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Disciplina: Leituras sobre o fazer etnográfico: pesquisa de campo, experiência, encontros culturais.

Docente: Prof.ª Dra. Edna F. Alencar


Discente: Ewerton D. Tuma Martins
Aula 03 – 01/04/2022

E. EVANS-PRITCHARD, Edward. “Apêndice IV: Algumas Reminiscências e Reflexões sobre


o Trabalho de Campo”. In: Bruxaria, Oráculo e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro:
Zahar. (1978). (pp. 298-314)

A obra Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, do antropólogo britânico Edward Evan
Evans-Pritchard (1902-1973), teve sua primeira publicação em 1937, traduzida pelo também
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro na década de setenta, é o resultado de vinte meses de
trabalho de campo, realizado entre 1926 e 1929 junto aos povos Azande na África Central. Esta
etnografia teve como foco os costumes mágicos e de crenças religiosas dos Azande. No apêndice IV
da Obra, destinado à análise discente, o autor nos demonstrará como seu trabalho de campo foi
desenvolvido e como ele pode nos ajudar, mesmo nos dias de hoje, a nos posicionar ante a incursão
em determinadas realidades étnicas/outras.

Para iniciarmos esta análise, seguiremos a ordem da escrita de Pritchard, onde o autor aponta
que sobre como se comportar em seu futuro trabalho de campo com os Azande, mesmo indagando
com antecessores como Haddon, Seligman, Flinders Petrie e Malinowski, não existe uma resposta
determinante neste fazer, pois muito dependerá de diversos fatores que vão desde o próprio
pesquisador e suas várias condições, até o contexto dos acontecimentos locais e outros que possam
influenciar de alguma forma este trabalho e ainda os costumes da sociedade estudada.

Nesta passagem ao menos uma orientação é bastante exata, não se pode ir a campo sem ao
menos ter feito um estudo teórico “rigoroso”. Para ir a campo, os seus objetivos devem estar muito
bem definidos quanto à coleta de dados. Fazer a relação do seu trabalho de pesquisa com base em
outros autores, mesmo que em outras sociedades, pode ajudar a desenvolver melhor a pesquisa. O
autor ainda aponta o fato de que nossas próprias condições como seres humanos (ideias, conceitos e
vivências próprias) vão influenciar no que “se traz de um trabalho de campo”. Desvela-se aí então
que no processo que engloba o todo deste fazer antropológico, a tarefa mais árdua e decisiva não é o
campo em si, mas sim o retorno desse e o momento de escrever sobre as informações que foram
trazidas.

O Dr. Pritchard, sobre conhecer os costumes dos Azande no sentido de se desenvolver uma
“observação participante”, decide então que o melhor a se fazer é realmente participar das
atividades laborais dos mesmos. Para mim, como morador de uma região de Unidade de
Conservação, foi inevitável fazer uma associação com a minha experiência de morar em uma
comunidade tradicional e por muitas vezes desenvolver atividades com as pessoas da comunidade
como a pesca de escora na praia, pesca de linha de mão no mangal, extração de sarnambi, turu entre
outras. Atividades que me serviriam posteriormente para desenvolver meu pré-projeto de pesquisa
para o mestrado.
Mesmo que quase que inconscientemente e por uma questão de me colocar numa posição de
não nascido na comunidade, durante minhas incursões laborais locais, mantive o que o Dr. Pritchard
apontou como importante, que é o “manter distância”. Esta atitude se torna essencial, pois no final
de todo o processo, “seremos nós mesmos e nada mais”. E, ainda, sobre a questão “objeto de
estudo”, o autor nos situa quanto ao fato de que devemos nos despir de nossas crenças (no caso dos
Azande) para melhor versar sobre o entendimento daquilo que é do outro. Não é “minha crença” em
oposição à “crença do outro”, mas o meu olhar de pesquisador colhendo informações a respeito
daquilo que não é comum a minha realidade.

Sobre a relação do pesquisador a as regras (por assim dizer) de uma determinada sociedade,
o Dr. Pritchard elucida o fato de que na sua experiência na África Central, no que diz respeito as
suas conversas com os nativos, sua presença entre as mulheres Azande, se desenvolveu sem
nenhum tipo de objeção, porém se o mesmo fosse feito por um nativo “não parente”, uma confusão
generalizada poderia se desencadear. Isso demonstra que por parte dos Azandes, apesar do convívio
do autor e mesmo a participação dele nas atividades laborais, o Dr. Pritchard ainda era o “outro”,
um ser a parte das regras locais. Para os dias de hoje, isso nos deixa a dica importante de buscar um
conhecer prévio sobre as regras, posicionamentos e costumes locais, para que possamos melhor ser
aceitos no meio que pretendemos entrar/estar.

A partir deste ponto para o final do Apêndice IV, o autor vai versar sobre as várias
dificuldades do trabalho de campo. Ele aponta o cuidado quanto às visões de técnicos agrícolas, por
exemplo, estrangeiros dando informações sobre a agricultura Azande, onde a informação poderia
ser muito divergente se vinda de um próprio agricultor Azande que é o detentor da informação mais
acertada. Em seguida o autor fala sobre o status da Antropologia na época, num contexto de
questões políticas onde a Antropologia era vista de forma negativa e hostilizada por parecer fazer
prevalecer em seus estudos a sua superioridade ante aos povos estudados, os rebaixando a categoria
de “povos inferiores”.

Ademais o autor fala sobre a necessidade de tempo estendido de pesquisa de campo e


termina com a ideia de que não há uma receita mágica para se entender as pessoas, já que é isso que
a antropologia faz, e que muito dependerá da capacidade de sociabilidade do antropólogo em saber
estar e conviver com elas. O questionamento do Dr. Pritchard se estende ainda as outras produções
da época onde vigoravam o distanciamento dos povos estudados. Numa clara alusão a Malinowski,
estas outras produções eram desprovidas de “carne e sangue”, o que compõe o levantamento das
informações referentes aos hábitos e a vida cotidiana do objeto estudado. O autor assume então uma
contraposição a estes tipos de produção, aceitando para si a “pecha”, a falha, a tida imperfeição,
porém mantendo sua posição mesmo correndo o risco de ser taxado como um “romantizador” em
seu fazer antropológico por estreitar seus laços sociais com os Azande.

O Apêndice IV aqui analisado pertence à obra do Dr. Pritchard lançada em 1937, em


linhas gerais, o que pode ter mudado da década de 30 para os dias atuais nas relações do
trabalho de campo?
PEIRANO, Mariza. 2014. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, vol. 20, n. 42,
Porto Alegre: PPGAS-UFRGS.

O artigo acima indicado é de autoria da Prof.ª Dr.ª Mariza Gomes e Souza Peirano. A
mesma faz várias análises sobre o trabalho do antropólogo e o fazer etnográfico e as suas mudanças
ao longo do tempo. A autora inicia justamente por onde ela nos aponta como sendo o gatilho para o
início de uma etnografia, o despertar do “instinto etnográfico”.

Para a Dr.ª Peirano, tudo aquilo que nos causa surpresa, estranhamento ou intriga, nos levam
a estes gatilhos de acionamento do fazer etnográfico e que estes não tem um lugar exato para
acontecer, como no caso da autora que tal situação de acionamento deste instinto se deu durante o
seu processo de recadastramento eleitoral. A partir daí já podemos notar um contraponto com os
clássicos da antropologia onde havia data, hora e momento certo para o trabalho de campo e
somente a partir da chegada ao seu destino é que o trabalho etnográfico poderia acontecer de fato1.

Tais acontecimentos fizeram a autora recordar de acontecimentos tanto na Índia como nos
EUA, sobre recadastramentos que envolviam algumas tensões políticas e automaticamente se
embasou num referencial teórico no âmbito destas questões. Então, no posto eleitoral, a autora
estava em seu momento etnográfico, mesmo tendo ela não ido até aquele local com aquela intenção.
Uma nativa e uma etnografa ao mesmo tempo contrariando a antropologia clássica.

A autora nos leva a pensar nos embates sobre etnografia e empiria e como estavam estas,
diretamente ligadas, algo que para os antropólogos é fundamental, para outros cientistas sociais era
uma falha que acabava por desmerecer a antropologia em nível de ciência “pouco teórica”, porém,
desde os primórdios da antropologia entende-se que o “método-etnográfico” não carece de uma
orientação prévia, pois a antropologia é uma ciência em constante reformulação ante ao fato de
recombinar-se intelectualmente com base em novas ideias trazidas por novas pesquisas.

A Dr.ª Peirano fala ainda sobre a importância de entendermos como esse processo histórico
da antropologia e seu estabelecimento no mundo, onde seus pontos negativos são apontados com
facilidade se pensarmos na função dela como aliada ao processo de colonização. Por outro lado, a
antropologia posteriormente abriu as portas para o respeito à diversidade étnica que temos
conhecimento hoje.

Quanto ao uso da etnografia como método, a autora nos alerta que etnografia não é método!
O uso do termo “método-etnográfico” na designação do método usado na produção de monografias
não é válida para a autora, pois toda etnografia é também um método. Quando a etnografia é boa ela
também será uma “contribuição teórica”, porem se esta for uma etnografia com características de
um texto jornalístico ou apenas uma curiosidade que não proponha ou incite o debate, não será
considerada de valor teórico.

Dentre outras questões relacionadas às indicações práticas do fazer etnográfico no âmbito da


antropologia política, a autora conclui que o caminho a se seguir é o da busca da expansão teórica e
etnográfica para o entendimento do “mundo em que vivemos”.

A partir do texto da autora, em que consiste o método para Peirano?

1
Exemplos: Malinowski (1922) e Evans Pritchard (1937).

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