.
O tiroteio era incessante. A noite, por vezes, cessava,
ouvindo-se tão somente o tiro de inquietação.
No dia 14 de agosto o 8º tomou posição em Pinheiros. Era
uma frente extensa, apoiando o flanco esquerdo num
destacamento de Bombeiros e o direito nas forças do Major
Valença da F. P. Ocupávamos todas as cristas. Para a
frente, o inimigo; atrás o nosso território. O Tem Valdemar
Canelas comandava a trincheira no pico mais alto de difícil
acesso, tendo Haroldo Levi como metralhador. Era dali que
se faziam as observações dos tiros de artilharia.
No mesmo dia em que se tomou posição o adversário nos
mimoseou com um formidável ataque, que foi rechaçado. No
boletim n. 5, do comando do Destacamento, assim se referia
ao Cel Lamento às nossas forças:

“Soldados da Constituição:

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O resultado dos dois combates, de ontem e de hoje, da
fazenda Palmeiras, traduz, definitivamente, a vossa
atuação.
Repetiste, com energia digna de verdadeiros soldados, os
ataques do adversário. As suas forças quebraram-se diante
do vosso ardor, energia, coragem e convicção do dever, pela
nossa causa, que é a da conquista da lei, da ordem e da
disciplina. Felicito, pois, calorosamente, aos senhores,
Oficiais, Comandantes de Unidades, os quais tornarão
extensivos aos seus comandados direitos as referências aqui
feitas.”

E no boletim n. 8, do nosso Batalhão, era, transmitidos


esses elogios à tropa.
Não nos custou pouco esse elogio.Carolino do Amaral
Rodrigues, o bondoso Carolino, pagara-o com a vida. Logo
adiante falarei desse soldado, de quem me lembro com
profunda saudade.
Desde o dia 19 vínhamos trocando tiros incessantes. Na
tarde de 24 prenunciou-se um forte ataque, precedido de
cerrada preparação de artilharia. Cristalino foi logo
visado com três poderosos tiros diretos, aos quais não deu
confiança. Ele tinha imã para balas, mas tinha também ânimo
forte. Resistiu-se e rechaçou-se o avanço. Ninguém cedeu um
palmo. Enormes, nesse dia, as perdas adversárias. Tivemos
um ferido o soldado Sebastião Pontes, sem gravidade.
A posição do 8º era firme e consolidada. Pelas nossas
linhas – dizíamos - não passa rato. Isso mesmo tive ocasião
de dizer ao Cel Sampaio, em Cruzeiro. E acrescentei:
- Olhe, coronel, ontem tentou passá-la um tatuzinho e foi
agarrado. Vamos moqueá-lo ao almoço.
O simpático chefe manifestou grande pesar de não poder nos
ajudar na tarefa de comê-lo.

Os bombardeios aéreos sucediam-se aos canhoneios,


produzindo enormes buracos no chão e... nada mais.
Perdemos mais três companheiros – Januário, de quem já
falei, Otoniel Marques e o Cabo Eduardo, aos quais
dedicarei um capítulo separado.
Mas estava escrito que o 8º seria sempre sacrificado pela
vizinhança. Na tarde de 31 de agosto, forçada por um
bombardeio infernal, cedeu a linha geral na nossa extrema
direita, lá para os lados de Vila Queimada, o famoso setor
onde o valente Batalhão Pais Leme fazia força de verdade.
Em consequência tivemos também de recuar um pouco, para não
quebrar a linha, recuo esse que se operou em todo o setor
em que estávamos, na mais perfeita ordem, sem um ferimento
sequer.
A 3 de setembro sofremos outro desesperado ataque, que foi
rechaçado facilmente, já das nossas novas posições, com
trincheiras ainda imperfeitas e em condições muito

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desfavoráveis para nós. O que nos faltava em
apetrechamento, sobrava em coragem daquela guapa rapaziada.
O começo de setembro foi terrível para o Batalhão.
Formidáveis ataques a toda hora; fogo nos matagais que nos
cercavam; os aviões pairavam sinistramente sobre nós o dia
inteiro; possantíssimos parques de artilharia nos visavam
pela noite a dentro. Tudo sem resultado. Mais que o poder
das armas dos inimigos, havia o poder da força de S. Paulo,
que era o ideal supremo de liberdade, que nos embalsamava o
coração. “São Paulo era o direito e a força”.

No boletim do dia 5 vinham dois tópicos por de mais


satisfatórios para nós. Um consignava o franco elogio do
bravo Cel Euclydes, que nos visitara. O outro era concebido
nestes expressivos termos:

“Combate: - Cerca de 11 horas, rompeu o inimigo cerrado


fogo sobre as nossas posições, cujas trincheiras ainda não
se achavam terminadas. Nada conseguiu, porém, tendo os
nossos soldados anulado a sua investida. Houve um ferido de
nossa parte. Até a tarde estivemos em relativa calma. Ao
entardecer, porém, recrudesceu a fuzilaria inimiga,
secundada pelo bombardeio direto das posições que ocupamos.
Patrulhas de reconhecimento e assalto tentaram tomar
algumas trincheiras da ala esquerda, com granadas de mão.
Difícil foi a situação, e, só não periclitou a solidez da
nossa vanguarda, porque os nosso soldados, confirmando o
heroísmo de que vem dando sobeja mostra souberam repelir,
com energia e denodo, a tentativa adversária. Louvo por
isso a todos os meus comandados, satisfeito por vê-los
corresponder a confiança de que são depositários”.

No dia seguinte o Comandante voltada a elogiar a tropa.


Spindola andava radiante com a sua gente.
Houve dia em que uma trincheira toda recebeu promoção.
Laudelino de Oliveira, Quincio Peirão Junior, Marquitos,
Álvaro Tranjan, Paulo Guimarães, Abelardo Teixeira, Haroldo
Levi, Jacomo – o terrível metralhador – João Delfino de
Oliveira, Fausto Santos Filho, Agnelo Lamas, Nevio
Fagundes, Dorival Leite, Canelas, Paulino, Dilmar Alfaia,
Mito Assunção, Carvalhal Neto, René Ramos, Ciro Freitas
Guimarães, Carril Derito, os 2 Duarte, J. J. Batista de
Oliveira, Franquinho, Carlos Pacheco Cirilo, Antonio Lima,
José Antonio Lopes, Ciro Filgueiras, Medeiros do Ó,
Brasilio Silveira, Roberto Barbosa, Paulo Arruda, e um
interminável rosário de autênticos heróis, que é impossível
lembrar hoje, já tão longe dos acontecimentos.
A 12 de setembro sofremos novo e violentíssimo ataque, que
resistimos impertubavelmente. Generalizando-se a batalha, o
flanco do Capitão Djalma Ribeiro dos Santos cedeu, dando-
se, então, a retirada de Pinheiros, para evitar um

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envolvimento, de que, aliás, nos salvamos graças a perícia
dos nossos comandados, confirme a seu tempo será relatado.
O 8º estava firme, firmíssimo. Assim permanecessem todos os
combates...
*
* *

BATISMO DE FOGO

Ainda não tinha eu visto fogo, a não ser pela casa alheia.
Num dia de agosto, o céu limpo e brilhante, conversávamos
em volta do comandante. Subitamente ouviu-se um estampido
de canhão, acompanhado do silvo característico, que
denuncia a pontaria para o nosso lado. Em seguida a granada
que explodiu a cerca de 40 metros do P.C. onde estávamos,
tocando no alto da crista que nos protegia. Dois palmos
mais de altura e estaríamos todos estatelados. Foi só o
tempo de nos atirarmos ao chão. Levantados, novo tiro, que
foi explodir nas mangueiras muito próximas. Terceiro se
enterrou num brejo mais próximo ainda. O quarto desviou-se
e foi bater (onde haveria de ser?) na trincheira do
Cristalino. O 5º cobriu a mesma trajetória do primeiro e o
último arrebentou de novo nas mangueiras. Nem capacete de
aço eu tinha no momento. Numa das vezes em que me atirei ao
solo, não o encontrei tão duro como de costume. O Ciro Ruiz
fora mais ágil e cobrira o mesmo pedaço antes de mim.
O canhoneio é uma coisa horrível. A bala não leva endereço.
A granada, tocando o solo, explode e produz uma chuva de
estilhaços, capaz, qualquer deles, de demitir um cidadão da
vida.
O soldado deita-se, porque os estilhaços voam para o ar,
fazendo ângulo com a terra, de modo que não atingem aos que
estão deitados. Já o Schrapnel é de outros efeitos, porque
explode no ar e atira uma chuva de ferro em estilhas.
Quando o tiro é direto, isto é, próximo e não por elevação,
é uma coisa tremenda. Mal se ouvem dois ruídos; tão perto
eles são.
Tum-bum!
Conosco, além do efeito moral, pouca coisa faziam.

*
* *

BOMBARDEIRO AEREO

Eu já não era pagão. Fora batizado de fogo na véspera.


Exatamente para constatar os resultados do canhoneiro, eu
me dirigi às mangueiras, onde Leopoldo Teuber, sabre em
punho, desencravava um grosso estilhaço do nodoso tronco. O

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dia estava nublado, o que denunciava ausência de ataques
aéreos. Inesperadamente roncou um motor. Era o vermelhinho.
A peste rondava o lugar onde estávamos. Parada de motor, o
silvo e o estouro.

Ooonnn... bum...
Foram oito mechas, nesse dia.
Deitados pelo chão, os soldados acompanhavam o voo. A cada
tiro sem resultado, respondia sonora vaia, acompanhada dos
mais expressivos gestos.

- Porqueira, endireita a pontaria!


- Acerta a mão, pixote!
- Sai daí que eu vou atirar, alma de gato!
-Desova no ninho, mão mole!

E uma algazarra enorme festejava o desaparecimento do


monstro alado.
Todos os soldados apareceram, Todos não. Três deles haviam-
se entalado de baixo de uma pequeníssima ponte, com água
até os joelhos e nos deram enorme trabalho para arrancá-los
de lá.
Era assim a vida em campanha.

*
* *

ENGENHARIA

Qualquer obra sobre a campanha constitucionalista ficará


incompleta, se não consagrar algumas palavras à engenharia.
Os técnicos paulistas escreveram a página mais brilhante do
nosso movimento. Aqui deixo consignado o meu profundo
respeito a todos os engenheiros e seus auxiliares, que nos
acompanharam na guerra. As Delegacias Técnicas foram a
melhor criação. A tudo providenciavam com uma solicitude
incomparável.

Uma noite, em que eu vinha da frente com o Capitão Aires,


mais tarde tão tragicamente desaparecido, fomos parar em
Jacareí. Tivemos tudo o que poderíamos desejar, dado pelo
Delegado Técnico, Dr. Heitor Portugal, que chegou a me
ceder sua cama, para que descansasse, passando ele o resto
da noite em claro. Ele e o delegado de Polícia, Dr Luiz
Tavares da Cunha, foram incansáveis. Em Queluz o Dr Fleuri,
em Cachoeira os doutores Dupré e Paula Souza; em Cruzeiro
Melo Matos, Souza Lima e Augusto Antunes, eram verdadeiras
providências. Este, principalmente, multiplicava-se,
minando trincheiras, traçando-as, dirigindo sua abertura, a
tudo provendo.

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Ademar Souza Queiroz e seu ajudante, um nosso soldado,
Gilberto Caparica, foram dois heróis. Impávidos, sob o
coriscar das balas, eles cumpriram seus deveres
impertubavelmente. Na retirada de Pinheiros notabilizaram-
se.

*
* *

O BLINDADO

Descrevendo o cenário e a cena de guerra, precisamos dizer


alguma coisa sobre o trem blindado.
Era uma verdadeira máquina infernal; instrumento inventado
pelo diabo. Dois carros, um de cada lado da máquina, tudo
de aço e com pinturas futuristas, destinadas a confundi-lo
com o terreno. A frente um canhão 75, pelos flancos
metralhadoras pesadas. Ao alto dois potentes holofotes,
iluminando as trincheiras adversárias. O caboclo nortista,
desafeito dessas coisas, tomava-se de pânic, desandando
pelos morros, inteiramente descoberto. Era o momento do
trabalho infernal das metralhadoras. Um rapaz da guarnição
do blindado enlouqueceu ante o morticínio.
Verdadeira fortaleza ambulante, o que não impediu que o
acaso guiasse uma bala por estreita frincha, indo atingir o
metralhador em pleno peito.
O blindado era um caso muito sério.

*
* *

OS MORTOS

De três dos nossos mortos ainda não falamos. Otoniel


Marques Teixeira, Carolino e o Cabo Eduardo Alves.
Eduardo era um homem humilde. Atormentado pela nevralgia e,
por isso, andava sempre com a cabeça envolvida na manta.
Era dócil e bom. A última vez que o vi, íamos, eu e o
Álvaro Tranjan, a cavalo, para a trincheira do Fragoso. Ele
nos viu e veio para a beirada do caminho, cumprimentar,
prazenteiro como sempre.
- Como vai, cabo Eduardo?
- Melhor. A dor me deixou esta noite.
Recebeu uma bala na cabeça e caiu sem um gemido. Foi
sepultado em Pinheiros. Dias depois um seu irmão foi
visitar-nos no P.C. Quando o comandante apresentou-lhe os

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sentimentos do Batalhão, o rapaz, humilde como o irmão,
agradeceu e disse:
- Não faz mal, senhor comandante. Tudo por S. Paulo. Ele
morreu satisfeito, oferecendo sua vida pela sua terra.
Brava gente bandeirante!
O Carolino, segundo dos nossos mortos, na ordem em que
tombaram, era soldado do primeiro momento. Corretor de café
em Santos, inscreveu-se na MILÍCIA e partiu na primeira
leva. Era alegre, claro, baixo, rosto escanhoado, cabelo
muito preto.

Companheiro inseparável do Paulino, com quem fazia um par


magnífico. Em Queluz ambos me apareciam logo pela manhã,
com a cara seria, escondendo debaixo daquela máscara uma
indisfarçável brejeirice.
- Pronto, seu tenente. Não há arroz para o almoço.
- Vá buscá-lo na dispensa e “compre-me” duas penosas.
- Sim, senhor. Já estão encomendadas.
Na hora do almoço, num canto de estrada, em casa de uma
preta velha, o almoço fumegava. Comíamos juntos e quase
sempre, o comandante, era nosso convidado.
No dia 15 de agosto recebeu uma bala, que foi se alojar na
coluna vertebral, produzindo imediata paralisia parcial.
Recolhido a S. Paulo. Expirou cercado pelos seus, os olhos
voltados para o nosso grande ideal. Às portas da morte,
dizia à sua excelentíssima irmã, só desejar a cura para
voltar à frente. Celebramos, por sua intenção, exéquias na
igreja de Pinheiros, sendo celebrante o Padre Israel.
O Otoniel estava na Boa Vista, o perigoso setor do flanco
esquerdo. Fora, com um companheiro, buscar a boia. Na
volta, já ao penetrar na trincheira, uma bala o apanhou na
fronte. Ali mesmo ele caiu sem vida.
Transportado para Pinheiros, fui vê-lo, em companhia de
todo o pessoal da Intendência. Sobre a padiola, fardado,
barba crescida, da fronte lhe escorria um fio de sangue.
Clovis Lacerda constatou o óbito. Não havia dúvida
possível; o projétil penetrara na cavidade, donde saia a
massa encefálica. Padre Israel promoveu o sepultamento.
Todos os nossos soldados de folga o acompanharam, para o
cemitério, bem ao alto da colina, atrás da igreja. Padre
Israel rezava as orações do ritual e os soldados desfiavam
grossas lágrimas, sem conter a comoção. Quando começamos a
subir a ladeira, inclinação da padiola fez escorrer grosso
filete de sangue, ainda fluído, que se empapava no solo
generoso de S. Paulo, como suprema oferenda do bravo rio-
clarense à liberdade do seu berço. Dava a S. Paulo o que S.
Paulo lhe dera – a vida.
Chegados ao alto, já a sepultura estava aberta. Benzeu-a o
sacerdote e começou o sepultamento. Duas cordas foram
passadas sob seus membros. Eu era o único oficial presente,
pois a vivacidade do combate não permitiu que outros

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viessem chorar a derradeira lágrima sobre o corpo do
companheiro que, talvez, apenas nos antecedesse na morte.
Suspenso, seu corpo balançou um instante no ar, agitando-se
pela derradeira vez às brisas paulistas. E foi descendo!
- Em continência!
Todos levantaram a mão direita estendida até a altura do
capacete de aço, perfilando-se ante a majestade daquele
quadro tão tocante.
Lá ficou sepultado. Fincamos sobre a terra uma cruz de
madeira, que lhe marcasse o derradeiro leito.
Ao longe o sol se deitava num lindo ocaso, dourando os
altos picos da Serra da Mantiqueira. Tudo por S. Paulo!

*
* *

FERIDOS

O ferido, qualquer que fosse seu estado, conservava sempre


ânimo alevantado. Em regra recebia um curativo ligeiro,
regressando ao combate. Nada continha a febre de combater.
Muitas vezes eram mais animosos que os próprios
padioleiros.
Como um destes houve um jocoso caso. O preto Oscar é aquele
moleque escovado que vende jornais na Praça Rui Barbosa,
esquina do Empório Rio Grandense. Amigo pessoal do Dr
Guilherme Gonçalves, inscreveu-se na Cruz Vermelha e era
nosso padioleiro. Foi socorrer um soldado que levara um
tiro na perna. Diante da forte hemorragia, o Oscar ficou
bambo. O soldado indignou-se com aquilo e gritou:
- Oscar, deita aqui na padiola que eu te carrego!

*
* *

MUNIÇÃO

Não se pode dizer que a munição fosse abundante. Dava,


entretanto, para o gasto, bem distribuída, como era. Em sua
falta as granadas de mão faziam barulho. É uma arma de
grande eficiência e as tínhamos em quantidade. Atiradas com
fuzil, com o boca V.B., eram excelentes, dando bons
resultados.
Tínhamos um curioso aparelho de madeira, fabricado nas
oficinas da Rede Sul Mineira, em Cruzeiro, a que chamávamos
matraca. Consistia em uma grande estrela de seis bicos,
montada em um suporte, tudo de peroba. Uma lâmina de aço

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batia contra os bicos, quando a estrela era movimentada em
volta de um eixo, por manivela, produzindo um som
semelhante ao da metralhadora. Era para “despistar” o
inimigo, na localização das pesadas. No manifesto com que o
Comandante Geral da F. P. procurou defender-se das graves
acusações que lhe fazem os paulistas, disse esse oficial
que soube, com pasmo, que a matraca era usada para fingir
munição. É muita ingenuidade, pois até nós, os “pátria
amada”, não ignorávamos tratar-se de um instrumento para
“despistar”.

*
* *

OS “PÁTRIA AMADA”

“Pátria Amada” era a designação que os oficiais e tropa do


E.N (Exército Nacional) davam aos voluntários. E o faziam
em ar de mofa. Nós não nos dávamos por achados e, quando
nos referíamos a nós mesmos ou aos nossos, era por esse
nome.
Uma vez deixei um automóvel na estrada atolado. No dia
seguinte, quando fui buscá-lo, já não o encontrei. Haviam
retirado e o Capitão Cunha Melo o pusera ao sérvio do Q.G.
do Coronel Sampaio.
Debalde reclameu; o Capitão fazia corpo mole.
Fui ao Coronel Sampaio e, mera coincidência, lá estava o
auto com um 2º Tem do E. N. Cheguei-me para o coronel e
disse:
- Coronel, vim pedir-lhe que me manda entregar o auto 128,
do Batalhão. Deixei-o na estrada, por causa da chuva e
agora esses “pátria amada” andam com nele.
O Coronel riu-se e mandou dar-me um memorando ordenando a
entrega. Sabendo que o automóvel estava ali, entregou-me
ele mesmo. Sai. O oficial estava indignado:
- “Pátria Amada”, “pátria amada”é ele! Eu sou Oficial do
Exército.
Foram os “pátria amada” que aguentaram o mais rijo da
campanha.

*
* *

ROCHA MARQUES

Não me tenho ainda referido diretamente ao subcomandante


Roca Marques, capitão de cavalaria da F. P. (Força
Pública).

100
Assumiu seu lugar em Pinheiros. É pernambucano, mas bateu-
se lealmente por S. Paulo, por cuja autonomia sempre se
esforçou. Era lhano, cordato, muito calmo, executando
zelosamente seu serviço, ouvindo a todos com brandura e
decidindo sempre com justiça. Emérito para subir os morros,
não havia quem lhe levasse a palma. Dirigiu com pleno êxito
a retirada de Pinheiros, na ausência do Major Spindola.

*
* *

RETIRADA DE PINHEIROS

O Comandante Spindola, desde muitos dias, andava planejando


uma fugida a S. Paulo, para ver a família. Apenas dois
dias. Prometera-lhe o Coronel Euclydes a desejada licença,
logo que as posições (nós tínhamos feito um ligeiro recuo)
estivessem consolidadas. Naquela manhã ele foi a
Intendência, então instalada em Cruzeiro. Ia de automóvel
com Raul Ferreira e avisou-me que estava de partida para a
Capital.
Quando chegou em Cachoeira, procurou o Coronel Euclydes.
- Vim cobrar sua dívida. A minha posição em Pinheiros está
consolidada. Posso ir a S. Paulo?
- Pinheiros, de fato, está consolidado, respondeu o chefe;
tanto assim que acaba de cair.
Imagine a surpresa do Major.
- Como, se deixei meu Batalhão em perfeita segurança,
havendo repelido forte ataque esta manhã?
- Não foi o seu Batalhão que fraquejou. O furo foi no
flanco esquerdo.

Quando o comandante nos deixou, lá estavam Roberto Caiubi,


na sua constante peregrinação, sempre levando alguma coisa
útil ou agradável para o 8º, e Jonas Fagundes, que fora
visitar seu filho Nevio. Deliberamos ir os três ao
acampamento.
No posto de fiscalização tivemos a primeira notícia. Leonel
Saraiva me disse que tivera má notícia. O flanco esquerdo
cedera. Na véspera o Capitão Sadim havia tomado uma
trincheira e o inimigo a retomara nessa manhã. Pensei que
fosse isso, mas ele me reafirmou que se tratava de coisa
mais seria. Tocamos para a frente. Poucos quilômetros
adiante começamos a ouvir o tiroteio adverso e a encontrar
soldados que se retiravam, prevenindo-nos: - eles vêm aí!
- Deixa vir; - eles vem aí!
Alguns metros adiante verificamos que nada adiantava
avançar e retrocedemos para Cruzeiro, onde fui procurar o

101
Coronel Sampaio, depois de ordenar que toda a Intendência
fosse posta sobre rodas.
O Coronel estava assentado no carro salão, calmo como de
costume ignorando tudo. Quando me viu veio ao meu encontro
e passávamos, com o Major Trigueirinho, a quem eu já
contara o fato, para um outro salão. Aí, assentados, dei-
lhe a nova.

- O flanco esquerdo vasou, Coronel, e os soldados vêm aí em


franca retirada.
O digno chefe não contraiu um músculo da face. Com a mesma
serenidade disse-me:
- Deixe dessas brincadeiras.
- Eu não seria capaz de um brinquedo desses. O fato,
infelizmente, é verdadeiro.
- Pois eu não disponho de um homem ou um cartucho para
reforço. Aqui ficarei, para morrer no meu posto.
Pus-me às suas ordens.
- Você é civil, mas compreende bem a situação. Vá reunir a
tropa que vem em retirada, nas proximidades do
frigorífico.
Sai com alguns homens do 8º e fomos para o serviço. Em
breve apareceram outros oficiais que se entregam ao mesmo
mister, até que eu pude cuidar da minha gente. Fiz seguir
dois caminhões, que não chegaram a Pinheiros, por estar
dinamitada a ponte.
O pelotão do tenente Lima tinha sido destacado para
garantir a retirada e, entrincheirado atrás do cemitério,
fazia fogo. Logo, porém, verificou-se todos para Cruzeiro,
no caminhão do Mario.
Começou a labuta. Toda a tropa do 8º estava cercada em
ferradura. Só havia uma estreita brecha, comunicando com
Lavrinhas. Por aí o Capitão Rocha Marques retirou nossa
gente, numa ordem impressionante. Carregou-se tudo; não
ficou uma bala. Dois cunhetes de munição que outras forças
abandonaram, a nossa conduziu.
Continuei a caminhada, com quatro soldados: Diógenes Costa,
Aulio Pereira Pinto, J. J. Batista de Oliveira e René
Ramos.
A sombra de umas árvores encontrei o comandante Veloso,
braços caídos, pálido, mas com um ar de dignidade,
acompanhando a retirada.
Estava com ele o Capitão Sandim e outros oficiais. Eu não
voltara a falar ao chefe, depois daquele incidente sobre as
folhas de pagamento. Mas apresentei-me com os meus homens.
- Vão ocupar aquela crista, para policiar a retirada. Eu
lhes mandarei ordem, quando deverem retirar-se.
Seguimos. Só então verifiquei que estava apenas armado de
revolver e os meus quase sem munição. Pedi um fuzil a um
soldado que se retirava:
- Quer me dar o seu fuzil, camarada?

102
- Não, meu fuzil não dou.
- Pois se você vai se retirando, para que quer o fuzil?
Saltou-me furibundo o Capitão Sandim:
- Retirando-se, não! O senhor não desmoralize a minha
tropa!
- Perdão, capitão, eu não quero desmoralizá-lo, nem a sua
tropa. Confundi-me ao falar. E voltando-me de novo para o
soldado:
- O camarada, você que VAI AVANLÇANDO, empreste-me o fuzil.
O Sandim embatucou e um sargento deu-me um mosquetão.
Já tarde passou por nós Souza Queiroz, da engenharia.
Indagou do que fazíamos. Quis deixar-me seu automóvel,
temendo que ficássemos presos. Não aceitei. Já noite feita
um cavalariano me trouxe ordem de retirada, às pressas,
porque o adversário vinha perto. Retiramo-nos e daí a pouco
encontramos o auto do Adhemar que nos vinha buscar, guiado
pelo Caparica.
No Q.G. do Destacamento estava Spindola, coma cabeça
quebrada por um acidente de automóvel, tamanha foi a pressa
com que regressou. Eu mesmo lhe pus iodo e ele entrou na
faina. Concentramos toda a tropa no Grupo Escolar de
Cruzeiro e pelas 2 da manhã saiu o trem especial que nos
levou a Lorena, donde, em caminhões, nos transportamos a
Guaratinguetá e a Pinda.
Quando o trem partiu, levando civis retirantes e militares,
ainda vi na estação, sempre sereno, o Coronel Sampaio.
Íamos, afinal, descansar.

*
* *

ESPIONAGEM

Cruzeiro era, quase todo, simpático à ditadura. A


espionagem contra as nossas forças desenvolvia-se
desassombrada. Nas vésperas da nossa retirada, descobriu-se
um telefone, em cada particular, ligado diretamente ao Q.G.
de Queluz. O canhão 150 chegou àquela cidade e abrigou-se
nos armazéns reguladores de café. No dia imediato um
aeroplano atirou-lhes três bombas, sem resultado, é
verdade, mas por imperícia do aviador. Instalado ao Q.G. do
Cel Velhoso em uma velha casa a beira da estrada de
Pinheiros, atiraram-lhe quatro bombas de avião, cujos
estilhaços foram quebrar as telhas da casa. Os bônus
circulavam com dificuldade, ante indisfarçada má vontade.
Até uma tranca de um sorveteiro preparava uns gelados com
tintas, que produziam colinas nos soldados.
Foi o lugar onde mais se desenvolveu a traição. Um sírio,
soube aqui em S. Paulo, comprava as armas aos rapazes que
encontrava cansados, instigando-os o desertar.

103
Uma miséria.

*
* *

EM PINDAMONHANGABA

Na vestuta cidade do Norte ficamos otimamente instalados no


quartel do 5º R.I. (Regimento de Infantaria). Era o antigo
mercado local, transformado agora em caserna. Mas
instalações muito boas. Ali íamos descansar. Quantos dias?
Quem poderia saber? No dia seguinte ao da nossa chegada ali
esteve o Coronel Agnelo de Souza, dizendo-se, então, que
ele pretendia que o 8º fosse para seu setor. Um calafrio
passou pela espinha de nós todos. Fosse para o longe o
agouro...
No segundo dia era o Coronel Sampaio que mandava procurar.
O Capitão Chaves, com aquele seu ar sempre brejeiro, também
lá esteve. Se o Spindola não mais quisesse comandar o 8º
B.C. R., ele comandaria, disse-me.

Mas... o Spindola queria.

O nosso 8º, a desmoralizada força do início, estava agora


considerada força regular e não faltava quem o quisesse. O
tenente Moacyr Sampaio contou-nos que os Coronéis Teófilo
Ramos e Lamego, haviam tido uma ruga por nossa causa, pois
todos nos disputavam e ao nosso chefe, justamente
considerado um dos mais valorosos oficiais da frente Norte.
Mas, estava escrito, nosso descanso seria hipotético.
No dia da chegada dormiu-se a vontade. Na manhã seguinte
estava o quartel impedido. Gritos, protestos, reclamações.
Foi tudo inútil. Íamos fazer a revisão geral das
Companhias, reabastecer a tropa, vesti-la decentemente,
apronta-la, enfim, para as novas lutas em breve a iniciar.
Era Comandante Militar de Pindamonhangaba um 2º Tem
Farmacêutico – o Terra, excelente rapaz, que tudo nos
facilitou, procurando tornar nossa estadia ali melhor
possível. O Terra tornou-se credor da nossa extrema
simpatia.
Feitas as revisões os soldados tiveram ordem de sair.
Parecia que a velha Pinda havia remoçado ao riso
alviçareiro da nossa gente, que andava como meninos saídos
do internato. Tudo era pretexto para as melhores risadas;
uma alegria infinita transbordava de tosos os corações. O
Pradinho se vestira de ponto em branco, ele que na
trincheira andava de chinelos de corda, e pompeava suas
barbas imponentes. A Telefônica jamais tivera renda igual.
Todos com os bônus novos do soldo no bolso. Uma farra.

104
A noitinha uma patrulha correu rapidamente as ruas.
Recolher e prontidão.
Maldita fosse a prontidão e quem a inventou!
O que haveria? Seriam os cariocas?
Não era nada disso. Uma Companhia do 7 de Setembro estava
indisciplinada na estação da Central, entrincheirada no
trem. O 8º devia dar-lhe cerco e submetê-la. Já a coisa não
parecia tão ruim. Desde 24 horas antes que não se combatia!
Puseram-se as metralhadoras para fora; os fuzis foram
carregados, distribuiu-se munição.
Quem era o bamba que se opunha a nós?
Afinal o Spindola resolveu, com a sua prudência,
parlamentar e tudo conseguiu.
Rua, novamente.
Na manhã seguinte o negócio encrencou de vez. Chegara o 4º
R.I.

Estava armado o barulho. Comuniquei o fato ao Capitão Rocha


Marques e este, com seu gênio apaziguador, saiu a
providenciar. O Terra andava maluco, sem saber por onde se
mexer, reconhecendo, entretanto, o proceder disciplinado do
8º, que reagiam somente a uma agressão insólita.
Felizmente, aquartelados eles no Grupo Escolar, com boas
maneiras, tudo se acalmou.
Pobre 8º B.C.R., se isso é descanso!
O Cel Sampaio não sossegava. Desta vez o 8º não lhe
escaparia. Ele próprio me declarou em Guaratinguetá, que
havia posto seu maior emprenho em nos ter sob seu comando.
Mas, Deus não dorme. Os do 4º R.I. nos haviam insultado de
todas as maneiras, chamando-nos pejorativamente “pátria
amada”, quando isso constituía nosso maior orgulho. Mas a
intenção era tudo.
Tive de ver a S. Paulo e o fiz no caminhão do Mario.
Viagem boa. Comigo vinham o Paulino, ordenança do
Estanislau e o tenente Almeida. Entre Jacareí e Mogi das
Cruzes, avistamos alguns soldados que, visivelmente,
desertavam. Fizeram sinal e nós paramos. Queriam passagem
par a Capital.
- Seus Salvo-Condutos?
- Não temos. O comandante nos mandou “de boca”.
Percebi e fi-los subir. Por mais três vezes repetiu-se o
fato; ao chegar a Mogi tínhamos onze. Eram do 4º R.I.
Estavam presos.
Não me contive que não lhes dissesse que eu era um dos
“pátria amada” de Pinda. Estávamos vingados das ofensas.
Chegados a S. Paulo comuniquei todos esses fatos ao General
Klinger. Sua Excelência, disse-me que já havia recebido
denúncia semelhante, o que agora ficava inteiramente
confirmado. Agradeceu-me e eu ignoro as providências que
tomou.

105
*
* *

GUARATINGUETÁ

No quinto dia de descanso estávamos de novo na linha de


frente. Depois do recuo de Pinheiros, fomos ocupar as
posições previamente preparadas entre Guaratinguetá e
Lorena, deixando para trás Cachoeira e toda zona além da
nova linha de trincheiras.
Pegamos, como de costume, a melhor parte. Tomamos posição
no extremo da Serra do Quebra Cangalhas. Designaram-nos o
lugar e o Spindola que se arrumasse. E ele se arrumou
mesmo. Dentro de poucos dias estávamos perfeitamente
consolidados. No P.C. do Coronel Sampaio encontrei numa
tarde um soldado, muito gordo por sinal, que pedia reforço.
O Coronel não tinha mais homens, pois distribuíra toda a
Força.
- Olhe, meu Coronel, se você me der 30 homens, daremos uma
boa ripada neles e tomaremos a peça.
Ante a negativa, o soldado mostrou que isso não era algo à
ser pedido:
- Meu Coronel, depois o Senhor envia os reforços. Eu ouvi
falar que eles vão começar o ataque no Oitavo.
- Pois é por ali mesmo que eles devem começar, disse
Sampaio. Devem começar por ali, pois é justamente ali que
eles não entram. Basta que as tropas disparem tiros para o
ar.
Como se sucedeu, fomos servir no Destacamento Sampaio, o
que constituiu para mim motivo de satisfação.
Spindola foi promovido à Tenente-Coronel, para nossa grande
alegria, pois considerávamos um injusto desprezo o que ele
vinha sofrendo. Rocha Marques foi promovido à Major, também
com muita justiça. Pouco tempo depois novas promoções
vieram. Fragoso, Estanislau e Aparício Vilas Boas à
Capitães. Eu, André Freire e Gumercindo à Primeiros
Tenentes. Outros comissionamentos em Segundos Tenentes,
como Reginaldo, Ciro Ruiz, Haroldo Levi, Paulino, Raul
Ferreira, Pradinho, Chico Amaral, Angelo Lamas.
O Oitavo ia de vento em popa. Estavam agregados à ele um
pelotão do Baía, comandado pelo Almeida; um do Esportivo,
sob o comando de Nilo Tocantins. Todos os dias
apresentavam-se novas tropas. A Milícia nos mandou mais
cento e tantos homens, sob o comando do Tenente Moacir
Ávila.
- Qual? Isto ainda acaba em regimento! dizia Reginaldo,
enquanto registrava nomes no boletim.
Guaratinguetá é uma linda cidade. Grande, movimentada, de
prédios elegantes, majestoso templo, ruas asfaltadas, à

106
excelecentes instalações do glorioso Ginásio Nogueira da
Gama. Uma ótima cidade por todos seus méritos. A
Intendência ficou no centro da cidade. Ja a tropa foi para
a fazenda Jararáca, distante cerca de 15 quilometros com
acesso de estradas precárias, que nossa insuperável
engenharia transformou em vinte e quatro horas.
As posições que ocupávamos eram, de fato, invencíveis. Não
fossem as miseráveis traições de Campinas, que inscreveram
os nomes de tantos calabares nas páginas imaculadas da
história bandeirante, e o desfecho da luta teria sido
outro. Em Pinheiros tinhamos, à princípio, um canhão
comandado pelo magnífico artilheiro Primeiro Tenente Eleal
e posteriormente três peças. Em Guaratinguetá tinhamos nada
menos do que quinze canhões, somente na retaguarda do
Oitavo, entregues ao Quarto R.A.M. e ao Segundo G.A.P.,
além das Companhias de Bombardas. Nós tínhamos um com
quatro peças, comandadas pelo Capitão Alberto Americano,
filho do saudoso Coronel Luiz Americano, veterano do
Paraguai. Todas as nossas peças estavam ótimamente
instaladas. O canhão 150, vindo do forte de Itaipú com
guarnição santista, fez magníficos disparos.
Pela Frente Norte, portanto, a situação era boa. Um avanço
tentado pelos lados de São Luiz do Paraitinga, foi
brilhantemente rechassado pelo bravo Coronel Andrade,
talvez o mais valente Cabo de Guerra revelado pela
Revolução Paulista. Houvessem alguns dos militares
destacados na Frente Norte mantido o compromisso de honra
que assumiram, quando enviaram à todos os Corpos um apelo
para nossa rápida arregimentação, e São Paulo teria (estou
convencido para nossa infelicidade) vencido. Mario, o
chaufeur preso pelo adversário, conforme já narrei, contou-
me que se houvéssemos atacado naquele dia, pegaríamos até
os canhões, pois o famoso Exército do Leste estava em
pandarecos. Essa informação foi integralmente confirmada
pelo Dr. Hamilton Prado que, evadido da Ilha Grande, foi
ter às nossas linhas, sem encontrar forças da ditadura. Não
comentarei esses fatos. Meu papel é de simples narrador.
Deponho sobre o que vi e observei, com absoluta verdade,
sem admitir contestação será para que o historiador do
futuro possa formar juízo seguro.
Na fazenda Jararáca tínhamos o flanco esquerdo apoiado nas
forças do Major Valença e o direito nas do Major Borges,
formada, quase toda esta, pelos bravos rapazes do Tiro
Naval, de Santos; todos experimentados nas rudes lutas de
Silveiras e Areias, onde escreveram páginas de intenso
brilho na história da sua terra. Era o Quinto Batalhão de
Caçadores Paulistas Misto.
Pouco contato tivemos com o adversário. Combate, nenhum.
Apenas algumas patrulhas avançadas nos apareciam, para
fugir à aproximação dos nossos. A fragilidade das hostes
inimigas era patente. Pela noite à dentro assinalavam-se

107
numerosos faróis de caminhões. Eram as poucas tropas em
movimento, aparecendo de um e outro lado, para simular
número. O Dr. Hamilton confirmou isso mesmo, anunciando
grandes cargueiros na direção da Roseira.
Fogos de artifício.
Mas estava escrito - nos homens o órgão principal ainda é o
estômago.
Estou convencido de que Deus escreve direito por linhas
tortas. Ademais, ainda diz a sabedoria popular que há males
que vêm para bem. A prática da vida ensinou-me que DE TODO
MAL VEM UM BEM. É o que fatalmente acontecerá à São Paulo.
Esta luta foi fértil em preciosos ensinamentos de toda
natureza. Esta mocidade radiosa que tomou armas pela
integridade do patrimônio moral da sua terra, 7há de saber
aplicar esses ensinamentos num futuro bem próximo.

*
* *
OS CHEFES

Em Guaratinguetá tivemos novos chefes, pois mudamos de


Destacamento, por mercê de Deus. Com os grandes chefes da
2º D.I.O. – Divisão de Infantaria em Operações – tivemos
maior contato – Euclydes e Palimércio.
O Coronel Euclydes é um homem alto, forte, claro.
Fisionomia inteligente; vestia-se com apuro. Inspirava
confiança a primeira vista. Sempre o vi em atitudes de
grande dignidade, especialmente na histórica reunião de
Guará, de que falarei adiante. Era o chefe supremo da nossa
zona de guerra.
O Coronel Palimércio de Rezende era também um chefe de alta
envergadura, dirigindo o Estado Maior, como grande técnico
que era. Muito bem vestido, embora sobriamente, nunca
deixou de corresponder ao cumprimento dos soldados, ao
contrário de tantos outros empavonados, como o herói do
Salto. As licenças tinham sido proibidas. Pois bem, foi
preciso por sentinela na porta do seu carro, na estação de
Cachoeira, para impedir a entrada de soldados, pois a todos
ele concedia licença, Era um bom homem.
De uma feita o Coronel Melo Matos telegrafou pedindo fosse
licenciado Dilmar Alfaia, para ver seu pão às portas da
morte. Veloso brecou a licença por todas as maneiras.
Cheguei a conseguir do Coronel Lamego, mas o respectivo
memorando foi interceptado por Veloso. Dilmar desesperava-
se para ver seu progenitor. De santos telefonavam
aflitivamente. Fui a Cachoeira, onde o Major Galvão tudo
facilitou. Mas o caso esbarrava no Coronel Palimércio, leu-
o, levantou os olhos e os fixou em mim, como que a
prescrutar meu íntimo. Assinou o papel e, entregando-me,
disse apenas: Tenho a sua palavra, tenente.

108
Dilmar ainda encontrou seu pai com vida.
O Cel Palimércio era um homem bom, um grande e leal soldado
da Constituição.
S. Paulo precisa gravar os nomes desses homens; Os
Palimércios, Euclydes, Tabordas, Sampaios, precisam
constituir a grande galeria de ouro, em contraposição aos
calabares que enxovalharam a farda até então honrada que
vestiam.
À Cesar o que de Cesar for.
O Cel Sampaio, de quem tantas vezes tenho falado, é gaúcho.
Baixo, de mais de 50 anos, largo chapéu de feltro, em
campanha, usava na cidade capacete de aço, com as armas da
República pintadas sobre o seu nome.
Atendida com solicitude, quando não estava de mau humo. As
vezes era ríspido e os soldados se molestavam muito com
isso. Mas era feitio do bravo militar, que logo depois se
arrependia de qualquer gesto apressado. Um dia, ante uma
república, mandou prender um rapaz, que teimava em obter
licença. A hora do almoço suspendeu a refeição e chamou seu
ajudante de ordens:
- Vá soltar aquele soldado e dê-lhe cinco dias de licença.
O Paulo Guimarães atracou-o um dia, para ir a Santos. Ele
negou a pé firme. Brincou com o Paulo, para dissuadi-lo da
viagem.
- Não vá moço. A Revolução vai acabar e o senhor está fora
da sua tropa. O Paulo insistia.
- Olhe, vá embora. Amanhã darei a licença.
- Mas amanhã o senhor nega, esquecido da promessa.
- Não nego. Aqui fica minha rubrica no seu salvo-conducto.
Eu não me esqueço.
Rubricou o papel e no dia seguinte deu a licença.
Era de veneta.
Sempre recebia afavelmente seus oficiais e infalivelmente
perguntava pelos “peixes”. Ficou, por isso, axiomático que
o Coronel Sampaio era o chefes dos “peixeiros”.
A grande reunião de Guaratinguetá deu-se no seu Q.G. Ele
estava ao lado do Coronel Euclydes.
Portou-se lealmente.
A porta do seu carro no comboio do Estado Maior, em
Cruzeiro, havia cartazes de todos os feitios, folhas de
jornais, exortações e advertências. Em letras garrafais,
para que se visse claramente:

QUEM PEDE LICENÇA NÃO É PAULISTA; É DERROTISTA.

Parecia cada de protestante, onde se leem versículos da


Bíblia pelos cantos todos,
Qualquer rádio captado, como “peixe” de valor, mandava
afixar em boletim.

109
Era seu chefe de E.M. o Major Oswaldo Mena Barreto, oficial
que não desmentia a tradição do nome. Corria diariamente as
linhas providenciando sobre tudo.

ASPECTOS DA CIDADE

Quando chegamos à Guará, a cidade regorgitava, mas


rapidamente se despovoou. As famílias procuraram nas
cidades da retaguarda um abrigo que percebiam ser difícil
sob o fogo inimigo.
Quanto juízo tiveram! Deus sabe o que teriam passado se
permanecessem à mercê da ferocidade ditatorial!
Encontramos em pleno funcionamento o hospital da Cruz
Vermelha de Santos, dirigido por Guilherme Gonçalves,
Major-Chefe. Perfeitamente aparelhados, puderam os
facultativos santistas salvar numerosas vidas, prestando
destacáveis serviços. Alcebíades Sales, Clóvis Lacerda,
Osório Souza Leite, Navajas Filho, Marcílio, Artur Costa
Filho, médicos, Rodrigo Camargo, dentista, Henrique Rosa
Ferreira, amanuense, enfermeiros, ajudantes, todos
prestavam ótimos serviços. A Cruz Vermelha de Santos,
presidida pelo Dr. Flor Horacio Cirilo, eficientemente
coadjuvado por Armando Licht, atendia à tudo e à todos. Não
abandonava qualquer dos sectores, desde Cunha e dos confins
da Serra do Quebra Cangalhas, ao extremo flanco esquerdo. É
inconstestável que Santos, a heróica terra de Braz Cubas e
dos Andradas, cobriu-se toda de magníficos louros,
prestando formidável tributo à causa constitucionalista
imediata do País. Os anães físicos e morais que andaram
pela retaguarda à praguejar o alheio, não podem ter
projeção alguma na obra de grandeza escrita com decisão e
patriotismo.
O Posto de Saúde estava instalado no magnífico e amplo
palacete do inesquecível paulista Cons. Francisco de Paula
Rodrigues Alves, que ainda assim se ligava ao grande surto
da terra que lhe foi berço e túmulo. Só se verificou a
retirada quando o bombardeio impedia a continuação dos
serviços médicos sob intensa metralha. Lá em Guará fui
encontrar a minha amada amiga Dona Rosa Gonçalves, mãe do
Guilherme, que acompanhava o filho ao mesmo passo, com
ardor e entusiasmo, o desenrolar das operações de guerra
que desenvolvíamos.
Na guerra há fatos empolgantes e há outros de um ridículo
sem par. Numa fresca manhã saía do Posto de Saúde, onde fui
receber um simples curativo, quando verifiquei que um
oficial bem gorducho, baixo, rebolava-se todo, fazendo
continência exageradas e insistentes à soldados e oficiais.
Era bem estranha a cena, porque na guerra o uso da
continência fica quase abolido. Com efeito, não se faria

110
outra coisa, numa praça onde a população tem 95% de
militares.
Apenas aos grandes chefes os militares cumprimentam.
Procurei cruzar de frente com o tal Segundo-Tenente. Com
grande surpresa constatei que tinha a cara pintada como
palhaço de circo. Era uma mulher! Mas mulher de baixa
condição, velhusca, feia. Ainda se fosse moça e bonita...
Na guerra há três coisas sumamente inconvenientes: o
paisano, a cachaça, e mulher. Que diríamos então daquele
traste, metido solenemente numa farda kaki, galão ao
hombro, capacete de pano na cabeça, distribuindo mesuras e
continências, sacudindo os quadris? Era feia, mas na guerra
há sempre muita contemplação desta perspectiva.
Quando ela se viu de frente comigo, levou a sua mão
espalmada à altura do parietal direito. Parei e ela também.
- Baixe essa mão, moça. Onde arranjou essa farda? E esse
galão?
- Eu sou do P.C. do Paes Leme.
- Não é verdade. O valente Paes Leme não tem oficiais de
saia. A senhora esta presa, queira me acompanhar à
Delegacia Militar.
Deixei ela lá, com enorme gaudio dos médicos, que se riam a
bandeiras soltas com o incidente, de certo jocoso.

*
* *

111
112
O CAPACETE DE AÇO

O capacete de aço é, no país, novidade paulista. Dizia-se


que o primeiro apanhado pelo inimigo foi exposto na Avenida
Rio Branco, no Rio, como prova de que São Paulo de há muito
tempo premeditava a guerra, tanto é que estava importando
capacetes. A ditadura não acreditava na eficiência da nossa
indústria. Não é de se admirar, porque ainda sob muitos
aspectos interessantes não somos conhecidos dos nossos pró-
homens.
O capacete foi maravilhoso. O preço dado por eles, pelas
populações, está suficientemente resgatado pelas vidas que
salvou. Inúmeros foram os que eu vi furados, mostrando que
sem ele o soldado estaria sem dúvidas, morto. A bala que
atingia o aço, furava-o muitas vezes, recocheteava em
outras.
A ferida, quando havia, era leve, quase sempre feita pelo
rebordo do furo aberto na chapa.
Os primeiros que apareceram eram do tipo francês. Eram os
mais apreciados. Depois apareceram os ingleses, apelidados
"shangai", usados apenas na falta absoluta dos outros.
Enorme carapuça quadrada que vinha até o pescoço. Disseram-
me que pesava dois quilos. Pescoço houvesse para aguentá-
los. O capacete parece difícil de ser levado, pelo peso.
Puro engano. Logo o soldado se acostuma e sente tanto seu
peso, como o de elegante palheta. Quando está sem ele,
parece que lhe falta alguma coisa.
Uma tarde, em Aparecida, subia a ladeira, quando alcancei o
Vigário, um venerando Redentorista. Olhou tristemente para
a minha cabeça e disse: - Foi o que faltou ao Major Aires.
- Major Aires, perguntei, o que aconteceu?
- Dei-lhe esta noite a extrema unção. Uma bala varou seu
crânio.
- Mas, quem era?
- O Comandante do 7 de Setembro.
Pobre Major Aires! Nos encontramos na luta, em Cachoeira e
fomos bons amigos. Na manhã do dia em que morreu passou por
Guará, antes de assumir seu comando. Sabendo que estava
ali, foi me visitar. Não quis descer do automóvel,
prometendo vir outro dia almoçar comigo. Nunca mais o vi.
Naquele dia faltou-lhe o capacete de aço, disse o Vigário.
Mas o soldado, fatalista, diria que chegou o seu dia!
Para o soldado "ninguém morre na véspera".

*
* *

113
HÓSPEDE DO PAES LEME

Na véspera da morte do meu amigo Aires, ocorreu uma


horrível aventura, à mim e à alguns soldados. Caímos, sem
mais nem menos, entre duas linhas de fogo - nossa e do
adversário.
Tinham saído de manhã para o acampamento, tendo dormido em
Guaratinguetá. No início do caminho encontrei o Comandante,
que vinha de caminhão. Eu estava no Chevrolet de passeio.
Ele vinha com cargueiros e explicou-me que queria instalar
o posto de reabastecimento do Fragoso. Eu conhecia bem o
caminho, pois o fizera dois dias antes, a pé, para explorá-
lo. Combinamos que eu iria à cidade buscar gêneros, para
nos encontrarmos na serra, mais tarde. Assim foi. Tudo
feito e entregue ao Tenente Fernandes. Iam comigo três
soldados, dos quais me lembro do nome do Olavo Vieira, um
rapaz muito inteligente e dedicado. O tempo se fazia
ameaçador e o Comandante sempre retardava a partida, apesar
dos meus avisos de estar o automóvel sem correntes. O
caminhão já partira. Caiu a chuva e o caminho se empapou.
Na primeira subida, o carro não galgou. Fizemos os maiores
esforços e nada. O Comandante desceu e tomou de um cavalo,
seguindo para o acampamento. E nós ali. Dentro de pouco
vinham dois cargueiros e um burro solto, tangidos pelo
Peres e pelo Argemiro Moreira. Chovia a cântaros.
Resolvemos deixar o carro e seguir a pé, para vir buscá-lo
na manhã seguinte. Partimos. Logo adiante um caminhão do
Major Valença lutava sem sucesso com a lama. Continuamos na
caminhada. De repente o Olavo desconfiou que o caminho não
era aquele. Paramos. Não era, mesmo. Retrocedemos.
Escurecera de todo. Meus óculos embaçados pela chuva
cortavam-me a visão. Também não era por ali. Rumamos para
uma casa grande e branca. Não era a fazenda por onde
passáramos de manhã. Voltamos e demos em uma estrada larga.
Eu queria retroceder e o Olavo avançar. Ambos julgávamos
que na direção pretendida iríamos à Guará. Os outros
soldados já haviam perdido a bússola antes de nós, não
diziam uma palavra sequer.
Segui por onde me parecia certo e nos enroscamos nas cercas
de arame que antecedem as trincheiras. Raio! Por ali também
não era!
Com muito custo, nos desembaraçamos das farpas. Um tiro
estralejou bem perto. Estávamos visados. Do lado
diametralmente oposto pipocavam as balas, respondidas bem
perto. Estavamos em fogo cruzado. Rebentavam granadas de
mão.
Bonito! Quem nunca esteve em tal situação, que nunca
esteja, ainda que seja o meu maior inimigo.
Abaixamo-nos e fomos andando como era possível, cerca de
300 metros, em silêncio. Demos num barranco e nele nos
abrigamos. Depois de mais de dois quilometros de caminho,

114
fora do campo de tiro, parei e chamei pelo Olavo. Havia
desaparecido. Interroguei os companheiros e eles me
disseram que no tiroteio ele sumiu. Era desesperador.
Procuramos; nada.
Fosse o que Deus determinasse.
Ao longe dois faróis. Paramos; devia ser Lorena, porque as
nossas forças não usavam faróis e de automóvel não eram,
porque estavam parados. Muito ao longe uma cidade
iluminada. Pensamos que fosse Guará; era Lorena.
Decidi-me, afinal. Na primeira luz eu chegaria. Fosse amigo
ou inimigo. Preveni os companheiros. Por detrás de um alto
barranco, talhado quase à pique, vimos uma claridade débil.
Galgamos. Era uma barraca. Aproximei-me de mansinho e puz-
me à escuta. A conversa não adiantava. Não ia nem vinha,
como se diz na minha terra. Por ali não saberíamos de onde
eram os ocupantes. A esse tempo o Comando do Setor ainda
não dava senha diária. A que tinhamos era só do Oitavo. Que
fazer? Meti a cabeça por uma abertura. Estavam quatro
soldados em volta de uma lamparina. Não tinham capacete de
aço. Perguntei bruscamente:
- Paulistas?
- Não.
Levei a mão ao revólver, pronto à fazer fogo. Eram 4 e eu
tinha, à queima-bucha, 6 tiros.
Nisto um que era o mais idoso da roda acrescentou:
- Paes Leme.
Respirei, entrando ante o estupor daquela gente e sentei-
me. Os companheiros entraram e contei nossa odisséia.
Deram-nos cognac, café e bolachas. Era o P.S. do Paes Leme,
dirigido por um amável facultativo de Piracicaba, que não
me deu o nome. Mandaram-me, por fim, ao P.C., onde não
estava nenhum oficial. Afinal chegou o Capitão Gabriel, que
se lembrou de uma antiga apresentação feita por um amigo
comum, em São Paulo. Agasalhou-nos, deu-nos roupas, comida,
vinho, doce, café e cama. O jantar estava na metade quando
entrou um oficial do Batalhão.
- Gabriel, dizia ele muito assustado, veja que gente
audasiosa! Foram mesmo junto da minha trincheira. Meti
granada neles, mas tiveram sorte; negou.
Uma sonora gargalhada sublinhou as palavras do Tenente.
- Olhe, o carioca esta aí.
E mostraram-me.
Muito riso, muita alegria. Na manhã seguinte o Gabriel
levou-nos ao P.C. do Coronel Sampaio.
Já correra a notícia que estávamos mortos ou presos e o
Spindola andava em nossa busca. Chamou-me recruta.
- Recruta? Vá você de noite, como eu fui, por um tempo
daqueles!
Encontrei o Olavo, mais o Peres e o Argemiro. Também tinham
perambulado. O caminho que Olavo queria seguir era o de

115
Lorena. Deram em uma trincheira, dentro da qual rolaram,
por haverem escorregado. O Major Valença os abrigara.
Quando chegamos ao acampamento foi uma festa. Tive de
repetir a história mil vezes. Daí há pouco cada um a
contava à sua maneira.
Circunstância notável que não devo deixar de registrar.
Nesse mesmo dia minha senhora, em Santos, fora visitar
nosso filho Paulo, destacado no Guarujá. Ia com ela minha
filha Alda. Ao aproximarem-se os irmãos, despreende-se o
revólver do Paulo e, caindo, dispara, indo a perna da Alda,
acima do joelho, sem tocar no osso.
Na aflição do momento, diz-lhe minha senhora, católica
praticante que é:
- Minha filha, oferece teu sacrifício à Deus, por teu pai,
que talvez esteja em perigo!
Deus, em seus altos desígnios, aceitará a oferenda daquele
anjo.

*
* *

BOMBARDEIO DE GUARATINGUETÁ

Tremem minhas mãos ao descrever esta página de horror. É


incrível que alguém haja manchado de negro a nossa
civilização, mandando bombardear uma cidade aberta, sem
força alguma acantonada, cheia de paisanos, com hospitais
em pleno funcionamento, sem qualquer objetivo militar, que
não fosse a intimidação.
Estávamos com a Intendência em uma grande chácara, na
entrada da cidade, na estrada que vai ao Rio, em frente ao
posto de fiscalização. O canhão 150 dera cinco tiros contra
as forças da ditadura. Imediatamente após o quinto tiro,
ouviu-se o estampido do canhão adversário e o silvo
sinistro da bala que se aproximava, seguido do estralejar
da granada que explodia. Não se dormiu um segundo. Deitados
sobre o chão, ao ouvirmos o rebentar de uma bomba,
ficávamos esperando pela outra. Uma interrogação angustiosa
pairava sobre todos: - Será a nossa?
Ninguém se mexia. Em pouco os estilhaços haviam arrebentado
os fios condutores da eletricidade e tudo estava às
escuras. Espaçadamente os canhões roncavam como fantasmas:
- Tum... Fiuuuuuuuu... uooonnnn... shuaaa...
Uma chuva de estilhaços cobria a coma do arvoredo.
Pela manhã um projétil passou tão rente do nosso telhado
que o sargento Moreno não mais suportou:
- Seu Tenente, isto já é imprudência demais.
Vamos ali atrás do morro, que fica em ângulo morto. Ordenei
que todos se dirigissem para o ponto indicado, onde nos

116
metemos num buraco que a natureza previsora ali deixára. O
bombardeio continuou até o dia clarear. Quando cessou, o
sargento Moreno tinha contado 62 tiros. Nenhum nos
atingira; em volta da casa o chão estava coberto de
estilhaços. A casa do Sr. Martiniano Rodrigues Alves tinha
os fundos desabados. A cidade estava esburacada. Uma
granada passára rastejando sem explodir. Passara por
debaixo da cama de um sírio que dormia, atirando-o de
catrambias, mas sem ferí-lo. Bala camarada.
Duas outras caíram no mercado, ferindo dois homens.
Crianças e mulheres mortas e feridas, casas atingidas, fios
partidos, uma miséria.
Durante o dia o canhão recomeçou sua obra sinistra,
coadjuvado pelos aviões que, cinco ou seis, despejavam uma
carga e iam buscar outra. Contaram-me que os aviadores
ganham por vôo.
Tínhamos mudado a Intendência para a casa do finado Coronel
Virgílio Rodrigues Alves, um amplo palacete, junto da
matriz. A proximidade da igreja evitaria as bombas,
pensávamos, porque ninguém teria coragem de visar um
templo. Puro engano. Na Aparecida cometeram o sacrilégio de
metralhar o pátio da Basílica.
Não morremos todos porque Deus não quis.
As bombas de avião não davam tempo para nada, era um
inferno, de arrepiar as carnes.
Já não se ouviam os estampidos, tantos eles eram. Um
momento vi os rapazes correndo para o interior do prédio,
lívidos como cadáveres. Uma formidável bomba caíra bem em
frente das nossas janelas, moendo os vidros como
estilhaços. Os intervalos entre dois estouros eram ocupados
pelas rajadas de metralhadora, vinda do alto.
Combater assim, do alto, sem perigo algum; sem arriscar a
pele, é bom...
É bom, é cômodo, mas não é nobre nem galante.
É outra coisa...
A cidade agora era um cemitério. As Intendências foram
abertas para socorro ao resto da população, tão pobre, que
não pudera fugir. Levas e levas de pobre gente, tomada pelo
medo, andava circunvagando, em busca de alimento, formando
longas filas às portas dos armazéns de viveres.
A luta se transferia do campo raso, onde os homens medem a
valentia, para os combates seguros, de cima para baixo,
embora aqui em baixo não haja soldados para vencer, mas
homens indefesos para espavorir.
Viva a República!
Durante mais de 50 horas, Guaratinguetá viveu horrores
dantescos, vendo cair projéteis de todos os tamanhos sobre
suas ruas. Cidade aberta, que não abrigava um único Corpo.
Os acampamentos estavam inertes, sem um soldado ditatorial
para repelir. As populações pagavam o crime de serem
paulistas.

117
*
* *

APARECIDA

Aparecida. A Lourdes do Brasil, Basílica criada pela Santa


Sé. A imagem que ali se venera, de Nossa Senhora Mãe dos
Homens, acaba de receber o título de Padroeira do Brasil,
por mercê do Santo Papa, sendo como tal coroada solenemente
na Capital Federal, em presença do ditador e seus
ministros, ante uma multidão calculada em um milhão de
pessoas, que aclamavam a Santa Padroeira. Nunca mais me
esquecerei do espetáculo empolgante que nesse dia meus
olhos viram. Diante daquela imagem pequenina e escura, sob
uma pesada coroa de ouro, posta pelo Episcopado do país
inteiro, ornada por um manto azul como o céu de São Paulo,
têm passado milhões de peregrinos, vindo de todo o mundo. A
romaria é incessante, cada um trazendo a oferenda da sua
fé.
Aparecida é, portanto, legítimo padrão da fé brasileira,
alvo do mais reverente respeito dos mais céticos.
Pois bem, Aparecida, a Lourdes brasileira; relicário para
onde, nos momentos de aflição, se dirigem as súplicas de
todas as mães brasileiras, não mereceu respeito algum dos
sargentos da Aviação Nacional, encarapitados em aparelhos
comprados com dinheiro paulista. Aparecida, fora do alcance
dos canhões da ditadura, sofreu o bombardeio aéreo mais
brutal que vimos, nessa longa campanha.
O soldado paulista não passava por Aparecida, sem
prosternar-se aos pés da Virgem. Em longas fileiras
entravam, capacete na mão, olhar fixo na imagem que lá do
alto sorria.
Ajoelhavam-se e curvados sobre o solo, largo tempo se
absorviam em orações, pela nossa segurança, pela
tranquilidade de nossos lares, pela glória da nossa terra,
pela vitória da justiça. Entendeu a Senhora dos Homens que
para São Paulo seria melhor não vencer agora. Altos
desígnios de Deus. Conformemo-nos com sua vontade e
ponhamos nele toda confiança, na certeza de estar breve o
dia da redenção.
Pois bem, contra os soldados desarmados, que iam em oração
à Basílica, fora atiradas rajadas de metralhadora, cujas
balas vinham se esmoer nas pedras do calçamento.
Uma tarde fui ao armazém de abastecimento de Aparecida. Iam
comigo o Canto e o Reginaldo. Ao nos aproximarmos da

118
estação férrea, os aviões corvejavam sobre nós. As bombas
caiam como chuva. Em uma casinha estavam alguns sapadores.
No chão alguns encerados e sobre eles números velhos do
"Cruzeiro"; rapazes deitados, liam. Era assim que se
passava ali, naqueles dias trágicos. Entramos e deitamos
também, com o ventre para baixo, lendo as revistas. Um
silvo mais pronunciado denunciou granada próxima; o
estampido não demorou. Caíra à distância de alguns metros.
Um sapador estava morto, com toda calota levantada e os
miolos à mostra. Mais 3 feridos. Os companheiros quiseram
sair.
- O melhor é ficar. Já que esta caiu tão perto, é natural
que as outras caiam mais longe.
Ficamos. Não adiantava correr; a granada não trazia
endereço. Para morrer todo lugar é bom.
Serenada a tormenta, tomamos as coisas que fomos buscar.
Faltavam-nos alguns capacetes de aço. Fiz o pedido e na
Intendência geral, disseram que era preciso visa-lo pelo
Coronel Novais, no Q.G., que ficava lá no alto. Fomos. Na
volta verificamos do que havíamos escapado. Precisamente no
lugar onde tínhamos estado, caiu uma bomba de 60 quilos.
Cavara um buraco de cerca de 30 metros de diâmetro,
derrubando enorme telheiro. A casa, em cujo quintal ela
tombara, estava inteiramente atingida. A deslocação do ar
fora tamanha, que, atravessando a rua, metera para dentro
as portas e janelas da Intendência. Não se encontrou um
único estilhaço; voara tudo.
Na estação férrea passou-se caso muito mais sensacional.
Estava parada uma locomotiva. O maquinista, sem serviço,
cochilava. Para espertar resolveu tomar café, verificando
então que nada trouxera para comer. Levantou-se e foi pedir
algumas bolachas no armazém de viveres. Na sua ausência o
aeroplano desovara sobre a máquina, aplastando-a.
Ele escapara da morte certa.
- Então Manuel, como foi isso?
- Manuel, não senhor. Agora chamo-me Antônio. Nasci outra
vez.

*
* *

ESPIÕES

Quando nos instalamos no bairro da Jararaca, o André Freire


me contou coisas bem estranhas. Um fazendeiro tinha um
telefone para Lorena. Na fazenda já estava feito um amplo
refúgio contra o bombardeio. O homem se recusava a tocar o
gado para trás das nossas linhas. Era mineiro e adversário
político do Sr. Artur Bernardes.

119
Eu também achei a coisa muito esquisita e comuniquei ao
comandante. Mandou ele buscar o homem, missão desempenhada
desde logo. Mas havia em sua fazenda mais gente. Um moço,
formado em direito, que fôra delegado de polícia em Cunha,
demitido após o movimento constitucionalista, por fortes
diferenças com seus chefes. Era suspeito. Mandou o
comandante que eu fosse busca-lo. Chamei o Márcio e tocamos
para a fazenda, onde voltamos com o rapaz. Interroguei-o;
mostrava-se estranho a qualquer entendimento com o
adversário. Perguntei porque não tomava armas contra a
ditadura. Respondeu que estava descançando dos muitos
serviços de Cunha. Fomos encarregados, eu e o Major
Valença, de leva-los ao P.C. do Coronel Sampaio e, de lá,
ao Q.G., em Guará. Do Q.G. ainda me mandaram conduzi-los à
Delegacia Militar, onde ficaram. Abriu-se inquérito. De uma
das testemunhas ouvi que o mineiro fanfarroneava "que
haveria de vender paulistas a dois por um tostão".
Convidava nossos soldados para chupar laranjas na fazenda e
lá os rapazes eram presos por forças ditatoriais que ele
ocultava.
No dia em que lá estive, mal chegando ao nosso P.C., ouvi
fuzilaria. Eram soldados inimigos que atiravam sobre nossas
patrulhas, principalmente sobre a cavalaria de Castro, com
quem cruzei no caminho. A tropa carioca estava emboscada e
não me prendeu porque, certamente, preferiu prender a
cavalaria. Eu era inofensivo. Tivemos um cavalariano preso
e um cavalo ferido por bala no pescoço. Foram soltos os
homens. O Mário encontrou o doutor em Cruzeiro, quando da
sua prisão.

*
* *

FORNECIMENTOS
Quero fixar aqui um dos pontos mais obscuros da
campanha. Os armazéns do S.A.T.O. (Serviço de Abastecimento
das Tropas em Operações), instalados no mercado novo em São
Paulo, regurgitavam dos mais variados artigos, de bandeiras
de São Paulo a palitos. Havia ali também tudo o que se
podia requisitar para a alimentação das tropas, o movimento
era intenso. Se faltasse alguma coisa, era possível
adquirir prontamente na praça.
Na frente Norte, o abastecimento de gêneros de
alimentação era farto. Mas no resto…

120
De Santos subiam toneladas e mais toneladas de
bananas, mas a banana que nos aparecia era escassa,
escassíssima.
Doces, agasalhos, presentes, nada chegava para nós. A
Cruz Vermelha de Santos e a Associação Comercial nos
mandaram agasalhos e joalherias. Foram as únicas coisas que
recebemos.
Quando a nossa tropa ficou sem roupa, especialmente
brancas, fui a São Paulo buscar mais após a minha desilusão
quanto à obtenção na Cachoeira e Cruzeiro. No S.A.T.O.,
conheci pessoalmente o Dr. Heribaldo Siciliano, que ali
trabalhava. Fiz então, eu mesmo, o pedido para ser
despachado. A surpresa foi geral. “Como? Mas não havia
abastecimento no Norte?” “Não é possível, para ali seguiam
trens carregados de roupas e utensílios, trens inteiros
especialmente para isso”.
Garanti que lá não havia estoques, pois os rapazes
encarregados da distribuição eram meus conhecidos e não
teriam me enganado. Aliás, eu costumava percorrer os
armazéns e de fato via como os fornecimentos foram
reduzidos.
Devia ser engano meu, ponderavam. Mesmo assim me deram
um memorandum interno para fornecerem tudo o que eu
necessitava em Cruzeiro. Eu deveria então procurar ali o
Dr. Melo Matos, da Delegacia Técnica. Aceitei.
O Dr. Melo Matos já logo declarou que não tinha nada
do que eu pedia e precisava. Era no Material Bélico. Fui
lá. O Dr. Cruz exigiu o “visto” do Cl. Sampaio. Obtive.
Não havia mercadorias. Com muito custo consegui 100
uniformes, 50 pares de calçados e alguns facões de mato. O
restante seria somente quando eles também tivessem. O Dr.
Cruz, de forma muito paciente me mostrou os sucessivos
pedidos que o S.A.T.O. recebia em São Paulo sem serem
atendidos, até mesmo os pedidos por telegrama.
Voltei a São Paulo. Reclamei e me mostraram as
numerosas requisições de despacho na Central do Brasil.
Ninguém entendia. Eu também não entendia.
Não fosse a guerra o melhor negócio…

121
Mas o mal não estava no S.A.T.O. e nem nas cidades da
frente. O mal estava no caminho em que o carro fazia…
Recebi então tudo o que a minha tropa necessitava e
carregamos dois caminhões para que fizessem o transporte.
Os caminhões foram então embarcados na Estação do Norte e
tudo chegou seguramente. A tropa estava restabelecida.
Os jornais anunciavam a generosa campanha das moças
sírias para adquirir impermeáveis para soldados. Não vi um
só desses impermeáveis. Duas moças abriram, com grande
êxito, a Campanha do Ovo. Se esses ovos tivessem veneno,
não nos matariam…
Para onde teriam ido essas coisas? Para o fundo da
Paraíba, onde atiravam os cunhetes de munição que nos eram
mandados?
Sobre a munição há um fato notável. Em dia de aperto,
o Cl. Euclides telefonou ao General Klinger, pedindo
urgentemente reforço. O general então informou que havia
acabado de sair um especial, da Estação do Norte, com 600
mil cartuchos. Diante disso, o Cl. Euclides calculou que o
trem levaria no máximo 5 horas, e então mandou gastar a
reserva. Até hoje o trem não chegou. Fiel ao princípio que
adotei, conto este fato sem endossá-lo, pois não o
testemunhei. Porém ouvi de uma pessoa altamente colocada
nos meios militares.
Não sei se esses fatos se reproduziram nas outras
frentes, pois somente narro o que vi. Seria, entretanto,
interessante saber toda a história.

*
* *

O CONVÍVIO

Em uma narração despretensiosa como esta, muita coisa


escapa. A princípio tentei escrever um diário onde apontava
os fatos mais salientes, confiando na memória para mais
tarde desenvolver o texto. O serviço não me deixou tempo
para essa tarefa, e hoje recorro apenas às reminiscências.

122
Circunstâncias imprevistas me fazem escrever longe dos
companheiros, de modo que nem eu mesmo posso recorrer a
eles para que me ajudem. A única coisa de que disponho é a
coleção dos nossos boletins. Mas aí o subsídio é tão
pequeno que quase nada ajuda. Por isso, vou romper a ordem
cronológica de minha narrativa, e contar casos pessoais
ocorridos com a nossa gente, no desejo muito sincero de
esquecer o mínimo possível.
Não me referi ainda ao dentista Luis Silva, porque nas
vezes em que falei da organização do oitavo, seu nome não
constava no boletim. Ele é conhecidíssimo em Santos. Na
fazenda P. Morais feriu-se, o que o levou a passar muitos
dias fora da Unidade. Voltou ao posto, continuando nos bons
serviços anteriores. O Lulu era estupendo. Manco, curvado
para um lado em consequência do desastre que sofrera na
referida fazenda, andava vagarosamente. Vivia no
acampamento, mas um dia resolveu vir para a cidade, onde
instalou o gabinete. Instalação modesta, mas servia. Nhonho
Paula Ramos era o seu impagável ajudante, afinal afastado
do nosso meio por um desastre de automóvel que estava
roubando-lhe a vida. O Lulu e o Nhonho nos divertiam todos
os dias com suas animadas palestras. No final aquele
desconfiou. Estava sendo perseguido. O comandante implicara
com os elementos da Falange Acadêmica e eu andava metido na
conspiração contra ele. É claro que não dei a menor
importância à acusação, inteiramente destituída de
fundamento tanto em relação ao Spindola como a mim, que não
tinha motivos senão para bem querê-lo como bom companheiro
que era. O Lulu tinha uma habilidade - deslocava o maxilar
e ficava horrendo. Um dia ele quis reproduzir a manobra,
mas o Canto impediu:
—Olha Lulu, você é feio mesmo. Não precisa fazer força
para isso.
Até o Lulu achou graça.
Eu me divertia em provocá-lo. Tínhamos tremendas
discussões. Todos percebiam que eu o estava provocando, mas
o Lulu levava o negócio a sério, até que também percebia a
brincadeira, dando o cavaco.

123
O Spindola muito o apreciava, mesmo porque ele
prestava bons serviços como dentista, enfermeiro e até como
médico e… cirurgião. Na fazenda Morais tirou muito caco de
granada do pessoal.
*
* *
Uma das consequências da guerra é o destemor que
infunde nos moços. Na paz, o indivíduo encara as
possibilidades de rixa e os atritos pessoais como coisas
que devem evitar. Na guerra, como perder o amor pela
integridade física. Se por um lado se estreitam as relações
entre os homens que juntos combatem, por outro nos faz
encarar as situações mais perigosas com absoluto sangue
frio.
Osvaldo Lima era um menino com raros fios loiros que
lhe sarapintavam o rosto de criança. Entretanto, ele
aguentava firma as operações de guerra. Quase todos os
rapazes usavam revólver, embora não nos pagassem dessas
armas. Cada um tinha o seu. Osvaldo estava de brincadeira
com um companheiro. De repente, este fingiu que sacava o
revólver. Osvaldo não pestanejou e nem tirou o corpo:
—Não corri de canhão; vou correr dessa merda!
*
* *
O bom humor era outro traço característico da
campanha. Spindola é maranhense. Uma tarde jantávamos à
sombra de uma laranjeira no P. C. da Jararaca. Apareceu o
Fernandes, querendo vender um ótimo revólver Schmidt &
Wesson, mocho, por 250$000. O Spindola ofereceu 200$000 e o
Fernandes recusou. 220$000. Não quis. Nisso toca o
telefone; era o Fragoso que chamava o Fernandes. Na
ausência deste dizia o Comandante:
—Estou com vontade de comprar a arma. É boa. Eu tenho
uns bônus e estou com medo que isso fique sem valor.
Também, se compro o revólver e nós perdemos a revolução,
vem por aí algum “cabeça chata” e me toma. Os bônus são
mais fáceis de esconder…

124
Em outra oportunidade, Guilherme Gonçalves e eu fomos
chupar jabuticabas. Estávamos trepados na árvore quando o
canhão assobiou. A granada vinha silvando, e o Guilherme:
—Se esta peste cai aqui, acaba com as jabuticabas.
O Paulino, aliás José Roux Paulino, era o bom humor em
pessoa. Ele mesmo, pelo seu aspecto baixote, atarracado,
olhos miúdos e brejeiros, era a própria brejeirice. Exímio
“comprador” de galinhas, via em tudo motivo para rir. Só o
vi sério uma vez e por muito pouco tempo, quando em Pinda,
comandava algumas evoluções de seu pelotão. Mas ao se
distanciar do Comandante, suas vozes de comando eram de não
se poder repetir aqui.
Um pândego; mas também um valentíssimo soldado.
O José João Batista de Oliveira teve uma fístula no
queixo. Tirou licença. Perder uma oportunidade daquelas era
difícil. Contou a todos que fora um estilhaço de granada
que ferira o mento. E quem duvidasse que fosse perguntar ao
Lulu, que bem sabia. O Lulu sabia que aquilo era uma
fístula, pois ele próprio o tratou.
Em Santos não há quem não conhecesse o Rico Tipo. Em
Santos, em Cachoeira, em Cruzeiro e onde quer que ele
passasse. Apareceu preso, no P. C. em Guará. Vinha rasgado,
sujo e conduzindo dois fuzis. Saíra em patrulha com um
companheiro e ficaram perdidos no mato. Quando aquele
figurão entrou no quarto do comandante, todos riram.
—Quem é você?
Perguntou o Rocha Marques. O Rico Tipo, muito sério,
voltou-se para o Ciro Ruiz e disse:
—Vamos Ciro, me apresenta!
Novas gargalhadas. O Ciro apresentou:
—É o Rico Tipo, meu amigo.
—Isso não é documento — atalha o Major — eu também
tenho muitos amigos do lado de lá.
—Mas este é o lado de cá; é do Naval, ali do Major
Borges.
—Então pode ir. Mas olhe moço, quando sair em
patrulha, vista-se melhor para no caso de ser preso e não
nos desmoralizar.

125
O bravo atirador saiu sob estrondosas manifestações
dos seus muitos amigos ali reunidos, satisfeitos pela
oportunidade de vê-los.
O bom humor não era privilégio nosso. Quando foi do
armistício, um capitão constitucionalista, cujo nome já não
recorda, foi parlamentar no quartel general do General Gois
Monteiro. Recebido pelo chefe ditatorial, este perguntou-
lhe:
—Capitão, você me acha muito magro?
—Não general, por quê?
—Pois vocês chegaram a anunciar o meu enterro!
—Mas a ditadura também usou desses processos.
—Usou, não contesto. Mas assim, de matar o comandante
chefe!
O capitão contou mais que o general acrescentara:
—Você não ouviu falar na deposição do interventor
Barata, no Pará? Como se chamava o chefe desse movimento?
—Parece que era o Tenente Saint-Clair Paris Leme.
O general gritou para dentro do vagão:
—Oh Saint-Clair!
Apareceu um oficial, e o general, falando ao capitão:
—Apresento-lhe o comandante de minha artilharia…
Mas os jornais anunciaram a prisão do Tenente Saint-
Clair, como chefe do movimento paraense. O fato só encontra
explicação no espírito brincalhão do capitão ou do general.
A guerra exalta também as virtudes no homem. Temos
disso bastos exemplos. Alguns poderei relatar.
Um jovem estudante de direito — Carlos Pacheco Cirilo,
filho do presidente da Cruz Vermelha de Santos, partiu com
nossa tropa para a linha de fogo. Ele e seu primo Alcides,
filho de Cirilo Jr., o ardoroso tribuno paulista.
Adoeceram ambos. Alcides com forte ataque hepático;
Nonô com uma gripe. Tiveram licença e saíram para o
embarque. Alcides estava de fato muito doente, tanto que
não lhe foi possível voltar. Nonô ainda se aguentava. No
caminho, disse ao primo que retornaria. Não estava tão
doente que não pudesse ficar na trincheira. Ficou. E ficou
silenciosamente, sem mesmo comunicar ao comandante. Muitos
dias depois, já vencida a licença, Spindola lembrou-se.

126
—E o Nonô que não voltou?
—Como voltar se ele não foi?
Mais tarde, com a organização da Justiça Militar,
ofereceram-lhe o lugar do escrivão, com o posto de Segundo
Tenente. Ele recusou e ficou firme de fuzil na mão.
São dessa força os novos bandeirantes de que tem
falado o General Valdomiro Lima.
Mas toda medalha tem um reverso. Muito tipo se
aproveita das ocasiões para dar vazão aos seus instintos
perversos.
O pai do sargento Chancharulo enlouqueceu, porque foi
chamado ao telefone onde lhe deram a notícia, aliás falsa,
da morte do rapaz. Quando deixou o fone já estava demente.
Era divertimento predileto telefonarem para as
famílias, perguntando a que horas chegaria o cadáver do
voluntário tal.
Diziam que era uma forma de derrotismo, isto é, de
alimentar o desânimo entre a gente bandeirante, como prova
de dedicação à ditadura. Se assim era, malditos os que
apoiam em tais processos.
*
* *
Quando o primeiro contingente miliciano seguiu para a
frente, o Comissário de Polícia Menezes comunicou-me que
entre nós estava alistado um comunista dos mais perigosos,
praticante e terrorista. Chamava-se João Delfino de
Oliveira. Procurei saber, verificando que ele seguira para
o Norte. Quando cheguei em Queluz, comuniquei o fato ao
Comandante Spindola, que chamou o indiciado à fala. Era um
negro esgalgo, pele muito lisa, extremamente simpático e
bem disposto. Interrogado, não mostrou estranheza e
explicou. Era tudo infâmia. Inimigos gratuitos o haviam
denunciado falsamente e a Polícia o havia fichado.
Colocaram-o em observação, pois ele saberia cumprir o
dever.
Ficou. Abençoada inspiração o deixar entre nós. Foi um
valioso soldado, tão comunista como qualquer um de nós. Foi
promovido a cabo pelos bons serviços. Um dia fomos

127
encontrá-lo, Spindola e eu, nas trincheiras do Fragoso. Era
o homem de confiança.
*
* *
Quando um sujeito na guerra sabe de muita coisa, ele é
chamado de boateiro. Quando fui apresentado ao Cl.
Euclides, ele me perguntou como iam as coisas para o meu
lado. Dei-lhe as informações que tinha. Pediu-me notícias
de outros lados.
—Nada sei, coronel. Só sei do que se passa no meu
pedacinho.
—Assim é que se faz a guerra —interveio o chefe —se
cada um cuidar do seu retalho, haverá quem faça a colcha.

*
* *
Quando o sargento Mario regressou da Ilha da Flores,
contou-me muitos casos que ele dizia ter presenciado. O
mais importante vale a pena ser mencionado.
Logo que chegou a Cruzeiro, foi ouvido no Q.G.
Lá estavam os Generais Gois e Daltro Filho, além do
Capitão João Alberto, que o interrogou:
—Que veio aqui fazer?
—Não vim; trouxeram-me e foi contra a vontade.
—Vocês têm muito armamento?
—Sim, senhor.
—E munição?
—Também.
—E granadas de mão?
—Isso por lá é lixo. Ninguém faz conta.
O interlocutor exasperou-se e mandou metê-lo em um
vagão de animais próximo de seu carro.
Preso, o Mario pensava na vida. Ressoou ao longe o
nosso 150 e a bala veio cair junto ao carro do Q.G., sem
explodir. Se tivesse explodido, mataria todos aqueles
chefes ditatoriais e, com eles, o Mario. Acrescentou este
que nunca torceu tanto pela morte.
*
* *

128
Sob o tremendo bombardeio de Guará, o P.S. teve de
mudar durante a madrugada. Foram todos para o edifício da
Santa Casa.
Na manhã seguinte, correu o boato de estarem feridos
muitos soldados do Oitavo. Segundo o costume, fui vê-los.
Era engano. Embaixo de uma escada, no nível inferior ao da
rua, vejo enorme massa humana enrodilhada. Aproximei-me.
Era o Guilherme Gonçalves que dormia, fardado, com botinas,
polainas e tudo, inclusive o bibi na cabeça. Cutuquei-o com
o pé: —estica essas pernas, malandro!
—E os outros?…
—Que outros?…
Só então ele acordou e, ao me ver, sentou-se. Os
outros eram os demais médicos que haviam dormido ali,
embolados e sem deixar o Guilherme esticar as pernas. Era,
de fato, o lugar mais seguro. Legítima trincheira
inatingível. Se o negócio demorasse, eu também viria dormir
embaixo da escada.
*
* *
O acaso não é somente um grande policial. É também um
valente guerreiro. Tivemos provas exuberantes.
Em Pinheiros, o setor da Boa Vista era o ponto
nevrálgico. Todos sabiam que se um dia houvesse furo, seria
por ali. Em certo momento esse furo parecia infalível.
Recebemos ordem de encher os tanques dos automóveis e ter
tudo preparado para a retirada. A linha estava muito fraca
e esperávamos um ataque aéreo, o que nos faria recuar.
Todos a postos para o que desse e viesse. Os aviões
apareceram no espaço. Voaram céleres e iniciaram o
bombardeio. Ao invés de atirarem sobre as nossas linhas,
atiraram sobre as deles, dizimando-as e causando formidável
pânico.
Tivemos de arrumar novamente as coisas em seu lugar,
na Intendência.
Se é verdade que o acaso muitas vezes ajuda, por outro
lado é preciso que se tenha muito cuidado com os fenômenos
contrários. Uma noite o Cl. Lamego mandou buscar em nossa
vizinhança um grupo para escoltar prisioneiros que haviam

129
se apresentado na Boa Vista, ao Capitão Sandim. Eram
rapazes do Batalhão dos Funcionários Públicos, tão
inexperientes, que não sabiam sequer carregar um fuzil.
Paulo Belegarde os comandava e também se exasperava com
aquilo tudo.
Fiz ver essas circunstâncias ao Cl. Lamego e lhe
ofereci uma escolta do Oitavo. Ele aceitou e me disse: —o
senhor também vai, comandando a escolta. Fomos todos.
Quando tivemos que apagar os faróis do caminhão, fique
cego, porque à noite não distingo dois palmos diante do
nariz. Agarrei-me ao braço do Comito e tocamos. Chegados
aos P.C. do Sandim não havia prisioneiro algum. Tinha sido
“truta”.
Uns 80 homens apareceram nas proximidades, dando vivas
à Constituição e a São Paulo. Queriam aderir. Segundo às
ordens telefônicas do Q.G., só passariam em pequenos grupos
de 3 ou 4, desarmados. Mas não era isso que eles queriam.
Haviam de passar todos juntos. Impossível. Ficou para o dia
seguinte.
Quando voltávamos, o Major Spindola, que vira o
movimento de gente, veio ao nosso encontro, dando a senha:
—Minas.
—Bernardes.
Reconhecemo-nos e lhe contei o sucedido. Ele achou
muita graça e referiu que os “adesistas” tinham ido também
às suas trincheiras, sendo recebidos pelo Jácomo com o F.M.
No dia seguinte, soube-se que os ditatoriais haviam
tentado a farsa em toda a linha. Só o Sandim os levara a
sério. Os outros lhe mandaram mechas, principalmente o Cl.
Andrade.
*
* *
Seria grave injustiça encerrar essas notas sem uma
referência mais direta a Haroldo Levi e Franquinho. Este
era um soldadinho pequenino, risonho e bravo como uma
jaguatirica. Não havia feito brilhante que o Franquinho não
estivesse metido no meio. Entretanto, na fila, ninguém
daria qualquer coisa por ele. O Haroldo era um judeu às
direitas. Cresceu-lhes a barba rara e loira, nariz adunco,

130
traía iniludivelmente o sangue que lhe corria nas veias.
Nas dele e nas minhas. Era um metralhador terrível. Levava
o dia inteiro na caçada, procurando quem matar, de binóculo
em punho. Ele e o Jácomo pintaram a manta.
Li ultimamente um comunicado do Exército Leste, dando
a relação dos mortos, feridos e extraviados da ditadura em
toda a frente Norte. Não passavam de 50 em toda a campanha.
Quanta munição nós estragamos…
O sargento Sebastião também é digno de ser lembrado.
Estava na trincheira quando foi chamado para a cozinha.
Fora cozinheiro de Miguel Costa, o que depõe em favor do
gosto deste, Ótimo cozinheiro. Punha apelido em todos os
companheiros.
Qual teria sido o meu?
*
* *
Com a saída do Dr. Leonel, nos foi mandado como médico
o Dr. Mario Costa. Era um moço de barba loira, alto e
forte. Gozadíssimo. O que o Leonel tinha de sisudo, tinha o
Mario de folgazão. Andava de tamancos com a camisa pra fora
da calça, guiando a ambulância de um lado para outro.
Metia-se no meio do pessoal que com ele trabalhava e
ninguém saberia quem era o chefe. Um ótimo rapaz. Tinha
sido ferido por bala em uma perna, o que custara longo
tratamento. Não mais o vi.

ARMISTÍCIO

Uma manhã as coisas apareceram com um ar de certo mistério.


Spindola desde cedo não aparecia. O subcomandante Rocha
Marques me apareceu, pedindo que o conduzisse de automóvel
até o P.C. do Coronel Sampaio, que o mandara chamar.
Era preciso ir buscar o Major Borges. Fomos. A meio do
caminho o encontramos. O Maj Reinaldo Saldanha da Gama já
havia passado. Que seria?
Seguiu Rocha Marques no carro do Borges e eu voltei.
Encontrei o Argemiro:
- Seu tenente; a revolução vai acabar
- Quem te contou?

131
- Ninguém, estou desconfiado. E acrescentou:
- É. A revolução acaba e o senhor não me da um facão.
- Pois, se assim for, eu te darei um facão de ouro.
- Está fechado.
- Mas se acabar com a nossa vitória.
E acabou mesmo, mas da maneira que todos vimos.
Já o dia ia alto, quando os chefes voltaram. Ordens para
cessar os patrulhamentos e suspender qualquer hostilidade.
Ficassem todos em seus postos, sem atirar, mesmo que
houvesse provocação da outra parte.
Reação só devia haver em caso de ataque direto.
Era a paz.
Mas em que condições? Quem a pedira? Como ia terminar
aquilo tudo? Eram as interrogações que pairavam por toda a
parte. Não se brigava mais. Os soldados vinham pressurosos
para nós, oficiais, em busca de notícias, mas nós sabíamos
tanto quanto eles. Interrogávamos os Comandantes e eles de
nada sabiam. Que o movimento estava no fim “qu7alquer que
fosse a solução”, ouvi do Major Rocha Marques. A fisionomia
apreensiva de Spindola não me deixava dúvida razoável.
Sabia-se, de positivo, que o armistício fora solicitado
pelo supremo comando das Forças Constitucionalistas.
Mais tarde se constatou que estavam os nossos chefes ao par
da verdadeira situação do movimento, pela transcrição de
uma carta de ambos, publicada pelo Comandante da F. P., no
famoso manifesto dado a lume. Faço, porém, a ambos,
Spindola e Rocha Marques, a justiça de não os reconhecer
culpados no golpe traiçoeiro com que nos feriram pelas
costas. O passado de ambos – na campanha – era documento
bastante da lisura com que haviam de proceder.
O dia passava naquela inquietação. Um desânimo, aquela
falta de notícias. O ânimo da tropa, seu amor a S. Paulo e
aos ideais da Revolução, a confiança na vitória, o desejo
ardente de combater, a vontade de cair sem vida, antes de
viver sem honra, não abandonou por um único momento a
qualquer de nós.
E assim se passou todo o dia.
- Tenente, olha o meu facão de ouro, dizia-me o Argemiro.
- Tê-lo-as. Assim Deus nos ouça.

132
Não havia duvida que estávamos em armistício, pois essa era
a determinação recebida. Os aviões adversos, entretanto,
pelos modos, não baixavam a terra desde muitas horas antes,
pois “ignoravam” completamente o novo estado de coisas.
Pelo menos era o que nos parecia lícito supor, uma vez que
o bombardeio aéreo, o metralhar, continuava incessante. No
P.C. do Cel Sampaio, na fazenda Jararaca, foram atiradas
quatro bombas, nossas linhas eram percorridas continuamente
pelos “pembas” que mandavam metralhar como granizo.
Armistício, armistício!
Era assim que se honrava a palavra militar.
Mas a deslealdade não parou ai. Pelo correr do segundo dia
de cessação de fogo, alguns soldados contrários vieram até
nossas trincheiras, “confraternizar” com a tropa, com mil
protestos de amizade e a promessa formal de não mais
atirarem em nós, fossem quais fossem as ordens dos chefes.
Os nossos, fiados naquilo, deram-lhes muitos presentes,
roupas, calçado, doces, chocolate, bolachas. Convidaram-nos
para ir às suas trincheiras. Havia terminante proibição de
sair das nossas linhas. Entretanto doze teimosos foram,
Foram e ficaram presos. A confraternização não passara de
uma cilada a nossa eterna boa fé. Quincinho, Inácio Mamama,
Fausto Santos Filho, o Baiano e outros, ficaram sabendo as
agruras que tiveram de arrostar para voltar aos seus lares,
pirando das prisões inimigas.
Anunciou-se então, uma reunião dos oficiais mais graduados
dos diversos Corpos e com os Comandantes de Batalhões e
Setores com o Coronel Euclydes Figueiredo, no Q.G. do
Coronel Sampaio, em Guará.

A REUNIÃO DE GUARÁ

Seriam dezesseis horas. No elegante palacete ocupado pelo


Q.G. em volta da mesa da sala de jantar, representantes de
todas as forças combatentes na frente norte. Presidindo a
reunião a figura elegante e altiva do Coronel Euclydes; ao
seu lado o Coronel Sampaio. Espalhados pela sala os
coronéis, Gaia, Teófilo Ramos, Andrade, Spindola; majores,
Rocha Marques, Valença, Mena Barreto, Capitão Cunha Melo e

133
muitos outros oficiais do Exército e Força Pública, cujos
nomes não me ocorrem; inúmeros “pátria amada” – eu, Uriel
de Carvalho, Waldomiro Fleury, Paulo Duarte, Leopoldo
Figueiredo, Ademar Souza Queiroz e tantos outros.
A sala estava cheia, mal se podendo uma pessoa mover.
O Coronel Euclydes, com voz firme e serena, começou a expor
os fatos. Leu os sucessivos telegramas formulados pelo
General Klinger e comunicou o texto do que fora
efetivamente transmitido. Manifestou sua opinião pessoa e
submeteu-se ao juízo dos presentes: era por uma paz
honrosa, ou pela continuação da luta, até o esgotamento das
derradeiras energias. Salvava-se a dignidade paulista ao
preço do sangue de cada um de nós.
Foi lido um apelo que os civis, incorporados nas diversas
unidades, faziam ao ilustre chefe:
- Tomasse ele a frente da defesa do brio bandeirante. Nós o
seguiríamos para onde o destino nos mandasse. Sob o comando
supremo de Klinger, se este ainda merecesse confiança;
assumindo a chefia do movimento, se, como se assoalhava,
aquele general também houvesse traído.
As suspeitas que manchavam a reputação do General Klinger
foram logo afastadas. O próprio Coronel Euclydes, que
sabidamente se desaviera desde muito com o comandante em
chefe, afastou essa hipótese. Klinger fora apenas como
conciliador que transigira em por em liberdade os
prisioneiros políticos que, uma vez soltos, haviam
perturbado a ordem na Capital.
Alguns oficiais superiores deram explicações. Pede a
palavra Paulo Duarte. O jornalista conterrâneo vestia o seu
habitual uniforme – o macacão de zuarte azul, com que
embarcava no blindado. Na sala havia um silêncio tumular.
Entendia o paulista que pela sua voz falavam naquela hora
os sete milhões de descendentes de Fernão Dias Paes Leme. A
revolução fora tramada por três elementos diversos: Força
Pública, Exército e Povo. Destes três elementos, apenas o
último cumpria integralmente com as obrigações assumidas.
Agora, pelos fatos que nos chegavam sumariamente ao
conhecimento, SÃO PAULO ESTAVA SENDO VÍTIMA DA MAIS NEGRA
TRAIÇÃO!

134
Alvoroçaram-se as pombas branca da “salvação do patrimônio
material”. Paulo Duarte foi violentamente aparteado.
- Não representava ele o Povo Paulista, Era apenas, uma
coisa ao dispor desse Povo. Aperteei incontinenti: - Coisa,
não. Era uma pessoa, partícula desse mesmo grande Povo.
O Coronel Gaia pediu Licença para interromper o orador e
dar uma explicação. Fora ele um dos iniciadores do
movimento pacificador, ele próprio fora a Campinas (era lá
que estava os oficiais da F. P. que tanto se notabilizaram
neste passo da nossa História) formar o projeto de
pacificação. Não se julgava traidor.
Paulo Duarte continuou. Se não falava por todo o Povo
Bandeirante, tinha ao menos a convicção de interpretar
fielmente seu pensamento.
Quando assim ainda não fosse, falava pelos civis do
Destacamento Gaia. Eu, Uriel, Souza Queiroz, declaramos,
desde logo, que falaria também pelos do Destacamento
Sampaio, bombardeiros e Engenharia. Muitos apoiados
partiram de outras tantas bocas. Paulo Duarte, reanimado
pelo apoio recebido, prosseguiu:
- S. Paulo estava traído, doessem, embora essas palavras.
Mas S. Paulo saberia vingar a afronta, marcando com ferro
em brasa a fronte dos traidores. Estrugiam os aplausos. O
ambiente se tornava carregado. Mais de um revolver era
agarrado nervosamente na cinta, pronto para o primeiro
movimento. Euclydes pedia calma. Ele estava abertamente do
nosso lado. Um dos chefes da conjura (cujo nome fiquei
ignorando, mas que tinha galões de tenente-coronel e laço
húngaro) levanta-se nervosamente e, dirigindo-se ao
Coronel Euclydes, exclama que ninguém se olvidasse da
hierarquia militar. Alguém respondeu que a traição devia
ser repelida, debaixo embora de galões ou bordados. O bravo
Major Saldanha, da Força Pública, falou com energia e
elevação. Traidores, sim, da honra de São Paulo e da farda
que vestiam.
Ele não se entregaria, ia partir com sua força par as.
Paulo, para restabelecer a ordem, violada pelos
prisioneiros políticos que o General Klinger, ingenuamente,
mandara por em liberdade.

135
Falou então o Coronel Euclydes. Sua voz ainda não se
alterara. Com firmeza de uma convicção disse:
- Estou confortado com o que ouvi nesta reunião.
Todos falaram com a liberdade que deveria haver. O assunto
está esclarecido. Não há divergências fundamentais entre
nós. Penso que a resolução tomada é esta: seguirão para S.
Paulo as forças necessárias à manutenção da ordem. As
primeiras serão as do Major Saldanha. O Coronel Teophilo
seguirá em seguida, de acordo com as instruções em seu
poder. Aqui ficará apenas uma cortina de fogo para manter a
linha. Progressivamente as forças recuarão, indo formar a
última resistência nos arredores de S. Paulo, para a
batalha final.
E recomendou segredo.

Dissolveu-se o conclave, que ficara famoso na História de


São Paulo. Um juramento ficara selado na consciência de
todos nós. Morreríamos todos, em S. Paulo, ou esmagaríamos
o adversário.
Saímos, para que cada um voltasse a seu posto. Mas naquela
mesma noite o 8º teve seus dois flancos desguarnecidos. O
direito compôs-se, posteriormente. O esquerdo... nunca
mais!
A Força Pública retirara-se para a sua função de
MANTENEDORA DA ORDEM, ELA QUE ENTRARA NAQUILO TUDO
ENGANADA, como depois tiveram o desplante de afirmar, os
insultadores da memória do General Marcondes Salgado!
Abandonando, o 8º teve de seguir o seu triste destino. A
ordem de retirada chegou-nos em um retalho de papel almaço,
escrito a lápis. Assinava-a um civil, em nome do
encarregado do Q.G., um Segundo Tenente, “pátria amada”.
Era tudo quanto restava “da raça dos Prometeus”...

136
137
APOIARAM:

VERSÃO DIGITAL E GRATUITA DA OBRA


HISTORIOGRAFICA CAPACETES DE AÇO
SOCIEDADE VETERANOS DE 32 - MMDC©
FUNDADA A 7 DE JULHO DE 1.954
MONUMENTO E MAUSOLÉU AO SOLDADO
CONSTIUCIONALISTA DE 1932
MONUMENTO E MAUSOLÉU AO SOLDADO
CONSTIUCIONALISTA DE 1932

138
Dr Samuel Baccarat de óculos ao centro da imagem com
companheiros do 8º B.C.R.

3.

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