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Das tribulações que Lisboa padecia

per mingua de mantimentos – Capítulo


148
Fernão Lopes narrou a historiografia nacional com uma grande autenticidade, mas mostrava-
se muitas vezes parcial relativamente à sua preferência pelas camadas populares.

A falta de mantimentos em Lisboa enquanto estava cercada pelos homens de Castela, foi
pormenorizadamente retratada. A escassez de mantimentos era imensa devido ao facto de
cada vez haver mais gente e dessa forma os mantimentos serem cada vez mais gastos
(«gastavom-se os mantiimentos cada vez mais, por as muitas gentes que em ela havia»).

O autor ao revestir o texto com uma grande diversidade de marcas estético-estilísticas,


permite recriar o ambiente vivido na época.

Mesmo sabendo que o seu destino seria a morte, muitos tentavam a sua sorte, fora de portas,
para tentarem abastecer a cidade de mantimentos («alguus se tremetiam aas vezes em batees
e passavom de noite escusamente contra as partes de Ribatejo, e metendo-se em alguus
esteiros, ali carregavom de triigo que já achavon prestes, per recados que ante mandavom»).

O fornecimento de trigo já era de tal forma pouco e raro que tiverem de o multiplicar
(partindo ou cortando em partes mais pequenas) como Jesus Cristo fez aos pães («era tam
pouco e tam raramente, que houvera mester de o multiplicar como fez Jesu Cristo aos pães»).
A fome já estava de tal forma alastrada, que homens e moços andavam a esgravatar a terra a
ver se encontravam grãos de trigo e caso os encontrassem comiam-nos pois não tinham outros
mantimentos («andavom homees e moços esgaravatando a terra; e se achavom alguus grãos
de triigo, metiam-nos na boca sem teendo outro mantiimento»).

Na perspetiva de pouparem mantimentos para aqueles que seriam capazes de defender a


pátria, decidiram expulsar as pessoas mais fracas, limitas ou deficientes («estabelecerom
deitar fora as gentes minguadas e nom pertencentes pera defenson» como «mancebas
mundairas e Judeus e outras semelhantes»).

As pessoas começaram a comer coisas inapropriadas para conseguirem sobreviver devido à


escassez de mantimentos («desacostumadas cousas»). Como a fome tocava a todos já nem
caridade existia. Andavam moços de 3 e 4 anos a pedir pão pela cidade e muitos não tinham
outra coisa senão lágrimas para lhes dar e caso lhes dessem pão, por muito pequeno que fosse
eles recebiam, agradeciam e festejavam como se fosse grande e deviam por toda a família
(«andavom moços de tres e quatro anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos [...] e
muitos nom tiinham outra cousa que lhe dar senon lagrimas [...] e se lhes davom tamanho pam
come ua noz, haviam-no por grande bem»).

A população estava em desespero e beijando a terra rezavam a Deus para que os ajudasse
(«beijando a terra, bradavom a Deos que lhes acorresse»), mas quando tocava o sino, em sinal
de alarme, todos deixavam a fome de lado e iam à luta («quando repicavom, neuu nom
mostrava que era faminto, mas forte e rijo contra seus emigos»), demonstrando assim o seu
amor pela pátria, entregando-lhe a sua vida. Neste capítulo, Fernão Lopes mostra que a luta
travada pelos portugueses era dupla, pois não só lutavam contra a fome, devido à escassez de
mantimentos, como também lutavam contra os castelhanos, que os tinham cercado («ua dos
emigos que os cercados tiinham, e outra dos mantiimentos que minguavom, de guisa que
eram postos em cuidado de se defenderem da morte per duas guisas»).

Este capítulo retrata o estilo Lopeano, através do recurso a inúmeras marcas estético-
estilísticas.

Podemos destacar a presença de um tom coloquial que remetem para as características do


discurso oral, que favorecendo o visualismo, estabelecendo a relação entre o
narrador/narratário («ora esguardae como se fosses presente»), apontando a presença do
ouvinte/leitor na cena descrita.

O rigor do pormenor e o realismo descritivo são demonstrados através de enumerações («uus


com gram mingua do que padeciam; outros havendo doo dos atribulados») e polissíndetos
(«uus com gram mingua do que padeciam; outros havendo doo dos atribulados»), que
retratam as diversas situações com detalhes descritivos.

Recursos estilísticos que ajudam na descrição detalhada dos momentos de miséria vividos:

 as metáforas que mostram a intensidade do sofrimento daquelas pessoas («quem sofria


ondas de taes aflições»).

 as comparações que comprovam a miséria existente («lhes davom tamanho pam come ua
noz»), e também as sensações auditivas que recriam o ambiente vivido («bradavom a Deos»).

 as hipérboles, que confirmam o desespero e o sofrimento vivido pelas mães ao verem os


seus filhos morrer («rompiam as faces e peitos sobr’eles»).

 as anástrofes, que realçam o facto dos portugueses estarem cercados pelos castelhanos
(«ua dos emigos que os cercados tiinham»)

 a gradação crescente, que demonstra o aumento da intensidade dramática vivida pela


situação de fome e desespero em que o povo se encontrava, havendo até quem pedisse que a
morte os levasse, dizendo que era melhor morrer do que a cada dia que passa sofrerem cada
vez mais («rogavom a morte que os levasse, dizendo que melhor lhe fora morrer, que lhe
serem cada dia renovados desvairados padecimentos»).

A utilização das funções da linguagem que contribuem para a expressão da dramaticidade da


cena é outra importante marca Lopeana.
No começo do capítulo predomina a função informativa, devido à apresentação da situação de
Lisboa («rogavom a morte que os levasse, dizendo que melhor lhe fora morrer, que lhe serem
cada dia renovados desvairados padecimentos»), com o avançar do capítulo e com o aumento
da intensidade dramática, vai-se utilizando mais frequentemente, a função emotiva,
descrevendo assim a aflição e o desespero de todo o povo («ó quantas vezes encomendavom
nas missas e preegações que rogassem a Deos devotadamente por o estado da cidade!»). No
final do capítulo predomina a utilização da função apelativa, uma vez que o cronista fez um
apelo ao ouvinte/leitor e às gerações futuras para que percebam o sofrimento vivido naquela
altura («ora esguardae como se fossees presente [...] ó geeraçom que depois veo»),
contribuindo assim para uma relação entre narrador/narratário e dando mais realismo à
situação descrita.

Salientando ainda a linguagem arcaizante utilizada por Fernão Lopes, destacam-se os


arcaísmos fonéticos («assi», «mantiimentos») e sintáticos («assi», «mantiimentos»).

Nunca fugindo à verdade, Fernão Lopes, conciliou genialmente as características do discurso


histórico com as marcas do texto literário, permitindo assim intensificar o dramatismo das
situações, o que faz dele um verdadeiro narrador-artista, uma figura destacável da prosa
portuguesa medieval.

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