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Da profundidade histórica chegam-nos, em tempos de pandemia, ecos de

uma realidade epidemiológica que teima em fazer sentir-se, episodicamente,


e, sabemo-lo, desde sempre. A história da Humanidade quase se poderia des-
crever como um processo de sobrevivência, em permanente contexto cata-
clísmico de registo cosmológico, epidemiológico e bélico.
Por uma aparente e/ou inexplicável determinação, vivemos o momento
presente, mais uma vez, em dolorosa travessia epidémica, em que, do ma-
rasmo das rotinas, emerge a flâmula da estupefação e da indignação, e que,
de forma acintosa, parece incitar à conformação às regras da lei natural que
envolve a realidade física das coisas.
Vive-se, portanto, essa forma de realidade, que teimou em visitar-nos,
apesar de uma inicial incredulidade a que votámos os primeiros alertas e um
certo descaso nas precauções, pois já nos tínhamos acostumado a uma certa
segurança e garantia de imunidade, facultados pelos progressos científicos da
área da saúde.
Com este tempo de recolhimento forçado somos levados não só aos arrumos
sempre adiados, mas também à exploração de novos autores, como alimento
para o espírito, e ainda, por vezes, à revisitação de textos um pouco arreda-
dos das habituais leituras.

PAULINAS EDITORA propõe uma original atualização deste tema, pela leitu-
ra de um clássico da literatura universal – ALESSANDRO MANZONI – que, nas delici-
osas páginas de Os Noivos, nos oferece um típico, e curiosamente repetido,
quadro de um contexto geográfico e social similar do século XVII, e de que
apresentamos, aqui, alguns extratos:

“ O lazareto de Milão é um recinto quadrilátero, e quase quadrado, fora


da cidade, à esquerda da porta oriental e distante das muralhas o espaço do
fosso, de uma estrada de circunvalação e de um canal que rodeia todo o re-
cinto. Os dois lados maiores têm o comprimento de mais ou menos qui-
nhentos passos; os outros dois, talvez quinze menos; todos eles, na parte ex-
terior, estão divididos em pequenos compartimentos de um só piso; por
dentro, gira em torno de três deles um pórtico contínuo em abóboda, sustido
por pequenas e magras colunas.
Os compartimentos eram duzentos e oitenta e oito, mais ou menos; nos
nossos dias, uma grande abertura feita no meio, e uma pequena, a um canto
da fachada do lado fronteiro à estrada principal, levaram não sei quantos.
Na altura da nossa história, havia só duas entradas; uma no meio, do lado
que dá para as muralhas da cidade, a outra, em frente dela, no lado oposto.
No centro do espaço interior havia, e ainda há, uma pequena igreja octogo-
nal.
A primeira destinação de todo o edifício, começado no ano de 1489, com
o dinheiro de uma herança privada, continuado depois com o do erário pú-
blico e de outros testamenteiros e doadores, foi, como indica o próprio no-
me, a de internar quando necessário os doentes de peste; a qual, já muito
antes dessa época, costumava, e continuou assim por muito tempo depois,
comparecer duas, quatro, seis, oito vezes por século, ora neste, ora naquele
país da Europa, ocupando grande parte dela, ou até correndo-a toda, duma
ponta à outra. No momento que falamos, o lazareto só servia para depósito
das mercadorias sujeitas a contumácia.
Ora, para o desimpedir, não se obedeceu ao rigor das leis sanitárias, e
feitos a toda a pressa os expurgos e as experiências prescritas, libertaram-no
de todas as mercadorias de uma vez. Fez-se cobrir de palha o chão de todos
os compartimentos, fizeram-se provisões de víveres, da qualidade e na
quantidade que se conseguiu arranjar; e convidaram-se, por édito público,
todos os mendigos a internar-se ali.
Muitos foram voluntariamente; todos os que jaziam enfermos pelas ruas
e pelas praças, para ali foram transportados; daí a poucos dias, já havia, en-
tre uns e outros, mais de três mil. Mas muitos mais foram os que ficaram de
fora. Ou porque cada um deles esperasse ver os outros ir-se embora, ficando
uns poucos a desfrutar das esmolas da cidade, ou fosse por aquela natural
repugnância à clausura, ou pela desconfiança dos pobres em tudo o que lhes
seja proposto por quem possui as riquezas e o poder (desconfiança sempre
proporcional à ignorância comum de quem a sente e de quem a inspira, ao
número dos pobres, e ao pouco senso das leis), ou por saberem de facto
qual era na realidade o benefício oferecido, ou fosse por tudo isto junto, ou
por outra coisa que seja, a verdade é que a maior parte, não fazendo caso do
convite, continuava a arrastar-se em cortejo pelas ruas. Visto isto, julgou-se
por bem passar do convite à força. Foram mandados em ronda esbirros que
levassem os mendigos para o lazareto, e açoitassem amarrados os que resis-
tissem; por cada um dos quais foi atribuído o prémio de dez soldos: como
se vê, mesmo no meio das maiores restrições, arranja-se sempre dinheiro
público para ser empregado a despropósito. E embora, como tinha sido con-
jetura, aliás intenção expressa da Provisão, um certo número de mendigos
abandonasse a cidade, para ir viver ou morrer noutro sítio, ao menos em li-
berdade; no entanto, a caça foi tal que, em pouco tempo, o número de inter-
nados, entre hóspedes e prisioneiros, se aproximava dos dez mil.
As mulheres e as crianças, queremos supor que terão sido postas em lu-
gares separados, embora sobre isso as memórias do tempo nada digam. Re-
gulamentos e providências para a boa ordem certamente não devem ter fal-
tado; mas imagine cada um que ordem se poderia estabelecer e manter na-
queles tempos, especialmente, e em que circunstâncias numa tão vasta e va-
riada reunião, onde com os voluntários se encontravam os forçados; com
aqueles para quem o mendigar era uma necessidade, uma dor, uma vergo-
nha, aqueles para quem era ofício; com muito criados na honesta atividade
dos campos e das oficinas, muitos outros educados na praça pública, nas ta-
bernas, nos palácios dos prepotentes, aprendendo o ócio, a fraude, a zomba-
ria e a violência. Como passavam todos juntos quanto a alojamento e comi-
da, poder-se-ia tristemente conjeturar, quando disso não tivéssemos notícias
concretas; mas temo-las. Dormiam amontoados aos vinte e aos trinta por
cada uma dessas celas, ou encolhidos debaixo dos pórticos, sobre alguma
palha pútrida e fedorenta, ou sobre a nua terra: porque, tinha sido muito
bem ordenado que a palha fosse fresca e bastante; mas com efeito era má,
escassa, e não se mudava. Tinha sido igualmente ordenado que o pão fosse
de boa qualidade: ora já qualquer administrador disse alguma vez que se fa-
ça e forneça má comida? Mas o que não se obtinha nas circunstâncias habi-
tuais, até para um serviço mais restrito, como consegui-lo naquele caso e
para aquela multidão? Foi dito, então, como encontramos nas memórias,
que o pão do lazareto era alterado com substâncias pesadas e não nutritivas:
e infelizmente é credível que não fosse apenas um daqueles queixumes fei-
tos no ar. Até de água havia escassez; quero dizer, de água fresca e potável;
o poço comum devia ser o canal que contorna as muralhas do recinto: bai-
xa, parada, nalguns pontos um lodaçal, e tornando-se depois o que podia ser
com o uso e a vizinhança de uma tal multidão, e tão numerosa.
A todas estas causas de mortalidade, tanto mais ativas por agirem sobre
corpos doentes ou adoentados, acrescente-se uma grande perversidade do
estado do tempo: chuvas obstinadas, seguidas de uma seca ainda mais obs-
tinada, e com esta um calor antecipado e violento. Aos males acrescente-se
o sentimento dos males, o tédio e a agitação da prisão, a lembrança dos an-
tigos hábitos, a dor dos seus entes amados perdidos, a memória inquieta dos
queridos ausentes, o tormento e o nojo alternados, e tantos outros sofrimen-
tos de abatimento ou de raiva, trazidos ou nascidos ali dentro; mais a apre-
ensão e o espetáculo contínuo da morte tornada frequente por tantas causas,
e transformando-se ela mesma numa nova e poderosa causa. E não espanta
que a mortalidade crescesse e reinasse naquele recinto a ponto de ganhar o
aspeto e, para muitos, o nome de pestilência: ou porque a reunião e o au-
mento de todas aquelas causas fazia aumentar a atividade de uma influência
puramente epidémica, quer (como parece que sucede em carestias até me-
nos graves e menos prolongadas do que aquela) tivesse lugar um certo con-
tágio, o qual nos corpos afetados e propensos devido à miséria e à má qua-
lidade dos alimentos, à intempérie, à sujidade, ao sofrimento e à degrada-
ção, obtém a têmpera, por assim dizer, e a sua época própria, em suma, as
condições necessárias para nascer, nutrir-se e multiplicar-se (se a um igno-
rante é lícito usar estas palavras, segundo a hipótese proposta por alguns fí-
sicos e reproposta por último, com muitas razões e com muita reserva, por
um, tão diligentes quanto engenhoso) ou que o contágio rebentasse ao prin-
cípio no próprio lazareto, como, por um obscuro e inexato relatório, parece
que pensavam os médicos da Sanidade; ou que, vivesse e andasse a chocar
antes (o que parece talvez mais verosímil, pensando que a doença era já an-
tiga e geral e a mortalidade já frequente) e que levado para junto daquela
multidão permanente aí se propagasse com nova e terrível rapidez. Seja
qual for destas conjeturas a verdadeira, o número diário de mortos no laza-
reto em pouco tempo ultrapassou a centena. „
(…)

“ A peste que o tribunal da Sanidade havia temido que pudesse entrar


com as hostes alemãs no território milanês, nele entrou realmente, como é
facto conhecido; e é igualmente conhecido que não se ficou por aqui; mas
antes invadiu e despovoou uma boa parte da Itália. Guiados pelo fio condu-
tor da nossa história, passamos a contar os acontecimentos principais desta
calamidade, no território milanês, bem entendido. Aliás, quase exclusiva-
mente em Milão: porque é da cidade que tratam quase exclusivamente as
memórias desse tempo; tal como se verificam mais ou menos sempre em re-
lação a tudo, pelas boas e pelas más razões. E nesta narrativa, para dizer a
verdade, a nossa finalidade não é só a de representar o estado de coisas em
que virão a encontrar-se as nossas personagens; mas sim a de, ao mesmo
tempo, tão resumidamente quando se puder fazê-lo o no que pela nossa par-
te for possível, dar a conhecer um momento da história pátria mais famoso
do que conhecido. „
(…)

“ Nenhum escritor de época posterior se propôs examinar e comparar


esses relatos, para daí extrair uma série encadeada dos acontecimentos, uma
história daquela peste; de modo que a ideia que em geral se tem dela deve
ser necessariamente muito incerta, e um tanto confusa: uma ideia indeter-
minada de grandes males e de grandes erros (e na verdade foi uma coisa e
outra, para lém doque se possa imaginar), uma ideia composta mais de juí-
zos do que de factos, alguns factos dispersos, e não raramente desacompa-
nhados das circunstâncias que mais os caracterizam, sem distinções de tem-
po, ou seja, sem inteligência de causa e efeito, de curso, de progressão. Nós,
examinando e comparando, pelo menos com muita diligência, todos os rela-
tos impressos, e mais de um inédito, muitos (em relação aos poucos que nos
restam) documentos, como se diz, oficiais, tentámos fazer, não o que era
preciso, mas sim qualquer coisa que nunca foi feita. Não temos intenções de
fazer referência a todas as atas públicas, nem mesmo a todos os aconteci-
mentos de qualquer modo dignos de memória. Muito menos pretendemos
tornar inútil a quem quiser fazer uma ideia mais completa do sucedido, a
leitura dos relatos originais: sentimos muito qual força viva, própria e, por
assim dizer, incomunicável, existe sempre nas obras desse género, sejam
elas concebidas e conduzidas como forem. Tentámos simplesmente distin-
guir e verificar os facto mais gerais e mais importantes, dispô-los pela or-
dem real da sua sucessão, desde que o impliquem a sua razão e a sua natu-
reza, observar a sua eficiência recíproca, e dar assim, por agora e até que
qualquer outro faça melhor, uma notícia sucinta, mas sincera e continuada,
daquela catástrofe.
Ora, portanto, ao longo de toda a faixa do território percorrida pelo exér-
cito, tinham-se achado alguns cadáveres dentro das casas, e um ou outro pe-
los caminhos. Pouco depois, nesta ou naquela povoação, começaram a ado-
ecer e a morrer pessoas, famílias, de males violentos, estranhos, com sinto-
mas desconhecidos da maior parte dos vivos. Havia só alguns poucos, para
quem não foram novos: aqueles poucos que podiam lembrar-se da peste
que, cinquenta e quatro anos antes, havia assolado mesmo uma grande parte
da Itália, e em especial o território milanês, onde foi chamada, e até hoje
ainda o é, a «peste de São Carlos». Como é forte a caridade! Entre as me-
mórias tão variadas e tão solenes de um infortúnio geral, pode a caridade
fazer primar a de um homem, porque a um homem inspirou sentimentos e
ações mais memoráveis ainda que os males; gravá-lo nas mentes como um
resumo de todos aqueles padecimentos, porque em todos ela o impeliu e in-
troduziu, como guia, socorro, exemplo, vítima voluntária; enfim, de uma
calamidade para todos, fazer para este homem como que uma proeza: de-
nominá-la com o nome dele, como uma conquista ou uma descoberta.
O protofísico Lodovico Settala, que não só tinha visto aquela peste, co-
mo dela fora um dos mais ativos e intrépidos, e, embora muito jovem nessa
altura, dos mais reputados curadores; e que agora, em grande suspeita desta,
estava alerta e atento às informações, referiu, a 20 de outubro, no tribunal
da Sanidade, que na terra de Chiuso (a última do território de Lecco, e con-
finante com o Bergamasco), eclodira indubitavelmente o contágio. Em rela-
ção a isto não se tomou nenhuma resolução, como consta do Ragguaglio de
Tadino.
E eis que surgem avisos semelhantes de Lecco e de Bellano. O tribunal
então lá se resolveu, mas contentou-se em expedir um comissário que, pelo
caminho, levaria consigo um médico de Como, para que o acompanhasse
na visita aos lugares indicados. Os dois, «ou por ignorância ou por outra ra-
zão, deixaram-se persuadir por um velho e ignorante barbeiro de Bellano,
que aquela espécie de mal não era peste»; mas antes, em alguns lugares,
efeito habitual das emanações outonais dos pântanos, enquanto noutros era
efeito das privações e dos maus tratos sofridos durante a passagem dos ale-
mães. Tal declaração foi mesmo apresentada ao tribunal, com a qual este
parece ter recuperado a tranquilidade.
Mas, chegando sem parar mais e mais notícias de mortes de diversos la-
dos, foram enviados dois delegados para ver e proceder: o supracitado Ta-
dino e um auditor do tribunal. Quando estes chegaram, o mal já estava tão
dilatado, pois as provas se ofereciam sem que fosse preciso procurá-las.
Percorreram o território de Lecco, a Valsassina, as costas do lago de Como,
os distritos denominados o Monte di Brianza e a Gera d’Adda; e, por toda a
parte, se depararam com localidades fechadas por cancelas nas entradas, ou-
tras quase desertas, e os habitantes refugiados em tendas no campo, ou dis-
persos; «e apareciam-nos – diz Tadino – muitas criaturas selváticas, trazen-
do na mão, uns a erva menta, outros arruda, outros rosmaninho e alguns até
com uma ampola de vinagre.» Informaram-se do número dos mortos: era
assustador; visitaram enfermos e cadáveres, e por toda a parte encontraram
as más e terríveis marcas da pestilência. Deram logo, por carta, aquelas si-
nistras notícias ao tribunal da Sanidade, o qual, ao recebê-las, que foi a 30
de outubro, «dispôs-se», como diz o mesmo Tadino, a prescrever os bole-
tins de saúde, para encerrar fora da cidade as pessoas provenientes de terras
onde se manifestara o contágio; «e, enquanto se redigia o edital», deu ante-
cipadamente algumas ordens sumárias aos cobradores de impostos.
Entretanto, os delegados tomaram à pressa e em força as medidas que
lhes pareceram melhores; e regressaram com a triste persuasão de que não
bastariam para deter e remediar um mal já tão avançado e difundido. „
(…)

“ Verifiquei que o cardeal Federigo, mal foram conhecidos os primeiros


casos do mal contagioso, prescreveu, em carta pastoral aos paroquianos, en-
tre outras coisas, que avisassem repetidas vezes o povo da importância e da
obrigação rigorosa de revelar cada um dos casos individuais, e de entregar
as roupas infetadas ou suspeitas: e esta pode ser também contada entre as
suas louváveis singularidades.„
(…)

“ Já vimos que, ao primeiro anúncio da peste, havia grande frieza no


agir, ou melhor, no informar-se: eis ainda outro facto de lentidão, não me-
nos portentosa, embora não fosse forçada por obstáculos levantados por
magistrados superiores. Aquele edital sobre os boletins de saúde, decidido a
30 de outubro, só foi redigido no dia 23 do mês seguinte, para ser publicado
apenas a 29. A peste já tinha entrado em Milão.
Tadino e Ripamonti quiseram dar a conhecer o nome de quem foi o pri-
meiro a apanhá-la a outras circunstâncias da pessoa e do caso: e com efeito,
ao observarem os princípios de uma vasta mortalidade, em que as vítimas,
apesar de as distinguirem pelo nome, mal se poderá fazer uma avaliação
aproximada ao seu número de milhares, nasce uma não sei que curiosidade
de conhecer aqueles primeiros e poucos nomes que puderam ser anotados e
conservados: esta espécie de distinção, a precedência no extermínio, parece
que fazia encontrar neles, e nas particularidades, de resto mais indiferentes,
qualquer coisa de fatal e de memorável.
Ambos os historiadores dizem que foi um soldado italiano ao serviço de
Espanha; quanto ao resto, não estão muito de acordo, nem sequer no nome.
Segundo Tadino, foi um tal Pietro Antonio Lovato, com quartel no territó-
rio de Lecco; segundo Ripamonti, um Pier Paolo Locati, com quartel em
Chiavenna. Diferem também no dia da sua entrada em Milão: o primeiro,
põe-na a 22 de outubro; o segundo, em igual dia do mês seguinte: e não se
pode confiar nem num nem noutro. As duas datas entram em contradição
com outras bem mais verificadas. „
(…)
“ Seja como for, entrou este soldado desventurado e portador da desven-
tura, com uma grande trouxa de roupas compradas ou roubadas a soldados
alemães, foi ficar a casa de parentes seus no burgo oriental, ao pé dos Ca-
puchinhos, assim que chegou. Adoeceu; foi levado para o hospital, onde um
bubão que lhe descobriram sob uma axila despertou em que o tratava a sus-
peita do que era realmente. Ao quarto dia morreu.
O tribunal da Sanidade mandou segregar e sequestrar em casa a família
dele; as suas roupas e a cama em que tinha estado no hospital foram queima-
das. Dois serventes que o tinham tratado e um bom frade que o assistira tam-
bém adoeceram daí a poucos dias, os três de peste. A dúvida que naquele lu-
gar tinha havido, desde o começo, sobre a natureza do mal, e as cautelas usa-
das em consequência disso, fizeram que o contágio não se propagasse mais.
Mas o soldado tinha deixado de fora uma semente que não tardou a ger-
minar. O primeiro a quem pegou foi o dono da casa em que ele se tinha alo-
jado, um certo Carlo Colonna, tocador de alaúde. Então, todos os residentes
naquela casa, por ordem da Sanidade, foram levados para o lazareto, onde a
maior parte adoeceu, e alguns morreram, passado pouco tempo, de manifesto
contágio.
Na cidade, o contágio que já tinha sido disseminado por estes, pelas rou-
pas, pelos móveis furtados por parentes, moradores e criados às buscas e ao
fogo prescrito pelo tribunal, mais o contágio que se fazia de novo devido à
imperfeição dos éditos, ao descuido na sua aplicação e à destreza em enga-
ná-los, foi-se incubando e alastrando lentamente por todo o resto do ano e
pelos primeiros meses do seguinte ano de 1630. „
(…)

“ O terror da quarentena e do lazareto aguçava todos os engenhos. Não


se fazia participação dos doentes, corrompiam-se os coveiros e os seus su-
perintendentes; através de subalternos do próprio tribunal encarregados por
este de verificar os cadáveres, obtiveram-se, por dinheiro, falsos atestados.
Contudo, dado que a cada descoberta que conseguisse fazer o tribunal
ordenava a queima das roupas, punha sob sequestro as casas, mandava fa-
mílias inteiras para o lazareto, é fácil deduzir como devia estar contra ele a
ira e o descontentamento do público, «da nobreza, dos mercadores e da ple-
be» diz Tadino; persuadidos, como estavam todos, de que tudo se tratava de
vexames sem motivo nem proveito. O ódio principal recaía sobre os dois
médicos; o referido Tadino, e Senatore Settala, filho do protomédico; a tal
ponto que não podiam passar pelas ruas sem sem assaltados com palavrões,
quando eram mesmo pedras. „
(…)
“ Desse ódio cabia também uma parte aos outros médicos que, convic-
tos como eles da realidade do contágio, sugeriam precauções, e tentavam
comunicar a todos a sua dolorosa certeza. A pessoas mais discretas acusa-
vam-nas de credulidade e obstinação; para todos os outros era manifesta

impostura, uma cabala urdida para especularem à custa do pavor público.

O enquadramento contextual a que se referem estes extratos apresenta al-


gumas similitudes, não tanto, obviamente, no que respeita às realidades vivi-
das e aos métodos usados, na época, mas quanto às inquietações e à busca de
respostas por parte de quanto se empenhavam ou tinham a responsabilidade
de suprir necessidades surgidas, e à força anímica de que se socorriam para
enfrentar as ameaças que a todos atingiam.
É da natureza humana também que o homem, ainda que sujeito à perplexi-
dade da má surpresa, saiba dela colher a motivação e os incentivos para trans-
formar, pela inovação de processos e de atitudes, o infortúnio em benfazeja e
fulgurosa esperança, através de inovadores processos de retoma e de restauro,
como se poderá deduzir das conclusões a que também chegou Manzoni.

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