Você está na página 1de 2

Intertextualidade: Os Lusíadas e a Mensagem

A Mensagem, publicada quase quatrocentos anos após Os Lusíadas, pode ser interpretada como
uma versão moderna, espiritualista e profética destes.

Além de a Mensagem ter Os Lusíadas como referência cultural, ambas as obras retiram
inspiração do inconsciente coletivo português, pelo que não é de admirar que haja uma relação
intertextual clara entre elas. Ambas presenciaram também o processo de dissolução do Império,
embora de perspetivas diferentes: Os Lusíadas assistiram à fase inicial, enquanto que a
Mensagem assistiu à final.

Das características que as obras partilham, uma das mais facilmente identificáveis é o facto de
ambas serem constituídas por reflexões sobre Portugal, exaltando figuras características deste
país e símbolos da sua pátria.

Camões, no Canto I, dedica a sua epopeia épica ao Rei D. Sebastião, visto que o considera
responsável por garantir a independência do reino português e por dilatar a fé e o Império. Na
Mensagem, Fernando Pessoa refere D. Sebastião em 7 poemas diferentes, dos quais se
destacam “D. Sebastião, Rei de Portugal” e “Nevoeiro”, nos quais o autor afirma que o rei terá
um papel central no estabelecimento do Quinto Império. Apesar de as obras apresentarem
visões diferentes de D. Sebastião (Camões canta o homem, enquanto Pessoa exalta o mito),
ambas defendem a crença de que este foi enviado por Deus para realizar a Sua vontade.

No Canto III, Camões apresenta a localização de Portugal na Europa e no mundo de uma forma
que se assemelha ao poema “O Dos Castelos”, presente na Mensagem (“A Europa jaz, […] // O
rosto com que fita é Portugal.”).

Ainda no Canto III, Camões elogia D. Dinis e o seu empenho em desenvolver o país, enquanto
Pessoa, no poema “D. Dinis”, louva o rei homónimo pelo seu carácter visionário. Mais uma vez
os dois autores cantam o mesmo homem de perspetivas diferentes, Camões referindo-se ao
herói épico e Pessoa ao herói mítico.

Já no Canto IV, Camões irá narrar a Revolução de 1383-1385, que incide fundamentalmente na
figura de Nuno Álvares Pereira, figura essa que dá o nome a um poema da Mensagem.

No Canto V, Camões dedica algumas estrofes ao Infante D. Henrique e à sua influência nos
Descobrimentos (“As novas Ilhas vendo e os novos ares / Que o generoso Henrique descobriu;”),
enquanto Pessoa faz o mesmo com o poema “O Infante”.

Neste Canto, surge também o momento em que os Portugueses dobraram o cabo das
Tormentas, representado pelo encontro entre Vasco da Gama e o Adamastor. Na Mensagem,
uma situação semelhante é descrita no poema “O Mostrengo”. Ambas as obras retratam o
enorme monstro como um ser horrendo, revoltado com o atrevimento dos marinheiros. Em
ambas as obras o monstro questiona o seu interlocutor quanto a quem ousa invadir o seu
domínio (“Quem é que ousou entrar / Nas minhas cavernas que não desvendo, / Meus tetos
negros do fim do mundo?”) e em ambas as obras o monstro acaba por ser derrotado pela
coragem do povo português, que ousa responder-lhe.
No Canto IX, Camões conta como os marinheiros foram guiados até à Ilha dos Amores e o que
aconteceu após desembarcarem, situação semelhante à descrita no poema “Horizonte”, da
Mensagem, no qual os marinheiros, após enfrentarem as provações e tormentas do mar,
encontram um local paradisíaco.

Por fim, no Canto X, Camões recusa continuar o seu poema devido ao desânimo de ser obrigado
a cantar para “gente surda e endurecida”, e reflete sobre a cobiça e ambição que assolavam
aquela geração, e como estas eram indicativas da decadência de Portugal. Pessoa termina a
Mensagem numa nota semelhante, com o poema “Nevoeiro”, que apresenta um Portugal triste,
“incerto e derradeiro”.

Refiro ainda Vasco da Gama, presente durante a maioria da obra Os Lusíadas, e a quem Pessoa
dedica um poema, “A Ascenção de Vasco da Gama”. Ambas as obras o elevam ao plano dos
Deuses, Camões através do episódio da Ilha dos Amores, e Pessoa pela situação de elevação aos
céus.

No entanto, Os Lusíadas e a Mensagem não partilham apenas referências a certas personagens-


chave. Estas obras têm também em comum certos temas e ideias base, tais como a visão da
história portuguesa como demanda mística, a exaltação épica dos navegadores lusitanos, a
superação dos limites humanos pelos heróis portugueses, que assim provaram a sua supremacia
em relação aos nautas da Antiguidade, o sofrimento como condição necessária para atingir a
glória (“Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor.”), e a evocação do
passado de forma a ser possível idealizar o futuro.

Você também pode gostar