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T EOR I A E CLÍ N ICA PSICA NAPimenta

Arlindo Carlos LÍT ICAS

A repetição e a transferência
na teoria e na clínica psicanalíticas
Arlindo Carlos Pimenta

Resumo
O autor faz um estudo da repetição tanto em Freud quanto em Lacan, desenvolvendo os cami-
nhos relativamente paralelos na obra desses autores. Ressalta em Freud o trajeto da recordação
(reproduzir) à repetição (agir) e, em Lacan, do simbólico ao real. A virada freudiana com o Além
do princípio do prazer (1920) corresponderia à viragem lacaniana de 1964 (Seminário 11) e seus
desenvolvimentos posteriores (do fenômeno à estrutura).

Palavras-chave: Recordar, Repetir, Resistência/transferência, Pulsão de morte, Compulsão à


repetição, Repetição simbólica, O Um (S1), Repetição enquanto fato de estrutura.

Não existe assunto mais


eminentemente clínico
para um psicanalista
do que o problema da repetição.
Motivo de tantos lamentos,
a repetição parece estruturar
nossa própria capacidade de sofrer.
Ela pode conduzir alguém a se engajar
na experiência de uma análise,
ela pode se tornar o inferno
mais íntimo de cada um.
Sísifo, Atlas, Prometeu, as Danaides
e todo o périplo de seres condenados
a praticar um mesmo ato,
no Hades grego,
eram personagens vítimas da repetição.
Dominique Fingermann

A repetição em Freud uma forma de discurso próprio, mas


De início, encontramos em Freud, na Co- visava antes de tudo a recordação como
municação preliminar ([1893] 1977, p. 41), método e meta.
a afirmação de que os histéricos sofrem de Porém, Freud sempre faz esse movi-
reminiscências. Para revivê-las, lançam mento dialético entre a teoria e os desafios
mão da hipnose e da sugestão, colocando- da clínica. A essa época, em sua elabo-
-se no lugar do mestre. ração metapsicológica, desenvolve sua
Em seguida, cria o método da concepção do desejo como uma tentativa,
psicanálise baseado na regra da livre sempre infrutífera, de repetir a experiência
associação. O discurso analítico já é de satisfação.
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A repetição e a transferência na teoria e na clínica psicanalíticas

No Projeto para uma psicologia científi- de morte e da compulsão à repetição


ca, ao descrever exatamente a experiência (Wiederholungszwang), propondo uma nova
de satisfação e a marca deixada por ela, ruptura, tal como já fizera anteriormente
Freud ([1950/1895] 1977, p. 381) afirma: em relação à sexualidade.
Ao enumerar as várias situações em
[...] sempre que houver um aumento da que o princípio de prazer não prevalece
quantidade, portanto de desprazer, apa- na imposição do princípio de realidade,
recerá uma tendência a reativar a marca no recalque, na brincadeira das crianças
primeira. e nas neuroses traumáticas, Freud eviden-
cia o valor da compulsão à repetição. Ao
A essa tendência, nos diz Freud, cha- tematizar a pulsão de morte, nos adverte
maremos desejo. que se trata de uma especulação, mesmo
Vemos, então, que o desejo já con- porque não haveria outra forma de falar
figura uma repetição. Atrás dessa marca desse silencioso caos pulsional.
primeira, correremos pela vida afora repe- Freud se vale de alguns exemplos de
tidamente, determinando nossas escolhas repetição que ocorrem na natureza, por
amorosas, sexuais, profissionais. exemplo, a busca das origens dos peixes
No modelo da Carta 52 com suas no período da piracema ou o movimento
inscrições, transcrições e traduções Freud migratório das aves de arribação. Vale-se
([1896] 1977) nos faz pensar que a repe- também da evolução embriológica dos
tição está aí presente, fazendo seu apare- humanos e as repetições que se passam aí.
cimento na clínica de forma particular, E arrisca uma hipótese interessante sobre
como veremos posteriormente. o aparecimento da vida.
Só mais tarde, na clínica, ante o ‘fra- Diz textualmente:
cassado’ Caso Dora, Freud ([06 dez. 1896]
1977) vai se dar conta de uma forma de Em certo momento, as propriedades da
manifestação do recalcado, que se expres- vida devem ter sido despertadas na ma-
sa não pela associação livre (Reproduziren), téria inanimada, por ação de forças que
mas pela repetição (Agiren). ainda não conseguimos imaginar (Freud,
Muito mais tarde, Freud ([1914] [1920] 1977, p. 13).
1977) fará um estudo mais aprofundado do
tema em Recordar, repetir e elaborar, onde, Hipoteticamente, por circunstâncias
além de uma distinção entre os dois fatos ligadas a causas externas e o progressivo
clínicos (recordação e repetição), trata de aparecimento de seres multicelulares, a
seu aparecimento na práxis. substância sobrevivente teve de percorrer
Até então, a repetição era vista, caminhos mais complicados para alcançar
por um lado, como uma resistência à a morte. Isso acontece concomitantemen-
recordação e, por outro, como motor da te ao aparecimento das pulsões de vida,
transferência. mais conservadoras e ligadas ao desenvol-
A presença da repetição ultrapassa vimento da libido.
os limites do tratamento analítico, pois A tematização da pulsão de morte e
está presente na vida de todas as pessoas da compulsão à repetição (Wiederholungs-
e revela um caráter pulsional portanto zwang) leva Freud a rever o desenvolvi-
inerente à condição humana. mento da técnica na clínica psicanalítica
Mas é em Além do princípio de prazer e a subdividi-la em três períodos.
que Freud ([1920] 1977) vai dar um • De início o método psicanalítico
passo fundamental em sua teoria e (associação livre), consistia em decifrar
clínica com a proposição da pulsão o inconsciente, ainda não conhecido e
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comunicá-lo ao doente. A psicanálise a segunda tópica não anula a primeira em


era antes de tudo a arte da interpretação. Freud.
Estamos no tempo da recordação (Repro- Com o artigo Função e campo da fala e
duziren). Não se lograva atingir o objetivo da linguagem em psicanálise, Lacan ([1953]
terapêutico dessa maneira. 1998) inicia seu ensino, abrindo o campo
• Aparece a repetição que, em um da linguagem, dizendo que a psicanálise
primeiro momento, é vista como resistên- se encontra nesse campo. Nesse primeiro
cia. A arte consistia em desvelar as resis- momento, o campo da linguagem é o pró-
tências a partir das próprias recordações do prio campo psicanalítico.
cliente e confirmar a construção revelada Para Lacan é necessário situar a
pelo trabalho analítico. Nesse ponto, a psicanálise diretamente no campo da lin-
sugestão e a persuasão operavam como guagem (simbólico) em contraposição ao
transferência. Mas isso evidentemente imaginário. Isso em função da concepção
não funcionou. de transferência prevalente na época,
• Ficou evidente que o objetivo de completamente dentro do registro do ima-
tornar consciente o inconsciente, não ginário, onde a transferência era reduzida
podia ser alcançado por essa via. à relação dual.
O que escapa ao recordar (Reproduzi- A direção do tratamento e os princípios
ren) vem pelo viés da repetição (Agiren). de seu poder ([1958] 1998) é o principal
Esta que emerge de forma indesejada, texto dos anos 1950 e diz respeito a direção
como resistência, se desenrola no campo da cura. Para Lacan, no entanto, a análise
da relação transferencial sendo sempre se passa entre três: o analisante, o analista
um fragmento da vida sexual infantil. Para e o grande outro (A).
Freud, quando logramos levar o tratamen- É ainda na Direção do tratamento que
to até esse ponto, podemos dizer que a Lacan ([1958] 1998) desenvolverá o que
neurose anterior foi substituída por uma da psicanálise é sua tática (equivalente à
nova neurose de transferência. interpretação do analista), sua estratégia
O manejo da transferência consiste (como o manejo da transferência; aqui o
em manter a nova neurose dentro de limi- não atendimento da demanda é funda-
tes estreitos, ou seja, privilegiar a recorda- mental) e a política (ou a ética), baseada
ção, mas permitindo-lhe viver fragmentos na falta-a-ser. Lacan vai mostrar aí que o
de sua vida esquecida, mantendo um certo analista dirige a análise (não o analisante)
discernimento que lhe possibilite diferen- mas a partir da falta-a-ser.
ciar aquilo que lhe parece ser realidade A partir dos anos 1960, Lacan, postula
(fantasia) e o que de fato é. a existência de um furo na estrutura, ou
Vemos, então, que em Freud trans- seja, nem tudo é significante. Daí vai de-
ferência e repetição estão interligadas. A senvolver o conceito de “coisa” não só em
resposta à repetição é o próprio trabalho Freud (das Ding) mas também em Platão
da transferência, ou seja, a elaboração. (o agalma). Progressivamente, Lacan vai
deslocando seu interesse para o registro do
A repetição em Lacan Real e a conceituação do objeto a (causa
Em Lacan percebemos uma trajetória de desejo) (Quinet, 2000).
semelhante à de Freud. Podemos, grosso Mas é no Seminário 11: Os quatro con-
modo, dividir o ensino de Lacan em campo ceitos fundamentais da psicanálise que Lacan
da linguagem e campo do gozo, mais ou ([1964] 1985) faz um emparelhamento
menos equivalentes às tópicas freudianas. conceitual, ou melhor, uma distinção con-
Ao se abordar o campo do gozo não se ceitual: inconsciente/pulsão, transferên-
exclui o campo da linguagem assim como cia/repetição, dando à repetição o status de
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A repetição e a transferência na teoria e na clínica psicanalíticas

conceito fundamental, desvinculando-o repetição. Assim, ela abre o capítulo do


da transferência (Jorge, 2006). campo lacaniano propriamente dito: o
Até os anos 1960, Lacan não diferen- campo do gozo.
cia a “repetição simbólica de uma modali- Ao abordar o conceito de repetição,
dade do retorno do recalcado”. No Seminá- Lacan lança mão das causas acidentais
rio 2, capítulo XVI - A carta roubada, nos em Aristóteles [Sybebekos] que vão além
diz que o automatismo de repetição extrai das causas formais. Corresponderia apro-
seu princípio do que havíamos chamado ximadamente ao não previsto, ao acaso.
insistência da cadeia significante. Trata-se do autômaton e da tiquê.
Dominique Fingermann (2014) equi- Lacan vai relacionar a repetição ligada
vale a virada freudiana com Além do prin- à cadeia significante ao autômaton e à
cípio do prazer e a pulsão de morte à virada tiquê ao encontro com o real, portanto a
que Lacan faz no Seminário 11, onde, após um encontro faltoso.
um longo caminho de elaboração, elevou Segundo Marco Antônio Coutinho
o fenômeno ao conceito. Jorge (2006), retomando Freud e arti-
O conceito de repetição em Lacan culando com Lacan, o que move o ser,
vai sofrer reviravoltas acompanhando seu desejo mais profundo é a volta ao
as diferentes reconsiderações do que é o não ser.
inconsciente. Foram as várias reconsidera- Utilizamos aqui o esquema de Marco
ções do problema clínico da repetição que Antônio Coutinho Jorge (2006), onde
o obrigaram a distinguir o inconsciente fizemos alguns acréscimos no sentido de
real do inconsciente linguagem ou ainda resumir o aparecimento e a articulação
do inconsciente desejo (Soler, 2013). A dessa temática.
dimensão real vai descentrar o desejo e Temos, então, segundo Marco Antô-
enfatizar a importância da emergência da nio Coutinho Jorge:

Figura 1

AFigura
Repetição Duplamente
1 - A repetição Vinculada
duplamente vinculada

Fantasia Pulsão de morte


Fusão e desfusão das pulsões

Fonte: Jorge, 2006. Adaptação do autor.

Fonte: Jorge, 2006.Adaptação do autor

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Arlindo Carlos Pimenta
Figura 2

FiguraRecalque originário
2 - Recalque originário

$◊a

Morte (Freud)

Pulsão sexual S1 Fantasia Pulsão de morte das Ding


Mais além
Gozo (Lacan)
Princípio de prazer
↓ Gozo Outro A Coisa
Gozo Fálico A morte

Repetição via Fantasia
↓ TYCHE
Automaton

Acting Out Passagem ao ato
Fonte: Jorge, 2006. Adaptação do autor.

Fonte: Jorge, 2006.Adaptação do autor

Lacan, porém, continua a desenvolver A identidade na era teológica


a temática da repetição e da transferência e na era linguística
em seus seminários posteriores por apro- 1. Na teológica:
ximadamente dez anos. A=A=A, estamos no princípio da identi-
Para seguirmos, mesmo que breve- dade (A=A), que é garantido pelo Outro.
mente esse desenvolvimento, torna-se Em Descartes por exemplo: a iden-
necessário voltar ao Seminário 9: A identifi- tidade ser e pensamento é garantida por
cação (1961-1962), em que Lacan começa Deus.
abordar a temática do UM.
Resumidamente nesse seminário La- 2. Na era linguística:
can vai retomar Saussure, dizendo que o A ≠ A, dependendo da posição que ocupa
que distingue o significante é ser tudo que na cadeia significante.
os outros não são. Então, como já foi dito, o significante
Então, é enquanto pura diferença se define por ser pura diferença, tendo
que a unidade se constitui em sua função a propriedade de não ser idêntico a si
significante. mesmo.

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A na
A identidade repetição e a transferência
era teológica e na eranalinguística
teoria e na clínica psicanalíticas

1. Na teológica:
Sendonopura
A=A=A, estamos diferença,
princípio como(A=A),
da identidade se dáque
essa O Um
é garantido pelo Outro.da exceção é o traço distintivo
unidade?
Em Descartes do sujeito
por exemplo: a identidade ser e pensamento é garantida e
por Deus. o representa para outros sig-
Essa
2. Na era linguística: unidade não tem por função nificantes (S 2
).
a dependendo
A ≠ A, unificação, por que
da posição exemplo, fazersignificante.
ocupa na cadeia Um O S1 no campo do gozo é o corres-
ou coletivizar, ou seja, fazer conjunto. pondente
Então, como já foi dito, o significante se define por ser pura diferença, tendo a
ao traço unário no campo da
Trata-se da unidade em questão como
propriedade de não ser idêntico a si mesmo.
linguagem e comemora a irrupção do
distinção. gozo, ou seja, um equivalente à marca
Sendo pura diferença, como se dá essa unidade?
Vemos, então, a Unidade com duas primeira da satisfação. Portanto, o que
Essa unidade não tem por função a unificação, por exemplo, fazer Um ou coletivizar, ou
funções: uma de unificação e outra de marca a irrupção do gozo é a primeira
seja, fazer conjunto. Trata-se da unidade em questão como distinção.
distinção (Quinet, 2000). inscrição.
Vemos, então, a Unidade com duas
Em Freud tomamos como exemplo o funções: uma de unificação eO outra
S1 deé odistinção
significante mestre, orien-
(QUINET, 2000).
segundo tipo de identificação – a tosse de tador da cadeia significante. Ele se inclui
Doratomamos
Em Freud – conhecido comosegundo
como exemplo o traço tipounário na cadeia,
de identificação – a tosse masde Doratem– também uma posição
(Einsig
conhecido como o traço Zug ). (Einsig Zug ).
unário externa. Isso mostra que temos um S1 na
posição única mas implicando sua plura-
I (A) S1S1 lização (enxame).
S1S1 Sempre buscamos a repetição da
primeira experiência de satisfação e fra-
Lacanesse
Lacan generaliza generaliza
conceito e o esse conceito
torna muito e o e abrangente
mais amplo cassamos em ,alcançá-la.
(QUINET 2000).
É a identificação ao traço, que constitui a base do Ideal do eu. E que pelo efeito do
torna muito mais amplo e abrangente A repetição de S1, esse traço da expe-
(Qfaz
imaginarização uinet com, 2000).
que eu meÉsinta
a identificação
igual ao Outro ao (soutraço, riência
igual meu pai, minha demãe) satisfação,
etc. já não é o S1, mas o
É na que constitui
realidade um traço a base do Ideal
de distinção doimaginariza.
que se eu. E queO sujeito S2. Enãoquando
percebe quevaiestá
se repetir, a repetição é a
pelo efeito de imaginarização faz com que repetição
se identificando com um traço de distinção, que acaba dando a impressão de unificação. 1 do S ➝ S2. A repetição, então
eu me sinta igual ao Outro (sou igual meu é uma repetição de gozo.
Há aí um paradoxo sobre esse traço da diferença, ou seja, se vários sujeitos se identificam
pai, minha mãe) etc. Repetimos a irrupção daquele gozo,
a um mesmo traço de caráter distintivo, isso pode se tornar um traço de igualdade e unificação
É na realidade um traço de distinção mas ao mesmo tempo não o atingimos. A
(grupos de Black de adolescentes, por exemplo). Temos, então, traço de reunião ≠ traço de
que se imaginariza. O sujeito não percebe repetição constitui a própria rede de sig-
distinção.
que está se identificando com um traço de nificantes, que faz parte do inconsciente.
Para distingui-los Lacan encontrará no Seminário 9, duas palavras em alemão: Einheit e
distinção, que acaba dando a impressão É essa repetição que se organiza como o
Einsigkeit. de unificação. saber inconsciente (S2).
Einheit - SHá
1 : aí um paradoxo sobre esse traço
Unidade, lei, norma, regra universal / discurso do mestre. Partindo da repetição, o que é
da diferença,
Einsigkeit - S 1 - ou seja, se vários sujeitos
Unicidade, traço distintivo, exceção. o mais-de-gozar? Há um gozo nessa
se identificam
Passamos, então, das virtudesa umdamesmo
norma para traço de ca-
as virtudes busca,
da exceção (QUINET em que o sujeito está sempre
, 2000).
O Um ráter distintivo,
da exceção é o traçoisso podedosesujeito
distintivo tornar um
e o representa procurando repetir aquela experiência
para outros significantes
(S2). traço de igualdade e unificação (grupos primeira, e o S 1 comemora um gozo
de Black de adolescentes, por exemplo). fracassado.
Temos, então, traço de reunião ≠ traço E é a energia perdida, que cai dessa
de distinção. repetição que constitui o objeto a.
Para distingui-los Lacan encontrará O objeto a vem nomear o gozo fra-
no Seminário 9, duas palavras em alemão: cassado.
Einheit e Einsigkeit. Em francês o termo rattage como
Einheit - S1: Unidade, lei, norma, regra Lacan usa não é propriamente fra-
universal / discurso do mestre. cassado, mas não atingido (Q uinet ,
Einsigkeit - S1 - Unicidade, traço dis- 2000).
tintivo, exceção. Então o objeto a é isso que cai, que
Passamos, então, das virtudes da nor- fracassa, quando não se atinge a meta.
ma para as virtudes da exceção (Quinet, Algo de gozo que excede e ao mesmo
2000). tempo não é contabilizado.
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Arlindo Carlos Pimenta

Repetição e transferência A repetição aparece como fenômeno


Se Lacan desvincula a repetição da trans- sistemático, automático e necessário.
ferência, quais desenvolvimentos e conse- Aparece aqui o UM, o S1 que implica uma
quências clínicas que podemos extrair daí? dupla vertente.
Tomemos a repetição. No intuito de O S1 enquanto UM dizer, ou seja, o
extrair os fundamentos estruturais de psi- organizador da cadeia significante, lembra
canálise, Lacan contempla essa “potência o conceito que Freud adota de Bleuler, o
terrível” do destino como logicamente de representação meta.
necessária e revelada da dimensão do real Ao mesmo tempo os S 1 aparecem
da estrutura do ser humano. Cada análise como (essain), enxame, tratado por Lacan
pode eventualmente aceder a esse ponto no Seminário 20: Mais, ainda ([1972-
de virada, ou seja, ir mais além de sua re- 1973] 1985).
dundância patética ou tediosa e extrair o É através da repetição nunca alcan-
alcance ético da repetição (Fingermann, çada desses S1 que algo marca, aqui já no
2014) nível da letra, os indicativos de nossa uni-
Nesse sentido, podemos afirmar que cidade, tal como descrito como produto do
a repetição, não se reduz, como vimos discurso do analista
à libido (princípio do prazer em Freud)
nem à lógica do significante (Lacan), mas a ➝ S
aponta para o real em jogo na estrutura. S2 // S1
A repetição aparece, portanto, como
índex do real, circunscrito pelo signifi- A transferência
cante (S1). Colette Soler (2013) assinala Assim, como a repetição é um gozo, a
que esse real se situa no cerne da ordem transferência ao contrário é um laço. É sua
linguageira, que foi denominado por La- mobilização pelo discurso do analista que
can como Das Ding, no Seminário 7: A possibilita no fim articular o impossível da
ética da psicanálise ([1959-1960] 1988), e relação e a contingência do ato.
como angústia no Seminário 10: A angústia O sentido da transferência em análise
([1962-1963] 2005). é motivado pela suposição de um saber
A repetição, enquanto encontro inconsciente no qual o analista – intér-
falho, significa que o que se encontra é a O sentido
prete – seria supostodarevelar
transferência em análise é motivado pe
e decifrar
falta de encontro. (Qinconsciente
uinet, 2000). no qual o analista – intérprete – seria suposto revelar e
Lacan vai desenvolver em vários
a
seminários a partir de 1964, formas de
abordagem do real e da repetição atra- S2
vés da lógica matemática. Busca nessa
forma de linguagem, além da linguagem Segundo Soler
Segundo (2013),
Soler (2013),nanatransfe-
transferência, trata-se de uma esp
simbólica dos significantes, uma outra rência, trata-se de uma esperança de a saber, a promessa sup
vai interpretar o significante da demanda,
linguagem que favoreça a abordagem um significante que vai interpretar o
desse real. completar odaUm.
significante demanda, a saber, a pro-
Faz, então, uma elaboração sofisticada messa suposta de um Dois,
Essa esperança que
vai ser venha a decepcionada.
forçosamente
tendo como base a lógica tal como apre- completarNão o Um.
é possível, já nos dizia Freud, reproduzir a identidade
sentada por G. Frege. Essa esperança vai ser forçosamente
Sem entrar em mais considerações responder/corresponder ou completar a demanda.
decepcionada.
vamos reencontrar aqui a questão do Um, Não é possível, já nos dizia Freud,
diferentemente do que foi exposto no Se- reproduzir a identidade
Significante da demanda deStpercepção. Sq
minário 9: A identificação, embora tendo o Não é possível responder/corresponder ou
mesmo como base. completar a demanda. S (S1, S2, .............. Sn)

Reverso • Belo Horizonte •O significante


ano Sq63se– 72
42 • n. 80 • p. apresenta como
• dez. 2020 inacessível, mas
69 perm
dos significantes inconscientes (S1, S2 ......... Sn) que não cess
completar o Um.
Essa esperança vai ser forçosamente decepcionada.
Não é possível, Ajárepetição e a transferência
nos dizia na teoria e naa clínica
Freud, reproduzir psicanalíticas
identidade de percepção. Não é possível
responder/corresponder ou completar a demanda.
Significante da demanda
Referências
Significante da demanda St Sq FINGERMANN, D. Desejo e repetição. In:
S (S1, S2, .............. Sn) FINGERMANN, D. (Org.). Paradoxos da repetição.
São Paulo: Anna Blume, 2014. p. 197-212.
O significante Sq seOapresenta como
significante Sqinacessível,
se apresentamas permite que se reproduza a série
como
FINGERMANN, D. Repetição e experiência
inacessível,
dos significantes inconscientes (S1mas
, S2permite que que
......... Sn) se reproduza
não cessam psicanalítica.
de escrever In:os UNS da
FINGERMANN, D. (Org.).
a série dos significantes inconscientes (S ,
1 Paradoxos da repetição. São Paulo: Anna Blume,
repetição, sem nunca achar um significante
S ......... derradeiro
Sn) que não cessam do
de sujeito.
escrever
2 2014. p. 163-196.
os UNS da repetição, sem nunca achar um
significante derradeiro do sujeito. FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920).
Em suma podemos afirmar ainda com Colete Soler (2013, p. 68) que
In: ______. Além do princípio de prazer, psicologia
de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção
Em suma podemos afirmar ainda com geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Pode ter havidoColete
uma confusão dos conceitos
Soler (2013, (repetição/transferência)
p. 68) que confusão
Imago, 1977. esta(Edição
p. 13-185. que standard brasileira
Lacan teve de recusar. Era necessário proceder assim, pois se eles
das fossem confundidos,
obras completas a
de Sigmund Freud, 18).
análise seria impossível
Pode eternada mais
havido umafaria além de
confusão dosreduplicar
con- os impasses da neurose
infantil por neurose de transferência, esta definitiva. FREUD, S. Carta 52 (06 dez.1896). In: ______.
ceitos (repetição/transferência) confusão
Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos
esta que Lacan teve de recusar. Era neces- (1886-1889). Direção geral da tradução: Jayme
sário proceder assim, pois se eles fossem Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p. 317-324.
confundidos, a
REPETITION AND TRANSFERENCE IN PSYCHOANALYTICanálise seria impossível (Edição standard
THEORY brasileira
ANDdas obras psicológicas
PRACTICE e nada mais faria além de reduplicar os completas de Sigmund Freud, 1).
impasses da neurose infantil por neurose FREUD, S. Esboços para a “Comunicação
Abstract de transferência, esta definitiva. j preliminar” de 1893. Item (C) Sobre a teoria dos
The author studies repetition in both Freud and Lacan, developing relatively parallel paths
ataques histéricos. in
In: ______. Publicações pré-
the work of these authors. In Freud the path of remembrance (reproducing) to repetition
psicanalíticas (acting)
e esboços inéditos. Direção geral da
is emphasized and, in Lacan, from the symbolic to the real. The Freudian turn
tradução: point
Jayme with the
Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
REPETITION
Beyond the Pleasure Principle (1920) would correspond to the Lacanian 1977. p. of
turn 193-196. (Edição standard brasileira
1964 (Seminar
AND TRANSFERENCE
11) and its subsequent developments das obras psicológicas completas de Sigmund
(from the phenomenon to the structure).
IN PSYCHOANALYTIC THEORY Freud, 1).
ANDRepetition,
Keywords: Recollection, PRACTICE Resistance / transference, Death drive, Repetition
FREUD, S. Extratos dos documentos dirigidos a
compulsion, Symbolic repetition, The One (S1), Repetition as a structural fact.
Fliess (1950 [1892-1899]). In: ______. Publicações
Abstract pré-psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1889).
The author studies repetition in both Freud Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de
and Lacan, developing relatively parallel Janeiro: Imago, 1977. p. 243-377. (Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de
paths in the work of these authors. In Freud
Sigmund Freud, 1).
the path of remembrance (reproducing) to
repetition (acting) is emphasized and, in FREUD, S. Fragmento da análise de um caso de
Lacan, from the symbolic to the real. The histeria (1905 [1901]). In: ______. Um caso de
Freudian turn point with the Beyond the histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade
e outros trabalhos (1901-1905). Direção geral da
Pleasure Principle (1920) would correspond
tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
to the Lacanian turn of 1964 (Seminar 11) 1977. p. 15-108. (Edição standard brasileira das
and its subsequent developments (from the obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).
phenomenon to the structure).
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica
(1950 [1895]). In: ______. Publicações pré-
Keywords: Recollection, Repetition,
psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1889).
Resistance / transference, Death drive, Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de
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