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espigueiro
no meio da
eira
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Willkommen und Abschiedi
seremos
como bichos
sem religião
és a seta
que me fere
onde a vida
é mais verdade
a tua mão
cheira à minha
mão quando
te vejo do
portão
3
Verdes anos
4
Libação
e ao longe
o rio leça espumando a noite
com as cigarras
entorno o meu cabelo
onde se escondem
as garças a esta hora?
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Recreio II
por isso,
quando me beijavas
não sabias que me beijavas
a palma
da mão da masturbação
6
Unção
subo-te a saia
as tuas pernas tão grossas
violetas são flores
de joelhos gretados
quero beijar-te
as coxas
eu beijo-te
as coxas
que vejo entreabertas
e o cheiro quente
do algodão
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sento-me no chão
na minha palma a planta
amarela do pé
a temperatura é boa
para te amar
como quem cultiva
um capricho molhado
as feridas estão
tenras e fechadas
corto-te então
as unhas
e sinto nos dedos
a untura
que separa
os dentes
da grande roda
o laço desfeito
de um avental
diz-me que
a economia
da vida é injusta
como um
namorado
pressinto que
as coisas tendem
elas correm
para o seu destino
os cavalos
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Blandina
9
Martírio
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E por vezes fingimos que lembramosii
a David Mourão-Ferreira
11
Génesis, 3
antes
da terra
terá havido
o mar,
pelo menos segundo
o texto bíblico
antes
de tudo
havia uma bola
de fogo
fundido,
foi o que tu disseste
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Iogurte Grego
Os domingos
deixam-me desconsolada
quando não
tenho com quem
fazer amor
Não há homem que
me coce
porque o homem que
me come
dorme
na nossa cama
Importa-me que
o homem que
me come
coma iogurte
grego
Importava-me que
o homem que
me come
dormisse
nesta cama que
me comesse que
eu tivesse
cócegas consolo que
eu tivesse
com quem comer iogurte
grego
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Arte Poética
14
Quando chego
sentada na cama
sinto-nos o cheiro
o meu sexo
costumava
cheirar a mim
eu costumava ser eu
agora não sou
ninguém
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Universais
O José Carlos
não gosta do verso
não sou/ ninguém
as mulheres
não andam no mar
ficam na praia
são loucas!
e choram
eu chorava agora
como dantes
choro na praia
tantas lágrimas que
quase ceguinha
parece que
não sou/ninguém?
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Recreio I
somos más
como más são as mulheres
e somos mesmo más
como só com as mulheres
II
Os rapazes correm
e as nossas mãos armadas
são as mãos que aos rapazes estendemos
que nos dão estalos no recreio
que mostram o pénis
que não sabemos se temos
coragem de ver
17
III
e eu entretida
com uma ideia de amor
e outra de expiação
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Proporção
a solidão de Mariana
vê-se melhor agora que
cortaram os trigosiii
os barcos também
são sempre
do mesmo
tamanho
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BALDIO
20
Doutrina
II
III
IV
21
Festa
22
Licença
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Reprodução I
debaixo do braço
levamos as tábuas
vernaculares
esperamos a lei
escrevemos o governo
umas para as outras
todas para o mundo inteiro
um bolo bate-se
sempre para o mesmo lado
brincadeiras de homens
são beijos de burro
mais vale cair em graça
que ser engraçada
não faças maionese
se estás com a menstruação
não vás à fonte
com a sede toda
nunca te arrependas
de estar calada
a melhor laranja
é do teu marido
faz-te farta como
um espigueiro no meio da eira
o reino do céu
é de quem se senta no fim da ceia
cresce que crescer
é castigo
24
Reprodução II
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Cadela
Dalila dança
descalça dorme
descoberta
Dalila ladra
louca lambe
isgoia
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O que diria Hildegard von Bingen?
Tenho a hagiografia
para me inspirar o santo exemplo
e há dias em que tenho tanta coragem
que subo as escadas
e vou mesmo a sério
para experimentar
o martírio:
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Como estou aborrecida
aliso os cortinados muito nua
e dou muitos saltos na laje fria
porque acredito no mistério da levitação.
É então que
de braços muito abertos
debruço-me nos parapeitos
a ver quantas galinhas me roubaram.
Eu nunca me vi
aliviada por
pôr ovo nenhum.
Mas eu não,
eu não matei as minhas irmãs.
Era claro que não voavam
e que não tenho vícios de alturas.
Mas teria comido os meus próprios ovos
os ovos brancos das minhas irmãs.
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Sonho que sou uma santa voadora
e plano alto muito plena dos mil gozos
mas não há fantasmas no convento.
Não há aragens no convento.
29
Concubinato
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Maria lactans
se quisermos sair
vamos constipar-nos
porque somos esburacadas
e tudo nos engravida
por todos os lados
o ar dos aviões
os engenheiros
o espírito santo
II
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Bolo de aniversário
Dia haverá
e será de festa
em que me farás
um bolo
duas camadas
separadas
com cobertura
doce
celebradas
com recheio
amargo
no topo
as velas o fogo aceso
dado de presente
à maneira antiga
de humanizar
a alegria e o brio
da vida obnubilada na cozinha
as horas ensimesmadas
o fermento
perdido
na serpentina
das festas
que fazemos
para os outros
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Os brincos
sendo bexigosa
és bem mais tinhosa
e tens estado tão mal disposta
pelo menos
fazes várias coisas
ao mesmo tempo
não te zangues
que se eu fosse bom
não me querias
vão-se-te as orelhas vê lá
se não te ficam só os brincos
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Mediaçãoiv
I – Exorcismo
o serviço da mulher
não é estar nua
como a carne da japoneira
engenhando
o triunfo estático
da natureza
o serviço da mulher
é mover-se
com arte
o serviço da mulher
é despir-se
como construção
II – Coitav
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III – Mitologias
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IV– Striptease
Salomé dança de pé
Teodora te adora
Gianna Maria, quem diria?
Que bicho mordeu
Kuchuk Hanem?
Mata Hari morreu aqui
Quantas bananas
comeu Josephine Baker?
Douda Carol Doda
não incomoda
Gypsy Rose Lee,
desculpe, não a vi
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Menarca
renovadas
i
Referência a “Willkommen und Abschied” de Johann Wolfgang von Goethe (1775-1810).
ii
Referência a “E por vezes” de David Mourão-Ferreira, Matura Idade (1973).
iii
Referência a “Soror Mariana – Beja” de Sophia de Mello Breyner, O nome das coisas (1977).
iv
A partir do ensaio ‘Strip-tease’ de Roland Barthes, Mitologias (1975).
v
Referência à cantiga de amor “Ai eu coitad'! e por que vi” de Pero Garcia Burgalês (séc. XIII).
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