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FILOSOFIA POLfTICA

PolíticaA
Segundo Platão
Na Grécia, obviamente, houve pensa-
mento político antes de Platão. Se se hou-
Seu Ideal de Justiça, sua exaltaç,o vesse conservado para a posteridade a
do Bem e da Verdade, como modelos obra dos pré-socráticos, seguramente
supremos, sua convlcçlo de que existe teríamos de deter-nos por muito mais
um código moral que rege as re/aç6és tempo no estudo desses autores. Não obs-
humanas e a conduta polftlca dos clda- tante, podemos afirmar que, antes de Pla-
dIas, bem como a clara condenaçlo de tão, não chegou a haver uma verdadeira fi-
toda forma de tirania, constituem losofia política, algo mais que a simples
princIpias dtJprincIpias, que nlo devem alocução de algumas idéias ou conceitos
ser olvidados, que se formularam nos sobre a política concreta. Nem nos gran-
albores de filosofia, porém para sem- des poetas épicos, Homero e Hesíodo,
pre. fontes permanentes de tantas reflexões, in-
clusive de ordem política; nem em legisla-
dores do porte de Solon; nem em políticos
A cidade excessivamente idealista de' PIatão necessitará, ativos da significação de Péricles; nem em
em muitos pontos, o contrapeso do realismo de Arist6te-
les. PIatão e Arist6teles: detalhe de A Escola de Atenas,
filósofos do nível de Heráclito ou Dernó-
de Ratael. crito; nem mesmo no orador Isócrates ou
no historiador Xenofonte, contemporâ-
neos de Platão, ambos altamente preocu-
pados com os problemas políticos. De
qualquer forma, é tarefa do historiador
continuar desentranhando elementos sig-
nificativos nos muitos autores que prece-
deram o filósofo da Academia, porque, se
nesse aspecto não é pouco o que já se fez
até hoje, é possível que ainda reste muito
mais por fazer.
Quanto aos sofistas, e ao próprio Sócra-
tes, não é possível pôr em dúvida a sua
contribuição à matéria que nos ocupa, e
pode até ser válida a opinião que lhes atri-
bui algo assim como a fundação, ou pelo
menos o intento, de uma ciéncia politica.
Claro está que, como já havemos dito tan-
tas vezes, em filosofia de um modo geral,
ou em qualquer de seus ramos, não há fun-
dadores nem livros inaugurais, mas isto
não invalida a opinião de que, com estes
professores ambulantes, as assim chama-
das "ciências humanas" tenham tido um
avanço significativo. Acerca dos sofistas,
no entanto, praticamente só possuímos re-
ferências de terceiros, o que nos impede
de emitir a seu respeito um juízo mais afi-
nado. Sobre Sócrates (470 - 399 a.C.) em
particular, digamos que não expôs uma

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teoria p,olítica (é ele o principal porta-voz


dos dialogos de Platão, e o que pode haver
pensado ficou englobado no pensamento P/at'o compreendeu a necessidade
platônico), mas demonstrou enorme inte- de fundamentara polltlca em prlnclplos
resse pelos assuntos públicos, considerou a sólidos, multo além - ou, talvez, multo
política como um apostolado e foi um aquém - de todo o emplrlsmo ou utlll-
enérgico defensor da majestade da lei, a terlsmo. A pollflca, definitivamente, n'o
ponto de preferir morrer injustamente é outra co/.a .en'o o exerelelo da vir-
para não ter de, fugindo, violá-Ia. Sua tude, .uprema virtude, .Intese da. de-
morte para sempre o transforma em mo- mal. virtude •.
delo de um grande repúblico.
)

Estudaremos a Platão (427-347 a.C.) em todo seu sistema e diretamente vincu-


procurando captar e expressar em matéria lada à metafísica; percebe-se isto de ma-
política, o mais fecundo e atual deste for- neira inequívoca na "República", onde am-
midável filósofo, de quem já se disse acer- bas as especulações aparecem combina-
tadamente que "carrega o Ocidente sobre das. Este livro foi escrito em uma época de \
decadência política - embora não ainda
suas amplas espáduas".
Os diálogos platônicos costumam mes- cultural - de Atenas. Em 399 Sócrates ha- f
clar diversos temas, e a preocupação polí- I via sido impelido a beber a cicuta, após a
tica assoma com freqüência em vários de- derrota de Atenas na Guerra do Pelopo-
les, manifestando-se mais plenamente em neso e o governo dos Trinta Tiranos; não
três: no "Politico", nas "Leis" (ambos está longe o momento em que o poderio
diálogos da velhice) e, especialmente, na macedônico, com Felipe e Alexandre, ve-
"República", obra esta patriarca da filoso- nha a dar fim à polis grega em aras do im-
fia, a que melhor exibe o pensamento do pério. A "República", como todo livro fun-
autor sobre temas fundamentais, incluída damental, é criador de palavras e de hábi-
a teoria das idéias. tos mentais em que se apóia o pensamento
A "República" é um trabalho da rnadu- do Ocidente, embora isto não o saibam to-
rez de Platão, anterior aos dois acima dos os que pensam ou dizem pensar.
mencionados, conquanto seu primeiro
capítulo pertença, com certeza, à juven- O que primeira e principalmente quer
tude do filósofo. O título original do livro é dizer Platão no nível da filosofia política (e
"Politéia'', isto é, "República" (e não "Es- que reitera em várias obras) é que a política
tado", como, às vezes, toscamente se tra- e uma ciência, um elevado saber, e que não é
duz), sem esquecer que esta é uma palavra independente da ética. Nada menos que es-
latina (res publica), de origem ciceroniana. sas duas coisas, que com tanta freqüência
"Politéia" possui originariamente três sen- são olvidadas ou que não se souberam ja-
tidos: uma forma de governo (isto espe- mais. A política não é mera práxis, mas
cialmente a partir de Aristóteles); a socie- algo vinculado a valores permanentes e
dade política como tal; e regime ou go- transcendentes, o que coincide com toda a
verno da polis, qualquer que seja sua cosmovisão platônica, a partir da teoria
forma. Somos propensos a acreditar que das idéias. A política é, categoricamente,
foi esta terceira acepção a que Platão ado- algo que tem a ver com a verdade e o bem.
tou, sem descartar a segunda. República, Estas afirmações têm sua razão de ser e
ainda hoje, embora mais nitidamente há sua oportunidade, pois os sofistas vinham
alguns séculos atrás, é sinônimo de socie- de relativizar os valores morais e políticos.
dade política (polis para os gregos), inde- Sócrates os havia enfrentado em nome da
pendentemente da forma de governo em verdade, e, mestre de Platão, merecera
vigor. Em vista disso, estimamos que esta do discípulo os juízos mais laudatórios,
tradução do título é válida por si mesma, e como, por exemplo, quando o considera
não apenas por fidelidade à tradição. Os "o homem mais justo de seu tempo"
diálogos platônicos via de regra apresen- ("Carta VIr), ou quando o qualifica como
tam um subtítulo, que no caso presente é "um dos poucos atenienses, talvez o único,
Acerca da justiça. a cultivar a verdadeira arte da política, e
Platão se sentiu profundamente atraído que pronunciava seus discursos não para
pelo problema político durante toda sua agradar, mas sempre tendo em vista o
vida, após haver ensaiado, com pouco maior bem" ("Górgias", 521d).
êxito, a práxis política. Ainda mais, sem- Platão compreendeu a necessidade de
pre viu a política intimamente integrada fundamentar a política em princípios sóli-

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A Acrôoote. para os gregos, representa o intento de pe.r- epenes no especto social, mas principalmente no intimo
feição, onde cada ume d8S partes se harmoniza com o de cada indivlduo. (Na foto, reconstituição de um dos ên-
todo. N8 "República", PIa tão busca essa perfeição não gulas do Pertenon}.

dos, muito além - ou, talvez, muito aquém as ações políticas devem ser confrontadas
- de todo empirismo ou utilitarismo. A com a justiça arquetípica. Toda a obra pla-
política, definitivamente, não é outra coisa tônica está, em definitivo, destinada a fa-
senão o exercício da justiça, suprema vir- zer esta nobre proposta.
tude, síntese das demais virtudes. Não há Por outro lado, e como conseqüência do
alternativa. Toda transgressão à justiça im- que foi dito, a vida em sociedade, para Pla-
plica em uma desvirtuacão da atividade tão, se subordina ao que chamaríamos
política. Assim, a política se transforma na uma lei natural ou - mais nos agrada -
aplicação da justiça arquetípica à socie- cósmica, e não ao capricho da vontade hu-
dade. mana ("Leis", 889d e ss), pronunciando-se
Estes postulados básicos constituem o assim contra as posteriores teorias do
legado permanente de Platão. Era neces- "pacto social". Platão é claro a esse res-
sário estabelecer certas pautas e relações, peito quando diz que as leis positivas "que
e Platão o fez. Poder-se-á dizer que isto se baseiam na natureza, são tão naturais
não é suficiente; poder-se-á dizer que a de- quanto a natureza mesma, posto que são
finição da justiça como "a relação harmô- fruto da razão" Ç'Leis" X, 890).
nica entre os três setores que integram a Os aspectos assinalados - que represen-
polis" (produtores, guerreiros e magistra- tam o mais importante da filosofia política,
dos: Rep., 476c e ss), hoje, resulta algo tão- e mesmo jundica, de Platão - têm um
-somente declamativo; poder-se-ão dizer sólido sustentáculo ontológico, já que são
muitas outras coisas (1). Mas em momen- forçosas inferências da teoria das idéias,
tos inaugurais do pensamento científico sua metafísica.
ocidental - e após o relativismo sofístico,
especialmente o protagórico, a respeito da Mas Platão nos deixou também a conhe-
política - a contribuição platônica se cida sucessão dos diferentes regimes de
constitui em algo fundamental e perma- governo. A formulação foi feita com um
nente: há uma ética transcendente, a polí- certo sentido histórico, conquanto não
tica é parte da ética, a justiça é a virtude surja claramente a intenção do autor de fa-
suprema e deve ser buscada por si mesma, zer uma análise da história. Muito já se es-

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FILOSOFIA POLfTICA

creveu a esse respeito, mas em nosso pare- da cidade" (Rep., 473c). Chama a atenção
cer o primordial não está na sucessão cro- que Platão fale de "filósofos" quando se-
nológica dos regimes, e sim no enunciado guramente deve ter pensado nos sábios em
dos mesmos, por duas razões: em primeiro geral. Não acreditamos que haja usado o
lugar porque .nos mostra o significado que termo "filósofo" como o entendemos
tinham, no século IV a.c., certos termos hoje, mas, de qualquer forma, os que nos
fundamentais da ciência política; em se- ocupamos de filosofia temo-nos sentido
gundo lugar, porque Platão esboça assim sempre muito lisonjeados com a famosa
como que a primeira classificação ou tipo- sentença platônica.
logia das formas de governo com que con-
tamos, embora, a rigor, não seja isto. E acerca do "comunismo" de Platão? O
O governo ideal é, obviamente, o dos me- que primeiro devemos dizer é que Platão
lhores, o dos sábios. A este Platão denomi- não tem absolutamente nada a ver com o
na, com todo o rigor semântico, aristocracia, comunismo no sentido político atual do
logo aclarando que assim o designa quando termo, nem é tampouco precursor dos re-
são vários os governantes, ao passo que, quan- gimes totalitários conforme consideram al-
do é um só, chama-se reino (Rep., 445d). Em guns autores, como Karl Popper, por
seguida vêm as diferentes formas que se exemplo, para citar o que nos parece mais
afastam progressivamente do ideal: a destacado.
timocracia ou timarquia (timo significa Esse qualificativo resulta de uma das
"honor", "preço", "valor"), governo dos tantas transferências lingüísticas ou distor-
enriquecidos, geralmente guerreiros, am- ções semânticas a que assistimos diaria-
biciosos de honores e de poder, mas que mente. Platão é um construtor de ordens
não abandonaram de todo a sabedoria; a ideais, desde a teoria das idéias (sua me-
oligarquia, literalmente "governo de pou- tafísica) até a concepção de sua cidade
cos", expressa o poder de um grupo de ideal, de uma polis surgida muito mais da
adinheirados que se desinteressa dos de- pura razão, e mesmo da imaginação, que
mais; a democracia, regime em que há li- da realidade em si. E o filósofo diz que se-
berdade para todos, mas uma liberdade ria benéfica a comunidade de bens e até da
desenfreada, sem respeito pelas hierar- família (475 e ss), o que não condiz com a
quias e pelos valores fundamentais; final- melhor tradição ocidental; porém, deve-
mente, a tirania, extrema degradação do mos recordar que essa prescrição é desti-
processo político e o pior de todos os regi- nada tão-somente à classe dirigente (para
mes, o da submissão aos caprichos do dés- que possa cumprir melhor sua função de
pota (Rep., VII). governar), e, em que pese aceitar-se que
Como se pode perceber, termos como algumas expressões da "República" deixam
aristocracia. oligarquia e tiranio já tinham estropiada a propriedade privada, e que o
em Platão o mesmo si~nificado que basica- estado aparece hipertrofiado, Platão está
mente conservam ate hoje; timocracia se bem longe do comunismo e facismo mo-
perdeu, e democracia tem sofrido várias dernos. Toda sua cosmovisão, sua espiri-
mudanças em sua significação. tualidade, seu sentido transcendente, o
Independentemente desta prototipolo- fato de que o estado, mesmo em seus ex-
gia, há que se destacar algumas notáveis cessos, esteja ao serviço do indivíduo e
referências platônicas sobre o tema. não à inversa, bem como sua explícita con-
Desde logo, as palavras que dedica ao ti- denação do despotismo, o colocam como
rano nas últimas páginas do VIII e no IX antÍpoda de qualquer regime totalitário.
capítulos da "República", constituem uma Por outro lado, é bom que se diga, nas
caracterização de valor permanente. Outro "Leis", embora tenha acentuado certos
pensamento formidável é a~uele em que, controles oficiais, Platão revisou e mode-
recordando um verso da "Iliada", diz Pla- rou notoriamente suas idéias acerca da
tão: "Porque as constituições das cidades propriedade comum, convencido de que a
não procedem dos carvalhos nem das ro- condição humana é bem outra que a idea-
chas, mas sim dos costumes dos membros lização exagerada, que o óbvio uto~ismo,
que as integram, e da orientação que esses com que havia trabalhado na "Republica"
costumes imprimem a tudo o mais" (Rep., (2).
433 b). Outras considerações, como, por exem-
Convém recordar também a conhecida plo, aquelas acerca da eugenesia, que com
opinião .de que "a não ser que os filósofos certeza também. chocariam à moderna
governem. .. ou os ~overnantes filoso- consciência moral, não são o fundamental
fem ... Não haverá tregua para os males do sistema platônico e são próprias de sua

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FILOSOFIA. POLITICA.

Toda transgrell'o à Justiça Implica


em uma desvlrtuaç'o da atividade polf-
tlca. Assim, a pOlftlca se transformana
apllcaç'o da Justiça arquetfplca à so-
ciedade.

mentalidade pagã. Este modo de pensar, sentido aristocratizante da vida. Seu ex-
praticamente comum a todos os pensado- cessivo idealismo necessitará, em muitos
res não judeus ou cristãos, leva-o a uma es- pontos, o contrapeso do realismo aristo-
pécie de divinização da cidade ou socie- télico. Não se nos ocultam os aspectos ne-
dade (que em tempos mais modernos se gativos de sua política, porém, na conti-
traduziria em uma divinização do estado nuidade do pensamento ocidental, Platão
ou, em outros casos, da pátria), nada sau- representa algo assim como a pedra funda-
dável para uma concepção humanista da mental, desde onde necessariamente se
política. Isto sim é importante, mas tal tem de partir. Nem tudo o que afirmou em
concepção, que hoje resulta ou deveria re- seu momento pode hoje ser aceito, mas
sultar chocante, é compreensível em um seu ideal de Justiça, sua exaltação do Bem
filósofo pagão do século IV a.c. e da Verdade como modelos supremos,
No que concerne às referências porme- sua convicção de que existe um código
norizadas acerca da polis (quer dizer, a so- moral que rege as relações humanas e, por
ciedade política autônoma, ou, como se conseguinte, a conduta política dos cida-
diz habitualmente, a cidade-estado), que dãos (a política é parte da ética), assim
não deveria exceder o limite de aproxima- como a clara condenação de toda forma
damente cinco mil famílias, carecem de de tirania, constituem princípios de princí-
significação para este trabalho. pios, que não devem ser olvidados,que se
Platão construiu uma cidade ideal, deri- formularam nos albores da filosofia, po-
vada de sua metafísica idealista e de seu rém para sempre.

(1) Autores como Kelsen consideram que Pla- (reconhecida por Platão em 473b) não nega
tão não chegou a definir a justiça - o que é a primeira, própria do estilo e da metodo-
discutível -, mas queremos, por isso logia platônica em toda sua filosofia. Por
mesmo, destacar o decisivo que é vincular isso nos parecem oportunas as reflexões de
a atividade pública à idéia arquetípica da Alexandre Koyré quando adverte - contra
justiça, independentemente de sua precisa outros intérpretes - que não há contradi-
definição. ção entre o título do livro (que faz referên-
(2) Não somos dos que consideram uma trans- cia à cidade e à política) e o subtítulo, que
formação radical nas "Leis" em relação à se refere à justiça. "Por que ver um divór-
"República". Não estamos, por exemplo, cio entre ambos?", pergunta Koyré. "Pla-
com Paul Janet, que chega a imputar a tão está isento da idolatria do estado, Ce
Aristóteles o não haver visto (o que é qui préocoupe Platon, ce n'est pas I'État, mais
certo) as "notórias diferenças" entre am- l'homme, construir uma cidade justa na
bas as obras. Porém tampouco estamos en- qual possam viver homens como Sócra-
tre aqueles que, como Jean Touchard, esti- tes". São de interesse as reflexões de Koyré
mam que as intenções mais realistas são sobre a cidade perfeita segundo Platão
apenas aparentes. Acreditamos, sim, que a (Int. á Ia Lécture de Platon, N.Y., 1945).
respeito da propriedade privada há uma
mudança significativa de atitude. Não
compartilhamos, além disso, a opinião de
Pabon e F. Galiano, de que a "República"
não é primordialmente a construção ideal
de uma sociedade perfeita de homens per- JORGE L. GARCIA VENTURINI
feitos, senão" a remedial thing", um tratado
da medicina política para aplicação sobre (Extrafdo do livro "Politeia"; Editorial
os regimes existentes. Esta segunda atitude Troquei S.A., Buenos Alres, 1978).

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