Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
O trabalho escravo, na contemporaneidade, não se prende mais à restrição de liberdade de locomoção,
pois alcança as violações de direitos que agridem a dignidade humana do trabalhador. Trata-se de
uma realidade observada nas atividades econômicas. É preciso, então, compreender as nuances e a
configuração do fenômeno em cada contexto, e avaliar como os setores privado e público contribuem
para a continuidade ou a cessação da prática. O presente estudo objetiva identificar as peculiaridades
da dinâmica de exploração do trabalho escravo no garimpo, o que se faz por meio de indicadores da
escravidão contemporânea no Brasil, a partir dos resultados de fiscalizações, perfil das vítimas e
infrações mais recorrentes. A pesquisa utiliza o método misto de análise, do tipo convergente, que
abrange as visões quantitativa (estudos estatísticos sobre o perfil das fiscalizações, das vítimas e das
infrações) e a qualitativa (revisão de literatura e mapeamento do contexto narrado nos relatórios de
fiscalização, por meio da teoria fundamentada nos dados), e as informações são coletadas, analisadas
e interpretadas concomitantemente, de modo comparativo e complementar. Sistematiza-se as
informações constantes nos relatórios das fiscalizações realizadas de 1995 a 2019, pelas equipes da
Inspeção do Trabalho, em que houve a constatação de 161 pessoas na condição de escravidão
contemporânea no garimpo. A pesquisa possui abordagem descritiva e retrospectiva e contempla,
primeiramente, o levantamento bibliográfico, fase em que há o estudo da atividade garimpeira à luz
do Direito Minerário, Ambiental e Trabalhista. Em seguida, promove-se a análise documental de
relatórios e a sistematização dos resultados em planilhas, para análise estatística descritiva. Os dados
coletados são interpretados e discutidos, com o fim de identificar o perfil do trabalho escravo
contemporâneo no garimpo. O estudo promove o enfoque na configuração da escravidão moderna
em garimpo no município paraense de Jacareacanga, localidade em que houve a maior quantidade de
trabalhadores resgatados do trabalho escravo e uma situação de reincidência que apresenta estratégias
de mascaramento, com a pretensão de conferir ares de legalidade a um contexto que, na prática, revela
contornos de violação de normas minerárias, trabalhistas e ambientais.
Palavras-chave: Direito do Trabalho; Direito Minerário; Direito Ambiental; Trabalho escravo
contemporâneo; Garimpo.
2
1 INTRODUÇÃO
1 Em nosso país, a abolição ocorreu em fases. De início, houve a política de aprisionamento de navios negreiros (1845),
que resultou na Lei n. 581 de 1850 (Lei Eusébio de Queirós), proibitiva da importação de escravos, e na Lei n. 2.040 de
1871 (Lei do Ventre Livre), que concedeu liberdade para os filhos de escravos nascidos a partir de então, permanecendo
sob a tutela dos senhores até a maioridade. Depois de investidas de movimentos abolicionistas, houve a edição da Lei
Imperial n. 3.353 de 1888 (Lei Áurea), que instituiu a vedação formal da escravidão (TREVISAM, 2015).
3
Utiliza-se o método misto de análise, do tipo convergente (CRESWELL, 2021; IGREJA,
2017). Associa-se a visão quantitativa (estudos estatísticos sobre o perfil das fiscalizações, das vítimas
e das infrações) e a qualitativa (revisão de literatura e mapeamento do contexto narrado nos relatórios
de fiscalização, por meio da teoria fundamentada nos dados). As informações são coletadas,
analisadas e interpretadas concomitantemente, de modo comparativo e complementar.
Nesta pesquisa empírica, emprega-se, ainda, a teoria fundamentada nos dados, de Glaser e
Strauss, que propõe a “explicação da realidade social mediante a construção de teorias indutivas,
baseadas na análise sistemática dos dados” (GIL, 2021, p. 65). Desse modo, sistematiza-se as
informações constantes nos relatórios das 31 fiscalizações realizadas de 2008 a 2020, pelas equipes
da Inspeção do Trabalho do Brasil, em que houve a constatação de 333 pessoas na condição de
escravidão contemporânea na atividade garimpeira (OBSERVATÓRIO DA MINERAÇÃO, 2021).
Nesse ponto, registra-se que, durante a pesquisa, não se chegou ao mesmo quantitativo mencionado
na reportagem, pois ainda não se teve acesso à integralidade dos relatórios das ações de 2020. Por
essa razão, a análise restringiu-se ao período de 1995 a 2019, em que ocorreram 161 resgates.
Esta seção presta-se à exposição das características do trabalho no garimpo. Com efeito, a
identificação, extração, beneficiamento e comercialização do minério demanda o trabalho humano.
Nas fases iniciais da cadeia de valor, encontra-se o labor modo autônomo e individual; coletivo ou
cooperada; ou, ainda, nos moldes de uma relação de natureza empregatícia. Portanto, mostra-se
relevante o interesse pela manutenção e respeito às diretrizes do trabalho decente e de proteção ao
meio ambiente laboral. Antes, porém, é necessária a compreensão de conceitos atinentes ao Direito
Minerário e da atividade garimpeira, propriamente dita.
Com relação ao domínio do subsolo, Barbosa (2003, p. 74-76) lista como principais sistemas
legais adotados para a regência da exploração mineral ao longo da história os seguintes: fundiário
(propriedade do subsolo como decorrência da titularidade do solo); regalista (transferência do bem
para o particular, condicionada ao pagamento de uma taxa denominada regalia); dominial (subsolo
considerado como res publica, pertencente à nação); e industrial (associado ao surgimento do
liberalismo, considera as jazidas minerais como res nullius, garantindo-se o direito de exploração a
quem primeiro descobrir ou revelar sua existência). Na atualidade, o autor destaca que a busca do
lucro é própria da atividade econômica, razão pela qual “a política do Estado moderno é no sentido
de deixar tal atividade à iniciativa privada” (BARBOSA, 2003, p. 82).
Ainda conforme Barbosa (2003, p. 86), “a concessão minerária confere um direito exclusivo
e excludente à exploração integral de uma jazida, de acordo com as normas legais estabelecidas,
transmitindo ao respectivo titular um complexo de direitos e obrigações”. No entanto, não se trata de
transferência da propriedade, mas de um direito real de exploração. Assim, o Estado mantém a
titularidade do domínio sobre os recursos minerais, ainda que outorgue ao concessionário o direito de
5
explorá-los. De qualquer modo, os trabalhos de pesquisa e de lavra precisam ser desenvolvidos em
conformidade com as condições previstas em lei.
Com efeito, o texto constitucional prevê que são bens da União os recursos minerais, inclusive
os do subsolo (artigo 20, inciso IX). Além disso, assegura-se, nos termos da lei, à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios a participação no resultado da exploração de petróleo ou gás
natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no
respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou
compensação financeira por essa exploração (artigo 20, § 1º). Na sequência, o artigo 21, inciso XXV,
estabelece a competência da União para estabelecer as áreas e as condições para o exercício da
atividade de garimpagem, em forma associativa.
Compete privativamente à União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e
metalurgia (artigo 22, inciso XII). Ademais, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e
exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (artigo 23, inciso XI). Por fim, é da
competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar, em terras indígenas, a exploração e o
aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais (artigo 49, inciso XVI).
No mesmo sentido, tem-se que as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os
potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração
ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da
lavra (artigo 176). Além disso, a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento de tais
potenciais somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse
nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e
administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas
atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas (artigo 176, § 1º). Assegura-
se, porém, a participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, a autorização de pesquisa
será por prazo determinado, e as autorizações e concessões não poderão ser cedidas ou transferidas,
total ou parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente (artigo 176, §§ 2º e 3º). Enfim, não
dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de
capacidade reduzida (artigo 176, § 4º).
Com efeito, o artigo 174 da Constituição de 1988 prevê que o Estado, como agente normativo
e regulador da atividade econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Desse
modo, a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional
6
equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento;
apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo; o Estado favorecerá a
organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente
e a promoção econômico-social dos garimpeiros; e tais cooperativas terão prioridade na autorização
ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde
estejam atuando, e naquelas fixadas em conformidade com o artigo 21, inciso XXV, na forma da lei.
Ainda no campo constitucional, é importante considerar que aquele que explorar recursos
minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida
pelo órgão público competente, na forma da lei (artigo 225, § 2º). Nesse sentido, com relação à
garimpagem de ouro, “por ser a mais comum e extensa, traz também um problema ainda não
resolvido, de contaminação por mercúrio, que preocupa órgãos internacionais de saúde e proteção ao
meio ambiente" (CARVALHO, 2003, p. 129).
O ADCT ainda prevê que, na data da promulgação da lei que disciplinar a pesquisa e a lavra
de recursos e jazidas minerais, ou no prazo de um ano, a contar da promulgação da Constituição,
tornar-se-ão sem efeito as autorizações, concessões e demais títulos atributivos de direitos minerários,
caso os trabalhos de pesquisa ou de lavra não tenham sido comprovadamente iniciados nos prazos
legais ou estejam inativos (artigo 43) e que as empresas brasileiras titulares de autorização de
pesquisa, concessão de lavra de recursos minerais e de aproveitamento dos potenciais de energia
hidráulica em vigor teriam quatro anos, a partir da promulgação da Constituição, para cumprir os
requisitos do artigo 176, § 1º (artigo 44).
2
Lei n. 7.805/1989. Art. 9º São deveres do permissionário de lavra garimpeira: I - iniciar os trabalhos de extração no
prazo de 90 (noventa) dias, contado da data da publicação do título no Diário Oficial da União, salvo motivo justificado;
II - extrair somente as substâncias minerais indicadas no título; III - comunicar imediatamente ao Departamento Nacional
de Produção Mineral - DNPM a ocorrência de qualquer outra substância mineral não incluída no título, sobre a qual, nos
casos de substâncias e jazimentos garimpáveis, o titular terá direito a aditamento ao título permissionado; IV - executar
os trabalhos de mineração com observância das normas técnicas e regulamentares, baixadas pelo Departamento Nacional
de Produção Mineral - DNPM e pelo órgão ambiental competente; V - evitar o extravio das águas servidas, drenar e tratar
as que possam ocasionar danos a terceiros; VI - diligenciar no sentido de compatibilizar os trabalhos de lavra com a
proteção do meio ambiente; VII - adotar as providências exigidas pelo Poder Público; VIII - não suspender os trabalhos
de extração por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo motivo justificado; IX - apresentar ao Departamento
Nacional de Produção Mineral - DNPM, até o dia 15 de março de cada ano, informações quantitativas da produção e
comercialização, relativas ao ano anterior; e X - responder pelos danos causados a terceiros, resultantes, direta ou
indiretamente, dos trabalhos de lavra.
3
O artigo 70 do Código de Mineração considera a garimpagem como: “O trabalho individual de quem utiliza instrumentos
rudimentares, aparelhos manuais ou máquinas simples e portáteis, na extração de pedras preciosas, semipreciosas e
minerais metálicos ou não metálicos, valiosos, em depósitos de eluvião ou aluvião, nos álveos de cursos d'água ou nas
margens reservadas, bem como nos depósitos secundários ou chapadas (grupiaras), vertentes e altos de morros, depósitos
esses genericamente denominados garimpos”.
8
wolframita, nas formas aluvionar, eluvionar e coluvial; sheelita, demais gemas, rutilo, quartzo, berilo,
muscovita, espodumênio, lepidolita, feldspato, mica e outros, em tipos de ocorrência que vierem a
ser indicados, a critério do DNPM (artigo 10, §§ 1º e 2º).
Enfim, “as cooperativas para o exercício da lavra garimpeira devem estar constituídas e se
regularem pelas disposições que regem a matéria, em legislação própria, especificamente a Lei n.
5.674, de 16 de dezembro de 1971” (CARVALHO, 2003, p. 124). Com efeito, a mencionada lei
dispõe que celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a
contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum,
sem objetivo de lucro (artigo 3º). Prevê, ainda, que são sociedades de pessoas, com forma e natureza
jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos
associados, distinguindo-se das demais sociedades por determinadas características (artigo 4º).
4
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter
contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na
forma da lei, a: [...] § 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas
as seguintes condições: [...] II - 60 (sessenta) anos de idade, se homem, e 55 (cinquenta e cinco) anos de idade, se mulher,
para os trabalhadores rurais e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o
produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal.
10
Com relação aos deveres do garimpeiro, da cooperativa de garimpeiros e da pessoa que tenha
celebrado contrato de parceria com garimpeiros, em qualquer modalidade de trabalho, tem-se o dever
de recuperar as áreas degradadas por suas atividades; atender ao disposto no Código de Mineração; e
cumprir a legislação vigente em relação à segurança e à saúde no trabalho (artigo 12). Além disso, o
Estatuto veda expressamente o trabalho da pessoa com idade inferior a dezoito anos (artigo 13).
Por fim, o garimpeiro que tenha contrato de parceria com o titular de direito minerário deverá
comprovar a regularidade de sua atividade na área titulada mediante apresentação de cópias
autenticadas do contrato e do respectivo título minerário, sem a necessidade de averbação deste
instrumento no DNPM (artigo 16). Todavia, fica o titular de direito minerário obrigado a enviar,
anualmente, ao DNPM a relação dos garimpeiros que atuam em sua área, sob a modalidade de
contrato de parceria, com as respectivas cópias desses contratos (artigo 17), obrigação cujo
descumprimento também pode resultar em multa, simples ou dobrada, e, em caso de falta de
pagamento ou de nova ocorrência, na caducidade do título.
Entende-se relevante o destaque à necessária qualidade do meio ambiente laboral, que possui
base constitucional como um aspecto do meio ambiente (artigo 200, inciso VIII), dever especialmente
violado nas relações trabalhistas que se apresentam como análogas à escravidão. Quanto ao meio
ambiente do trabalho, utiliza-se o conceito de Maranhão (2016, p. 112), que o entende como
“resultante da interação sistêmica de fatores naturais, técnicos e psicológicos ligados às condições de
trabalho, à organização do trabalho e às relações interpessoais que condiciona a segurança e a saúde
física e mental do ser humano exposto a qualquer contexto jurídico-laborativo”.
Fagundes (2020, p. 88) afirma que o início da política pública de combate ao trabalho escravo
no território nacional ocorreu com a instituição do Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM,
12
em 1995. Desde então, as equipes do GEFM atuam em todo o país, sob a coordenação da Divisão de
Erradicação do Trabalho Escravo – DETRAE. O autor informa que a Inspeção do Trabalho constituiu
parcerias institucionais ao longo do tempo. Enfim, menciona que participam das operações os
servidores da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Defensoria Pública da União, Ministério
Público do Trabalho e Ministério Público Federal.
Além das citadas modalidades, a concepção normativa abrange a submissão a trabalho forçado
e a restrição de locomoção ou retenção no local de trabalho. A limitação no deslocamento pode
decorrer da existência de dívida, do cerceamento de transporte, da manutenção de vigilância ostensiva
ou do apoderamento de documentos ou objetos pessoais. São condutas que podem ocorrer de forma
isolada ou conjunta, de modo que a materialização do delito, em determinadas hipóteses, dispensa a
ofensa à liberdade de locomoção (MESQUITA, 2016), pois se volta à tutela da dignidade humana.
De acordo com a OIT (2016, p. 36-38), a exposição dos dados é tão importante quanto a
qualidade da informação em si. Isso porque influencia a interpretação das estatísticas, razão pela qual
a tabulação deve ser projetada para apresentar todas as observações e conclusões interessantes à
análise. As estatísticas não constituem um fim em si mesmas. São ferramentas para a exposição de
problemas específicos. Assim, interessa calcular ações, taxas e proporções, pois os padrões aparecem
de forma mais evidente na observação de números relativos do que em valores absolutos. A definição
13
do tipo de informação requerida depende da situação nacional, conforme as políticas ou aspectos de
condições laborais a serem avaliados. Assim, permite-se a avaliação da infraestrutura, funcionamento
e eficiência do sistema, e a identificação das ações necessárias para enfrentar as carências.
Esses achados foram considerados na seleção de uma ação fiscal recentemente promovida no
âmbito daquele município, com vistas à exibição dos contornos de uma situação de trabalho escravo
contemporâneo no desempenho da atividade garimpeira. A descrição analítica correspondente será
realizada na próxima seção deste estudo.
O combate ao trabalho análogo à escravidão em garimpos tem sido um dos maiores desafios
atuais do GEFM. Isso decorre da notória expansão desta atividade econômica nos últimos anos e da
complexidade envolvida em todas as etapas das ações fiscais. Desde o planejamento, até a
responsabilização daqueles que integram a cadeia econômica da extração mineral, trata-se de um
processo que envolve muitos fatores de dificuldade.
Sendo assim, tem-se buscado continuamente aprimorar a execução das ações fiscais em
garimpos, visando à erradicação da condição análoga à escravidão. Um dos principais meios consiste
na aplicação de recursos tecnológicos disponíveis, com destaque para o uso de imagens de satélites,
consideradas fonte de informação de inteligência essencial para a definição de estratégias de atuação.
O retorno aos garimpos do Coatá foi motivado pela manutenção das condutas por parte dos
exploradores anteriormente flagrados, o que foi apurado pela inteligência fiscal por meios diversos.
Dentre as estratégias de averiguação, destaca-se o emprego de imagens de satélite, que apontaram a
abertura de novas frentes de garimpagem, próximas àquelas já fiscalizadas. O monitoramento e a
realização de novas fiscalizações dos empregadores escravagistas são estratégias da política pública
de combate ao trabalho escravo.
A relação de trabalho era completamente informal. Não havia regularização dos vínculos
empregatícios, embora presentes os requisitos previstos em lei que caracterizam a relação dessa
natureza. Uma cooperativa foi formalmente criada entre as duas ações fiscais, constando na
presidência a empregadora flagrada em ambas as fiscalizações. Todavia, nenhum dos trabalhadores
tinha qualquer vínculo com a cooperativa. Sequer a conheciam, o que denota a inexistência dessa
organização no plano dos fatos. Ademais, restaram prejudicadas uma série de exigências legais para
a regular formação e funcionamento do trabalho cooperativo.
Com relação ao perfil das infrações identificadas, é importante explorar com mais detalhes as
irregularidades apontadas nos relatórios de fiscalização das abordagens realizadas em 2018 e em
2020. A comparação realizada entre os dois procedimentos fiscais apontados servirá de parâmetro
19
para uma análise mais ampla e detalhada desses e dos demais relatórios de fiscalização relativos ao
trabalho escravo no garimpo. Portanto, analisa-se inicialmente as infrações que foram constatadas
tanto na primeira (2018) quanto na segunda (2020) fiscalização realizada no Garimpo Coatá, no
município paraense de Jacareacanga, PA (Quadro 1).
Nota-se que as situações apontadas pela fiscalização do trabalho possuem dezenove infrações
em comum, com destaque para a exploração de trabalho sob condição análoga à de escravo. Desse
conjunto, também se observa que estiveram presentes nas duas abordagens o descumprimento de
regras concernentes à situação de informalidade, o que abrange a falta de anotação de CTPS, no prazo
legal; a admissão ou manutenção de empregado sem o respectivo registro; e a ausência de depósito
de FGTS mensal. Com relação à remuneração, tem-se o pagamento sem a devida formalização do
recibo; e a falta de pagamento da gratificação natalina (13º salário) no prazo devido.
Quadro 1 - Infrações identificadas nas fiscalizações realizadas em 2018 e 2020 no Garimpo Coatá, Jacareacanga, PA.
N Ementa
1 Deixar de anotar a CTPS do empregado, no prazo de 5 (cinco) dias úteis, contado do início da prestação laboral.
2 Deixar de depositar mensalmente o percentual referente ao FGTS.
3 Efetuar o pagamento do salário do empregado, sem a devida formalização do recibo.
Deixar de efetuar o pagamento do 13º (décimo terceiro) salário até o dia 20 (vinte) de dezembro de cada ano, no
4
valor legal.
Manter empregado trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção do trabalho, quer seja
5
submetido a regime de trabalho forçado, quer seja reduzido à condição análoga à de escravo.
Admitir ou manter empregado sem o respectivo registro em livro, ficha ou sistema eletrônico competente, o
6
empregador não enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porte.
7 Deixar de submeter o trabalhador a exame médico admissional.
8 Deixar de submeter o trabalhador a exame médico periódico.
Deixar de equipar o estabelecimento com material necessário à prestação de primeiros socorros, considerando as
9 características da atividade desenvolvida ou guardar o material necessário à prestação de primeiros socorros em
local inadequado ou manter o material sob cuidado de pessoa não treinada para esse fim.
Deixar de fornecer aos empregados, gratuitamente, equipamento de proteção individual adequado ao risco, em
10
perfeito estado de conservação e funcionamento.
11 Deixar de estabilizar ou de remover material com risco de queda das cristas da bancada superior.
12 Deixar de fornecer água potável, em condições de higiene, nos locais e postos de trabalho.
Executar obra de mineração sem levantamento topográfico ou sem representação em mapas e plantas ou deixar de
13 providenciar a revisão e atualização das plantas de obras de mineração ou permitir a revisão das plantas de obras
de mineração por profissional que não seja habilitado.
Manter mina sem a supervisão técnica de profissional legalmente habilitado ou manter atividade prevista na NR-
14
22 sem a supervisão técnica de profissional legalmente habilitado.
15 Deixar de elaborar e/ou de implementar o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional.
16 Deixar de elaborar e/ou de implementar o Programa de Gerenciamento de Riscos.
Deixar de identificar as entradas das áreas de mineração com atividades operacionais com o nome da empresa ou
17 do Permissionário de Lavra Garimpeira ou deixar de sinalizar os acessos e as estradas das áreas de mineração com
atividades operacionais.
18 Deixar de monitorar e controlar as bancadas e taludes das minas a céu aberto.
19 Deixar de elaborar e/ou implementar e/ou manter atualizado um plano de emergência.
Fonte: Elaboração própria, de acordo com informações do coordenador da equipe do GEFM.
Portanto, não obstante o transcurso de um biênio entre as duas fiscalizações, o que se percebe
é a manutenção de um padrão de indignidade e de agressão às normas ambientais laborais, somado
ao descumprimento também de obrigações trabalhistas, propriamente ditas. Esse núcleo de dezenove
irregularidades denuncia a insistência e permanência de um quadro de violação de direitos, mesmo
depois de o empregador ter sido devidamente responsabilizado administrativamente anteriormente.
Quadro 2 - Infrações identificadas apenas na fiscalização realizada em 2020 no Garimpo Coatá, Jacareacanga, PA.
N Ementa
1 Deixar de conceder ao empregado um descanso semanal de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas.
Deixar de comunicar ao Ministério da Economia, até o dia 7 (sete) do mês subseqUente ou no prazo definido em
2
regulamento, a admissão e desligamento de empregados.
Deixar de promover o pagamento dos valores constantes do instrumento de rescisão ou recibo de quitação em até
3
10 (dez) dias contados a partir do término do contrato de trabalho.
Manter estabelecimento desprovido de vestiário quando a atividade exigir a utilização de vestimentas de trabalho,
4 ou quando for imposto o uso de uniforme cuja troca deva ser feita no próprio local de trabalho, ou quando a atividade
exigir que o estabelecimento disponibilize chuveiro.
Deixar de oferecer aos trabalhadores local em condições de conforto e higiene para tomada das refeições por ocasião
5
dos intervalos concedidos durante a jornada de trabalho.
6 Disponibilizar cozinha em desacordo com as características estabelecidas na NR 24.
Disponibilizar dormitório do alojamento em desacordo com as características estipuladas no item 24.7.2 da NR 24,
e/ou disponibilizar instalação sanitária que não seja parte integrante do dormitório localizada a uma distância
7
superior a 50 m (cinquenta metros) dos mesmos, e/ou que não seja interligada por passagem com piso lavável e
cobertura.
Disponibilizar quarto de dormitório em desacordo com as características estabelecidas no item 24.7.3 e subitens da
8
NR 24.
9 Manter alojamento cujo piso não seja impermeável e lavável.
10 Deixar de higienizar diariamente os sanitários dos alojamentos.
11 Deixar de fornecer gratuitamente ao trabalhador vestimentas de trabalho.
12 Deixar de proteger os locais de armazenamento de água, os poços e as fontes de água potável contra a contaminação.
Deixar de manter as vias de circulação de pessoas sinalizadas e/ou desimpedidas e/ou protegidas contra queda de
13
material e/ou em boas condições de segurança e trânsito.
Deixar de manter instalações sanitárias tratadas e higienizadas ou manter instalações sanitárias distantes dos locais
14
e frentes de trabalho.
15 Deixar de sinalizar as vias de circulação e acesso da mina.
Deixar de ministrar treinamento introdutório geral para os trabalhadores ou ministrar treinamento introdutório geral
16
com carga horária e/ou conteúdo em desacordo com o previsto na NR-22 ou fora do horário de trabalho.
Deixar de promover capacitação aos trabalhadores envolvidos na operação, manutenção, inspeção e demais
17 intervenções em máquinas e equipamentos,compatível com suas funções, que aborde os riscos a que estão expostos
e as medidas de proteção existentes e necessárias, nos termos da NR 12, para a prevenção de acidentes e doenças.
Fonte: Elaboração própria, de acordo com informações do coordenador da equipe do GEFM.
Com efeito, a aplicação de métodos mistos na análise de tais relatórios de fiscalização tem o
condão de viabilizar a identificação do perfil do trabalho escravo contemporâneo na atividade
garimpeira. Desse modo, na continuidade da pesquisa será avaliada uma quantidade de variáveis mais
ampla, com vistas ao enriquecimento da análise documental.
24
Sendo assim, a classificação que será objeto de registro, exposição e discussão contemplará a
identificação dos órgãos e quantidade de servidores participantes de cada operação; o período médio
de duração das ações fiscais; as principais dificuldades e intercorrências registradas; a forma de
identificação dos inícios da existência de trabalho escravo em dada localidade; os elementos
considerados no reconhecimento da relação de emprego; existência e conteúdo de mandados de busca
e apreensão; ocorrência de outros crimes, além da exploração de mão de obra escrava; as medidas
administrativas adotadas pelas equipes de fiscalização; o perfil dos trabalhadores resgatados; e o
tempo de duração, até a finalização dos trabalhos e envio dos relatórios às autoridades competentes.
Para além dos relatórios de fiscalização, também serão objeto de apreciação a síntese das repercussões
administrativas e judiciais, notadamente nas searas trabalhista e criminal.
5 CONCLUSÃO
ARANHA, Ana. Escravos do ouro. Repórter Brasil. 23 ago. 2018. Disponível em:
https://reporterbrasil.org.br/2018/08/resgate-trabalho-escravo-garimpo-ouro-para/. Acesso em 30
jul. 2021.
BARBOSA, Alfredo Ruy. A natureza jurídica da concessão minerária. In: SOUZA, Marcelo Gomes
de (Coord.). Direito minerário aplicado. Belo Horizonte: Mandamentos, p. 69-97, 2003.
BRASIL. Decreto-Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro: Diário
Oficial da União, 31 dez. 1940.
BRASIL. Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei no 2.848, de
7 de dezembro de 1940, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em
que se configura condição análoga à de escravo. Brasília: Diário Oficial da União, 12 dez. 2003.
BRASIL. Lei n. 11.685, de 2 de junho de 2008. Institui o Estatuto do Garimpeiro e dá outras
providências. Brasília: Diário Oficial da União, 3 jun. 2008.
CARVALHO, Antonio Luiz Sampaio. Permissão de Lavra Garimpeira. In: SOUZA, Marcelo
Gomes de (Coord.). Direito minerário aplicado. Belo Horizonte: Mandamentos, p. 113-130, 2003.
CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. trad: ROSA,
Sandra Maria Mallmann da. 5. ed. Porto Alegre: Penso, 2021.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2021.
IGREJA, Rebecca Lemos. O Direito como objeto de estudo empírico: o uso de métodos qualitativos
no âmbito da pesquisa empírica em Direito. In: MACHADO, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar
empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017. 428 p.
MARANHÃO, Ney. Meio ambiente do trabalho: descrição jurídico-conceitual. Revista Direitos,
Trabalho e Política social, Cuiabá, v. 2, n. 3, p. 80-117, 2016. Disponível em:
http://revista91.hospedagemdesites.ws/index.php/rdtps/article/view/40. Acesso em 19 jul. 2021.
MORAES, Sérgio Jacques. Aspectos jurídicos da pesquisa mineral. In: SOUZA, Marcelo Gomes de
(Coord.). Direito minerário aplicado. Belo Horizonte: Mandamentos, p. 39-68, 2003.
OBSERVATÓRIO DA MINERAÇÃO. Mais de 300 trabalhadores em condições análogas à
escravidão foram resgatados em garimpos no Brasil. 6 jul. 2021. Disponível em:
https://observatoriodamineracao.com.br/exclusivo-mais-de-300-trabalhadores-em-condicoes-
analogas-a-escravidao-foram-resgatados-em-garimpos-no-brasil/. Acesso em 20 jul. 2021.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Uma década de promoção do
trabalho decente no Brasil: uma estratégia de ação baseada no diálogo social. Genebra: OIT,
2015. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm.
Acesso em 20 jul. 2021.
SANTOS, Marlu da Silva. Modelos de aprendizagem de máquina para identificar o risco do
trabalho escravo contemporâneo em cidades brasileiras. 2020. Dissertação (Mestrado
Profissional em Computação Aplicada), Universidade de Brasília, Brasília, 2020.
TREVISAM, Elisaide. Trabalho escravo no Brasil contemporâneo: entre as presas da
clandestinidade e as garras da exclusão. Curitiba: Juruá, 2015.