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KASTRUP, Virginia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano Normocentrismo tem remédio? Considerações
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KRENAK. Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia
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MERHY, Emerson Elias. Engravidando as palavras: O caso da integralidade. Introdução


In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araujo de (Orgs.). Construção Ao engendrar a presente escrita, pensamos em um percurso de considerações
social da semana: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e sobre o fenômeno da medicalização e, consequente, medicamentalização,
espaços públicos. Rio de Janeiro: Abrasco, 2005. p. 195-206.
na escola ante discussões travadas no campo dos estudos sobre a deficiência
MERHY, Emerson Elias; GOMES, Maria. SILVA, Ermínia; SANTOS, (disability studies), tomando a persistência da perspectiva biomédica
Maria de Fátima. CRUZ, Kathleen; FRANCO, Túlio Batista. Redes Vivas: sobre a educação daqueles considerados significativamente diferentes
multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a e o capacitismo como conceito emergente desse cenário e categoria de
produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação análise para as investigações realizadas. Isso nos leva a um recorte que
em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 52, p. 153-164, dez. 2014. destaca a educação de pessoas com deficiência como domínio privilegiado,
porém certamente não circunscrito à educação especial, de atenção a
PARMEGGIANI, Roberto. Desabilidade. São Paulo: Nós, 2018. práticas e pressupostos capacitistas. Portanto, de saída, concentramos
nossos esforços na compreensão dos fundamentos da medicalização e da
SINGH, Ilina. Not robots: children’s perspectives on authenticity, moral
medicamentalização sobre os corpos e mentes considerados deficientes.
agency and stimulant drug treatments. Journal of Medical Ethics, Londres,
v. 39, n. 6, p. 359-366, 28 ago. 2012. Do ponto de vista social, essa perspectiva se justifica na consideração do
capacitismo como presente na elevação de barreiras de acesso aos serviços
básicos – tais como saúde, educação, emprego, transporte e informação –
para essa população, de modo que as pessoas com deficiência apresentam
taxas de pobreza mais elevadas, níveis de saúde e escolaridade piores
e participação econômica reduzida. Inicia-se um ciclo de vulnerabilidade
do qual é difícil emergir, dado o cenário político-econômico brasileiro
(MADRUGA, 2013). Os tratados internacionais, os pactos e as políticas
públicas inclusivas pretendem incidir nesse estado de coisas, regulando e
construindo outras formas de participação e acesso aos bens públicos.

No Brasil, tal perspectiva ganha representatividade a partir de 1988, quando


a Constituição Federal gera dispositivos para a proteção e inaugura uma
mudança no tratamento voltado à inclusão social. A Constituição Cidadã,
como é conhecida, tem por objetivo “promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”. Estabelece também a “igualdade de condições de acesso e
permanência na escola” (BRASIL, 1988, s/p).

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O Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, que dispõe sobre a Convenção do número de matrículas e do tempo de permanência de estudantes com
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo deficiência nos diferentes níveis de ensino. Contudo, compreendemos
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, estabelece ser necessário um empenho adicional para a finalização dos ciclos de
a “discriminação por motivo de deficiência”: aprendizagem, visto as barreiras preestabelecidas na estrutura social, sejam
elas metodológicas, instrumentais ou atitudinais, as quais se fortalecem
com a preeminência do mito da normalidade (GESSER; NUERNBERG;
[...] qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o BÖCK, 2020) – sobre o fértil substrato da lógica medicalizante e das práticas
propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou
medicamentosas para solução de “desvios” indesejados.
o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico,
Essa construção é sempre inacabada e, por isso, demanda uma atenta
social, cultural, civil ou qualquer outro (BRASIL, 2009, s/p).
vigilância epistemológica, política e ética. Há sempre o risco de retrocessos,
de naturalização das desigualdades sociais, de violências de todos os
tipos. Desse modo, o texto que apresentamos pretende auxiliar nesse
Ressalta-se que a Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015) referenda
movimento de associar o debate sobre deficiência, capacitismo, educação
a deficiência como uma limitação duradoura, agravada pela interação
e medicalização às situações ordinárias da escola. O grupo de pesquisa a
dos impedimentos naturais com as barreiras sociais, institucionais e
partir do qual falamos, o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e
ambientais, excluindo ou dificultando a participação do sujeito no meio
Cultura (Nuppec), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul
social. Levando em consideração uma necessária contraposição à
(UFRGS) tem trabalhado em nível de pesquisa, ensino e extensão no sentido
perspectiva biomédica que inspirou tais documentos, Clímaco (2010),
de criar canais de observação e, sobretudo, escuta dos protagonistas dessas
em um trabalho sobre direitos humanos e educação especial, estabelece
questões em seus locais privilegiados de fala, mas também de ação e de
uma relação que nos parece pertinente, a fim de introduzir o que iremos
vida. Considerando a vida ordinária da escola, buscamos dar consequência
desenvolver adiante.
ao debate de temáticas como medicalização e patologização da vida e na
No que se refere ao reconhecimento das pessoas com deficiência, há escola a partir de seus modos discursivos característicos, sem renunciar à
uma tensão entre a supervisibilidade, produzida pelo modelo médico de recolocação histórica das questões em seus fundamentos.
deficiência, e a invisibilidade relativa ao que é da ordem da cidadania e
respeito às diferenças. É como se, ao se focar o universal do diagnóstico,
não percebêssemos o que é da ordem do sujeito e do particular. Para Os anormais: a deficiência como déficit e desumanização
essa pesquisadora, trata-se de um assunto ainda pouco abordado nos
Ao tentar reconstruir historicamente os passos do que no presente
documentos legais e que se relaciona com as concepções sobre o que é a
chamamos educação especial, as pesquisas em geral consideram o
deficiência. A despeito da sua fundamental importância, essas discussões
advento da Modernidade – mais propriamente a eflorescência do Iluminismo
não se fazem presentes nas práticas educacionais, sejam ditas normais/
no Ocidente (JANNUZZI, 2004; VASQUES; ULLRICH, 2019) –, o que
comuns ou especializadas, tampouco nos documentos legais. Pelo
coincide com o momento em que a deficiência passou a ser pesquisada
contrário, o discurso insiste, ainda, em uma leitura da deficiência como
com o uso de métodos científicos no campo das ciências naturais. Por
tragédia pessoal, desvinculada das questões estruturais e sustentando
esse processo, assim como ocorreu com outros fatos humanos tais como
a marcha de produção de fármacos e protocolos padronizados de
a homossexualidade e a criminalidade, a deficiência se tornou um caso
intervenção.
paradigmático de medicalização, afastando-se de um modelo moral de
Ratificamos, portanto, nosso compromisso com as significativas conquistas inspiração bíblica. O modelo médico da deficiência busca designar “uma
decorrentes das políticas educacionais inclusivas, dentre elas, a ampliação visão unilateral que atribui a causa dos déficits à má sorte individual

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(acidentes), a práticas de saúde inadequadas (tabagismo, má alimentação) médico de deficiência ou psicométrico de Binet – frequentariam instituições
ou aos genes. [...] A deficiência se torna assim uma tragédia pessoal que tinham por objetivo aproximar essas crianças e adolescentes a um
resultante da condição patológica do indivíduo” (KRISTIANSEN; VEHMAS; padrão considerado normal de desenvolvimento, comportamento e inserção
SHAKESPEARE, 2009, p. 2, tradução nossa). Essa contextualização, por na cultura. Essas instituições seguiram por muito tempo tal modelo de
sua vez, permite compreender o surgimento da educação especial a partir segregação e isolamento, o que nos leva a perceber que a representação de
de uma racionalidade híbrida, localizada na conjunção entre a medicina, a pessoas como anormais implicou a necessidade de restringi-las a espaços
psicologia e a pedagogia. também incomuns. O autor ainda afirma que, na educação, “a atribuição
de especial indica uma característica negativa das pessoas implicadas e,
Carla Jatobá Ferreira (2016), apresentando seus estudos a respeito da
ao mesmo tempo, determina um lugar de educação (estabelecimento ou
concepção de anormalidade em Alfred Binet, deu visibilidade ao panorama
turma), ele próprio definido sob a égide do especial, como em um jogo de
científico no qual se desenvolvia a psicologia europeia no século XIX,
espelhos” (PLAISANCE, 2015, p. 232).
particularmente na França, e seus efeitos pedagógicos percebidos, ainda
hoje, na educação. Naquela ocasião, a escola incumbiu-se de classificar O princípio de degradação dessas designações relaciona-se ao que Goffman
todas as crianças nas escalas de medidas de inteligência criadas por (1980) descreveu como estigma – um atributo físico ou simbólico que lança
Binet, vulgarmente conhecidas como testes de QI. Concentrando-se nas descrédito social sobre uma pessoa. De modo que esse atributo, antepõe-
possibilidades de previsão, quantificação, classificação e mensuração, e em se a todos os demais, na identificação e no reconhecimento dos sujeitos,
acordo com os ideais de cientificidade vigentes, a psicometria passou a ser classificando quem o apresenta como socialmente indesejável. Efetua-se,
o parâmetro principal que permitia determinar quais crianças iriam ocupar assim, a separação entre normais e anormais: “[...] um indivíduo que poderia
as classes especiais do sistema de ensino francês. Chama atenção nesse ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço
processo, o esforço empreendido na psicologia para transformar suas bases que se pode impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo
teóricas, a fim de defender a ideia de anormalidade escolar no contexto a possibilidade de atenção para outros atributos seus” (GOFFMAN, 1980,
daquelas ciências tomadas como exemplares; em seu caso, a fisiologia. p. 14).
Nesse período, as descobertas no campo da física e das ciências naturais,
A partir disso, a atitude posta em prática pelos ditos normais é a de quem
mudam as formas de conceber o que é conhecimento válido e promovem a
percebe os estigmatizados como não completamente humanos, replicando
consolidação do positivismo e do cientificismo, de modo que, segundo esses
ações minimizadoras de suas chances de vida (GOFFMAN, 1980).
novos pressupostos, o alcance e a formação do conhecimento só poderiam
Estabelecendo um diálogo com os estudos sobre deficiência, podemos
se dar por meio da ciência e do método experimental. Tendo assegurado
pensar que a relativização das barreiras sociais pela ação beneficente e
a cientificidade das escalas por esses critérios, não fazia mais sentido
o surgimento de teorias e ideologias para explicar o que é tomado como
perguntar-se sobre a correção moral de práticas segregantes e patentemente
inferioridade ou falta de capacidade revela-se como expediente cujo objetivo
preconceituosas, ou sequer pela existência real de tais categorias entre
é racionalizar os conflitos, os quais podem estar relacionados, inclusive a
os alunos. Ainda que, curiosamente, segundo o próprio Binet, as crianças
outras desigualdades, como a de classe social.
anormais não pudessem ser identificadas a não ser por essas escalas,
ficando confundidas com as demais, sem que seus professores notassem
sua anormalidade (FERREIRA, 2016).
Normocentrismo e medicamentalização em prol da saúde, força,
Tomando esse percurso pela via da linguagem, Plaisance (2015) analisa a inteligência e capacidade
demanda por inclusão a partir da educação especial, argumentando que esta
última foi estabelecida sobre a cultura da separação. Aqueles considerados Observar a relação entre o sujeito e o meio foi o que levou Paul Hunt, Michael
anormais, deficientes, diferentes ou mesmo ineducáveis – segundo o modelo Oliver, Paul Abberley e outros precursores dos estudos sobre deficiência a

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produzir e defender a emergência do modelo social como contraposição Assim, estudar os fundamentos do que se entende por deficiência adquire
à hegemonia biomédica nesse campo. O trabalho seminal desses autores função preponderante neste trabalho, primeiro na ordem das razões. Isso
na teorização do modelo alcançou seus resultados ao aproximar-se de porque seu sentido transita em disputa nos âmbitos social, cultural, político e
discussões que então avançavam em áreas como estudos culturais, intelectual. Justamente, mas não por acaso, aqueles que sofrem tentativas de
sociologia e feminismo (DINIZ, 2007). Há, nesse movimento, uma inversão supressão nos processos medicalizantes, adotando o sentido proposto por
de perspectiva na consideração daqueles que apresentam uma característica Moysés e Collares (2017): a transposição de questões coletivas, de ordem
que os torna significativamente diferentes – para aludir à expressão usada social e política, ao domínio individual, restrito ao biológico. Esses processos
pela psicóloga Lígia Amaral (1998) – ou, como já dissemos, estigmatizados. ajudam a isentar instituições e governos de suas responsabilidades éticas,
gerando obstáculos a práticas educacionais transformadoras nas situações
Na compreensão exclusivamente biomédica, à qual se buscou um
de fracasso escolar. As mesmas autoras alertam para as relações nada
contraponto, o conceito de deficiência é subsumido à localização de uma
delicadas da indústria farmacêutica com o assunto debatido aqui. Segundo
lesão física, a qual, por sua vez, é indicada pela diferença estatística.
elas, as empresas relacionadas a esse meio investem pesadamente em
Por consequência, entende-se a deficiência como localizada no corpo e
estratégias de marketing que sustentam a reprodução de uma lógica que
intrínseca, portanto, ao sujeito daquele corpo. Assim, a atenção recebida
prolifera indefinidamente o número daqueles tornados pacientes com o intuito
pela deficiência circunscrevia-se a ações de ordem médica com foco na
de aumentar seus lucros, aprisionando-os em tratamentos farmacológicos
reabilitação à normalidade. Esse cenário exigiu a produção de técnicas
longos e, sobretudo, dispendiosos.
de intervenção nesses corpos e uma classificação tipológica assentada
na categorização das diferenças e capacidades. A deficiência, nessa Nessa esteira de raciocínio, torna-se evidente o alcance da medicalização e
perspectiva, é entendida como uma consequência da lesão conforme o seu efeito de tornar a deficiência condição individualizada e particularmente
seu tipo e signo de não capacidade. Era forçoso, a partir daí, questionar a segregante das trajetórias de escolarização. Por esse motivo, trabalhos
hegemonia desse sentido e inscrevê-lo no tecido coletivo e político como como os de Oliver (1990), Campbell (2009) e Kristiansen, Vehmas e
questão de justiça social e direitos humanos (OLIVER, 1990; KRISTIANSEN; Shakespeare (2009) nos são caros, pois ajudam a avançar o entendimento
VEHMAS; SHAKESPEARE, 2009). sobre as bases sociais dessa segregação e nos aproximam da reflexão
filosófica da qual ela é indissociável. Nossa justificativa, portanto, vincula-
Como o grande obstáculo, o capacitismo apresenta-se de maneira estrutural
se à acessibilidade à escola e aos currículos, assentando-se para além do
em nossa cultura. Trata-se de “uma rede de crenças, processos e práticas
raciocínio biomédico responsável pela produção de deficiências, fracasso e
que produzem um tipo particular de self e de corpo (padrão corporal), o
medicamentalização, o que, reforçamos, torna a discussão sobre a natureza
qual é projetado como o perfeito, típico da espécie e, portanto, essencial e
da deficiência inarredável neste momento.
totalmente humano. A deficiência, então, é considerada um estado diminuído
do ser humano” (CAMPBELL, 2001, p. 42, tradução nossa). Socialmente, Assim, no que diz respeito às concepções teóricas influentes na educação
materializa-se como discriminação que promove tratamento desigual em de pessoas com deficiência – particularmente, as advindas da medicina
decorrência da presunção de ausência de deficiência ou necessidade de e da psicologia experimental –, buscamos considerar as assumidas, as
normatização daqueles que ocupam espaços públicos (CAMPBELL, 2009). presumidas e as negadas, entendendo que tal intenção de ocultamento
A partir daí, o trabalho de Pfeiffer (2002), nos ajuda a entender certas sob a cortina do ateórico, do politicamente neutro, cumpre uma função
fundamentações filosóficas influentes na educação especial que têm sua ideológica de manutenção de poder. Para se opor a tal estrutura, as iniciativas
origem vinculada à produção de uma sociedade capacitista e segregadora. educacionais precisam não apenas deixar de reproduzir preconceito, mas
Em decorrência do capacitismo, a educação de pessoas com deficiência é contribuir para a interrupção de seu ciclo, reafirmando os direitos humanos
frequentemente desqualificada, estereotipada e segregante. das pessoas com deficiência, especialmente no tocante ao seu protagonismo
político e à capacidade de falar por si mesmas (TIMBERLAKE, 2020).

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O sujeito da educação anticapacitista é linguístico, político, histórico manter a configuração social tradicional e seus padrões normocêntricos
de humanidade. Nesses termos, a demanda por educação ressignifica-se
A pedagogia e o currículo normocêntricos servem ao aluno concebido
como a ratificação da coletividade, não como necessidade individual de
segundo um ideal de capacidade, poucas vezes ou nunca encontrado na
reabilitação de sujeitos vivendo em corpos anormais.
realidade. Mesmo no contexto dito inclusivo, a escola geralmente considera
esse fundamento como natural e isento de problemas, e os objetivos de No que diz respeito ao assunto da medicalização, é preciso apontar sua
aprendizagem, metas e avaliação carregam o traço daquilo que se nomeia ligação a perspectivas que estofam o campo da educação com discursos
como capacidade ou não capacidade dos alunos: “aluno em situação fundados em reduções biológicas, médicas e neuronais, uma vez que
de inclusão”, “portador de deficiência”, “discrepância significativa entre reduzem o sujeito – que é político, social, psíquico, histórico, cultural
capacidade e aproveitamento”, “fala imatura”, e assim por diante. Desse – a uma unilateralidade biológica empobrecedora. Nessa redução, as
discurso ecoa outro, identificado com a frase “eu não estou preparada/o”, singularidades são transformadas em meros sintomas, indícios de patologia
“eu tenho 15 alunos e 2 de inclusão”, “tenho medo de trabalhar com e de anormalidade, que devem ser tratados pela via medicalizante e
esses alunos”, “eu não estudei pra isso”, “essas crianças são diferentes farmacológica.
e precisam de professores especializados”, “já tenho responsabilidades
Uma educação que se propõe anticapacitista, precisa privilegiar a via
demais para assumi-las”, entre tantas outras expressões de mal-estar e
do diálogo, da aproximação como o outro. Acreditamos que uma outra
descrença na função da escola.
abordagem não só é possível como eticamente irrecusável. Nesse sentido,
Essas falas são elencadas como índices do capacitismo e barreiras à tomamos como ponto de inflexão uma cena em um contexto de uma sala de
aprendizagem. Valle e Connor (2014) auxiliam nessa compreensão aula no ensino profissionalizante1. Tratava-se de uma aula de preparação
quando trazem o “mito da homogeneidade que orienta a busca incessante para o trabalho, os alunos passavam um período do curso (dois ou três
de novos métodos para se classificar as crianças de acordo com as suas meses) em uma empresa na qual faziam um estágio de experiência e um
semelhanças” (p. 72). Esses autores também entendem que o problema outro período (também de dois ou três meses) na escola.
pode estar na expectativa de homogeneidade dentro e fora da escola,
A cena que relatamos a seguir diz respeito à primeira semana do retorno
causa de um desapontamento constante.
à escola depois do período de trabalho. O professor recebeu os alunos e
Colocar a deficiência como questão de justiça social análoga àquela propôs que produzissem um relato sobre o período em que estiveram na
demandada por outros grupos que sofrem opressão social – tais como empresa. Como havia alunos em diferentes níveis de alfabetização, o relato
negros, mulheres, LGBTQIA+ e indígenas –, coaduna-se com o alerta que a poderia ser realizado de formas distintas (desenhos, escrita, colagens,
pesquisadora Carla Biancha Angelucci (2014; 2015) faz sobre a necessária pinturas etc.). Nesse momento, uma das alunas, que sempre carregava um
vinculação do tema aos direitos humanos universais, afastando-o do modelo caderno e canetas, interpelou o professor e disse: “Professor, eu não leio,
medicalizante. “A escola é um possível e potente lugar de reocupação mas eu escrevo”. Ao passo que o professor respondeu: “Mas eu leio. Então,
da esfera pública como esfera de humanização, a partir da experiência tu escreve pra mim, que eu leio o que escreveu, ok?”. A aluna então realizou
de coletividade. O trabalho de apropriação crítica dos bens culturais, a atividade e entregou, alguns minutos depois, o relato exposto na imagem
realizado de maneira intencional e sistemática, é um direito social universal” a seguir.
(ANGELUCCI, 2015, p. 5). Portanto, uma vez que o direito à educação
de qualquer pessoa seja questionado, negociado ou atacado, abrem-se
possibilidades para o reavivamento de atitudes reacionárias cujo intuito é
1
A experiência narrada, bem como a imagem, foi usada anteriormente em estudos ainda não publicados.

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Figura 1 - Produção da aluna V. capacitista, poderia ser apontada como o momento em que fica evidente o índice
de um transtorno ou lesão, ou seja, uma manifestação da anormalidade ou falta
de capacidade. Esvaziados de seu caráter enunciativo, o comportamento, o
gesto e os pormenores de uma vida cotidiana são enquadrados, depurados
pelos inúmeros questionários e escalas de medida, a ponto de perderem o
valor de palavra dirigida a alguém. O que era diálogo transforma-se em reação,
perdendo-se, assim, a especificidade contextual e humana da aprendizagem.
Apesar disso, tal temática é silenciada nas pesquisas, bem como nos espaços
de formação inicial e continuada, e os manuais médico-psiquiátricos, os
protocolos padronizados e os compêndios farmacêuticos circulam sem maiores
questionamentos quando se trata de crianças e adolescentes destoantes do
aluno tomado como ideal e capaz (LIMA; VASQUES, 2018).

Considerações finais

As formas de compreender a deficiência são determinantes das práticas


pedagógicas, e o modelo biomédico, no qual a educação encontra assento,
mesmo em sua perspectiva inclusiva, falha ao promover e sustentar uma
Fonte: acervo pessoal.
representação de alunos com deficiência como anormais e não capazes. Não
é surpreendente, dessa forma, que este aluno seja tomado como estranho, um
ser não participante daquilo que é definido como ensino de qualidade e alvo
Quando entregou o papel, aparentemente satisfeita com a realização da de intervenções farmacológicas de inspiração normatizante. Uma perspectiva
atividade, perguntou: “Tá bom assim?”. Ao que o professor respondeu: anticapacitista, fundamentando-se no modelo social da deficiência, oferece
“Ah sim! Que legal o teu relato, então tudo foi ótimo lá na empresa?”. A outras possibilidades ao problematizar o que é construído como resposta
aluna franziu o cenho e meio desconfiada, como se quisesse indicar que cultural, histórica, política e epistemológica em relação ao humano.
o professor não havia lido completamente o relato: “Não… teve coisa que
não foi tão legal assim”. A aluna retorna ao trabalho de escrita, inscreve um O discurso médico na educação apresenta-se como portador de objetividade
segundo tempo, grafado entre traços e, por fim, a partir da palavra VOA, científica e neutralidade teórica, ocultando a contextualidade (aquelas
registra “o que não foi tão legal assim”. condições socioculturais, históricas e políticas) do que se dá a perceber
dentro da escola, nos enunciados dos alunos e nas relações entre eles e os
Na experiência dialógica apresentada acima, tomamos o relato da aluna como professores contribuindo para a perpetuação do capacitismo estrutural. Tal
uma escrita endereçada, ou seja, algo que exige um autor e a escolha de aparente neutralidade científica está a serviço da dominação dos corpos.
um leitor. Como enunciado que se dirige a alguém, que vem a partir de uma Se é a lógica normocêntrica que demanda a normalidade, apresentada de
demanda simbólica instaurada pelo professor e exige dos alunos um esforço de maneira inclusive medicamentosa, então é preciso não apenas denunciá-la,
elaboração de suas próprias experiências. Estabelece-se aí uma relação pautada mas se colocar na escuta daquilo que o medicamento cala em termos de
pela linguagem. Essa postura, que atribui ao relato uma condição de escrita, de angústia, mal-estar e não saber.
palavra endereçada, reconduz a aluna a um lugar no qual ela não é reduzida a
enunciados normocêntricos. Essa experiência, se tomada desde uma perspectiva

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VASQUES, Carla; ULLRICH, Wladimir. Correspondências sobre o outro na
educação especial. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v. 21, n.
2, p. 316-333, abr./jun. 2019. – Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou


os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

Há antecedentes na família?

(...)

Eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com
versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de
estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de
se lançar no esfrega-esfrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras,
e pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou
carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto
morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então,


ele que fosse examinado. O médico que faça revisão geral, parte mecânica,
parte eléctrica. (COUTO, 2009).

Utilizando a ótica do conto, no contexto narrado, a família não via


“normalidade” nas ações do filho. Assim, a pedido do pai e da mãe do
garoto, o médico necessitava fazer um check-up geral e averiguar o que
se passava e, ainda, “dar um jeito nisso”, como dissera o pai. Sonhos de
mais, sonhos de menos. Escritas de mais, escritas de menos. Palavras de
mais, ou de menos. Todas as singularidades que ultrapassam a fronteira
imaginária da normalidade são vistas como passíveis de indicação para
uma avaliação diagnóstica e tratamento. Fronteiras são ultrapassadas,
e diagnósticos passam a ser reconhecidos como mapas que tendem a
delimitar o sujeito. O conto apresentado retrata a história de muitas crianças

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