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MELO LEITÃO, C. (Tradução e anotação). Descobrimentos do rio Amazonas.São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941 (Brasiliana, vol. 203), p. 46-79.
aímos desse povo e fomos caminhando sempre por um território muito povoado,
S
pois houve dias de passarmos por mais de vinte aldeias, isso pela margem que
acompanhamos, pois do outro lado não podíamos ver mais que a vastidão do rio.
Assimíamosdoisdiaspelabandadireitaedepoisatravessamoseíamosoutrosdois
dias pela esquerda, pois quando seguíamos por um lado não víamos o outro.Na
segunda feira da Páscua do Espírito Santo, passámosàvistadeumaaldeiamuito
grandeepopulosa,commuitosbairros,cadaqualcomumdesembarcadouronorio.
Nesses portos havia índios aos magotes, estendendo-se esta aldeia por mais de
duas léguas e meia. Sendo tantos os índios, mandou o Capitãoquepassássemos
adiante, sem lhes fazer mal nem atacá-los. Maseles,vendoquepassávamossem
lhes fazer mal, embarcaram em suas canoas e nosatacaram,masparaseudano,
poisasbalhestasearcabuzesosfizeramvoltarparaassuascasas,deixando-nosir
rioabaixo.Nessemesmodiatomámosumapequenaaldeia,ondeachámoscomida,
e aquiterminouaprovínciadePaguana,eentrámosemoutraprovínciamuitomais
belicosaedemuitagentequenosfaziaguerraincessante.Nãosoubemoscomose
chamavaoseusenhor,masédegentemeãdecorpo,muitobemtratada,comseus
pavezesdepauequedefendemassuaspessoascombravura.Nosábado,véspera
da Santíssima Trindade, mandou o Capitão fundear em i,Jma povoação onde os
índiossepuseramemdefesa.Apesardissoosexpulsámosdecasaenospróximos
de comida, achando ainda algumas galinhas. Nesse mesmo dia, saindo d'ali,
prosseguindoanossaviagem,vimosumabocadeoutrogranderio,àmãoesquerda,
que entrava no ·que navegávamos, e de água negra como tinta, e por isso lhe
puzemosonomedeRioNegro...Corriaeletantoecomtalferocidadequeemmais
devinteléguasfaziaumafaixanaoutraágua,semmisturar-secomamesma.Ainda
nesse dia vimos outras povoações não muito grandes. No domingo da Santíssima
TrindadedescansouoCapitãocomasuagentenospesqueirosdeumpovoadoque
estavanumalomba,encontrando-seaímuitopeixe,quefoisocorroegrandealegria
para os nossos espanhois, pois havia dias que não descansávamos. Estava esta
povoaçãosituadaemumalombaafastadadorio,comoemfronteiradeoutrospovos
que lhe faziam guerra, pois estava fortificada por uma muralha de grossos
troncos.Quando os nossos companheiros subiram para tomar comida, os índios a
quiseram defender esefizeramfortesdentrodaquelacerca,quenãotinhamaisde
uma porta, havendo-se com bravura. Mas como nos víamos em necessidade,
resolvemos atacá-los e, nessa determinação, acometem pela dita porta, entrando
sem nenhum risco. Os companheiros pelejaram com os índios até desbaratá-lose
logo recolheram a comida, que havia em quantidade. Na segunda feira partimos,
passando sempre por províncias e povoações muito grandes, abastecendo-nos de
comidaomelhorquepodíamos,quandoestavanosfaltava.Nessedia,fomosauma
aldeia de medíocre tamanho, onde a gente esperou. Havia lá uma praça muito
grande e no meio da praça um grande pranchãodedezpésemquadro,pintadoe
esculpido em relevo, figurando uma cidade murada, com asuacercaeumaporta.
Nessaportahaviaduasaltíssimastorrescomassuasjanelas,astorrescomportas
que se defrontavam, cada porta com duas colunas. Toda estaobraerasustentada
sobredoisferocíssimosleõesqueolhavamparatrás,comoacauteladosumdooutro,
a sustinham nos braços e nas garras.Havianomeiodestapraçaumburacopor
e
onde deitavam, como oferenda ao sol, a chicha, que é o vinho que eles bebem,
sendoosolqueelesadorametêmcomoseuDeus.Eraesseedifíciocoisadignade
servista,admirando-seoCapitãoeanóstodoseletãoadmirávelcoisa.Perguntouo
Capitão a um índio o que era aquilo e que significava naquela praça, e o índio
respondeu queelessãosúditosetributáriosasAmazonas,equenãoasforneciam
senão de penas de papagaios e guacamayos para forrarem os tetos dos seus
adoradores. Que as povoações que eles tinham eram daquela maneira,
conservando-o ali como lembrança e o adoravam como emblema de suasenhora,
que é quem governa toda a terra das ditasmulheres.Encontrou-setambémnessa
praçaumacasamuitopequena,dentrodaqualhaviamuitasvestimentasdeplumas
de diversas cores, que os índios usavam para celebrar as suas festas e bailar
quando se queriam regozijar diante do já referido pranchão, e ali ofereciam seus
sacrifícios com a sua danada intenção.Saímos logo desta aldeia, encontrando a
seguirumaoutra,muitogrande,quetinhaomesmopranchãoedivisa.Defendeu-se
muitoestepovoepormaisdeumahoranãonosdeixou-pôrpéemterra,masafinal
conseguimos saltar e como os índios eram muitos eacadahoracresciam,nãose
queriam render; mas em vista do dano que se lhes fazia, resolveramfugireentão
tivemos tempo curto, para buscar alguma comida, porque já os índios investiram
contra nós. MasonossoCapitãonãoquizqueesperássemos,poisnadapodíamos
ganharnatransação,emandouqueembarcaremosenosfôssemos.Eassimsefez.
Partidos daqui, passámos por outros muitos povoados, onde os índios nos
esperavam em pé de guerra, como gente belicosa, com as suasarmasepavezes
nas mãos, fazendo grande algazarra, gritando por que fugimos, se eles ali nos
estavam esperando. Mas o Capitão não queria atacar onde via quenãopodíamos
ganharhonranemlevarcomidae,quandohaviaalguma,arriscavaasuapessoaea
dos seus companheiros. Em algumas partes, os índiosdaterraenósdaáguanós
fazíamos guerra, mas como os índios eram muitos, faziam parede e nossos
arcabuzes e balhestas lhes faziam grande mal, e assim passávamos adiante. Na
quarta-feira,vésperadeCorpusChristi,setedejunho,mandouocapitãoaportarem
umapequenapovoaçãoqueestavasobreorio,efoiarrumadasemresistência.Aíse
encontrou muita comida, especialmente peixe, que havia em tal abundância que
pudemosabastecerlargamenteosbergantins.Eraopeixequeosíndiostinhamque
secar para ir vender terra adentro. Vendo todos os companheiros que a povoação
era pequena, pediram ao Capitão que descansasse alí, pois era véspera de uma
grandefesta.OCapitão,comohomemqueconheciaascoisasdosíndios,disseque
não falassem em semelhante coisa, pois tal não pensava fazer, pois embora o
povoado lhesparecessepequeno,tinhaumagrandecomarcadeondepoderiamvir
auxílios e causar-nos dano, e que, portanto, nos fôssemos, como costumávamos
fazer,indodormirnosmontes.Osnossoscompanheirospediramcomomercêquese
demorasse ali. O Capitão, visto que todos o pediam, embora contra a sua
vontade,concedeu o que lhe solicitavam, e assim estivemos nessa povoação
descansandoatéaopôrdosol,horaemqueosíndiosvoltavamparaassuascasas,
porque,àhoraemquesaltámos,sóhaviamulheres,tendoosíndiosidoacuidardas
suas grangearias. Assim, sendo chegada a hora, voltaram e, encontrando suas
casasempoderdequemnãoconheciam,ficarammuitoespantadosecomeçarama
dizer que saíssemos dali, e isto dizendo, decidiram atacar-nos. Mas quando eles
acometiamcontranossagente,acharam-sediantedequatrooucincocompanheiros,
s quais tão denodadamente lutaram, que fizeram com que os índios não se
o
atrevessem a chegar até onde estávamos. Assim os fizeram fugir e, quando o
Capitãosaiu,jánadahaviaquefazer.Jáeranoitee,suspeitandooCapitãooqueiria
acontecer, mandou que fossem dobradas as sentinelas e que todos dormissem
armados,eassimsefez.Àmeianoite,àhoraemquealuasaía,voltaráosíndios
em tropel, atacando-nos por tres lados. Quando foram sentidos, tinham ferido as
sentinelas e eles estavam no meio da nossa gente, e como deram alarma, saiu o
Capitão gritando: "Vergonha, vergonha, cavalheiros, a eles". Levantaram-se os
nossos e com grande fúria atacaram aquela gente que foi desbaratada e, não
podendo resistir aos nossos companheiros, fugiu. O Capitão, pensando que eles
haviam de vir mais uma vez, mandou fazer-lhesumaemboscadaporondehaviam
de voltar, e que os outros não dormissem. Ordenou que se tratasse dosferidos,o
que fiz , porque o Capitão andava de um lado para outro, dando _as ordens que
convinhaparaasalvaçãodasnossasvidas,quenistosempresedesvelou.Eanão
sereletãosábionascoisasdaguerra,quepareciaqueNossoSenhorlheensinavao
quedeviafazer,muitasvezesnosteriammorto.Estivemosdestemodoanoitetodae,
clareando o dia, mandou oCapitãoqueembarcássemosenosfôssemos,equese
enforcassealgunsprisioneirosquetínhamosfeito,paraqueosíndiosdaípordiante
nos cobrassem temor e não nos atacassem. Embarcamose,feitosaolargonorio,
chegavamàpovoaçãomuitosíndiosetambémporáguavinhammuitascanoas.Mas
comojáíamosaolargo,nãotiveramcomopôremobraasuamáintenção.Essedia
nos metemos num monte e descansamos o dia seguinte, prosseguindo a nossa
viagemnoimediato.Nãohavíamosaindaandadoquatroléguasquandovimosentrar
pela mão direita um rio muito grande e poderoso, maiorqueoquepercorremos,e
porissolhepusemoso'nomedeRioGrande,epassamosadiante.Àmãoesquerda
haverumaspovoaçõesmuitograndessobreumalombaquechegavaatéàmargem
dorio.Vendo-as,mandouoCapitãoquepara,lánosdirigimos,oquefizemos.Vendo
osíndiosqueíamosparalá,resolveram,segundopareceu,nãosemostrarmasficar
de emboscada, pensando que saltaram em terra, e para isso tinham limpos os
caminhos que desciam para orio.OCapitãoealgunscompanheirosperceberama
maldade que se estava armando, e por isso passámos ao largo. Vendo tal coisa,
levantam-semaisdecincomilíndioscomassuasarmas,ecomeçamadargritosea
desafiar-nos, a bater com as armas umas nas outras, fazendo um tal ruído que
pareciaqueoriovinhaabaixo.Passamosadiantee,obrademeialégua,demoscom
outropovoadomaior,masaquinósfizemosaolongodorio.Estaterraétemperadae
de muito boa disposição, mas não soubemos seu comércio, porque não nos foi
permitido.Eaquiacabouestaprovínciaepassámosaoutraquenosdeunãopouca
canseira. Continuando nosso caminho, sempre entre lugares povoados, um dia,
pelas oito horas da manhã, vimos num alto uma formosa aldeia, que ao parecer
devia ser capital de algum grande senhor. Quiséramos, embora com risco, chegar
até lá para vê-la, mas não foi possível porque tinha diante uma ilha, e quando
quismosentrarjáaentradatinhaficadoparatrás.Porestemotivopassámosàvista,
olhando-a. !Havia nessa aldeia sete picotas, esparsas emvárioslugaresdaaldeia,
tendo pregadas nelas muitas cabeças de mortos. Por isso pusemosaestelugaro
nomedeProvínciadasPicotas,queseestendiasetentaléguasrioabaixo.Desciam
dessaaldeiaparaoriovárioscaminhosfeitosamão,tendoplantadas,deumeoutro
lado, árvores frutíferas, por onde se percebia que devia ser um grande senhor o
desta terra, No dia seguinte encontrámos outra aldeia do mesmo feitio e, corno
tivéssemos necessidade de comida,fomos forçados a atacá-la. Esconderam-se os
índios, para que sentássemos em terra, e vendo que já tínhamos desembarcado,
saíramdasuaemboscadacomimensafúria.Vinhaadianteoseucapitãoousenhor,
animando-os com enorme gritaria. Um dos nossos balhesteiros fez pontaria nesse
senhor e o matou. Vendo os índios aquilo, decidiram não esperar, mas fugir,
fortificando-se dentro de suas casas, das quais se defendiam e lutavam como cães
danados. VendooCapitãoquenãosequeriamrender,quenostinhamfeitodanoe
ferido alguns dos nossos companheiros, mandou pôr fogo nas casas onde estavam
os índios, que assim saírãm delas, fugindo, dando lugara que se recolhesse a
comida que nessa aldeia, louvado Nosso Senhor, não faltou, pois havia muitas
tartarugas,muitosperúsepapagaios,eumagrandefartura,poisdepãoemilhonem
se fala. Saímos dali e logo fomos a uma ilha descansar egozardoquetinhamas
tomado. Prendeu-se nesta aldeia uma índia, ele tinha muita razão, que disse que
perto daqui, no interior, havia muitos cristãos como nós para aí trazidos por um
senhor. Disse-nos mais que havia entre eles duas mulheres brancas e que outros
viviamcomíndias,dasquaistinhamfilhos.Aoquesepresume,sãoestesosquese
perderam de Diego de Ordaz, pelos sinais que davam,queeraparaasbandasdo
norte.Seguimosnossorioabaixosemtocaremnenhumpovoado,porquelevávamos
oquecomer,eaocabodealgunsdiassaímosdestaprovíncia,àsaidadaqualhavia
umaimensaaldeia,porondenosdisseaíndiaquedevíamosiratéondeestavamos
cristãos, mas resolvemos passar adiante, que para tirá-los de onde estavam,
chegaráasuavez.Dessaaldeiasaíramdoisíndiosnumacanoaechegaramatéao
bergantimondevinhasemarmasonossoCapitão,eficarammuitotempomirandoe
por muito que este os chamasse para que entrassem, elhesdessemuitascoisas,
nunca quiseram, antes, mostrando o interior ela terra, volveram. Essa noite
dormimosnafronteiradessaaldeia,dentrodosnossosbergantise,clareandoodia,
começámosacaminhar.Saiudaaldeiamuitagente.Embarcaramosíndiosevieram
atacar-nosnomeiodorio,porondenavegamos.Estesíndiosjátêmflechaselutam
com elas. Tomámos o nosso caminho sem esperar. Fomos caminhando, tomando
comida onde víamos que não a podiam defender e no fim de uns quatro oucinco
dias fomos tomar uma povoação onde os índios não se defenderam. Aqui se
encontroumuitomilho(etambémmuitaaveia),dequeosíndiosfazempão,evinho
muitobom,parecendocerveja,havendodelemuitaabundância.Encontrou-seneste
povoado uma adega desse vinho, com o que não pouco se alegram os nossos
companheiros. Achou-se também muito boa roupa de algodão. Havianessaaldeia
umadoratório,dentrodoqualestavapenduradasmuitasdivisasdearmasdeguerra
e, por cima de todas, duas mitras muito bem feitas, como as dos 'bispos: eram
tecidas não sabemos de que, pois não eram de lan de algodão e tinham muitas
côres. Passamos adiante desta povoação e fomos dormir do outro lado do rio, no
monte, como era o nosso costume,ealivierammuitosíndiosatacar-nosporagua,
mas mau grado seu, tiveram de retroceder. Terça-feira, 22 de junho, vimos muitas
povoações do lado esquerdo do rio, poisindonóspelomeio,víamosbranquearas
casas. Quisemos ir até lá mas não pudemos pela muitacorrentezaepelasondas,
mais trabalhosas que as do mar. Quarta-feira tomámos um povoado que estava no
meio de um arroio pequeno, numa grande planície de mais de quatro léguas.
Constituíaestepovoadoumaúnicarua,comumapraçanomeio,estandoascasas
de um e outro lado, e aí achámos muita comida. A este povoado, chamemos,por
estarassimdisposto,povoaçãodaRua.Quinta-feirapassamosporoutrospovoados
le tamanho médio, mas não cuidamos de parar ali. Todos eles são arraiais de
e
pescadores do interior. íamos desta maneira caminhando e procurando um lugar
aprazível para folgar e celebrar a festa do bem- aventurado São João Batista,
precursor de Cristo, e foi servido Deus que, dobrando uma ponta que o rio fazia,
víssemos alvejando muitas e grandes aldeias ribeirinhas. Aqui temos de chofre na
boa terra e senhorio dasamazonas.Estavamestespovosjáavisadosesabiamda
nossa ida, e por isso nos vieram receber no caminho por água,masnãocomboa
intenção. Chegando perto, como o Capitão osquisessetrazeràpaz,começandoa
falar-lhes e a chamá-los, riram-se eles e faziam burla de nós; aproximavam-se e
diziamqueandássemos,poisaliabaixonosesperavam,paraprender-nosatodose
levar-nosàsamazonas.OCapitão,ofendidocomasoberbadosíndios,mandouque
atirassem neles com as balhestasearcabuzes,paraquepensassemesoubessem
quetínhamoscomqueosofender.Comodanoquelhescausamos,voltaramparaa
aldeiaadarnoticiadoquetinhamvisto.Nãodeixámosdecaminhareaproximar-nos
das aldeias, e antes que chegássemos, a uma distância de mais de meia légua,
havia pela linha d'água, aquí e alí, muitos esquadrões de índios, e como íamos
andando,elessejuntavam,acercando-sedassuaspovoações.Havianomeiodesta
aldeia uma multidão, fazendo um bom esquadrão e o capitão deu ordem que os
bergantins encalharam onde estava aquela gente, para buscarcomida.Eassimfoi
que, quando começamos a chegar à terra,principiaramosíndiosadefenderasua
aldeiaeaflechar-nos,ecomoagenteeramuita,pareciaquechoviamflechas.Mas
os nossos arcabuzeiros e balhesteiros não estavam ociosos, porque não faziam
senão atirar, e embora matassem muitos, nãoosentiam,porque,comtodoodano
quelhesfazíamos,andavamunspelejandoeoutrosbailando.Aquiestivemosporum
triz para perder-nos todos, porque como havia tantas flechas, os nossos
companheiros porfiavam por defender-se delas, sem poder remar. Foiistoacausa
dequenosfizessemtantomalqueantesquesaltássemosemterrajátinhamferidoa
cincodosnossos,dosquaiseufuiumdeles,levandoumaflechanailharga,queme
chegouaovazioesenãofossemoshábitos,aliteriaficado.Vendooperigoemque
estávamos, começou o Capitão a animar e a apressar os dois remos para que
encalhassem, e os nossos companheiros se lançaram à águaquelhesdavapelos
peitos. Travou-se aqui muito grande eperigosabatalha,porqueosíndiosandavam
misturadoscomosnossosespanhóis,quesedefendiamtãocorajosamente,queera
uma coisa maravilhosadever-se.Andou-senestecombatemaisdeumahora,pois
os índios não perdiam ânimo, antes parecia que o redobraram, embora vissem
mortosamuitosdosseus,epassavamporcimadeles,enãofaziamsenãoretrair-se
etornaraatacar.Queroquesaibamqualomotivodesedefenderemosíndiosdetal
maneira.Hãodesaberqueelessãosúditosetributáriosdasamazonas,éconhecida
anossavinda,forampedir-lhessocorroevieramdezoudoze.Aestasnósasvimos,
que andavam combatendo diante de todos os índios como capitãs, e lutavam tão
corajosamente que os índios não ousavam mostrar as espadas, e ao que fugia
diante de nós, o matavam a pauladas. Eis a razão por que os índios tanto se
defendiam.Estas mulheres são muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido,
entrançado e enrolado na cabeça, São muito membrudas e andam nuas em pelo,
tapadas as suas vergonhas, com os seusarcoseflechasnasmãos,fazendotanta
guerra como dez índios. E emverdadehouveumadestasmulheresquemeteuum
palmodeflechaporumdosbergantis,easoutrasumpoucomenos,demodoqueos
nossos bergantis pareciam porco espinho. Voltandoaonossopropósitoecombate,
foi Nosso Senhor servido dar força e coragem aos nossos companheiros, que
mataram sete Ott oito destas amazonas, razão pela qual os índios afrouxaram e
foram vencidos e desbarata-los com farto dano de suas pessoas. Comoviessede
outras aldeias muita gente de socorro e haviam devoltar,poisjásecomeçavama
chamar, mandou o Capitão que a toda a pressa embarcasse a gente, pois não queria
pôremriscoaviciadetodos.Eassimembarcaram,nãosemsossobra,porquejáos
índios começaram a lutar, e vinha por água imensa frotadecanoas.Assimsendo,
nosfizemosaolargoedeixamosaterra.DesdeopontoemquedeixamosGonçalo
Pizarro,jácaminhámosmilequatrocentasléguas,antesmaisdoquemenos,enão
sabemos ainda o que falta daqui até ao mar. Nesta aldeia agarramos um índio
trombeteiro, que andava entre a gente, de cerca de trinta anos de idade, e que
começouacontaraoCapitãomuitascoisasdointeriordaterra.EoCapitãoolevou
consigo. Feitos ao largo do rio, nos deixamos ir à garra, sem remar, porque os
nossos companheiros estavam tão cansados que nãotinhamforçasparasusteros
remos. Indopelorio,teríamoscaminhadoumtirodebalhestaquando descobrimos
uma aldeia, não pequena, onde não parecia haver gente, e por isto todos os
companheirospediramaoCapitãoquefosseatélá,paraatomarmos,poisnaoutra
aldeia osíndiosnãonostinhamdeixado.Disse-lhesoCapitãoquenãoqueria,pois
emboralhesparecessenãohavergente,delenóstínhamosmaisdeprecaveroque
de onde claramente a víamos. Juntamo-nos todos, e cu com os demais
companheiros, e lhe pedimos como mercê. Embora já tivéssemos passado essa
aldeia,oCapitão,fazendo-lhesavontade,mandouretrocederosbergantins,ecomo
íamos costeando a terra, os índios escondidos em emboscada, entre as árvores,
repartidos por seus esquadrões, para nos surpreender nesta cilada, Começarama
atacar-nos e flechar-nos tão bravamente,quenãonosvíamosunsaosoutros.Mas
como nossosespanhóisvinham,desdeMachiparo,providosdebonspavezes,não
nos fizeram tanto dano, quanto nos fariam se não viéssemos protegidos por essa
defesa,edetodaessagentesóamimferiram,quemederamumflechaçonumolho,
que passou aflechaparaooutrolado.Destaferidaperdiumolhoenãoestousem
fadigaefaltadedôr,postoqueNossoSenhor,semqueomereça,mequisconservar
avidaparaquemeemendeeosirvamelhordoqueatéaqui...Nestemeiotempojá
haviam saltado em terra os espanhois que vinham no barco pequeno, e como os
índios eram tantos, os tinham cercado. Senão fosse o Capitão socorrê-los com o
bergantimgrande,perdiam-seeosíndiososlevariam.Eassimoteriamconseguido
antes que chegasse o Capitão se eles não lutasse com tanta coragem. Mas já
estavamcansadosepostosemgrandeabertura.Recolheu-osoCapitãoecomome
visseferido,mandouembarcaragente.Eassimseembarcaram,poisosíndioseram
muitosemuiencarniçadoseosnossoscompanheirosnãopodiamcomeles.Temiao
Capitãoperderalgum,enãoosqueriaarriscaremsemelhanteaventura,poissendo
aterrapovoa,da,convinhaconservaravidadetodos,poisdeumaaldeiaaoutranão
distavamaisdemeialégua,portodaaquelamargemdireitadorio,queéoladosul.
Paraointerior,aumasduasléguasmaisoumenos,apareciamgrandescidades,que
estavam alvejando. Além disso, a terra é tão boa e fertil e tão natural como a de
nossa Espanha, pois entramos nela por São João e já começavam os índios a
queimaroscampos.E'terratemperada,ondeserecolhemuitotrigoesedarãotodas
as árvores frutíferas. Além disso está aparelhada para criar todo gado, porque há
nelasmuitaservascornoemnossaEspanha,taiscomoooréganoecardospintados
e rajados, e outras muitas ervas boas. Os montes destas terras são azinhais e
overaiscombolotas,porquenósasvimos,ecarvalhais.Aterraéaltaefazlombas,
s
todasdesavanas,comervaqueapenaschegaaosjoelhos,ehámuitacaçadetoda
espécie.Tornandoànossaviagem:mandouoCapitãoquefôssemosparaomeiodo
rioparafugirciospovoados,queeramtantosquecausavamespanto.Chamemosa
esta província de São João. porque em seu diaentramosnela,eeutinhapregado
pela manhã, vindo pelo rio, em louvor de tão glorioso precursor de Cristo, e tenho
por averiguado que por sua intercessão me outorgou Deus a vida. Fomos para o
meio elo rio e osíndiosporáguaemnossoseguimento,porqueoCapitãomandou
atravessar para uma ilha que estavadespovoadaeatésernoitenãonosdeixaram
osíndios.Chegámosàilhadepoisdasdezhorasdanoite,ordenandooCapitãoque
não saltássemos, pois poderia ser que os índios viessem sobre nós. Assim
passamos a noite em nossas embarcações. De manhã mandou o Capitão que
caminhássemos com muita ordem até sair desta província de São João, que tem
mais de 150 léguas de costa, povoadas, como disse.No outro dia, 25 de junho,
passámos por entre umas. ilhas quepensámosqueestivessemdespovoadas,mas
depois que nós achámos no meio delas, foram tantas as povoações que aí
apareciam e vimos, que ficamos abismados. Quando nos viram, vieram sobre nós
pelorio,sobreduzentaspirogas,cadaqualcomvinteatrintaíndios,ealgumascom
quarenta. Vinham muitos chibantes, com diversas insígnias e traziam muitas
trombetas e tambores, e órgãos que tocam com a boca, e arrabil de três cordas.
Vinhamcomtantaordemetamanhoestrondoegritariaqueestávamosespantados.
Cercaram nos ambos os 'bergantins e atacaram-nos como homens quepensavam
levar-nos. Mas as coisas lhes saíram àsavessas,porqueosnossosbalhesteirose
arcabuzeirostaldanolhesfizeram,quesederamporfelizesempoderfugir.Emtema
eracoisamaravilhosaelever-seosesquadrõesqueestavamnaspovoações,todos
tocando edançandocomumaspalmasnasmãos,mostrandograndealegriaaover
quepassávamosdosseuspovoados.Estasilhassãoaltas,em'boranãomuito,ede
terra rasa,aoqueparecemuitoférteis,etãoalegresàvista,queemborafôssemos
cheiosdetrabalhos,nãodeixávamosdealegrar-nos.Fomoscosteandoailhamaior,
queteráumasseisléguasdecomprimentoeestásituadanomeiodorio.Quantoà
sua largura, não poderemos dizer. Foram sempre os índios atrás de nós, até
expulsar-nos desta província de São João, que, como já disse, tem 150 lé-
guas, todas percorridas por nós com muito trabalho e fome, deixando de parte a
guerra, pois como fosse muito povoada, não foi possivel saltar emterra.Portoda
esta ilha foram sempre as canoas e pirogas em nosso seguimento, atacando-nos
quandoselhesantolhava;mascomonãolhesagradavamosnossostiros,nos\am
acompanhando de vez em quando. Na ponta desta ilha havia muito mais gente,
saindo muitas pirogasdefresco,quenosatacaram.Aquiachando-seoCapitãoem
tão grande apertura e desejando a paz com esta gente, para ver se poderíamos
tomarumpoucodedescanso,resolveufalarcomosíndiosepedir-lhespaz,epara
abraud:Hos mandou deitar em uma cabaça algum resgate e atirá-la n'água. Os
índios a tomaram, mas o tiveram em tão pouca estima, que faziam burla dele.Por
issonãodeixarameleseguir-nosatéexpulsar-nos,desuaspovoaçõesque,comojá
dissemos,erammuitas.Estanoitechegámosadormirjáforaelequalquerpovoação,
em um carvalhal, que havia em uma grande planície, perto do rio, onde não nos
faltaram temerosa suspeitas, pois vieram muitos índios a espiar-nos, e no interior
elas terras havia muitos povoados e caminhos que entravam por ela. Por esse
motivo o Capitão e todos estavam em vigília, esperando o que nos pudesse vir.
esse pouso o Capitão tomou o índio que havia agarrado acima, porque já o
N
entendia por um vocabulário que havia feito e lhe perguntou ele onde era natural.
Disseoíndioquedapovoaçãoondefôrafeitoprisioneiro.PerguntouoCapitãocomo
se chamava o senhor dessa terra, e o índio .respondeu que se chamava Couynco, e
que era grande senhor, estendendo-se o seu senhorio até onde estávamos.
Perguntou-lhe o Capitão que mulheres eram aquelas que tinham vindoajudá-lose
fazer-nosguerra.Disseoíndioqueeramumasmulheresqueresidiamnointerior,a
umas sete jornadas da costa, e por ser este senhor Couynco seu súdito, tinham
vindo guardar a costa. Perguntou o Capítão se estas mulheres eram casadas e o
índio disse que não. Perguntou o Capitão de que modo vivem.Respondeuoíndio
que viviam no interior, e que ele tinha lá estado muitas vezesevistooseutratoe
residências, pois como seu vassalo ialevarotributo,quandoosenhoromandava.
Perguntou o Capitão se estas mulheres eram muitas.Disseoíndioquesim,eque
ele sabia, pelo nome, setenta aldeias, e os contoudiantedosqueaíestávamos,e
queemalgumashaviaestado.PerguntouoCapitãoseestasaldeiaseramdepalha.
Disseoíndioquenão,masdepedraecomportas,equedeumaaldeiaaoutraiam
caminhos cercados de um e outro lado e de distância em distância com guardas,
para quenãopossaentrarninguémsempagardireitos.Perguntou-lheoCapitãose
estasmulherespariam.Disseoíndioquesim.PerguntouoCapitãocomo,nãosendo
casadas,nemresidindohomenscomelas,emprenharam.Eledissequeestasíndias
coabitam com índios de tempos em tempos, e quando lhes vem aquele desejo,
juntam grande porção de gente de guerra e vão fazer guerra a um grandesenhor
que reside e tem a sua terra junto àdestasmulheres,eàforçaostrazemàssuas
terraseostêmconsigootempoquelhesagrada,edepoisqueseachamprenhasos
tornamamandarparaasuaterrasemlhesfazeroutromal;edepoisquandovemo
tempo de parir, se têm filho o matam e o mandam ao pai; se é filha, acriamcom
grande solenidade e a educam nas coisas de guerra. Disse mais que entre todas
estas mulheres há uma senhora que domina e tem todas as demais debaixo da sua
mãoejurisdição,aqualsenhorasechamaConhorí.Dissequeháláimensariqueza
de ouro e prata, e todas as senhoras principaisedemaneirapossuemumserviço
todo de ouro ou prata, e que asmulheresplebeiasseservememvasilhasdepau,
excetoasquevãoaofogo,quesãodebarro.Dissequenacapitaleprincipalcidade,
onde reside a senhora,hácincocasasmuitograndes,quesãoadoratóriosecasas
dedicadas aosol,asquai~sãoporelaschamadascaranaí,equeestase.asassão
assoalhadas no solo e até meia altura e que os tetos são forrados de pinturas de
diversas cores, que nestas casas tem elas ídolos de ouro e prata em figura de
mulheres,emuitosobjetosdeouroeprataparaoserviçodosol.Andamvestidasde
finíssimaroupadelan,porquehánessaterramuitasovelhasdasdoPerú..Seutrajar
é formado por umas mantas apertadas dos peitos i;ara 'baixo, o busto descoberto, e
um como manto; atado adiante por uns cordões. Trazem os cabelos soltos até ao
chãoepostasnacabeçacoroasdeouro,elalarguradedoisdedos.Dissemaísque
nestaterra,segundocompreendemos,hácamelosqueoscarregam,edissequehá
outrosanimais,quenãoconseguimosentender,quesãodotamanhodeumcavalo,
com pêlos do comprimento de um gêmeo ecomapatafendida;hapoucosdeles,
·que vivem amarrados. Disse que há nesta terra duas lagoasdeáguasalgada,de
que elas fazem sal. Disse que há uma ordem para, em pondo-se o sol, não fique
índio macho em nenhuma destas cidades, devendo sair e ir para as suas terras.
Disse mais que muitas províncias de índios que lhes são limítrofes, elas as têm
ujeitaseosfazempagartributoequeelesassirvam;equeháoutrascomasquais
s
vivem em guerra, especialmente com a que já dissemos, e os trazem para ter
relações com elas. Disse que estes são altos de corpo e muito brancos, e muito
numerosos,eqnetudooquenosreferiu,eleviumuitasvezes,comohomemqueia
e vinha diariamente.Tudo o que este índiodisse,jánoshaviacontadoaumasseis
léguas de Quito, porque ali falammuitonestasmulheres,eparavê-lasvêmmuitos
índios 1.400 léguas rio abaixo. Assim nos diziam lá em cima os índios, que quem
tivessededesceràterradestasmulherestinhadeirrapazevoltarvelho.Disseque
a terra é fria e que há pouca lenha, sendomuitoabundanteemtodasascomidas.
Também disse muitas outrascoisas,ecadadiavaidescobrindomais,porqueéum
índiodemuitarazãoemuitoentendido,eassimosãotodososoutrosdaquelaterra.
Nodiaseguinte,pelamanhan,saímosdessecarvalhalnãopoucoalegres,pensando
que já tínhamos deixado atrás toda a zona povoada o que tinhamas ocasião para
descansar dos trabalhos passados e presentes, e assim começámos nossos
acostumado caminho. Mas n'ão tínhamos andado muito, quando vimos à mão
esquerda grandes províncias e povoações, que estavam na terra mais vistosa e ale-
grequevimosedescobrimosemtodoorio,porqueeraterraalta,delombasevales
muito povoados. Dessas províncias veio atacar-nos no meio do rio e fazer guerra
grandecópiadepirogas.Estasgentessãograndíssimasemaisaltasqueosnossos
homens mais altos, e andam tosquiados e todos tisnados de negro, pelo que as
chamámosProvínciadosNegros.Sairammuiluzidosenosatacarammuitasvezes,
mas não nos fizeram dano e se foram sem ele. Não tomámos nenhuma destas
povoações, por não querer o Capitão, pela muita gente que havia. Perguntou o
Capitãoaoíndioquegenteeraaquela1.;quemagoverna.Dissequeaquelaterrae
as .povoações riue se pareciam, com outras muitas que não víamos, eram de um
grande senhor, chamado Arripuna, quesenhoreavamuitaterra,queseestendiario
acima oitenta jornadas, até uma lagoa que estava elo lado do norte, onde governava
outro senhor, chamado T inamostón. Mas disse que este é um grande guerreiro e
quesuagentecomecarnehumana,coisaquenáofazemosdemaisdestaterraque
atéagorapercorremos.Essesenhornãoénalagoa,masdeoutra,eéelequetem
consigo e em sua terra os cristãos dos quais acima tivemosnotícia,porqueeleos
tinhavisto.Dissequeelepossuigranderiquezadeprata,ecomelaseservemcom
todaaterra,asqueouronãoalcançam.Enaverdadeaterrafazdarcréditoatudoo
que sediz.pelasuavistaeparecer.Doisdiasmaistardechegámosaumpequeno
povoadoondeo.síndiossedefenderam,masnósosdesbaratamoselhestomamos
a comida e passámos adiante, a outra que estava junto dele e era maior. Aqui se
defenderam os índios e lutaram durante meia hora,tãobemecomtantacoragem,
que antes que pudéssemos saltaremterramataramdentrociobergantimgrandea
um companheiro, que se chamava Antônio de Carranza, naturaldeBurgos.Nessa
aldeiaempregavamosíndiosalgumaervavenenosa,peloqueseconheceunaferida
do nosso companheiro, que ao cabo de 24 horas deu àalmaaDeus.Voltandoao
nossoassunto,direiquesetomouopovoadoerecolhemostodoomilhoquecoube
nos'bergantins,porque,comovimosaerva,resolvemosnãosaltaremterranemem
povoado se não fosse com demasiada necessidade, e assim fomos com cautela
maior do que tinhamos tido até ali.Caminhámos com muita pressa, desviando-nos
dos.lugares povoados, e um dia detardefomosdormirnumcarvalhalquehaviana
bocaderioqueentravapelamãodireitanodenossanavegaçãoetinhaumalégua
e largura. Mandou o Capitão atravessar para dormir nesse lugar, porque parecia
d
não haver povoação junto à costa desse rio e podermos dormir sem haver susto, em-
Emboraointeriorparecessemuitopovoado.Parámosnessecarvalhal,mandandoõ
Capitão pôr umas varandas nos bergantins, a maneiradefossos,paradefendê-los
dasflechas,enãonosvalerampouco.Nãohaviamuitoqueestávamosnessepouso
quando vem uma grande quantidade de canoas e pirogas, a observar-nos, sem
fazer-nosoutromal,edestemodonãofaziamsenãoirevir.Aíestivemosdiaemeio,
e pensávamos· demorar mais tempo. Aqui se passou uma coisa não de pouco
espantoeadivinhaçãoaosqueavimos,efoiqueahorasdevésperas,veiopousar
numa árvore debaixo da qt1al estávamos acampados um pássaro do qual nunca
ouvimos mais que o canto, que fazia com muita pressa e distintamente dizia ui, e
issodissetresvezes,velozmente.Tambémseidizerqueaestepássaroouaoutro,
ouvimos em nossa companhia, desde a primeira povoação onde fizemos os
escravos, e era tão certo que, notandoqueestávamospertodequalquerpovoado,
no quarto d'alva no-lo dizia desta maneira; eistomuitasvezes.Querdizerqueera
tãocertaestaavenoseucantoquejáotínhamosportãorealcomoseovíssemos;e
assim era que quando o ouviam, alegravam-se os nossos companheiros,
especialmentesehaviafaltadecomida,etodosseaprontaramparaocombate.Aqui
nos deixou esta ave, que nunca mais a ouvimos. Logo ordenou o Capitão que
partíssemos deste pouso, por que lhe parecia que havia muita gente e que de noite,
segundoparecia,tinhamresolvidoatacar-nos.MandouoCapitãoquepassássemos
a noite amarrados aos ramos, porque não se achou lugar para dormir em terra, e foi
Isto permitia divina, que se pensassem em saltar em terra, poucos ficariam ou
ninguém que pudesse dar novas da viagem, segundo pareceu. E' que os índios
vieram em nossa perseguição por terra e água , e assim nos andavam buscando
com grande alarido, e chegaram onde estávamos e estiveram falando, porque os
víamos e ouvíamos. Não permitiu a Nosso Senhor que nos atacassem,poissetal
fizesse não ficaria ninguem. Assim temos por certo que Nosso Senhor os cegou,
paraquenãonosvissem.EstivemosAtéraiarodia,quandooCapitãomandouqtte
começássemos a caminhar. Aqui percebemos que estávamos não muito longe do
mar,porquechegavaoinfluxodamaré,doquenãopouconosalegramos,porsaber
que já não podíamos deixar de chegaraomar.Começandoacaminhar,<daíaum
pouco descobrimo um braço de umrionãomuitogrande,peloqualvimossairdois
esquadrões de pirogas, com grande grita e alarido, e cada esquadrão se dirigiu para
um elos bergantins, começando a ofender-nos elutarcomocãesencarniçados.Se
não fossem as varandas que atrás tínhamos construído, sairiamos desta escaramuça
bem dizimados. Mas com esta defesa e com o dano que nosso balhesteiros e
arcabuzeiros lhes faziam, pudemos defender-nos com a ajuda de Nosso Senhor.
Mas afinal não escapámos sem dano, porque nos mataram outro companheiro,
chamado Garcia de Sório, natural de Logoronho. Na verdade não entron a flecha
meio dedo, mas como trazia peçonha, não durnu 24 horas, e deuaalmaaNosso
Senhor.Fomospelejandodessamaneiradesdequeamanhe-ceuatédepoisdasdez
horas,quenãonosderamummomentodefolga,antescadahorahaviamaisgente,
tanta que o rio andava coalhado de pirogas, isto porque estávamos em terra
muito·povoada,deumsenhorquesechamavaNurandaluguaburabara.Haviasobre
o barranco cópia de gente, olhandoaguaçabara.Àmedidaquenosiamseguindo,
iam a pé; estando o cerco, e já estavam muito assinalados com os tiros dos
arcabuzes,queforamparteparaqueaquelagenteendiabradanosdeixasse.Umfoi
adopeloAlferes,quematoucomumtiroadoisíndios,ecomo·medodoestrondo
d
muitos caíram n'água, não escapando nenhum, porque foram todos mortos, dos
bergantins; o outro tirofoidadoporumbiscainhochamadoPerucho.Foiestecoisa
muito de ver, e por isso os índios nos deixaram, fugindo sem socorrer aos que tinham
caídonaágua,edosquais,comojádisse,nenhumescapou.Acabadoisto,mandou
o Capitão que atravessássemos para a margem esquerda do rio, para fugir lo
povoado que aparecia, e assim se fez. Fomos caminhando poresseladoalgumas
léguas, por terramuitoboa,nãoexistindonenhumapovoaçãoribeirinha,parecendo
que estavam todasterraadentro,comodepoissoubemosserocaso.Fomosassim
costeando : vimos povoações onde não nos podíamos aproveitar delas, que mais
parecem fortalezas no alto de morros, a umas duas ou tres léguas do rio. Não
soubemosquerneraosenhorquedominavaestaterra,dizendo-nosapenasoíndio
que naquelas fortalezas r existiam, quando lhes faziam guerra. Contínuando-se a
viagem, mandou o Capitão que saltássemos terra para descansar um pouco e ver a
disposiçãodaquelaterra.quetantoagradavaàsnossasvistas.Assimparámosdias
nesse pouso, de onde o Capitão mandou que se fosse terra adentro uma légua para
ver e saber que terra era. Foram e não caminharam uma légua, quando tornaram
dizer como a terra ia sempre melhorando, que era toda de montes e campinas, apa-
recendo muito rasto de gente que vinhaporaliàcaça,nãosendoprudentepassar
adiante, com o que concordou o Capitão.Aquicomeçámosadeixaraboaterrade
campos e terras altas, entrando numa terrabaixa,demuitasilhas,emboranãotào
povoadasC011JOasdecima.DeixouOCapitãonaterrafirme,metendo-seentreas
ilhas,pelasquaisfoicaminhando,tomandocomondevíamosqueopodíamosfazer
sem dano. E como as ilhas eram muitas e intdo grand's, nunca pudemos voltar a
tomarterrafirmedeumeoutroladoatéaomar.Caminhámosentretaisilhasumas
duzentas léguas, por entre as quais, e aínda umas cem mais, sobe a maré com
muita fúria, havendo pois trezentas léguas demaréemilequinhentassemela,de
modoquepodemoscontarporesterio,desdeopontodeoudesairmosatéao111ar
mil e oitocentas léguas, antes para mais que para menos. Indo caminhando por
nosso acostumado caminho, como íamos muito necessitados e empenúria,fomos
tomarumaaldeiaqueestavaemumesteiro.NahoradepreamarmandouoCapitão
paraládirigirobergantingrande,acertouemtomarbemoporto,eoscompanheiros
saltaramemterra.Omenornãoviuumpauqueestavacobertopelaágua,edeutal
golpe que uma tábua se fez em pedaços e o barco navegou. Vimo-nos em
grandíssima apertura, como em todo o rio não tivemos maior, e pensámos morrer
todos, pois de todos os lados nos perseguia a sorte. Quando os nossos
companheiros saltaram emterra,deramnosíndioseosfizeramfugir,ecrendoque
estavam seguros começaram a recolher a comida. Os índios, como eram muitos,
voltaram sobre eles e de tal modo os atacaram que os fizeram recuar para onde
estavam os bergantins, com os índios em sua perseguição. Pois nos bergantins
poucasegurançatinham,porqueograndeestavaseco,porhaverbaixadoamaré,e
opequenocheiod'água.Assimestávamossemteroutroremédiosenãooauxíliode
Deus e o de nossas mãos, que era o que nos havia de valer para tirar da
necessidade em que estávamos. Mandou o Capitão dividir a gente,metadealutar
com os índios e a outra metade a calafetar o bergantim pequeno. Ordenou que o
bcrgantimgrandesepuzessmemalto,demodoqueflutuasse,neleficandosomente
o Capitão com os dois religiosos que vínhamos em sua companhia, e outro
companheiro para guardar o dito bergantím, defendendo-o dos índios peloladodo
r io.Assimestávamostodos,demaneiraquetínhamosguerraporterraeasortepela
agua.ProuveaNossoSenhorJesusCristoajudar-nosefavorecer-noscomosempre
fez em toda esta viagem, trazendo-nos como gente perdida, sem saber aonde
estávamos nem aonde iamas, nem o que havia de ser de nós. Aqui se conheceu
muito particularmente que usou Deus de sua misericórdia, pois sem que ninguem
comprcendesse como fezamercêdivinaecomsuaimensabondadeeprovidência
se remediou e socorreu, de modo que se calafetou e se poz uma tábua no
bergantim.Aomesmotemposemanteveagentedeguerra,nãodeixandodepelejar
durante as tres horas gastas na obra ela nau0' imenso e soberano Deus, quantas
vezes nos vimos em transes da agonia, tão perto da morte que, sem a tua
misericórdia,eraimpossívelalcançarforçasnemconse-lhodosvivosparaficarcom
as vidas! Tirámos desta aldeia alguma comida, e veio tão justo o dia com a
necessidade,'queanoitecerradaeofimdonossoembarquechegaramjuntos.Esta
noite dormimos nos bergantins, no meio do rio. No diaseguinteaportámosemum
monte, onde concertámos o bergantim pequeno, d~ modo que pudesse navegar,
levando nisso cerca de 18 dias, tornando-se a fazer cravos, nos quais denovoos
nossos companheiros não trabalharam pouco. Mas havia muita falta ele alimento.
Comíamos o milho por grãos contados. E foi assim que um dia, pela tarde,viu-se
quevinhapelorioumaantamorta:,ciotamanhodeumamula,mandandooCapitão
quealgunscompanheirosatrouxessem,indobuscá-laemumacanoa.Trouxeram-na
efoirepartidaportodos,demodoqueacadaquallhecoubeoquecomerparacinco
ouseisdias,quenãofoipequeno,masmuitoremédioparatodos.Estaantaacabava
de morrer, porque estava quente e não Não fazia nenhuma ferida. Acabado de
concertar o bergantim e feitos os cravos para concerto do grande, partimos desse
pouso e fomos caminhandoembuscadepraiaoulugarondeopudéssemostirare
concertar o necessário. No dia de São Salvador, queéaTransfiguraçãodeNosso
Redentor J esus Cristo ( 30), encontrámos a praia que buscávamos, aonde se
reformaram os dois bergantins. Fizeram-se os cabos com ervas e velas com as
mantas em que dormíamos, e lhes puseram os mastros. Demorou Se nesta obra
quatorze dias, de contínua e ordinária penitência, pelamuitafomeepoucacomida
que havia, pois só se comia o que se mariscava à beira d'água, que eram uns
caracois e uns caranguejos vermelhinhos, do tamanho de rans. (31). Metade dos
companheiros ia a esse afan e a outra metade ficava trabalhando. Deste modo e
com esta dificuldade concluímos a obra, com grande alegria para os nossos
companheiros. Daí saimos no dia oito do mês ele agosto, bem ou mal providos,
segundo as nossas possibilidades, pois nos faltavam rn nestas coisas ele que
carecíamos. Mas como estávamos em lugar onde não as podíamos obter,
passávamososnossostrabalhoscomomelhorpodíamos.Fomosàvela,guardando
a maré, bordejando de um e outro lado,sendomuitolargoorio,emhorafôssemos
entre ilhas, pois não estávamos em pequeno perigoqnancloesperávamosamaré.
Como não tínhamos âncoras, estávamos amarrados a umas pedras.
Mantenhamo-nos tão mal que nos sucedia muitas vezes agarrar e voltar rioacima
em uma hora mais do que tínhamos andado no dia todo. Quiz nosso Deus, não
olhandoparaosnossospecados,tirar-nosdestesperigosefazer-nostantasmercês
que nãopermitiuquemorrêssemosdefomenempadecêssemosnaufrágio,doqual
estivemos muitopertomuitasvezes,játodosnáguaepedindoaDensmisericórdia.
Epelasvezesqueadoravamos,pode-secrerqueDeusComseupoderabsolutonos
quizlivrarparaquenosfalássemosouparaoutromistérioqueSuaDivinaMajestade
lhe tinha guardalo e que nós os homens não alcançamos. Fomos caminhando
continuamenteporsítiospovoados,ondenosprovemoselealgumacomida,embora
pouca., porque os índios a tinham retido, mas encontramos algumas raízes,
chamadas inhames, que a não encontrá-las todosmorreríamosdefome.Emtodas
estas aldeias nos esperavam os índios sem armas,porqueégentemuitomansae
nosdavamsinaisdequetindamvistocri$tãos.Estesíndiosestãonabocadoriopor
ondesaímoseondetomámosúgua,cadaqualumcântaro,eaunsmeioalmudeele
milho torrado, a outrosmenos,eaoutrosraízes,demodoqueassimnospusemos
emcondiçõeselenavegarpelomaraondeaventuranosguiasseelançasse,porque
não tínhamos piloto, nem agulha, nem carta de navegar, e nem sabíamos porque
parte e qoe ponto nos dirigirmos. A todas estas coisas supriu nosso mestre e
redentor Jesus Cristo. ao qual tínhamos porverdadeiropilotoeguia,confiandoem
sua Sacratíssima Magestade, que Ele l!OS levaria a terra de cristãos. Toda gente
quehánestapartedorioégentedemuitoentendimentoeengenho,peloquevimos
e pareciam por todas as obras que fazem, tanto de escultura como desenhos e
pinturas de todas as côres, dos mais vivos tons, que é coisa maravilhosa de ver.
Saímos da boca deste rio porentreduasilhas,separadasumadaoutraporquatro
léguas de largura do rio, e o conjunto, como vimos acima , terá de ponta a ponta
mais ele cincoenta léguas, entrando a água doce pelo mar mais de vinte e cinco
léguas. Cresce e minguaseisousetebraças.Saímosaosvinteeseisdiasdomês
deagosto,diadeSãoLuiz,etivemostãobomtempo,quenunca,nempelorionem
pelo mar, tivemos aguaceiros, o que não foi pequeno milagre que Nosso Senhor
Deusobrouconosco.Começámosacaminharcomosdoisbergantins,umasvezesà
vista de terra. No dia da Degolação de São João Batista, à noite, se afastou um
bergantim do outro, ele tal modoquenuncamaisnospudemosver,epensávamos
que se tivessem perdido. Depois ele nove dias de navegação, meteram-nos os
nossos pecados no golfo de Pária, pensando que era aquele o nosso caminho, e
quando nos encontrámos lá dentro quisemos tornar a sair para o mar. Foi tão
dificultosa a saída que nisto demoramos sete dias, durante os quais os nossos
companheiros nunca tiraram os remos das mãos, e todos estes sete dias não
comemos senão umas frutas parecidas com ameixas a que chamam fogos.Assim
com muito trabalhosaímospelabocadodragão,quetalsepodechamarparanós,
porqueporpouconãoficámosládentro.Saímosdessecárcere;fomoscaminhando
dois dias pela costa adiante, ao cabo dos quais, sem saberondeestávamos,nem
aonde íamos, nem o que havia de ser ele nós, aportamos na ilha de Cnbágua e
cidadeeleNovaCádiz,ondeencontrámosnossacompanhiaeopequenobergantim,
que chegara dois dias antes, porque eles chegaram a nove de setembro e nós a
onze,nobergantingrande,ondevinhaoCapitão.Tantafoiaalegriaqueunseoutros
recebemos, como não posso descrever, pois eles nos tinhamporperdidosenósa
eles. De uma coisaestouinformadoécerto:quetantoaelescomoanósfezDeus
grandes mercês e muito assinaladas, em trazer-nos por este tempo, que em outro os
Troncos que andam pela costa não nos deixariam navegar, porque éacostamais
perigosaquejáseviu.Fomostãobemrecebidosdoshabitantesdestacidadecomo
se fôssemos seus filhos, por isso nos abrigaram e nos deram tudo o que
necessitamos. Desta ilha resolveu o Capitão ir dar contas a Sua Majestade deste
novoegrandedescobrimento,oqualtemosqueéoMaranon,porquehádesdeafoz
atéàilhadeCubagua450léguas,porqueassimovimosdepoisquechegámos.Em
toda acosta,emborahajamuitosrios,sãopetiuenosEu,freiGaspardeCarvajal,o
enordosreligiososdaOrdemdenossoreligiosoPaiSãoDomingos,quizrelataros
m
trabalhosesucessosdonossocaminhoenavegação,tantoparadizeraverdadecm
toda esta narrativa, comoparatirarmotivoaquemuitosqueiramcontarestanossa
peregrinação ao contrário do qne vimos e sofremos. E como a prodigalidade gera
fastio, assim, superficial e sumariamente contei o que aconteceu ao Capitão
FranciscodeOrellanaeaosfidalgosdesuacompanhiaecompanheirosquesaímos
com ele do real de Gonçalo Pizarro, irmão de D. Francisco Pizarro, marquez e
governador de Perú.