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Agrupamento de Escolas de Departamento Curricular de Línguas

S. João da Pesqueira Ensino Secundário | PORTUGUÊS| 10º Ano

Crónica de D. João I, de Fernão Lopes

capítulo 148: "Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantimentos."

1. Ação
Neste capítulo, a cidade de Lisboa encontra-se cercada pelos castelhanos, sendo descritas, por isso, as
privações por que passou o povo lisboeta durante esse terrível cerco – fome, doenças, um verdadeiro cenário
de caos e de tristeza profunda. Os que sobreviviam rezavam por quem passava mal e que mais precisava de
ajuda. Só Deus os podia ajudar a enfrentar e a ultrapassar aquele momento dramático e indescritível. É-nos,
assim, apresentada a imagem de um povo que, até na dor, se uniu. Um momento, segundo o cronista, que as
gerações vindouras jamais poderão imaginar por nunca o terem vivido.

2. Divisão em partes
De acordo com as situações vividas pelas personagens, o presente capítulo pode dividir-se em seis partes
distintas:

 1.ª parte:
É descrita a escassez de bens na cidade de Lisboa, que se agrava com a chegada de mais pessoas vindas
de outros pontos do país.
Exemplo: «Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes, gastavom-se os mantiimentos cada
vez mais, por as muitas gentes que em ela havia, assi dos que se colherom dentro, do termo, de homeẽs e
aldeãos com molheres e filhos, come dos que veerom na frota do Porto;»

 2.ª parte:
São narradas as condições deploráveis em que se sobrevivia na cidade de Lisboa, sendo frequentes as
vezes em que os habitantes arriscavam a própria vida para conseguir mais mantimentos, fora das muralhas.
A situação tornou-se tão desesperante que uma das soluções encontradas foi expulsar da cidade os que
gastavam os mantimentos dos defensores e que não contribuíam para a defesa das muralhas.
Exemplo 1: «… e alguũs se tremetiam aas vezes em batees e passavom de noite escusamente contra as
partes de Ribatejo, e metendo-se em alguùs esteiros, ali carregavom de triigo que já achavom prestes, (...)»
Exemplo 2: «Os que esperavom por tal triigo andavom per a ribeira da parte de Exobregas, aguardando
quando veesse, e os que velavom, se viiam as galees remar contra lá, repicavom logo por lhe acorrerem. Os
da cidade como ouviam o repico, leixavam o sono, e tomavom as armas e saía muita gente, e defendiam-nos
aas beestas se compria, ferindo-se aas vezes dũa parte e doutra; (...)»
Exemplo 3: «(...) estabelecerom deitar fora as gentes minguadas e nom perteencentes pera defensom;
e esto foi feito duas ou tres vezes, ataa lançarem fora as mancebas mundairas e Judeus e outras semelhantes,
dizendo que pois taes pessoas nom eram pera pelejar, que nom gastassem os mantiimentos aos defensores;
mas isto nom aproveitava cousa que muito prestasse.»

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 3.ª parte:
Viveu-se uma profunda miséria, havia pessoas que comiam o que apanhavam do chão, que bebiam água
contaminada, que morriam, que pediam esmola; havia mães que choravam por falta de leite para os filhos.
Exemplo: «Na cidade nom havia triigo pera vender, e se o havia, era mui pouco e tam caro que as pobres
gentes nom podiam chegar a ele; (…) e começarom de comer pam de bagaço d’azeitona, e dos queijos das
malvas e raizes d’ervas, e doutras desacostumadas cousas, (…) andavom homeẽs e moços esgravatando a
terra; e se achavom alguũs grãos de triigo, metiam-nos na boca sem teendo outro mantiimento; outros se
fartavom d’ervas, e beviam tanta agua, que achavom mortos homẽes e cachopos jazer inchados nas praças e
em outros logares. (…)
Andavom os moços de tres e de quatro anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos, como lhes
ensinavam suas madres, e muitos nom tiinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles
choravom que era triste cousa de veer; e se lhes davom tamanho pam come ũa noz, haviam-no por grande
bem. Desfalecia o leite aaquelas que tiinham crianças a seus peitos per mingua de mantiimento; e veendo
lazerar seus filhos a que acorrer nom podiam, choravom ameúde sobr’eles a morte ante que os a morte
privasse da vida. (…)»

 4.ª parte:
Apesar de todo o sofrimento e desespero, a população mostra-se unida nessa dor e continua a resistir.
Fernão Lopes destaca a tristeza e impotência do Mestre face à situação calamitosa que a cidade de Lisboa
vive.
Exemplo 1: «Toda a cidade era dada a nojo, chea de mezquinhas querelas, sem neuũ prazer que i
houvesse: (…) Pero com todo esto, quando repicavom, neuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo
contra seus ẽmigos. Esforçavom-se uũs por consolar os outros, por dar remedio a seu grande nojo, mas nom
prestava conforto de palavras, nem podia tal door seer amansada com neũas doces razões (…)»
Exemplo 2: «Sabia porem isto o Meestre e os de seu Conselho, e eram-lhe doorosas d’ouvir taes novas;
e veendo estes males a que acorrer nom podiam, çarravom suas orelhas do rumor do poboo.»

 5.ª parte:
O narrador justifica o porquê da situação de fome que se vive na cidade, argumentando que não foi o
facto de o cerco se ter prolongado, mas sim o excesso de população recebido dentro das muralhas, o que
acabou por originar a escassez de alimentos.
Exemplo: «Onde sabee que esta fame e falecimento que as gentes assi padeciam, nom era por seer o
cerco perlongado, ca nom havia tanto tempo que Lixboa era cercada; mas era per aazo das muitas gentes
que se a ela colherom de todo o termo; e isso meesmo da frota do Porto quando veo, e os mantiimentos
seerem muito poucos.»

 6.ª parte:
A situação por que passaram aquelas gentes foi tão terrível que Fernão Lopes congratula-se, no meio de
tanta dor, por as gerações futuras terem a sorte de não experienciar tamanho sofrimento.
Exemplo: «Ó geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos males,
nem foi quinhoeiro de taes padecimentos! Os quaes a Deos por Sua mercee prougue de cedo abreviar doutra
guisa, como acerca ouvires.»

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3. Personagens

Ator individual – Mestre de Avis


Neste capítulo, há um certo apagamento da figura do Mestre de Avis. O enfoque está, efetivamente, no
sofrimento do povo e na cidade de Lisboa personificada. As referências ao Mestre resumem-se à tomada de
conhecimento das agruras de que padecia o povo, o que o deixou deveras entristecido, e ao boato que correu
de que teria mandado expulsar da cidade os que não tivessem alimento para subsistir.

• entristece-se perante o sofrimento do seu povo:


Exemplo: «Sabia porem isto o Meestre e os de seu Conselho, e eram-lhe doorosas d’ouvir taes novas; e
veendo estes males a que acorrer nom podiam, çarravom suas orelhas do rumor do poboo.»

• é alvo do boato de que iria expulsar da cidade os que não tivessem alimento:
Exemplo: «Foi tamanho o gasto das cousas que mester haviam que soou uũ dia pela cidade que o Meestre
mandava deitar fora todolos que nom tevessem pam que comer, e que soomente os que tevessem
ficassem em ela;»

Ator coletivo – Povo de Lisboa


O povo surge novamente enquanto personagem coletiva, todavia, agora para representar o sofrimento
e os padecimentos por que passou durante o cerco de Lisboa. O esforço coletivo apresentado no capítulo 115
continua, mas sob a forma de sacrifício e de “tribulações”. No entanto, mesmo confrontado com tamanho
drama, o povo revela-se unido na compaixão sentida uns pelos outros, tentando consolar-se mutuamente e
rezando uns pelos outros. Além disso, a afirmação dessa consciência coletiva está bem visível quando se trata
de defender a cidade, pois redobram-se esforços e esquecem-se as carências.

• é símbolo do sofrimento e do sacrifício:


Exemplo: «e começarom de comer pam de bagaço d’azeitona, e dos queijos das malvas e raizes d’ervas, e
doutras desacostumadas cousas, pouco amigas da natureza; e taes i havia que se mantiinham em alféloa.
No logar u costumavom vender o triigo, andavom homeẽs e moços esgravatando a terra; e se achavom
alguũs grãos de triigo, metiam-nos na boca sem teendo outro mantiimento; outros se fartavom d’ervas, e
beviam tanta agua, que achavom mortos homẽes e cachopos jazer inchados nas praças e em outros
logares.»

• manifesta compaixão (consolo e oração):


Exemplo: «Ó quantas vezes encomendavom nas missas e preegações que rogassem a Deos devotamente
por o estado da cidade! E ficados os geolhos, beijando a terra (...)»

• é unido e persistente na defesa da cidade:


Exemplo: «Pero com todo esto, quando repicavom, neuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo
contra seus ẽmigos.»

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4. Narrador
O narrador é omnisciente, uma vez que conhece os acontecimentos que relata, bem como as emoções
e os pensamentos das personagens. Num discurso que oscila entre a objetividade e a subjetividade, Fernão
Lopes regista os factos com exatidão, apresenta-os, analisa-os, mas também se emociona. Manifesta empatia,
sensibilidade e solidariedade por aquela massa popular patriota, que, mesmo se encontrando numa situação
dramática, revela compaixão pelo próximo e determinação em defender a sua cidade. Na parte final do
capítulo, apresenta ainda a justificação para esta situação de fome e miséria, argumentando que tal se ficou
a dever ao facto de Lisboa ter recebido excesso de pessoas; caso contrário, os mantimentos teriam dado para
todos.
Exemplo: «Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguũs homẽes e molheres,
que tanta deferença há d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom passarom, como há da vida aa morte? Os
padres e madres viiam estalar de fame os filhos que muito amavom, rompiam as faces e peitos sobr’eles,
nom teendo com que lhe acorrer, senom planto e espargimento de lagrimas; e sobre todo isto, medo grande
da cruel vingança que entendiam que el-Rei de Castela deles havia de tomar; assi que eles padeciam duas
grandes guerras, ũa dos ẽmigos que os cercados tiinham, e outras dos mantiimentos que lhes minguavom,
de guisa que eram postos em cuidado de se defender da morte per duas guisas.»

• discurso objetivo e subjetivo::


Exemplo: «Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes, gastavom-se os mantiimentos cada
vez mais, por as muitas gentes que em ela havia, assi dos que se colherom dentro, do termo, de homeẽs
e aldeãos com molheres e filhos, come dos que veerom na frota do Porto; e alguũs se tremetiam aas vezes
em batees e passavom de noite escusamente contra as partes de Ribatejo, e metendo-se em alguũs
esteiros, ali carregavom de triigo que já achavom prestes, per recados que ante mandavom.»

• mostra solidariedade pelo povo e emociona-se com o seu sofrimento:


Exemplo: «Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguũs homẽes e molheres,
que tanta deferença há d’ouvir estas cousas aaqueles que as entom passarom, como há da vida aa morte?»

• elogia o seu esforço na defesa da cidade:


Exemplo: «Pero com todo esto, quando repicavom, neuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo
contra seus ẽmigos.»

• justifica a miséria vivida durante o cerco:


Exemplo: «Onde sabee que esta fame e falecimento que as gentes assi padeciam, nom era por seer o
cerco perlongado, ca nom havia tanto tempo que Lixboa era cercada; mas era per aazo das muitas gentes
que se a ela colherom de todo o termo; e isso meesmo da frota do Porto quando veo, e os mantiimentos
seerem muito poucos.»

5. Afirmação da consciência coletiva


Mesmo confrontado com a situação dramática que vive durante o cerco, o povo revela-se unido e
determinado na defesa da identidade nacional. Com efeito, por um lado, assiste-se à compaixão que as
pessoas sentem umas pelas outras, ao consolo mútuo e à oração suplicante pelo bem de todos. Por outro, a

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consciência coletiva dos laços inquebráveis que unem o povo à terra está bem visível quando se trata de
defender a cidade, pois redobram-se esforços e esquecem-se as carências.
Exemplo 1: «Pero com todo esto, quando repicavom, neuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e
rijo contra seus ẽmigos.»
Exemplo 2: «Toda a cidade era dada a nojo, chea de mezquinhas querelas, sem neuũ prazer que i
houvesse: uũs com gram mingua do que padeciam; outros havendo doo dos atribulados; e isto nom sem
razom, ca se é triste e mezquinho o coraçom cuidoso nas cousas contrairas que lhe aviinr podem, veede que
fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tiinham? Pero com todo esto, quando repicavom,
neuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo contra seus ẽmigos. Esforçavom-se uũs por consolar os
outros, por dar remedio a seu grande nojo, (...)»

6. Estilo e linguagem
Sendo o objetivo primordial de Fernão Lopes levar o leitor a “ver” e a “viver” os acontecimentos e a
conhecer intrinsecamente as personagens apresentadas, a narração dos factos dá ênfase ao processo
descritivo, o que confere ao discurso um forte realismo e visualismo impressionista. O apelo às sensações e a
vários recursos expressivos potenciam esse trabalho de repórter, a par de todo um discurso simultaneamente
objetivo e subjetivo/emotivo.

- narração e descrição:
Exemplo: «Os Castelãos aa primeira prazia-lhe com eles, e davom-lhe de comer e acolhimento; depois veendo
que esto era com fame, por gastar mais a cidade, fez el-Rei tal ordenança que nẽuũ de dentro fosse recebido
em seu arreal, mas que todos fossem lançados fora; e os que se ir nom quisessem, que os açoutassem e
fezessem tornar pera a cidade; e esto lhes era grave de fazer, tornarem per força pera tal logar, onde chorando
nom esperavom de seer recebidos;»

- realismo e visualismo:
Exemplo: «No logar u costumavom vender o triigo, andavom homeẽs e moços esgravatando a terra; e se
achavom alguũs grãos de triigo, metiam-nos na boca sem teendo outro mantiimento; outros se fartavom
d’ervas, e beviam tanta agua, que achavom mortos homẽes e cachopos jazer inchados nas praças e em outros
logares.»

- apelo às sensações:
Exemplo: «Toda a cidade era dada a nojo, chea de mezquinhas querelas, sem neuũ prazer que i houvesse:
uũs com gram mingua do que padeciam;»

- presença de recursos expressivos:


✓ Comparação: «E posto que tal triigo algũa ajuda fezesse, era tam pouco e tam raramente, que houvera
mester de o multiplicar como fez Jesu Cristo aos pães, com que fartou os cinco mil homeẽs.»
✓ Apóstrofe: «Ó geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos males,
nem foi quinhoeiro de taes padecimentos!»
✓ Enumeração: «Na cidade nom havia triigo pera vender, e se o havia, era mui pouco e tam caro que as
pobres gentes nom podiam chegar a ele; (...) e começarom de comer pam de bagaço d’azeitona, e dos

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queijos das malvas e raizes d’ervas, e doutras desacostumadas cousas, pouco amigas da natureza; e taes
i havia que se mantiinham em alféloa.»
✓ Polissíndeto: «Os da cidade como ouviam o repico, leixavam o sono, e tomavom as armas e saía muita
gente, e defendiam-nos aas beestas se compria, ferindo-se aas vezes dũa parte e doutra;»
✓ Frases exclamativas: «Ó quantas vezes encomendavom nas missas e preegações que rogassem a Deos
devotamente por o estado da cidade!»
✓ Interrogação retórica: «Ora esguardae como se fossees presente, ũa tal cidade assi desconfortada e sem
neũa certa feũza de seu livramento, como veviriam em desvairados cuidados quem sofria ondas de taes
aflições?»

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