Você está na página 1de 12

VIVIAN CAMPOS

REVOLUÇÃO
As legendas foram desativadas
Pois este é um corpo que quer falar
No mais absoluto silêncio
Reverberar por entre as paredes
De sua prisão
Escute o som da abstenção
Eu, que gosto tanto das palavras
Quero dizer
De outro jeito

Dança comigo.
ESTUDO BÍBLICO
Eu desejo ao homem
Entre todas as coisas boas e belas
Uma dádiva essencial
Um filho veado
Uma filha cadela
Um passe de lucidez
Para a arca de Noé
Antes que os leões
Dominem a terra
E comam o homem
Eu desejo a ele
Olhos de ver
Ouvidos de ouvir
Com o que há no interior do peito
Na esperança de haver
Realmente
Algo que bata
E que não seja punho.
DESAPONTAMENTOS
A Rosa brigou com todo mundo debaixo de
Uma chuva de meteoros
Orbita no espaço sideral sem solo, água e Sol
Nenhum suprimento que faça manutenção de sua existência
Resignadamente e na iminência da morte a Rosa pensa
– O “Pequeno Príncipe” é o livro infantil mais adulto que já vi
No entanto, limitado a natureza
De ser apenas
Livro.
GUERREIROS COM GUERREIROS FAZEM O QUE PODEM
A cada dia mais um dia
Um segundo atrás do outro
Segundo
Pois na ponta existirá
Sempre
Somente o primeiro
O derradeiro lugar
De quem anda na frente
De qualquer batalha

Deitada na trincheira
Me fingi de morta
Chorei na terra já regada
Por outro sobrevivente.
NÃO VAI SOBRAR PEDRA SOBRE TERRA
Ante a dor de beijar um corpo gelado
Prevalece a de não poder olhar a pedra
Sob a qual ele repousa
Havia uma pedra no meio do caminho?
No final do caminho há uma pedra
Abaixo da pedra a simbiose
A metáfora da continuidade infinita
Nada morre, nada termina
Nada começa
Tudo existe
E rola feito pedra
(Aos trancos)

Há uma pedra no fim do caminho


– Alto lá! Que para o caminho não há fim!

Aonde foi que ficou a pedra?


ORGANIZADOR DE TAREFAS
Sentir medo dos homens na rua
Sofrer a ausência do chá
Respirar fundo no domingo à noite
Para a semana é preciso
Ar
Levar mais um dia a cabo
Como ato de resistência
Como desobediência civil
Olhar nos olhos do pedinte
Como se ele existisse
E valesse mais do que os 20 centavos
Dados a contragosto

Preparar-me para o aniversário


Que você faria se pudesse
Se seu corpo envelhecesse
Se você tivesse corpo
Permanecer em silêncio
Para ouvir ao monstro.
PRECE
Me salvará uma canção
De todo rosto de gente que vela
Pai ou mãe de jovem mulher
De toda jovem mulher
Que eu for ao longo do tempo
Sentada no mesmo velório
Pensando no resto dos dias
Nas expressões das tias
Iguais
Às da vez passada
Desconserto e constrangimento
De quem não viveu dor maior
Pra garantir que finda
Tudo acaba, afinal
Me salvará o longa metragem
Do diretor espanhol
Quase feito pra ninar
Mas que veste qualquer tamanho
De jovem mulher
Como eu e como você
Quase
Por conta da exceção das crianças
Que já são como nós
Prodigiosamente saudosistas
Me salvará um livro comprado no sebo
E lido na hora mais certa
Em sábado de chuva rala e perene
Todos os seus amigos
Serão personagens inventados pelo novo autor favorito
Da jovem mulher que acabou de nascer
Por cima daquela que éramos antes
De nos faltar alguma coisa
Pra dormir no maior quarto da casa
Ao fim de todas as artes eu estarei salva
Pois tudo acaba, afinal
Contudo
Na canção, no filme e no livro
Basta o regresso.
Numerais

Uma menina de 14 anos quando cresce


É repentinamente a mulher que não virou ainda
Uma estação que é meio úmida, meio quente, quase florida
No meio do dia frio que denuncia as datas 
Já incapacitadas para o ofício de dividir o tempo

Os números indivisíveis são todos primos uns dos outros


Dando-se apenas entre eles mesmos
Até que introduza-se parte da astúcia dessas meninas
Às equações de grau elevado
Vírgulas curvas e decimais
Meios, quartos, terços
Meia mulher e três Ave Marias
Antes que Deus nos acuda

Livrai-nos dos 14 anos que fazem diariamente estas meninas


Da volubilidade do clima que arruinou os nossos cruzeiros pela costa do Rio e os
nossos cabelos
Que descabelou as nossas virilhas
E nos comprou em seguida
Casacos destinados a 3 ocasiões de uso dentro de uma década

Dentro do nossos corpos essas garotas


Debutam copiosamente
Calejam os mindinhos durante a infinitude da valsa
Despejam o primeiro porre garganta e olhos à fora
Multiplicam-se
Potencializam-se
Enraizadas.
CALÇADAS
Vou para a rua sem o sapato de salto e me sinto minúscula
Abaixo da linha do pensamento
Desnivelada
Dando com a cara nos corações

Minha cabeça sozinha no peito de todo mundo


O peito ranzinza de não entender os estômagos
O sexo pisoteado por quem anda com pressa

Na hora do almoço

Os cérebros correm
As artérias definham, famintas
Os pés se apaixonam 
Pela altura do salto
Incham, latejam e morrem

Acima dos túmulos


Desfilam os animais descalços.
REGISTRO PERMANENTE DA PALAVRA NÃO DITA
A palavra é essencial
A quem profere e guarda
Ou eterniza na escrita de um idioma qualquer
Pois muito se traduz de tudo
E tudo fica inteligível na plenitude de sua presença
*
A tradução da palavra que faltou
Sem a participação do locutor que nada disse
Mata como sua ausência
A palavra está torta
A palavra está cruzada
A palavra orbita armada
Atravessa as estações
Dos meios de locomoção
Pronta para agir
No passado que aconteceu
No tempo em que partiu o trem
Muito antes de seu nascimento.

Você também pode gostar