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Número 27 // 1 de Maio 2021 Vento e Água // Ritmos da Terra

Quando eu tinha dez anos, foi a experiência ARTIGO


mais espontânea de Hallingskarvet, como
um ser semelhante a Deus Tvergastein
(Arne Naess, 1995)

Photo ©Lars Verket

H
allingskarvet é uma bela cordilheira situada a sul da Noruega, que da loba, a montanha revelou a Leopold a importância da uma relação profunda com o Ambiente, alcançada pelo
se eleva da charneca contígua em penhascos abruptos. O seu nome harmonia, da beleza e da estabilidade ecológica. autoconhecimento. Um trabalho inspirador desenvolvido numa
retrata a geomorfologia mais alta do local, sendo skarv o equivalente cabana rodeada de Natureza selvagem, tal como Henry David
a rocha ou montanha nua. Toda a área é um Parque Natural, criado Desde que Naess terminou Thoreau o fez durante dois anos e que originou ‘Walden ou

a construção da cabana,
em 2006, cuja vegetação, ora rara, ora composta, conforme as condições climáticas a Vida nos Bosques’. Podemos constatar um entrelaçamento
e geológicas, promove a ocorrência de certa fauna selvagem. A rena, o alce, o veado, entre o Thoreau e Naess, sendo que o movimento
a lebre, a raposa de montanha e a raposa vermelha são algumas das espécies que em 1938, passou lá cerca de transcendentalista norte-americano é uma das muitas fontes
da ecologia profunda.
deslumbram quem visita Hallingskarvet. Nos penhascos ainda é possível observar a
águia dourada e o falcão peregrino, e as zonas húmidas são habitat para várias espécies quatorze anos da sua vida, O nome Tvergastein está relacionado com a alegada existência
de pássaros. Na parte sul do Parque, junto a um precipício, encontra-se uma cabana de
montanha, um pequeno abrigo chamado Tvergastein.
onde desenvolveu o conceito local de enormes e belos cristais de quartzo, que tiveram há
mais de cem anos grande procura por parte dos habitantes
A sua localização, 1505 metros acima das águas dos fiordes, 600 a norte do equador de ecologia profunda, que da Noruega Ocidental. Tverga quer dizer passagem, e stein,
e 500 metros acima da linha das árvores, revela um clima puramente ártico. Um
local isolado do mundo humano, onde a vacuidade emerge no silêncio repleto de
viria a reinventar o olhar do pedra. Tvergastein está assim associado à passagem (travessia)
da pedra, ou pedra de passagem, indicativo do percurso para
ser humano sobre si mesmo e
por
sonoridades naturais. Para chegar à vila mais próxima, são necessárias três horas alcançar os cristais. Normalmente, estes encontram-se em
Jorge Moreira locais de difícil acesso, como no interior das rochas ou das
sobre o Ambiente envolvente.
de viagem, mas foi neste local que o filósofo Arne Naess sentiu um chamamento e
construiu uma cabana de madeira com as suas próprias mãos. Tal como aconteceu montanhas, representando, portanto, a dimensão interna,
Ambientalista e Investigador
a John Muir, a montanha chamou-o, e Naess teve de ir para junto dela. As suas palavras oculta, viva na sua beleza. Metaforicamente, o cristal é a
Sobre a nossa capacidade de destruir as barreiras do eu,
» shakti@sapo.pt são bem elucidativas: Estou a obedecer, a obedecer ao desejo de Hallingskarvet de nossa natureza interna, oculta pela pedra bruta que é a
deixando emergir a nossa verdadeira natureza, que se revele
» facebook.com/ecologiaespiritual.pt vir (Naess, 1995). Parece que as experiências místicas junto à montanha que o filósofo nossa natureza externa. Tal como o escultor, que desvela a
também nos outros seres e na Natureza como um todo.
norueguês descreve desde pequeno eram equivalentes à epifania que Aldo Leopold obra de arte no interior da pedra, também nós precisamos de
A defesa da Natureza é assim e intuitivamente entendida
teve junto à loba moribunda. Neste caso, através do fogo verde que se soltava do olhar nos libertar dos condicionalismos que nos impede de sermos
como a defesa de nós próprios e, nesse sentido, cria-se

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Número 27 // 1 de Maio 2021 Vento e Água // Ritmos da Terra

photo ©Petter Mejlænder

Essa vivência e cosmovisão


quem na realidade somos – elementos cristalinos da Natureza, formas que se ligam em rede. Por outro, diz-nos que a vida para a Ecologia Profunda. Foi nessa cabana de montanha
que formam com os outros seres uma rede viva expressa numa é o princípio básico e se encontra ‘implícita’, até mesmo que ele produziu muitos dos seus trabalhos e concebeu a
unidade orgânica. A expansão da consciência, faz-se integrando
essa rede viva na nossa verdadeira identidade. Ou seja, sermos
não dualista foi precursora de na matéria onde ‘explicitamente’ não a detetamos, como
é o caso das rochas. Complementarmente, quem vive em
perspetiva de que cada um deve desenvolver a sua própria
filosofia, a sua própria ecosofia. A ecosofia T de Naess, ‘T’
não só uma singularidade, mas também a montanha na muitas das ideias que viriam comunhão com a Natureza é capaz de sentir a vibração dessa que alguns autores relacionam com Tvergastein, mas

a ser reunidas numa ética


sua totalidade, conjuntamente com as outras singularidades vida imanente e o modo como esta a influencia com a sua que Naess não confirma, assenta num trabalho interior
específicas de cada espécie, espécimenes ou conjuntos naturais, presença. Diz-nos Naess: Eu olho para Tvergastein, a cabana, de reflexão profunda e constante sobre o sentido da vida
tais como plantas, fungos, animais, bactérias, charcos, riachos,
bosques habitats, etc. Tal como diz Naess: Mas eu gosto muito
ecocêntrica, fundada não só como faço neste momento, são os [elementos] envolventes que
participam no que vejo. Eu vejo isso num ambiente mineral,
que o leva à Autorrealização. Portanto, a ecosofia implica
autoconhecimento, compreensão da teia da vida, expansão
desta palavra, Tvergastein. É do tipo de resistência e rigor, e às pela razão, mas também pela que se destaca como uma espécie de ser vivo. O contraste da consciência e experiência direta com a Natureza, longe da

intuição e pela emoção. Por


vezes pensei que me chamaria de ‘Arne Tvergastein’. Porque eu entre os minerais, todas as pedras, toda a vastidão, a dimensão dualidade sujeito e objeto e onde o ser humano é entendido
sinto que pertenço a esta área aqui, eu pertenço-lhe. Não me externa: isso influencia o que vês espontaneamente quando como uma extensão do mundo natural. A Autorrealização é a
pertence, mas eu pertenço-lhe (Naess, 1995). conseguinte, Hallingskarvet olhas para a cabana. Então, vês, quando se está numa natureza
tão vasta assim, a própria vastidão entra em ti ... como parte
realização do eu como parte de um todo formado por nós e pela
Natureza. A maturidade do indivíduo dá-se quando o círculo
Paralelamente, a montanha encerra ainda mais duas dimensões
que merecem uma especial atenção. A primeira encontra-
está intimamente ligado aos da tua experiência espontânea (…) o que experimentas de identificação é o mais alargado possível, conduzindo-o

Himalaias pela deep ecology.


espontaneamente depende do teu tipo especial de existência naturalmente à espiritualidade. Isto é, à consciência
se em muitas alegorias de escolas espiritualistas e tratados
num ambiente natural ótimo. Então, tudo se junta lá (Naess, ecológica. Fritjof Capra afirma que “a consciência ecológica
religiosos, que relacionam a escalada da montanha à evolução
A outra dimensão que a montanha e, especialmente, 1995). Neste trecho podemos ainda retirar a influência que o profunda é em última análise uma consciência espiritual”
da alma espiritual. Todos precisamos de subir a montanha
Tvergastein transmite é que mesmo onde impera a rocha nua, ambiente natural tem no sujeito. Por esse motivo, a Ecologia (Capra, 1996, p. 45). Esta perspetiva retrata uma ecologia
como percurso evolutivo - a capacidade de ver a paisagem na
a vida encontra-se imanente. A Teoria da Ordem Implícita de Profunda promove o contato com a Natureza. Contudo, transpessoal que é simultaneamente uma ética de respeito
sua totalidade, de forma holística. Uns fazem o percurso pelos
David Bohm diz: (…) a vida está dobrada na totalidade e que, mesmo sabendo que ecologicamente os abiota têm um papel integral pela teia da vida e uma sabedoria profunda fundada
caminhos da normalidade, outros são aliciados pela facilidade e
mesmo quando não se manifesta, de alguma maneira se acha fundamental no ecossistema, formando com a biota uma na alegria de olhar do cimo da montanha e ver-se a si próprio
acabam por cair em precipícios.
“implícita” naquilo que geralmente chamamos de uma situação unidade viva, muitas cosmovisões e movimentos espiritualistas como a montanha que anima toda a vida subjacente. Um logos
Outros dedicam-se ainda a abrir novos caminhos, seguros e
na qual não há vida. (…) A matéria inanimada deve então ser integram o Reino Mineral como algo vivo, capaz de comunicar e ecológico.
mais rápidos e inspirando outros a segui-los. É que no alto
vista como uma subtotalidade relativamente autónoma, na qual, evoluir, servido também de habitáculo a elementais - energias
da Montanha, há algo misteriosamente inefável que
pelo menos até onde o sabemos agora, a vida não se manifesta vivas que participam na construção do mundo natural –
todos queremos aceder. Talvez a Alegria de sermos a própria
de maneira significativa. Isto é, a matéria inanimada é uma retratadas no folclore de muitos povos e mitologias, assim REFERÊNCIAS:
Montanha com toda a sua dimensão. Talvez os montanhistas
abstração secundária, derivada e particular do holomovimento como na cosmologia de muitos dos ecologistas profundos, que Bohm, D. (1980). Wholeness and the Implicate Order. London and New
consigam explicar essa emoção. Talvez Naess, como alpinista
(…) que é “vida implícita” é o fundamento tanto da “vida integram esses elementais no cuidado e respeito que têm com York: Routledge Classics.
que também o foi, tivesse ousado passar para a filosofia algo
explícita” como da “matéria inanimada”, e é esse fundamento a Natureza. Capra, F. (1996). A teia da vida. São Paulo: Editora Cultrix.
que é da natureza da espiritualidade. É conhecida a influência
da sabedoria ancestral e do Budismo na relação que os sherpas que é primário, existente por si mesmo e universal. Assim, não A cabana de Arne Naees traduz a profunda comunhão que Naess, A. (1995). Stichting ReRun Producties. Interview with Norwegian
nepaleses têm com os Himalaias e o questionamento profundo fragmentamos a vida e a matéria inanimada, nem tentamos o filósofo tinha com o mundo natural. A sala onde recebia eco-philosopher Arne Naess. Tvergastein. Hardangervidda, Norway,
que motivou em Naess, quando este esteve em contato com reduzir completamente aquela a um mero produto desta (Bohm visitas encontrava-se decorada com fotos de galáxias distantes, June 1995 Interviewer: Jan van Boeckel.
esse interessante mundo natural e cultural. 1980, p. 247). Nesta passagem, Bohm revela duas características que traduzia o gosto e o interesse que Naess tinha pela
que se ligam à Ecologia Profunda. Por um lado, dá-nos a Física e pela cosmologia - outras fontes que contribuíram
ideia de que a vida é Una, formada pela complexidade de

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