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Um

espigueiro
no meio da
eira

Mafalda Sofia Gomes


BULIR

2
Willkommen und Abschiedi

seremos
como bichos
sem religião

és a seta
que me fere
onde a vida
é mais verdade

a tua mão
cheira à minha
mão quando
te vejo do
portão

3
Verdes anos

Os que cheiram a cevada coada na alvorada


aprenderam cedo as artes da boa peneira

Não comeram as cerejas com bicho


que a vida serve às raparigas
Não foram expulsos da missa
como os poetas da cidade

Quando nascem, distinguem imediatamente


as classes, os tipos e as taxonomias
as obrigações, os prazeres e os primos
os ovos das cobras dos ovos da Páscoa

Quando nasci, não apartei ligeira


o amigo do joio, a cautela da natureza
Estendi-me branca na tábua antiga
à moda do primeiro incêndio da estação

Mas se qualquer milho dá pão,


que podia eu contra o meu coração?

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Libação

e ao longe
o rio leça espumando a noite

com as cigarras
entorno o meu cabelo

onde se escondem
as garças a esta hora?

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Recreio II

Os rapazes não sonham


o segredo que brancas
bulimos

por isso,
quando me beijavas
não sabias que me beijavas
a palma
da mão da masturbação

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Unção

Tenho tudo o que preciso


a bacia azul, o sabão áspero,
o corta-unhas e o boião de nívea

tudo o que preciso


se te vou lavar os pés

fervo água na chaleira


que misturo com outra fria
faço tudo
como se trouxesse uma esfera
de duas partes
para o seu último
encontro

sento-te na cadeira da cozinha

vejo bem agora


que és uma árvore morna
em frente ao mar
estendendo
a última volta do novelo

e ainda que sejas


a minha trança cortada
os meus cigarros
fui só eu
que os fumei

subo-te a saia
as tuas pernas tão grossas
violetas são flores
de joelhos gretados

quero beijar-te
as coxas
eu beijo-te
as coxas
que vejo entreabertas

e o cheiro quente
do algodão

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sento-me no chão
na minha palma a planta
amarela do pé

a temperatura é boa
para te amar
como quem cultiva
um capricho molhado

as feridas estão
tenras e fechadas

corto-te então
as unhas
e sinto nos dedos
a untura
que separa
os dentes
da grande roda

o laço desfeito
de um avental
diz-me que
a economia
da vida é injusta
como um
namorado

pressinto que
as coisas tendem
elas correm
para o seu destino

esse é o seu capricho


escorregam diluídas
com as chuvas
os banhos
as cheias

os cavalos

mas o amor é um galope


que lavamos pra morrer

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Blandina

Tão bela! Que bela, que bela


é a toada que ouço agora
na vez em que vou morrer.

A multidão ferve e é hora:


bramas se me dobro já
sobre o escuro, teu corpo
de boi fogo e meu colosso.

Sobre o escuro teu dorso


de boi, breu fulvo, teu contorno,
curvo-me cativa e cumpro-me
pesada e côncava sobre o pó.

São fardo teu trono, meus seios,


enquanto bramimos; afinal
sou bicho e tanto como tu
na vez em que vou morrer.

Ergo-me ampla e abro-me


à fome, meu altar e tua arte
na vez em que vou morrer:
a multidão ferve e é hora.

Estendo-me larga e fendo-me


doida, densa açucena pousada,
planície inteira como se exposto
meu lombo, como se a escutasse

tão bela! que bela que bela


na vez em que vou morrer:
a multidão ferve e é hora.

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Martírio

Quando eu cruzava lenta o cais do lodo escuro


luzidia tal sebastião em cruz qualquer
roxa de genufletir ó quão triste e aflita
senhora babilónica de culpa puta
eu era doente e pobre de me encontrares só
então eu pintava-me muito fazia cachos
comprava vestidos de sorrir e berloques
pra ser a moça bonita da procissão

a crueldade faz-se visível


quando ficamos a ver navios

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E por vezes fingimos que lembramosii

a David Mourão-Ferreira

Quando amamos, se renovamos o voto


noutro amor, expulsa-nos a sorte
do vício de lembrar o que esquecemos.
Os braços que estendemos ao sol
abandonamos e não habitamos
jamais as clareiras em que vimos
primeiras existirem as próprias mãos.
Os troncos das árvores grandes
não nos cobram os gomos que roubamos
com os dentes à fruta, o sumo
escorrido com o vagar dos verões.
Nada escapa ao chicote voraz do triunfo,
quando amamos e se encontramos
o ouro noutro amor, não sobra senão
uma canção que empurra para a frente,
muito pura, de gáudio e esquecimento.

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Génesis, 3

antes
da terra
terá havido
o mar,
pelo menos segundo
o texto bíblico

antes
de tudo
havia uma bola
de fogo
fundido,
foi o que tu disseste

não achei pior

essas pernas que lavas


frescas fundidas
nas águas
do mundo
que começamos
agora

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Iogurte Grego

Os domingos
deixam-me desconsolada
quando não
tenho com quem
fazer amor
Não há homem que
me coce
porque o homem que
me come
dorme
na nossa cama
Importa-me que
o homem que
me come
coma iogurte
grego
Importava-me que
o homem que
me come
dormisse
nesta cama que
me comesse que
eu tivesse
cócegas consolo que
eu tivesse
com quem comer iogurte
grego

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Arte Poética

Dizes que os poemas começam todos da mesma maneira


eu quero eu sinto eu quero

eu quero o pasmo da roupa lavada muito corada


eu sinto-te chegar como a salamandra molhada

se eu não quiser nem sentir


não me interessam os marulhares

as quimeras são entrudos


que eu não vou queimar
na minha casa

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Quando chego
sentada na cama
sinto-nos o cheiro

o meu sexo
costumava
cheirar a mim

eu costumava ser eu
agora não sou
ninguém

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Universais

O José Carlos
não gosta do verso
não sou/ ninguém

será que o José Carlos


que não é um Zé Ninguém
já pensou
no Ulisses no Romeiro
e não aceita que
uma mulher
seja universal
como um homem que
se tenha perdido no mar?

as mulheres
não andam no mar
ficam na praia
são loucas!
e choram

eu chorava agora
como dantes
choro na praia
tantas lágrimas que

quase ceguinha
parece que
não sou/ninguém?

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Recreio I

Os rapazes afugentam os gatos


quando lhes atiram pedras
em frente às raparigas
que humilhadas choram

fingem ser maus


como maus são os homens
e fingem ser porcos
como porcos são os homens

As raparigas gostam de gatos


e as pedras que não lhes atiramos
guardamos para as atirarmos aos rapazes
mas vamos e nunca acertamos

somos más
como más são as mulheres
e somos mesmo más
como só com as mulheres

II

Os rapazes correm
e as nossas mãos armadas
são as mãos que aos rapazes estendemos
que nos dão estalos no recreio
que mostram o pénis
que não sabemos se temos
coragem de ver

fugimos como se disséssemos


que queremos
que nos apanhem
que nos atirem pedras
iguais às que atiramos
que acertam nas costas
quietas das nossas amigas

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III

e eu entretida
com uma ideia de amor
e outra de expiação

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Proporção

a lua parece maior ou menor


em função da cabeça de cada um

(cada um ter a sua cabeça


não é coisa pequena)

a solidão de Mariana
vê-se melhor agora que
cortaram os trigosiii

uma mulher nua às vezes


parece maior
as mamas
mais pequenas

os barcos também
são sempre
do mesmo
tamanho

nós é que não

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BALDIO

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Doutrina

A minha avó ensopa o pão na malga


à hora do almoço que é o pequeno-almoço
num tempo em que eu não tinha nome.
Se almoçamos, jantamos,
quando o jantar era à hora da ceia.

II

A minha avó bebe chá preto


que compra na feira de custóias
porque já não sabe onde comprar chá
nemule nemulo namulo não sei
chá da china da flandres de far away,
quando é longe, tanto faz.

III

A minha avó usa vestidos por baixo da roupa


porque aprendeu que as mulheres se medem às camadas,
afinal, a moral terá tantos casacos quanto cadeiras
para nos sentarmos de pernas fechadas.

IV

Quem dorme nu é porco


Quem se junta sem casar amiga-se
As mulheres divorciadas são desquitadas
Quem não tem religião vive como os bichos
Quem não sabe costurar a bainha de umas calças não é mulher nenhuma
As mulheres andam de saia azul-marinho
As viúvas que vão ao cabeleireiro têm amantes
As catequistas são solteironas ferozes

Esperar que a broa cresça sem crescente


não é coisa de boa gente

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Festa

Os rapazes existem para glória


de suas mães
As raparigas limpam a merda
dos rituais

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Licença

Solta o gado, peço-te,


pelo menos uma noite,

agora que não moro em tua casa


que não menstruo redonda
as fronteiras do teu mundo
que não danço na cozinha
as orlas da minha saia
que as flores não são metáforas
para condenados de nenhuma idade

solta o gado, peço-te,


pelo menos uma noite,

agora que me furtei ao labor de mil ordenhas


que não entorno o leite morno
no parapeito dos meus vinte anos
que não choro o tédio das vilanias
dos vinte e quatro labores do verão
que me escuso da vigília da vigia da vara
pesadas sobre as horas

peço-te que cries o espaço


da comunhão de tudo
quanto exigiu uma paternidade
que sejas a licença
que endereça à criatura
a possibilidade dizível
da identidade

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Reprodução I

Subimos aos montes


como quem vai pra se encontrar com Deus

debaixo do braço
levamos as tábuas
vernaculares
esperamos a lei
escrevemos o governo
umas para as outras
todas para o mundo inteiro

um bolo bate-se
sempre para o mesmo lado
brincadeiras de homens
são beijos de burro
mais vale cair em graça
que ser engraçada
não faças maionese
se estás com a menstruação
não vás à fonte
com a sede toda
nunca te arrependas
de estar calada
a melhor laranja
é do teu marido
faz-te farta como
um espigueiro no meio da eira
o reino do céu
é de quem se senta no fim da ceia
cresce que crescer
é castigo

Descemos dos montes


grávidas como um legislador

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Reprodução II

“A minha mulher não me é nada


a minha mulher não é da minha família
o meu filho é da minha família
ela não me é nada”

“A minha mulher não come pão fresco


quando há pão seco em casa
a minha filha também não
se eu como pão seco em quê que elas são mais do que eu?”

“A minha mulher não usa decotes


porque tenho os decotes das minhas primas
o calendário da cozinha onde não cozinho
porque ela cozinha tudo para mim”

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Cadela

Dalila dança
descalça dorme
descoberta

Dalila ladra
louca lambe
isgoia

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O que diria Hildegard von Bingen?

A propósito da extinção das casas religiosas femininas em Portugal

Vertical como a cruz de nosso senhor,


vago muito como uma virgem aromática
sem sinais ou estigmas de putrefação.

Passeio-me do coro ao dormitório,


vou da torre à sacristia,
na cozinha danço sozinha,
bebo o vinho das galhetas,
limpo os pés aos manistérgios,
temo ter perdido de vista
a sagrada falangeta de nosso senhor.

O meu flanco é o arco da fortuna


em que correm o tempo e a água crua
daquelas que se lavam para morrer,
mas não sei se é hora
de pôr a água a ferver,
se hei-de colher já as mil pétalas
de rosa de santa teresinha:

quem perfumará as águas


do meu cadáver?
de que cor bordo
a minha mortalha?

Tenho a hagiografia
para me inspirar o santo exemplo
e há dias em que tenho tanta coragem
que subo as escadas
e vou mesmo a sério
para experimentar
o martírio:

mas de que serve


o sacrifício
sem objeto?

Tantos livros de horas,


mas não tenho quem
receba as minhas cartas.

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Como estou aborrecida
aliso os cortinados muito nua
e dou muitos saltos na laje fria
porque acredito no mistério da levitação.

É então que
de braços muito abertos
debruço-me nos parapeitos
a ver quantas galinhas me roubaram.

Vejo que as galinhas comem os próprios ovos


e eu como as galinhas porque não tenho flexibilidade
para comer os meus próprios ovos:

os meus ovos quebraram-se


nas ogivas,
os meus ovos
quebraram-se.

Ninguém nunca ficou


para ver os meus ovos
estrelados.

Eu nunca me vi
aliviada por
pôr ovo nenhum.

Confirmo que algumas galinhas são canibais


e bicam a cloaca das suas irmãs
viciadas no sangue e no prolapso.

Mas eu não,
eu não matei as minhas irmãs.
Era claro que não voavam
e que não tenho vícios de alturas.
Mas teria comido os meus próprios ovos
os ovos brancos das minhas irmãs.

Vou dormindo longas sestas


faço-me leve e abro-me muito
para soprarem para dentro de mim
como se fosse o derradeiro
olifante de Rolando,
um apito para chamar os cães.

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Sonho que sou uma santa voadora
e plano alto muito plena dos mil gozos
mas não há fantasmas no convento.
Não há aragens no convento.

Quando acordo vou muito direita


ver se o pavio ainda arde
mas parece nem deus manda mensageiros
manda pôr ovos ou diz quando morrer.

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Concubinato

O abismo da saia afunilada


não nos deixa subir às árvores
e se quisermos visitar o nosso amante
é bom que alcemos a perna com desenvoltura
porque as escadas que dão acesso aos aviões
foram pensados por engenheiros
que pensavam em mulheres de minissaia
e nós não somos concubinas nenhumas

O abismo da stabat mater


não nos deixa comer laranjas à noite
e se quisermos dançar sem espaço para Jesus
é bom que seja com o nosso amante
afinal ele saberá que em princípio
não somos concubinas nenhumas

somos melancólicas não temos minissaias gozos


temos bolores e preguiça não subimos às árvores
estamos sempre potencialmente grávidas
choramos nos aviões nas escadas nos bailes
não somos concubinas nenhumas

temos milhões de abismos


para contar

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Maria lactans

se quisermos sair
vamos constipar-nos
porque somos esburacadas
e tudo nos engravida
por todos os lados

o ar dos aviões
os engenheiros
o espírito santo

geramos com leite


amantes filhos pais
que choramos loucas
porque somos vacas

civilizamos com leite


temos com fartura
não se preocupem

II

afinal não queremos sair


porque estamos sempre
potencialmente grávidas

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Bolo de aniversário

Dia haverá
e será de festa
em que me farás
um bolo

duas camadas
separadas
com cobertura
doce
celebradas
com recheio
amargo

no topo
as velas o fogo aceso
dado de presente
à maneira antiga
de humanizar

a alegria e o brio
da vida obnubilada na cozinha
as horas ensimesmadas
o fermento

perdido
na serpentina
das festas
que fazemos
para os outros

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Os brincos

Toma dois brincos


meu amor minha linda
para te sarar da tua tinha

sendo bexigosa
és bem mais tinhosa
e tens estado tão mal disposta

pelo menos
fazes várias coisas
ao mesmo tempo

não te zangues
que se eu fosse bom
não me querias

que havias de contar


às patrícias
das tuas amigas

porta-te bem senão


és bruxa torta
rosa morta

porta-te bem que


com essa tinha
elas caem minha linda
cuidado meu amor

vão-se-te as orelhas vê lá
se não te ficam só os brincos

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Mediaçãoiv

I – Exorcismo

Uma mulher nua


serve como qualquer mulher serve
mas não é lúdico
este serviço

o serviço da mulher
não é estar nua
como a carne da japoneira
engenhando
o triunfo estático
da natureza

o serviço da mulher
é mover-se
com arte
o serviço da mulher
é despir-se
como construção

Uma mulher nua


não serve nem de musa
ninguém usa
porque não dá tusa

II – Coitav

Sei bem que non posso veer


prazer nunca sem a veer
e se calha de la teer
é mort’ o gozo de a veer
qu’ assim refreio o quereer
de sofrer por la bem veer
e, mais deus, posso viveer.

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III – Mitologias

A tua mãe escondeu-se da festa


e guardada pelo lenço sórdido
alimentou-te como uma gata
escondida para morrer.
Enquanto o teu pai
coligia calendários
que expunha na garagem
curador macaco doméstico
a tua mãe desceu a bainha das saias
e aos teus dez anos
trancou pela primeira vez
a porta da casa-de-banho.
Na internet havia
milhões de buracos
de milhões de mulheres
que se lambuzavam
enquanto te medrou
o pequeno pénis.
Aos quinze anos
deste um estalo à tua namorada
e chamaste-lhe puta
porque as mamas lhe cresceram
tanto que não cabiam nas tuas mãos
não fossem elas caber
noutras mãos
que não as tuas.
Achaste-as nojentas
tão diferentes do escoltado
seio branco da tua mãe
No instagram
as mulheres nuas dispensam já
o pretexto da cronologia
e tu vais andando
curador macaco doméstico
como um rendilhado podre
enredado nas mitologias
e na doença.

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IV– Striptease

Salomé dança de pé
Teodora te adora
Gianna Maria, quem diria?
Que bicho mordeu
Kuchuk Hanem?
Mata Hari morreu aqui
Quantas bananas
comeu Josephine Baker?
Douda Carol Doda
não incomoda
Gypsy Rose Lee,
desculpe, não a vi

Quem quer bailar


com Laura Henderson?

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Menarca

gosto que as mulheres sangrem


manchem
a roupa interior
sujem
a borda dos dedos
com que escrevem a palavra
adiante

gosto que as mulheres sangrem


por extenso
de mãos estendidas
nas banheiras brancas
em que se lavam noite
adentro

gosto que a faca que atravessa


a barriga do rei não conheça
aquilo que escorrega
dentro da mulher feia,
a deusa

gosto que as mulheres vivam


inteiras vertidas
convertidas

renovadas
i
Referência a “Willkommen und Abschied” de Johann Wolfgang von Goethe (1775-1810).
ii
Referência a “E por vezes” de David Mourão-Ferreira, Matura Idade (1973).
iii
Referência a “Soror Mariana – Beja” de Sophia de Mello Breyner, O nome das coisas (1977).
iv
A partir do ensaio ‘Strip-tease’ de Roland Barthes, Mitologias (1975).
v
Referência à cantiga de amor “Ai eu coitad'! e por que vi” de Pero Garcia Burgalês (séc. XIII).

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