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quantos éramos, e vós dizees que vos tragam cavalo.

E que presta de vos a


vós tragerem cavalo, ainda que o hi houvesse, ca Nuno Alvarez se foi já com
toda sua gente à sua vontade como quis?
— Nom monta nada, disse el, tragam­‑me a mim o cavalo se o hi há,
sequer verei como se vão.
E nom se fez mais sobr’esto.
Nun’Alvarez foi comer a Couna e ali repartio o esbulho per todos sem
havendo pera si parte algũa. E dhi cavalgou e foi a Palmela. E quando foi de
noite, mandou fazer taes almenaras de fogo de guisa que o viam os de Lixboa
por saberem os da cidade que estava ele ali, e tomarem algũ esforço.
E certamente assi foi de feito, que o Mestre quando vio aquelas almenaras
de fogo em Palmela, bem entendeo que era Nun’Alvarez que ali estava com
suas gentes, e houve mui gram prazer, el e todos aqueles que o viam. E man-
dou acender muitas tochas no grande eirado dos paços delRei hu estonce pou-
sava, por as verem de Palmela, e lhe dar a entender que via suas almenaras,
e que lhe respondia com aqueles lumes, pois outra fala antre eles haver nom
podia.
E assi esteve o Mestre per hũ bom espaço falando com os seus nos feitos
de Nun’Alvarez com aquel doce razoar e louvores, quaes tam leal servidor
merecia de se del dizerem. Desi colheo­‑se pera sua camara.
Nun’Alvarez er apagou seus fogos por cobrar o sono que dante perdera,
onde fique com boas noites. E nós tornemos ver a atribulada de Lixboa em
que ponto está.

C XLV III
Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantimentos

Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes, gastavom­‑se


os mantimentos cada vez mais, por as muitas gentes que em ela havia, assi
dos que se colherom dentro do termo, de homens aldeãos com molheres e
filhos, come dos que veerom na frota do Porto. E algũs se tremetiam às vezes
em batees e passavom de noite escusamente contra as partes de Ribatejo, e
metendo­‑se em algũs esteiros, ali carregavom de trigo que já achavom prestes,
per recados que ante mandavom.
E partiam de noite remando mui rijamente e algũas galés quando os sen-
tiam vinr remando, isso mesmo remavom a pressa sobre eles. E os batees por
lhe fugir, e elas por os tomar, eram postos em grande trabalho.

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Os que esperavom por tal trigo, andavom per a ribeira da parte de
Exobregas, aguardando quando veesse. E os que velavom, se viam as galés
remar contra lá, repicavom logo por lhe acorrerem.
Os da cidade como ouviam o repico, leixavom o sono, e tomavom as
armas e saía muita gente, e defendiam­‑nos às bestas se compria, ferindo­‑se às
vezes dhũa parte e doutra. Porém nunca foi vez que tomassem algũ, salvo hũa
que certos batees estavom em Ribatejo com trigo, e forom descubertos per hũ
homem natural d’Almadã, e tomados per os castelãos. E el foi depois tomado
e preso e arrastado, e decepado e enforcado. E posto que tal trigo algũa ajuda
fezesse, era tam pouco e tam raramente, que houvera mester de o multiplicar
como fez Jesu Cristo aos pães com que fartou os cinco mil homens.
Em esto gastou­‑se a cidade assi apertadamente, que as pubricas esmolas
começarom desfalecer, e nehũa geraçom de pobres achava quem lhe dar pam.
De guisa que a perda comum vencendo de todo a piedade, e vendo a gram
mingua dos mantimentos, estabelecerom deitar fora as gentes minguadas e
nom pertencentes pera defensom. E esto foi feito duas ou três vezes, atá lan-
çarem fora as mancebas mundairas e judeus e outras semelhantes, dizendo
que pois taes pessoas nom eram pera pelejar, que nom gastassem os manti-
mentos aos defensores. Mas isto nom aproveitava cousa que muito prestasse.
Os castelãos à primeira prazia­‑lhe com eles, e davom­‑lhe de comer e aco-
lhimento. Depois vendo que esto era com fame, por gastar mais a cidade, fez
elRei tal ordenança que nehũ de dentro fosse recebido em seu arreal, mas que
todos fossem lançados fora. E os que se ir nom quisessem, que os açoutassem
e fezessem tornar pera a cidade. E esto lhes era grave de fazer, tornarem per
força pera tal logar, onde chorando nom esperavom de ser recebidos. E taes
hi havia que de seu grado se saíam da cidade, e se iam pera o arreal, querendo
ante de todo ser cativos, que assi perecerem morrendo de fame.
Como nom lançariam fora a gente minguada e sem proveito, que o Mes-
tre mandou saber em certo pela cidade que pam havia per todo em ela, assi
em covas come per outra maneira, e acharom que era tam pouco que bem
havia mester sobr’elo conselho?
Na cidade nom havia trigo pera vender, e se o havia, era mui pouco e tam
caro que as pobres gentes nom podiam chegar a ele, ca valia o alqueire qua-
tro livras, e o alqueire do milho quarenta soldos, e a canada do vinho três e
quatro livras. E padeciam mui apertadamente, ca dia havia hi que ainda que
dessem por hũ pam hũa dobra que o nom achariam a vender. E começarom
de comer pam de bagaço d’azeitona, e dos queijos das malvas e raízes d’er-
vas, e doutras desacostumadas cousas, pouco amigas da natureza. E taes hi

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havia que se mantinham em alfeloa. No logar hu costumavom vender o trigo,
andavom homens e moços esgaravatando a terra. E se achavom algũs grãos de
trigo, metiam­‑nos139 na boca sem tendo outro mantimento. Outros se farta-
vom d’ervas, e beviam tanta agua, que achavom mortos homens e cachopos
jazer inchados nas praças e em outros logares.
Das carnes isso mesmo, havia em ela grande mingua. E se algũs criavom
porcos mantinham­‑se em eles; e pequena posta de porco valia cinco e seis
livras que era hũa dobra castelã; e a galinha quarenta soldos; e a duzia dos
ovos doze soldos. E se almogavares tragiam algũs bois, valia cada hũ satenta
livras que eram catorze dobras cruzadas, valendo entom a dobra cinco e seis
livras; e a cabeça e as tripas hũa dobra. Assi que os pobres per mingua de
dinheiro nom comiam carne e padeciam mal. E começarom de comer as car-
nes das bestas, e nom somente os pobres e minguados, mas grandes pessoas
da cidade, lazerando nom sabiam que fazer. E os gestos mudados com fame
bem mostravom seus encubertos padecimentos.
Andavom os moços de três e de quatro anos pedindo pam pela cidade
por amor de Deus, como lhes ensinavam suas madres. E muitos nom tinham
outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles choravom que era triste
cousa de ver. E se lhes davom tamanho pam come hũa noz, haviam­‑no por
grande bem.
Desfalecia o leite àquelas que tinham crianças a seus peitos per mingua
de mantimento. E vendo lazerar seus filhos a que acorrer nom podiam cho-
ravom ameúde sobr’eles a morte ante que os a morte privasse da vida. Muitos
esguardavom as prezes alheas com chorosos olhos, por comprir o que a pie-
dade manda, e nom tendo de que lhes acorrer, caíam em dobrada tristeza.
Toda a cidade era dada a nojo, chea de mezquinhas querelas, sem nehũ
prazer que hi houvesse, hũs com gram mingua do que padeciam, outros
havendo dó dos atribulados. E isto nom sem razom, ca se he triste e mez-
quinho o coraçom cuidoso nas cousas contrairas que lhe avinr podem, vede
que fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tinham. Pero com
todo esto quando repicavom, nehũ nom mostrava que era faminto, mas forte
e rijo contra seus ẽmigos.
Esforçavom­‑se hũs por consolar os outros, por dar remedio a seu grande
nojo, mas nom prestava conforto de palavras. Nem podia tal dor ser aman-
sada com nehũas doces razões. E assi como he natural cousa a mão ir ameúde

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  metiam­‑nos] metianos

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onde sé a dor, assi hũs homens falando com outros, nom podiam em al
departir, senom em na mingua que cada hũ padecia.
Ó quantas vezes encomendavom nas missas e pregações que rogassem
a Deus devotamente por o estado da cidade, e ficados os geolhos, beijando a
terra, bradavom a Deus que lhes acorresse, e suas prezes nom eram compridas!
Hũs choravom antre si, maldizendo seus dias, queixando­‑se por que
tanto viviam, como se dissessem com o profeta: «Ora veesse a morte ante do
tempo, e a terra cobrisse nossas faces, pera nom vermos tantos males». Assi
que rogavam a morte que os levasse, dizendo que melhor lhe fora morrer, que
lhe serem cada dia renovados desvairados padecimentos.
Outros se querelavom a seus amigos, dizendo que forom desaventuirada
gente, que se ante nom derom a elRei de Castela, que cada dia padecer novas
misquindades, firmando­‑se de todo nas peores cousas que fortuna em esto
podia obrar.
Sabia porém isto o Mestre, e os de seu conselho, e eram­‑lhe dorosas d’ou-
vir taes novas. E vendo estes males a que acorrer nom podiam, çarravom suas
orelhas do rumor do pobo.
Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer algũs
homens e molheres, que tanta deferença há d’ouvir estas cousas àqueles que
as entom passarom, como há da vida à morte?
Os padres e madres viam estalar de fame os filhos que muito amavom,
rompiam as faces e peitos sobr’eles, nom tendo com que lhe acorrer, senom
planto e espargimento de lagrimas. E sobre todo isto, medo grande da cruel
vingança que entendiam que elRei de Castela deles havia de tomar. Assi que
eles padeciam duas grandes guerras: hũa dos ẽmigos que os cercados tinham,
e outra dos mantimentos que lhes minguavom, de guisa que eram postos em
cuidado de se defender da morte per duas guisas.
Pera que he dizer mais de taes falecimentos? Foi tamanho o gasto das
cousas que mester haviam que soou hũ dia pela cidade que o Mestre man-
dava deitar fora todolos que nom tevessem pam que comer, e que somente os
que o tevessem ficassem em ela. Mas quem poderia ouvir sem gemidos e sem
choro tal ordenança de mandado àqueles que o nom tinham? Porém sabendo
que nom era assi, foi­‑lhe já quanto de conforto.
Onde sabee que esta fame e falecimento que as gentes assi padeciam, nom
era por ser o cerco perlongado, ca nom havia tanto tempo que Lixboa era
cercada. Mas era per azo das muitas gentes que se a ela colherom de todo o
termo. E isso mesmo da frota do Porto quando veo, e os mantimentos serem
muito poucos.

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Ora esguardae como se fossees presente hũa tal cidade assi desconfortada
e sem nehũa certa feúza de seu livramento, como veviriam em desvairados
cuidados quem sofria ondas de taes aflições.
Ó geraçom que depois veo, pobo bem aventuirado, que nom soube parte
de tantos males, nem foi quinhoeiro de taes padecimentos! Os quaes a Deus
por sua mercê prougue de cedo abreviar doutra guisa, como acerca ouvirees.

C XLIX
Da pestelença que andava antre os castelãos
e dalgũs capitães que em ela morrerom

Nom compre muito trabalhar por dar louvor às muitas e boas gentes que
elRei de Castela consigo tinha quando se demoveo pera entrar em Portugal.
Porque sem dúvida sabee de certo que a casa de Castela era entom hũa das
nobres casas do mundo de muitos e gentis homens. Assi de grandes senhores e
fidalgos come cavaleiros e escudeiros bem encavalgados e guarnidos d’armas e
doutra meã gente de besteiros e homens de pé em grande numero e cantidade.
E depois que elRei entrou pelo reino e se veo chegando contra Lixboa,
pousando per essas aldeas, a duas e três legoas, começarom a morrer de peste-
lença algũs do arreal das gentes de pequena condiçom.
E quando algũ cavaleiro ou tal escudeiro que o merecia acertava de se
finar, levavom­‑no os seus a Sintra ou a Alanquer ou a algũ dos outros logares
que por Castela tinham voz. E ali os abriam e salgavom e poínham em ataúdes
ao ar, ou os coziam e guardavom os ossos, pera os depois levarem pera donde
eram. E por esta razom se mudava elRei dhũa aldea pera outra com suas gen-
tes, atá que veo a sua frota, e se lançou sobre a cidade como já he dito.
E tendo seu cerco sobr’ela, começarom de morrer na frota, e isso mesmo
dos do arreal, de guisa que hũs e os outros eram muito anojados, dando per
vezes a elRei conselho que se partisse dali por estonce e depois teria tempo
pera a vinr cercar cada vez que quisesse. Mas el engeitando seus bons razoa-
dos era muito inclinado a nom decercar o logar, por cousa que avinr podesse,
sabendo bem como a cidade era muito minguada de mantimentos e que nom
havia poder de se ter grande espaço que a nom cobrasse à sua vontade.
Ora como assi seja, que antre todalas cousas em que o devinal poderio
vemos que mais resplandece, assi he naquelas que de todo ponto som deses-
peradas, produzê­‑las a proveitoso efeito quando lhe apraz. Assi obrou entom
por sua mercê acerca desta cidade.

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