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brasileira
Lorena Neris Almeida1
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, a escravidão clássica foi abolida formalmente há 130 anos. Contudo,
mesmo após a extinção formal da prática do escravismo, formas contemporâneas da
escravidão foram surgindo, sendo a expressão mais fidedigna, o trabalho análogo à de
escravo. O trabalho análogo à de escravo aparece tipificado enquanto crime pela primeira
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Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, Política Social e Territórios da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(POSTERR/UFRB) e pós-graduanda em Seguridade Social e Políticas Públicas pelo Centro de Ensino,
Pesquisa, Extensão e Desenvolvimento Humano (CEPEX-DH). E-mail: llorenaneris@gmail.com
vez no Código Penal Brasileiro, na redação do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de
1940. Os artigos 197 e 198, respectivamente, caracterizam como crime constranger alguém
mediante ameaça ou violência, a “trabalhar” ou “celebrar contrato de trabalho”, e
estabeleciam a pena de reclusão de dois a oito anos para esta prática, conforme prescrito
no artigo 149 (GOMES, 2012).
Esse caráter generalista das condicionalidades dispostas no decreto
supramencionado passa a exigir a reformulação do conceito para identificar a existência de
trabalho análogo à de escravo. A Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003 alterou a
redação do art. 149 do Código Penal, a fim de delimitar as características de redução do
trabalhador a situação análoga à escravidão, sendo representadas por quatro condutas: i)
trabalho forçado, ii) jornada exaustiva, iii) condições degradantes de trabalho e iv) submetido
à restrição de sua locomoção em razão de dívida contraída (truck sistem) com o
empregador, preposto ou intermediário (FILGUEIRAS, 2015).
As proposições apresentadas demonstram o amparo da legislação brasileira, no
tocante ao repúdio de um passado colonial-escravocrata. Assim, não é preciso identificar a
presença consonante das quatro condutas para a conformação penal, sendo bastante
apenas uma delas, pois além de representar infração trabalhista, é também, uma afronta
aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do
trabalho decente e digno, pois excede os limites socialmente legais da exploração.
Segundo os dados atualizados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), entre os
anos 1995 e 2017, mais de 52 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à
escravidão no Brasil, demonstrando uma realidade incontestável da persistência do trabalho
análogo à de escravo em praticamente todo o território nacional. Neste viés, o “Atlas do
Trabalho Escravo no Brasil”, de Théry et al. (2009, p. 61), demonstra os estados brasileiros
com maior incidência do trabalho escravo contemporâneo: “as situações críticas localizam-
se principalmente no conjunto de quatro estados (Pará, Maranhão, Tocantins e Mato
Grosso). [...] onde o índice é elevado, mas nos quais poucos casos de trabalho escravo
foram denunciados e localizados”.
A Bahia aparece como um dos estados que tem apresentado o maior número de
resgates de trabalhadores nos últimos anos, ocupando a quinta posição no ranking nacional
e também, por impulsionar a migração dos seus naturais para outras regiões do país,
segundo o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil.
Na Bahia, os casos de trabalho análogo à de escravo têm sido flagrados em sua
maioria nas grandes fazendas do agronegócio no oeste baiano (COUTINHO et al., 2015).
Os polos de concentração dos resgates de trabalhadores, especificamente, estão
localizados nos municípios de São Desidério, Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, sendo
as principais atividades desenvolvidas: lavouras temporárias (sazonais) de soja, milho,
algodão; produção de carvão vegetal, extração de eucalipto e a cultura permanente do café.
A despeito da maioria dos casos de condições análogas à de escravo, não serem
identificadas pelo Estado, há evidências e, inclusive, registros formais de trabalhadores que
são reincidentemente submetidos a formas extremas de exploração. Pesquisa realizada
pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) com os dados extraídos do Observatório
Digital do Trabalho Escravo no Brasil, revela que 1,73% dos 35.341 trabalhadores
resgatados no país entre os anos 2003 e 2017 eram vítimas reincidentes, este quantitativo
demonstra que 613 trabalhadores foram resgatados pelo menos duas vezes no período de
quinze anos.
Pensando nisso, foram criadas políticas públicas para dar apoio aos trabalhadores
resgatados e conter a reincidência ao trabalho análogo à de escravo. Uma das mais
conhecidas, para além do direito ao recebimento de três parcelas do seguro-desemprego,
após o resgate (Lei nº 10.608, de 20 de dezembro de 2002); é o programa chamado “Projeto
Ação integrada - PAI”. O PAI tem como objetivo precípuo prestar assistência aos
trabalhadores resgatados da condição análoga à de escravo ou àqueles em situações
consideradas vulneráveis, por meio de ações educativas que visam prevenir e combater a
prática ilícita da escravidão contemporânea, particularmente, buscando a reinserção das
vítimas no mercado de trabalho.
No ano de 2009, o PAI foi implementado no estado do Mato Grosso e,
posteriormente, houve a replicação da proposta para os estados da Bahia em 2013 e Rio de
Janeiro, sendo uma iniciativa do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
(SINAIT), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da OIT, do Ministério Público do Trabalho
(MPT) e da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE/MT). As principais
atividades desenvolvidas pelo PAI são: abordagem, acolhimento/acompanhamento
psicossocial, palestras socioeducativas e qualificação profissional, esta ação coaduna para
a (re)inserção dos(as) trabalhadores(as) em políticas públicas de emprego e renda.
Em tempos de reestruturação produtiva, ajuste fiscal, flexibilização da lei trabalhista,
redução das verbas para fiscalização do trabalho análogo à de escravo, e do consequente
aprofundamento da precarização social do trabalho, entender como se processam os
avanços e recuos no enfrentamento da (re)incidência de trabalhadores às situações de
escravidão contemporânea e os impactos produzidos, a partir das políticas públicas,
sobretudo, no tocante a reinserção socioprodutiva como contributo para minoração das
vulnerabilidades dos trabalhadores e a defesa dos direitos humanos é extremamente
pertinente diante da atual conjuntura.
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Disponível em: < https://sit.trabalho.gov.br/radar/>, acesso em 27 de abril de 2019.
desvantagem, na medida em que a desigualdade socioeconômica e política entre ele e o
empregador/intermediário não assegura os meios necessários para exigir o cumprimento
das cláusulas acordadas, evidenciando o terreno propício para falsas promessas de bom
emprego, salário e alegação de dívida contraída (FILGUEIRAS, 2015).
As estratégias de coação dos trabalhadores foram redefinidas na
contemporaneidade, a fim de adequá-las ao capitalismo no estágio monopolista. O trabalho
obtido a partir da coação direta individual, geralmente, ocorre com base em mecanismos
criados pelo empregador/preposto/intermediário, representada pela existência de pretensa
dívida, mesmo que forjada, desde que a vítima acredite ter contraído durante o
recrutamento. Para fins de quitação do endividamento artificial, o trabalhador é coagido a
manter-se na atividade laborativa para saldar os débitos (FILGUEIRAS, 2015). Destarte, a
dualidade dos métodos coercitivos empregados na liquidação da dívida, tais como a
responsabilidade moral sentida pelos trabalhadores, que independe das condições de
trabalho ofertadas e a presença de homens armados – gatos para intimidá-los, quando
cogitarem fuga (FIGUEIRA, 2011).
A extensão dos dispositivos de coerção transcende os castigos físicos da escravidão
clássica, perpassando agora, pelas humilhações, xingamentos, admoestação e risco
iminente a saúde e vida dos trabalhadores, quando estes são privados da utilização de
equipamentos de proteção individual (EPI), taxação de despesas em razão de dívida
contraída e condicionados a situações indignas de trabalho no campo da reprodução social
(FILGUEIRA, 2011; FILGUEIRAS, 2015).
Assim, o que distingue as diversas nações é o modo como elas se empenham para
assegurar a liberdade e dignidade da pessoa humana. A sociedade demonstra as suas
profundas características, através das ações tomadas em prol do enfrentamento das
injustiças sociais e da opressão extrema que no presente estudo traduz-se, no trabalho
análogo à de escravo.
Esta premissa coaduna com a segunda vertente das ações de combate ao trabalho
análogo à de escravo, no que tange à ferramenta assistencial-preventiva expressa pelo
“Projeto Ação Integrada”. O PAI tem como fundamento sociopolítico enveredar esforços
para a reinserção digna dos trabalhadores no mercado de trabalho, através da qualificação
profissional e atividades socioeducativas para minoração das vulnerabilidades e,
consequentemente, afastarem o ciclo da exploração da escravidão contemporânea. No
tocante ao custeio das depesas para execução do Projeto Ação Integrada, majoritariamente,
é proveniente do Ministério Público do Trabalho (MPT), através das multas e indenizações
pelo descumprimento das obrigações prescritas nos termos de ajuste de conduta (TAC).
É neste cenário que foi implementado o Projeto Ação Integrada, como ferramenta
para (re)construção da identidade social dos trabalhadores resgatados da condição análoga
à de escravo, por meio do fortalecimento de ações socioeducativas que colaborem para o
desenraizamento do passado escravocrata e naturalização das mazelas sociais,
representada neste contexto pelo empobrecimento e reificação da classe-que-vive-do-
trabalho.
3 CONCLUSÃO
Diante das discussões aqui apresentadas é perceptível que embora o Brasil tenha se
tornado “um exemplo a ser seguido na luta contra o trabalho análogo à de escravo” (OIT,
2010, p. 81), as ações de repressão e assistenciais encampadas não tem sido suficientes
para dar conta da problemática escravidão contemporânea, fenômeno latente na sociedade
do capital globalizado.
Além disso, a onda neoconservadora e a ofensiva política e ideológica do capital tem
corroborado para a legitimação de situações dramáticas de trabalho, fomentadas pela
flexibilização das leis trabalhistas, derruição dos direitos socialmente conquistados pela
classe-que-vive-do-trabalho, estes fruto do ingresso no cenário político e das lutas sociais
inerentes. O atual momento do país demonstra uma cena recrudescente das políticas
públicas e retração substancial diante das alteridades propostas, doravante a naturalização
da pobreza e das mazelas sociais para assegurar a manutenção da ordem capitalista
fundada na globalização econômica.
No tocante as perspectivas para a superação do trabalho análogo à de escravo é
preciso percebermos como um fenômeno macroestrutural que reflete questões sociais mais
complexas da ordem societária, como: a concentração fundiária e de renda, a precarização
social do trabalho, os bolsões de miséria e pobreza que coadunam para a submissão do
trabalhador a quaisquer formas de trabalho e configuram-se como impeditivos para a
erradicação do problema.
Assim, os avanços e retrocessos tem relação com os interesses disputados na arena
política, representados pela participação social e a construção de novos projetos societários.
O cenário emergente do trabalho análogo à de escravo aponta para a necessidade de
fortalecimento das políticas públicas articuladas com o trabalho educativo, numa perspectiva
de pensar as práticas de educação para melhorar a posição ocupacional e social dos
trabalhadores, aumentar a resiliência socioprodutiva destes e também, representa uma
convocatória para a produção de resistências, no que tange o desmascaramento de
situações draconianas de trabalho que aviltam a dignidade humana. Somando-se a isso, a
inserção na produção rural autônoma é uma alternativa consistente para a reprodução social
dos trabalhadores, doravante, com a utilização dos recursos advindos das ações civis
públicas ou termos de ajuste de conduta (TAC).
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