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Nº 1

Memorial de Pêro Roiz Soares, edição de M. Lopes de Almeida, Coimbra, Universidade


de Coimbra, 1953, pp. 19-31, 450-451 (excertos).

Capítulo 8. Começa de contar a grande peste do anno de 1569

No mês de Junho do ano de 1569 se acharam muitas pessoas nesta cidade de


Lisboa doentes de inchaços, outros que morriam hũa morte mui apressada e todavia
Peste
andava hũ ruge-ruge do povo que era peste, mas como havia 39 anos que a Portugal não recorrente
viera este mal, e o não conheciam, hũs zombavam disso, outros de experiencia e idade
afirmavam-no. E no mês de Junho (…) mandou el rei fazer ajuntamento de físicos para o
determinarem; os modernos diziam não no ser, dando por rezão que o Inverno fora muito
grande e a humidade dele causara nos corpos aquelas postemas,1 os antigos e de
experiencia que tinham visto outras afirmavam sê-lo. E já a este tempo morriam cada dia
50-60 pessoas, mas andava tudo calado e secreto por se não despejar a cidade (…). não havia plano de
contenção
2
E passando o entrejunho em que deu muito grande pancada do mal e acabando
todos de entender que o era, se foram os que puderam e tinham possanças pêra as partes
que queriam (…); e no mês de Julho e Agosto não houve dia de menos de mortos de
quinhentos, seiscentos e setecentos não havendo já adros onde os enterrar que vinte, trinta,proliferação de
corpos
corenta, cincoenta, sessenta deitavam em cada cova que pêra o tal faziam muito grandes
(…); e de maneira morria a gente que estando falando hũs com outros caíam muitos
mortos e dos que se deitavam achavam pela menhã grande parte deles mortos, sendo já
tanta a cantidade que por não haver sagrado donde já poder enterrar sagraram monturos3,
olivais, praias pêra sepultar, até o campo da forca que foi todo lavrado de covas. E pêra
haver quem levasse estes mortos às sepulturas se tiraram os forçados das galés pêra isso
que com esquifes andavam, no qual cargo se lhes comutava o degredo das gales. E como
tudo isso não bastara pêra poder dar vasão a tantos mortos, acudiam aqueles que tinham
com que peitar4 aos forçados e os que não [tinham com que peitar] estavam dous três dias
pelas portas e ruas amortalhados esperando sua hora, até que, já não estando pêra os
poderem levar, se faziam as covas pelas ruas e logeas donde moravam e ali os sepultavam
(…). Acodia no enterramento quem já estava doente

1
Abcessos.
2
3 de Junho.
3
Monte de esterco, lixeira.
4
Pagar.
Corria se toda a cidade e muitas vezes se não topava em toda ela sinco pessoas
vivas e sãs e algũ se topáveis tinha cor de finado. A Rua Nova servia de algũs maraos5
jogarem a bola, mas deviam ser tam poucos que não fizeram estorvo a deixar nascer muita
erva e de grande altura na dia Rua.
De maneira que a mor mortandade deste mal foi no mês de Julho, Agosto e
Setembro e o menos dia de mortos nestes meses desceo de quinhentas pessoas. E passando Refuzida
duração,
estes meses começou a cidade de melhorar, de maneira que quando veio o Natal já a manifesta-se,
neste caso,
cidade estava com a mor parte da gente e logo se cerraram as portas da cidade, deixando em espaços
abertas as necessárias donde se puseram guardas de homens principais para não entrarem pequenos e
continua
doentes de fora de vilas e lugares que entam estavam ainda iscados do mal e se teve tam noutros
boa ordem nisso que sempre a saúde da cidade foi por diante (…).
E Agosto foi o de maior desgosto (…) e chegando [os corpos] aos cemitérios, que
de monturos, praias e cardais se fizeram, os deixavam hus sobre os outros que pareciam
roupa na Ribeira de Alcântara, até lhe ser chegada a hora de sepultá-los de dez em dez e
de vinte em vinte e às vezes mais; com cujas viagens puseram no porto da outra vida,
segundo a mais pia conta, até agora quarenta mil almas.
(…) Outros houve que, (…) falecendo tanto ao desemparo que ninguém soube
deles senão pelos fedores que de suas câmaras saía, cujas portas quebrando-as os achavam
roídos dos ratos e doninhas e tais que as mesmas câmaras lhe ficavam por sepulturas, animais
comiam os
onde lhe abriam covas em que os viravam por não estarem para mais meneios e não serem corpos
empestados
comidos dos cães e gatos. E foi pelos físicos mandado que os matassem [aos cães e gatos]
por entrarem nas câmaras dos mortos e comerem o que deles sobejava, e entrando despois
nas câmaras desimpedidas as infeccionavam com seus bafos, contaminando os ares deles; transmissão
pelos animais
pêra a qual execução havia certo estipêndio por cabeça de cão ou gato (…).
Aconteceu mais no fim desta fome causada do desemparo, posto que as esmolas
eram apenas para os doentes do mal, que para os sãos não havia socorro, que perecessem
muitos à fome (…), no qual se viu hum homem que estando preso no Limoeiro padeceu
tanta fome que lhe foi ocasião de se fazer hua tarde doente do mal que corria e ao outro
dia pela menhã fazer-se morto. E vendo algũs que o parecia [morto] o embrulharam em
hua manta, em que estava mal entrouxado pelo temor do contagio. E passando hum
esquife com hua negra morta, o botarão sobre ela e o levaram ao adro de Nossa Senhora
da Graça e entendendo ele que estava nele, pediu que o desembrulhassem, o que logo

5
Mariolas.

2
fizeram com grande espanto; aos quais respondeu que se fossem embora, pois estava em
chão sagrado, e se recolheu no dito mosteiro e ao outro dia veio ter a portaria de Sam
Domingos descalço e em corpo onde se proveu de huas botas velhas e capa e se foi catar
do pão.

Capítulo 122. De algũs casos dinos de memoria


No mês de Maio de 1622, se viu esta cidade e quasi todo o reino em tanta falta de
trigo sem vir nenhum de fora que se chegou a ver o mais temerário espectáculo de fome
que nunca se viu nem ouviu nem se acordava nenhum antigo doutro tal, chegando a tanto
que andavam os homens, mulheres e meninos gritando pelas ruas por um bocado de pão
por se não poder achar por nenhum dinheiro pão, nem trigo nem centeio nem milho nem
cevada.
E estando no terreiro algũs alqueires pêra se repartirem foram todas as justiças ter
mão nas portas do terreiro onde se ajuntou todo povo de Lisboa e do termo dando as
justiças grandes pancadas nas gentes que à força queriam entrar; e tanto que deram num
frade de sam Francisco e num capucho de maneira que os derribaram por se não poderem
valer no defender das portas e hũa molher se afogou entre o tumulto da gente e outra
deitou a criança de que hia prenhe e outras saíam quasi mortas esguedelhadas com os
mantos esfarrapados; e ninguém se ocupava em mais que em andar buscando pão ou
remédio per onde o achariam e se em algũ forno se cozia algũ pão, logo eram mil almas importância do
no forno e então vinha a justiça reparti-lo por aquelas pessoas a que podia abranger e cada pão
pão, que era como de dez réis dantes custava quatro cinco vinténs,6 e se o achavam davam
muito mais por ele. preço inflacionava brutalmente
Era ver andar as mulheres, meninos e homens pelas ruas todos os dias e noutes
gritando; cortava os corações e era a mor lastima do mundo. E se se achava algũ alqueire
de trigo custava cinco tostões7 e de centeio onze vinténs e de milho o mesmo, mas ainda
assim se não achava senão por milagre. Era ver ir os padres com as sacolas vazias pêra o
mosteiro sem haver quem lhe desse um pão; lastimava os corações ver as mulheres graves
e de qualidade andar pelas casas que lhe acudissem; era lástima de maneira que até as
ervas, couves, hortaliças de toda a sorte se não achavam, porque se não comia outra cousa
em toda a cidade e termo e em toda a parte.

6
Vintém=20 réis.
7
Tostão=100 réis.

3
Houve neste tempo muitos que fizeram grandes esmolas e outros que
entezouraram muito dinheiro, vendendo o trigo que tinham a quinhentos reais, metendo
se de pés e de cabeça no Inferno sem darem esmolas, e outros despendendo quanto tinham
em esmolas, andando os fidalgos pelas ruas com as bolsas de dinheiro, acudindo aos
pobres, de maneira que quem viu isto chegou a ver o mais que se podia ver de miséria e
desventura de fome a que Nosso Senhor com sua misericórdia quis acudir, como acudiu;
e estando assim no fim do mês, todos sem haver já quem visse nem houvesse um pão,
entraram pela barra muitas velas carregadas de maneira que logo ouve pelas portas
tavoleiros de pão a vender. (…)».

N.º 2
«Éloge historique de Marie Poisson, de la paroisse Saint Marc d’Orléans, par un de ses
contemporains» in Jean Carpentier e Jacques Lebrun (dir.), Histoire de France,
Éditions du Seuil, 1992, pp. 167-168.

«No ano de 1693, devido à cólera divina, justamente irada, a França, enfraquecida
por uma longa guerra, foi atingida pela maior e mais universal das fomes de que havia
lembrança. O trigo que custara, em Orleães, nos anos precedentes, 14 a 15 libras, subiu
até às 110 libras; mesmo assim, havia grande dificuldade em obtê-lo. Os artesãos que
possuíam algumas reservas, conseguiram aguentar os primeiros embates, mas
rapidamente se viram obrigados a vender os seus móveis, uma vez que os burgueses
pensavam sobretudo no que lhes era essencial e já não os faziam trabalhar. Enfim, foi
uma desolação geral logo que se viram sem móveis, sem trabalho e sem pão. Viam-se
então famílias inteiras, tidas até então por abastadas, a mendigar pão de porta em porta.
Não se ouviam senão os gritos lancinantes de crianças pobres, abandonadas pelos seus
pais, que gritavam dia e noite por um pouco de pão. Não se viam senão rostos pálidos e
desfigurados. Muitos tombavam desfalecidos nas ruas e praças públicas e alguns morriam
mesmo nas calçadas. Se os pobres das cidades, onde há tantos recursos, se encontravam
num estado tão deplorável, imagine-se, se tal for possível, a situação daqueles que viviam
no campo e o enorme sofrimento em que este se encontrava mergulhado, com inúmeras
famílias pobres abandonadas e de uma miséria tão grande que nada mais lhes restava
senão pastar erva como alimárias e comer alimentos infectos que os animais imundos
certamente rejeitariam.»

4
N.º 3
Descrição de crise de escassez (Abril 1694) in Pierre Goubert, Beauvais et le Beauvaisis
de 1600 à 1730, Paris, 1960, p. 303.

«Não se vê em Beauvais senão um número infinito de pobres, vagueando pelas


ruas, atingidos pela escassez e pela indigência, morrendo nas praças e ruas, nas cidades e
nos campos, por falta de pão. Não tendo ocupação, nem trabalho, falta-lhes dinheiro para
comprar pão e por esse motivo morrem miseravelmente de fome (…). Muitos destes
pobres procuram matar a fome alimentando-se de alimentos imundos e impuros, como
gatos, carcaças ou peles de animais em estado de decomposição, sangue de vacas e bois
esquartejados nos matadores e todo o tipo de vísceras. Outros, igualmente pobres
alimentam-se de plantas e raízes cozidas, como urtigas e outro tipo de plantas que
corrompem o corpo humano (…). Alguns ainda, desesperados com a fome, dedicam-se a
roubar, enquanto outros chegam a assaltar as terras lavradas e semeadas para esgravatar
e comer as sementes.»

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