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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – CCHL


LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA

YASMIN MOURA LIMA

ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE ENTRE A NATUREZA E A


ARTE:
USOS DOS VEGETAIS E SIGNIFICADOS PARA UMA VIDA

TERESINA – PI
2017
YASMIN MOURA LIMA
ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE ENTRE A NATUREZA E A ARTE: USOS
DOS VEGETAIS E SIGNIFICADOS PARA UMA VIDA

Monografia apresentada ao Curso de


Licenciatura Plena em História do Centro de
Ciências Humanas e Letras, da Universidade
Federal do Piauí, como requisito parcial à
obtenção do grau de Licenciada.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Teresinha de Jesus


Mesquita Queiroz.

TERESINA – PI
2017
YASMIN MOURA LIMA
ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE ENTRE A NATUREZA E A ARTE: USOS
DOS VEGETAIS E SIGNIFICADOS PARA UMA VIDA

Monografia apresentada ao Curso de


Licenciatura Plena em História do Centro de
Ciências Humanas e Letras, da Universidade
Federal do Piauí, como requisito parcial à
obtenção do grau de Licenciada.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Teresinha de Jesus


Mesquita Queiroz.

Monografia apresentada em ____ / _____/______

_______________________________________________________
Prof.ª Dra. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz (Orientadora) Universidade
Federal do Piauí – UFPI

_________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Melo (Examinador)
Universidade Federal do Piauí – UFPI

__________________________________________________________
Prof.ª Msa. Laura Lene Lima Brandão (Examinadora)
Universidade Federal do Piauí – UFPI
Aos meus pais
AGRADECIMENTOS

Ao universo, pela oportunidade misteriosa da vida.


Aos professores do Curso de Licenciatura plena em História da Universidade
Federal do Piauí e, em especial, à Profa. Dra, Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz, pela
orientação e incentivo. Se o conhecimento a nível coletivo e individual é uma edificação
erguida paulatinamente, onde cada ideia representa mais uma janela para a observação da
realidade, posso afirmar com toda a certeza que, com as aulas da disciplina de História e
Memória ministradas pela supracitada docente, se abriram janelas no meu entendimento a
respeito das relações entre a memória humana e o conhecimento histórico. Isso não tem preço.
Ao Departamento de História da Universidade Federal do Piauí pela oportunidade
de realização do curso.
À Abrahão Honório Cavalcante, por me permitir o estudo de sua história de vida,
bem como a incursão por seus arquivos pessoais. Aproveito, inclusive, para agradecer aos
familiares do mesmo, em especial à Gaia Cavalcante (filha), ao Eupídio Cavalcante (irmão), e
ao Nerthan Coelho (primo), por cederem registros valiosos para a reconstrução a que nos
lançamos. Meu muito obrigado!
A todos que, direta e indiretamente, contribuíram para a realização desse trabalho.

RESUMO

Este presente trabalho tem por objetivo geral recompor a trajetória de vida de Abrahão
Honório Cavalcante – artista plástico, artesão, advogado e designer-, nascido em Iguatu, no
Ceará, em 12 de outubro de 1953, em busca de entender como esse indivíduo produz a própria
identidade e significa a sua existência através das relações de uso estabelecidas com três
formas vegetais, a saber: a Cannabis sativa, popularmente conhecida como “maconha”, ou
“marijuana”; a mauritia flexuosa, chamada “buriti”, ou mesmo “miriti”; e a ayahuasca
(palavra indígena) ou Santo Daime, bebida cerimonial obtida através do cozimento de dois
vegetais, o cipó banisteriopsis caapi, denominado no popular como jagube, e a folha
psychotria Viridis, nomeada também de “chacrona”, ou ainda “rainha”. É, portanto, um estudo
de caráter temático. As bases teóricas sobre as quais se assentam esse empreendimento são
aquelas propostas pelos debates no campo historiográfico sobre as biografias, as relações
entre a Memória e a História, o uso da fonte intermediada pela História Oral, o uso dos
registros provenientes do “arquivamento de si” e o uso da fotografia enquanto fonte para o
conhecimento histórico. Uma exploratória pesquisa bibliográfica foi realizada a fim de
caracterizar de maneira breve os citados vegetais, e também para cotejar o contexto no qual se
deu essa trajetória com a longa entrevista feita junto a Abrahão Honório Cavalcante, assim
como às fotografias, os recortes de jornais, os convites para vernissages do artista e demais
documentos encontrados em seu acervo pessoal para serem dispostos no corpo da narrativa.
Com isso, se pôde perceber que os usos feitos pelo artesão das três citadas formas vegetais
tiveram para o mesmo aspectos de “encruzilhadas decisórias”, se revestindo de significados
para a sua identidade e existência como um todo.

Palavras-chave: Abrahão Honório Cavalcante. Cannabis sativa. Buriti. Santo Daime.


Biografia.

ABSTRACT LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1: Parte da família Cavalcante, em


1958.................................................................45
Fotografia 2: Desenhos da planta Cannabis sativa...................................................................55

Fotografia 3: Retrato 3x4 de Abrahão, em


1976.......................................................................62

Fotografia 4: Batizado de Jamelus Cavalcante, em


1984..........................................................63

Fotografia 5: Momentos do batizado, em 1984........................................................................64

Fotografia 6: Família Cavalcante, em 1985..............................................................................65

Fotografia 7: Família Cavalcante no Natal, em


1985................................................................66

Fotografia 8: Quadro “Galo de João Batista”, de Abrahão, em


1989........................................72

Fotografia 9: Buritizal..............................................................................................................73

Fotografia 10: Frutos da palmeira buriti...................................................................................75

Fotografia 11: Convite para a 1° exposição individual de Abrahão, em


1989...........................82

Fotografia 12: Verso do convite para a 1° exposição de Abrahão...........................................83

Fotografia 13: Interior do convite para a 1° exposição............................................................84

Fotografia 14: Interior do convite para a 1°


exposição.............................................................84

Fotografia 15: Peças de Abrahão no VI PIAUÍ MOSTRA MULHER, em


1998......................86

Fotografia 16: Vista frontal da Terrase, em 1999.....................................................................87

Fotografia 17: Gazebo feito por Abrahão na mostra Terrasse de 1999....................................87

Fotografia 18: Abrahão em sua oficina, em 2000....................................................................88

Fotografia 19: Convite para exposição de Abrahão no Empório das Artes, em 2000..............89

Fotografia 20: Verso do convite para exposição no Empório das Artes...................................89

Fotografia 21: Digitalização da ficha de inscrição da chapa “Construção”, em


2002..............91
Fotografia 22: Membros da chapa “Construção”, após vitória, em 2002.................................92
Fotografia 23: Registro de homenagem do SEBRAE ao artesão Abrahão, em
2002................93

Fotografia 24: Página do livro As caras de Teresina, em 2005................................................94

Fotografia 25: Digitalização de Declaração feita por Cineas das Chagas Santos, em
2007......96

Fotografia 26: Cipó banisteriopsis caapi no alto das árvores..................................................99

Fotografia 27: Arbusto da folha Rainha (psycotria


Viridis) ...................................................100

Fotografia 28: Raimundo Irineu Serra....................................................................................102

Fotografia 29: Sebastião da Mota


Melo..................................................................................104

Fotografia 30: Desenho da casa feito por Abrahão, em 2007.................................................107

Fotografia 31: Montagem de Abrahão, em 2011...................................................................109

Fotografia 32: Abrahão e Namíbia a caminho de casa, em 2011...........................................111

Fotografia 33: Mandala Girassol, em buriti...........................................................................131

Fotografia 34: Painel Girassol Múltiplo, em buriti.................................................................132

Fotografia 35: Painel Jacaré...................................................................................................133

Fotografia 36: Painel Vênus...................................................................................................134

Fotografia 37: Mesa com tampo Mandala..............................................................................135

Fotografia 38: Mesa trançada.................................................................................................135

Fotografia 39: Painel Aspiral Múltipla...................................................................................136

Fotografia 40: Mandala Flor Plana.........................................................................................137

Fotografia 41: Ambiente feito para o arquiteto Gustavo Almeida.........................................138

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..............................................................................................................10
2 LANÇAMENTO DAS BASES: ANOTAÇÕES SOBRE BIOGRAFIA, .......................
HISTÓRIA ORAL, MEMÓRIA E HISTÓRIA, FOTOGRAFIAS E
ARQUIVAMENTO DE SI...............................................................................................17
2.1 Da possibilidade de um estudo biográfico: percorrendo a historiografia...........17
2.2 Das fontes da História Oral......................................................................................24
2.3 Das complexas relações entre Memória e História.................................................27
2.4 Das fotografias e do arquivamento de si..................................................................35
3 PEQUENOS ESCRITOS SOBRE A INFÂNCIA, JUVENTUDE E MUDANÇAS ....
PERCEPTIVAS DE ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE....................................39
3.1 Do nascimento de um sertanejo em Iguatu, Ceará, e de sua inserção no universo
.................................................................................................................................................
escolar...............................................................................................................................39
3.2 A Fortaleza da juventude de Abrahão Honório Cavalcante..................................52
3.3 Abrem-se as portas da percepção: o encontro com a Cannabis sativa..................56
3.4 Nascimentos e renascimentos na vida de Abrahão.................................................64
3.5 Abrahão e a cidade de Teresina dos anos de 1990...................................................69
4 DO ENCONTRO E REINVENÇÃO DO BURITI PARTIDO NO PIAUÍ POR .......
ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE.......................................................................73
4.1 “Buriti partido”: o vegetal e o início da navegação do artesão..............................74
4.2 Do artesão-presidente e a memória piauiense.........................................................92
5 ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE E O CIPÓ DAS ALMAS.........................99
5.1 Sobre a ayahuasca e a doutrina do Santo Daime....................................................99
5.2 Abrahão: cidadão da mata......................................................................................107
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................113
REFERÊNCIAS..............................................................................................................115
GLOSSÁRIO...................................................................................................................120
APÊNDICE A – ENTREVISTA REALIZADA COM ABRAHÃO HONÓRIO .............
CAVALCANTE...............................................................................................................121
ANEXO A – FOTOGRAFIAS EXTRAÍDAS DE CATÁLOGO ONLINE DE PEÇAS .
FEITAS POR ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE EM BURITI......................131

1 INTRODUÇÃO

A curiosidade nos leva, constantemente, à busca da compreensão dos diferentes


lugares da vivência humana. E foram dois fluxos de curiosidades, guardados em suas
respectivas singularidades, as verdadeiras molas propulsoras para a escolha do tema de
pesquisa proposto no trabalho realizado, aguçadores que foram da vontade de ver e conhecer.
Primeiro, os curiosos olhos circulavam no centro comercial da cidade de Teresina,
capital do Piauí. Mais especificamente pela praça Pedro II, pela fachada do adormecido Cine
Rex, pelo Clube dos Diários, e mesmo pelo Centro de Artesanato Mestre Dezinho. Nesse
último, naquela tarde quente e enfadonha, bem característica da capital mafrense, adentrei.
Via tudo sem pressa, como que pela primeira vez. Em tantos anos de desatenção, levantei as
vistas, notando a luminária cheia de graça que ainda hoje, creio, humaniza o hall de entrada da
Central de Artesanato. Estava em 2015.
Seguindo em minha particular expedição, fui espiando lojas, vendo opalas, rendas, as
obras de arte esculpidas em madeira; e entrei também naquela de número 42, “Ábra: Arte e
Design”, que, a despeito de estar povoada com diversas peças artesanais um tanto díspares
entre si, posto serem de vários artesãos, como soube posteriormente, guardava ainda na
composição do ambiente irrepreensível bom gosto, em muito proveniente dos sofás, cadeiras,
prateleiras, e alguns painéis dispostos naquele amplo espaço, feitos de uma madeira toda
pintada que não consegui inicialmente identificar. De pronto pude perceber, espiando o teto da
loja, ter aquele trabalho muito a ver com a obra que me deu boas vindas na entrada, dado
confirmado pela pessoa que me atendeu, pois, o artesão produtor daquelas belezas, por ali
mais conhecido como Mestre Ábra, não se encontrava. Ali fui informada de ser seu trabalho
feito todo a partir do talo do buriti, o que certamente me surpreendeu, tanto pela harmonia
desprendida daqueles objetos, quanto pelo material utilizado para sua fabricação.
Na minha ignorância, até aquele momento, buriti só servia para fazer doce, caixinha de
doce, e vareta para papagaios de seda, que empinávamos pelas ruas das memórias de infância.
Então, foi muito interessante saber daquelas potencialidades da palmeira buriti, especialmente
ao compreender que o uso daqueles talos não perturbava a vitalidade das plantas, servindo
antes como poda beneficiadora do crescimento delas. Iniciativa aprazível no sentido de
melhor relacionar-se com os recursos naturais. Me despedi e esqueci o assunto logo em
seguida, para só retomá-lo na lembrança um tempo depois.
De outra feita, estava proseando com alguns conhecidos em um corredor do Centro de
Ciências Humanas e Letras, quando ouvi falar pela primeira vez sobre o Santo Daime. A
curiosidade falou alto, e em fins de novembro de 2016, quis conhecer o ritual onde se
consome aquela bebida indígena. Participei da reunião, chamada de “Concentração”, provei
do chá que se consagra na ritualística, a ayahuasca, e após lhe sentir os exclusivos efeitos,
fiquei ali captando a miscelânea de ingredientes culturais brasileiros que se faziam ver, ao que
vieram os questionamentos comuns a essas situações, pelo menos quando se é estudante da
área de
Ciências Humanas: “de onde veio essa manifestação cultural de cunho religioso?”, “como
veio?”. Pergunta aqui, se explica “acolá”, acabaram por me apresentar o senhor Abrahão
Honório Cavalcante, o personagem que trouxe para o Piauí a semente das igrejas daimistas do
estado (denominadas “Céus”). O mais interessante: era esse o mesmo Mestre Ábra, o artesão
produtor das belas peças em buriti que eu havia apreciado tempos atrás, como pude ser
informada.
Travado esse conhecimento inicial, o primeiro contato em meio acadêmico com a
trajetória de vida de Abrahão Honório Cavalcante, artesão, artista plástico e designer se deu
por ocasião da disciplina de História e Meio Ambiente, ministrada no início de 2017, pelo
professor Dr. Antônio Melo na Universidade Federal do Piauí. Instados a escrever algumas
linhas sobre tema por nós elencado dentro desse campo de estudos históricos, voltado a
entender as relações humanas com o meio natural ao longo do tempo, veio a ideia de noticiar
sobre a conciliação feita entre arte e sustentabilidade na obra de Abrahão, em tempos onde a
discussão em prol da transformação do fazer artístico e dos padrões estéticos, buscando uma
experiência mais integrada com a natureza, se faz em nível global. Para tanto, lancei mão da
metodologia proposta pela História Oral, coletando uma longa entrevista exploratória da
temática junto ao supracitado artesão.
O resultado foi entrever, não sem surpresa, na fala sobre si por ele expressa, que
poderia haver mais que a questão da sustentabilidade. Portava também a representação da
própria vivência e identidade através da utilização de três formas vegetais, a saber: a
Cannabis sativa, popularmente conhecida como “maconha”, ou “marijuana”; a mauritia
flexuosa, chamada “buriti”, ou mesmo “miriti”; e a ayahuasca (palavra indígena) ou Santo
Daime, bebida cerimonial obtida através do cozimento de dois vegetais, o cipó banisteriopsis
caapi, denominado no popular como jagube, e a folha psychotria Viridis, nomeada também de
“chacrona”, ou ainda “rainha”.
O que leva um indivíduo a organizar a representação da própria existência tomando
como base a relação de uso estabelecida com alguns vegetais? Como Abrahão significa essas
experiências? De que forma se deram tais encontros com as plantas? Que desejos e
agenciamentos foram construídos por esse sujeito com tais elementos da natureza? E mais: até
que ponto o caso específico de Abrahão nos permite refletir sobre as margens de manobra de
que dispõem os sujeitos imersos na sociedade dita moderna? Até onde vai a liberdade de
escolha da qual se dispõe?
Com o decorrer da disciplina de História e Memória, já no segundo semestre do
corrente ano, sendo essa ministrada pela professora Dr.ª Teresinha Queiroz, por quem sou
orientada nessa empreitada, através do Departamento de História da mesma instituição, as
questões acima citadas puderam se organizar, dada a incursão realizada pelas terras da
historiografia onde se versa a respeito das relações entre memória e história, reflexões essas
que propiciaram a aproximação com nosso objeto de estudo. As indagações colocadas pelas
relações de uso do sujeito Abrahão com os vegetais acabaram por moldar e direcionar nossa
análise, as quais buscamos responder na medida dos possíveis, tomando por base as
discussões recentes acerca da biografia, da memória, da história oral e da escrita de si.
Se sugere com recorrência em tais campos de estudos ser impraticável apreender na
totalidade o sentido de uma existência, e mesmo do passado, por meio da narrativa. Como
coloca Verena Alberti, “[...] a impossibilidade de restabelecer o vivido é coisa dada” 1. Nada
mais descontínuo e fragmentado que o tempo ido e vindo. Como então, proceder? A melhor
forma de abordar, portanto, uma história de vida seria, na perspectiva da historiadora Vavy
Pacheco Borges2, selecionando o que nos aparece como mais significativo em meio a ela, ou
seja, elencando temas dela depreendidos. No caso específico de Abrahão, os encontros por ele
vivenciados ao utilizar os vegetais já citados parecem relevantes na representação que o
sujeito faz de si, para si, e para os outros, aspectos que parecem condensar a experiência
vivida, e justamente por isso nos servindo como eixo por onde se recorta essa análise.
Ao se referir aos “encontros”, remetemos à ideia proposta por Gilles Deleuze em seu
Abecedário3, onde o filósofo francês, nascido na Paris de 1925, ao comentar sobre a criação
de conceitos, atividade que atribui à Filosofia por excelência, afirma ser equivocada a noção
de encontros como algo entre pessoas, que seriam em realidade um tanto decepcionantes,
apontando uma atitude de espreita mantida em relação aos encontros, que se dariam na
verdade com ideias, ou coisas. Encontramo-nos com as ideias. As proposições “deleuzianas”
servirão como um dos apoios na apreensão dos sentidos que nos colocamos a perscrutar, ao
longo do texto tecido, através dos conceitos por esse autor desenvolvidos, tais como o de

1 ALBERTI, V. Ouvir contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV.


2 BORGES, V. P. Grandezas e Misérias da biografia. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes Históricas. 3° Ed. São
Paulo: Contexto, 2011.
3 DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição de vídeo realizada por Claire Parnet, para fins
exclusivamente didáticos, em Paris, 1988.
desejo, agenciamentos e potências.
Se faz inclusive interessante colocar diante de quem lê breve quadro aonde se
pincelem aspectos gerais da personalidade em questão, ou seja, Abrahão Honório Cavalcante.
Nasceu ele no Ceará, no sertão centro-sul daquele estado, mais especificamente no município
de Iguatu, distante cerca de 309 km da capital, Fortaleza 4. Filho de agricultores, o menino
sertanejo viveu boa parte de sua infância em sua cidade natal, mudando-se aos 15 anos de
idade para Fortaleza, aonde a família passa a residir. É nesse cenário litorâneo que Abrahão
faz-se rapazote, a frequentar as “tertúlias” e praias com os irmãos mais velhos.
Após a conclusão do ensino ginasial, presta exame para a Escola Técnica Federal do
Ceará, onde é admitido, de lá só saindo quando já concluso o curso em Estradas, sendo o
personagem especializado em Mecânica dos Solos. Após período de experiências na área de
sua formação, incursiona no funcionalismo público, e, sentindo-se desejoso de continuar os
estudos, inicia a graduação de Bacharel em Direito, concluída em 1984, pela Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). Casado e pai de filhos, muda-se para o Piauí afim de prestar assessoria
jurídica às Centrais de Abastecimento do Piauí S/A (CEASA), em Teresina. Pouco mais de
dois anos aqui residindo e, em visita feita a uma localidade de nome Brejinho, no caminho
para
Caxias, no Maranhão, Abrahão talvez se tenha visto quase que “hipnotizado” pela beleza dos
buritizais, momento no qual sua trajetória se transformou mais uma vez.
O advogado viu-se tomado pela sensibilidade de produzir peças artesanais com aquela
matéria-prima que aos seus olhos se descortinava, passando a desenvolver técnicas com a
finalidade de tornar um material considerado histórico e culturalmente como “pouco nobre”
em um verdadeiro “diamante do brejo”, para usar a expressão valorosa dada ao buriti por esse
artesão. Ao que parece, sua produção inicial de móveis e painéis a partir do talo já maduro de
tal palmeira causou perplexidade nos sujeitos ao seu redor, culminando na sua primeira
exposição individual, em 1989, no Rio Poty Hotel, em Teresina, sendo esse momento
marcante para a trajetória do artista plástico nascente, que não parou mais. Diversas foram as
exposições, amostras de arquitetura e cursos por Abrahão ministrados, aonde se difundia a
tecnologia de produção com o buriti, o que o levou ao Acre, de onde retornou trazendo a
ayahuasca, semente da qual brotou o movimento do Santo Daime no Piauí, à revelia de seu
portador. Essa passagem transformou novamente a vida do personagem, levando-o a buscar
uma experiência mais voltada à integração ao meio natural.

4 INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL DAS CIDADES DO CEARÁ (IDECI).


Conhecendo o Município: Iguatu. Ceará: Secretaria das cidades. 2015.
Entretanto, o que torna possível a construção de uma narrativa no campo
historiográfico, é bem sabido, são as fontes. O historiador Marc Bloch disse a esse respeito:
“A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou
escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar sobre ele” 5. Dessa forma,
podemos refletir que ampla é a gama de possibilidades quanto aos materiais que podem ser
úteis ao trabalho da reconstrução histórica. Como coloca Teresinha Queiroz na Introdução do
livro As diversões civilizadas em
Teresina, de 2008: “A seleção do material já é grande parte do fazer da historiografia e, nesse
sentido, o historiador da vida moderna é um privilegiado, pois infinitas são as suas
possibilidades de recorte do real”6. Ambos os autores citados apontam para a amplitude de
possíveis quanto às fontes, mas fica bem assinalado na fala de Queiroz a implicação do ato de
selecionar para a recomposição do passado. De fato, ao se selecionar o que pode servir de
matéria-prima para um empreendimento do gênero historiográfico, realiza-se o primeiro
grande filtro interpretativo, e os caminhos a serem trilhados ficam em maior evidência.

Não à toa, apontamos serem as fontes que possibilitam essa tentativa de reconstrução
as mesmas obtidas no acervo pessoal do biografado, verdadeiro “arquivo de si”, de onde
despontam fotografias, documentos, recortes de jornais e revistas e desenhos feitos pelo
mesmo, sendo esses testemunhos da experiência vivida, dos gostos e sensações. Cotejaremos
tais registros com os documentos que inscrevem Abrahão socialmente, como a Certidão de
Nascimento, a Carteira de Trabalho e a Carteira expedida pela Ordem dos Advogados do
Brasil; assim como com as entrevistas guiadas pelos métodos da História Oral e o contexto,
dado a conhecer através da bibliografia que trata das cidades focalizadas, da escolarização, e
dos usos dados aos vegetais por ele manipulados e significados, com suas respectivas
características biológicas.

Esboçado o quadro sobre o qual nos debruçamos, resta colocar a forma pela qual se
procurou retratar essa trajetória de vida, tendo sido a narrativa dividida em quatro capítulos.
No primeiro, colocam-se as bases teóricas sobre as quais se assentam as considerações aqui
traçadas. Trata-se da biografia, do uso da fonte da História Oral, das relações entre Memória e
História, da fotografia enquanto fonte para o conhecimento histórico, e do “arquivamento de
si”. O que fundamenta tais reflexões são as leituras e comentários dos estudos onde se
trabalham essas temáticas no âmbito historiográfico.

5 BLOCH, M. L. B. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
6
QUEIROZ, T. de J. M. As diversões civilizadas em Teresina: 1880 – 1930. Teresina: FUNDAPI, 2008.
No segundo capítulo volvemos o olhar para as origens de Abrahão, para sua infância e
inserção no processo de escolarização. Nos esforçamos para recompor quanto possível os
espaços de suas vivências e memórias, a saber, a cidade de Iguatu, ao que se seguiu a cidade
de Fortaleza, por ter sido ela palco de sua juventude e experiências marcantes tanto no que
tange à formação educacional e profissional, quanto ao que se refere à “iniciação” no uso da
Cannabis sativa, e de suas primeiras incursões no universo da arte, através do teatro. Por fim,
acompanhamos nosso personagem em sua chegada à Teresina, no final dos anos de 1980,
quando se fez artesão.
No terceiro capítulo, nos concentramos na atuação de Abrahão enquanto artesão, já
residente em Teresina – PI, mesmo que em constante trânsito por todo o Brasil, desde o
momento em que se deu seu encontro quase cabalístico com a palmeira buriti, ao que se
seguiu de breve caracterização do citado vegetal, acrescidas ainda das representações emitidas
acerca do trabalho desenvolvido, tanto pelo sujeito em questão, quanto por outros indivíduos
que deram a conhecer suas visões sobre o assunto. Tratamos ainda de sua eleição enquanto
presidente da Associação de Artesãos Profissionais Autônomos do Piauí (APAPI),
representativa da posição ocupada junto aos pares de ofício, assim como da circulação social e
espacial de suas obras e de sua provável integração à memória piauiense, quase que afetiva.
Além disso, tratou-se brevemente das circunstâncias que o levaram ao Acre.
Para esse terceiro momento, as fontes que permitiram conhecer o passado foram as
falas do biografado coletadas em entrevista, os recortes de jornal presentes em seu arquivo
pessoal, os convites para os vernissages onde se expuseram as peças por ele feitas em buriti, o
acervo fotográfico gerado dessas situações e os Catálogos onde a produção do designer
apareceu. Foram também matérias-primas para nosso trabalho os certificados de participação
em eventos, indicados cronologicamente em seu Curriculum Vitae, úteis às nossas
considerações, em especial após atenta crítica.
Por fim, no quarto capítulo abordamos a ida de Abrahão Honório Cavalcante ao Acre,
de onde retornou portando a ayahuasca que inseriu as práticas do curandeirismo da bacia
Amazônica no Piauí, através da instalação da doutrina do Santo Daime em terras mafrenses.
Delineamos aspectos referentes à composição química da bebida, e mesmo do que vem a ser o
Santo Daime enquanto doutrina. Dessa forma, tornou-se possível buscar entender os
agenciamentos feitos por Abrahão Honório com tal composto vegetal, e mesmo as
representações por nosso personagem construídas em decorrência da utilização dele,
terminando por apresentar a mudança feita em sua trajetória individual, e as questões que sua
experiência de vida lançam sobre a liberdade dos sujeitos na sociedade contemporânea e de
consumo exacerbado.
Para compor o fechamento dessa incursão, fez-se uso das fotografias e arquivos do
acervo pessoal de Abrahão, dos desenhos feitos pelo artesão da casa que construiu
posteriormente para si e das fotografias do mesmo atuando em pleno processo de construção,
ápice de uma mudança de vida, incluindo aí matérias noticiadoras dessa nova trajetória por ele
escolhida. Além da bibliografia que nos informou acerca do cipó jagube e da folha rainha com
suas respectivas propriedades químicas, lançamos mão também da que trata dos aspectos
cosmológicos da doutrina do Santo Daime.
Iniciemos assim a navegação pelo mar dos possíveis!
2 LANÇAMENTO DAS BASES: ANOTAÇÕES SOBRE BIOGRAFIA, HISTÓRIA

ORAL, MEMÓRIA E HISTÓRIA, FOTOGRAFIAS E ARQUIVAMENTO DE SI

Ao andar faz-se o caminho,


E ao olhar-se para trás
Vê-se a senda que jamais
Se há de voltar a pisar
Caminhante, não há caminho
Somente sulcos no mar.6

Inicialmente propomos apresentar o embasamento teórico que nos propicia navegar


pelos mares da vida de Abrahão Honório Cavalcante, tratando das reflexões acerca da
biografia, da história oral, da memória e do arquivamento de si, além de abordar o uso das
fotografias enquanto fonte histórica na atualidade. É consenso não ser a vida reta firme e
uniforme. A trajetória humana antes se assemelha, como nos versos em epígrafe do poeta
sevilhano Antonio Machado, à navegação por águas sulcadas, incertas, que jamais retornam
em seus atalhos, movimento que se faz bamboleante entre as ilhas da lembrança e do
esquecimento, e é por essa superfície ondulante que iremos navegar.

2.1 Da possibilidade de um estudo biográfico: percorrendo a historiografia

Biografia é termo que surgiu tarde, sendo proveniente do grego bios = vida, e
graphein = inscrever, escrever, ao que se acrescenta o formador de substantivo abstrato ia7,
segundo nos informa a historiadora Vavy Pacheco Borges, em artigo intitulado Grandezas e
misérias da biografia, onde apresenta um panorama geral acerca da temática. Tal gênero é
entendido desde o mundo antigo, onde ocorreu pela primeira vez em Damásio, por volta de
500 anos d.C., como “relato de vidas”.

Diversos tipos de textos podem ser classificados na atualidade como biografia, e a


supracitada autora nos esquematiza três tipos de forma simples, segundo o grau de elaboração

6 MACHADO, A. Antologia Poética. Lisboa: Editorial Cotovia, 1999.


7 BORGES, V. P. Grandezas e Misérias da biografia. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes Históricas. 3° Ed. São
Paulo: Contexto, 2011.
e a finalidade. Há primeiramente o artigo de dicionário biográfico, onde se apresenta um
breve resumo da vida de uma pessoa, em geral famosa. Há também a monografia de
circunstância, redigida com brevidade, e presente mais constantemente na imprensa escrita,
contendo elogios fúnebres a um sujeito ou ligados a uma situação específica. E, por fim, há a
biografia dita
“científica” ou “literária”, com preferência narrativa e de finalidade histórica, concebida a
partir de documentação vária e numerosa, onde buscamos inserir a que aqui se elaborou.

Nesse sentido, Jean Orieux, historiador francês que biografou personalidades como
Voltaire e La Fontaine, teceu interessantes considerações em seu artigo A arte do biográfo 8,
onde aponta que, antes de ser arte, o fazer biográfico tem uma importante parcela de
artesanato, demandando inicialmente do biógrafo a reunião do maior número possível de
conhecimentos a respeito do personagem histórico retratado, trabalho esse bem penoso, mas
necessário por constituir o primeiro passo em busca de se aproximar com precisão,
autenticidade e probidade da verdade viva do indivíduo.

Tentação que encaminha ao fracasso é aquela de se forçar um testemunho histórico,


para que “faça efeito”. Porém, como afirma Orieux, “[...]em história, o falso é sempre feio” 10,
e o brilho da verdade que emana dos testemunhos autênticos tem força e beleza inimitáveis. O
biógrafo, pois, nunca se improvisa. A informação por ele obtida, para se fazer rica e segura,
deita esteios numa cultura histórica geral e no conhecimento prévio e situante do personagem,
que trata depois de aprofundar, através da imersão pela pesquisa documental.

A medida que se conhece o personagem biografado, se entende com maior precisão as


escolhas por ele feitas. Informar-se nesse sentido é fundamental. É preciso também sempre
contar, quando se trata da informação histórica, com o imprevisto, e mesmo com as lacunas. A
colaboração espontânea e o acaso são, nessa perspectiva, bons aliados da biografia. Junta-se a
isso a solidão. É o estado mais propício para o encontro biográfico com o seu personagem. Na
longa intimidade das leituras e investidas aos documentos, no silêncio feito entre as pilhas de
papel, nasce o diálogo com o modelo, isso sem levar por hora em consideração a
disponibilidade da fonte da História Oral, da qual tratamos mais adiante.
O artesanato biográfico seria, portanto, esse mergulho nas informações. A arte
biográfica é a recriação de um personagem histórico, partindo do conhecimento que se fez
dele, aliando ao saber a sensibilidade de pensá-lo como um ser humano, lançando mão de

8 ORIEUX, J. A arte do biógrafo. In: DUBY, G.; ARIÈS, P; LADURIE, E. L.; LE GOFF, J. (Org.). História e
Nova História. [S.1.]: Teorema, [s.d.]. 10 Idem, ibidem.
certo grau de subjetividade e intuição. Essa atitude aproxima o historiador do romancista,
guardadas as devidas diferenciações quanto ao compromisso de suas escritas. Entretanto, não
deixa de ser para o biógrafo um trunfo a capacidade de respeitar o documento e, através de
sua narrativa, lhe dar maior intensidade. É preciso ter em mente para tanto o respeito pelo
personagem, amar o personagem, mas jamais idolatrá-lo9.
Visão que coaduna com as proposições de Orieux, no que concerne ao plano narrativo,
são as elaboradas por Giovanni Levi, em seu Usos da biografia 10, texto publicado
primeiramente pelos Annales, em 1989, Paris, onde situa o gênero abordado no debate teórico
cabível, levando em consideração as ambiguidades enfrentadas em tal momento por quem
trabalha com a perspectiva biográfica. Por vezes, o sujeito e sua trajetória servem para
sublinhar a irredutibilidade do indivíduo a sistemas normativos gerais. Em outras, usa-se a
biografia para mostrar em nível microscópico a aplicabilidade das leis e regras sociais sobre
os percursos individuais. Representa essa situação, na opinião do autor, um estágio
intermediário na busca pela melhor forma de conceber tal gênero historiográfico.
Na opinião de Levi, a maior parte das questões metodológicas da historiografia
contemporânea relacionam-se com a biografia, como as incursões nas Ciências Sociais, os
problemas das escalas de análise, das teias entre regras e práticas, e das temáticas da liberdade
e racionalidade do ser humano, essas últimas mais complexas e universais. Por tudo isso, se
faz interessante atentar para os cuidados dispensados pela História ao gênero biográfico e
autobiográfico.
Primeiramente, é significativa a relação entre história e narrativa. É na biografia onde
se encontra campo fértil para a absorção, mesmo que bem ponderada, das técnicas literárias
na historiografia. Claramente as exigências feitas a historiadores e romancistas são
diferenciadas, como já destacado, mesmo mantendo certa proximidade. Mas pensar a
possibilidade de escrever a vida de um indivíduo levanta questionamentos acerca do vazio de
fontes, o que acaba por sugerir a renovação do entendido por “fonte”; tanto quanto a
renovação narrativa, reacendendo as chamas do debate propositor das técnicas argumentativas
como importantes para a boa construção de um texto, tanto como da pesquisa enquanto ato de
comunicação por meio do texto escrito.
Porém, para Giovanni Levi, o maior ponto não está aí. E sim na “distorção gritante”
entre a realidade, múltipla e viva, e a representação feita pelos historiadores dos sujeitos
9 ORIEUX, J. A arte do biógrafo. In: DUBY, G.; ARIÈS, P; LADURIE, E. L.; LE GOFF, J. (Org.). História e
Nova História. [S.1.]: Teorema, [s.d.].
10 LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Orgs.). Usos & Abusos da história oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
focalizados, retratados como modelos de racionalidade, estabilidade, coerência, inércia,
decisão total. Porém, se a vida em sua cotidianidade não se apresenta de tal forma, o que se
dirá do homo sapiens?
Dialoga então com Pierre Bourdieu, por sua fala em artigo A ilusão biográfica, onde
encontram-se severas críticas ao furor biográfico atual, e mesmo acusações às ciências sociais
de fazerem-se prisioneiras de certa ilusão própria ao senso comum, que entende a vida como
uma estrada, com começo, aparecendo esse com o significado de “origem”, meio, e fim,
contendo o último sentido duplo de “termo” e “objetivo”. Não deixa, entretanto, de fornecer
uma sugestão de como operar quando se incursiona pela trajetória de um indivíduo, que seria
considerando seus vínculos, suas “colocações” e “deslocamentos” nos espaços sociais. Ou
seja, não poderíamos compreender o “envelhecimento social” / trajetória de um sujeito sem
construir os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou 11. O sociólogo afirma
assim como essencial a necessidade de recompor a “superfície social” da ação do
personagem, considerando a pluralidade de planos em que ela ocorre, ininterruptamente.
Levi12 aproxima o momento vivenciado na historiografia de fins do século XX com
aquele ocorrido no século XVIII, do ponto de vista de que, naquela temporalidade, houve a
recorrente dúvida sobre a real possibilidade de se escrever acerca da vida de um indivíduo,
complexo e contraditório por natureza, mantendo-se sempre em formação. O personagem
social e a percepção de si são contrastantes, com o conceito de “eu” variando no tempo e
espaço. Tal contraste entre o socialmente comunicável e o que a própria pessoa considera
importante mostrar de si são questões colocadas à mostra já desde aquele período supracitado,
nessa perspectiva.
A crise biográfica ressurge, porém, no século XX por questões mais amplas, para além
da dimensão que a pessoa com sua individualidade traz para o pensamento, brotando também
do surgimento de novos paradigmas por todos os campos científicos. A concepção
mecanicista da física entra em crise, surge a psicanálise, a literatura renova as tendências do
seu fazer. As probabilidades passam a constituir o centro das descrições. Somos informados
pelas fontes dos resultados das decisões de nossos personagens, mas não dos processos que
levam a elas, geralmente não documentados, e tal dado é exposto. Se coloca em evidência a
necessidade de conhecer o ponto de vista do sujeito historiador que observa, pois, tal visão é o
“filtro” por onde o passado se reconstrói para nós. O “pano de fundo” também mudou: as
11 BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Orgs.). Usos & Abusos da
história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
12 LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Orgs.). Usos & Abusos da história oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
redes de relações, os estratos e grupos sociais se apresentam de modo menos esquemático,
definindo outros pontos para questionamento, tal qual “como os indivíduos se definem em
relação ao grupo ou se reconhecem numa classe?”13.
Se entende que os historiadores passaram a lidar com essas reflexões biográficas de
maneiras diversas, e Giovanni Lévi formula, com o intuito de elucidar o quão complexas e
irresolutas se mostram as questões, tipologias das abordagens biográficas, leia-se: dos usos da
biografia, às quais apenas mencionaremos, para não nos prolongarmos excessivamente, sendo
elas: Prosopografia e biografia modal, biografia e contexto, biografia e os casos extremos e a
Biografia e Hermenêutica. Tal tipologia enumerada pautou-se em esboçar as formas mais em
voga no período, representando os caminhos de quem trilha pela biografia como instrumento
do conhecimento histórico, enfatizando haverem ainda aspectos um tanto problemáticos por
discutir, como a relação complexa entre normas e práticas, entre indivíduo e grupo,
determinismo e liberdade, racionalidade absoluta ou limitada. Em comum, todas têm o fato de
silenciarem frente ao debate acerca das incoerências entre normas no interior dos sistemas
sociais, ao tipo de racionalidade dos atores quando se escreve uma biografia e a relação entre
grupo e os indivíduos que o compõem.
Para o autor, é um problema duo, de escala e de ponto de vista. Coloca ser pertinente
indagar-se sobre a real amplitude da liberdade de escolha. A liberdade dos sujeitos é
culturalmente e socialmente limitada, conquistada com paciência, porém consciente de si. Os
sistemas normativos, por mais estruturados que o sejam, não escapam às manipulações ou
interpretações das regras, das negociações. Portanto, trata-se a biografia de um campo ideal
para se verificar tais interstícios, entre a liberdade a disposição dos agentes e o funcionamento
concreto dos sistemas normativos, repletos de contradições.
É uma perspectiva diferente, no entanto, construtiva, em relação àquela que dá
preferência aos elementos deterministas, inconscientes, como, a modo de exemplo, a proposta
por Pierre Bourdieu. A biografia permite a descrição das normas ladeada com seu
funcionamento efetivo, indo além da discussão entre regras e práticas, aprofundando a análise
das incoerências estruturais entre as próprias normas, incoerências que possibilitam a
multiplicidade e a diversidade das práticas, ou seja, as práticas só são várias por existirem
incoerências dentro do próprio sistema normativo. Essa posição evita um esquema histórico
assentado sobre ações e reações, abrindo espaço, antes, para se perceber a repartição desigual
do poder, que “[...]por maior e mais coercitiva que seja, sempre deixa alguma margem de

13 LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Orgs.). Usos & Abusos da história oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
manobra para os dominados”14. A mudança social quedaria nesses pequenos lances
microscópicos, que ao longo do tempo dão ímpeto a transformações mais profundas no todo
do tecido social.
Sobre a racionalidade que se espera na descrição de atos históricos, temos
frequentemente nos apegado aos esquemas funcionalistas ou da economia neoclássica, e esses
modelos supõem indivíduos com as mesmas capacidades cognitivas, racionais, sem
incertezas, sem momentos de inércia, donos de mecanismos de decisão fundados em cálculos
“normais” socialmente uniformes, com comportamento assentado na compreensão de lucros e
perdas. As biografias teriam feições outras se aqueles que as compõem imaginassem a
racionalidade dos sujeitos enquanto seletiva, com interesses para além da maximização do
lucro, em prol de encontrar o ponto de equilíbrio entre as individualidades e suas relações
com as condutas coletivas, uma explicação dinâmica voltada a entender esse imbrincado
sistema de relações. Seria uma forma de burlar a frustração decorrente dessa busca pela
normalidade em estudos biográficos, quase que internalizando a máxima do compositor
brasileiro Caetano Veloso, para quem “de perto, ninguém é normal”1516.
Considerando os habitus de grupo como um estilo próprio de uma época, resultante de
experiências comuns e reiteradas, mas sem suprimir a margem de liberdade individual
originada das incoerências sociais e que suscitam a mudança, Levi põe em relevo a
importância da biografia para um exame mais detalhado dessas questões, ficando com tudo
isso interessante contribuição do autor para a reflexão historiográfica em geral, deixando em
nós o verdadeiro desejo de conseguir incorporar essas observações em nosso trabalho.
Mantendo ainda atenção a tais considerações elaboradas no âmbito dos estudos
historiográficos recentes, contestadores da concepção do indivíduo enquanto ser unitário, a
atravessar linearmente a vida, e em nada semelhante ao sujeito múltiplo e fracionado da
realidade17, declara-se que não foi esse um empreendimento onde se procurou dar conta do
absoluto do “eu” do sujeito Abrahão Honório Cavalcante, parafraseando Borges18. Se assim
fosse, se transformaria essa numa tarefa inesgotável, que demandaria ao menos mais uma vida

14 LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Orgs.). Usos & Abusos da história oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
15 VELOSO, C. Vaca profana. Disponível em: <http://m.letras.mus.br/caetano/veloso/>. Acesso em: 19 nov.
16 SCMIDT, B. B. Construindo Biografias...Historiadores e Jornalistas: aproximações e afastamentos. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n.19, 1997.
17 BORGES, V. P. Grandezas e Misérias da biografia. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes Históricas. 3° Ed. São
Paulo: Contexto, 2011.
18 BORGES, V. P. Grandezas e Misérias da biografia. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes Históricas. 3° Ed. São
Paulo: Contexto, 2011.
da extensão da que já tem nosso personagem, ou seja, 64 anos.
Seguindo as proposições da supracitada autora, optou-se aqui por analisar na medida
dos possíveis das fontes e de nossa capacidade, além dos fatos importantes, tais como o
nascimento, a origem social e familiar, o que a mesma chama de “encruzilhadas decisórias” 19,
sendo elas, no caso de nosso personagem, os encontros e usos experienciados por ele das três
formas vegetais anteriormente citadas: a Cannabis sativa, popularmente conhecida como
“maconha”, ou “marijuana”; a mauritia flexuosa, chamada “buriti”, ou mesmo “miriti”; e a
ayahuasca (palavra indígena) ou Santo Daime, bebida cerimonial obtida através do cozimento
de dois vegetais, o cipó banisteriopsis caapi, denominado no popular como jagube, e a folha
psychotria Viridis, nomeada também de “chacrona”, ou ainda “rainha”. Fez-se, portanto, um
estudo de caráter temático.
Procuramos incorporar ainda as sugestões da historiadora italiana Sabina Loriga,
contidas em texto de título A biografia como problema 20, onde a mesma indica que, após um
longo período onde se olhou majoritariamente para o destino coletivo, renasce entre os
historiadores o ímpeto de se observar o papel do sujeito na narrativa histórica. A ideia de “dar
voz aos excluídos”, forte no fim dos anos de 1970, e no início dos anos 1980, alargou o
campo de preocupações da História, possibilitando o crescimento do número de trabalhos
voltados ao cotidiano, às subjetividades outras, assim como também reabriu o debate acerca
do valor do método biográfico. Nos anos anteriores a essas mudanças, grande parte dos
historiadores só concebiam as classes populares como objeto de estudo através da abordagem
quantitativa.
Pouco a pouco, porém, as atenções se deslocaram da atividade econômica e política do
“homem comum” para sua subjetividade, o seu “vivido”.
A reflexão sobre subjetividade estendeu-se finalmente à toda disciplina histórica, em
resposta a motivações profundas. A dita “história científica” estava em crise, assim como seus
conceitos totalizantes de mentalidade ou classe social, redutores das ações humanas a
subprodutos do meio cultural e das forças produtivas. Dessa forma, emergiu no cenário
historiográfico a noção de indivíduo, e mesmo os historiadores sociais, mais atentos à
dimensão coletiva da experiência humana, passaram a reconsiderar a questão da relevância
dos destinos individuais. Porém, Loriga defende que se esqueceram as razões mais profundas
para o retorno do indivíduo ao centro da construção histórica, adotando-se somente o discurso
19 LORIGA, S. A biografia como problema. In: REVEL, J. (Org.). Jogos de escalas: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
20 LORIGA, S. A biografia como problema. In: REVEL, J. (Org.). Jogos de escalas: a experiência
da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. 23 Idem, ibidem.
pautado na importância do vivido. A biografia seria útil nesse contexto, aponta, da metade do
século XX para adiante, como uma “modesta ferramenta” ilustrativa das estruturas, a história
pessoal servindo como adorno da teoria, ou mesmo com função sugestiva, uma exploração
preliminar do problema. Os partidários da biografia assumiram, para tanto, uma visão
resignada,
“minimalista”, como se a ação de se debruçar sobre o personagem-homem fosse menos
complexa e difícil do que sobre as estruturas sociais.
Entretanto, em séculos anteriores, atribuiu-se à biografia “uma função heurística
importante”21, nas palavras da autora. Propõe então apresentar rapidamente três predecessores
com projetos biográficos fortes, a saber, Thomas Carlyle, Jacob Burckhardt e Hippolyte Taine.
Não nos deteremos nas considerações que a mesma tece sobre a biografia do “herói” de
Carlyle, ou sobre o “homem-patológico” de Burckhardt, tampouco no “homem-partícula” de
Taine. Passaremos às conclusões a que chega acerca das normas e possibilidades, aonde
aponta ser o “homem comum” a grande aposta da biografia histórica atual, indo além da
aparente continuidade do devir, na busca por recuperar os desvios, as fissuras, os acidentes, e,
especialmente, as potencialidades do passado.

Os movimentos individuais romperiam, em tal perspectiva, com as homogeneidades


aparentes do discurso histórico, permitindo que se revelem os conflitos fundantes das práticas
culturais, em suas formações e edificações. Loriga pensa especificamente, além de ponderar
sobre a inércia e ineficácia normativa, na forma pela qual os indivíduos “moldam e modificam
as relações de poder”23. Além disso, não devemos nos contentar em colocar somente os fatos
consumados. Podemos exercitar nossa capacidade de nos interrogarmos, com base no
conhecimento das circunstâncias históricas, sobre as tensões entre o que foi imaginado, o
universo do possível, e o que ficou. Essa postura em muito seria útil no sentido de romper
com a ideia de só o que efetivamente se concretizou tem espaço na História, restituindo ao
passado um tanto de seu tempo complexo e não linear.

2.2 Das fontes da História Oral

No tratamento do objeto de estudo em questão – a história da vida de Abrahão através


de seus usos dos vegetais-, algumas possibilidades se apresentam privilegiadamente quando se
trata de recuperar o vivido e o concebido com seus possíveis, e uma delas é a fonte

21 POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
proporcionada pela metodologia da História Oral, afinal, falamos aqui de um sujeito vivo, o
que nos permite conhecer e analisar as representações elaboradas diretamente pelo nosso
personagem, implicando na necessidade do que Michael Pollak chamou - em seu artigo
Memória e Identidade Social22, ao comentar o trabalho histórico que se pauta em fontes da
História Oral-, de “sensibilidade epistemológica específica, aguçada”. Ou seja, ao se trabalhar
com a história oral, se faz obrigatório realizar séria crítica interna e externa das fontes, tal
como se daria com qualquer outra matéria prima usada para a produção historiográfica,
havendo aumento da exigência técnica e metodológica, tendo de manter atenção inclusive
para a sensibilidade requerida no trato com a experiência humana em sua escala mais “real”,
sendo essa a vivência do indivíduo e as memórias que daí decorrem.
O cuidado redobrado se daria, em grande parte, como medida precatória frente às
armadilhas impostas pelo que a historiadora Verena Alberti denominou como o “fascínio do
vivido”23, sendo talvez esse, segundo aponta, o maior responsável pelo grande sucesso
alcançado com a metodologia oral nos últimos anos. O passado pareceria mais concreto,
próximo do real, ao se ter contato com as experiências de vida relatadas por alguém. Portanto,
a entrevista de História Oral possuiria peculiaridades às quais convém manter atenção, tais
como a ilusão de se restabelecer o vivido em sua plena continuidade através do relato, e mais:
o trabalho da memória de significar o passado a partir do presente, sendo essa a natureza do
fascínio. É preciso entender, pois, a entrevista como um momento onde se dão a conhecer
pedaços do passado já fragmentado, organizados de maneira tal por quem fala que o discurso
pareça coerente. Mantendo isso em mente, há possibilidades de trabalhar com a História oral
sem decair em falsa continuidade, extraindo dela a vida pulsante, mesmo que despedaçada,
observando de perto as representações e identidades concebidas pelos sujeitos.

É característica marcante do documento de história oral, nas palavras de Alberti, “[...]


uma postura com relação à história e às configurações socioculturais, que privilegia a
recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu”26. Vivemos e concebemos, pois,
sendo essas as duas formas centrais de se relacionar com o mundo, apreendendo o real. O
concebido seria uma síntese do vivido, e só se recupera a vivência através do que se concebeu
dela, assim, a postura mantida pela história oral prioriza captar o que há de contínuo e
descontínuo nessa combinação. Nesse sentido, a fala de Pollak acerca da memória e do valor
da fonte oral encaixa-se com exatidão, ao afirmar poderosamente que “se a memória é

22 ALBERTI, V. Ouvir contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV, [s.d.]. 26
Idem, ibidem.
23 POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é. [...] A fonte oral é
exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se
apresenta”24. Ou seja, o valor da fonte está na leitura atenta e crítica que se faz dela, seja oral,
visual ou escrita, dado que todas são construções dotadas socialmente de sentido.

É ainda Verena Alberti25 quem indica os dois paradigmas que dão sustentação para a
história oral em nossa cultura, sendo eles o modo de pensar hermenêutico e a ideia do
indivíduo como valor. Hermenêutica tem consistido ao longo do tempo enquanto esforço de
interpretação de textos, em especial os religiosos, e na definição de regras que auxiliem nessa
compreensão. É também designação que se refere a uma postura filosófica. A autora coloca
ser importante considerar a noção de “círculo hermenêutico”, onde as partes conferem sentido
ao todo e viceversa.

A hermenêutica surge como fundamento das ciências humanas como distintas das
ciências naturais a partir do fim do século XIX, quando assim eleita principalmente por
Wilhelm Dilthey (1833-1911), um dos responsáveis pela diferenciação entre as áreas da
produção do conhecimento. Para esse estudioso, as ciências humanas teriam base na
compreensão, enquanto as ciências naturais encontrariam fundamentação na explicação. O
pensamento hermenêutico, para além de Dilthey, valorizaria o movimento de se colocar no
lugar do outro, acreditando que as coisas (os textos ou o passado, para exemplificar) teriam
sentidos alcançáveis através da interpretação.

O ponto claro de contato entre hermenêutica e história oral, afirma Alberti, é a


categoria da vivência, a menor unidade das ciências humanas, onde compreender seria o
mesmo que tornar a vivenciar. Compreender, coloca Alberti apud Dilthey, “é reencontrar o eu
no tu”29, ou seja, é vivenciar outras possibilidades da vida humana, como ocorre com a
entrevista de história oral, a que se tem acesso sabendo interpretar, logo, operando verdadeiro
trabalho de hermeneuta. Entretanto, a hermenêutica não produz a certeza que se pode
demonstrar, assim como se dá com a compreensão da própria vida. Deixa sempre espaço para
outras possibilidades de entendimento. Por isso, para não incorrer em relativismo exacerbado,
sugere-se que se tome a entrevista como documento, funcionando a interpretação enquanto
meio de descobrir o que está sendo documentado.

Para “reencontrar o eu no tu”, pressupõe-se que haja um indivíduo que vive e concebe,

24 ALBERTI, V. Ouvir contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV, [s.d.]. 29
Idem, ibidem.
25 ALBERTI, V. Ouvir contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV, [s.d.].
dotado da capacidade de totalização; entretanto, essa totalização se dá nivelada e fragmentada,
pois a racionalidade moderna e ocidental vê-se assentada sobre a ideia de igualdade. Daí se
originam uma série de práticas e formas de concepção em nossa realidade cultural, onde esse
indivíduo figura como valor, resistindo à fragmentação acelerada. São a hermenêutica e a
compreensão do indivíduo como valor, práticas e modos de pensar profundamente infiltrados
em nossa maneira ocidental de apreender o mundo, representando construções culturais,
sendo ambos paradigmas totalizadores, fixadores de sínteses e significados. Assim também o
é a história oral, esforço construtivista que tem por base a experiência histórica, viva e
concreta, exigindo por parte de quem se aventura no uso dela a consciência do que Alberti
chama de “vocação totalizante” presente nesse campo26.

Para além do alargamento propiciado quanto aos objetos, interesses e preocupações no


campo historiográfico, é evidente a contribuição do método da História Oral para a
composição de histórias de memórias, de histórias da vida privada, histórias dos usos e
mesmo das biografias, tornando possível o estudo das representações do passado e a
reconstituição das trajetórias dos sujeitos. Através do cruzamento de informações, extraídas
de fontes diferentes, pode-se realizar ainda uma observação mais próxima das histórias de
vida, perpassadas por subjetividades, e elevadas a um maior grau de objetividade com tal
movimento.

2.3 Das complexas relações entre Memória e História

Utilizar a fonte da História Oral, onde o concebido do que se viveu aparece em


primeiro plano, nos trouxe também a necessidade de refletir sobre as relações mantidas entre
História e Memória. Nesse sentido, Jacy Alves de Seixas nos apontou importantes
considerações a serem levadas em conta quando incursionamos nessas terras “litigiosas”. Em
alguns artigos, como naquele intitulado Percursos de memórias em terras de histórias:
problemáticas atuais27, nos diz da crescente revalorização da memória, a nível individual e
coletivo, e mesmo no seio da historiografia, com o crescente boom da história oral, das

26 SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2° ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004.
27 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
biografias e autobiografias. Porém, constata a autora, pouco se reflete acerca da memória
historicizada. Assume a postura transdisciplinar para avaliar mais acertadamente tais questões,
dialogando com a literatura e filosofia. Vejamos:

A primeira problemática levantada por Seixas diz respeito ao espaço conceitual


reservado à memória voluntária, aquela onde há esforço intelectual para se recuperar a
lembrança, que regula grande parte das relações entre memória e história. Tal postura nasceu
entre os gregos, para quem a memória seria a única forma de acessar verdadeiramente o
conhecimento, gerando com isso a ideia de memória como faculdade intelectual, sendo esse
pensamento contínuo na Idade Média, e influente em toda a cultura racionalista posterior. As
categorias ditas arcaicas da memória mantêm três funcionalidades, a saber, como
memóriaação, memória afetiva e memória- conhecimento.

Desde a década de 1980, entretanto, tem-se discutido serem as relações entre memória
e história muito mais prenhes de conflitos e oposições que de laços complementares. A
novidade da crítica, segundo Seixas, é o entendimento de ser a história “senhora da memória”,
“produtora de memórias”. Não se rompe, entretanto, efetivamente com a tradição aristotélica.
Ter memória, lembrar, em especial cognitivamente falando, é ter conhecimento do passado.

Pouco se tem ido além dos muros da cidadela historiográfica, quando o tema é a
reflexão sobre a memória na contemporaneidade, nos afirma a autora. Pouco se tem visitado a
Literatura, ou mesmo a Filosofia. A sociologia tem sido parceira preferencial nessas
empreitadas. Tanto assim é, que as palavras de Maurice Halbwachs acerca de uma sociologia
da memória coletiva constituíram a base teórica da grande maioria dos estudos
historiográficos, desde 192528.

Em Nora, já em 1984, se encontra a elaboração da “divisão e oposição” entre memória


e história29. Ele retoma e se apropria das ideias de Halbwachs, atribuindo à memória coletiva
naturalidade, espontaneidade, desinteresse e seletividade, onde só se guarda aquilo que forma
os elos da continuidade entre passado, presente e futuro. Seria ainda uma memória oral e
afetiva, tendo como característica marcante a multiplicidade narrativa. A história, ao contrário,
representaria processo interessado, político, manipulador, mediado pela escrita, totalizando
diferenças e lacunas. A história daria a largada no ponto onde a memória coletiva se detém.

28 NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História, São Paulo, vol. 10,
1998.
29 NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História, São Paulo, vol. 10,
1998.
Para Nora, é impossível à memória coletiva hoje escapar aos procedimentos históricos. Seria a
memória prisioneira da História, ou seja, historicizada. A memória exilada na História
buscaria refúgio em “lugares de memória”, seus maiores testemunhos de existência. Falou-se
mesmo no fim das “sociedades-memórias”, onde a revalorização súbita da memória esconde
antes um vazio. Seria o momento de apreciação da “beleza do morto”, para usar expressão do
autor. Dicotomiza assim memória e história, onde a primeira é vulnerável, afetiva, e a
segunda, é conservadora e industrial. Para Nora, nossa memória hoje é História30.

O primeiro efeito da apropriação da memória pela história é a sua produtividade e


operacionalidade. É essa euforia de memória, fenômeno novo e cheio de saúde, que está na
raiz de movimentos identitários atuais, no meio social e político, afirmando novas
subjetividades e cidadanias. Resgatou memórias traumáticas, dissidentes, indizíveis, difíceis
de serem enquadradas, para usar termos de Michael Pollak31.

O segundo efeito relaciona-se intrinsecamente com o primeiro, ao apontar para a


vulnerabilidade teórica da divisão entre memória e história. Coloca-se nas considerações de
Seixas que não se discute acerca dos mecanismos de produção e reprodução da memória, seja
ela coletiva ou histórica. Apenas são apontadas algumas características da memória em função
do paradigma da história, que aparece aqui “positiva” e voraz. Ou seja, é como se a memória
só existisse teoricamente por conta dos refletores da própria história, postura que autora
afirma não resistir a uma observação mais atenta32.

Dessa maneira, contrapõe-se à Nora quando o mesmo diz que consagramos lugares
para a memória precisamente por não mais a possuirmos. Seixas nega tal visão, demonstrando
ser antes um traço específico da memória a “espacialização do tempo”, ou seja, essa
expressão, materialização e atualização através de lugares. Os lugares de memória, nessa
leitura, são antes lugares de irrupções afetivas e simbólicas da memória em diálogo “sempre
atual” com a história. Defende que é justamente por habitarmos ainda nossa memória,
descontínua e fragmentada como o é a própria modernidade, que lhe consagramos lugares
numerosos e inusitados.

30 POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989.
31 SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2° ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004.
32 SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2° ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004. 38 Idem, ibidem.
Indaga se não seria redutor enfatizar apenas a função política da memória de controle
“voluntário” do passado e do presente, ignorando-lhe outras facetas. Identifica então que só há
um reconhecimento da memória no que ela tem de mais voluntário, sistêmico e intelectual, ou
seja, no que ela tem de mais parecido com a história. Contudo, outras faces da memória
persistem clandestinamente, “à maneira que lhe é própria”33. Quando nos perguntamos o que
está ficando de lado quando a história considera apenas a memória voluntária, um universo de
possíveis pode vir a se descortinar, como a dimensão afetiva e descontínua das experiências
humanas, sociais e políticas e ainda a função criativa da memória, sempre atualizando o
presente, projetando-se ao futuro, revestindo-se de uma carga de afetos atribuída normalmente
apenas aos mitos. Ou seja, se queremos refletir sobre memória e história, temos que pensar a
memória de acordo com seus próprios refletores.

É preciso incorporar o papel da afetividade e sensibilidade na história, assim como o


da memória involuntária. É se atentar ao movimento inerente da memória humana, o
“tempoespaço” no qual ela se move, e ao seu caráter “atualizador”, presente em todo seu
percurso. Propõe assim a releitura do escritor Marcel Proust (1871- 1934) e do filósofo Henri
Bergson (1859- 1941), para que se incorporem novos pontos de apoio à reflexão
historiográfica38. Proust, tanto quanto Bergson, alertam para o fato de ser mais acertado talvez
falar em memória(s), no plural, e esquecimento(s) desiguais, diversos, que ocupam “lugares”
diferentes nos diversificados “planos” constitutivos da memória em seu percurso. Essas várias
memórias possuem alcances e consistências variantes. Essa postura permitiu a Proust realizar
uma crítica veemente à memória intelectual, voluntária. Desacreditava essa forma de
memória, para ele recuperadora do que há de mais banal.

Em Bergson também há pouca crença nessa memória voluntária como plenamente


capaz de alcançar o estatuto de memória “verdadeira”. Seria em sua visão uma memória
“menor”, corriqueira, superficial, atada à vida prática e mecânica. Seria o próprio “hábito
iluminado pela memória”, e não ela mesma. Ela não representa o passado, e sim o repete.
Proust e Bergson são bem próximos nesse sentido. A memória voluntária seria em realidade
um obstáculo à memória verdadeira, por não nos permitir romper o pesado véu do hábito. A
memória voluntária seria como a memória intelectual. As faces dadas pela memória voluntária
seriam sem verdade, com cores falsas. A memória mais espontânea seria acesa pelas
sensações. É a memória que rompe com o hábito, ou seja, com a busca intelectual pelo

33 SEIXAS, J. A. de. Os tempos da memória: (Des) continuidade e projeção. Uma reflexão (in) atual para a
História?. Projeto História, São Paulo, 2002.
passado, a um só tempo entendida como infecunda e desgastante.

Com a noção de memória involuntária presente nos dois autores supracitados, atinge-
se outro nível da memória humana, indo ao encontro de uma memória “mais elevada”,
espontânea. Ela é feita de imagens que vêm e vão sem serem chamadas, nem sequer
despedidas. São “lampejos bruscos”, afastados ao menor movimento de tentativa de captura
pela memória voluntária. Tal memória espontânea seria como um bicho no mato, resistente a
qualquer armadilha.

Para Bergson, ambas as memórias andam juntas, se apoiam mutuamente. Para Proust,
a memória involuntária é descontínua e instável, não tapa buracos, mas antes, “supõe as
lacunas e constrói-se com elas”. Ela “condensa”. As memórias voluntárias e involuntárias se
distinguem, portanto, por procedimentos diferentes. A memória voluntária busca suprir as
lacunas. A involuntária torna mais densas as lacunas, percorrendo esses “espaços vazios” por
tempos múltiplos, atualizados pelas artimanhas que lhe são características. Em Proust, a
memória é então algo que “atravessa”, que “vence obstáculos”, que “emerge” 34, irrompe. Vem
carregada de afetividades, e aquilo que se lembra retorna inteiro, porque estão presentes seus
tons emocionais e afetivos. Aqui, o que escapa com a memória voluntária é “[...]toda a
dimensão afetiva e descontínua da vida e das ações dos homens”35. Assim, as observações
proustianas acabam por impor algumas considerações de ordem historiográfica.

A primeira delas diz respeito aos “planos” de memória em seu contato com a história,
que tem sido essencialmente aqueles traçados pela memória voluntária, ou seja, as relações
entre memória e história tem se dado excluindo a face involuntária e afetiva da memória,
desqualificada como “irracional”, e, por esse motivo, avessa a história, deixando clara a
afinidade eletiva da disciplina. Essa carga eletiva vem do esforço realizado no seio da História
de instituir-se enquanto ciência ao longo do tempo, e tais escolhas fazem parte da construção
de tal campo disciplinar.

Cabe se questionar acerca da legitimidade de se manter tamanho distanciamento em


relação a dimensão afetiva e involuntária da memória pela História, enquanto outras
disciplinas das ciências humanas se esforçam para reintegrar esse aspecto em seus estudos a

34 SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2° ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004.
35 SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2° ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004.
respeito dos mitos, sensibilidades e paixões, do imaginário e da imaginação na história. São
essas as questões descortinadas pela memória involuntária, é o universo teórico e temático
que ela nos permite entrever, para além do proposto pela memória voluntária, havendo entre
ambas, segundo Seixas, uma disparidade, por ela assim expressa: “[...] há uma diferença
profunda entre memória reconstruída, resgatada voluntariamente pela razão historiográfica, e
aquela retomada e reconstruída involuntariamente”36. São essas memórias involuntárias que
irrompem na contemporaneidade, sendo interessante destacar que, dadas essas observações,
Seixas posiciona-se construtivamente em relação aos debates teóricos anteriores, e não
desconstrutivamente, como pode parecer num primeiro instante.

Surge então a questão: quais são os tempos da memória? A autora recorre à narrativa
proustiana, avessa às noções de duração linear e de progresso. Talvez sejam os tempos da
memória essencialmente descontínuos, fragmentados, movimentando-se em espiral. Em
Proust, a memória funciona como reatualizadora do passado e do presente, condensa os
tempos, operando fusão entre eles, presentificando o passado no ato de lembrar.

Proust coloca a “descontinuidade” em primeiro plano em sua concepção de tempo,


entendendo- o como fenômeno múltiplo e diverso. Para ele, o instante único e isolado guarda
de forma latente a possibilidade de memória. A memória também não seria aqui sucessiva, e
sim algo liberto, que se movimenta para frente e para trás. A reatualização por ela operada se
dá em um “instante”, com a duração equivalente à de um relâmpago. Por isso a materialidade
da memória aparece nessa perspectiva como algo que “irrompe”. É um movimento abrupto. É
o “trazer à tona” de um passado que “retorna”, objetivamente porque não passou, continua
ativo. Ele é, antes, retomado, recriado, reatualizado. Por isso o sentimento proustiano de que o
passado vivido é ressuscitado no presente. É a memória que opera fusão entre instante e
duração, resgata esses tempos múltiplos, porque incorpora o instante, condutor da memória. A
busca proustiana é por um tempo e um espaço perdidos, “dos inúmeros lugares idos e
vividos”.
Espacializa aqui o tempo, como não o fazem sem desconforto os filósofos. “Os lugares de
memória acoplam-se, formam encruzilhadas, retas, transversais, cada um deles formando
‘mundos’ à parte, passíveis de serem colocados em comunicação pela memória” 37. Verdadeiros

36 SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2° ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004.
37 SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.;
NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (Res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2° ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004.
mundos em caleidoscópios.

A memória em espiral poderia levar a qualquer lugar. Essa aparente descontinuidade


lacunar da memória proustiana constrói, ainda assim, uma continuidade, onde o próprio
instante é portador da duração. É uma postura otimista a de Proust, de uma memória
construtivista. A memória agiria “tecendo” fios entre os seres, os lugares e os acontecimentos,
onde alguns são mais densos que outros, mais do que os recuperando como “realmente
foram”. Atualiza os passados, recria o real. A própria realidade se forma na / pela memória. O
tempo perdido e reencontrado é retomado, se referindo a um só tempo ao passado e ao futuro.

Deixa então ao historiador boas lições, ao fazer com que a realidade se situe nessa
dimensão construtivista, fundindo instante e duração em um continuum, a partir do que é, em
tese, descontínuo. Proust designa de atemporal essa dimensão da experiência dos homens
construída pela memória, enquanto recurso estético e de linguagem. Para ele, é na arte que
instante e duração se fundem, sendo esse espaço privilegiado e exclusivo para o encontro
desses desiguais. Ao fazê-lo, aproxima para nós estética, sensibilidade e história, ficando
como maior sugestão a incorporação da descontinuidade e, para além disso, a importância da
função atualizadora operada pelo ato da memória.

Segundo então Proust e Bergson, a memória existe “fora de nós”. Onde? Nos objetos,
nos espaços, paisagens, odores, imagens, monumentos, arquivos, comemorações,
artefatos...nos “lugares” mais variados. É preciso reconhece-la em seu próprio movimento,
espontâneo e interessado, descontínuo e atual. Essa possibilidade abriria certamente novos
“lugares” para a História, a serem percorridos com cuidado. Não é apenas implantar os
achados de outras disciplinas. Se trata mais de entender a problemática da memória como algo
que circula por vários campos do conhecimento e da sensibilidade, se elaborando ao longo
desse percurso, onde a História está também inserida enquanto campo que produz saber. Não
é se colocar de fora da memória, como tem sido recorrente na História. Ao contrário, é pensar
em tais diálogos a partir do interior dessa relação.
A historiografia tem dado ênfase ao caráter utilitário, voluntário, “interessado” da
memória, mas deixa de lado seu compromisso espontâneo e mesmo inconsciente com a ação,
inscrito em movimento peculiar. Lembramos para conhecer. Mas lembramos mais ainda para
agir. É menos entender que agir. É impossível, com isso, obter a memória como algo
desinteressado. Bergson38 é enfático nesse sentido, da memória como algo destinado ao

38 Idem, ibidem.
mundo prático, que sintetiza passado e presente com as vistas voltadas ao futuro, contraindo o
passado para dele se servir. A memória teria, portanto, compromisso fortemente ético,
incidindo sobre grupos sociais e indivíduos. Induz, portanto, condutas. Interfere na ação. A
memória sendo apreendida como ação44.

A adição da ética em nosso entendimento do valor da memória para a


contemporaneidade vem enriquecer o debate e a reflexão. A necessidade de “manter viva” a
memória vem para que estejamos alertas frente a situações novas, porém, análogas, onde se
faça preciso tomar posição, apesar de alguns grupos reivindicarem o “direito de esquecer”.
Com isso, fica visto que a memória se movimenta em dimensão ético-política. Quanto á
História, Seixas levanta a hipótese de ser o frenesi pela memória ao qual assistimos, frutos da
desilusão com as teorias e utopias racionalistas, fragilizadas já nas últimas três décadas do
século XX. A memória viria assim, gostando ou não, suprir esse vazio deixado pela perda da
ilusão. A memória estaria, agora, apontando os lugares de realização histórica, para fazer
renascer a esperança no futuro com base nessa revalorização, pelo que se insiste na inserção
da lembrança no âmbito da História39.

Temos, portanto, nas entrevistas semiestruturadas colhidas junto à Abrahão Honório


Cavalcante através da metodologia da História oral, fontes disponíveis para a recomposição
temática da trajetória de vida do mesmo, ricas enquanto espaço possível de captar tanto
memórias voluntárias, quanto involuntárias. Cotejaremos as informações dessa maneira
obtidas às bibliografias que com seu percurso dialogam, como também à outras fontes, como
aquelas provenientes do “arquivamento de si” por Abrahão perpetrado, onde resistiram (ao
tempo, às mãos seletivas e até mesmo ao fogo) inúmeras fotografias, recortes de jornais,
coleções de revistas e CD’S, documentos públicos, e notas de suas transações comerciais, que
permitiram perceber parcialmente a atuação do sujeito. Para usar expressão de Philippe
Artières, ao

39 ARTIÈRES, P. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.
comentar sobre o arquivamento da própria vida, em artigo ao CPDOC, “[...]o anormal é o sem
papéis”40. E para essa trajetória encontramos vários papéis indicadores da identidade
construída pelo personagem ao longo dos vários tempos e espaços pelos quais circulou,
trabalhados na medida dos possíveis no decorrer da narrativa.

2.4 Das fotografias e do arquivamento de si

Sobre as fotografias, afirmou o historiador Pierre Sorlin, em Conferência de Encontro


promovido pelo CPDOC, no ano de 1994: “Vinte por cento de todas as fotografias feitas no
mundo são fotografias privadas, e é evidente que todas elas comportam um enorme
investimento sentimental”. Sobre essa carga emocional presente nos registros visuais, tal
historiador sustenta a ideia de as emoções familiares ou individuais passarem pela imagem,
permitindo-se entrever por meio desse suporte um momento onde “[...]todo um emaranhado
de relações se esboça diante dos nossos olhos”41, expandindo as visões fragmentadas do
cotidiano vivido e ido, ajudando a compor o quadro onde se pinta, mesmo que em pedaços, o
passado.
Para a compreensão das mensagens fotográficas é necessário considerar a historicidade
que as envolve, perpassadas como são por convenções de sentidos, sendo os mesmos
produzidos social, cultural e historicamente; com funções diversas a depender do contexto e
do local, exigindo a busca por uma “educação do olhar”, para usar expressão da historiadora
Ana Maria Mauad. Na perspectiva defendida pela mesma, deve-se considerar a fotografia
enquanto imagem – documento e mesmo imagem – monumento, pois, no primeiro caso,
apresenta-se como índice, como “marca de uma materialidade passada”, onde esses vestígios
nos informam sobre objetos, pessoas, lugares, moda, infraestrutura, etc, ou seja, um
documento por excelência. E no segundo caso, a fotografia representa um símbolo
estabelecido socialmente como algo a ser perenizado para a posteridade. Como nos ensina
Jacques Le Goff, todo documento é monumento. No caso específico da fotografia, ela informa
e conforma uma visão determinada de mundo, podendo ser entendida como escolha feita entre

40 SORLIN, P. Indispensáveis e enganosas, as imagens, testemunhas da História. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994.
41 , Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2,
MAUAD, A. M. Através da Imagem: Fotografia e História – Interfaces. Tempo
uma gama de escolhas possíveis4243.
Esse modo de conceber remete ao circuito social da fotografia, ou seja, a produção,
circulação e consumo das imagens fotográficas. Essas guardam imenso poder de
comunicação, e afetam quem as olha. Podem até mesmo se tornar emblemas de
acontecimentos. É a marca da existência das pessoas e dos fatos, registrando desde os
fragmentos do dia a dia aos rituais de passagem. A linguagem da foto é visual, possuindo esse
vestígio um autor, fazendo-se texto e demandado leitores. A pergunta que se coloca aos
historiadores é: como ver através da imagem49?
De início, pode-se considerar que todo produto cultural possui um lugar de produção e
um produtor, e no caso da imagem fotográfica, é o fotografo o detentor das técnicas e saberes
especiais à sua atividade, sendo visto aqui como integrante de uma categoria social, seja ele
amador ou profissional. Há que dominar minimamente uma câmera fotográfica, assim como
os códigos socialmente colocados para que a mensagem seja entendida, ou seja, é preciso que
o autor das imagens domine a técnica e a estética. Atualmente assiste-se à popularização dos
meios de se produzir fotografias. No século XIX, porém, essas técnicas e possibilidades
ficavam restritas a um grupo de pessoas que tinham até de produzir o próprio material de
trabalho. No século XX, com o surgimento da empresa Kodak, popularizou-se a fotografia
amadora. Até a década de 50, porém, os meios técnicos de produção cultural desse gênero foi
privilégio de frações sociais dominantes.
Ao leitor, exige-se que saiba ao menos que uma fotografia é uma fotografia, o suporte
material de uma imagem. Os significados de uma imagem são dados de acordo com a
competência de quem olha, ou seja, de acordo com o grau de inserção nas regras culturais de
leitura de uma imagem, convencionadas coletivamente. A compreensão da mensagem por
parte do leitor dá-se em dois níveis, a saber: Nível interno à superfície do texto visual, sendo
possível ler a partir das estruturas espaciais do texto icônico; e nível externo à superfície do
texto visual, originado a partir de aproximações e inferências com textos de outra natureza,
porém da mesma época, de onde se pode inferir intertextualidades e informações implícitas.
A compreensão de um texto visual é um ato conceitual e pragmático, com os níveis
interno e externo unindo-se para a compreensão da mensagem, somando-se aí a aplicação de
regras de entendimento socialmente aceitas, e, por isso, válidas. Perceber e interpretar são,

42 MAUAD, A. M. Através da Imagem: Fotografia e História – Interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2,
1996.
43 ARTIÈRES, P. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.
MAUAD, A. M. Através da Imagem: Fotografia e História – Interfaces. Tempo
pois, atos para a “educação do olhar”. As regras são geradas através de disputas de
significados adequados às representações culturais. A aplicação das mesmas varia de acordo
com a situação de recepção dos textos visuais. A cultura, desse modo, comunica, a ideologia
molda a

49
, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2,
1996.
comunicação, e a hegemonia social permite que a imagem da classe dominante predomine, se
fazendo modelo para as outras. Os veículos da imagem variam, podendo ir desde aquele
nostálgico álbum de retratos, até uma foto postada no aplicativo Facebook. A circulação pode
ser entre as visitas da família, ou pelo mundo vasto da Internet. A situação de consumo é
direcionada a um destinatário, também variante. Pode ser aquele irmão que se quer presentear
com uma imagem, ou mesmo um banco de dados, onde a imagem expecta por um leitor.
Enquanto texto, a fotografia deve ser entendida como mensagem organizada em dois
segmentos: expressão e conteúdo. A expressão envolve escolhas técnicas e estéticas, como
enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor, etc. Já o conteúdo é
determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que constituem a
fotografia. Ambos operam na direção de uma produção de sentido, entendidas como um todo.
As fotografias, assim como outros textos, compõem a textualidade de uma época, sendo
necessário, em muitas situações, observar a intertextualidade para que se apreenda as
maneiras de ser e agir em um determinado contexto, sugerindo-se de tal maneira que os textos
históricos não são autônomos, precisando de outros para sua interpretação.
Para decodificar as mensagens contidas nos registros fotográficos, nos apoiamos
preferencialmente na metodologia proposta por Mauad44, onde a chave de leitura da fotografia
reside na noção de espaço, posto que a própria fotografia é um recorte espacial onde ficam
contidos o espaço geográfico, o espaço dos objetos, o espaço da figuração, o espaço das
vivências, comportamentos e representações sociais. Quanto ao tempo, a fotografia permite a
presentificação do passado, dado ser uma mensagem que se processa através dos tempos.
Apontamos assim as fotografias como fontes para essa narrativa.
As fotografias a disposição para a tessitura da história de Abrahão Honório Cavalcante
são aquelas colocadas no álbum de fotos de sua família, sendo essa uma prática de inscrição
social comum na sociedade dita moderna e burguesa, e que é descrevida por Philippe Artières,

44 , Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2,


MAUAD, A. M. Através da Imagem: Fotografia e História – Interfaces. Tempo
ao falar do arquivamento de si, como componente chave da “memória oficial da família” 45. Ao
partirmos do pressuposto de ser a imagem fotográfica uma mensagem que se elabora ao longo
do tempo, como o proposto por Ana Maria Mauad 46, o álbum de fotos tratasse de verdadeira
narrativa visual, preocupada em contar a história da família de forma coerente, com a
finalidade de infundir coesão entre seus membros. Além disso, despontaram fotografias que
documentam

1996

45 ARTIÈRES, P. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.
46 RIBEIRO, R. J. Memórias de si ou...1997. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.
MAUAD, A. M. Através da Imagem: Fotografia e História – Interfaces. Tempo
algumas passagens do trabalho do supracitado artesão com o buriti, auxiliando no trabalho de
remontar a face desejada por Abrahão ao longo dos tempos e espaços.
Faz-se possível o acesso ao passado de Abrahão ainda por meio dos documentos que o
inscrevem numa normalidade, garantindo-lhe uma identidade. São esses os arquivos mantidos
pelo mesmo, constituídos de documentos públicos nos quais aparecem suas movimentações,
assim como fitas cassetes, prêmios recebidos, certificados, recortes de jornais com entrevistas
sobre suas lides, revistas e catálogos onde teve exposta sua produção, dedicatórias de livros a
ele presenteados, revistas colecionadas por gosto, declarações de outros sujeitos que o
representaram em suas falas, entre outros artigos que emergiram de seus guardados, para
serem dispostos no corpo desse trabalho.
Essas fontes foram bastante úteis para que se compusesse o quanto possível os cenários
por onde o artesão esteve, exigindo, porém, detida atenção, afinal, não são guardados
ingênuos, como nos ensina o historiador Philíppe Artières, com quem se dialogou ao longo
das considerações traçadas, para quem a existência de múltiplas práticas com a finalidade de
arquivar a própria vida – chamadas por ele de “arquivamento do eu” -, tencionariam no
sentido de promover a construção de uma imagem pessoal, sendo dotadas portando de
intenção autobiográfica. “[...]O indivíduo deve manter seus arquivos pessoais para ver sua
identidade reconhecida”47. A escolha e classificação desses registros objetivos, moldariam a
imagem que se deseja perpetuar. São práticas objetivas que acabam por levar à subjetivação.

Nesse sentido, esses arquivos pessoais podem até mesmo ser entendidos como
“coleções de si”, ou seja, como uma seleção de objetos que visam guardar a melhor
recordação possível de quem os preservou, podendo atestar, segundo o historiador Renato
Janine Ribeiro, o anseio de reconhecimento “[...]por uma identidade digna de nota”48.
Denotariam até certa resistência por parte dos sujeitos, que atuariam seletivamente em prol
duma construção onde se contrapunha a imagem social à imagem íntima tida de si mesmos. E
é nesse universo historiográfico apresentado que nos movimentamos para o cumprimento do
empreendimento monográfico.

47 CULTIVO, Banda. No meio do mato. Disponível em: < https://m.letras.mus.br/cultivo/1509042/>. Acesso em:
48 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1
arquivo, mp3 (47 min.). O senhor Abrahão Honório Cavalcante solicitamente permitiu a manipulação de seus
documentos de identificação, onde consta a data de 11 de outubro de 1953 como sendo a de seu nascimento, fato
que o entrevistado afirma ser equivocado, “erro do tabelionato”. As festividades de aniversário, recorda, sempre
foram realizadas por seus familiares no dia 12 de outubro. Por via das dúvidas, deixo as duas datas aqui
expressas.
3 PEQUENOS ESCRITOS SOBRE A INFÂNCIA, JUVENTUDE E MUDANÇAS
PERCEPTIVAS DE ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE

Ai, se a humanidade voltasse a


viver em meio a natureza
E respeitar os ciclos naturais
Quem sabe assim a vida
aconteceria em paz
No meio do mato
Com simplicidade
Como no princípio
A origem da vida
A humanidade em sua pura
Essência
E conhecer as plantas
Reconhecer em seu poder
Entidade santa
Poder de cura, nutrição e
Transcendência
Cultivar a consciência[...]4950

Nos volvemos inicialmente ao nascimento de Abrahão no sertão nordestino, bem como


à sua infância e inserção no processo de escolarização. Buscamos trafegar pelas cidades de
suas vivências, ou, arriscamos dizer, pelos espaços de suas memórias, sendo eles, Iguatu,
Fortaleza e Teresina, apontando também seu encontro provavelmente transcendental, como
nos versos da canção em epígrafe - “No meio do mato” -, com a planta Cannabis sativa, além
de tratar brevemente do seu processo de formação profissional e universitária, de quando se
fez advogado até sua transmutação em artesão, designer e artista plástico do buriti.

3.1 Do nascimento de um sertanejo em Iguatu, Ceará, e de sua inserção no universo


escolar

12 de outubro de 195351. Dia de Nossa Senhora Aparecida, segundo o calendário


litúrgico católico. Dia das crianças, segundo o mercado contemporâneo. Ocorreu tal
nascimento especificamente no sítio Barra do Trussu, assim chamado por localizar-se no
ponto onde o rio Jaguaribe - na língua dos indígenas, “rio das onças”52 -, encontra-se com o rio
Trussu, propiciando tal cenário boas terras para a agricultura, dadas serem as “barras” áreas de
deposição dos rios, sendo esse o reduto da família Cavalcante na região interiorana de Iguatu.

49 NOGUEIRA, A. Iguatu: Memória sócio-histórico-econômica. 2 ed. Fortaleza: [s. n.], 1985.


50 SERVIÇO DE REGISTRO CIVIL E NOTAS (BRASIL). Certidão de Nascimento de Abrahão Honório
Cavalcante. 1° Ofício. SILVA, Vanda Alves (Oficial registrador). Iguatu, CE.
51 POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.5, n.10, 1992.
52 BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
61
Idem, op. cit.
Eram 23 horas e 30 minutos53 quando Maria Coelho de Lucena, mais chamada de
“Lourdinha” por seus familiares, deu à luz àquele que talvez tenha sido um bebê grande e
corado, com o auxílio de uma das duas únicas parteiras da cidade à época, conhecida essa
última como Mãe Olga, uma senhora de olhos claros. Era o seu nono filho com o agricultor
Francisco Euclides Cavalcante, e os pais acharam de chamar o recém-nascido de Abrahão
Honório
Cavalcante, e assim esse foi o único dos filhos a levar no nome o “Honório” em homenagem à
família de seu pai. No céu talvez não houvesse lua, dado o período do mês. Mas é provável
que estivesse pontilhado de muitas estrelas.
Seria praticamente impossível acessar essas informações acima colocadas, não
fosse a Certidão de Nascimento do personagem, somada ao que Michael Pollak chama, em
relevante contribuição dada na forma do artigo Memória e Identidade Social, de “memória
quase que herdada”54. Seguidor crítico de Maurice Halbwachs, sociólogo que realizou
pertinentes reflexões acerca da relação entre memória e identidade nacional - especialmente
em obra lançada por volta de 1950, chamada A memória coletiva -, Pollak encontrou aberturas
no pensamento “halbwachiano” que o permitiram entender a memória como um fenômeno
que se apresenta sob diversas formas, para além do binômio “individual” e “coletivo”.
A memória se comporia, na perspectiva de Pollak, por três elementos:
“acontecimentos”, vividos pessoalmente ou “por tabela”, somando-se aí aqueles que
ocorreram em outro espaço – tempo, mas que, por se fazerem tão presentes na socialização
política e histórica, fundem-se na memória individual e coletiva. Incluindo aí “pessoas” e
“lugares”, seguindo o mesmo esquema supracitado. Sugere ainda a existência de uma
“memória quase que herdada”, importante colaboradora da identidade a nível individual e
coletivo; sendo ela projetada, transferida, socializada nas relações familiares, podendo resistir
por séculos entre esses grupos informais. Nesse sentido Goethe, apud Ecléa Bosi 55, afirma:
“Quando queremos nos recordar do que nos aconteceu nos primeiros tempos de nossa
infância, confundimos seguidamente o que escutamos dos outros com nossas próprias
lembranças”61. E é graças a essa socialização familiar que deixou de herança para Abrahão
fragmentos de memórias do seu nascimento e infância, além de histórias sobre como sua
família se formou, que podemos entrever o cenário dessa época e de outra um pouco mais
recuada no espaço – tempo do sujeito estudado, demostrando o curioso fenômeno da

53 LIMA, Á. de M. A geografia histórica de Iguatu-CE: uma análise da cultura algodoeira de 1920 a 1980.
(Dissertação do Mestrado Acadêmico em Geografia). Universidade Estadual do Ceará, Centro de Ciências e Tecnologia.
Fortaleza, 2011.
54 INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL DAS CIDADES DO CEARÁ (IDECI).
Conhecendo o Município: Iguatu. Ceará: Secretaria das cidades. 2015.
55 INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL DAS CIDADES DO CEARÁ (IDECI).
Conhecendo o Município: Iguatu. Ceará: Secretaria das cidades. 2015.
elasticidade da memória.
Maria Coelho de Lucena, mãe de Abrahão Honório Cavalcante, era a filha mais
velha dentre os seis rebentos nascidos da união dos agricultores Eupídio Salviano e Francisca
Benvinda, tendo eles algumas posses de terras onde cultivavam produtos como feijão, milho e
arroz, como era de costume naquela região. Já Francisco Euclides Cavalcante, pai de Abrahão,
era o quinto dos filhos nascidos do casamento dos também agricultores e proprietários de
terras José Honório Cavalcante e Maria Amélia.

Os pais de Abrahão se conheceram na casa de um tio do senhor Francisco Euclides,


conhecido esse tio apenas como Chico Honório. Casando com uma prima de primeiro grau de
Maria Lucena, de nome Marieta Coelho, passou a receber em sua próspera fazenda as
agradáveis visitas das tias e primas da esposa. Os sobrinhos, animados com a beleza das
moças Coelho de Lucena, conhecidas não só pelo belo porte físico, como também pela
irrepreensível educação, as cortejaram, e o casamento que veio a se efetivar foi o dos pais de
Abrahão, do qual nasceram, na ordem que se segue:
Eupídio Cavalcante, que viria a se tornar posteriormente bioquímico e prefeito da
cidade de Iguatu; Amélia e Marluce Cavalcante, normalistas; Carlos Cavalcante, químico;
Paulo Cavalcante, músico; José Bartolomeu Cavalcante, economista; José Ronaldo
Cavalcante, comerciante; Abrahão Honório Cavalcante, advogado, artesão, designer e artista
plástico, e último dos “Honórios” de Iguatu; Catarina Cavalcante, funcionária pública, e
Euclides Cavalcante, que infelizmente veio a falecer com apenas um ano e oito meses, fato
que fez com que os irmãos e tios de Abrahão o passassem a chamar de “Capitão Çula”, por ter
se tornado novamente o “caçula” (sabidamente, irmão mais novo) dos meninos, sendo “Çula”
seu apelido até hoje, entre seus familiares.
Abrahão ao que parece teve uma infância saudável de menino sertanejo, entendendo
ser o sertanejo nesse contexto aquele que nasce em territórios não-litorâneos, denominados
anteriormente de “sertões”. Assim que nascera, toda a família passou a residir na zona central
de Iguatu, porém, estavam sempre no sítio da Barra, cuidando e apreciando a natureza da
propriedade, em deleitosos banhos no rio Acaraú. O pai, Euclides, plantava junto aos outros
irmãos Cavalcante milho, feijão e arroz, para o abastecimento de suas famílias, e também das
criações animais por eles mantidas. Para obtenção de lucros, vendiam os excedentes dessas
produções, e plantavam ainda o algodão, produto forte na economia iguatuense do período.
Ainda para aquisição de lucro, possuía o pai de Abrahão cabeças de gado, especialmente de
corte, com os quais abastecia seu açougue localizado próximo ao centro comercial de Iguatu.
Gado leiteiro também havia, fornecendo leite tanto para consumo próprio, seja ele puramente
fervido, ou ainda por meio de coalhadas, natas, etc., quanto para a venda. Os queijos
preferiam comprar de parentes próximos, que mantinham fabricação constante desse produto.
As formas de manutenção do núcleo familiar de onde provém Abrahão Honório
Cavalcante, baseadas no binômio algodão e gado, se inscrevem em um quadro mais geral, no
caso, na economia de Iguatu naquele período. Nesse sentido, e ainda pela necessidade de
explicitar em que contexto nasce e cresce nosso personagem, delinearemos aqui breve quadro
do munícipio de Iguatu, cidade por muito tempo considerada, segundo a bibliografia
consultada, verdadeira capital do centro-Sul do Ceará, dado seu desenvolvimento
econômico56.
O padre João de Matos Serra, prefeito das missões, percorreu no ano de 1707 a região
habitada pelos bravos indígenas da tribo Quixelô, visitando passageiramente as terras em que
se acha atualmente localizado o município de Iguatu. Travaram-se posteriormente longas lutas
entre colonizadores e nativos, que tiveram como consequências a dizimação da tribo e o
aldeamento dos Quixelôs restantes, se dando esse num sítio próximo a confluência do rio
Jaguaribe com o rio Trussu. Era ainda nesses primórdios chamada tal localidade de “Ribeira
dos Quixelôs”. O aldeamento, depois conhecido como Venda, passou a ser identificado pelo
nome de Telha, em virtude da configuração convexa de suas terras, que convergiam para o rio
Trussu. Os colonizadores, percebendo ser aquela uma área de deposição dos rios, e logo,
muito propícia à prática agrícola e pecuária, logo transferiram seus ranchos de Icó para o novo
sítio, que posteriormente tornou-se povoação, virando-se em povoado, tomando esse
rapidamente aspecto de pequena vila57, ascendendo enfim à condição de cidade.
Telha, povoado antes pertencente à vila de Icó, foi elevada à condição de cidade pela
Lei Provincial nº 1612, de 21 de agosto de 1874. Teve depois seu nome mudado para Iguatu
através da Lei n° 2.035, de 20 de outubro do ano de 1883, como nos informa pesquisa
realizada pelo Instituto de Desenvolvimento Institucional das Cidades do Ceará, aludindo
ainda essa denominação à origem indígena, significando "água boa" ou "rio bom" / lagoa,
sendo ig ou i = água; e catu = bom, referindo-se também à grande lagoa, a maior do Ceará,
situada na parte leste daquela cidade58. O gentílico para quem nasce em Iguatu é iguatuense. O
clima do município fica entre o semiárido e o tropical quente, e o período onde lá ocorrem as
chuvas é entre janeiro e abril. O relevo é composto por depressões sertanejas. A vegetação é
aquela típica da caatinga, com arbustos densos59. Não à toa, portanto, quando ao falar de seus

56 Idem, ibidem.
57 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
58 LIMA, Á. de M. A geografia histórica de Iguatu-CE: uma análise da cultura algodoeira de 1920 a 1980.
(Dissertação do Mestrado Acadêmico em Geografia). Universidade Estadual do Ceará, Centro de Ciências e Tecnologia.
Fortaleza, 2011.
59 LIMA, Á. de M. A geografia histórica de Iguatu-CE: uma análise da cultura algodoeira de 1920 a
1980. (Dissertação do Mestrado Acadêmico em Geografia). Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Ciências e Tecnologia. Fortaleza, 2011. 69 Idem, ibidem.
contatos com os vegetais, o entrevistado nos diz: “[...]Eu sou um menino nascido no sertão, na
caatinga né, e sempre tive muito contato com todo tipo de vegetal”60.
O geografo Lima61 atribui o papel de elementos primordiais para a fase inicial de
povoamento e consolidação territorial da futura Iguatu tanto a pecuária, base da economia,
como a política de concessão de sesmarias pela Coroa portuguesa, e ainda a cultura cristã
inserida na região com o processo de catequese imposto aos indígenas. Indica ainda que, em
meados do século XIX, a atividade algodoeira já se expandia pelo território brasileiro e
cearense, para satisfazer a demanda do mercado externo europeu. Iguatu, sob a denominação
de Telha e ainda vinculada à Icó - essa uma das primeiras e mais importantes vilas criadas no
Ceará e que se originou de um entreposto comercial, de início decorrente da pecuária, e depois
da atividade algodoeira -, foi alcançada por essas formas econômicas gradualmente. Ainda
como Telha, no século XIX, teve como motor principal da economia a pecuária, tendo uma
agricultura voltada especialmente à subsistência. Apenas com o início do século XX, já
enquanto cidade, é que se vê Iguatu despontar como produtora de algodão, mantendo-se nessa
posição até o início da década de 1980.
De acordo ainda com Átila Lima, que realizou estudo de cunho geográfico à cultura
algodoeira cearense, o algodão dessa região seria dotado de algumas particularidades quando
em relação ao produzido no restante do país. Foi o produto capaz de gerar a acumulação de
capital necessário à posterior modernização do estado, bem como da capital, onde se
instalaram diversas fábricas em que se beneficiava o algodão produzido no interior. Ou seja, a
atividade algodoeira transformou não só o município, como todo o estado cearense. Adaptado
ao clima semiárido, a malvácea requeria pouca água para se produzir nessa região, sendo
possível, segundo o autor, identificar diversas espécies em Iguatu, como o “mocó”, ou
“arbóreo”, levado do Rio Grande do Norte para aquele município e bastante difundido; o
“herbáceo", menos recorrente por necessitar de mais umidade, se apresentando nas várzeas; e
o “verdão”, híbrido de várias espécies, como tantos outros que surgiram ao longo do século
XX. O cultivo destes ocorria por tradição em consórcio com as culturas do milho e do feijão 62,
e a família Cavalcante também assim o fazia, plantando diversos tipos, a depender das
condições de chuva e do período do ano, posto que o algodão não brota todo de uma só vez.
O núcleo familiar Cavalcante vendia o produto bruto proveniente de suas terras, por
assim dizer, apenas colhido e ensacado, para uma usina de beneficiamento instalada em Iguatu
na década de 1940, chamada Companhia Industrial de Algodão e Óleos – CIDAO, que
60 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
61 SORLIN, P. Indispensáveis e enganosas, as imagens, testemunhas da História. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994.
62 SORLIN, P. Indispensáveis e enganosas, as imagens, testemunhas da História. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994.
“[...]situava-se na Rua Coronel José Adolfo cujas instalações estão sendo derrubadas para a
construção de uma cidade universitária por parte do governo do Estado em conjunto com a
prefeitura”69. Como a dissertação de Lima foi defendida em 2011, aonde colhemos essa
afirmação, cremos que, atualmente, as instalações da antiga CIDAO já foram demolidas,
dando espaço a outras organizações urbanas.
Mas nem só de algodão viviam os Cavalcante, em especial aqueles mantidos pelo
senhor Francisco Euclides, um apreciador do gado, que era capaz de identificar a quantos
quilos uma criação bovina podia chegar apenas no olhar, segundo afirma Abrahão. Essas
capacidades foram presumivelmente desenvolvidas no traquejo constante das atividades
enquanto dono e trabalhador de açougue, funções pelo pai do biografado desenvolvidas.
Maria Coelho, por sua vez, era hábil cozinheira, sabendo executar diversos pratos com a
variedade de carnes trazidas constantemente pelo marido. Abrahão nos conta ser sua mãe tão
famosa pelas habilidades culinárias que, raro era o domingo onde a casa em que moravam no
Iguatu não estivesse repleta de parentes, dispostos a saborear as delícias por ela preparadas. A
admiração chegava ao ponto, conta, de seus vizinhos já em Fortaleza pedirem para “trocar
pratos” por eles feitos pelas comidas por Maria Coelho produzidas.
Era uma alimentação onde a bisteca acompanhada do arroz de leite, o cuscuz de milho
com café e leite, as tapiocas fininhas com os chás de canela, os queijos assados na companhia
do café, os “caldos da caridade”, feitos de ovo e farinha, além desses, os pratos de caça, como
os fritos feitos de “avoante”, por exemplo, sendo esse pássaro da região, para citar só os que
pude anotar em conversas informais com o biografado, não podiam faltar. Podemos então crer
que as crianças geradas pelo par Euclides e Lourdinha foram bem nutridas.
Observando que, falar dos hábitos alimentares de um indivíduo não representa assunto
que fuja do campo da curiosidade histórica, constituindo-se antes como uma dimensão mais
ligada ao cotidiano, aos costumes e tradições, sendo a comida um dado da materialidade,
também a transmutar-se no tempo. Basta recordarmos serem nessa época os enlatados aqueles
fabricados pela empresa Bordon, que oferecia quitutes, sardinhas, quem sabe até mesmo
feijoadas; no entanto, a aceitação desses produtos se fez lentamente por aquela sociedade
produtora da maior parte do seu próprio alimento. Ao ser indagado em entrevista sobre como
eram seus pais, Abrahão afirma:

É, o meu pai e minha mãe eram duas pessoas fantásticas, ótimas, mas assim, muito
rigorosos, era uma coisa da época. Os pais eram rigorosos com os filhos né, na
disciplina, nos horários, nas coisas, tinha todo um amor, uma fraternidade, mas ao
mesmo tempo tinha toda uma cobrança de posicionamento, de educação, de estudo,
de comportamento, entende. E, dentro de uma visão bem ortodoxa. Religiosa e tudo
mais. Era meio difícil.63
63 MAUAD, A. M. Através da imagem: Fotografia e História Interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°. 2,
1996.
Nos conta assim de um aspecto referente às formas de pais e filhos se relacionaram,
também essas em constantes transformações ao longo dos tempos, perpassadas como são por
rupturas e permanências. Vale colocar: mesmo apontando o rigor dos pais para com a criação
e educação dos filhos, recorda Abrahão ser a mãe, exigente em relação à forma de se portar da
prole, uma mulher diferente. Vestia-se diferente, com elegância para uma mulher do campo, e
cozinhava diferente, sempre elaborando pratos cheios de novidades. Atribui essas
características às leituras que a mesma fazia da revista Capricho, sendo essa voltada para um
público feminino jovem, de moças casadoiras ou já casadas, aonde se podiam encontrar dicas
sobre moda, organização do lar, receitas culinárias e a respeito de comportamento. Geralmente
essas eram compradas em bancas de jornal da cidade de Iguatu, janela por onde
provavelmente a mãe de Abrahão entrevia um mundo amplo e cheio de novidades.
Pensando na possibilidade do uso de fontes fotográficas, nos voltamos para as
considerações de Pierre Sorlin64 a respeito desses registros. O pesquisador aponta ser a prática
humana de produzir imagens bastante antiga, persistindo por um longo período o caráter
alegórico dessas criações, que nasciam das mãos e da vontade humana. Contudo, com o
surgimento da imagem analógica, sendo essa produzida por uma mecânica e certo número de
ordens, se constituindo como um filtro entre quem fotografa e o que quer representar, o que se
tem em larga escala atualmente é o reflexo achatado e invertido do humano, em detrimento
das alegorias. Porém, a despeito dessas distorções que levam Sorlin a atribuir às imagens o
adjetivo de “enganosas”, a imagem é vista por ele como fonte da própria história, sendo
indispensável absorvê-la no ato de escrever história, quando uma chance assim se apresentar65.
Nesse sentido, leiamos a seguir, nos dizeres de Ana Maria Mauad 66, para quem a
imagem se apresenta enquanto texto de linguagem visual, uma fotografia (a única a que pude
ter acesso quando procurava fontes sobre a infância do ainda menino Abrahão), feita
aproximadamente em 1958 na cidade de Iguatu, na residência onde a família estava então
instalada. Fui informada de ter sido tal fotografia feita pelas lentes de um fotografo ambulante,
conhecido por aquelas paragens como “lambe-lambe”. Observemos o todo da cena:

64 MAUAD, A. M. Através da imagem: Fotografia e História Interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°. 2,
1996.
65 ARTIÈRES, P. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.

66 QUEIROZ, T. Expressões como essa foram colhidas mediante escuta e anotação no decorrer das aulas de
História e Memória, ministradas pela professora citada no segundo semestre de 2017.
Fotografia 1: Parte da família Cavalcante, em 1958. Fonte: Acervo privado de Nerthan Coelho.
Da esquerda para direita, aparecem nesse suporte de imagem Paulo Cavalcante; Maria
Coelho de Lucena, com Euclides Cavalcante no colo; ao seu lado, Abrahão Honório
Cavalcante (de conjunto de camisa e calção listrados, o único sem sapatos, de pés no chão!);
Catarina Cavalcante; Francisco Euclides Cavalcante, com as mãos levemente apoiadas nos
ombros de Catarina; José Bartolomeu Cavalcante e José Ronaldo Cavalcante. Os filhos mais
velhos (Eupídio, Amélia, Marluce e Carlos Cavalcante) não aparecem na imagem. Teçamos
algumas suposições, tendo por base inclusive os esclarecimentos que Abrahão procurou nos
prestar: talvez os irmãos mais velhos estivessem na escola, e se desmonta aí nossa ideia de
que talvez fosse domingo, o que abre espaço para especular se, de fato, as vestimentas
escolhidas para essa imagem não estivessem aí empunhadas por ser uma ocasião de se
registrar e monumentalizar o grupo familiar.
Recorremos aí a Mauad em seu artigo Através da Imagem: Fotografia e História
Interfaces, onde a mesma defende ser a fotografia fonte para o conhecimento histórico,
enquanto “imagem – documento” e mesmo “imagem – monumento”, informando e
conformando uma visão determinada de mundo67. Tratando-se de uma fotografia veiculada no
álbum de família, com leitores geralmente ligados àquele grupo afetivo, se faz forte a
possibilidade de se inscrever esse registro no que Philippe Artières chamou de “memória
oficial da família”68, sendo presumivelmente um registro feito para ficar, ajudando a moldar a
representação do grupo familiar que se quis perpetuar.
O sol parecia entrar pelo lado esquerdo da cena, e era esse espaço espécie de terraço da
casa onde morava a família em Iguatu. Observemos a elegância da mãe de Abrahão, de
vestido de bela estampa e sapatos branquíssimos. Até a criança em seu colo está de sapatos e
meias. Catarina Cavalcante aparece também com mimosíssimo laço na cabeça. O pai, bem
como os meninos, traja roupas claras, aparentemente bem limpas. Por que só Abrahão aparece
descalço? Se todos aparecem de sapatos e meias, dificilmente seria pela ausência de peças
desse tipo. O mesmo coloca que, talvez, estivesse com o “dedão” do pé machucado, dadas as
traquinagens, que não devem ter sido poucas pois, em criança, nos relata, era feito todo
menino muito ativo e saudável: como diz adágio popular, “dava nó em pingo d’água”.
Relata ainda que não recordava de forma alguma dessa imagem, que nos foi cedida por
um primo materno seu, de nome Nerthan de Lucena, a quem recorremos após sermos
informados de que o mesmo guardava alguns registros como esse, servindo tal imagem de

“cabide da memória”69, burlando o esquecimento. Nosso entrevistado diz não recordar da


imagem, apenas da roupa que estava vestindo, sendo tal conjuntinho composto de camisa de
botão e calção listrado de branco com magenta, composição com a qual ia para várias
sociabilidades de sua cidade. Fazia parte de seu guarda-roupa público, digamos assim. Aquele
de que se lançava mão para ir à missa aos domingos. Vê-se pelo trato dos meninos que eram
crianças bem cuidadas e, quase que certamente, de família com certo poder aquisitivo. Talvez
não fossem abastados, mas viviam confortavelmente com os frutos do trabalho do progenitor.
Em busca incessante por retomar caracteres afetivos ou perceptivos, por assim dizer,
das lembranças de infância por Abrahão, indagamos o que ouviam, ou se ouviam algum tipo
de música, ou ainda como se divertiam os seus em família. Acreditamos, tomando por base as
palavras do filósofo Deleuze, ser a música forma de arte capaz de nos criar afetos, de nos
levar para potências além de nós. É como uma espécie de “lançadora de afetos”, tornando
audíveis forças inaudíveis70. Ou ainda como coloca Ecléa Bosi, “[...]as lembranças estão

67 DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição de vídeo realizada por Claire Parnet, para fins
exclusivamente didáticos, em Paris, 1988.
68 BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
79
APOLINÁRIO, M. R. Projeto Araribá: História. 4° ed., São Paulo: Editora Moderna, 2014.
69 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
70 SEIXAS, J. A. de. Os tempos da memória: (Des) continuidade e projeção. Uma reflexão (in) atual para a
História?. Projeto História, São Paulo, 2002.
povoadas de sons[...]”71. Ao ser perguntado sobre música, citou imediatamente Cesária Évora,
com sua envolvente canção “Besame mucho” que, para o biografado, o faz lembrar muito de
seus pais, posto que apreciavam deveras tal composição. Possuíam rádio em casa, lembrando
que desde os anos de 1930 a 1940 tal aparelho, chegado ao Brasil oficialmente em 1922, tinha
se tornado um produto mais acessível à população, fazendo-se muito presente no cotidiano de
muitos brasileiros de diversas regiões 79, inclusive no lar da família de Abrahão. Outro artista
bastante ouvido foi o lírico boêmio Nelson Gonçalves, o qual foi assistido por toda a família
de Abrahão quando em show realizado na cidade de Iguatu. Não pude confirmar esse dado,
mas fica assim apontado.
Sobre as sociabilidades, as principais eram aquelas na forma dos festejos da Igreja
Católica, quando todos iam à praça da Matriz de Iguatu participar das liturgias e brincadeiras.
Para as crianças, principalmente os meninos, além dos carrinhos de madeira confeccionados
em marcenaria localizada defronte à casa onde a família Cavalcante residia, eram recorrentes
as brincadeiras em grupo, como quando fingiam ser índios, ou as caçadas com baladeiras, as
pequenas pescarias, os jogos com bola, ou ainda os passeios de bicicleta e o banho nas ainda
limpas lagoas do município, que o entrevistado recorda ao falar da preservação dos buritizais.

Vejamos:

[...]A preservação dos buritizais, dos mananciais de água, que os buritis atraem pra
as suas regiões, então tudo isso é uma coisa que já vem da minha infância, eu nasci
no meio da natureza, então eu sei amar aquilo. A tomar banho de rio, a tomar banho
de lagoa, belas lagoas, tudo limpo, tudo maravilhoso, então isso você traz dentro de
si até hoje72.

Pensando ser a memória, ação, sendo capaz de presentificar o passado no presente,


projetando-o ao futuro, tal como nos ensina Jacy Seixas 73, observamos essa fala de Abrahão se
desdobrar em vários planos de tempos. Sentimos ser necessário situar agora nosso
personagem no processo de escolarização. Informamos desde já que o único material que pode
nos dizer acerca da vida escolar do biografado, além das falas em entrevista onde o mesmo se
refere ao assunto, é a publicação de livro intitulado Colégio Adahil Barreto: cinquenta anos
de educação, 1955-200574, de Raimundo Felipe Sobrinho. Tal publicação se deu no contexto

71 SOBRINHO, R. F. (Org.). Colégio Adahil Barreto: cinquenta anos de educação. Fortaleza: Editora Premius,
2006.
72 SOBRINHO, R. F. (Org.). Colégio Adahil Barreto: cinquenta anos de educação. Fortaleza: Editora Premius,
2006.
73 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
74 BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 86
GOVERNO DO ESTADO (CEARÁ). Perfil do Município de Fortaleza: Análise do acesso e da qualidade da
Atenção Integral à Saúde da população LGBT no Sistema Único de Saúde. Fortaleza: NESP, 2016.
do aniversário do referido colégio, por iniciativa de Raimundo Felipe, padrinho de batismo de
Abrahão, como forma de prestigiar todos os que colaboraram ou puderam usufruir do ensino
lá ministrado, contendo essa obra diversos depoimentos de ex-alunos, inclusive de irmãos e
primos do nosso personagem, que desde cedo foi estudante do Colégio Adahil Barreto,
dirigido pelo cirurgiãodentista por formação Dr. Raimundo Felipe. Começou os estudos nessa
instituição ainda no jardim da infância, em 1962, e de lá só saiu quando findou o ensino
primário, em 1968.

Em 1953, ano do nascimento de Abrahão, a cidade de Iguatu se preparava para


comemorar o primeiro centenário de emancipação política de Icó. Havia na cidade a Escola
Normal Rural Santana, onde estudava a juventude feminina. Faltava, entretanto, um ginásio
para rapazes. Em 8 de fevereiro de 1949, o Dr. Mendonça Neto, nessa época prefeito de
Iguatu, comprou o terreno aonde se assentaria posteriormente o prédio do Ginásio da cidade.
A planta da escola foi enviada pelo Ministério da Educação, por intermédio do deputado
federal Paulo Sarasate, o mesmo que depois conseguiu recursos para a edificação da obra.
Algumas palavras sobre o Colégio Adahil Barreto: ao fim da tarde do dia 24 de fevereiro de
1955, profissionais de vários segmentos da sociedade iguatuense se uniram, compondo um
corpo docente sem experiência, mas com boa preparação universitária, e muito provavelmente
bastante empenhados em sua tarefa de educar, posto que eram voluntários, fundando assim o
primeiro Ginásio de Iguatu para rapazes, onde alunos de diferentes classes sociais puderam ter
acesso ao ensino. Depois, tal instituição tornou-se “Colégio Adahil Barreto”, em homenagem
ao patrono que viabilizou verbas e auxílios para que a iniciativa pudesse frutificar e ter
continuidade. Em 3 de março de 1956, foi inaugurado o prédio aonde funcionaria a escola.

No entanto, até a tomada de posse do diretor Raimundo Felipe Sobrinho, no ano de


1958, algumas dificuldades ainda se interpunham para o excelente funcionamento da dita
escola, principalmente no que se referia às suas instalações, dado que não havia caixa d’água,
nem banheiros. A água do bebedouro era levada no lombo dos jumentos, apanhada que era nas
cacimbas a céu aberto no leito do rio. Não haviam muradas para o prédio, e os animais
pastavam soltos nos seus jardins, mantidos os últimos com certo sacrifício em alguns meses
do ano. Então, ao assumir, algumas medidas do novo diretor foram: inicialmente, tornar o
ginásio misto, podendo dessa forma atender moças e rapazes, sendo essa uma medida que
causou impacto; depois, a construção da caixa d’água, seguida das baterias sanitárias, assim
como do isolamento do prédio por intermédio da alvenaria. Os espaços ociosos tornaram-se
salas de aula, e todo o amplo terreno, localizado no bairro de areias vermelhas chamado
Tabuleiro, repleto de cajus e cajás foi cercado por arame farpado, com a finalidade de evitar
que caminhões retirassem daquele espaço terra para aterros75.

Destacavam-se também nesse colégio as manhãs recreativas, onde as crianças


aproveitavam o “pau de fitas” ou ainda a “corrida do saco”. Isso quando não havia uma sessão
de hipnotismo, ou ainda uma encenação teatral, mais chamada de “drama”. Foi em uma
festividade desse tipo que, vendo vários jovens dançarem, Abrahão sentiu-se impelido a
aprender balé. Mas, cadê a coragem para pedir aos pais? Se a narrativa histórica é um lugar
privilegiado para recuperar a potencialidade perdida, ou mesmo as tensões entre o que ficou e
o imaginado, podemos dizer dessa passagem que a dança ficou no plano dos desejos, como
um possível que poderia ter sido vivenciado, mas que, por razões várias, como a construção de
gênero que determinava / determina como um indivíduo do sexo masculino deve se portar em
nossa sociedade, em especial naquela dos anos 1950 a 1960, no meio rural – urbano, não foi o
que efetivamente se deu. De efetivo, só os galos que Abrahão criava para ver brigarem. É
interessante pois o mesmo relata que, por morar defronte à marcenaria, diversas vezes teve a
oportunidade de acompanhar a produção dos queridíssimos carrinhos de madeira. Chegou
mesmo a tentar reiteradas vezes construir algum. Má lida, não conseguindo jamais algum
sucesso nessas empreitadas. Ninguém se arriscaria a dizer que dali sairia um dia um sensível
artesão, o que nos deixa entrever um tanto do caráter descontínuo e fragmentado da
experiência humana.

E foi nesse ambiente lúdico, porém rigoroso, que Abrahão, assim como quase todos os
seus irmãos, puderam ser instruídos. Foram suas professoras Judith Lopes, Miriam
Cavalcante, Lourdes Alencar, entre outras as quais não pude constatar. Há nesse momento da
vida um traço trágico: o pai falece em 19 de fevereiro de 1966, aos 46 anos de idade, como
pôde nos informar o senhor Eupídio Cavalcante por intermédio de ligação feita pelo senhor
Abrahão.
Após dois anos, ou seja, em 1968, parte Maria Coelho de Lucena com os filhos para
Fortaleza, para morar no bairro Serrinha, região periférica da cidade, em casa com terreno
voltado para os fundos da pequena mata pertencente à base da Força Aérea Brasileira (FAB)
instalada naquela capital. O filho mais velho, Eupídio Cavalcante, já residia na cidade,
estudando Bioquímica. Foi quem inicialmente desdobrou-se para ajudar a mãe e os irmãos
com os frutos de seu trabalho, para que todos continuassem estudando. Logo os outros mais
velhos foram também se empregando, fazendo-se esse muito provavelmente um período cheio
de esforços. Se tornaram então vizinhos de Ilma Coelho, irmã de Maria Coelho, que havia
vendido a propriedade do sítio Barra do Trussu, conservando apenas a casa da cidade de
75 BRUNO, Artur; FARIAS, Airton. Cartilha de Fortaleza: homenagem aos 285 anos da cidade. [s.l.:s.n.] 88
CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1
arquivo, mp3 (47 min.).
Iguatu. Ao ser perguntado se algo marcou sua infância em especial, o entrevistado alude a esse
fato:

O fato foi a mudança. A morte do meu pai, que é um fato muito forte né, eu ainda,
um garoto, e a mudança pra capital né, logo em seguida. Isso realmente é marcante
né, porque é um rompimento...,violento assim, de uma hora pra outra, você ama a
tua cidade, os seus amigos estão ali, os teus animais, a tua escola, e tudo, e de
repente você tem que ir, para um mundo completamente novo, diferente, e isso, é
marcante, entende, na vida de qualquer um; eu acredito76.

Tinha então Abrahão 15 anos de idade. Pelo caráter de ruptura que atribui a esse
momento retido na fala citada, pode ter sido aí o término de sua infância, se buscarmos
precisar um marco. Nesse sentido podemos recorrer a Bosi, para quem o espaço vivenciado
por uma criança é tão penetrado por investimentos de afetos, “[...] que mudar é perder uma
parte de si mesmo; é deixar para trás lembranças que precisam desse ambiente para reviver” 77.
Há ainda a probabilidade dessa ruptura se ter feito em continuidade ao longo da vida, na
forma ainda da apreciação dos ambientes naturais. O fato é que foram de trem à Fortaleza,
desembarcando em Parangaba, e passando a visitar Iguatu apenas quando Abrahão era já mais
independente e fã do Roberto Carlos, estudante do ensino científico. Vamos então à Fortaleza.

3.2 A Fortaleza da juventude de Abrahão Honório Cavalcante

Fortaleza, atual capital do Ceará, surgiu no derredor da Fortaleza de Nossa Senhora da


Assunção, construída pelos batavos sob o nome de “Forte de Schoonemborch”, quando estes
tentaram se instalar na região. Deram-se essas incursões em dois momentos: de 1637 a 1644,
quando um levante indígena destruiu o forte, assim como todos os holandeses presentes; e de
1649 a 1654, onde, após lutas entre iberos e batavos, os primeiros levaram sucesso, alterando
em seguida o nome do Forte. De terras quentes e com poucas chuvas, belas dunas e verde
água do mar, Fortaleza fora elevada à condição de vila em 13 de abril de 172686, através de
Carta Régia de Portugal. O gentílico de quem nasce em Fortaleza é fortalezense.
À primeira vista, quando o Ceará era apenas uma capitania, Fortaleza parecia ter
poucas chances de evoluir. Não detinha grande projeção política, tendo por base de suas
relações econômicas a pecuária, atividade que se fez, no entanto, dinamizadora das tomadas
dos sertões cearenses pelos portugueses no século XVII e começo do século XVIII. Em 1799
é a província do “Siará” (como era grafado) desvinculada de Pernambuco. Foi a pecuária a

76 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
77 Idem, ibidem.
responsável pela estruturação de diversas vilas do Ceará, como Aracati, Camocim, Icó e
Quixeramobim. Até o século XIX, quando a economia cearense passa a girar em torno do
algodão para exportação, a vila de Aracati seria o principal núcleo urbano daquela província,
ainda por meio da produção e comercialização do charque. Em 1823, Dom Pedro I decreta
Ato Régio elevando Fortaleza ao nível de cidade, como forma de reconhecimento pelo apoio
cearense prestado quando da ocasião da Independência do Brasil.
Aproximadamente na segunda metade do século XIX, Fortaleza torna-se,
paulatinamente, principal núcleo urbano, político, econômico e social da província do Ceará,
para o que contribuíram alguns fatores, como o capital proveniente da atividade algodoeira,
dentre outras mais; a centralização pretendida pela monarquia, que tendia a beneficiar as
capitais com obras infraestruturais; a construção das estradas e ferrovias, operando também o
melhoramento das já existentes; e a intensa migração rural-urbana, especialmente em períodos
de severas secas. Recebeu, em 1875, o plano urbanístico do engenheiro pernambucano Adolfo
Herbster, que objetivava disciplinar a expansão citadina por meio do alinhamento das ruas e
da abertura de novas avenidas.
Já a partir do segundo meio do século XX, a cidade alencarina viu seu processo de
expansão e o aumento de sua população em muito se intensificar, ao mesmo tempo em que,
progressivamente, se valorizava sua faixa litorânea, como quando houve a construção da
Avenida Beira Mar, em 1963, com a posterior urbanização da região 78. Aproximadamente à
essa época, o núcleo familiar onde insere-se Abrahão Honório chega à Fortaleza. Ao ser
perguntado sobre como se adaptou às mudanças, principalmente da vida escolar, assim nos
responde:
Inicialmente eu fui estudar num colégio estadual, numa cidade vizinha, que era o
José Barcelos, o nome desse colégio, na cidade de Messejana, que é uma cidade, que
hoje é um bairro. E foi engolida pela metrópole, então, comecei lá[...].88

Como deixa dito em sua fala supracitada, quando na capital do escritor José de Alencar
chegou, prestou o biografado exame de admissão para estudar na Unidade Escolar José
Barcelos, localizada na então cidade cearense de Messejana, onde ingressou para terminar o
curso ginasial. Messejana posteriormente foi absorvida por Fortaleza, quando esta tomou ares
de grande cidade. Com o teste, obteve aprovação, cursando o primeiro ano do ginasial sem
maiores sobressaltos. Assim se deu também com os anos consecutivos, apenas passando por
uma situação aborrecedora na 4° série do ginasial, a qual teve de repetir por ter não tido êxito
na aprendizagem da disciplina de Matemática, ministrada pelo professor de nome Roberto.
Certas sensações parecem se manter vivas na memória com maior facilidade, em especial

78 MINISTÉRIO DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL (BRASIL). Carteira de Trabalho e Previdência


Social de Abrahão Honório Cavalcante. Data de emissão: 19/ 02/ 1972, Ceará.
aquelas não tão agradáveis. Isso pode explicar porque Abrahão, ao relembrar essa passagem,
de pronto recordou-se do nome do professor, que fez de tudo para não o reprovar, segundo nos
garante o mesmo.
Quando no ensino ginasial, uma das maiores diversões do jovem Abrahão era ficar no
zelado terreiro de sua mãe, a cuidar de seus galos de briga, que levava para “competir”
preferencialmente aos fins de semana. Depois de certo tempo, quando mais próximo ao ensino
científico, muito talvez porque já não achasse mais tanta graça assim naquela brincadeira um
tanto sanguinolenta, trocou as brigas de galo pelas tertúlias. Essas eram festas que aconteciam
geralmente em garagens, quintais e salas das casas de outras pessoas jovens, com o
consentimento dos pais, que permitiam tais sociabilidades juvenis, a se desenrolar no período
vespertino, aonde se tocavam músicas lentas e apaixonadas, dançadas a dois.
Seu parceiro infalível nessas pitorescas andanças era o irmão dois anos mais velho que
ele, José Ronaldo Cavalcante, companheiro de diversas aventuras desde a infância, como
quando, contando ainda com José Bartolomeu, capturaram um gato do mato. De certo eram
traquinas, levando presumivelmente dona Lourdes à necessidade de ser criativa nas disciplinas
corretivas postas aos filhos. Já mais próximos da fase adulta, entravam às escondidas no
terreno da base da Força Aérea Brasileira (FAB) em Fortaleza, de acesso proibido aos civis,
para efetuar coletas de mangas e cajus, que chegavam ali a se desperdiçar, isso para fazer
algumas merendas em casa, constituindo-se práticas como essa enquanto resistências
cotidianas micro dimensionadas, nos espaços de folga deixados pelos poderes “dominantes”
aos “dominados”.
Lembremos que estavam aí em meados dos anos de 1970, em pleno Ato Institucional
de número 5 do regime militar, quando houve momentos de muitas tensões por conta da
participação de Eupídio e José Bartolomeu Cavalcante em movimentos intelectuais de
resistência, o que culminou com a prisão dos dois, em data que infelizmente não pude
precisar, por estar além dos limites dessa pesquisa. Menciono esse dado porque Abrahão, ao
ser perguntado sobre as lembranças que tinha do período militar, aludiu diretamente ao
acontecido, chegando a ir o mesmo atrás dos irmãos no 23° Batalhão Civil (BC). Tendo visto
em uma das janelas José Bartolomeu, o que não passou despercebido por um sargento nas
imediações, teve uma arma apontada para a cabeça, até que negasse ter visto qualquer coisa
incomum. Situação, no mínimo, angustiante. No entanto, graças a pessoas próximas, de boas
relações no meio político, os dois jovens foram soltos, para alívio da família, que tratou de
enviá-los imediatamente para Iguatu, aonde as malhas da ditadura se faziam menos presentes.
Quando concluído o ensino ginasial na Unidade Escolar José Barcelos, achou Abrahão
de cursar a Escola Técnica, como diz no trecho de entrevista que se segue:
De lá eu saí pra estudar na Escola Técnica né, prestei aquele, um exame, esse
vestibular que ainda hoje tem pra você entrar lá, e entrei lá onde eu fiz a minha, criei
a minha visão profissional, foi lá. Lá onde eu me profissionalizei né, fiz..., passei uns
quatro, cinco, seis anos dentro da Escola Técnica né. O Ginasial, como a gente
chamava, e aonde me especializei, na questão lá dos conhecimentos da geometria, do
desenho geométrico, entende, da ergonomia, dessa coisa toda. Perfil, essa coisa toda.
Aprendi perspectiva que é o que é mais importante em tudo. Botar uma coisa em
perspectiva.79

Em 1971, Abrahão presta exame de admissão para a Escola Técnica Federal do Ceará,
onde foi admitido para cursar o ensino científico. Nessa instituição, teve a oportunidade de
cursar diversas disciplinas profissionalizantes, devendo escolher, após o término do curso, em
1974, uma área na qual se especializaria. Curioso é que, tal como o mesmo afirma, nessa
oportunidade criou a sua “visão profissional”, em pleno sistema de ensino técnico implantado
com a finalidade de suprir o mercado de mão de obra especializada, dando prosseguimento às
políticas econômicas desenvolvimentistas em curso no país. Havia, pois, um projeto para o
ensino técnico brasileiro. Observemos ainda a ordem em que a escolarização e
profissionalização aparecem na fala do entrevistado. Analisando sua Carteira de Trabalho,
pudemos situar melhor as temporalidades em que ocorreram tais eventos. Parece não ter sido
pequeno o ganho da aprendizagem adquirida em termos de perspectiva, dado a largueza de seu
uso posterior por Abrahão no mundo artesanal. Nesse trecho explica o que se aprendia no
curso de Estradas, eleito por ele como de sua preferência:

Lá, como eu fiz o curso e a minha especialidade era o que eles chamam lá de
Estradas, que é um ramo da engenharia que constrói estradas, linhas de transmissão,
e a minha especialidade era laboratório, a parte laboratorial né, que é estudo de
jazidas, de concreto, de asfalto, pra ser aplicado em estradas e nas obras d’arte, como
a gente chama, que são as pontes, os viadutos, os bueiros, então tinha que ter todo
um conhecimento assim, técnico, e de materiais. Então foi lá na Escola que
aconteceu tudo isso, e depois disso fui trabalhar numa empresa como estagiário,
depois fui contratado, depois passei pra outra, e fui fiscal de obras do Estado do
Ceará, e depois resolvi voltar a estudar e fui pra Universidade[...]80.

Acaba por optar pelo curso de Estradas, com especialização em Mecânica do Solo,
onde aprende, dentre outras coisas, a técnica do desenho geométrico e do uso de materiais.
Após a aquisição desses conhecimentos, trabalha para algumas empresas, como a E.I.T. –
Empresa Industrial Técnica S/A, aonde foi admitido em 24 de maio de 1976, para exercer a
função de auxiliar técnico de laboratório de solo, em Fortaleza. Sai dessa função em 13 de
setembro, retomando as atividades em 01 de novembro, pelo Departamento Autônomo de

79 BLAKE, W. O matrimônio entre o céu e o inferno. [S.l.]: Editora Iluminuras.


80 DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição de vídeo realizada por Claire Parnet, para fins
exclusivamente didáticos, em Paris, 1988.
Estradas de Rodagem (DAER)81, onde trabalhou como Fiscal de Obras.

No ano de 1977, no dia 02 de fevereiro, sai do Departamento de Estradas, sendo


admitido em 09 de agosto do seguinte ano para trabalhar pela CETENCO – ENGENHARIA
S/A, atuando como técnico em estudo de fundação, para a instalação de torre de alta tensão,
na região de Messejana. Permanece nessa empresa até o dia 01 de fevereiro de 1978, quando é
desligado. Logo em seguida, é contratado como técnico pela Secretária para Assuntos
Municipais do Estado do Ceará. Talvez tenha se atentado para as possibilidades trazidas pelos
estudos de nível superior, pois iniciou em seguida o curso de Bacharelado em Direito pela
Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Interessante apontar que, quando entrou para a
graduação, almejava Abrahão ser prefeito de sua cidade natal, Iguatu, segundo pôde
compartilhar. Era sonho possível de se concretizar, dado o espaço ocupado por diversos
familiares atuantes na política iguatuense.

3.3 Abrem-se as portas da percepção: o encontro com a Cannabis sativa

Fotografia 2: Desenhos da planta Cannabis sativa. Fonte: Revista Mente cérebro, n. 242, 2013.
Se as portas da percepção estivessem limpas,
tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito82.

Por volta do ano de 1975 a 1976, quando tinha aproximadamente 23 anos de idade,
encontrou-se Abrahão Honório Cavalcante com a Cannabis sativa (mais conhecida como
cânhamo, maconha ou marijuana), sendo ela a planta que figura na imagem colocada no início
desse tópico, passando o biografado a fazer dela uso moderado. Conheceu-a na ocasião de

81 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
82 MACRAE, E.; SIMÕES, J. A.; Rodas de Fumo: O uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador:
Edufba, 2000.
uma feira agropecuária realizada na região da serra da Batateira, no Crato, onde estava em
companhia de um irmão pouco mais velho e de um amigo dos mesmos, que o apresentaram ao
hábito de fumar a erva. Relata que, logo no primeiro uso, percebeu os efeitos em seu
organismo, passando a utilizar frequentemente a Cannabis, em detrimento do álcool, que
abandonou por não gostar da sensação física e moral da ressaca por ele provocada, preferindo
o provável poder de “transcendência” alcançado com tal planta. Digamos que se deu um
encontro do indivíduo com sua substância psicoativa eleita.

Encontro aqui é entendido segundo as proposições do chamado “filósofo do desejo”,


Gilles Deleuze, que, em Abecedário produzido em 198883, nos fala sobre o que pensa ser de
fato um encontro, defendendo que seriam os encontros com pessoas matéria decepcionante,
preferindo antes o encontro com ideias, ou com coisas que nos levam a ter ideias.
Discorremos sobre essa e outras noções com maior acuidade mais à frente, posto ter sido,
inegavelmente, um belo encontro o de Abrahão com o buriti. No caso da Cannabis também
pode vir a se tratar de um encontro, talvez a um nível inicial de sensibilização, onde as “portas
da percepção” provavelmente se abriram, mostrando o infinito de possibilidades disponíveis à
espécie humana mediante os usos da natureza, tal como nos versos do poeta William Blake em
epígrafe no início desse tópico. Assim supomos tomando por base a seguinte fala, expressa
por nosso biografado:

A Cannabis sativa, né, que foi a primeira planta, assim: plantas sempre tiveram
presentes na minha vida. Eu sou um menino nascido no sertão, na caatinga né, e
sempre tive muito contato com todo tipo de vegetal. A Cannabis, já na minha
adolescência, tive um contato que realmente foi um paradigma pra uma mudança,
naquele exato momento. A partir do momento que fiz o consumo desse vegetal,
partilhei a minha vida com esse vegetal, houve um, assim, do meu ponto de vista,
um crescimento da minha alma, da minha pessoa, da minha sensibilidade para minha
trajetória como um homem a partir dali. Eu deixei de ser um sertanejo pra ser um
homem mais sensível, mais tolerante, mais feminino, digamos assim 84.

Ser mais sensível, nessa perspectiva de Abrahão, é, de certa forma, ser “mais
feminino”, posto que a capacidade de ter sentires numa sociedade sabidamente patriarcalista,
onde os estereótipos do que é “ser mulher” e do “ser homem” permaneceram por significativa
parcela de tempo sedimentados socialmente, é característica que tem sido historicamente
atribuída às mulheres. Porém, nosso entrevistado coloca-se nesse lugar de esfacelamento das
fronteiras entre gêneros, admitindo a esfera da sensibilidade como componente na
representação que produz do seu eu masculino, passando a ver posturas que não fossem

83 SAAD, L. G. Fumo de negro: a criminalização da maconha no Brasil (1890-1932). (Dissertação de


mestrado). Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2013.
84 GONÇALVES, G. A. M.; SCHLICHTING2, CARMEN LÚCIA RUIZ. Efeitos benéficos e maléficos da
Cannabis sativa. Revista Uningá. Vol.20, n.2, 2014. pp.92-97.
semelhantes a essa como uma forma de “atraso”.
Do mesmo modo, alinha a figura do sertanejo a esse modelo onde ser sensível não é
habilidade que tenha espaço social e culturalmente, e, como se vê a partir daí de maneira
distinta, deixa de “ser um sertanejo”. Procura destacar, no entanto, a proximidade que sempre
manteve em relação ao meio natural, possível indicativo de como deseja ser visto, de como
cria sua “bolha imagética” para si e para os outros, como escreve a si mesmo em contato na
realidade, se baseando nas boas relações que buscou traçar com o meio natural. Sente na
Cannabis um potencial como catalisador de mudanças de ordem interna, entendendo-a como
fonte de crescimento e tolerância. Quase como um “portal”, ou mesmo uma “planta
professora”.
Faz-se interessante informar a quem nos lê acerca do quadro sociocultural aonde está
inserida a prática de consumo da Cannabis sativa por parte de Abrahão, destacando de
antemão as características da planta e seus usos tradicionais, para situar na medida dos
possíveis tal fala. Para tanto, nos apoiamos no estudo realizado pelos pesquisadores Edward
MacRae e Júlio Simões, intitulado Rodas de fumo: o uso da maconha entre camadas médias
urbanas85, onde tecem considerações históricas e sociológicas a respeito do consumo desse
psicoativo, que podem vir a enriquecer nossa reflexão; como também na dissertação de Luisa
Saad, Fumo de negro: a criminalização da maconha no Brasil (1890-1932) 86, no qual a
historiadora aborda o processo histórico que culminou na proibição da maconha em terra
brasilis no ano de 1932, estando esse muito relacionado à criminalização das práticas culturais
de grande parte seus usuários, como foi o caso dos cultos afro brasileiros, a exemplo do
candomblé.
A Cannabis é um arbusto, pertencente à família botânica Cannabaceae. Sob esta
denominação coexistem ao menos três espécies diversas entre si, sendo elas a Cannabis
sativa, a C. indica e a C. ruderalis. O que as diferencia são seus hábitos de crescimento,
aspectos morfológicos e, é provável, a quantidade de princípios ativos contidos em cada uma
delas.
Assume tamanhos variados, a depender da espécie, chegando as maiores a crescer cerca de
cinco a sete metros de altura, sendo tal planta adaptável tanto ao deserto quanto às regiões
tropicais.
São os fatores ambientais e genéticos até certo ponto influentes na concentração dos
compostos psicoativos na Cannabis sativa, e somente a planta fêmea dessa espécie,
considerando ser essa uma espécie dioica, produz resina ativa, apesar de tanto a planta-fêmea

85 SAAD, L. G. Fumo de negro: a criminalização da maconha no Brasil (1890-1932). (Dissertação de


mestrado). Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2013.
86 LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Orgs.). Usos & Abusos da história oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
quanto a planta-macho fabricarem canabinóides em quantidades iguais. Já foram
contabilizadas cerca de 400 substâncias químicas contidas na maconha, dentre as quais 60 são
únicas, sendo denominadas canabinóides. A principal substância alteradora da consciência
presente na maconha é o delta – 9- tetra-hidrocanabinol, que teve sua estrutura examinada
pela primeira vez em 1964. A planta produz compostos químicos diversos, e de interesse
médico, tanto a masculina como a feminina, como o THC, por exemplo, excretado pela planta
feminina para proteger-se do sol, servindo para a mesma então como hidratação e herbicida.
Embora ilícita, e causadora de uma significativa porção de efeitos psicoativos, a maconha
demonstra cientificamente ter, entretanto, inegáveis efeitos terapêuticos87.
Saad aponta, tomando por base pesquisas antropológicas e arqueológicas, que a
maconha pode ter sido uma das primeiras plantas a serem cultivadas quando a humanidade
passou a se sedentarizar em terras férteis para a agricultura. “Dela, nada se perdia: o óleo
extraído das sementes, a fibra oriunda dos talos e a psicoatividade encontrada nas flores foram
elementos aproveitados por numerosas sociedades ao longo dos tempos”88. Se as origens da
Cannabis sativa são, como parecem ser, tão recuadas no tempo, pode-se crer que, de recente,
só as proibições.
Nesse sentido, podemos recuperar as considerações do historiador Giovanni Lévi a
respeito da biografia ser um gênero historiográfico que permite a descrição das normas
ladeada com seu funcionamento efetivo, aprofundando a análise das incoerências estruturais
entre as próprias normas, incoerências essas que possibilitam a multiplicidade e a diversidade
das práticas, ou seja, as práticas só são múltiplas por existirem incoerências dentro do próprio
sistema normativo. Dessa forma, por mais coercitivo que seja o poder a pressionar os sujeitos,
sempre há margem para as manobras por parte dos dominados 89. A mudança social quedaria
nesses pequenos lances microscópicos, que ao longo do tempo dão ímpeto a transformações
mais profundas no todo do tecido social. Apresentando as normas que criminalizam a
Cannabis incoerências fundantes, abre-se espaço para práticas como as perpetradas por
Abrahão, que burlam a regra.
Segundo Elisaldo Araújo Carlini, em artigo A história da maconha no Brasil, “[...] a
história do Brasil está intimamente ligada à planta Cannabis sativa L., desde a chegada à nova
terra das primeiras caravelas portuguesas em 1500”90. E isso se daria porque as velas e
cordames das ditas embarcações eram fabricadas a partir da fibra de cânhamo, outro nome da
planta. Afirma ainda que “maconha” em português é, na verdade, anagrama com a palavra

87 CARLINI, E. A história da maconha no Brasil. In: CARLINI, E. (Org.) Cannabis sativa L. e substâncias canabinóides
em medicina. São Paulo: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, 2005.
88 Idem, ibidem.
89 FREYRE, G. Nordeste. São Paulo: Global, 2004.
90 MACRAE, E.; SIMÕES, J. A.; Rodas de Fumo: O uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador:
Edufba, 2000.
“cânhamo”. Atestam alguns autores brasileiros ter vindo o “bangue”, como também é
chamado, junto aos escravizados africanos. Mas não há de fato consenso acerca desse ponto,
havendo concordância apenas sobre o fato de ser a Cannabis uma planta exótica, ou seja,
vinda de fora do continente, adaptando-se com facilidade em terras de todo o país.
Tanto assim é que, no século XVIII, a Coroa Portuguesa buscou incentivar o cultivo da
erva, mandando vir de Portugal “dezesseis sacas com 39 alqueires de semente de maconha” 91,
com o objetivo de incrementar a diversidade na agricultura, em plena luta por manter suas
possessões imperiais. Com o passar do tempo, disseminou-se seu uso entre os escravizados,
inclusive entre os indígenas, que passaram a cultivá-la. Aparentemente, o hábito era tolerado
pelos proprietários dos canaviais, segundo aponta Gilberto Freyre, que dizia ser corriqueiro se
deparar com “[...]manchas escuras de tabaco ou maconha entre o verde-claro dos canaviais” 92,
sendo comumente o tabaco vício “elegante”, ou seja, das classes aristocráticas, e a maconha
de uso dos trabalhadores.
No século XX, o uso da Cannabis se difundiu pelo Norte e Nordeste, entre os povos
nativos, os habitantes da zona rural e segmentos urbanos populares e marginalizados. Entre
grupos negros e indígenas do Nordeste, a maconha era utilizada enquanto erva medicinal,
estimulante no trabalho físico e nas pescarias, e como agente catalisador das rodas de
fumantes que se reuniam nos fins da tarde 93. Saad coloca que o primeiro ato legal de proibição
da venda e uso da maconha no mundo ocidental foi a determinação, em 1830, pela Câmara
Municipal do Rio de Janeiro, de penalizar quem fosse de encontro a tal postura. Atribui essa
restrição a questões políticas e outras, ligadas à institucionalização da medicina, controle da
prescrição de medicamentos e a regulamentação estatal das drogas; fatores que prepararam o
terreno para a proibição realizada em 193294.

Foi também o período onde se cristalizou a associação “pobre-preto-


maconheiromarginal-bandido”, entre as autoridades médicas e policiais do país, estendendo-se
tal visão posteriormente ao todo social, que a absorveu por meio da imprensa. O discurso
jornalístico, em especial o dos anos de 1950, moldou verdadeiras representações acerca da
suposta índole do “maconheiro”, visto nesse contexto como “desordeiro”, ou invasor do
espaço urbano. Foram imagens que nortearam o modo de prevenção, instrução e mesmo a
surpresa dos familiares ante as novas gerações pois, com o advento dos anos de 1960, operou-

91 SAAD, L. G. Fumo de negro: a criminalização da maconha no Brasil (1890-1932). (Dissertação de mestrado).


Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2013.
92 MACRAE, E.; SIMÕES, J. A.; Rodas de Fumo: O uso da maconha entre camadas médias urbanas.
Salvador: Edufba, 2000.
93 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
94 MACRAE, E.; SIMÕES, J. A.; Rodas de Fumo: O uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador:
Edufba, 2000.
se uma força reivindicatória sobre o simbolismo no entorno da maconha por quase todo o
Ocidente, incluindo o “jovem” em um mundo antes concebido apenas aos bandidos
denunciados pelos meios da imprensa.
Dessa forma, nessa década: “[...]o costume de fumar maconha deixou de ser apanágio das
camadas pobres e marginalizadas e ganhou amplitude entre segmentos de classe média
urbana”. Nos anos da implantação do regime militar autoritário brasileiro, o hábito de fumar
maconha passou a conotar um estilo alternativo de vida, forma de expressar pensamentos e
sensações de liberdade, praticada amplamente pelos grupos de jovens95.
Ao ser indagado a respeito desse período da história recente do país, Abrahão coloca:

É, os anos 70 foram uns anos assim, onde os conservadores, a bruxa fumou. Onde a
juventude foi às ruas e dançou, e requebrou, e fumou, e outros experimentos, e se
liberou sexualmente, e politicamente. Foi um momento grandioso na Terra. Foi um
momento grandioso, essa década de 70, alguns anos do 80. Realmente foi um grande
momento do planeta em termos humanos96.

Tal atitude contestatória não passou despercebida aos militares, que responderam ao
que reconheceram ser uma forma de rebeldia ao sistema imposto com a edição das leis
“antitóxicas”, onde englobaram a maconha. Com o advento do ano de 1968, revogaram um
artigo do Código Penal, decidindo por aplicar penas iguais a “traficantes” e “usuários”,
situação que só se transformou em 1976, quando voltou-se a exigir o “laudo toxicológico”
para que pudessem ocorrer penalizações, bem como restituindo as diferenciações entre quem
vende e quem consome. Se nos anos de 1960 se fumou maconha, foi esse um movimento
vindo das camadas médias urbanas, elaboradoras de práticas e representações “alternativas”
para revalorar e justificar seu uso frente à versão médico-oficial, absorvendo o ideário
cosmopolita da “contracultura”, esboçada no Primeiro Mundo, em detrimento dos contextos
de uso tradicional da erva, estando esses já diluídos na associação com a malandragem e o
banditismo, como nos informa Simão e MacRae97.
O uso tradicional como o que havia entre os indígenas Tenehara do Maranhão, sofreu
severas repressões por parte do Estado brasileiro. Atualmente, mesmo com o processo de
abertura democrática vivenciado após o término do regime militar, a legislação de
entorpecentes mantém-se a mesma, suscitando diversos debates no meio social e político,
onde, vez por outra, surgem projetos de lei dispostos a rever o tratamento dispensado ao
usuário. Sendo assim, despontam da questão aspectos culturais, políticos, jurídicos e de saúde
pública, bastante contundentes pois, segundo as pesquisas feitas pelos sociólogos,

95 Idem, ibidem.
96 Idem, ibidem.
97 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
provavelmente é a Cannabis sativa a substância psicoativa ilegal mais consumida no Brasil 98,
se fazendo pertinente a reflexão sobre a temática.
Levantam ainda que, de nada adianta veicular campanhas preventivas direcionadas aos
jovens se não há uma preocupação de se romper com os preconceitos sociais que envolvem a
questão. Quando o indivíduo vê no seu íntimo o medo de experimentar um psicoativo ser
suplantado pela curiosidade, passando à ação, acaba por estabelecer para si um “[...]quadro
referencial de significado dessa prática, fundamentado na sua vivência pessoal, concreta” 99,
assim como ocorreu com Abrahão, sujeito de classe média, socialmente integrado, e que
acabou por significar, de acordo com a sua subjetividade, o que representou / representa a
Cannabis em sua vida, ao que afirma: “Eu diria assim, que a Cannabis foi a minha iniciação
pra essa nova jornada[...]”100, tomando essa, portanto, feição de começo de uma série de
modificações em seu ciclo vital, portal transposto para outras percepções e sensibilidades.
Em consonância com as mudanças perceptivas em curso, considerando serem as
formas de se vestir, de arrumar o cabelo, de se portar, sutis maneiras pelas quais nos
posicionamos frente ao mundo que nos rodeia, observemos o jovem Abrahão pouco depois de
suas incursões pelo universo “canábico”, em fotografia de sua Carteira de Trabalho:

98 BRASIL. Prefeitura Municipal de Teresina. Artes Plásticas em Teresina. Teresina, 2003.


99 ARTIÈRES, P. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.
100 BRASIL. SECRETÁRIA DE ADMINISTRAÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ. Certificado de Frequência.
Superintendência de Recursos Humanos. Coordenadoria de Seleção e Treinamento. 12 de maio de 1983. 114
CAVALCANTE, A. H. Curriculum Vitae. Elaborado pelo mesmo em 2002, Teresina.
Fotografia 3: Retrato 3x4 de Abrahão, em 1976. Fonte: Carteira de Trabalho de Abrahão.

Os cabelos longos e o medalhão que aparece discretamente posto no pescoço do


biografado são testemunhas das possibilidades disponíveis de se apresentar frente a sociedade
de quase toda uma geração, que usava calças bocas de sino e tamancos de madeira -
verdadeiras revoluções da moda naquela época -, como modos de materializar o pensamento
da juventude, e, quiçá, de boa parcela daqueles que se viam sequiosos por liberdade de
expressão e leveza nas formas de se entender com a vida. Era, para Abrahão, o início de um
percurso de sensibilização para outros estilos de ver e ser a / na realidade.
3.4 Nascimentos e renascimentos na vida de Abrahão
Enquanto estudante de Direito, além de apreender saberes na Universidade de
Fortaleza, apreciava também as sociabilidades que envolviam a vida universitária, travando
diversas amizades que se estenderiam para o decorrer da existência. Chegou mesmo a navegar
nas artes cênicas, participando como ator, no ano de 1981, da peça A Revolução dos Bêbados,
do escritor e seu amigo Silvio Holanda Amaro. No ano seguinte, 1982, atua ainda como
diretor e ator, dando vida a um general avariado, na montagem da peça As Últimas Nozes do
Meu Quintal101, também de Silvio Holanda Amaro, iguatuense esse que se tornou padrinho do
primeiro filho tido por Abrahão Honório com a jornalista Andréa Alcântara de Figuerêdo
Rêgo, com quem passou a viver maritalmente nesse período, sendo ela filha do jornalista
Wilson Fernando de Figuerêdo Rêgo e Irene Alcântara de Figuerêdo Rêgo, e com quem teve
três filhos, todos nascidos em Fortaleza, no Ceará. Leiamos uma imagem fotográfica, aonde o
ritual do batizado do primeiro filho do casal, Jamelus Rêgo Cavalcante, foi documentado /
monumentalizado:

Fotografia 4: Batizado de Jamelus Cavalcante, em 1984. Fonte: Acervo privado de Gaia Cavalcante.
Nesse registro, provavelmente feito entre 1983 a 1984, aparece do lado esquerdo da
cena o padre, ao seu lado Andrea Alcântara, bem como Abrahão, o bebê Jamelus no colo de
sua madrinha, Ticiana Alcântara, irmã de Andrea, e o escritor Sílvio Holanda Amaro, padrinho

101 CAVALCANTE, A. H. Curriculum Vitae. Elaborado pelo mesmo em 2002, Teresina. 116
MINISTÉRIO DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL (BRASIL). Carteira de Trabalho e
Previdência Social de Abrahão Honório Cavalcante. Data de emissão: 19/ 02/ 1972, Ceará.
da criança. O batizado ocorreu em Teresina, na casa dos pais de Andrea Alcântara, e talvez o
registro tenha sido feito pela mãe de Andrea, dona Irene Alcântara, em uma câmera da Kodak.
É uma imagem veiculada em álbum da família Rêgo Cavalcante, a qual tivemos acesso por
meio de Gaia Cavalcante, filha mais nova de Abrahão e Andrea, que nos revela ainda que
muitos arquivos se perderam, graças à ação intempestiva de cupins. Ainda dessa ocasião, trago
outra imagem, na tentativa de entrever como que por uma brecha as emoções vivenciadas
naquele momento pelo recém-formado núcleo familiar:

Fotografia 5: Momentos do batizado, em 1984. Fonte: Acervo privado de Gaia Cavalcante.


Observemos os indícios da materialidade, em especial os trajes, compostos de
roupas jeans e camisas leves, bem ao gosto no começo dos anos de 1980. O bebê aparece aí
também de sandalinhas brancas, intactas. Não podemos afirmar com exatidão, mas é bem
provável que ainda não estivesse andando de fato. Há aí também uma mão de alguém não
enquadrado pela foto, que infelizmente não soubemos especificar quem seja, apenas que são
mãos pequenas, talvez da madrinha do neném batizado.
Ao que tudo indica, com a nova organização familiar e findo o curso de bacharelado
em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), em 1984, se estabeleceu um trânsito
constante de Abrahão e seu núcleo entre Teresina e Fortaleza, passando o grupo a residir na
capital mafrense, mas estando sempre que possível na capital cearense, principalmente em
ocasiões de festividades no seio da família Cavalcante. Desses momentos onde quase todos os
membros estiverem presentes, resistiram ao tempo e à ação dos cupins alguns registros, como
o que se segue, realizado no Natal do ano de 1985, se inscrevendo exemplarmente na ideia de
“memória oficial da família”, para usar a feliz expressão de Philippe Artières102.

Fotografia 6: Família Cavalcante, em 1985. Fonte: Acervo privado de Gaia Cavalcante.


São aí retratados, em primeiro plano, da esquerda para a direita: Eupídio
Cavalcante, Francisca Benvinda, Maria Coelho de Lucena e Maria Amélia Cavalcante, que
chegou a ser “Rainha do Algodão” quando ainda normalista de Iguatu. Em pé, da esquerda
para direita, vemos: Marluce Cavalcante, Carlos Cavalcante, Abrahão Honório Cavalcante,
com uma camisa bem divertida, José Ronaldo Cavalcante, seu companheiro infalível, Paulo
Cavalcante e Catarina Cavalcante. Desta feita, dos filhos da casa, só ficou de fora José
Bartolomeu Cavalcante.

Na próxima imagem, aparecem todos os presentes nessa oportunidade. Segundo

102 MENDES, S.; BRANDIM, V.; MARQUES, E. Piauí: encontros com a história. 1. Ed. São Paulo: Editora do
Brasil, 2010.
consta, essa é a sala de estar da casa de dona Maria Coelho de Lucena em Fortaleza. As
mulheres da família Cavalcante aparecem todas em elegantes trajes, com cabelos típicos da
época. Os homens aparecem retratados quase todos com morenos bigodes, à exceção de
Abrahão e Carlos. Mas todos, sem exceção, estão de camisa de botão. Vemos algumas
garrafas sobre a mesa, e, pelo rótulo da que se encontra mais sombreada, trata-se com grande
probabilidade de ser de cerveja. Vejamos:

Fotografia 7: Família Cavalcante no Natal, em 1985. Fonte: Acervo privado de Gaia Cavalcante.

Segundo as informações recolhidas temos, lendo a imagem de baixo para cima, da


esquerda para a direita: Andrea e Abrahão, com o filho Jamelus no colo. As duas meninas
quase que de costas para a câmera seriam as duas filhas mais velhas de José Ronaldo com sua
esposa Márcia. Os meninos abraçados são filhos de Paulo Cavalcante com a esposa Valéria.
Subindo uma linha da fotografia, temos a menina Indara e o irmão Efraim Cavalcante,
pertinho da mãe e esposa de Eupídio Cavalcante, Teresina; Eupídio está ainda ao lado da
matriarca Francisca Benvinda e Maria Coelho de Lucena, seguidas de Maria Amélia. Em pé,
ao lado dessa última, temos Andreia Cavalcante e Isabele Cavalcante, vestidas com
interessante combinação de “modelitos” e de aspectos bem alegres, filhas de Marluce
Cavalcante com Humberto Cortez Varela, provavelmente o fotógrafo a bater o retrato, pois, ao
que parece, não era muito afeito a registros como esse. No plano da última linha da foto, além
de Marluce, vemos José Ronaldo com a esposa Márcia, Paulo e a esposa Valéria, Catarina e o
marido alemão Andy, e, bem próxima á mãe Maria Amélia, a menina identificada pelo
biografado como “Mentinha”.
A câmera aí utilizada para captar tais imagens talvez seja um modelo mais
aperfeiçoado que as populares Kodaks, posto ter sido trazida da Alemanha pelo cunhado de
Abrahão, de nome Andy. Logo se vê que esse deve ter sido um animado momento em família,
principalmente para as crianças, com todo o jeito de quem estava se divertindo a valer.
Era muito apreciado por essa época, no núcleo familiar de Abrahão, ouvir Caetano
Veloso, Roberto Carlos, Gal Costa, isso para falar apenas dos nacionais. O Bolero de Ravel
também concentrava as atenções, bem como a já muito tocada “Ne me quitte pas”, de Édith
Piaf. O blues fazia parte dos afetos compartilhados, fato aqui pontuado para auxiliar no
processo de retoque emocional da tela pintada.
Em 1983, Abrahão participa de Curso de Desenvolvimento de Relações Interpessoais,
pela Secretária de Administração do Estado do Ceará, através da Superintendência de
Recursos Humanos, realizado pela Coordenadoria de Seleção e Treinamento, no mês de
maio103, para assumir o cargo de técnico da Superintendência de Recursos Humanos, em
Fortaleza114. Nasce também por essa época a segunda filha do casal, Cafira Rêgo Cavalcante.
Em 1984, conclui o curso de Bacharel em Direito pela UNIFOR.
Em 1985 prestou exame para a admissão na Ordem dos Advogados do Brasil - OAB,
obtendo aprovação. Residia já em Teresina, no estado do Piauí, para onde havia se mudado tão
logo concluiu o curso de Direito, para prestar assessoria jurídica às Centrais de Abastecimento
do Estado do Piauí – CEASA. Manteve-se ainda em constante trânsito entre as cidades de
Teresina, Fortaleza e Iguatu, pois, trabalhando em Teresina, ia a Fortaleza visitar a mãe e os
irmãos, e a Iguatu quando as campanhas políticas de seu irmão mais velho, José Elpídio
Cavalcante, demandavam sua presença e apoio para a organização.
Importante destacar que, em decorrência de tais trânsitos por Iguatu, acabou por
conhecer, ainda em 1984, a fábrica de sapatos artesanais pertencente ao seu amigo iguatuense
Iran Alexandre e à mineira Erma Martins, de nome “Nu Pé Criações”. Os sapatos, ao que
parece, eram confortáveis e de bom gosto, ao ponto de estimular o investimento de capital na
pequena fábrica por parte de Abrahão, para que se comprassem máquinas e materiais da
melhor qualidade. A fábrica, ao que tudo indica, chegou a um termo. Ficou, entretanto, o
aprendizado de como produzir calçados, conhecimento esse que biografado, tomado pelo
empreendedorismo, aproveitou: tornou-se, em 1987, proprietário e produtor da Fábrica de
calçados “Gaia Criações”104, em Fortaleza. Chamava-se também Gaia Rêgo Cavalcante a
103 Idem, ibidem.
119
Idem, ibidem.
104 SILVA, Alberto Tavares. Disponível em: < http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbetebiografico/alberto-tavares-
terceira filha nascida de sua união com Andrea, que nascera em 1986, homenageada através
desse nome fantasia dado à empresa do pai.
O empreendimento durou pouco mais de um ano. A presença constante em Fortaleza
para que o negócio dos calçados continuasse fazia-se já com certa dificuldade por parte do
nosso personagem. Teve de fazer escolhas, como muitas vezes nos acontece ao longo da vida.
Preferiu, ao que indica sua Carteira de Trabalho 116, manter-se enquanto assessor jurídico da
CEASA, ficando assim próximo do núcleo familiar recém ampliado. Dessa forma, nos inícios
dos anos de 1988 já havia sido extinta a Fábrica “Gaia Criações”. Mas pouco tempo ficou sem
nada criar.

3.5 Abrahão e a cidade de Teresina dos anos de 1990

É corrente na historiografia piauiense a informação de ter sido o território da província


do Piauí ocupado inicialmente por silvícolas, vaqueiros, escravizados, fazendeiros,
bandeirantes e jesuítas, tendo sido a pecuária a atividade que em um primeiro momento deu
vazão à conquista dessas terras. Os primeiros currais fixaram-se principalmente na região
onde hoje se situa a cidade de Oeiras, tendo sido essa a primeira capital da dita província. No
entanto, com o passar do tempo e do crescimento da primeira capital, se impôs a necessidade
de agilizar a comunicação, fator que em muito favoreceu a campanha em prol da mudança de
lugar da mesma para outras paragens105.
Após um período onde se falou reiteradamente da necessidade de executar a mudança
da capital, sendo cogitados vários pontos da província que pudessem a abrigar, o Dr. José
Antônio Saraiva, que havia assumido a presidência da província em 1850, concretizou a
transferência da capital de Oeiras para a ainda chamada Vila do Poty, posteriormente nomeada
Teresina, no ano de 1852. Os motivos que justificam essa transferência por parte da Coroa
Portuguesa foram, dentre outros: a necessidade de quebrar o controle hegemônico exercido
por Caxias sobre o comércio da região central do Piauí; a melhoria das comunicações com
outras partes do país, bem como o acesso; a fertilidade dos solos da região escolhida, mais
propícios para a agricultura, e a integração da província piauiense ao restante do país,
efetivada através das relações de comércio. Ainda que não agradando a todos, tampouco
atendendo a todas as necessidades, a proximidade de dois grandes rios se fez decisiva para a
escolha da Vila Nova do Poty enquanto capital106.

e-silva> Acesso em 20 nov. 2017.


105 SILVEIRA, T. C.; FONTINELES FILHO, P. P.; Entre imagens e falas: narrativas sobre o governo de Alberto
Silva na imprensa piauiense (Década de 1970 e 1980). [S.l.: s.n.].
106 Idem, ibidem.
123
Idem, ibidem.
A partir de fins do século XIX, transformações que tornaram possíveis a adoção de
novos hábitos e práticas no cotidiano dos brasileiros de um modo geral, e em especial os
piauienses, desencadearam mudanças que, somadas à transferência da capital do atual estado,
se fizeram vertiginosas. No início do século XX, a estrutura física das cidades do Piauí foi aos
poucos sendo modernizada, principalmente nas cidades aonde se contava com um maior
contingente populacional, situadas essas ao norte do território, como Teresina, Parnaíba e
Campo Maior119.
Nos voltemos ao final do século XX, mais especificamente ao final dos anos de 1980
para o início de 1990, quando Abrahão passa a residir na capital mafrense, pouco tempo antes
de Alberto Tavares Silva assumir o governo do estado pela segunda vez, tendo ocorrido esse
mandato no período que vai de 1987 a 1991, se dando sua eleição por meio do voto direto.
Substituía aí Antônio de Freitas Neto, do Partido da Frente Liberal (PFL), angariando 40,3%
dos votos do eleitorado. Já havia ele sido governador do Piauí entre os anos de 1971 a 1975,
substituindo João Clímaco de Almeida, e sendo posteriormente substituído por Dirceu
Arcoverde107.
Teresina vinha passando ao longo de todo o século XX por modernizações, pautadas
essas no ideário de progresso recorrente nas urbes nacionais do período. Thiago Silveira e
Pedro Pio Fontineles Filho, em pesquisa preocupada em analisar como a imprensa televisa e
escrita veiculavam os atos da administração governamental de Alberto Silva, perceberam
haver uma forma de representação cristalizada do ex-governador enquanto “tocador de
obras”108, imagem que perdurou mesmo após as incessantes críticas dirigidas a esse
personagem em decorrência dos posicionamentos assumidos em seu segundo mandato.
Apontam ainda esses autores a necessidade de reafirmar o quão Teresina foi
modernizada nesse período, havendo de fato empenho por parte de Alberto Silva em colocar a
capital do Piauí em sintonia com os principais centros urbanos do país, buscando ao mesmo
tempo propiciar acesso ao lazer e à urbanidade pelo teresinense ou, ao menos, por uma parcela
destes. Muitas vezes cai em esquecimento, entretanto, quais regiões da cidade ganharam esse
ar moderno, tendo sido, em geral, a zona urbana central. Pensemos, por exemplo, na Avenida
Frei Serafim, ou na Poticabana, que eram no período pontos de trânsito dos estratos sociais
mais elevados da capital mafrense. O Pré-Metrô, por seu lado, se estendeu até o bairro do
Dirceu, numa tentativa de também integrar uma parte periférica da cidade109.

107 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).

108 SILVEIRA, T. C.; FONTINELES FILHO, P. P.; Entre imagens e falas: narrativas sobre o governo de Alberto
Silva na imprensa piauiense (Década de 1970 e 1980). [S.l.: s.n.].
109 BORGES, V. P. Grandezas e Misérias da biografia. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes Históricas. 3° Ed. São
Paulo: Contexto, 2011.
Para além das contradições, o governo de Alberto Silva alcançou resultados positivos
no que se refere ao fomento da produção intelectual no estado, através de investimentos como,
a exemplo, a criação da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, que rendeu ao
governador em questão uma homenagem de “Honra ao Mérito”, pelo patrocínio por ele
prestado a essa instituição123. A Secretaria de Cultura e o Governo do Estado do Piauí se
fizeram presentes também no incentivo à cultura, favorecendo artistas atuantes naquele
momento, como passou a ser Abrahão Honório Cavalcante, que despontou como artesão nesse
período, de forma um tanto inesperada.
Uma das sociabilidades frequentes da família Alcântara Rêgo era o passeio por
balneários, sítios e pescarias. Divertimentos aprazíveis, na perspectiva de Abrahão Honório
Cavalcante. Foram por esses hábitos que o sogro, o jornalista Wilson Fernando Rêgo, nessa
época atuando enquanto secretário de comunicação do governo de Alberto Silva, pensou em
adquirir um sítio no Maranhão. Chamou o genro, com quem é provável que mantivesse boas
relações, para conhecer a localidade e as terras pretendidas.
E foi dessa forma que se deu, em 1989, na localidade de Brejinho, a 40 quilômetros da
cidade de Timon, um encontro quase que “cabalístico” entre Abrahão Cavalcante e o buriti,
momento no qual diversas ideias podem ter lhe aflorado na mente acerca de como utilizar tal
vegetal, pois afirma que “[...]nesse primeiro contato, já tive umas ideias fantásticas pro local,
porque acabamos adquirindo lá esses lotes, dois lotes, e fizemos uma casa, e lá, nasceram
essas primeiras obras com essas características que até então não tinha.” 110 Nascia assim o
artesão, artista plástico e designer. Não deixou de pronto outras funções que desempenhava,
quedandose antes em descobrir o código para transformar um material considerado “pouco
nobre”, segundo a cultura instalada na sociedade piauiense e as impressões de pessoas
próximas ao personagem, em uma matéria prima resistente e durável. Tornou-se, desse
momento para adiante, um pesquisador da tecnologia do uso do buriti.
Mesmo havendo nesse pequeno recorte de tempo, entre os anos de 1988 e 1990, uma
crise econômica instalada no Piauí, com preços subindo vertiginosamente por conta da
inflação, das agitações políticas causadas pela nova Constituição, elaborada em 1988, e certo
ar conturbado111 no meio social, nascia um artesão no silêncio laborioso de sua oficina,
preparando-se para a primeira exposição aonde seu trabalho chegaria a um público mais
amplo, para além daquele composto por seus familiares e amigos. Era presumivelmente um
desses momentos de “encruzilhada decisória”112 na vida do sujeito, para usar termos de Vavy

110 SAMPAIO, M. B. Boas práticas de Manejo para o extrativismo sustentável do buriti. Instituto Sociedade,
População e Natureza, 2011.
111 Idem, ibidem.
112 MEDEIROS, J. de D. Guia de campo: vegetação do Cerrado: 500 espécies. Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Renováveis. Brasília, 2011.
Pacheco Borges.

4 DO ENCONTRO E REINVENÇÃO DO BURITI PARTIDO NO PIAUÍ POR


ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE

Fotografia 8: Quadro "Galo de João Batista", de Abrahão, em 1989. Fonte: Acervo pessoal do biografado.

Temos, na abertura dessa seção, a fotografia de uma das primeiras peças feitas por
Abrahão quando iniciou sua pesquisa com o buriti, sendo essa tela chamada “Galo de João
Batista”, de buriti e alumínio reaproveitado. Esse registro foi feito no Rio Poty Hotel, na área
externa do estabelecimento. Infelizmente, não pudemos constatar quem fotografou a peça, e
nem qual aparelho utilizou para isso, mas abre essa imagem espaço para as reflexões contidas
aqui.
Narra-se nesse capítulo o encontro e os agenciamentos de Abrahão com a palmácea
buriti, sendo necessário situar quais as características desse vegetal e como vinha sendo
utilizada essa matéria prima em solo piauiense. O próximo passo é entender no que consiste a
“reinvenção” do buriti perpetrada pelo artesão, quais sentidos atribui a esse uso, e quais são as
prováveis repercussões desse encontro na representação que o mesmo produz de si, e ainda,
nas formas como significa essa experiência.
As falas coletadas em entrevista, os recortes de jornal presentes em seu arquivo
pessoal, os convites para vernissages onde se expuseram seu trabalho e o registros
fotográficos gerados desses momentos apresentam-se como fontes para essa construção,
realizável apenas mediante atenta observação, ainda mais por se compor, em grande medida,
por arquivos selecionados
“para ficar” na memória, podendo indicar a imagem construída pelo biografado de si, para si,
e para os outros.
“Buriti Partido” foi como se chamou sua primeira exposição, realizada em 1989, no
Rio Poty Hotel, em Teresina, onde se viram as primeiras peças produzidas por esse artesão.
Título esse que acabou nos servindo de inspiração e de ponto de partida nessa incursão pelos
princípios da trajetória do até então advogado enquanto mais novo designer, artista plástico e
artesão. Entretanto, nos seria impossível tratar dessa estreia sem antes procurar,
provavelmente embevecido, um Abrahão, filho do sertão cearense e de sua caatinga retorcida,
a contemplar os majestosos buritizais, a balançarem-se com ímpeto ao sabor do vento
maranhense.
Surgem aqui, as questões: e, afinal de contas, que é o buriti? Qual sua identidade,
habitat, e tradicionais usos? E mais, que feições deveriam ter essas primeiras peças elaboradas
a partir de tal matéria prima? Em que sentido elas implementam uma “reinvenção”?
Passemos, de início, à primeira parte da pergunta.

4.1 “Buriti Partido”: o vegetal e o início da navegação do artesão


Fotografia 9: Buritizal. Fonte: Catálogo Mestres-artesãos, do ano de 2000.

Temos, na imagem anteriormente disposta, a matéria-prima de Abrahão Honório


Cavalcante, os buritis, em seu habitat por excelência, o Cerrado. Ocorre, entretanto, também
em outros biomas, como na Amazônia.
O Cerrado e a Amazônia são os maiores biomas do Brasil, ocupando juntos
aproximadamente 75% do território nacional113. Na Amazônia podem-se encontrar florestas
exuberantes, com árvores chegando até a 50m de altura; lá existem três tipos principais de
vegetação: a floresta de terra firme, a floresta de várzea e a floresta de igapó. Já no Cerrado, é
possível observar campos limpos, campos sujos, cerrado típico, cerradão, mata ciliar e
veredas. Esse último bioma é também situado nas regiões de nascentes que deságuam nos
principais rios do país, como o São Francisco, Tocantins e Paraná. Já a Amazônia contém 20%
de toda água doce disponível no planeta, no rio Amazonas e seus afluentes. A biodiversidade
desses dois biomas é uma das mais ricas da elipse terrestre, alimentando muitas populações
heterogêneas entre si que há gerações vem extraindo recursos dessas regiões. Porém, as
implantações de grandes áreas de pastagem e agricultura estão ameaçando tais tesouros,
gerando problemas sociais e ambientais.
É então no bioma do Cerrado e da Amazônia que brota o buriti, ou melhor, a Mauritia
flexuosa, como aponta Mauricio Sampaio114, pois, para os cientistas se comunicarem de forma
efetiva, na certeza de estarem falando da mesma planta, é dado a cada uma delas um nome
que é sempre o mesmo em todos os lugares, escrito em latim. Assim sendo, o nome científico
do buriti é Mauritia flexuosa. Também é conhecido popularmente como miriti, muriti,
palmeirado-brejo, aguaje, etc., a depender da região.

113 ROSA, G. Grande Sertão: Veredas. 22 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
114 SAMPAIO, M. B. Boas práticas de Manejo para o extrativismo sustentável do buriti. Instituto Sociedade,
População e Natureza, 2011.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente115, M. flexuosa integra o tronco filogenético
das Arecaceae, assim como a buritirana, o babaçu, a piaçava. Pode ter até 40m de altura e um
caule com diâmetro entre 13 a 55cm. É uma espécie dióica, ou seja, possui espécimes fêmeas
e machos, e para que haja frutificação é interessante ter ambos no mesmo terreno. Para
identificálo com mais facilidade, basta observar o tronco, muitas vezes marcado pelas
cicatrizes deixadas por folhas que já caíram. As folhas são compostas por três partes: a
capemba, parte mais larga do talo que fixa a folha ao caule do buriti; o talo, recoberto por uma
fibra dura, chamada de tala, material preferido por Abrahão; e a palha, restante da folha, usada
para cobrir o telhado das casas, entre outros usos.
O buriti ocorre em quase todo o Cerrado, na Amazônia e ao nordeste do Pantanal,
apresentando-se em estados como o Acre, Tocantins, Maranhão, Roraima, Bahia, Ceará,
Minas Gerais, São Paulo, Amazonas e Piauí. Ocorre ainda em outros países, como a
Venezuela, Trinidad e Tobago, Guiana Francesa, Peru, Equador, Bolívia, Suriname, Colômbia
e Guiana. Sua fitofisionomia ou habitat são as matas ciliares, matas de galeria, palmeiral,
brejo, savanas amazônicas, e a mais memorável, as veredas (um tipo de vegetação que
acompanha os cursos d’água nas cabeceiras dos córregos e no fundo dos vales), eternizadas
pelas falas de Guimarães Rosa, que já dizia: “[...]o buriti é das margens, ele cai seus cocos na
vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal,
de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo” 116. Como se
vê, é de gosto da planta os terrenos de “águas virgens” e fartas. Ao redor das veredas,
geralmente ocorre o cerrado típico.
Da Mauritia flexuosa, tudo se aproveita. Por isso é comum encontrar referências a tal
palmeira como “árvore da vida”. Com ela fazem-se cestos, bolsas, esteiras e vassouras,
usando as folhas trançadas; cordas, fios para costura e rendas com a seda retirada das folhas
novas (chamados “olhos”); móveis e brinquedos dos talos das folhas; doces, sucos e óleo a
partir dos frutos; artesanato com as sementes; cercas e paredes com o caule; remédios caseiros
podem ser feitos com suas raízes. E o melhor, tudo com sustentabilidade, como nos aponta o
manual Boas práticas de manejo para o extrativismo sustentável do buriti 117. Vejamos os
frutos, como são:

115 GANDARA, G. S. No horizonte do rio Parnaíba, o Piauí.


116 GANDARA, G. S. No horizonte do rio Parnaíba, o Piauí.
117 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
Fotografia 10: Frutos da palmeira buriti. Fonte: Catálogo Mestres-artesãos, do ano de 2000.

Especificamente no estado do Piauí, tem- se algumas notícias sobre usos feitos do


buriti para a fabricação de balsas, por Gercinair Silvério Gandara 118, que nos informa terem
servido as mesmas para cruzar “o espaço d’águas dos balseiros e/ou d’aguas vermelhas”, no
Alto Parnaíba, quando ainda estava muito em voga o projeto para tornar possível a
navegabilidade do rio Parnaíba, em prol do escoamento de mercadorias de/para todo o Piauí.
As pessoas desciam de balsa até a capital teresinense, abastecendo-se aqui de mercadorias
para seus estabelecimentos comerciais. Em matéria citada por Gandara - em No horizonte do
Rio Parnaíba, o Piauí -, veiculada em 22.06.1932, no Jornal do Comércio, temos acesso ao
estudo realizado por Agenor Augusto de Miranda, onde vê-se o seguinte (segue trecho):
[...] e a natureza é tão benfazeja nessa terra que a palmeira de buriti, abundante no
Alto Parnaíba, dá o talo de sua folha com o qual se fabricam balsas que chegam a
transportar, de descida, muitas toneladas de carga, com a maior segurança possível.
Este processo foi usado pelos índios e ainda hoje está muito em voga por ser cômodo
e barato. A economia deste meio de transporte manifesta-se ainda porque findo ele, a
balsa é desmanchada e os talos vendidos para cerca que dura de três a quatro anos
quando bem-feita.119

Aparentemente, é costume que deita profundas raízes o do manejo do buriti em terras


piauienses. O autor do estudo citado aponta então para a ancestralidade dos usos, sendo já
habitual a utilização da palmeira entre os indígenas piauienses. Detalhe interessante é o
destino dado aos talos de miriti quando se desfazem as balsas, servindo então como cercas,
rendendo dividendos. Além de que, tais cercas, quando bem pensadas, montadas e feitas,
apresentam boa durabilidade. Ou seja, toda a questão da resistência, ou não, da matéria prima
fornecida pela M. flexuosa, quedava-se na questão de como a utilizar corretamente para fins
utilitários. Portanto, mesmo sendo comum encontrar nas falas acerca do trabalho de Abrahão
certa surpresa pelo uso de um material até ali usado para fins “pouco nobres”, tinha-se já a
ciência que, quando coerentemente empregado, apresentava boa durabilidade. Faltava o
trabalho humano que lhe desse a destinação, transformando-a no “diamante do brejo”, como o
118 DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição de vídeo realizada por Claire Parnet, para
fins exclusivamente didáticos, em Paris, 1988. 136 Idem, ibidem.
119 DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição de vídeo realizada por Claire Parnet, para fins
exclusivamente didáticos, em Paris, 1988.
artesão apelidou carinhosamente a palmeira.
Em entrevista, ao ser perguntado sobre como teria se dado o contato inicial com o
buriti, em 1987, na localidade de Brejinho, que dista cerca de 40 km de Teresina, no estado do
Maranhão, o artesão nos conta:
O primeiro contato aconteceu logo quando eu cheguei aqui, acho que um ano
depois...e fui a uma região para adquirir uma terra lá, um lote, pra fazer um sítio, e
tinha muitos buritizais. E lá houve esse encontro onde tive uma conversa com os
buritizais, uma coisa meio mágica, que eu não posso explicar assim claramente
como é que é esse contato, porque é uma coisa fora do padrão. Mas, a partir daí que
começou a nascer ideias, a partir daquela matéria-prima que se apresentava ali,
aquele vegetal belo, frondoso, e fiquei mais apaixonado ainda quando fiz um contato
direto assim, com os talos da palmeira. A primeira impressão foi de surpresa, porque
era muito leve e muito resistente, e muito bela. E a partir daí comecei a tirar
deduções, tirar conclusões nessa linha de pensamento de que aquilo poderia ser um
elemento que poderia mudar até a minha vida, naquele exato momento, que foi o que
terminou acontecendo. Nesse primeiro contato, já tive umas ideias fantásticas pro
local, porque acabamos adquirindo lá esses lotes, dois lotes, e fizemos uma casa, e
lá, nasceram essas primeiras obras com essas características que até então não tinha.
Digamos assim, não era do conhecimento geral das comunidades, nem ribeirinhas
dos brejos, nem da grande metrópole. Realmente uma surpresa. Aí, foi uma coisa
que deu muito certo, foi muito fantástico isso120.

O sítio, naquele tempo coberto por árvores frondosas, habitado por animais silvestres e
regado com olhos d’água, foi logo em seguida adquirido pelo sogro, o jornalista e secretário
de comunicação do governo de Alberto Silva, Wilson Fernando Rêgo, servindo como berço e
espaço de experimentação para os trabalhos iniciais com o buriti, executados por Abrahão.
Alguns pontos merecem ser destacados, nesse trecho da entrevista, acima citado. O primeiro,
refere-se à ideia de um “encontro” fora dos padrões, sugerida pelo artesão, onde o mesmo
“conversa” com os buritizais, percepção quase que metafísica acerca da vivência
compartilhada.
Buscando apreender como pode ter se processado tal momento para o personagem,
recorro às acepções colocadas pelo filósofo Gilles Deleuze em seu Abecedário 121, esse que era
o defensor da filosofia como conhecimento concreto. O mesmo nos diz que encontros, de fato,
não se dão com pessoas. Encontros com pessoas seriam decepcionantes, na visão deleuziana.
Encontros significativos se dariam com ideias, e foi talvez algo dessa estatura o que ocorreu
com Abrahão, após conhecer o buriti: encontrou-se não só com a palmeira, mas com uma
ideia.
Mais do que isso, pode ser que tenha havido aí o começo da construção de um desejo.
“Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto[...]”136, afirma Deleuze, ou seja,
aqui, o desejo teria feições construtivistas, desejar é uma construção firmada em
agenciamentos, visão que se opõe às colocações sugeridas pela psicanálise. Cabe mencionar

120 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017.
1 arquivo, mp3 (47 min.). 139 Idem, ibidem.
121 LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Orgs.). Usos & Abusos da história oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
os três pontos onde o pensamento deleuziano se defronta diretamente com o conhecimento
psicanalítico, por nos servirem essas colocações à reflexão sobre o caso de Abrahão Honório
com o buriti.
Em O Anti-Édipo, escrito em parceria com Félix Guattari, apontam que seria o
inconsciente uma fábrica, em oposição à ideia difundida pela psicanálise, em fins dos anos
1970, da consciência funcionar tal qual um teatro. Outro tema confrontante seria acerca do
delírio, muito ligado, nesse entendimento, ao desejo. “Desejar é delirar”. Não se deliraria,
como no proposto pelo campo psicanalítico, com a mãe ou o pai, antes se deliraria com coisas
dispostas mais além, ou, nas palavras do filósofo, “[...] delira-se sobre algo bem diferente, é aí
que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a
geografia, as tribos, os desertos, os povos...”122, ou sobre as possibilidades criativas com o
buriti, eu diria. O terceiro ponto é sobre os agenciamentos, aqui tomados como múltiplos. Os
fatores que nos levam a conceber o mundo assim como o concebemos seriam múltiplos, e não
únicos, como o colocado por linhas da psicanálise.
Dessa forma, suponhamos: ao se deparar com a beleza dos buritizais e, mais
especificamente, com os talos da palmeira buriti, por Abrahão descritos como “leves,
resistentes e belos”, houve a sensação de surpresa, seguida da sensação de paixão por aquela
matéria-prima que se apresentava. Não foi algo que encenou para si. Criou. Foi algo que
provavelmente o afetou. Talvez tenha até delirado, sem conseguir estancar os fluxos de ideias
vindas desse encontro. Desejou, portanto. Construiu com o buriti, a partir daquele instante,
múltiplos agenciamentos. Se um dia pensou em se formar em Bacharel em Direito e atuar na
política de sua terra natal, Iguatu, é bem provável que, daquele momento para adiante, o sonho
tenha se evanescido.
Mas, ao que remetemos, ao certo, quando nos referimos a agenciamentos? Mais um
passeio pelas letras de Deleuze: em seu pensamento, agenciamentos se definiriam por quatro
componentes. A saber, o primeiro deles seria sobre o estado de coisas, ou seja, como os fatores
se organizam de modo a convir para cada um. Quando Abrahão percebeu a beleza dos
pecíolos da mauritia flexuosa, agradou-se do que viu. Foi o primeiro passo para um
agenciamento, pois encontrou um “estado de coisas” aprazíveis para si. O segundo
componente para estabelecer agenciamentos seriam os estilos de enunciados, e, ao colocar que
“[...] não era do conhecimento geral das comunidades, nem ribeirinhas dos brejos, nem da
grande metrópole[...]”123, representando o uso por ele desenvolvido como uma “surpresa”,
deixa pistas do provável enunciado que o agenciou. O inexplorado povoa de sonhos a
imaginação humana. O terceiro componente para promover agenciamentos seriam os
122 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1
arquivo, mp3 (47 min.).
123 Idem, ibidem.
territórios, ou melhor, os lugares onde nos sentimos melhor. Lembremos que Abrahão era
advogado. Porém, ao se encontrar com o buriti, começou a elaborar deduções, concluindo
“[...] eu exercia a profissão de advogado e naquele exato momento assim houve uma
perspectiva de mudança com o conhecimento do buriti. Houve um estímulo, digamos assim,
da planta para mim né”139. Ele estava em um território que lhe pertencia, quando desse
encontro, afinal, em 1984, havia acabado de concluir o curso de Bacharelado em Direito,
prestando exame de admissão para a Ordem dos Advogados logo no ano seguinte,
conquistando a aprovação. Além do que se mantivera até aí enquanto proprietário da empresa
de calçados “Gaia Criações”. Mas foi nesse cenário que se deu o quarto componente do
agenciamento, como proposto pelo filósofo do desejo, ocorrendo então a desterritorialização,
onde se saí do território já conquistado, de certa forma, “zona de conforto”, e se parte para um
todo desconhecido, momento ápice do ato de desejar algo. Mas não apenas. Provável
momento de tensões entre o que se desenrolava em seu foro íntimo e o imaginado por seus
pares.
Lembremos das dimensões que os conflitos e as potencialidades acrescentam ao
discurso histórico. Ou o que ficou de fato consumado, e o imaginado. Ou ainda o possível.
Tais caracteres, revestidos de incerteza e nebulosidade, devolvem aos tempos passados sua
complexidade, e não linearidade, dando-se tal imersão no plano narrativo. E mais: não
esperemos, como bem sugere Giovanni Lévi124, encontrar apenas racionalidade na descrição
de atos históricos, até por ser essa uma postura geralmente apegada aos esquemas
funcionalistas ou da economia neoclássica, que supõe modelos de indivíduos sem incertezas,
sem momentos de inércia, donos de mecanismos de decisão fundados em cálculos “normais” e
socialmente uniformes, com um comportamento assentado na compreensão de lucros e
perdas. A racionalidade dos sujeitos parece figurar, antes, seletivamente, com interesses para
além da maximização dos lucros, numa busca incessante por um lugar aprazível de se estar, de
ser, de querer, mantendo o destino individual uma constante negociação com as expectativas
sociais.
Assim pensando, vejamos: é fato dado que Abrahão, antes de seu contato inicial com o
buriti, já era pai de três crianças, frutos da união com a jornalista Andréa Alcântara de
Figuerêdo Rêgo, filha do também jornalista Wilson Fernando de Figuerêdo Rêgo e Irene
Alcântara de Figuerêdo Rêgo. Nosso personagem teria vindo ao Piauí para atuar como
assessor jurídico pelas Centrais de Abastecimento do Piauí S/A (CEASA), em Teresina. Levou
ainda mais dois anos, após o encontro com o buriti, para deixar a advocacia e se dedicar ao
artesanato e design. Ao ser perguntado sobre as possíveis tensões trazidas por sua mudança
profissional no seio familiar, coloca:

124 ARTIÈRES, P. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.
É, um momento muito difícil, né, porque você não muda, não larga um curso de
Direito, como todo mundo dizia, ‘rapaz você vai largar uma banca de Direito pra ser
artesão? Você é louco?’, e tudo mais. Mas como eu sou louco, realmente, eu não
acredito nisso, que uma profissão seja maior do que outra, entende. Você tem que ser
é bom naquilo que faz, ou lixeiro, ou caminhoneiro, ou entregador de pizza, ou
artesão, você tem que ser o melhor. Chegar lá e mostrar um serviço de qualidade, e
você será notado por todo mundo. [...] A família reage negativamente, também,
porque é difícil. A pessoa, poxa, esse cara passa cinco anos na Universidade e depois
vai cortar buriti, vai fazer cadeira, e não sei o quê...é difícil para uma sociedade
capitalista, de consumo, onde um curso de nível superior tem um status, tem todo um
‘remremrem’ por trás, é difícil. É preciso realmente ser um homem de decisão, um
homem que acredita em si, que acredita no seu potencial e pode fazer qualquer coisa,
assim queira125

Ou seja, haviam em curso naquelas circunstâncias expectativas conflituosas, como fica


apontado por essa fala de Abrahão. As indagações de pessoas próximas quanto o abandono da
“banca de Direito” como um ato irracional, expressam bem a provável instabilidade que se fez
por alguns momentos, causadas por toda uma conformação do que seria ter “sucesso” e
“status” em uma sociedade de consumo. Inscreve a si mesmo então como uma pessoa
decidida, potente de si, como se vê nas últimas linhas do trecho supracitado. Não deixa de ser
admirável o lugar em que coloca o arquétipo do “louco”, como alguém que não se enquadra às
determinações socioculturais, como quem burla o sentido da ordem hierárquica, inclusive
inserindo-se aí, mesmo sabendo de suas outras possibilidades, o que parece evidente quando
afirma “[...], mas como eu sou louco, realmente, eu não acredito nisso[...]”126.
Pensando nas proposições de Phillipe Artières, para quem a prática de arquivar a
própria vida produz um nível de subjetivação, ajudando na construção da identidade do sujeito
por ele mesmo, e mesmo compondo-se como forma de resistir frente aos discursos
dominantes, podemos observar que, ao pensar o passado, sabendo que conseguiu conquistar
bons frutos a partir de seu trabalho com o buriti, Abrahão representa a si mesmo como alguém
bom no que faz, e ao mesmo tempo, talvez como dispositivo de resistência 127, tal qual um
louco, pois louco é o que vai na contramão dos desejos do restante da sociedade, imagem
construída sobre o passado no presente, para se lançar no futuro. É sua forma de afirmar a
própria identidade que se enuncia assim.
Poderíamos brincar, ao dizer que Abrahão fugiu da caixa que montou para si.
Provavelmente, se tivesse permanecido na carreira de advogado, seria hoje a mesma pessoa
respeitável que acabou por se tornar. Mas talvez não tivesse realizado uma de suas maiores
potências, as criações operadas com o uso do buriti. Provavelmente as tensões causadas por
suas escolhas junto aos que estavam mais próximos tenham sido gradualmente suplantadas, à
medida mesmo em que se dava sua entrega ao fazer de artesão, bem como a aceitação do

125 Jornal Diário do Povo. Teresina, junho de 2001.


126 MAUAD, A. M. Através da Imagem: Fotografia e História – Interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2,
1996.
127 CAVALCANTE, A. H. Curriculum Vitae. Elaborado pelo mesmo em 2002, Teresina.
resultado estético alcançado por seu trabalho, e o retorno financeiro proporcionado por ele.
A esse respeito, vejamos trecho de matéria realizada com o artesão em 14 de junho de
2001, pelo jornal Diário do Povo, intitulada Ábra: artista explora muitas potencialidades do
buriti. Nela, noticia-se a participação do designer no VII Salão de Arte Santeira, realizado no
Teresina Shopping, onde elaborou “bela ambientação”, assim como sua participação em
evento no Rio Grande do Norte, a XI Feira Internacional de Artesanato no Nordeste, em Natal.
Quando da ocasião dessa notícia, fazia já 14 anos que o artesão atuava no cenário produtivo
da cidade. Vejamos o que se diz, nessa oportunidade, a respeito da primeira exposição onde
foram levadas a público as peças produzidas por Abrahão:
Nos 14 anos em que tem se dedicado a desenvolver painéis, móveis, e ultimamente
até luminárias feitas de buriti, Ábra diz que tem tido uma aceitação constante do que
faz. ‘O próprio trabalho se impõe, já que as pessoas têm um certo preconceito com
os artesãos’, ressalta. Desde o início, quando fez a primeira exposição, incentivado
por pessoas que viam os móveis feitos para o sítio do sogro, dois anos depois decidiu
abandonar a advocacia. ‘Consegui vender 80% das peças na mostra e desde então
resolvi me dedicar exclusivamente ao trabalho artístico’128.

Atentemos, nesse momento, para esse dado: Abrahão conseguiu, logo quando estreou,
vender quase todo o arsenal em peças que havia produzido. De fato, executou todos os móveis
da casa do sogro fazendo uso do buriti, tal como havia prometido. E velozmente, pois em
apenas dois meses estava com tudo aprontado. E foi nessa casa onde aprendeu a fazer as
emendas das peças, percebendo os insumos que entrariam para criar um mobiliário resistente,
enfim, desenvolvendo uma técnica para que fosse possível gerar emprego, renda e
sustentabilidade a partir dessa magnífica palmeira.
Trilhou esse caminho com empenho, até surgir a oportunidade de expor
individualmente no Rio Poty Hotel, em 1990, com o apoio de pessoas ligadas ao sogro, que
por ser jornalista estava sempre cercado por gente da imprensa e da política piauiense em
destaque no período, tais qual Regina Ramos, Freitas Neto, Elvira Raulino, e Alberto Silva, de
quem Wilson
Fernandes era muito próximo. “Amadrinhado” por Elvira Raulino, que conseguiu canalizar
recursos para a realização de um coquetel quando na estreia de seu trabalho, e divulgado por
Regina Ramos, que montou para o artesão verdadeira mídia, realizou com sucesso esse
primeiro trabalho, do qual persistiram ao tempo o convite para sua Vernissage, assim como
fotografias da mesma, mensagens fotográficas que iremos ler, tomando por base os
ensinamentos legados por Ana Maria Mauad, onde o espaço é a chave de leitura principal da
forma de texto icônico129.

128 I Salão Municipal de Arte Plásticas. 1° prêmio. Modalidade Desenho.


129 DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição de vídeo realizada por Claire Parnet, para fins
exclusivamente didáticos, em Paris, 1988.
Fotografia 11: Convite para a 1° exposição individual de Abrahão, em 1989. Fonte: Acervo pessoal do biografado.

Como se vê, na centralidade da capa do convite tem a fotografia da peça “Pterodátilo”,


toda feita de talos de buriti, a se projetar como se estivesse prestes a levantar voo. A via pela
qual as pessoas recebiam tal convite era postal, ficando esse impresso como lembrança para
Abrahão Honório. Foi elaborado por um jornalista que estava iniciando no ramo, do qual não
foi possível reencontrar o nome. Como se vê, foram três dias de exposição, e o nome do artista
aparece aí sugestivamente. Analisemos outros ângulos do mesmo convite.
Fotografia 12: Verso do convite para a 1° exposição de Abrahão. Fonte: Acervo pessoal do biografado.

Vê-se aí, no verso do mesmo convite, anotações das movimentações pelas quais tal
papel passou. Era direcionado ao colunista Mauro Júnior, por intermédio de Regina Ramos, e
acabou sendo por fim guardado entre pilhas de outros papéis dos “tesouros” de Abrahão
Honório. Contava aí o nascente artesão com o apoio da Secretaria de Cultura, com o Governo
do Estado do Piauí, com o Rio Poty Hotel, com a PIEMTUR, com a MP&A, com o stúdio de
fotografia Müller, responsável pelas imagens fotográficas desse momento, e pela L.B.A; ou
seja, não podemos dizer que não houveram boas sustentações para o percurso sulcado no qual
o artista plástico se iniciava. Note-se ainda a declaração de Ábra acerca do uso de materiais
alternativos para a fabricação de peças utilitárias e estéticas. Essa é a primeira representação
emitida pelo artesão em sua carreira. Espiemos agora o interior do convite, aonde aparecem as
primeiras formas e elaborações criativas manifestadas pelo designer, não se referindo elas
apenas sobre móveis, como também sobre painéis e esculturas:

Fotografia 13: Interior do convite para a 1° exposição. Fonte: Acervo pessoal do biografado.

Fotografia 14: Interior do convite para a 1° exposição. Fonte: Acervo pessoal do biografado.
Não parou mais, a partir daí. Passou a se dedicar exclusivamente ao buriti, de onde
principiou a retirar proventos para o sustento de si e dos seus, ou seja, a própria nutrição
adquirida a partir dos frutos do trabalho com tal elemento natural. O universo que de pronto o
acolheu de certo foi o da arquitetura. Produziu variados trabalhos voltados a esse mercado,
que o recebeu de braços abertos, e presume-se que isso se deu por reconhecer algo de
inovador nesse processo desenvolvido com a palmeira buriti pelo artesão. Em 1992, é
convidado pelo Governo do Estado para realizar em Parnaíba, no Piauí, uma exposição
individual na Galeria das Artes do Porto das Barcas, o que de fato acontece. No mesmo ano,
participa ainda de Exposição Coletiva no Rio Poty Hotel. Interessante destacar que Abrahão
parece ter se dedicado a aprimorar crescentemente suas técnicas, o que resulta em diversas
fases possíveis de serem percebidas em seu trabalho, captadas pelas fotografias ainda
disponíveis.

A primeira exposição individual em seu estado natal, no Ceará, deu-se no Palácio da


Microempresa, em Fortaleza, no ano de 1993. Ainda nesse ano participou como expositor no I
Encontro de Turismo e Agências de Viagens do Nordeste, em Salvador 130. A arte o levou para
diversos lugares, desde aquele início da trajetória com o buriti. O uso do buriti tornou-se um
de seus territórios, onde não posso afirmar que tenha andado sozinho. Outros artesãos podem
ter se sentido absorvidos por tal produção e incursionado por tal terreno também. Mas a
repercussão do trabalho de Abrahão com o buriti fez-se sentir com constância nos espaços
artesanais piauienses, onde certamente ocupou um lugar.

Em 1994 participa do I Salão Municipal de Artes Plásticas, em Teresina, onde é


premiado com o 1° lugar na modalidade “Desenho”. No prêmio, lê-se: “A mão é, não só,
instrumento de revelação de sonhos e dos desejos mais profundos do homem, mas também,
‘máquina’ fantástica de colocar o mundo sob o toque sensível do artista” 131. Abrahão
Cavalcante aparece já aí representado como artista. E o que é o artista, senão um criador de
perceptos, pensando a partir das proposições do filósofo Deleuze? E o que é um percepto?
Segundo o autor supracitado, o percepto se caracteriza como um “[...]conjunto de sensações e
percepções que vai além daquele que a sente” 132, por isso mesmo o filósofo não fala apenas
em “percepção”, criando tal conceito, por ser algo mais que uma percepção, arriscamos dizer,
é um envolvimento com diversas percepções. Podemos então pensar em Abrahão como um
sujeito que construiu sensações e percepções de contornos para além da esfera individual,
afetando outros indivíduos com sua técnica artesanal. Criou perceptos. Isso explicaria a
recorrência de seus trabalhos em exposições por diversos pontos do país, para além da capital
mafrense.

Em 1995 participou ainda do II Salão Municipal de Artes Plásticas, em Teresina. Do


ano de 1996 até 2002, participou da Feira Piauí Arte. Em 1997 expôs individualmente no
Espaço Saúde do Teresina Shopping. Manteve-se preocupado com a formação, nesse
momento voltado para sua construção como artesão, participando esse ano do Curso Intensivo

130 Jornal Meio Norte, Teresina, outubro de 2001.


150
Idem, ibidem.
131 CENTRO DE ARTESANATO MESTRE DEZINHO. Ata de Assembleia de Posse da Diretoria da APAPI.
Teresina, 25 de abril de 2002.
132 SEBRAE (PIAUÍ). Publicação do V Seminário Nacional de Artesanato. 27 de junho de 2002.
de Gestão Empresarial, Gestão do Desenvolvimento e Gestão Comercial para a Pequena
Indústria Artesã no Brasil e nos Países do Mercosul, em outubro, na cidade de Teresina,
realizada pela Secretaria de Política Industrial em parceria com o Programa de
Desenvolvimento do Artesanato do Piauí (PRODART). Em 1998 participa do Seminário
Nacional de Artesanato, em junho desse ano, tendo sido o mesmo realizado também em
Teresina, e também do VI Piauí Mostra Mulher, do qual encontramos o seguinte registro
fotográfico:

Fotografia 15: Peças de Abrahão no VI PIAUÍ MOSTRA MULHER, em 1998. Fonte: Acervo pessoal do
biografado.

Notemos que o estande é quase todo feito de talos de buriti: das estantes aos pedestais.
Aparece aí também de espada em punho o Dom Quixote de buriti feito pelo referido artesão,
peça essa que soubemos ter sido posteriormente queimada, posto ter virado morada de cupins.
Observemos a senhora que aparece ao canto da cena, a contemplar as peças expostas. De fato,
só a arte torna a vida possível.

Entremeado no meio da arquitetura, expõe na I Casa Cor Terrasse, assim como na I


Mostra Lilia Design. Em 1999 participa do IV Salão de Arte Santeira do Piauí, em Teresina, e
também da I Feira de Supermercadistas do Estado do Piauí, em ambos como expositor. Sobre
o I Casa Cor Terrasse, há também aqui uma série de registros, dentre os quais elegemos os que
se seguem:
Fotografia 16: Vista frontal da Terrasse, em 1999. Fonte: Acervo pessoal do biografado.

Aqui a vista frontal da Terrasse, com o anúncio da amostra em curso. O ambiente é


bem aberto e amplo. Daqui podemos ver a cobertura ao lado da construção maior do prédio,
por detrás da fina parede com janelas para a vista do interior. Vejamos o que lá havia:

Fotografia 17: Gazebo feito por Abrahão na mostra Terrassede 1999. Fonte: Acervo pessoal do biografado.
Aparece embaixo da área coberta teto semelhante àquele feito na entrada do Centro
Artesanal, sendo essa obra de Abrahão. Interviu ainda em outros espaços dessa amostra, assim
como ainda nesse espaço expôs diversas vezes, em outras ocasiões. No ano de 2000, além de
participar como expositor, produz o V Salão de Arte Santeira do Piauí. A conquista de espaços
se fez centímetro a centímetro, como fica notado. Participa como expositor da 10° Feira
Internacional de Artesanato no Nordeste - ARTNOR, realizada entre 14 a 23 de janeiro, em
Maceió, Alagoas, por intermédio do SEBRAE. Expõe individualmente no Sesi de Minas
Gerais, assim como no Empório das Artes. Além disso, participa da II Feira de
Supermercadistas do Estado do Piauí. Participa também da II Mostra da Lilia Design. O
começo do século XXI estava se mostrando bastante efervescente para a produção de Abrahão
Honório.

O convite para a exposição no Empório das Artes, nos anos 2000, foi montada a partir
de registros feitos por Odilon Ramos, irmão de Regina Ramos. Com uma câmera bem
equipada, acompanhou Abrahão Honório em uma das muitas noites em que o artesão
trabalhava até tarde, em sua oficina localizada no bairro São Joaquim. Realizou verdadeiro
ensaio onde se confunde o artista e sua obra, e por hora abordaremos as seguintes:

Fotografia 18: Abrahão em sua oficina, em 2000. Fonte: Acervo pessoal do biografado.
Nessa imagem, aparece Abrahão fumando um cigarro sem filtro, da marca Hollywood,
como foi de seu hábito por cerca de 40 anos. Sem camisa, à vontade em seu ambiente de
trabalho, cercado por peças de texturas das mais variadas, da casca ao miolo do buriti, parece
relaxar após intensa atividade, posto que, realizar uma incursão dessa natureza, que requer
antes de tudo uma boa dose de paciência e exigência, não é tarefa das mais singelas. As
imagens feitas por Odilon tinham o objetivo de ilustrar o convite para a vernissage de Abrahão
no Empório das Artes, como já foi dito. O resultado foi o seguinte:
Fotografia 19: Convite para exposição de Abrahão no Empório das Artes, em 2000. Fonte: Acervo pessoal do
biografado.

A anverso do convite o faz parecer ser, ele mesmo, de buriti. Aparece ao fundo a textura
“Flores em espiral”, e podemos ver Abrahão figurando aí bem distante, de olhos cerrados. O
verso é ainda mais revelador, posto que traz uma declaração de sua filha mais nova com
Andrea, Gaia Cavalcante, nessa época com cerca de 14 anos de idade:

Fotografia20: Verso do convite para a exposição no Empório


s Artes.
da Fonte: Acervo pessoal do biografado.

Observamos que, mais uma vez, é destacado o processo inovador ao qual Abrahão
submeteu o talo maduro do buriti, no sentido de impor uma mudança na forma de se
relacionar com tal vegetal, onde acaba por implementar um novo uso, ressignificando, dando
novos sentidos, a uma “parte” até então considerada “inaproveitável”; o que, por isso mesmo,
o coroaria como “Rei do Buriti”, representação elucidativa de como poderia ser visto por
agentes no seu entorno. Podemos imaginar o enorme afeto contido nessas palavras, levando
em conta terem sido escritas por uma pessoa tão próxima do artesão.
Em 2001 participa do IV Seminário Nacional de Artesanato, em junho desse ano,
realizado pelo Programa de Artesanato do SEBRAE, em Teresina. Participa também do curso
de Repasse Metodológico do Programa do Artesanato Brasileiro, realizado pelo Instituto
Centro de Capacitação e Apoio ao Empreendedor – ICCAPE, em Belo Horizonte. Participa da
XI Feira Internacional de Artesanato no Nordeste, em Natal, além da I Feira Internacional
Fiaflora, em São Paulo, SP. Participa ainda da Mostra de Arquitetura Piauiense Artefacto, no
shopping D&D, também em São Paulo.
Foi o período onde cogitou inclusive se mudar para essa que é uma das maiores
cidades da América do Sul, fato expresso em entrevista ao jornal Meio Norte, colhida por
ocasião de sua participação na Feira Internacional Fiaflora. A título da matéria é Artesanato é
sucesso na Fiaflora. O primeiro aspecto que chama a atenção em tal fonte é Abrahão ser
noticiado como “piauiense”, considerando que é declarada sua procedência cearense, e isso
nos leva a cogitar os motivos de ter sido noticiado dessa forma. Levanta-se primeiro a
hipótese do desconhecimento de quem realizou a matéria sobre tal dado do entrevistado, e
mesmo da necessidade de se informar acerca disso. Porém, não se pode crer que um jornalista
poderia deixar algo assim passar. A segunda possibilidade seria a de uma certa apropriação
desse talento para o Piauí, um desejo de alinhar Abrahão como um filho de nossa terra,
questão que iremos analisar mais detidamente a seguir. Há mais: na ocasião dessa Feira,
Abrahão foi convidado por Gilberto Elcis, “[...]considerado o papa da arquitetura e do
paisagismo[...]”133, a mudar-se para São Paulo. E a resposta do artesão é a mais positiva
possível, afirmando: “Não tenho mais dúvidas. Até o ano que vem eu me mudo para São
Paulo e irei investir no meu trabalho” 150. Era possível que Abrahão realmente tivesse mudado
mais uma vez de percurso, e se deslocado para São Paulo para projetar ainda mais seu uso do
buriti, todavia, as fontes indicam que o caminho tomado foi outro.
4.2 Do artesão – presidente e a memória piauiense.

O ano de 2002 parece ter sido permeado de inúmeras novidades para nosso
personagem. Foi o momento da eleição de Abrahão Honório Cavalcante para Presidente da
APAPI –
Associação de Artesãos Profissionais Autônomos do Piauí, com a chapa “Construção”,
atuando por dois anos nessa função134. Através do documento que se segue, somos informados
que a chapa foi inscrita no dia 10 de abril de 2002, tendo personagens como o artesão Nonato
Oliveira na composição, dentre outros:

133 NUNES, D. As caras de Teresina. Teresina: Halley S.A Gráfica e Editora, 2005.
134 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
Fotografia
21: Digitalização da ficha de inscrição da chapa "Construção", em 2002. Fonte: Acervo pessoal do
biografado.
O objetivo dos artesãos reunidos sob a chapa “Construção” motivava-se,
aparentemente, pelo desejo de estabelecer relações justas quanto à entrada e saída de rendas
dos próprios artesãos da caixa registradora da APAPI pois, mantendo essa associação uma sala
no Centro de Artesanato Mestre Dezinho, era recorrente serem vendidas peças lá deixadas por
artesãos vindos muitas vezes até do interior. O problema residia de não verem retornados seus
esforços, posto que o dinheiro tão suado não lhes chegava à mão. Instaram então Abrahão
Honório à candidatura de Presidente da APAPI, na esperança de ver melhorias, por sua
reconhecida justeza moral junto aos parceiros de classe. Não se muda para São Paulo,
portanto. O fato é que foram bem-sucedidos. O registro que monumentaliza a vitória
conquistada segue adiante:
Fotografia 22: Membros da chapa "Construção" após vitória, em 2002. Fonte: Acervo pessoal do biografado.

As pessoas que aparecem nessa imagem fotográfica são, da esquerda para a direita:
Edson Meirelles Nascimento, artista piauiense; ao seu lado, o diretor do Prodart naquela
época, chamado Alvino; agachado, temos Nonato Oliveira; por detrás de Nonato Oliveira,
vemos Anthony Elke da Silva, o vice-presidente da chapa; ao seu lado Abrahão aparece de
terno e gravata, um tanto elegante, aparentemente contente com o resultado obtido, bem como
os pares da chapa ganhadora Vida Nova, que certamente teriam muito trabalho pela frente,
para “pôr ordem na casa”. Do seu lado direito, vemos Maria de Fátima Costa Veloso, bem
como Marisa da Silva Veras. De branco, estava Cleide Gomes de Lima Olímpio Mello, uma
das donas do Empório das Artes, e artesã. Ao seu lado, Antônio Edilberto Coutinho Monte,
ladeado à direita por Anitalice Passos Galvão, que tem ao seu lado o ex-presidente e suplente
Antônio Carlos de Oliveira. Ao que parece, esse foi um bom período para a associação
artesanal. Tanto que, em 2004, quando chegava ao fim a atuação do grupo, devendo haver
novas eleições, novamente
Abrahão se viu instigado pelos pares a participar. Porém, este respondeu apenas que “nem se
Deus descesse do céu”, dadas as dificuldades em se lidar com um grupo extenso de pessoas.
Participa também de Exposição Coletiva na Galeria do Clube dos Diários. Em seguida,
participa da Exposição “Pau de Arara”, em parceria com o artista Cícero Amaral, no mesmo
local. Em junho de 2002, participa do V Seminário Nacional de Artesanato, novamente em
Teresina, onde recebe Placa de Reconhecimento, “pela sua inestimável contribuição à causa
do desenvolvimento do artesanato piauiense”, pelo SEBRAE135. Participa ainda do I
Agrishow, em Ribeirão Preto, São Paulo. Sobre a placa emitida pelo Sebrae, tem-se aqui seu
registro, digitalizado para fins de compartilhar nessa breve incursão, e eis que se segue:

Fotografia 23: Registro de homenagem do SEBRAE ao artesão Abrahão, em 2002. Fonte: Acervo pessoal do
biografado.
Não deixa de ser curioso que Abrahão, cearense do interior de Iguatu, tão distante,
onde nem há buriti, vindo para o Piauí para advogar, e, pelas surpresas da vida, tornando-se
pesquisador das técnicas com a majestosa palmácea buriti, tenha sido o desbravador desse
caminho para outros, esses sendo piauienses, que o seguiram, formando no entorno do artesão
inegável escola, a ponto do mesmo ser chamado de Mestre por seus pares do meio artístico,
fato demonstrado ainda na forma do reconhecimento emitido pelo Sebrae, que não poderia ser
o de outro lugar, como o de sua terra natal, Ceará, e sim, o do Piauí, estado talvez eleito pelo
coração.
Passeando por alguns registros, mostra-se palpável essa relação afetiva entre nosso
biografado e a cidade mafrense, havendo três ocasiões onde parece ficar clara a sua provável
vinculação à memória dessa cidade, sendo esse movimento via de mão dupla. Na primeira,
por ocasião da publicação de livro do jornalista Deusdeth Nunes, intitulado As caras de
Teresina136, feita em 2005, oportunidade em que se homenageia as pessoas que fazem parte da
135 Turístico, Cultural, Histórico / Roteiro de Compras e Serviços / Teresina: 154 anos. Documentário
(80 minutos). Produção Arte e comunicação visual. Transcrito para os fins dessa pesquisa. 156 Idem,
ibidem.
136 CAETANOS, Baiano e os Novos. Cidadão da Mata. Disponível em:
https://m.letras.mus.br/novoscaetanos/1272056/. Acesso em 13 nov. 2017.
construção das feições que a cidade possui, o supracitado autor dedica uma página da sua
lúdica homenagem a esse cearense, que também gosta do Piauí e faz parte da feição que tem
esse estado, quiçá dessa cidade. Olhemos:

Fotografia 24: Página do livro As caras de Teresina, em 2005. Fonte: As caras de Teresina, de Deusdeth Nunes.

Aparece Abrahão nessa imagem entre os móveis de sua primeira exposição, ainda no
começo dos anos 1990. Pensando a memória de acordo com os termos propostos pelo
sociólogo Maurice Halbwachs, podemos entender ser o fenômeno da lembrança dotado de
algumas particularidades. Primeiro, a memória coletiva seria como uma espécie de painel de
semelhanças, onde só se retém o vivido, não ficando nada de caráter artificial, apenas o
necessário para manter uma representação contínua e coerente do grupo, posteriormente
infundindo entre seus membros a sensação de coesão, o que implicaria, por fim, em uma
adesão afetiva do indivíduo ao coletivo, repercutindo diretamente na identidade que os
sujeitos produzem de si, para si mesmos137. Dessa forma, faz-se possível compreender essa
integração do artesão à cidade, e mesmo o contrário, da cidade ao artesão. Abrahão tornou-se
teresinense por pertencimento, ou mesmo por aderência afetiva, e a memória teresinense o
aceitou, abraçando mais esse “filho adotivo”. Está essa suposição na esfera dos possíveis,
encaminhados pelas fontes.
A segunda aparição onde se vincula o artesão à cidade, dessa vez aparecendo Abrahão
em forma mais ativa, é no documentário pelos 154 anos de Teresina, chamado “Turístico,
Cultural, Histórico: Roteiro de Compras e Serviços” 138. Depois de serem mostrados alguns
pontos turísticos da cidade, aparece em cena frontal o Centro de Artesanato Mestre Dezinho.
137 FERNANDES, V. F. História do Povo de Juramidam; introdução à cultura do Santo Daime. Manaus,
SUFRAMA, 1986.
138 Idem, ibidem.
160
Idem, ibidem.
Em seguida, na tela surge o entrevistado, com camisa azul da cor do céu, de botão, ao lado de
um gazebo por ele feito, em pastilha de buriti. Ao fundo é possível ver sua loja, Ábra: Arte e
Design. É identificado como “Abrahão – Artesão”. Profere então a seguinte fala:
Quero nessa oportunidade convocar todo o povo do Piauí, especialmente o de
Teresina, que pouco nos visita na Central de Artesanato Mestre Dezinho. Um local
onde se expõe: todo o trabalho produzido na questão da arte santeira, mas também
de outras atividades artesanais, como o buriti, a cerâmica, a palha, a madeira; e na
produção de tecidos domésticos, etc, etc. Então, nessa oportunidade, a gente vem
trazer aqui ao público teresinense a necessidade de que a cidade vivencie isso.
Porque isso é o que nós produzimos aqui e, digamos que, 80% da visitação ao centro
artesanal é de pessoas que vem de outros estados, e de outros países. É uma
necessidade, de você conhecer o seu estado, e nada melhor que conhecendo a arte de
seu estado, que é aquela coisa que mais traduz a alma do piauiense156.

Interessante notar as formas utilizadas por Abrahão para convidar os piauienses a


incursionarem pelas terras da memória do estado, da cidade mafrense, ou ainda deles próprios:
primeiro coloca o que pode ser encontrado no Centro Artesanal no que concerne aos produtos,
afinal, o objetivo do documentário dialoga em muito com a intenção de vender serviços e
mercadorias; em seguida, aponta a necessidade que tem o “público teresinense”, e não o
cearense, de vivenciar esse espaço de memória, não deixando essa experiência de apreciação
sensível da arte ficar restrita aos visitantes que vêm de outras paragens, posto que conhecer a
arte do estado, o que o “nós” por ele expresso produz, ou melhor, o que a classe artesã pensa
em termos de “piauiensidade” se faz enquanto necessidade, é quase como o “dever de
memória” problematizado por Pierre Nora, pois é na esfera cultural que se traduz o que há de
mais profundo no pensamento de um povo. É Abrahão um artista do Piauí, mesmo não
abdicando de sua “cearensidade”. E parece à vontade em ser realmente, em algum nível,
piauiense.
Por fim, temos a Declaração emitida entre os dias 26-27 de agosto de 2007 pelo
professor, editor e membro do Conselho Estadual de Cultura do Piauí, Cineas das Chagas
Santos, através da Oficina da Palavra, por ocasião da participação de Abrahão como
pretendente ao prêmio Culturas Populares de 2008, sendo esse o personagem que batizou o
artista plástico enquanto “Mestre em Arte”, legitimando o papel pelo artesão ocupado, e
dando-lhe também o crédito pioneiro, por assim dizer, pelo manejo do buriti para fins mais
nobres que não apenas o de feitio de cercas, gaiolas, caixinhas de doce, e etc. Segue logo
adiante. Vejamos:
Fotografia25: Digitalização de Declaração feita por Cineas das
Chagas Santos, em 2007. Fonte: Acervo pessoal
do biografado.

Destacam-se- alguns elementos dessa valiosa representação emitida pelo professor


Cineas das Chagas Santos sobre Abrahão Honório Cavalcante. Bem sabemos que nenhum
documento é ingênuo. O que mostra e esconde é - salvo raras ocasiões-, intencional. Nesse
caso, parecia haver um objetivo claro da parte do emissor da declaração: estimular a
premiação a favor de Abrahão. Mas a intenção não desmerece o testemunho, antes, enriquece
os detalhes que traz. Tem essa fala algo em comum com a carinhosa representação emitida de
Abrahão por sua filha, citada anteriormente: chamar a atenção para o uso de um produto que
antes era visto culturalmente como “pobre”, “frágil” ou mesmo “inaproveitável”, e que passa
por uma profunda revalorização após a utilização dele feita por Abrahão, que transforma os
talos da palmeira em obras de “rara beleza”, nas palavras do professor Cineas. Há algo mais
aí, que abre precedentes, inclusive, para as considerações que se seguem mais adiante. É a
informação de ter Abrahão diversos seguidores – o que o habilita a ser chamado de Mestre,
sendo esse quem forma ao seu redor uma escola -, não apenas no estado do Piauí, como
também no restante do Nordeste e Norte. Mas como teria seguidores até no Norte?
É que em outubro de 2002, partiu para a cidade de Rio Branco, no Acre, a convite do
SEBRAE e do Governo do Acre, do Rio Branco e do Cruzeiro do Sul, para atuar como
Instrutor do Curso de Fabricação de Móveis e Utensílios de Talo de Buriti. O contrato, que era
de 30 dias, acaba se estendendo por aproximadamente 60 e poucos dias, propiciando
experiências para além do cunho profissional, alcançando dimensões culturais, religiosas e
espirituais, a partir do contato de Abrahão com a doutrina do Santo Daime, forte na região
acreana. Tal interação possibilitou que, na bagagem de volta, fora os conhecimentos
adquiridos, o mesmo trouxesse quatro litros da ayahuasca, bebida consumida de forma
ritualística nos trabalhos de Daime. Vamos entender o que se deu com isso.

5 ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE E O CIPÓ DAS ALMAS

Amo, amo a mata, porque nela não há preços! Amo o


verde que me envolve...o verde sincero que me diz que
a esperança não é a última que morre. Quem morre por
último é o herói. E o herói, é o cabra que não teve
tempo de correr.139

Neste capítulo abordamos como se deu a chegada do Santo Daime que floresceria em
terras piauienses por intermédio dos caminhos abertos pela figura de Abrahão, assim como se
trata da significação operada por esse sujeito no entorno da sua prática de consumo da
ayahuasca. Para tanto se fez necessário esboçar breve quadro do que seria a bebida
sacramental, bem como da doutrina construída a partir da ressignificação de seu uso entre
não-indígenas. Por fim, indicamos os rumos tomados por tal navegante tocado por três
vegetais, que optou por se tornar um cidadão da mata, como o Chico City, personagem
interpretado por Chico Anísio, autor da epígrafe no início dessa seção. Como foi dito no
último tópico do capítulo anterior, o que levou o artesão ao Acre foi um curso que o mesmo

139 FERNANDES, V. F. História do Povo de Juramidam; introdução à cultura do Santo Daime. Manaus,
SUFRAMA, 1986.
partiu para ministrar aos alunos da região, passando para eles a sua tecnologia de trabalho
desenvolvida com o buriti, sendo essa uma matéria-prima disponível na ambiência aonde os
mesmos viviam.

5.1 Sobre a ayahuasca e a doutrina do Santo Daime

Segundo Vera Fernandes Froés, historiadora que fez aprofundado estudo acerca do
Santo Daime na Amazônia, é espantosa a quantidade de conhecimentos que os indígenas
detinham e detém acerca do poder curativo das plantas, provindo esses saberes de ciências
muito antigas, que consideram os sentidos muito mais amplos do que aqueles cinco
convencionados na cultura euroamericana. As plantas são entendidas entre muitas tribos
imersas nesse contexto histórico, cultural e geográfico, enquanto verdadeiras divindades, ou
mesmo como “plantas de poder”, ou “plantas professoras”; modo esse bastante respeitoso de
se portar diante da forte natureza amazônica, de onde emerge pulsante o xamanismo
amazônico, tradição baseada no uso de plantas vistas como sagradas, a exemplo a ayahuasca,
que tem uso amplamente difundido entre inúmeras tribos habitantes da região140.

Nos mais diversos pontos do estado amazônico aonde se consome a ayahuasca


(palavra de origem quéchua que significa “liana dos espíritos”, bem como “cipó dos
espíritos”), variam os nomes atribuídos à essa bebida sacramental, podendo ser conhecida
também como “Iagê”, “Caapi”, “Camampi”, ou ainda “Dapá”141. O cipó através do qual se
prepara tal bebida pertence à família dos malpighiáceas, sendo ele uma espécie de trepadeira.
É o princípio “masculino”, por assim dizer, da bebida. Para a composição desse chá, adiciona-
se ainda a folha rubiácea
Psychotria viridis, denominada de “chacrona”, ou ainda “Rainha”, o princípio feminino do
chá160. Esses vegetais são encontrados com facilidade em terras amazônicas, mas ambos
podem ser cultivados em outras partes do país, bastando que haja muita água disponível para o
seu desenvolvimento.

140 FILHO, W. F. de F. R. A cultura dos adeptos do Santo Daime na igreja Céu de Todos os Santos em Teresina–
PI e sua relação com a religiosidade e as práticas de consumo consciente. (Trabalho de Conclusão de Curso em
Comunicação social). Faculdade Estácio CEUT, Teresina, 2017.
141 FERNANDES, V. F. História do Povo de Juramidam; introdução à cultura do Santo Daime. Manaus,
SUFRAMA, 1986.
Fotografia 26: Cipó Banisteriopsis Caapi no alto das árvores. Fonte: FROÉS, Vera. Santo Daime - Cultura
Amazônica: História do Povo Juramidam.
Como se pôde ver na fotografia 26, na página anterior, o cipó alcança o alto das
árvores, em busca de sol. Vejamos como se apresenta a “chacrona”:

Fotografia 27: Arbusto da folha Rainha (psycotria Viridis). Fonte: FROÉS, Vera. Santo Daime - Cultura
amazônica: História do povo Juramidam.

A doutrina do Santo Daime, baseada no consumo do chá obtido dos dois vegetais
mencionados, foi fundada em 1930, em Rio Branco, no Acre, pelo maranhense Raimundo
Irineu Serra, após esse ter vivenciado por longo período uma experiência de iniciação com a
ayahuasca, nas selvas fronteiriças entre o Brasil e o Peru, onde a bebida era utilizada desde
tempos a perder de vista pelos indígenas em rituais mágico-religiosos142.

Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1892, em São Vicente do Ferrer,


no Maranhão. Aos 20 anos de idade, partiu para a Amazônia, vivenciando o processo de
declínio da borracha. Participou também da comissão de limites do governo federal, ajudando
a delimitar as fronteiras entre Peru, Bolívia e Acre, oportunidade em que se deu sua iniciação
com a ayahuasca143. Foi seringueiro, soldado da borracha e guarda florestal. Esse senhor foi
também responsável por uma ressignificação das práticas no entorno do consumo da
ayahuasca, amalgamando elementos de cultos indígenas, afro-brasileiros e espíritas, além de
conter elementos do catolicismo, originando daí a doutrina do Santo Daime, que assim é
chamada por conta da ideia presente na cosmologia daimista de que o verbo divino é “dar”,
sendo a prática da caridade vista como primordial para quem deseja se autoconhecer e se
melhorar enquanto pessoa144.

E por isso é muito presente nos hinos – mantras em geral cantados, por onde são
passados os ensinamentos filosóficos da doutrina -, afirmações como, por exemplo, “dai-me
força”, “dai-me luz”, e ainda “dai-me amor”. Os princípios básicos em que se assentaram os
fundamentos do Santo Daime mantêm estreita relação com os ensinamentos aprendidos por
Irineu Serra no Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, com sede em São Paulo (SP),
ligado aos ideais da Harmonia, Amor, Verdade e Justiça, sendo esses os quatro princípios
gerais da doutrina145. Vejamos na página seguinte como era esse personagem, descrito por
diversos coetâneos como um senhor “[...]alto, corpulento, de olhos miúdos e pés enormes que
não havia na cidade sapatos que os calçasse”146.

Os trabalhos espirituais do Santo Daime ocorrem em dias específicos. Existem os


trabalhos de concentração, que acontecem todos os dias 15 e 30 de cada mês. Há também a
Santa Missa, realizada toda primeira segunda-feira de cada mês. Fazem-se ainda os Festivais,
que são trabalhos bailados, com duração aproximada de 10 horas. Essas festividades em geral

142 Idem, ibidem.


143 Idem, ibidem.
144 FEIJÃO, T. J. de S. O Santo Daime no Céu de Todos os Santos: Uma experiência novaerista em Teresina –
PI. (Dissertação em Antropologia). Universidade Federal do Piauí. 2012.
145 FILHO, W. F. de F. R. A cultura dos adeptos do Santo Daime na igreja Céu de Todos os Santos em Teresina–
PI e sua relação com a religiosidade e as práticas de consumo consciente. (Trabalho de Conclusão de Curso em
Comunicação social). Faculdade Estácio CEUT, Teresina, 2017.
146 FILHO, W. F. de F. R. A cultura dos adeptos do Santo Daime na igreja Céu de Todos os Santos em Teresina–
PI e sua relação com a religiosidade e as práticas de consumo consciente. (Trabalho de Conclusão de Curso em
Comunicação social). Faculdade Estácio CEUT, Teresina, 2017.
seguem datas como o Dia de Reis, os dias dos santos juninos, e o dia de Nossa Senhora da
Conceição, um dos mais importantes da doutrina147. Ou seja, são práticas assentadas sobre o
calendário católico. Por fim, se realiza eventualmente o Feitio, quando é produzida a bebida
sacramental, e os trabalhos de cura e de estrela, demandados de acordo com a necessidade de
cada centro que consome o Santo Daime. Em comum entre os trabalhos colocados é que em
todos se comunga o chá e se cantam os hinos, que variam de acordo com o tipo de reunião que
está sendo feita148.

147 Idem, ibidem.


170
Idem, ibidem. 171
Idem, ibidem.
148 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1 arquivo,
mp3 (47 min.).
Fotografia 28: Raimundo Irineu Serra. Fonte: FROÉS, Vera. Santo Daime - Cultura amazônica: história do povo Juramidam.
Após o falecimento do então já conhecido Mestre Irineu, em 1971, um de seus fiéis
seguidores, Sebastião Mota de Melo, passou a desenvolver trabalhos espirituais com o Santo
Daime em sua própria casa, a partir de 1974, em companhia de sua família numerosa, que já o
acompanhava. O novo centro começou a ser frequentado também por colonos da vizinhança,
assim como por grande número de pessoas de Rio Branco, dentre funcionários públicos,
professores, estudantes, barbeiros, carpinteiros, dentre outros mais, que se reuniam nos dias
determinados para “trabalharem” com o Santo Daime. Além disso, tornou-se parte da rota de
jovens mochileiros de classe média, oriundos de diversos centros urbanos, e mesmo do
exterior, estudiosos e outros sujeitos, que passaram a residir na colônia.

Em 1976 a colônia formada no entorno de Sebastião da Mota Melo, chamada de


“Colônia Cinco Mil”149, passa a vivenciar uma experiência comunitária, proveniente do
aprofundamento nos trabalhos espirituais, que exigiam uma transformação na vida material
das pessoas envolvidas. Posteriormente, por questões como a devastação acelerada da mata
circundante do munícipio de Rio Branco, somada à dificuldade em conseguir implementos
agrícolas voltados ao melhoramento do solo, levaram o líder espiritual e comunitário
conhecido como Padrinho Sebastião a dirigir-se em mudança com os seus para o interior do
estado amazônico.

Interessante destacar que, como coloca Filho, a “[...]ligação com a natureza vem das
raízes da doutrina, com a trajetória de Raimundo Irineu Serra, representante responsável pela
criação e pela construção dos principais símbolos da religião”150, nascendo o culto brasileiro
do Santo Daime no coração da floresta amazônica. Motivo, inclusive, pelo qual essa doutrina
é dita “da floresta”, como é recorrente entre seus adeptos. Através dos hinos, mensagens que
tratam da importância de cuidar, respeitar e agradecer à Natureza são veiculadas,
demonstrando a forma de relação com o meio natural que é valorizada a partir dessa visão de
mundo170.

Com a mudança para o interior, ficou a “Colônia Cinco Mil” sendo habitada por cerca
de 50 pessoas, aproximadamente. Restaram do agrupamento original os terrenos onde estão
construídos o templo, a antiga casa do Padrinho Sebastião e a casa de feitio (lugar de
preparação do chá) do Santo Daime171. E foi nesse lugar, ou no que ainda resistiu da original
colônia fundada por Sebastião Mota, que Abrahão consumiu o Daime pela primeira vez, em
trabalhos feitos por um senhor conhecido como Padrinho Nonato, bem como nas outras vezes
mais que se seguiram, enquanto o artesão manteve-se no Acre, por cerca, portanto, de dois
meses.
Vejamos como era o senhor chamado Padrinho Sebastião:

149 FEIJÃO, T. J. de S. O Santo Daime no Céu de Todos os Santos: Uma experiência novaerista em Teresina –
PI. (Dissertação em Antropologia). Universidade Federal do Piauí. 2012.
150 NAÏFS [ENTRE CULTURAS]. Publicação da Bienal Naïfs do Brasil 2006. De 22 de setembro de 2006 a 31
de janeiro de 2007. Sesc Piracicaba, São Paulo.
Fotografia 29: Sebastião da Mota Melo. Fonte: FROÉS, Vera. Santo Daime - Cultura amazônica: História do
povo Juramidam.

A partir de tal encontro com a ayahuasca os caminhos de Abrahão se remodelaram, e


de certo modo, se misturaram aos do estabelecimento de tal doutrina religiosa no Piauí.
Quando passou a consumir o Santo Daime percebeu melhorias de questões de saúde
relacionadas a seu fígado, dispensando o iminente transplante já cogitado pelos médicos. Isso
o afetou de forma intensa. Não se descreve como uma “pessoa da Igreja”, fato que enfatizou
em entrevista por nós coletada, aonde diz:
[...]não sou uma pessoa da Igreja, de viver dentro da Igreja e tudo mais,
mas assim, eu acredito que o homem tem uma alma, e que esse chá
mexe com essa coisa chamada alma, com essa coisa do inconsciente
que está dentro de você, é um encontro com você, cada vez maior do
que aquele que eu tive com o Buriti, provavelmente. É uma coisa bem
real.151

Mas, a despeito de não poder ser considerado um assíduo frequentador das reuniões

151 Jornal O Dia. Teresina, junho de 2013.


176
Idem, ibidem.
dessa doutrina, a repercussão alcançada pelo Santo Daime em seu momento inicial nas terras
mafrenses em muito se deu pela ligação do chá ao artesão, que reunia pessoas de seu convívio
para tal consumo, articulando posteriormente o grupo direto às fontes acreanas, ao que se
lançaram as bases desse movimento perpassado pelos mais diversos elementos culturais no
Piauí. Fez o papel do viajante, que, indo a outras terras, retorna trazendo em sua bagagem
outras formas de experiências culturais, podendo ser visto como verdadeiro “mensageiro” do
Santo Daime no Piauí. Manteve-se viajando para participar das amostras como expositor,
acompanhando o quanto possível o desenrolar da trajetória de tal manifestação de cunho
cultural-religioso no estado, sem esperar que tomasse as proporções atualmente assumidas.

Em 2003, Abrahão participa da Mostra Piauí de Artesanato na Embaixada Portuguesa.


Pessoas ligadas ao designer o procuram, curiosos acerca da bebida sacramental. Passam a se
reunir em um sítio na zona rural de Teresina, onde consomem a “oasca” (corruptela do termo
“ayahuasca” – palavra indígena) no entorno de fogueiras, ao som de mantras. Em dezembro
desse ano, um fardado do Santo Daime e ex-aluno das oficinas de buriti de Abrahão no Acre
chega a Teresina, instruindo tal grupo de consumidores acerca da parte litúrgica da doutrina,
preparando os moldes sobre a qual posteriormente se assentaria a primeira Igreja Daimista do
Piauí.

Em 2004 participa da Mostra Piauí de Artesanato na Embaixada Espanhola, assim


como na Exibição Brasileira de Decoração na Casa Cor, em São Paulo. Mudanças se dão
nesse ano, quando se realiza em 15 de janeiro o primeiro trabalho nos moldes ritualísticos do
Santo Daime, conhecido como “Trabalho de Concentração”. Em setembro os primeiros
daimistas mafrenses veem-se na situação de mudança, pois o proprietário do sítio que até
então vinham utilizando para as reuniões pediu para procurarem outro local, dada a circulação
intensa de pessoas em suas terras.
Porém rapidamente solucionou-se o caso, com a ajuda do empresário Manuel de
Oliveira Barros Filho, que ofereceu seu sítio como local onde pudessem se fazer as reuniões,
onde se fundou a sede da igreja em seguida. Em 2005, especificamente no mês de setembro é
inaugurada a primeira igreja daimista do Piauí, com a presença do antropólogo Fernando
LaRoque Couto, dirigente do Céu do Planalto, igreja sediada em Brasília (DF). No mês
seguinte é assinada a Ata de Fundação do Centro Livre de Força, Amor e Luz Rainha da
Floresta – Céu de Todos os Santos152. Em todos esses momentos Abrahão Honório esteve
presente, como colaborador dos acontecimentos.

152 Jornal O Dia. Teresina, junho de 2013.


5.2 Abrahão: cidadão da mata

Mantendo-se no cenário artesanal, participa o artesão em 2006 da Bienal Naïfs do


Brasil, produzida pelo Sesc São Paulo, como expositor 153. Experiência interessante e
desafiadora, onde seu trabalho foi apontado como entre-cultural, passeando entre a cultura
erudita e a cultura visual popular. Foi um período de novas vivências. Em 2007, já divorciado
da jornalista Andréa Alcântara de Figuerêdo Rêgo, tem sua quarta filha, Namíbia Rodrigues
Cavalcante, com Osmarina da Cruz Rodrigues. É quando se muda para sítio distante cerca de
15 quilômetros da capital, localizado no Verde cap, provavelmente em busca de maior
tranquilidade e repouso, em consonância com as propostas filosóficas do Santo Daime. Esse
fato foi noticiado pelo jornal O Dia, de domingo, dia 2 de junho de 2013, em matéria
intitulada Em paz com a vida.

É então noticiado o artesão como alguém que resolveu “[...]dar um basta no


consumismo exagerado[...]”154, partindo para uma vida mais saudável, na contramão da
modernidade.

“Decisão tomada como opção visando qualidade de vida, não por queda de padrão social –
como poderiam pensar os que trabalham a aparência para se mostrar a um público ávido por
novidades, pelo modismo que inflama e gera inquietação” 176, ou seja, é produzido um discurso
no jornal de Abrahão como alguém que partiu para uma vida mais reclusa e próxima ao meio
natural, por uma questão de escolha, pelo exercício da liberdade disposta aos sujeitos. Ainda
na oportunidade da matéria citada, Abrahão diz:

Depois de um certo período passei a perceber que a vida tinha um sentido mais
voltado para a natureza, para a reciclagem, para a energia do tempo que se gasta na
cidade com coisas que não são fundamentais. Uma mudança paulatina, nos últimos
dez anos, me trouxe até aqui à floresta, onde passo praticamente todos os dias.155

Aponta aí “uma mudança paulatina”, em passos lentos, que já se desenrolava por dez
anos em sua vida, aproximadamente o período em que o Santo Daime se estabeleceu em terras
mafrenses, se consolidando a mudança para uma vida menos material na forma da construção
de um novo lar, em um sítio distante cerca de 8 quilômetros da cidade, rodeado de verde e

153 FILHO, W. F. de F. R. A cultura dos adeptos do Santo Daime na igreja Céu de Todos os Santos em Teresina–
PI e sua relação com a religiosidade e as práticas de consumo consciente. (Trabalho de Conclusão de Curso em
Comunicação social). Faculdade Estácio CEUT, Teresina, 2017.
154 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1
arquivo, mp3 (47 min.).
155 CAVALCANTE, Abrahão Honório. Entrevista concedida a Yasmin Moura Lima. Teresina, maio de 2017. 1
arquivo, mp3 (47 min.).
preenchido pelo silêncio. Chegamos a fotografar, entre os arquivos de Abrahão, desenhos da
casa que projetou para si, além de fotografias em que o mesmo aparece em plena construção.
Vejamos o mais representativo dos desenhos, para entendermos a disposição do sujeito em sua
nova trajetória:

Fotografia 30: Desenho da casa feito por Abrahão, em 2007. Fonte: Acervo pessoal do biografado.
Se vê pelo desenho traçado pelas mãos do designer, ainda em 2006, o quanto as
técnicas de desenho em perspectiva fizeram a diferença em sua prática enquanto construtor,
seja de casas, seja de móveis ou mesmo painéis. Abrahão soube fazer bom uso dos
conhecimentos adquiridos ao longo da vida. Não à toa, a casa por ele construída apresenta
espaços amplos e ventilados, e podemos observar seu empenho nesse sentido pelas imagens
da construção, colocadas logo abaixo, onde o mesmo, perpassado fisicamente por questões de
saúde, parece ter resistido trabalhando firmemente.

Essa montagem, já encontrada com esse formato nos arquivos de Abrahão, apresenta
diversos quadros, como se pode ver. Façamos uma leitura do primeiro quadro para adiante: no
primeiro, vemos Namíbia e o pai, na ocasião do fardamento de Abrahão, em 2011, em
momento de “monumentalização” da existência. No ano de 2011, se realiza a construção de
uma fornalha e, com ela, acontecem os primeiros feitios (produção do chá) do Céu de Todos
os Santos, igreja do Santo Daime surgida em Teresina por intermédio de Abrahão. É quando
Alfredo Gregório de Melo, atual líder espiritual do Santo Daime, visita a nova igreja,
deixando na ocasião a chave da região do Nordeste com esse centro, que passou a ser produtor
e distribuidor da bebida sacramental nesse trecho do país. Foi nesse evento que Abrahão
Honório Cavalcante fardou-se, ou seja, assumiu diante da confraria religiosa daimista o
compromisso de membro iniciado. É sobre isso que trata o segundo e o terceiro quadro:
vemos Alfredo Gregório de Melo “colocando a estrela” na farda de Abrahão, sendo esse o
ponto ápice do ritual de fardamento:

Fotografia 31: Montagem de Abrahão, em 2011. Fonte: Acervo pessoal do biografado.


Sobre o fardamento sabe-se que, na doutrina do Santo Daime, os adeptos que se
decidem por seguir a religião podem “receber a farda”, termo usado para se referir às
indumentárias utilizadas nas práticas ritualísticas. Existem dois tipos de farda: a azul, que
vemos Abrahão usando nas imagens, composta por camisa branca de botões, gravata e calça
azuis, geralmente em uso nos trabalhos de concentração, de cura e nas Santas Missas; e a
farda branca, usada nos bailados e trabalhos oficiais156.

Nas outras imagens, vemos Abrahão terminando de organizar o teto de sua nova casa,
a mesma representada em desenho na página 107. Traja roupas próprias para o calor e para a
lide nada simples de se construir o próprio lar. Está também de chapéu, aliado forte contra o
sol persistente do Piauí. Ao ser perguntado como sua trajetória pode ter o levado a esse
momento, de encontro com o Santo Daime e com uma nova forma de vivência, Abrahão nos
responde:

É, eu diria que o Buriti foi importante por demais né na minha vida. Um dos
vegetais, não sei..., ainda não lhe falei sobre: aquilo que marca a minha vida é a
presença de três vegetais né. O Buriti é um deles e ele me levou ao Acre né, quando
eu, quando esses produtos de Buriti começaram a chegar nas galerias, nas amostras

156 ARTIÈRES, P. Arquivar a Própria Vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998.
de arquitetura, etc e tal, essa coisa começou a explodir, entende? Então, todo o Brasil
que tinha buriti, nas regiões do Norte, do Centro-Oeste, no centro do país, em Minas
Gerais, eu passei a andar muito nesses locais, a convite de governos, de Sebraes, e
tudo mais, pra aplicar esse conhecimento nessas regiões. E a primeira cidade que me
solicitou uma transmissão desse conhecimento, ou seja, uma ampliação desse
conhecimento que eu desenvolvi né com o Buriti, dessa técnica, do uso, me levou ao
Acre que é a terra do Santo Daime, onde tudo inicia com o Mestre Irineu, que é o
Papa da doutrina, e o subsequente, que é o Padrinho Sebastião, e dentre alguns
alunos, vinte ou trinta, não sei, não lembro o número, muitos deles eram daimistas e,
num determinado momento da minha participação lá com o Buriti, eu fui convidado
pra conhecer o Santo Daime, na Colônia Cinco Mil. E eu aceitei. E tomei a bebida, e
a partir daí essa bebida passou a fazer parte da minha vida como um elemento
modificador realmente da minha visão de mundo, um expansor da minha mente e da
minha criatividade, mais ainda do que o que já se prenunciava. Me trouxe novas
informações guardadas dentro de mim mesmo, nada vem de fora, tudo está dentro.
Mas essas plantas que eu estou te falando, elas têm esse poder, de extrair do âmago
do indivíduo né, um potencial que as vezes nem ele mesmo conhece.157

Vista como um “elemento modificador” do entendimento de mundo de nosso


biografado, a ayahuasca é significada por Abrahão como um “expansor” de sua mente e
criatividade, com o poder de extrair do âmago de seu ser um potencial até então desconhecido
por ele próprio, lhe “revelando” informações anteriormente não percebidas. No entanto, o
vemos aí citar dois dos vegetais aos quais atribui esse poder “expansor”. Ao ser questionado
sobre qual seria o terceiro, cita a Cannabis sativa. Em busca de compreender como esses três
vegetais são significados por esse artesão, o questionamos a esse respeito, ao que nos
responde o mesmo:

Eu diria assim, que a Cannabis foi a minha iniciação pra essa nova jornada, o Buriti,
para esse encontro do conhecimento, né, quem sou eu? O advogado, um historiador,
um artista plástico, um ladrão, uma coisa assim. Não, eu...o Buriti me trouxe um
encontro comigo mesmo, eu passei realmente a ser feliz, entende, onde eu tive um
encontro comigo mesmo. Quem sou eu? Eu sou esse cara, que foi capaz de
modificar, de radicalizar, digamos assim, uma matéria-prima, criar algo que até
então era inédito, era coisa...e isso me dá um prazer imenso. Realmente foi um
encontro. E o Santo Daime é o terceiro encontro, que é o do fechamento do meu
ciclo como homem, onde eu vou trabalhando cada vez mais o meu espírito, a minha
alma, a minha paz interna, essa é a fase que eu diria assim, final da minha vida, que
é o Daime. Não que o Daime seja uma coisa que traz o fim, e sim um começo, um
novo começo, entende, pra minha vida. [...] . Então essas três coisas funcionaram
assim: começo, meio e fim. 158

Assim, claramente colocado, fica exposto como Abrahão Honório Cavalcante entende
a relação que estabelece com os vegetais: a Cannabis sativa seria o início de um ciclo, quando
ainda moço abriu-se às experiências perceptivas ocasionadas por ele; já o buriti foi a matéria
onde se encontrou com a própria subjetividade, e mesmo com os meios por onde adquiriu sua
nutrição. Por fim, o Santo Daime veio como o terceiro encontro, anunciando ao homem a
necessidade de olhar para mundos além do da matéria, onde Abrahão procura espiritualizar-se,
157 .
158 .
alcançando um “novo começo” para sua existência.

Nesse sentido, podemos retomar algumas considerações de Philippe Artières, para


quem “[...]arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem
íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma construção de si mesmo e de
resistência”159, ficando espaço para considerarmos que, ao se permitir entrevistar, momento
onde Abrahão emite visões atuais a respeito de eventos passados, o biografado se constrói
como alguém em estreita relação com o mundo vegetal, fala essa que parece destoar da
sociedade moderna e altamente consumista onde se vê inserido. Não deixa de constituir esse
discurso enquanto forma de resistência, por pautar suas experiências de vida em marcos outros
que não aqueles “canonizados” socialmente, como os aniversários, o casamento, o nascimento
dos filhos, etc. Esses parecem ter importância, porém sendo entendidos dentro da organização
da própria vida estabelecida pelo biografado, e, tomando esse aspecto, remontamos mais uma
vez ao estudioso Artières, que entendia essas construções como entendimentos do sujeito para
com a vida, por meio do qual se fazia uma identidade. É então Abrahão alguém que organiza a
identidade tomando por base a relação de uso estabelecida com três vegetais, optando por ser
um cidadão da mata.

Atualmente, é possível encontrar Abrahão Cavalcante motivado pelos assuntos do lar,


cuidando de sua casa e de seus jardins, longe do burburinho e agitação comum às cidades,
cenário onde contempla o mais dos dias. Ainda produz trabalhos em buriti, mas mantem-se
distante dos circuitos de arte, artesanato e arquitetura, preferindo antes produzir sob
encomenda. Parece satisfeito com os agenciamentos por ele vividos, assim como também
parece surpreso com o interesse por sua história de vida, sendo necessário explicar ao
personagem em alguns momentos da pesquisa que, sua trajetória de usos dos vegetais
alcançou outros sujeitos, e tal esforço de reconstrução pauta-se na reflexão historiográfica de
não serem apenas os “grandes homens”, ou seja, os presidentes, governadores, os reis, objetos
dignos da narrativa histórica. Os homens que compõem a história das cidades, dos usos, do
cotidiano e das relações com a natureza também merecem o lugar de sujeitos históricos.

Na imagem que se segue, vemos Abrahão e Namíbia, sua filha mais nova, no caminho
para a casa onde residem na taboca do pau ferrado, cercado de verde e pequenos animais que
ainda encontram refúgio nessa região. É com ela que encerramos esse momento. Olhemos:

159 nov. 2017.


Fotografia 32: Abrahão e Namíbia a caminho de casa, em 2011. Fonte: Acervo pessoal do biografado.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observar a trajetória de um sujeito foi tarefa um tanto mais complexa do que se


poderia imaginar. Com quantos Abrahão(s) não nos deparamos ao longo dessas breves
páginas? Com o menino Abrahão, descalço, de calções listrados e que gostava de se entreter
com os irmãos mais velhos, a caçar com sua baladeira em intermináveis incursões pelos
matos. Com o Abrahão adolescente, criador de galos de briga e apreciador dos cafunés
recebidos por sua mãe, enquanto a mesma via a novela. Com o Abrahão cansado de galos - e
mais ainda, de brigas -, já interessado nas “tertúlias” que frequentava com seu irmão Ronaldo.

Nos deparamos ainda com o Abrahão de cabelos longos, fã de Roberto Carlos, que
tinha por “Detalhes” a sua música preferida, a conhecer a Cannabis sativa nos festivais
recorrentes na região do Crato nos idos anos de 1970. Esse é o mesmo Abrahão que, quando ia
a Iguatu, organizava serenatas para as namoradas que arranjava na cidade, incansável nas
noites tranquilas das férias. Era também o técnico em mecânica dos solos, o funcionário
público, o estudante de Direito, o ator...foi também o marido, tornou-se o pai, se fez artesão,
artista plástico e designer do buriti, numa explosão de criatividade inesperada pelos que
estavam em seu redor.

Com o buriti, se fez professor, e depois mestre em arte. Mestre, foi chamado a fazer
mais alunos nas terras do Acre, fazendo o papel de viajante. Retornou mensageiro de uma
religião puramente brasileira, o Santo Daime. De mensageiro, se fez iniciado em um caminho
inesperado, que o levou a se tornar mais um cidadão da mata que ainda circunda a cidade, dia
após dia se vendo essa fortemente cercada pelas agressões humanas ao meio.

São muitas as faces, que poderiam realmente terem sido melhor analisadas, mas nos
vemos satisfeitos em sequer poder notar o quanto é complexo o gênero humano, e quanto os
sujeitos são díspares entre si, com valores diversos, sonhos diversos, desejos mais
diferenciados ainda. Essas são assim anotações sobre um sujeito que não quis ser herói.
Preferiu ser artesão. E artesão, realizou suas potencialidades, suas capacidades mais latentes,
quem sabe alcançando o que se chama banalmente de “felicidade”. Não nos cabe perguntar se
foi feliz. Mas podemos dizer que parece ter sido, e vem sendo. Noticia-se com isso uma das
muitas possibilidades de relação humana com o meio natural, ficando evidenciado não se
pautar essa apenas na problemática da exploração irracional à natureza. Relações de amizade,
respeito, e, arriscaremos dizer, afeto, podem acontecer entre humanos e vegetais. Nem só de
desejo desenfreado de consumo vivem os humanos. Há mais do que os olhos podem ver e
saber.
Há mesmo identidades, como a de Abrahão, que se constroem sobre os pilares dessa
relação com o meio natural. Provavelmente isso tenha a ver com as suas origens, desde infante
enraizado na natureza, tendo perto de si lagoas de águas limpas nas quais pôde banhar-se. Mas
ficam as suposições a esse respeito na esfera dos possíveis, dado ser a subjetividade de cada
indivíduo matéria-prima frágil, sobre a qual não é cabível buscar solidez. Nos cabe ver e saber
que são as pessoas como a própria vida: fracionadas, múltiplas, descontínuas, perpassadas
pelo que não se pode ponderar, nem mesmo conhecer.
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Documentário (80 minutos). Produção Arte e comunicação visual.

Monografias e dissertações

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1920 a 1980. (Dissertação do Mestrado Acadêmico em Geografia). Universidade Estadual do
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(Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências
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em Teresina – PI. (Dissertação em Antropologia). Universidade Federal do Piauí. 2012.

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Santos em Teresina–PI e sua relação com a religiosidade e as práticas de consumo
consciente. (Trabalho de Conclusão de Curso em Comunicação social). Faculdade Estácio
CEUT, Teresina, 2017.
GLOSSÁRIO

AYAHUASCA - bebida enteógena preparada com o caule do caapi (Banisteriopsis caapi) e


folhas de chacrona (Psychotria viridis), usada ritualisticamente por populações amazônicas e
milhares de adeptos de diversas seitas em todo o Brasil e no exterior; auasca, daime, iagê,
mariri, uasca;

ENTEÓGENO – Manifestação interior do divino;

FARDADO - O Fardamento equivale a um dos sete sacramentos, que é uma ordenação.


Quando um buscador se farda ele aceita servir o próximo neste caminho espiritual;

FEITIO - O feitio do Santo Daime é um dos principais trabalhos da Doutrina. Além do feitio
material da bebida sacramental, ele é também considerado uma verdadeira alquimia espiritual.

HINÁRIO – O hinário é um conjunto de hinos que compõem o principal acervo de


ensinamentos e o núcleo do corpo doutrinário da tradição daimista. Pode-se dizer que é uma
nova Bíblia, moderna, participativa, simples e transcendental;

HINO - Os hinos são tidos como a própria "voz" da doutrina. Os hinos ocupam um lugar de
destaque na Doutrina do Santo Daime, ao lado da bebida sacramental. É através dos hinos que
todos recebem a orientação e os conhecimentos doutrinários do Santo Daime.

MESTRE – Fundador da Religião do Santo Daime, guia espiritual da doutrina;

PADRINHO - Liderança espiritual masculina, conselheiro e curador;


APÊNDICE A – ENTREVISTA REALIZADA COM ABRAHÃO HONÓRIO

CAVALCANTE

1) Como aconteceu seu primeiro contato com o Buriti?


O primeiro contato aconteceu logo quando eu cheguei aqui, acho que um ano depois...e fui a
uma região para adquirir uma terra lá, um lote, pra fazer um sítio, e tinha muitos buritizais. E
lá houve esse encontro onde tive uma conversa com os buritizais, uma coisa meio mágica, que
eu não posso explicar assim claramente como é que é esse contato, porque é uma coisa fora do
padrão. Mas, a partir daí que começou a nascer ideias, a partir daquela matéria-prima que se
apresentava ali, aquele vegetal belo, frondoso, e fiquei mais apaixonado ainda quando fiz um
contato direto assim, com os talos da palmeira. A primeira impressão foi de surpresa, porque
era muito leve e muito resistente, e muito bela. E a partir daí comecei a tirar deduções, tirar
conclusões nessa linha de pensamento de que aquilo poderia ser um elemento que poderia
mudar até a minha vida, naquele exato momento, que foi o que terminou acontecendo. Nesse
primeiro contato, já tive umas ideias fantásticas pro local, porque acabamos adquirindo lá
esses lotes, dois lotes, e fizemos uma casa, e lá, nasceram essas primeiras obras com essas
características que até então não tinha. Digamos assim, não era do conhecimento geral das
comunidades, nem ribeirinhas dos brejos, nem da grande metrópole. Realmente uma surpresa.
Aí, foi uma coisa que deu muito certo, foi muito fantástico isso.
- Mas quando o senhor encontrou esse material já tinha alguma noção de como trabalha-lo?
Se não, como se desenvolveu essa técnica?
Essa coisa é nova pra mim também, então, seguinte: quando a pessoa diz que teve um contato
com um vegetal, parece ser uma coisa estranha, não é? “Isso é uma conversa de um maluco”.
Mas não é bem assim. Então...esse contato implica ideias, entende? Esse contato implica em
inspirações, em intuições, coisas sutis, que realmente não é uma coisa que se encontra todo
dia. E a partir dali já teve umas ideias. É tanto que eu disse pra o meu sogro, que foi lá comigo
pra gente adquirir essa terra, que os móveis da casa e a decoração eu iria fazer com essa
matériaprima, já, agora, de pronto. E foi assim que aconteceu.
- Como se chama seu sogro?
É Wilson Fernando. Wilson Fernando Rêgo.
- Qual parte então é a mais importante para o seu trabalho? O senhor falou nos talos, mas
tem algo mais que o senhor utiliza?
Não, o Buriti, depois que você tem esses contatos e passa a trabalhar com ele, pesquisa-lo,
porque na realidade é uma pesquisa, você inicia, você vem do zero. Até então não existe uma
coisa parecida. Existia assim, toalhas, doces, óleo, cercas de buriti, caixinha de doce, essas
coisas todas, pipas feitas com o palito do Buriti..., mas assim, um material, pra você usar no
cotidiano, um utilitário no mundo da arquitetura, no mundo da decoração, realmente, isso não
existia. O que mais participava disso eram as esteiras de Buriti, e as toalhas do linho do Buriti,
que no Maranhão já se fazia belas toalhas, que não é a minha em relação ao Buriti. A minha é
o talo. O objeto do meu estudo no Buriti, assim, em termos de trabalho, é o talo. É dirigido
para o talo. Logicamente que eu tenho outras preocupações com a vida dos buritizais, a vida
dos brejos, a vida das pessoas que estão no entorno dele, a preservação desse ecossistema,
desse pequeno ecossistema, que..., se caracteriza aqui pela chapada piauiense e outras, e pelo
Cerrado, um pouco.
- E onde é que o senhor começou a extrair inicialmente a sua matéria-prima e de onde é que
o senhor extrai atualmente? Como é que é para fazer essa retirada de Buriti hoje? Como
não agredir o Buriti?
Bem...o talo, quando eu tive esse insight com o Buriti, percebi que, é preciso protege-lo,
entende? Então, como protege-lo, se eu vou usá-lo, provavelmente maciçamente, eu e.., e
como é hoje? A partir desse trabalho surgiram “n” pessoas trabalhando com isso. Então, é não
tirar o talo verde. Não cortar a palmeira. Não precisa de cortar a palmeira, não precisa tirar o
talo que está verde. Apenas colhe o talo maduro, aquele que já cumpriu sua função dentro do
ecossistema. Então ele é retirado para essa utilidade. Então isso com certeza perpetuará a
espécie.
- E como o senhor identifica o talo maduro? Quais são as características de um talo que já
está bom para o seu trabalho?
O talo maduro é aquele que perdeu a clorofila não é, já cumpriu, teve seu período de utilidade
pra planta. A planta brotou outras folhas, outros talos, e aquele que ficou pra traz amadureceu,
morreu, e é colhido, já sequinho, sem umidade, sem nenhuma função mais na planta.
- É o senhor que extrai? Ou tem alguém que lhe auxilia?
Inicialmente, quando tive esse contato, eu mesmo entrava nos brejos com um prazer imenso,
porque é pouca coisa que é bonita como um brejo, um brejo primitivo assim, um brejo natural,
que ainda não foi invadido pelo homem, é algo de fantástico, de vida, de água, de beleza, de
flora, de fauna. Então você...só se for um bruto mesmo não é, pra não se sensibilizar com
aquilo e passar a utilizar aquilo pensando na preservação desse meio, que é a perpetuação do
teu trabalho e dos teus discípulos.
- E aí por quanto é que o senhor tem encontrado o Buriti? Ele tem gerado uma boa renda?
Como é o acordo com os extratores? Quais são as localidades hoje que são as melhores
para a retirada desse buriti do seu trabalho artesanal?
Eu sempre retirei mais Buriti na região aqui, entre Timon e Caxias, tem muitas veredas nesse
trajeto entre essas duas cidades, onde eu adquiri essa porção de terra lá, lá tinha muitas
veredas. - Qual o nome da localidade, por gentileza?
É...lá é Brejinho. Localidade de Brejinho. Brejinho que...não sei se é município de Timon ou
já é de Caxias. Fica a 40 km de Timon, aproximadamente, nessa BR que vai até São Luís.
- No caso, o Piauí é bom para Buriti?
É, o Piauí...que depois que desenvolvi essa técnica, eu rodei pelo Brasil por conta do Buriti.
As pessoas tinham curiosidade, queriam aprender, mas como o talo do Piauí, aqui do
Maranhão, dessa região, dessa micro-região aqui que eu estou te falando, ele é até hoje o
melhor talo, no meu entendimento assim, em termos de beleza, de resistência, de
comprimento, é uma bela matéria-prima.
- Mas, senhor Abrahão, nós sabemos que o Buriti tradicionalmente é citado como material
para cerca, canoa. Como o senhor fez então para apropriar essa matéria-prima de uma
forma que se tornasse resistente? Como fazer para uma peça em Buriti se tornar durável?
É, alguns conhecimentos que eu tinha antes não é de trabalhar com o Buriti, que é a geometria
não é, o trabalho com ângulos, superposições, esse tipo de coisa, pra torna-lo possível,
entende? Uma cadeira, no vão mais longo você tem que trabalhar isso com angulações e peças
formando braços, esse tipo de coisa. Que é perfeitamente possível.
- Aí se torna durável? Um bom produto?
É, um produto que passou a ter credibilidade no mercado, porque hoje tem peças aí de vinte,
trinta anos rodando ainda. Cadeiras, tetos, obras de arte, luminárias. Quer dizer, um material
usado de uma forma correta, de uma forma coerente, e é como qualquer matéria-prima, ou até
melhor, porque é resistente e é natural, é bela, e é fantástica.
- E sobre sua primeira exposição, o senhor pode falar um pouco sobre essa experiência?
Como o senhor inseriu-se no mundo da arte por meio do buriti?
Olha, na realidade, eu não tinha uma pretensão de me tornar um artista do Buriti, digamos
assim. Eu exercia a profissão de advogado e naquele exato momento assim houve uma
perspectiva de mudança com o conhecimento do Buriti. Houve um estímulo, digamos assim,
da planta para mim né. Quer dizer, um toque, de que eu poderia ser muito bom no uso daquilo.
Podia fazer assim uma parceria entre mim e o Buriti pra produzir essas coisas, então, naquele
momento ali a gente começou a pensar já realmente os móveis da casa, e como fazê-los de
uma forma, digamos assim, que passasse credibilidade assim, e mudasse a visão que até então
se tinha do Buriti.
- O senhor tinha ajudantes então naquele momento? Quem foram as pessoas que lhe
ajudaram no começo da sua carreira enquanto artesão a produzir peças em Buriti?
Não, no comecinho é um trabalho solitário, né, é um trabalho, que assim, o caseiro lá do sítio
ajudava na coleta daqueles talos que tinham na própria região ali, mas no manuseio, no
fabrico das coisas realmente até pra mim era inédito, novo. Como fazer isso? Então, com esse
meu conhecimento que eu te falei de geometria né, de desenho geométrico eu passei a
desenhar umas coisas, antes da execução, pra ver como trabalhar isso de uma forma que ele
realmente apresentasse uma credibilidade assim, como um produto competitivo e capaz de
tocar a vida de uma pessoa, ou seja, sustentar a vida de uma pessoa e de sua família.

- Me diga uma coisa: o senhor fala em desenho geométrico, esse desenho geométrico foi
desenvolvido como? O senhor fez algum tipo de especialização? Teve algum curso ou
realmente foi um tipo de experiência autodidata, de um conhecimento que o senhor tenha
desenvolvido solitariamente?
Não, a geometria veio quando eu ainda morava no Ceará, eu fiz Escola Técnica, e lá se
estudava muito desenho geométrico né, porque a minha especialidade era construção de
estradas e edifícios, estudo de fundações, essa coisa, exigia um conhecimento de geometria
muito bom. E isso a gente fazia muito lá. A Escola Técnica realmente foi uma grande fonte
nesse aspecto pra ajudar nessa nova missão que se apresentava naquele momento.
- Com quantos anos, aproximadamente, o senhor teve esse contato com o Buriti pela primeira
vez?
Com quantos anos já faz que eu tive esse primeiro contato, é isso que você quer saber?
- Não, com quantos anos foi sua “iniciação” com o Buriti?
Ah..., eu já tinha uns 30 anos, 28 anos, eu acredito...por aí. Estava amadurecendo. Já era pai de
três filhos, entende? Já..., mas entre 28 e 30 anos, eu acredito. Devo te falar que esse negócio
de datas não é o meu forte né. Tudo que você me perguntar, posso te responder. Está tudo na
minha cabeça, mas datas, é o meu ponto fraco.
- Compreendo, senhor Abrahão, não se preocupe com essa parte. Mas o senhor sabe que o
que me levou inicialmente a ter esse interesse pela sua trajetória como artista, antes de
tudo, foi a beleza de suas peças, que realmente é notável, gosto do trabalho do senhor. Mas
sabemos que o senhor trouxe aqui para o Piauí uma bebida enteógena, que é o Santo
Daime, ou ayahuasca, como é conhecida. E eu gostaria de saber como foi que o senhor
trouxe a ayahuasca pra cá, como foi esse processo? Porque o senhor, inicialmente era
advogado, e depois, se tornou artesão, artista plástico, e como essa trajetória leva até esse
momento?
É, eu diria que o Buriti foi importante por demais né na minha vida. Um dos vegetais, não
sei..., ainda não lhe falei sobre, aquilo que marca a minha vida é a presença de três vegetais
né. O Buriti é um deles e ele me levou ao Acre né, quando eu, quando esses produtos de Buriti
começaram a chegar nas galerias, nas amostras de arquitetura, etc e tal, essa coisa começou a
explodir, entende? Então, todo o Brasil que tinha buriti, nas regiões do Norte, do Centro-
Oeste, no centro do país, em Minas Gerais, eu passei a andar muito nesses locais, a convite de
governos, de Sebraes, e tudo mais, pra aplicar esse conhecimento nessas regiões. E a primeira
cidade que me solicitou uma transmissão desse conhecimento, ou seja, uma ampliação desse
conhecimento que eu desenvolvi né com o Buriti, dessa técnica, do uso, me levou ao Acre que
é a terra do Santo Daime, onde tudo inicia com o Mestre Irineu, que é o Papa da doutrina, e o
subsequente, que é o Padrinho Sebastião, e dentre alguns alunos, vinte ou trinta, não sei, não
lembro o número, muitos deles eram daimistas e, num determinado momento da minha
participação lá com o Buriti, eu fui convidado pra conhecer o Santo Daime, na Colônia Cinco
Mil. E eu aceitei. E tomei a bebida, e a partir daí essa bebida passou a fazer parte da minha
vida como um elemento modificador realmente da minha visão de mundo, um expansor da
minha mente e da minha criatividade, mais ainda do que o que já se prenunciava. Me trouxe
novas informações guardadas dentro de mim mesmo, nada vem de fora, tudo está dentro. Mas
essas plantas que eu estou te falando, elas têm esse poder, de extrair do âmago do indivíduo
né, um potencial que as vezes nem ele mesmo conhece.
- O senhor falou até agora em dois vegetais. No caso o Buriti e o Santo Daime, que é um
cipó. No caso, foram três vegetais que mudaram sua forma de ver, e qual foi o terceiro?
A Cannabis sativa, né, que foi a primeira planta, assim: plantas sempre tiveram presentes na
minha vida. Eu sou um menino nascido no sertão, na Caatinga né, e sempre tive muito contato
com todo tipo de vegetal. A Cannabis, já na minha adolescência, tive um contato que
realmente foi um paradigma pra uma mudança, naquele exato momento. A partir do momento
que fiz o consumo desse vegetal, partilhei a minha vida com esse vegetal, houve um, assim,
do meu ponto de vista, um crescimento da minha alma, da minha pessoa, da minha
sensibilidade para minha trajetória como um homem a partir dali. Eu deixei de ser um
sertanejo pra ser um homem mais sensível, mais tolerante, mais feminino, digamos assim.
- Como foi esse primeiro contato, como aconteceu sua iniciação no uso da Cannabis sativa?
Eu fui à região do Cariri, ali no sul do Ceará, fronteira com a Paraíba por ali, tem umas
festividades lá. Aí eu fui com um irmão meu e um amigo, e eles já conheciam a Cannabis. E aí
nessa viagem eu passei a conhecer também. Nós partilhamos num lugar muito bonito né, que
foi a Serra da Batateira, numa piscina natural, com água gelada, maravilhosa, um lugar
realmente sagrado, entende, pra se consagrar uma planta divina, como a Cannabis, e como o
Buriti, e como o Santo Daime. E outras tantas que eu não conheço, e que devem existir na
nossa floresta.
- O senhor disse que depois da experiência com a Cannabis se tornou até um pouco mais
feminino. Que imagem o senhor tem de si enquanto homem? Que visão tem da sua
masculinidade?
Bem, eu tenho muitos ranços, eu sou um homem antigo, digamos assim, se você for pensar
que a vida d’um homem, a vida útil de um homem é 60 anos, por aí, 70, eu já sou um homem
antigo né, tenho 63 anos de idade, então, eu tenho muitos ranços; mas na minha época, em 53,
até os anos 70, era a época do cangaço praticamente, minha filha. Os homens eram os
senhores de tudo, entende. As mulheres apenas eram mães, entende? E elas pouco
participavam assim, uma ou outra mulher né que era mais “tutanuda”, mais...e o homem era o
senhor da verdade, depois disso não. Passei a perceber, na minha sensibilidade, que não, que
isso era um atraso para um homem. O homem tinha que ter uma sensibilidade tão boa quanto
a sensibilidade feminina né, pra perceber as injustiças, pra perceber as incoerências, pra
partilhar a maternidade, entende, essa coisa toda. Um homem diferente. Um homem mais
presente na vida das mulheres. Não um homem isolado, como um senhor de tudo.
Logicamente que eu ainda tenho muitos ranços porque isso vai ficando, mas eu continuo
trabalhando pra que um dia eu possa ser realmente um homem livre de todos os ranços que me
acompanham.
- Eu sei que o senhor já anunciou que não é muito bom com datas, entendo. Mas será que o
senhor recorda, dessa época que utilizou pela primeira vez a Cannabis, a Maconha, quantos
anos tinha mais ou menos? Ou melhor, estava já em que grau da escolaridade? Em que
momento da sua escolarização?
Eu era bem jovem, estava, digamos assim, no que a gente chamava de Curso Secundário,
tinha o primário, ou então já no Científico, uma coisa assim. Quase já pra entrar...eu devia ter
uns 20 anos, 18 pra 20 anos, entende? O grau de escolaridade não era tão bom, mas a escola
daquele tempo era muito boa, entende. A gente tinha um conhecimento bom, a gente lia, era
obrigado a ler, entende. Os professores eram durezas, entende. E eles tinham assim uma
autoridade sobre a gente né. A família transmitia essa autoridade e a gente lá tinha que
aprender, entende, a coisa acontecia assim.
- O senhor é nascido em Iguatu, que no caso é interior do Ceará, não é?
Eu nasci no Ceará, a capital é Fortaleza, eu nasci no sertão central, que fica a 600km da
capital, é centro- Sul, pra ser mais preciso, entende. E lá é bem próximo dessa região que a
gente já falou, que é o Cariri, é muito próximo, e eu nasci ali, em 53, as 11 :30 da noite, no
sítio chamado Barra, é um local onde é o encontro de dois rios, aonde a minha família se
concentrava, lá era um reduto da família Cavalcante.
- No caso, como eram ou são seus pais? O senhor pode falar um pouco sobre eles?
É, o meu pai e minha mãe eram duas pessoas fantásticas, ótimas, mas assim, muito rigorosos,
era uma coisa da época. Os pais eram rigorosos com os filhos né, na disciplina, nos horários,
nas coisas, tinha todo um amor, uma fraternidade, mas ao mesmo tempo tinha toda uma
cobrança de posicionamento, de educação, de estudo, de comportamento, entende. E, dentro
de uma visão bem ortodoxa. Religiosa e tudo mais. Era meio difícil.
- Tem algum fato que marca sua infância de uma forma em especial, que o senhor ache que
foi algo que mudou a sua perspectiva de mundo?
O fato foi a mudança. A morte do meu pai, que é um fato muito forte né, eu ainda, um garoto,
e a mudança pra capital né, logo em seguida. Isso realmente é marcante né, porque é um
rompimento...,violento assim, de uma hora pra outra, você ama a tua cidade, os seus amigos
estão ali, os teus animais, a tua escola, e tudo, e de repente você tem que ir, para um mundo
completamente novo, diferente, e isso, é marcante, entende, na vida de qualquer um; eu
acredito.
- Compreendo. E no caso, quando o senhor mudou pra Fortaleza, o senhor disse que
estudava numa escola, onde tinha um ensino muito bom, e como fez quando chegou na
capital? Continuou como?
Inicialmente eu fui estudar num colégio estadual, numa cidade vizinha, que era o José
Barcelos, o nome desse colégio, na cidade de Messejana, que é uma cidade, que hoje é um
bairro. E foi engolida pela metrópole, então, comecei lá. De lá eu saí pra estudar na Escola
Técnica né, prestei aquele, um exame, esse vestibular que ainda hoje tem pra você entrar lá, e
entrei lá onde eu fiz a minha, criei a minha visão profissional, foi lá. Lá onde eu me
profissionalizei né, fiz..., passei uns quatro, cinco, seis anos dentro da Escola Técnica né. O
Ginasial, como a gente chamava, e aonde me especializei, na questão lá dos conhecimentos da
geometria, do desenho geométrico, entende, da ergonomia, dessa coisa toda. Perfil, essa coisa
toda. Aprendi perspectiva que é o que é mais importante em tudo. Botar uma coisa em
perspectiva.
- E esse conhecimento foi aplicado então depois no buriti, certo?
É, pra você ver. Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, né. Em um determinado
momento eu já um adulto né, noutra fase de vida, aquilo foi extremamente útil.
- No caso foi isso? O senhor saiu da Escola Técnica, e como foi depois a vida profissional?
Lá, como eu fiz o curso e a minha especialidade era o que eles chamam lá de estradas, que é
um ramo da engenharia que constrói estradas, linhas de transição, e a minha especialidade era
laboratório, a parte laboratorial né, que é estudo de jazidas, de concreto, de asfalto, pra ser
aplicado em estradas e nas obras d’arte, como a gente chama, que são as pontes, os viadutos,
os bueiros, então tinha que ter todo um conhecimento assim, técnico, e de materiais. Então foi
lá na Escola que aconteceu tudo isso, e depois disso fui trabalhar numa empresa como
estagiário, depois fui contratado, depois passei pra outra, e fui fiscal de obras do Estado do
Ceará, e depois resolvi voltar a estudar e fui pra Universidade, onde cursei o Direito, né, que
foi o que me trouxe ao Piauí, foi isso. Recebi um convite pra fazer uma assessoria jurídica e
eu terminei vindo aqui, e aqui, eu conheci os buritizais e tudo se modificou novamente. Dois
anos depois que eu estava aqui já não era mais advogado, já era um artesão, um artista
plástico, um design.
- Mas foi uma escolha difícil mudar de profissão? O senhor já era casado e tinha filhos, no
caso, não é?
É, um momento muito difícil, né, porque você não muda, não larga um curso de Direito, como
todo mundo dizia, “rapaz você vai largar uma banca de Direito pra ser artesão? Você é
louco?”, e tudo mais. Mas como eu sou louco, realmente, eu não acredito nisso, que uma
profissão seja maior do que outra, entende. Você tem que ser é bom naquilo que faz, ou
lixeiro, ou caminhoneiro, ou entregador de pizza, ou artesão, você tem que ser o melhor.
Chegar lá e mostrar um serviço de qualidade, e você será notado por todo mundo.
- E a família, como recebeu essa mudança de vida?
É, a família reage negativamente, também, porque é difícil. A pessoa, poxa, esse cara passa
cinco anos na Universidade e depois vai cortar buriti, vai fazer cadeira, e não sei o quê...é
difícil pra uma sociedade capitalista, de consumo, onde um curso de nível superior tem um
status, tem todo um “remremrem” por trás, é difícil. É preciso realmente ser um homem de
decisão, um homem que acredita em si, que acredita no seu potencial e pode fazer qualquer
coisa, assim queira.
- No caso, o pai o senhor havia perdido cedo, e sua mãe?
É, no caso eu já não morava...desde cedo eu saí de casa, depois de rapaz assim, meu contato
com a mamãe era um contato de visita, d’eu ir ao Ceará e tudo mais. Foi mais os meus irmãos
que reagiram mais assim, questionaram e tudo mais, os meus amigos...
- Quantos irmãos o senhor tem?
Eu tenho nove irmãos.
- E, vejamos, em relação ao Santo Daime. Quando o senhor associou Cannabis, Buriti e
Santo Daime, como as pessoas passaram a perceber a sua atuação social?
As pessoas reagem, umas positivamente, outras negativamente, porque ó, o Santo Daime, é
uma bebida que diante da maioria da sociedade, das pessoas, é uma droga, um alucinógeno,
entende, tem uma visão completamente torpe e desconectada da realidade, entende, é uma
visão daquilo que ouvi dizer, aquilo que você não conhece você ataca né, então é difícil né.
Até prejudica profissionalmente, quando você declara isso explicitamente as pessoas reagem,
a grande maioria reage negativamente, como se realmente você fosse um agressor da
sociedade, o homem que quebra as regras sociais, entende.
- Já vi referências ao seu trabalho em revistas, matérias on-line, falando que o senhor tem
uma relação boa com sustentabilidade, seu trabalho é feito de uma forma limpa, que não
agride o meio. O senhor vê essa relação como forte e importante?
É, talvez a relação mais importante, né, no meu trabalho, assim, preservar é preciso, pra
existir, entende. Só existe o homem se existir um planeta adequado. O meu trabalho, eu diria,
é minimalista, eu trabalho só o buriti, com o mínimo de influências industriais possíveis,
entende. Até a cola que nós usamos é à base de água, e essa coisa toda. A preservação dos
buritizais, dos mananciais de água, que os buritis atraem pra as suas regiões, então tudo isso é
uma coisa que já vem da minha infância, eu nasci no meio da natureza, então eu sei amar
aquilo. A tomar banho de rio, a tomar banho de lagoa, belas lagoas, tudo limpo, tudo
maravilhoso, então isso você traz dentro de si até hoje.
- Se eu pedisse então pra o senhor colocar em um lugar da sua vida, a Cannabis, o Buriti e o
Santo Daime, o que me diria?
Eu diria assim, que a Cannabis foi a minha iniciação pra essa nova jornada, o Buriti, para esse
encontro do conhecimento, né, quem sou eu? O advogado, um historiador, um artista plástico,
um ladrão, uma coisa assim. Não, eu...o Buriti me trouxe um encontro comigo mesmo, eu
passei realmente a ser feliz, entende, onde eu tive um encontro comigo mesmo. Quem sou eu?
Eu sou esse cara, que foi capaz de modificar, de radicalizar, digamos assim, uma matéria-
prima, criar algo que até então era inédito, era coisa...e isso me dá um prazer imenso.
Realmente foi um encontro. E o Santo Daime é o terceiro encontro, que é o do fechamento do
meu ciclo como homem, onde eu vou trabalhando cada vez mais o meu espírito, a minha
alma, a minha paz interna, essa é a fase que eu diria assim, final da minha vida, que é o
Daime. Não que o Daime seja uma coisa que traz o fim, e sim um começo, um novo começo,
entende, pra minha vida. Não sou uma pessoa da Igreja, de viver dentro da Igreja e tudo mais,
mas assim, eu acredito que o homem tem uma alma, e que esse chá mexe com essa coisa
chamada alma, com essa coisa do inconsciente que está dentro de você, é um encontro com
você, cada vez maior do que aquele que eu tive com o Buriti, provavelmente. É uma coisa
bem real. Então essas três coisas funcionaram assim: começo, meio e fim.
- O senhor acha que essa trajetória no uso dos vegetais afetou outras pessoas? O senhor
percebe isso?
Sim. A medida que você desenvolve um trabalho, ou divulga uma ideia com o Santo Daime,
ou com uma tecnologia de construção como a do buriti, ela modifica a vida de muitas pessoas.
Hoje eu tenho pessoas no Brasil inteiro que trabalham com o buriti, ganham suas vidas com o
buriti, discutem isso, veem isso, como o Santo Daime, quantas pessoas que aqui no Piauí
passaram a usar esse Santo Daime, quantas igrejas nasceram, quantas influências sobre
terreiros, sobre umbandistas, sobre vários movimentos dessa natureza. Então, houve um
impacto, entende, sobre muitas pessoas. E vai continuar tendo sobre muitas outras ainda, eu
acredito.
- E qual o lugar do senhor nessa história? Como o senhor se vê mediante o crescimento desse
movimento?
É, eu vou responder isso com a poesia de um amigo meu, um pequeno trecho: “Eu sou a
solidão dos astronautas, longe, muito longe, do último banquete dos abutres a rigor”.
- Bela poesia. Gostaria de agradecer por esse tempo que o senhor dispôs. Vejo que, frente a
essas questões, precisaria ainda perguntar muitas coisas, principalmente em relação á
técnica de manuseio do buriti. Se o senhor pudesse agradecer hoje às pessoas que o
ajudaram nesse trabalho construído, assim como pelos espaços abertos com tanto esforço,
quem seriam essas personagens?
Tem tantas pessoas assim, uns mais próximos. No caso do Buriti seria o meu sogro, a minha
sogra, que foram pessoas muito presentes, me deram muito apoio. No caso da Cannabis né, eu
diria que esse amigo meu e esse meu irmão, que foram fundamentais pra que eu tivesse esse
insight.
- Qual o nome do seu amigo?
Geovani. E o meu irmão é o Ronaldo. E foi fundamental. A partir daí houveram mudanças
fundamentais na minha vida. Então, essas pessoas tiveram muito presentes até hoje, entende.
Continuam presentes, sempre estão, volta e meia a gente se comunica. E tem o Santo Daime
que é uma novidade na minha vida, foi uma surpresa. Fui lá pra uma missão e terminei
voltando com outra.
- O senhor sabia que era a terra do Santo Daime quando foi até lá?
É, eu sabia. Mas não fui conectado nisso. A única conexão que eu tinha, só dei conta de mim,
que eu estava na terra do Santo Daime quando as pessoas me convidaram lá, depois de uns
quinze ou vinte dias, pra conhecer o Santo Daime. Aí eu caí a ficha de que realmente eu já
tinha conhecimento disso, nas matérias sobre o Padrinho Sebastião, e essa coisa toda.
- O senhor já havia visto o Padrinho Sebastião na televisão então?
Já, eu tinha visto o Padrinho Sebastião na época bem inicial assim, que o Santo Daime
estourou no Brasil, com alguns artistas e tudo mais, que eu fiz até uma brincadeira, uma
brincadeira não, ele lá com aquela farda branca, aquela barba linda e imensa, eu “Mas, meu
Deus, quem é esse maluco?”. Usei essa expressão pra perguntar. E depois terminei
conhecendo-o, não pessoalmente assim, ainda em vida, mas o conheço profundamente em
espírito.
- Certo. Seu período de efervescência foi na década de 70, certo?
É, os anos 70 foram uns anos assim, onde os conservadores, a bruxa fumou. Onde a juventude
foi às ruas e dançou, e requebrou, e fumou, e outros experimentos, e se liberou sexualmente, e
politicamente. Foi um momento grandioso na Terra. Foi um momento grandioso, essa década
de 70, alguns anos do 80. Realmente foi um grande momento do planeta em termos humanos.
- E na questão política, como o senhor percebe esse período da sua juventude? Foi pacífico
ou lhe instigou de uma forma diferenciada?
Não, foi um período até mais difícil que esse de hoje, entende. Digamos assim, porque na
infância era o cangaço, a lei das armas, praticamente. Na minha cidade ainda hoje as pessoas
andam armadas. Na adolescência e primeiros momentos da vida de adulto, é a ditadura
militar...e no terceiro momento agora né, o lixo total, porque, esses caras conseguem ser piores
do que os cangaceiros, do que os coronéis, e do que os militares, entende. Eles são nojentos
demais, entende. O planeta vive um momento muito ruim em termos de política, né. Estamos
entregues à escória, mesmo, e sem nenhuma objeção. No nosso tempo, não. Nós reagimos
com toda força das nossas almas, e até muito mais do que isso, entende. E conseguimos,
depois de muita batalha, chegar nas Diretas Já e tudo mais, e transformar o país, e entregamos
nas mãos desses caras, e aí, deu no que deu.
- O senhor estava na Universidade nesse período de reabertura política, não é?
A ditadura pra acabar mesmo foi quase 30 anos, né. Então, quando a gente estava na
Universidade, que eu terminei a Universidade meio madurinho já, uns vinte e tantos anos,
vinte e sete, vinte e oito anos. Já era pai quando terminei a Universidade.
- Como foi a experiência de se tornar pai, contrair matrimônio, nessa época?
É, eu conheci a mãe dos meus filhos, a Andrea, mais ou menos nesse movimento. Ela
estudava na mesma Universidade, frequentava alguns amigos, a gente terminou se
encontrando, e terminamos juntos. A gente veio casar oficialmente mesmo depois que a minha
filha mais nova já tinha seis anos. Mas a gente fez um casamento de fato muito interessante,
muito bom e...foi assim que aconteceu, esse momento de conhecimento com ela. Na
Universidade, na noite, na vida da arte né, que eu sempre estive muito ligado a música, á
noite, ao teatro. Ela gostava muito disso, então a gente se conheceu nessa efervescência aí.
- Já tinha alguma atividade artística que o senhor desempenhasse nessa época, algum
envolvimento com a arte?
Sim, eu gostava muito de teatro. Gostava não, eu gosto. Tive algumas participações como ator
em duas peças lá no Ceará, nesse período. Depois, veio o Buriti.
- Certo, senhor Abrahão, pois por hora, é isso. Muito obrigada.
Estou a disposição, quando tiver alguma dúvida, alguma coisa a rememorar estaremos aqui
para dar andamento a essa sua peregrinação pelo mundo dos vegetais e da ciência acadêmica.
ANEXO A – FOTOGRAFIAS EXTRAÍDAS DE CATÁLOGO ONLINE DE PEÇAS
FEITAS POR ABRAHÃO HONÓRIO CAVALCANTE EM BURITI
Fotografia 33: Mandala Girassol, em buriti. Fonte: Disponível em: <https./flickr/-abrahãocavalcante/.com.br>.
Acesso em 24 nov. 2017.
Fotografia 34: Painel Girassol Múltiplo, em buriti. Fonte: Disponível em
<https./flickr/AbrahãoCavalcante/.com.br>. Acesso em 24 nov. 2017.
Fotografia 35: Painel Jacaré. Fonte: Disponível em: <https./flickr/AbrahãoCavalcante/.com.br>. Acesso em 24
nov. 2017.
Fotografia 36: Painel Vênus. Fonte: Disponível em: <https./flickr/AbrahãoCavalcante/.com.br>. Acesso em: 24
nov. 2017.
Fotografia 37: Mesa com tampo Mandala. Fonte: Disponível em: <https./flickr/AbrahãoCavalcante/.com.br.
Acesso em: 24 de nov. 2017.

Fotografia 38: Mesa trançada. Fonte: Disponível em: <https./flickr/AbrahãoCavalcante/.com.br. Acesso em: 24
nov. 2017.
Fotografia 39: Painel Aspiral Múltipla. Fonte: Disponível em: <https./flickr/AbrahãoCavalcante/com.br>. Acesso
em 24 nov. 2017.
Fotografia 40: Mandala flor plana. Fonte: Disponível em: <https./flickr/AbrahãoCavalcante/.com.br>. Acesso
em: 24 nov. 2017.
Fotografia 41: Ambiente feito para o arquiteto Gustavo Almeida. Fonte: Disponível em:
<https./flickr/AbrahãoCavalcante/.com.br>. Acesso em: 24 nov. 2017.

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