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O MITO DO LABIRINTO

EM

“GRANDE SERTÃO: VEREDAS”

de João Guimarães Rosa

Requesito do curso Guimarães Rosa / Graduação,

                                                  ministrado pela profª, doutora em Letras, Marli


Fantini.

Belo Horizonte
2005
O MITO DO LABIRINTO EM “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”

O indivíduo sacrifica a si mesmo


esforçando-se por se tornar o braço da justiça eterna,
cuja natureza verdadeira ignora.
(Schopenhauer)

Segundo a mitologia Grega, o labirinto de Creta foi construído pelo inventor / arquiteto Dédalo, a mando do rei Minos, para esconder o Minotauro: um
monstro repulsivo, metade homem metade touro. Esse labirinto, onde quem entrava não conseguia sair, tornou-se símbolo da “perdição” e arquétipo para
catedrais, palácios, cidades, pessoas e mundo.

Simbolicamente o labirinto representa “lugar onde se perde”, ou seja, o lado sombrio, obscuro e tortuoso do homem e do mundo que a linguagem, a
escrita, as criações simbólicas, os rituais, as religiões e toda a cultura criada pelo homem tentam dissimular, mas que a impulsividade, as falhas, as faltas,
as lacunas, as rupturas, a certeza da morte, permitem entrever. Dessa forma, o saber estaria na direção do conhecimento de si mesmo, no encontro com
o “eu” primordial ocultado nas sombras dos labirintos de si mesmo.

Assim, em Grande Sertão: Veredas (GSV), a experiência de travessia do sertão/labirinto vivida pelo protagonista serve como uma viagem de formação e
da busca de si mesmo. É também nesta perspectiva que Riobaldo conta e reconta a sua trajetória e ao narrá-la vai-se fazendo sujeito, constituindo o seu
próprio eu.

Como o labirinto de Creta, Grande Sertão: Veredas é uma construção que possui um arquiteto: o autor - que se deixa refletir na esquiva presença do
interlocutor/personagem. Nesse romance, Rosa reconhece a fragilidade e as limitações do ser humano ao dar a voz da narrativa a Riobaldo: ser ambíguo e
fragmentado, cuja morada é um grande sertão que, como o labirinto, possui múltiplas facetas.

Riobaldo é o narrador - fala de si e do sertão -, uma espécie de contador de histórias guardião da memória coletiva, que ao narrar, remonta a si mesmo.
Riobaldo é um sujeito subalterno, marginalizado, e ao descobrir que é filho bastardo de seu padrinho resolve buscar sua identidade na travessia do sertão,
na “luta contra o mal da jagunçagem”. Chega a ser chefe dos jagunços e representante da hierarquia fundiária ao herdar as fazendas do pai. A narrativa
que faz a um forasteiro - possuidor de saber refinado -, de sua aventura pelo sertão ao lado de Diadorim, amor de sua vida, é o caminho pelo qual busca
validar sua história e reforçar sua identidade.

O sertão que Guimarães Rosa constrói, como o labirinto de Creta, serve para abrigar, reter, esconder e ao mesmo tempo mostrar, desnudar, escancarar as
pulsões mais primitivas do ser humano: batalhas, amores, anseios, desejos (“medo de homem humano” p.379). Riobaldo representa o ser labiríntico e
suas ambigüidades e o sertão, o cenário-mundo-labirinto. Riobaldo somos nós: homens labirínticos que em suas contradições revelam lados obscuros. E o
sertão é o labirinto que abriga a aventura humana: o mundo - cenário onde tudo acontece. Assim, o sertão simboliza ao mesmo tempo o mundo e o
homem, que, perdido dentro de seus próprios labirintos, constrói labirintos cada vez mais complexos e mais perfeitos.

O uso de metáforas como forma ambivalente e simultânea de criar novos sentidos torna as frases ambíguas, recurso que cria paradoxos – que, em
Guimarães Rosa, convivem separados por uma linha tênue: sertão/veredas, culto/inculto, bem/mal, Deus/diabo, medo/coragem, regional/nacional) - e
possibilita ao leitor desvelar a dualidade de tudo: do ser humano gentil e brutal, do real e irreal, da vida e da morte.

A travessia do sertão na narrativa de Riobaldo assemelha-se à trajetória humana – nela cabem as lutas, os sonhos, as brincadeiras, a busca e a fuga do
outro, a imprevisibilidade, a vulnerabilidade e as frustrações de estar vivo ou de morrer -, sugerindo ser a existência um labirinto, uma travessia
constante ou um itinerário errante. “Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de
chegada. ...a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se
pensou. Viver não é muito perigoso?” (p.51).

O sertão como labirinto


O sertão, espaço da narrativa, ultrapassa a localização geográfica e assume caráter alegórico, filosófico, poético. O sertão é o mundo: “O sertão é do
tamanho do mundo”. “O sertão é nenhum”. “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado. O sertão é confusão em grande demasiado
sossego”. “O sertão não chama ninguém às claras; mas porém se esconde e acena.” “Sertão: quem sabe é o urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles
estão sempre no alto, apalpando ares com pendurando pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.” “Sertão, estes seus vazios.” 
 ...é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador;  e onde criminoso vive seu
cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade (p.24).

 Os gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de
opiniães... O sertão está em toda a parte (p.24).

 Mas as barbaridades que esse delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em coração para poder escutar. Conseguiu de muito homem
e mulher chorar sangue, por este simples universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus
mesmo, quando vier, que venha armado(p.35).

 Aqui não se tem convívio de instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do
lugar. Viver é mito perigoso... (p.41).

 Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. [...]
Sempre, no gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor
entestar viagem mais dilatada (p.42).
Como o labirinto, o sertão não tem começo nem fim. Ainda que Riobaldo vá e volte no tempo e/ou no espaço, a trajetória nunca é a mesma: é sempre
outra. Como no caso do “intransitável” Liso do Sussuarão, que na primeira vez, guiados por Medeiro Vaz, eles desistem de atravessar, e, na outra, com
Riobaldo no comando, passam com relativa facilidade. ...o Liso do Sussuarão não concedia passagem a gente viva, era o raso pior havente, era um
escampo dos infernos (p.50 o paradoxo do plano/liso intransponível).
 ...esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com
aquilo o mundo se acaba: carece de dar volta, sempre (p.50). Mesmo quem havia de deduzir que o Liso do Sussuarão prestasse para nele caminho se
impor (p.52)?

 Eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e
a alegria da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança
mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...(p.206).

 O São Francisco dividiu minha vida em duas partes (p.289).

 De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações? [...]
Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...
(p.462).

 É de ver que não esquentamos lugar na redondez, mas viemos contornando — só extorquindo vantagens de dinheiro, mas sem devastar nem
matar — sistema jagunço (...). Mas o sertão está movimentando todo-tempo — salvo que o senhor vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos
de leves pesos... Rodeando por terras tão longes; mas eu tinha raiva surda das grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva — porque eu não era
delas, produzido... (p.483).

O homem labiríntico
 
Riobaldo simboliza o homem em suas contradições, que em seu caminho tortuoso,
perplexo diante ao vazio da vida, busca preencher o sentimento de falta e
incompletude inerente ao ser humano frente a consciência da própria morte. “Acho
que alguma coisa falta” (p.292). Isso também está representado na aceitação, pelo
protagonista, de um destino inevitável, fora de seu controle, cujo sentido escapa à
sua compreensão. “Quem foi que foi o jagunço Riobaldo? O jagunço Riobaldo fui
eu? Fui e não fui: não quero ser.” “O sertão está dentro da gente” (ref: ‘Mme.
Bovary c’est moi’). “Diadorim é a minha neblina” (perdição, labirinto). “O diabo na
rua, dento do redemoinho” (o diabo é uma coisa dentro de outra coisa). “O demo
então era eu mesmo?” (p.440). “Tão longe e perto de mim eu queria ficar sendo.”
“Queria ser mais que eu” (p.393). “Eu era diversos” (p.457).
 ...o diabo vive dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem
arruinado, ou o homem dos avessos (p.10).
 ...quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência
entrante do demônio (p.26).
        Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito
bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos (p.28)!
 O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazendo careta... (p.28).

 E o Urutu-Branco? Ah, esse... tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino (p.33).

 ...mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? ... há coisas
de medonhas demais, tem. Dor de corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio (p.37).

 Me apraz é que o pessoal, hoje em dia, é bom de coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre tem alguma,
mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho
(p.38).
 ...o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão
sempre mudando (p.39).

 ...jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é
feito um por si (p.44).

 Coração da gente – o escuro, escuros (p.52).

 O judas algum? – na faca! Tinha de ser nosso costume. Eu não sabia? Não sou homem de meio-dia com orvalhos, não tenho a fraca natureza.
Mas me venceu pena daquela Ana Duduza (p.53 compaixão).

 Tudo turbulindo (p.55).

 ...a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro (p.56).

 O amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joça Ramiro, eu
agora matava e morria, se bem (p.57).

 Olhei: aqueles esmerados olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma que até repassasse. Eu não sabia nadar. O
remador, um menino também, da laia da gente, foi remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por estar perto do
menino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a meu esmo (p.119/121).

 ...mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas.
Amor desse, cresce primeiro; brota é depois (p.155 A fatalidade do amor como em Édipo Rei).

 Então – o senhor perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. [...] Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o
senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita (p.163 o poder da vida, ou seja da pulsão que os atrai).

 “Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da gente... [...]  Você era menino, eu era menino... Atravessamos o
rio de canoa... Nos topamos naquele porto. Desde aquele dia é que somos amigos” (p.171 aceitação de um destino inevitável).

 Quem sabe direito o que uma pessoa é (p.251)?

 Dormi, no ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois
passos de mim, me vigiava [...]. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados
(p.269).

 Quem vence é custoso não ficar com cara de demônio (p.333).

 E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente
queria era – ficar sendo! (p.436 Necessidade de ser, de vir a ser. Ser lacunar que busca traçar a própria identidade. Como Édipo, vai de encontro ao
destino.)

 Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram (p.612 Como Orfeu,
Riobaldo não assimila a morte de Diadorim. O real é insuportável, inassimilável).

A linguagem labiríntica
 A narrativa, cheia de idas e vindas no tempo e no espaço, começa com travessão e termina com a palavra travessia. O começo é o fim, o fim
é o começo. Ou seja, como o sertão e o labirinto, ela não tem início nem fim. Mais velho, na varanda de sua fazenda, Riobaldo conta a sua vida - de forma
não linear, não cronológica - ao senhor que o escuta. E no confronto com o outro, a subjetividade do narrador tange o conhecimento de si mesmo. A
recordação leva Riobaldo ao fundo de si, ao dúbio conhecimento do que foi e do que se tornou, e à afirmação de sua identidade. “Falar com o estranho
assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da
gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?” (p.55).
.
No começo da narrativa, a ação do romance é pequena. O narrar é alegorizante, questionando a existência do diabo. A história se desenvolve por
fragmentos, por idas e vindas até o julgamento de Zé Bebelo. Após o jugamento, toma um fluxo mais linear, em termos, considerando a leitura de uma
obra que não é dividida em capítulos.

A linguagem é polissêmica, com grande variedade de sentidos. Há exploração de assonâncias:  barra-beiras-cabeceiras; das possibilidades e da
potencialidade da palavra:sussurruído, fechabrir, adormorrecer. “Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo” (Rosa: Ficção Completa,
p. 52). Rio-baldo  um rio que não chega ao seu destino. “Eu sei que isto que estou contando é muito dificultativo. Minto entrançado.”

O relato é um flash back em 1a pessoa (autobiográfico) sempre voltado para a ação consumada. Sempre questionando “Quem sou eu?” “Qual é o meu
destino?”

O narrador é narrador e narrado, sujeito e objeto de discurso: “Quem foi que foi o jagunço Riobaldo? O jagunço Riobaldo fui eu? Fui e não fui: não quero
ser. Deus esteja”.

O interlocutor, embora não apareça, mostra a sua presença através de perguntas subentenditas, pausas no diálogo: “Olhe... o senhor vê... explico ao
senhor...” “O senhor mire e veja...”

 Falo do que não sei (p.93). Conto o que não sei se sei (p.214).
 O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou
desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?Viver é negócio muito perigoso... (p.11).

 Eu quase que não sei. Mas desconfio de muita coisa. ...para pensar longe sou cão mestre – o senhor solte uma idéia ligeira, e eu rastreio essa
por fundo de todos os matos, amém (p.30)!

 Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Todos puxavam o mundo para si,
para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo (p.32).

 Lembro, deslembro (p.42).

 Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece (p.51).

 Devera, se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim (p.103)?

 O justo que era, aquilo estava certo. Mas, do outros modos,- que bem não sei – não estava. Assim, por curta idéia que eu queria dividir:
certo, no que Zé Bebelo tinha feito; mas errado no que Zé Bebelo era e não era. Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é
sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado (p.251).

O tempo labiríntico
O sertão tematiza o tempo, é uma figuração da temporalidade, pois, como o tempo, o sertão é infinito, do tamanho do mundo, não tem começo nem fim.

No romance, predomina o tempo do “eu” psicológico do personagem/narrador e há um desajuste calculado entre o tempo do que é narrado e a extensão
cronológica do acontecimento. Riobaldo debate consigo e com o tempo: “Tudo o que já foi é o começo do que vai ser” (eterno ser).

A metaforização do tempo em labirinto apresenta um novo enigma do que é o labirinto. A repetição da história dentro da própria história em narrativa
extensa, não dividida em capítulos, parece reiterar a idéia de labirinto: produz uma construção feita ao mesmo tempo de simetrias e assimetrias que nos
proporciona surpresas, já que a simetria ou a assimetria inesperadas, os acontecimentos muitas vezes separados pela distância temporal, sugerem a idéia
de eternidade, proporcionando ao leitor a sensação de estar sempre no meio do caminho, em constante travessia.

 Virá tempo em que não se usa mais matar gente (p.21).

 O senhor veio tarde. Tempos foram tempos mudaram (p.24).

 Moço: toda saudade é uma espécie de velhice (p.56).

        Era o Menino do Porto, já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me
separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora aquele Menino-Moço, eu
tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família (p.155).
 Se eu não tivesse passado por um lugar, uma mulher, a combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca mais, nesta vida, tinha
topado o Menino? – era o que eu pensava. [...] Sorte? O que Deus sabe, Deus sabe (p.158).

 O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu pudesse possível. Por certo que eu já estava crespo da confusão de todos.
Em desde aquele tempo eu achava que a vida gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser
como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava (p.228).
        Não escrevo, não falo! – para mim assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim... (p.559).
 Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi [...]. Fim que foi. Aqui a estória se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a
estória acaba. Resoluto saí de lá, em galope, doidável. [...] – aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente (p.561).

O labirinto e a escrita: construções da cultura humana


Citando Jorge Luis Borges, literatura se faz com palavras e se concretiza por intermédio da linguagem. Esta se converte em criadora de realidade: a
palavra se “torna uma espécie de força primigênia na qual se originam todos os seres e acontecimentos” (Cassier). Ou seja, o texto literário é uma
construção, uma realidade que se cria.

Nesse contexto, para entender Grande Sertão: Veredas em sua amplitude parece necessário por vezes abandonar a lógica e procurar por novos sentidos
criados pela estética inusitada da linguagem. O fato estético “reside em la inminencia de uma revelación que no se produce” (Borges), ou seja, a
revelação encontra-se no texto, mas não de forma óbvia. Assim, ciente da impossibilidade de a palavra abarcar o real, na elaboração do discurso narrativo
de Riobaldo, Guimarães Rosa, enquanto criador de uma linguagem, produz uma realidade estética inovadora como meio de atingir o seu objetivo de
trazer à tona os paradoxos da relação do homem com si mesmo e com o mundo.

A metaforização do sertão e do homem na forma labiríntica torna-se o processo de criação textual de Guimarães Rosa em GSV. Isto nos faz inferir que os
“enigmas” do labirinto textual estão revelados no próprio texto - signo de si mesmo-, onde foram criados novos sentidos que não existiriam se fosse
escrito de outra forma.

Ao ler Grandes Sertões: Veredas pressente-se que há sentidos que podem estar revelados em cada parte do texto. A forma labiríntica e enigmática de
Riobaldo narrar sua trajetória pelo sertão torna-se a própria forma do texto e ao mesmo tempo metáfora da procura dele por si mesmo. Supostamente,
esta composição labiríntica deveria ocultar um núcleo revelador. Supostamente no centro, de acesso difícil, estaria a chave para a decifração do universo
de Riobaldo, e, quem sabe, do universo humano. Só que através das idas e vindas do enredo, da inserção de outras histórias que se ramificam dentro da
narrativa, Guimarães Rosa brinca com a linguagem, criando novos núcleos e por conseguinte novas significações.
É na forma de Rosa tecer a sua escrita – “trançar no vazio” (p.377) - que se abrem as múltiplas possibilidades de interpretações. Na voz de Riobaldo, que
conta e reconta a sua trajetória, que vai e volta aos mesmos lugares em tempos diferentes, o homem-Riobaldo-leitor perdido no labirinto do tempo feito
de mudanças que são repetições contempla-se na eternidade, pois a trajetória, seja no tempo, no espaço ou na linguagem, nunca é a mesma, cada vez já
é outra. “Cada lugar é igual, mas é outro lugar” (Borges, A casa de Asterion).

Essa escritura labiríntica meticulosamente construída por Rosa está organizada em uma estrutura sintática que se reproduz e se desenvolve ao mesmo
tempo, formando novos significados. A construção sintática nada ortodoxa do texto - que a primeira vista parece utilizar-se de palavras desconexas e de
frases truncadas na voz de um homem rude – nos dá a impressão de ser simples e primitiva, e por isso limitadora (como uma edificação concreta), mas
revela-se justamente o contrário: é esta construção sintática tecida à moda do autor que possibilita a geração de novos e de múltiplos sentidos, pois -
como o homem e o mundo – ela oculta desorganização e lacunas, e revela paradoxos.

A idéia de desorganização, de lacunas e de paradoxos no texto de Guimarães Rosa decorre da tessitura da escrita, que não é capaz de abarcar a
completude da idéia, e, por isso, como o homem e o mundo, é sempre incompleta e lacunar. Ciente da incompletude do homem e da linguagem,
Guimarães Rosa usa e abusa da linguagem truncada, de lacunas e rupturas que causam estranhamento, questionamento, e, paradoxalmente, desvelam,
descortinam novas perspectivas de interpretações que podem revelar novas dimensões do “real”. Rosa tece um texto onde as múltiplas “revelações”
encontram-se em estado de latência - entre o texto e os sentidos que ele produz -, e, portanto, podem ou não serem desveladas, dependendo da relação
texto/leitor.

A partir da leitura de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa (escritor, médico, diplomata, poliglota), podemos inferir que a escrita, em contexto
mais amplo, é um instrumento de criação que o homem utiliza para gerar novos sentidos, novas possibilidades, e, portanto, carrega em si o poder de
transformação. Por conseguinte, o escritor é um construtor capaz de criar realidade e cultura, e João Guimarães Rosa um exímio exemplo dessa
possibilidade, pois legou na concretude de suas obras novas dimensões de Brasil, de fronteiras e de homem.

O escritor deve ser um alquimista.


Somente renovando a língua
é que se pode renovar o mundo
 (Rosa em entrevista ao jornalista alemão Günter Lorenz).
Referências Bibliográficas
BORGES, Jorge Luis. A Casa de Asterion.  in: O Aleph. Trad: Flávio José Cardozo, Rio de Janeiro: Globo. p.53-55.
FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São Paulo: Senac; Ateliê, 2004.
FANTINI, Marli. Aulas ministradas no curso de Guimarães Rosa, na graduação da Faculdade de Letras. UFMG:2005.
Internet: www.releituras.com/jlborges_labirinto.asp
JOSEF, Bella. O labirinto e a paródia como modelo do texto borgiano. in: América Hispânica, no. 7, ano V, jan/jun. SEPEHA, Faculdade de Letras, UFRJ,
1992. p.45-57.
RIOS, Maria da Graça. Apostila para a Oficina de Guimarães Rosa. UFMG, 2005.

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