Você está na página 1de 12

TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO: algumas considerações sobre a realidade

brasileira
Lorena Neris Almeida1

RESUMO: O presente trabalho resulta de uma pesquisa


bibliográfica e tem como objetivo refletir sobre a problemática
do trabalho análogo à de escravo no Brasil, compreendendo-o
como uma das expressões da questão social, destacando as
particularidades na formação da sociedade e as repercussões
no cenário nacional. O panorama esboçado revela que as
atividades econômicas ligadas ao agronegócio são as que mais
tem tido destaque na incidência do trabalho escravo
contemporâneo. Assim, é indispensável o fortalecimento das
políticas públicas de prevenção e assistência aos
trabalhadores, além, da geração de emprego e renda, uma
efetiva política de reforma agrária para distribuição/socialização
das terras.
Palavras-chave: Trabalho análogo à de escravo. Exploração.
Políticas públicas. Direitos Humanos.

ABSTRACT: The present work results from a bibliographical


research and aims to reflect on the problem of work analogous
to slavery in Brazil, understanding it as one of the expressions
of the social question, highlighting the particularities in the
formation of society and the repercussions in the national
scenario. The outline shows that the economic activities related
to agribusiness are the ones that have been the most prominent
in the incidence of contemporary slave labor. Thus, it is
essential to strengthen the public policies of prevention and
assistance to workers, besides the generation of employment
and income, an effective agrarian reform policy for land
distribution/socialization.
.
Keywords: Work analogous to slave labor. Exploration. Public
policy. Human rights.

1 INTRODUÇÃO
No Brasil, a escravidão clássica foi abolida formalmente há 130 anos. Contudo,
mesmo após a extinção formal da prática do escravismo, formas contemporâneas da
escravidão foram surgindo, sendo a expressão mais fidedigna, o trabalho análogo à de
escravo. O trabalho análogo à de escravo aparece tipificado enquanto crime pela primeira
1
Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, Política Social e Territórios da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(POSTERR/UFRB) e pós-graduanda em Seguridade Social e Políticas Públicas pelo Centro de Ensino,
Pesquisa, Extensão e Desenvolvimento Humano (CEPEX-DH). E-mail: llorenaneris@gmail.com
vez no Código Penal Brasileiro, na redação do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de
1940. Os artigos 197 e 198, respectivamente, caracterizam como crime constranger alguém
mediante ameaça ou violência, a “trabalhar” ou “celebrar contrato de trabalho”, e
estabeleciam a pena de reclusão de dois a oito anos para esta prática, conforme prescrito
no artigo 149 (GOMES, 2012).
Esse caráter generalista das condicionalidades dispostas no decreto
supramencionado passa a exigir a reformulação do conceito para identificar a existência de
trabalho análogo à de escravo. A Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003 alterou a
redação do art. 149 do Código Penal, a fim de delimitar as características de redução do
trabalhador a situação análoga à escravidão, sendo representadas por quatro condutas: i)
trabalho forçado, ii) jornada exaustiva, iii) condições degradantes de trabalho e iv) submetido
à restrição de sua locomoção em razão de dívida contraída (truck sistem) com o
empregador, preposto ou intermediário (FILGUEIRAS, 2015).
As proposições apresentadas demonstram o amparo da legislação brasileira, no
tocante ao repúdio de um passado colonial-escravocrata. Assim, não é preciso identificar a
presença consonante das quatro condutas para a conformação penal, sendo bastante
apenas uma delas, pois além de representar infração trabalhista, é também, uma afronta
aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do
trabalho decente e digno, pois excede os limites socialmente legais da exploração.
Segundo os dados atualizados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), entre os
anos 1995 e 2017, mais de 52 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à
escravidão no Brasil, demonstrando uma realidade incontestável da persistência do trabalho
análogo à de escravo em praticamente todo o território nacional. Neste viés, o “Atlas do
Trabalho Escravo no Brasil”, de Théry et al. (2009, p. 61), demonstra os estados brasileiros
com maior incidência do trabalho escravo contemporâneo: “as situações críticas localizam-
se principalmente no conjunto de quatro estados (Pará, Maranhão, Tocantins e Mato
Grosso). [...] onde o índice é elevado, mas nos quais poucos casos de trabalho escravo
foram denunciados e localizados”.
A Bahia aparece como um dos estados que tem apresentado o maior número de
resgates de trabalhadores nos últimos anos, ocupando a quinta posição no ranking nacional
e também, por impulsionar a migração dos seus naturais para outras regiões do país,
segundo o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil.
Na Bahia, os casos de trabalho análogo à de escravo têm sido flagrados em sua
maioria nas grandes fazendas do agronegócio no oeste baiano (COUTINHO et al., 2015).
Os polos de concentração dos resgates de trabalhadores, especificamente, estão
localizados nos municípios de São Desidério, Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, sendo
as principais atividades desenvolvidas: lavouras temporárias (sazonais) de soja, milho,
algodão; produção de carvão vegetal, extração de eucalipto e a cultura permanente do café.
A despeito da maioria dos casos de condições análogas à de escravo, não serem
identificadas pelo Estado, há evidências e, inclusive, registros formais de trabalhadores que
são reincidentemente submetidos a formas extremas de exploração. Pesquisa realizada
pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) com os dados extraídos do Observatório
Digital do Trabalho Escravo no Brasil, revela que 1,73% dos 35.341 trabalhadores
resgatados no país entre os anos 2003 e 2017 eram vítimas reincidentes, este quantitativo
demonstra que 613 trabalhadores foram resgatados pelo menos duas vezes no período de
quinze anos.
Pensando nisso, foram criadas políticas públicas para dar apoio aos trabalhadores
resgatados e conter a reincidência ao trabalho análogo à de escravo. Uma das mais
conhecidas, para além do direito ao recebimento de três parcelas do seguro-desemprego,
após o resgate (Lei nº 10.608, de 20 de dezembro de 2002); é o programa chamado “Projeto
Ação integrada - PAI”. O PAI tem como objetivo precípuo prestar assistência aos
trabalhadores resgatados da condição análoga à de escravo ou àqueles em situações
consideradas vulneráveis, por meio de ações educativas que visam prevenir e combater a
prática ilícita da escravidão contemporânea, particularmente, buscando a reinserção das
vítimas no mercado de trabalho.
No ano de 2009, o PAI foi implementado no estado do Mato Grosso e,
posteriormente, houve a replicação da proposta para os estados da Bahia em 2013 e Rio de
Janeiro, sendo uma iniciativa do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
(SINAIT), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da OIT, do Ministério Público do Trabalho
(MPT) e da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE/MT). As principais
atividades desenvolvidas pelo PAI são: abordagem, acolhimento/acompanhamento
psicossocial, palestras socioeducativas e qualificação profissional, esta ação coaduna para
a (re)inserção dos(as) trabalhadores(as) em políticas públicas de emprego e renda.
Em tempos de reestruturação produtiva, ajuste fiscal, flexibilização da lei trabalhista,
redução das verbas para fiscalização do trabalho análogo à de escravo, e do consequente
aprofundamento da precarização social do trabalho, entender como se processam os
avanços e recuos no enfrentamento da (re)incidência de trabalhadores às situações de
escravidão contemporânea e os impactos produzidos, a partir das políticas públicas,
sobretudo, no tocante a reinserção socioprodutiva como contributo para minoração das
vulnerabilidades dos trabalhadores e a defesa dos direitos humanos é extremamente
pertinente diante da atual conjuntura.

2 PANORAMA DO TRABALHO ANÁLOGO À DE ESCRAVO NO BRASIL


O fenômeno da escravidão é tão velho quanto à própria história da humanidade,
tendo em vista a sua existência em sociedades pré-capitalistas. O trabalho escravo foi
política de Estado no Brasil colonial (Estado português) e assim continuou após a
Independência, até 1888 (FILGUEIRAS, 2015, p. 137). Destarte, no período da colonização,
o modelo de relação adotado para a produção do excedente pautava-se na subsunção real
do escravo ao proprietário, alicerçada pela legitimação da exploração desmedida para
assegurar a reprodução ampliada da riqueza e concomitantemente, corroborava para o
esgotamento da vida útil dos trabalhadores escravizados por meio dos castigos físicos, do
uso irrestrito da mão-de-obra (valor de uso) e as condições desumanas.
Como ponto de partida, a categoria trabalho assumiu distintas formas ao longo da
história e fundamentalmente, constitui-se como a base concreta para a geração de toda a
riqueza da sociedade. No entanto, à medida que avança o desenvolvimento das forças
produtivas e a divisão do trabalho, modificam-se as formas e o grau de exploração da força
de trabalho, na contemporaneidade, expressa pelo “trabalho livre/assalariado” (NETTO,
2011).
O assalariamento se institui historicamente a partir da dupla liberdade que a parcela
majoritária da população que trabalha passa a gozar em determinada sociedade.
Por um lado, livre da dependência específicos de outros modos de produção (como
a condição de servo ou escravo); por outro, “livre” do controle sobre os meios de
produção. Essa dupla liberdade tem como corolário, para a população que trabalha,
um destino compulsório, qual seja, a venda de sua força de trabalho como meio para
sua reprodução (inclusive física). Os compradores da força de trabalho são os
proprietários dos meios de produção, cujo objetivo no bojo de tal relação social é a
obtenção incremental do excedente socialmente produzido, que nessa sociedade
ganha à forma de lucro monetário (FILGUEIRAS, 2015, p. 135).

No modo de produção capitalista, a relação de trabalho predominante é a


assalariada, que implica necessariamente na assimetria/hierarquização de poder entre o
capitalista, detentor do capital e dos meios de produção e a classe-que-vive-do-trabalho,
que dispõe univocamente da venda da força de trabalho para prover a sua reprodução
social. Neste cenário, a força de trabalho é a única mercadoria no capitalismo com a
capacidade de adicionar mais valor do que aquele que está nela contido (MARX, 2011).
Ainda nos dias atuais, diante de um cenário com intenso avanço da modernização
tecnológica e produtiva, emerge na esfera social práticas laborais de caráter arcaico
disfarçadas em novas formas de exploração, devido às novas configurações do mundo do
trabalho. Dessa maneira, mudam-se os moldes da exploração, o que não ocasiona o seu
desaparecimento, ao contrário, evidencia a subordinação econômica e social da classe
trabalhadora à expansividade do capitalismo profundamente metamorfoseado, fenômeno
que concorre para a precarização social do trabalho e miséria relativa do trabalhador
(DRUCK, 2011).
Neste sentido, o trabalho análogo à de escravo constitui-se como uma das
expressões da questão social, decorrente dos resquícios sócio históricos da formação da
sociedade brasileira e do processo de produção e reprodução do capitalismo para extração
de mais valor, através da exploração do trabalho conformada na lógica da expansão
ampliada do capital, calçada na máxima precarização social do trabalho e violação aos
direitos humanos.
[...] a velha “questão social” “metamorfoseia-se, assumindo “novas roupagens”. Ela
evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do
trabalho social e as relações sociais que o impulsionam. Fratura esta que vem se
traduzindo na banalização da vida humana, na violência escondida no fetiche do
dinheiro e da mistificação do capital ao impregnar todos os espaços e esfera da vida
social. Violência que tem no aparato repressivo do Estado, capturado pelas finanças
e colocado a serviço da propriedade e poder dos que dominam, o seu escudo de
proteção e de disseminação. O alvo principal são aqueles que dispõem apenas de
sua força de trabalho para sobreviver: além do segmento masculino adulto de
trabalhadores urbanos e rurais, penalizam-se os velhos trabalhadores, as mulheres
e as novas gerações de filhos da classe trabalhadora, jovens, crianças, em especial,
negros e mestiços (IAMAMOTO, 2008, p. 144-145).

A emergência de traços pretéritos nas formas de trabalho são particularidades


históricas que evidenciam o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho – denotado
como país periférico, retardatário e dependente. Segundo Figueira (2011), a emersão do
trabalho análogo à de escravo é decorrente da formação incompleta do mercado de trabalho
livre, especialmente, nas áreas de fronteira agrícola, quando impulsionada pela
modernização do campo e desumanização das relações trabalhistas plasmadas pela
utilização indiscriminada da mão-de-obra (valor de uso) para tarefas árduas.
As primeiras denúncias sobre a existência do trabalho análogo à de escravo
remontam ao início da década de 1970, com as cartas pastorais de Dom Pedro Casaldáliga,
bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia – Mato Grosso (CASTRAVECHI e NETO, 2015).
Neste período, vigorava no país o governo tecnocrático-militar que estabeleceu um amplo
programa de reocupação econômica da Amazônia, por meio da expansão de novas
fronteiras agrícolas, do aumento da concentração de terras, desmatamento e polo atrativo
de trabalhadores (nativos, estrangeiros e migrantes de outras regiões do país), desvelando
o aliciamento para situações análogas à escravidão (FIGUEIRA, 2011).
O principal agente financiador do trabalho análogo à de escravo nos anos 1970 era o
Estado (BRANDÃO e ROCHA, 2013), tendo em vista as concessões feitas às empresas por
meio de financiamentos e incentivos fiscais advindos da Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), voltados para a geração de benefícios para os
grandes grupos econômicos do capital financeiro.
O oeste baiano entre as décadas de 1970 e 1990 tornou-se a principal fronteira
agrícola do estado aberta ao capital nacional e internacional, sendo que essa
potencialização contribuiu para a instauração de uma estrutura fundiária vinculada ao
agronegócio e também para o retorno de formas compulsórias de trabalho (COUTINHO et
al., 2015). O cenário que camuflava a existência do trabalho análogo à de escravo foi sendo
desvendado, na medida em que a concentração de terras e o crescente desemprego
revelam uma situação de vulnerabilidade propicia à emergência de conflitos e aliciamento de
trabalhadores, destarte, a submissão destes a quaisquer condições de trabalho para prover
a sua reprodução social.
Há que se observar que a precarização do trabalho humano no espaço rural,
agravado em regiões onde preponderam o latifúndio e o poder oligárquico dos donos
da terra, colabora para criar um ambiente fértil para a coisificação do indivíduo,
reduzindo-o à condição de escravo. Tais espaços usurpam do trabalho todos os
elementos de sua atividade que conferem dignidade ao homem. O valor do trabalho
já foi amplamente debatido (Hegel e Marx, po exemplo) e, ainda que a compreensão
do trabalho como exercício produtivo humano dotado de valor tenha merecido
diversas teorias, pontos de vista e análises, a questão é que toda a existência do
trabalho nunca se dá apartada de significância, significância essa que nos conduz à
compreensão de que o trabalho é elemento de composição (ainda que não
exclusiva) da dignidade humana (NASCIMENTO, 2015, p. 365-366).

A despeito do aparecimento de casos de trabalho análogo ao de escravo nos centros


urbanos, especialmente, na construção civil e na indústria têxtil, tradicionalmente, esse tipo
de mão-de-obra é empregada em atividades econômicas na zona rural, como a pecuária,
limpeza e preparo de pasto, o cultivo de cana-de-açúcar, soja, entre outros. Segundo a
Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), entre 1995 e 2018 foram encontrados 53.607
trabalhadores em condições análogas à de escravo no Brasil, sendo que 78,15% em
situação de trabalho escravo rural e 21,85% nas zonas urbanas2. Tais dados demonstram a
predominância da prática da escravidão contemporânea no campo, mesmo com a
modernização do processo produtivo, ainda verifica-se a prevalência de relações
draconianas de trabalho nas áreas rurais.
Dessa forma, para garantir os meios de subsistência necessários à sua manutenção,
bem como, a sua reprodução e a dos seus membros (família – núcleo extenso); o
trabalhador vende a força de trabalho para uma jornada, em que muitas vezes, o valor do
trabalho prestado não é claramente acordado entre as partes, conforme qualifica
(FIGUEIRA, 2011). A ausência desse alinhamento coloca o trabalhador em posição de

2
Disponível em: < https://sit.trabalho.gov.br/radar/>, acesso em 27 de abril de 2019.
desvantagem, na medida em que a desigualdade socioeconômica e política entre ele e o
empregador/intermediário não assegura os meios necessários para exigir o cumprimento
das cláusulas acordadas, evidenciando o terreno propício para falsas promessas de bom
emprego, salário e alegação de dívida contraída (FILGUEIRAS, 2015).
As estratégias de coação dos trabalhadores foram redefinidas na
contemporaneidade, a fim de adequá-las ao capitalismo no estágio monopolista. O trabalho
obtido a partir da coação direta individual, geralmente, ocorre com base em mecanismos
criados pelo empregador/preposto/intermediário, representada pela existência de pretensa
dívida, mesmo que forjada, desde que a vítima acredite ter contraído durante o
recrutamento. Para fins de quitação do endividamento artificial, o trabalhador é coagido a
manter-se na atividade laborativa para saldar os débitos (FILGUEIRAS, 2015). Destarte, a
dualidade dos métodos coercitivos empregados na liquidação da dívida, tais como a
responsabilidade moral sentida pelos trabalhadores, que independe das condições de
trabalho ofertadas e a presença de homens armados – gatos para intimidá-los, quando
cogitarem fuga (FIGUEIRA, 2011).
A extensão dos dispositivos de coerção transcende os castigos físicos da escravidão
clássica, perpassando agora, pelas humilhações, xingamentos, admoestação e risco
iminente a saúde e vida dos trabalhadores, quando estes são privados da utilização de
equipamentos de proteção individual (EPI), taxação de despesas em razão de dívida
contraída e condicionados a situações indignas de trabalho no campo da reprodução social
(FILGUEIRA, 2011; FILGUEIRAS, 2015).
Assim, o que distingue as diversas nações é o modo como elas se empenham para
assegurar a liberdade e dignidade da pessoa humana. A sociedade demonstra as suas
profundas características, através das ações tomadas em prol do enfrentamento das
injustiças sociais e da opressão extrema que no presente estudo traduz-se, no trabalho
análogo à de escravo.

2.1 Os mecanismos de enfrentamento ao trabalho análogo à de escravo


O Brasil reconheceu a existência do trabalho análogo à de escravo em território
nacional em 1995, quando o país fora denunciado na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo caso de Zé Pereira,
(KALÍL e RIBEIRO, 2015). No entanto, as denúncias contra o trabalho análogo à de escravo
somente tem centralidade e começa a fazer parte da agenda nacional, quando a temática
ganha projeção no cenário internacional e mobiliza uma série de atores representados por
instituições, como a: Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional
do Trabalho (OIT). A conjugação desses fatores demonstra que o enfrentamento da
problemática contemporânea da escravidão é muito mais uma resposta às denúncias feitas
no âmbito internacional, do que efetivamente uma “vontade política” de combater o
problema histórico, estrutural e altamente rentável na obtenção de lucro extraordinário.
Conforme argumenta Netto (2011), no capitalismo monopolista, as funções políticas do
Estado imbricam-se organicamente com as funções econômicas, assim, o eixo da
intervenção estatal na era dos monopólios é direcionado para assegurar os superlucros em
face da agudização da questão social.
As ações de combate ao trabalho análogo à de escravo ocorrem em duas principais
vertentes: i) repressiva e ii) assistencial-preventiva (KALÍL e RIBEIRO, 2015). A primeira diz
respeito, as operações fiscalizatórias para verificar as denúncias de submissão à condição
análoga à escravidão, estas sendo constatadas há o resgate imediato do trabalhador; a
segunda dar-se a partir da construção de políticas públicas para reduzir os casos de
reincidência ou ingresso do trabalhador em situações dramáticas de trabalho, tendo em vista
que serão assistidos além das regularizações trabalhistas.
Em 1995, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) no âmbito
federal, como instrumento para apurar as denúncias e planejar as ações de enfrentamento
ao trabalho análogo à de escravo (KALÍL e RIBEIRO, 2015). O GEFM é coordenado pela
Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (SIT-MTE), por
meio da atuação de auditores fiscais do trabalho, estes articulados com grupos
interinstitucionais do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF)
e membros da Polícia Rodoviária Federal (PRF) ou da Polícia Federal (PF).
Cabe salientarmos que anteriormente a criação do GEFM, o enfrentamento ao
trabalho análogo à de escravo já vinha sendo impulsionado, em meados da década de 1970
por organizações não governamentais e pelos movimentos sociais, representados pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT), Pastoral do Migrante e Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto (MTST), conforme qualifica (BRANDÃO e ROCHA, 2013). As frentes de atuação
dessas entidades são a defesa dos direitos humanos e a luta pela terra, esta tida como
causa dos conflitos agrários e emersão de trabalhadores a condição análoga à escravidão.
O segundo instrumento para coibir a prática ilícita da escravidão diz respeito à
chamada “lista suja”, criada pelo Poder Executivo por meio da Portaria nº 540 de 2004 do
MTE, que inclui o cadastro de empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho
análogo à de escravo, após os autos de infração serem lavrados em decorrência da
fiscalização do GEFM, que resulta no resgate de trabalhadores. Além da publicização dos
nomes de empregadores para conhecimento da sociedade, o capitalista fica impedido de
obter a concessão de créditos públicos. A lista suja representa uma iniciativa de
constrangimento do capital na era dos monopólios e imposição de limites à exploração
indiscriminada da força de trabalho, conjugação esta que sucessivas vezes incita a sua
suspensão por correlação de forças políticas, conforme argumenta (FILGUEIRAS, 2015).
A fiscalização dos estabelecimentos configura-se como importante mecanismo para
o enfrentamento e combate do trabalho análogo à de escravo, tendo em vista a regulação
das relações produtivas na era do capital globalizado. No entanto, a ação isolada do resgate
de trabalhadores, não é suficiente para atingir as causas estruturais do problema, fazendo-
se necessária a articulação com políticas públicas que incitem a reinserção no mercado de
trabalho formal ou em atividades autônomas e ofereçam subsídios além do rompimento do
“vínculo contratual”.
(...) O indicador apontado como responsável por tal desencanto [eficácia da
fiscalização] foi à reincidência de casos com que os auditores começaram a se
deparar. Ou seja, trabalhadores já libertados eram encontrados novamente na
mesma situação em outros locais, o que explicitava os limites da ação repressora e
evidenciava as profundas causas desse fenômeno: a grande miséria em que se
achava a população alvo do recrutamento e a falta de políticas governamentais que
minimizassem essa situação (GOMES, 2012, p.174).
Dentro desta perspectiva, a esfera estatal oferece outro suporte para o trabalhador,
expresso, pelo seguro-desemprego na modalidade especial para o resgatado, benefício
implantado em 2002. O trabalhador resgatado da condição análoga à de escravo tem direito
ao recebimento de três parcelas do seguro-desemprego, cada uma corresponde ao valor de
um salário mínimo.
O Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo prevê nas suas normativas:
53 – Implementar uma política de reinserção social de forma a assegurar que os
trabalhadores libertados não voltem a ser escravizados, com ações específicas,
tendentes a facilitar sua reintegração na região de origem, sempre que possível:
assistência à saúde, educação profissionalizante, geração de emprego e renda e
reforma agrária (2003, p.31).

Esta premissa coaduna com a segunda vertente das ações de combate ao trabalho
análogo à de escravo, no que tange à ferramenta assistencial-preventiva expressa pelo
“Projeto Ação Integrada”. O PAI tem como fundamento sociopolítico enveredar esforços
para a reinserção digna dos trabalhadores no mercado de trabalho, através da qualificação
profissional e atividades socioeducativas para minoração das vulnerabilidades e,
consequentemente, afastarem o ciclo da exploração da escravidão contemporânea. No
tocante ao custeio das depesas para execução do Projeto Ação Integrada, majoritariamente,
é proveniente do Ministério Público do Trabalho (MPT), através das multas e indenizações
pelo descumprimento das obrigações prescritas nos termos de ajuste de conduta (TAC).
É neste cenário que foi implementado o Projeto Ação Integrada, como ferramenta
para (re)construção da identidade social dos trabalhadores resgatados da condição análoga
à de escravo, por meio do fortalecimento de ações socioeducativas que colaborem para o
desenraizamento do passado escravocrata e naturalização das mazelas sociais,
representada neste contexto pelo empobrecimento e reificação da classe-que-vive-do-
trabalho.

3 CONCLUSÃO
Diante das discussões aqui apresentadas é perceptível que embora o Brasil tenha se
tornado “um exemplo a ser seguido na luta contra o trabalho análogo à de escravo” (OIT,
2010, p. 81), as ações de repressão e assistenciais encampadas não tem sido suficientes
para dar conta da problemática escravidão contemporânea, fenômeno latente na sociedade
do capital globalizado.
Além disso, a onda neoconservadora e a ofensiva política e ideológica do capital tem
corroborado para a legitimação de situações dramáticas de trabalho, fomentadas pela
flexibilização das leis trabalhistas, derruição dos direitos socialmente conquistados pela
classe-que-vive-do-trabalho, estes fruto do ingresso no cenário político e das lutas sociais
inerentes. O atual momento do país demonstra uma cena recrudescente das políticas
públicas e retração substancial diante das alteridades propostas, doravante a naturalização
da pobreza e das mazelas sociais para assegurar a manutenção da ordem capitalista
fundada na globalização econômica.
No tocante as perspectivas para a superação do trabalho análogo à de escravo é
preciso percebermos como um fenômeno macroestrutural que reflete questões sociais mais
complexas da ordem societária, como: a concentração fundiária e de renda, a precarização
social do trabalho, os bolsões de miséria e pobreza que coadunam para a submissão do
trabalhador a quaisquer formas de trabalho e configuram-se como impeditivos para a
erradicação do problema.
Assim, os avanços e retrocessos tem relação com os interesses disputados na arena
política, representados pela participação social e a construção de novos projetos societários.
O cenário emergente do trabalho análogo à de escravo aponta para a necessidade de
fortalecimento das políticas públicas articuladas com o trabalho educativo, numa perspectiva
de pensar as práticas de educação para melhorar a posição ocupacional e social dos
trabalhadores, aumentar a resiliência socioprodutiva destes e também, representa uma
convocatória para a produção de resistências, no que tange o desmascaramento de
situações draconianas de trabalho que aviltam a dignidade humana. Somando-se a isso, a
inserção na produção rural autônoma é uma alternativa consistente para a reprodução social
dos trabalhadores, doravante, com a utilização dos recursos advindos das ações civis
públicas ou termos de ajuste de conduta (TAC).

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, André; ROCHA, Graziella. Trabalho escravo contemporâneo no Brasil na
perspectiva de atuação dos movimentos sociais. Revista Katálysis. Florianópolis, v. 16,
n. 2, 0. 196-204, jul./dez. 2013.

CASTRAVECHI, Luciene Aparecida; NETO, Vitale Joanoni. O exílio da vida nas margens
do mundo: violência contra trabalhadores escravos em Mato Grosso (1970-1989). In: A
universidade discute a escravidão contemporânea: práticas e reflexões. Adonia Antunes
Prado, Edna Maria Galvão e Ricardo Rezende Figueira (Orgs.). 1. ed. – Rio de Janeiro:
Mauad X, 2015. p. 73-90.

COUTINHO, Elen da Silva; OLIVEIRA, Gilca Garcia de; GERMANI, Guiomar Inez. Trabalho
análogo ao de escravo na Bahia: expressões na fronteira agrícola. In: A universidade
discute a escravidão contemporânea: práticas e reflexões. Adonia Antunes Prado, Edna
Maria Galvão e Ricardo Rezende Figueira (Orgs.). 1. ed. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2015.
p. 335-356.

DRUCK, Graça. Trabalho, Precarização e Resistências: novos e velhos desafios?


Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. 01, p. 35-55, 2011.

FIGUEIRA, Ricardo Rezende. A persistência da escravidão ilegal no Brasil. In: Desafios


aos Direitos Humanos no Brasil contemporâneo. Biorn Maybury-Lewis & Sonia Ranincheski
(Orgs.). Brasília: Verbena Editora, 2011.

FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Trabalho análogo ao escravo e o limite da relação de


emprego: Natureza e disputa na regulação do Estado. In: A universidade discute a
escravidão contemporânea: práticas e reflexões. Adonia Antunes Prado, Edna Maria Galvão
e Ricardo Rezende Figueira (Orgs.). 1. ed. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2015. p. 133-156.

GÓES, Karine Dantas Góes e; SILVA, Waldimeiry Corrêa da. A tutela de direitos humanos
das formas contemporâneas de escravidão. In: A universidade discute a escravidão
contemporânea: práticas e reflexões. Adonia Antunes Prado, Edna Maria Galvão e Ricardo
Rezende Figueira (Orgs.). 1. ed. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2015. p. 157-174.

GOMES, Ângela Maria de Castro. Repressão e mudanças no trabalho análogo a de


escravo no Brasil: tempo presente e usos do passado. Revista Brasileira de História.
São Paulo: v. 32, nº 64, p. 164-184, 2012.

IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital


financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
KALÍL, Renan Bernardi; RIBEIRO, Thiago Gurjão Alves. Trabalho escravo contemporâneo
e proteção social. Revista Direitos, Trabalho e Política Social. Cuiabá: v.1, nº 1, p. 15-38,
jul./dez. 2015.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1: O processo de produção do


capital. Vol. 1. 29. ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

MTE. Resultado das Operações de Fiscalização para Erradicação do Trabalho, Quadro


das Operações de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo – SIT/SRTE –
2016. Disponível em: http://trabalho.gov.br/dados-abertos/estatistica-trabalho-escravo.
Acesso em: 29 de abril de 2019.

NASCIMENTO, Arthur Ramos do. Escravidão (rural) contemporânea no Brasil e as


dimensões de direitos humanos: responsabilidade do Estado e o compromisso
internacional de combate a todas as formas de “coisificação” do trabalhador. In: A
universidade discute a escravidão contemporânea: práticas e reflexões. Adonia Antunes
Prado, Edna Maria Galvão e Ricardo Rezende Figueira (Orgs.). 1. ed. – Rio de Janeiro:
Mauad X, 2015. p. 359-374.

NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 8ª ed. – São Paulo:
Cortez, 2011.

Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Acesso em: 17 de abril de 2019.


Disponível em: <http://observatorioescravo.mpt.mp.br>.

OIT. Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil /
Organização Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2011.

THERY, Herve; MELLO, Neli Aparecida de; HATO, Julio; GIRARDI, Eduardo Palon. Atlas
do trabalho escravo no Brasil. Sao Paulo: Amigos da Terra, 2009.

Você também pode gostar