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O GATO

Texto extraído do livro JAULAS VAZIAS, de Tom Regan

Prólogo

Alguns anos atrás, a rede Home Box Office levou ao ar um programa chamado “Amar
ou Matar: Homem X Animais”. Fascinante e perturbador ao mesmo tempo, era sobre como
diferentes culturas tratam os mesmos animais de diferentes maneiras. Um segmento de dar
arrepios mostrou aos telespectadores um jantar num restaurante de uma pequena aldeia
chinesa. Vocês sabem que, em alguns restaurantes americanos, o cliente pode escolher uma
lagosta viva ou um peixe vivo de um aquário? E que, então, o animal é morto e o chef prepara
o prato pedido? Nesse restaurante chinês acontecia a mesma coisa, só que o cardápio era
diferente. Nesse restaurante, os clientes escolhiam gatos e cães vivos.

O vídeo não tem pressa. Primeiro vemos os clientes famintos inspecionando os gatos e
os cães, espremidos uns contra os outros em pequenas jaulas de madeira; vemos os clientes
conversando, sérios; então, os vemos fazer a escolha; finalmente, vemos um homem (o
cozinheiro, eu presumo) arrancando da jaula, com uma pinça comprida de metal, um gato
branquinho e felpudo, e correndo para a cozinha. O que vem em seguida não é nada agradável
de se ler, portanto sinta-se à vontade para pular o próximo parágrafo.

(...)

Nunca fiquei tão chocado em toda minha vida. Fiquei literalmente sem fala. Como
muitos americanos, eu já sabia que algumas pessoas na China, Coréia e outros países comem
gatos e cães. O vídeo não me mostrou nenhum fato novo sobre costumes alimentares. O que
foi novo para mim, o que me deixou encolhido na minha cadeira, foi ver como a coisa é feita,
ver o processo. Assistir ao terrível choque e sofrimento do gato foi arrasador. Senti um misto de
ódio e descrença fermentar no peito. Eu queria gritar: “Parem com isso! O que vocês estão
fazendo? Parem!”.

Mas o pior, pelo menos para mim, foi o comportamento das pessoas. Elas achavam
tudo tão normal, tão corriqueiro. Os clientes do restaurante diziam: “A gente vai comer este
gato no jantar” como nós dizemos: “Vou comer este pãozinho com café”. E o cozinheiro? O
cozinheiro não estava nem aí para o tormento do gato. O pobre animal podia ser um pedaço de
madeira que dava na mesma. Eu nunca tinha visto gente se sentir tão confortável e indiferente
com relação ao sofrimento e à morte de um animal. Não creio que muitos americanos
conseguiriam ver essa cena sem pensarem, como eu pensei: “O que é que está acontecendo
com este mundo?”.

Nos anos seguintes àquele em que vi “Amar ou Matar” pela primeira vez, imaginei
muitas variações do episódio que acabei de descrever.

Primeira variação: tudo é como no vídeo original, só que gatos e cães estão, agora, em
jaulas grandes, ao invés de espremidos uns contra os outros. Eu me pergunto: “Aumentar o
tamanho das jaulas faria alguma diferença no meu modo de pensar? Será que eu diria „Bom, já
que o gato está numa jaula maior, não tenho mais nada contra o que aconteceu com ele‟?”
Minha resposta é sempre a mesma. Eu continuaria sendo contra o que aconteceu.

Segunda variação: além de ficar numa jaula maior, o cozinheiro o pega com delicadeza
e acaba com sua vida injetando-lhe pentobarbital sódico, que o faz, aparentemente, morrer em
paz. Exceto por essas mudanças, tudo no vídeo continua igual. Eu me faço o mesmo tipo de
pergunta: “Essas mudanças fariam alguma diferença no meu modo de pensar? Será que eu
diria: „Bom, já que o gato ficou numa jaula maior, foi tratado com delicadeza e morreu em paz,
não tenho mais nada contra o que aconteceu com ele‟?” Minha resposta é sempre a mesma.
Eu ainda seria contra o que aconteceu.
Isso quer dizer que eu penso que essas variações imaginárias são tão ruins quanto a
situação original? Não. Jaulas maiores são melhores do que jaulas menores. Tratamento
humanitário é melhor do que tratamento violento. Mas quando aquele gato branquinho e
felpudo é morto e sua pele é arrancada para o jantar, mesmo que ele tenha ficado numa jaula
maior e tenha sido morto sem sofrimento desnecessário, eu continuo querendo gritar (ou ao
menos implorar): “Parem com isso! O que vocês estão fazendo? Parem!” Não posso deixar de
pensar que a grande maioria das pessoas no mundo todo, inclusive muitos chineses e
coreanos, concordariam comigo.

Terceira variação: o que acontece é igual ao mostrado pelo vídeo, só que agora eu
enfrento o cozinheiro e o acuso de crueldade. Ele fica chocado por eu pensar uma coisa
dessas a seu respeito. Insiste que trata seus gatos e cães “humanitariamente”, com o “devido
respeito pelo seu bem-estar”. Eu digo: “Você não está falando sério!”, e ele responde: “Estou
sim!”. Como deveríamos receber uma divergência como essa? Deveríamos dizer que o
cozinheiro trata o gato branco e felpudo humanitariamente só porque ele afirma isso? Que ele
age com o devido respeito ao bem-estar do gato porque isso é o que ele diz? Acho que não. O
que é humanitário não está no olho de quem vê. O cozinheiro age de forma desumana. Trata-
se de um fato objetivo, não de uma projeção subjetiva sobre o mundo.

Quarta variação: tudo é igual ao vídeo original, com a exceção de que é o seu gato que
o cozinheiro leva para a cozinha. Nem por um instante você diria: “Sim, claro que o cozinheiro
tratou meu gato humanitariamente; afinal de contas, foi isso que ele disse ter feito”. Em
momento algum você sequer sonharia dizer uma coisa dessas. Então um tratamento
desumano não se torna humanitário só porque algum outro gato o está recebendo. Se o
cozinheiro nos disser que trata os gatos de forma humanitária, estaremos certíssimos ao
afirmar: “Não, você não faz isso!”.

A razão pela qual incluí esta quarta variação tem pouco a ver com o que um cozinheiro
na China poderia dizer, e muito a ver com as palavras usadas pelos representantes das
grandes indústrias de exploração animal. Como o cozinheiro chinês na terceira variação, os
representantes da indústria da carne e da corrida de galgos, por exemplo, dizem que suas
indústrias tratam animais de forma humanitária. Como o chinês, dizem que sempre mostram o
devido respeito pelo bem-estar dos animais. Entretanto, depois que nós confirmarmos que
essas indústrias tratam os animais tão mal quanto – senão pior ainda do que – o cozinheiro
chinês tratou o gato, vai ficar bem difícil continuar acreditando nos porta-vozes dessas
indústrias.

Tenho certeza que algumas pessoas vão duvidar da veracidade do que acabo de dizer.
Claro que essas indústrias não tratam os animais tão mal quanto – que dirá “pior ainda” do que
– o cozinheiro chinês! Claro que devo estar exagerando! Ah, quem dera isso fosse verdade...
Conforme veremos, levando em conta o modo como os animais são tratados pelas grandes
indústrias de exploração animal, mesmo com todas as afirmações em contrário, tanto dessas
indústrias quanto do governo, aquele gato branquinho e felpudo foi um animal de sorte.

Epílogo

Lembre-se daquele gato branco e felpudo que encontramos no prólogo. Inocente de


qualquer delito. Impotente diante do desrespeito humano. Mesmo enquanto escrevo estas
palavras, quero gritar: “Parem com isso! O que vocês estão fazendo? Parem!”.

Por muito que esse pobre gato tenha sido maltratado, as grandes indústrias que usam
animais lhes dão um tratamento tão cruel quanto esse, se não mais cruel ainda. Os porta-
vozes das indústrias dizem que elas tratam os animais humanitariamente; eles dizem que
sempre mostram a devida consideração pelo seu bem-estar. Mas o que eles dizem não é o que
eles fazem. Nós confirmamos isso, muitas e muitas vezes. Devo ousar dizer, como fiz no
prólogo, que, em comparação com o modo como os animais são tratados nessas indústrias, o
gato branco e felpudo foi um dos sortudos?
Pense nisso. Embora vivesse em uma pequena jaula, e seus últimos minutos tenham
sido cheios de terror e dores excruciantes, o gato branco talvez tenha tido uma vida
razoavelmente decente, antes. Isso nunca acontece com os galgos explorados pela indústria
de corridas. Isso nunca acontece com as porcas confinadas às baias. Isso nunca acontece com
os elefantes, tigres ou leões que nascem dentro da indústria do circo e passam anos sendo
“treinados” para fazer números. Isso nunca acontece com os minks e outros animais que ficam
confinados a vida inteira em um mundo de malha de arame. Isso nunca acontece aos
chimpanzés usados na pesquisa durante vinte, trinta ou quarenta anos. Nem com as galinhas
em baterias de gaiolas, ou vitelos criados em pequenos cercados. Nunca acontece com os
bilhões de animais, somente nos Estados Unidos. O gato foi um dos sortudos? Por mais duro
que seja dizer isso ou acreditar nisso, eu penso que sim.

Como aquele gato branco e felpudo tem me assombrado, durante todos esses anos!
Acho que é porque seu sofrimento tornou-se, para mim, o símbolo da situação de todos os
animais presos nas garras da exploração humana. Todos inocentes de qualquer delito. Todos
impotentes diante do desrespeito humano. Isso talvez explique por que eu sempre senti
necessidade de uma outra variação dessa história – esta, com o final que deveria ter.

Variação final: a equipe de vídeo da HBO passou o dia todo se preparando para gravar
o episódio no restaurante. Quando eles chegam ao local, o cozinheiro está fora de si, e os
clientes, perplexos. “Qual é o problema?”, a equipe lhes pergunta. E é levada para o lugar onde
os animais sempre foram mantidos. Todas as jaulas estão vazias. Todos os cães se foram.
Todos os gatos também se foram (o branco e felpudo em primeiro lugar). No lugar deles
estamos nós dois, eu e você, prontos para dar explicações, prontos a enfrentar o que o futuro
trouxer.

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