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Tradução

Para Jay Mandel e Jill Bialosky,

com gratidão cósmica


Sumário

CONTAGEM REGRESSIVA

1. ELE É INTELIGENTE, MAS SUAS AVES SÃO TOSCAS

O Japão escolhe um astronauta


2. A VIDA NUMA CAIXA

A perigosa psicologia da solidão e do confinamento


3. LOUCURAS NAS ESTRELAS

O espaço pode causar alucinações?


4. VOCÊ PRIMEIRO

A perspectiva alarmante da vida sem gravidade


5. SEM AMARRAS

Gravidade zero a bordo do C-9 da Nasa


6. PARA LÁ, PARA CÁ, PARA... FORA!

O sofrimento secreto do astronauta


7. O CADÁVER NA CÁPSULA ESPACIAL

A Nasa visita o Laboratório de Testes de Colisão


8. UM PASSO PELUDO PARA A HUMANIDADE

As estranhas carreiras de Ham e Enos


9. POSTO MAIS PRÓXIMO: 320 MIL QUILÔMETROS

É mais fácil planejar expedições reais

à Lua do que expedições simuladas


10. HOUSTON, TEMOS UM FUNGO

Higiene no espaço e os homens que pararam

de tomar banho em nome da ciência


11. OS ELEITOS NA HORIZONTAL

Como seria nunca sair da cama?


12. O CLUBE DOS TRÊS GOLFINHOS

Acasalamento em ausência de gravidade


13. VENTANIAS E VERTIGENS

Como se ejetar no espaço


14. A ANGÚSTIA DA SEPARAÇÃO

A saga permanente da excreção em gravidade zero


15. DESGULOSEIMAS

O que acontece quando veterinários pilotam o fogão e

outros casos trágicos de testes da culinária aeroespacial


16. ROUPA SUJA PARA O JANTAR

Marte vale a pena?


AGRADECIMENTOS

LINHA DO TEMPO

BIBLIOGRAFIA
CONTAGEM REGRESSIVA

Para o engenheiro astronáutico, você é um problema. É o componente


mecânico mais irritante com o qual ele tem de lidar. Você e seu
metabolismo instável, sua memória insignificante, seu corpo capaz de
apresentar 1 milhão de configurações diferentes. Você é imprevisível. É
inconstante. Leva semanas para ser ajustado. O engenheiro tem de se
preocupar com a água, o oxigênio e a comida de que você vai precisar no
espaço, além do combustível adicional necessário para pôr em órbita seu
coquetel de camarão e seus tacos de carne irradiados. Uma célula solar ou a
tubeira de um propulsor é estável e não é nada exigente. Não excreta, não
entra em pânico nem se apaixona pelo comandante da missão. Não tem um
ego. Seus elementos estruturais não começam a quebrar na ausência da
gravidade e funcionam perfeitamente sem dormir.
Para mim, você é o melhor componente da astronáutica. O ser humano é
a máquina que torna todo esse esforço infinitamente fascinante. Pegar um
organismo com mil características que se desenvolveram com a finalidade
de mantê-lo vivo e saudável num mundo com oxigênio, gravidade e água e
colocá-lo na aridez do espaço durante um mês ou um ano é uma ideia
absurda, mas fantástica. Tudo o que consideramos corriqueiro na Terra tem
de ser reconsiderado, reaprendido, ensaiado — homens e mulheres adultos
aprendem de novo a usar uma privada, um chimpanzé é vestido num traje
espacial e posto em órbita. Todo um estranho universo de espaço sideral de
mentira surgiu aqui na Terra. Cápsulas que nunca são lançadas ao espaço;
instalações hospitalares onde pessoas com boa saúde passam meses deitadas
de costas, fingindo estar submetidas à gravidade zero; laboratórios de
desastres que fazem cadáveres caírem na Terra em amerrissagens
simuladas.
Há alguns anos, um amigo meu da Nasa estava trabalhando num projeto
qualquer no Edifício 9, no Centro Espacial Johnson. Esse é o edifício onde
ficam as maquetes em tamanho natural, ao todo umas cinquenta: cabines
pressurizadas, módulos, escotilhas, cápsulas. Fazia dias que René vinha
escutando um chiado forte, intermitente. Por fim, foi investigar o que era.
“Um pobre coitado, metido num traje espacial, correndo numa esteira
mecânica presa a uma geringonça que simulava a gravidade de Marte. Em
volta dele havia gente com pranchetas, cronômetros, fones de ouvido e
olhares apreensivos.” Ao ler esse e-mail, pensei que era possível, de certa
forma, ir ao espaço sem sair da Terra. Ou, pelo menos, conhecer uma versão
simulada do espaço, farsesca e surreal. Foi nesse mundo que passei, mais ou
menos, os últimos dois anos.

Entre os milhões de páginas de documentos e relatórios gerados pelo


primeiro desembarque do homem na Lua, nenhum é mais revelador, ao
menos para mim, do que um relato de onze páginas submetido ao 26o
encontro anual da Associação Vexilológica da América do Norte. A
vexilologia é o estudo das bandeiras, e não tem nada a ver com fatos
vexatórios, muito embora, nesse caso, a gente fique em dúvida. O
documento intitula-se “Onde bandeira alguma esteve antes: aspectos
políticos e técnicos do hasteamento de uma bandeira na Lua”.
Tudo começou com reuniões cinco meses antes do lançamento da Apollo
11. O recém-formado Comitê de Atividades Simbólicas para o Primeiro
Pouso Lunar reuniu-se para debater a conveniência de um astronauta plantar
uma bandeira na Lua. O Tratado do Espaço Exterior, de que os Estados
Unidos são signatários, proíbe que qualquer país reivindique soberania
sobre corpos celestes. Poderia a Nasa fincar uma bandeira americana no
satélite natural da Terra sem dar a impressão de estar, como disse um
membro do comitê, “tomando posse da Lua”? A ideia de utilizar um
conjunto de pequenas bandeiras de todas as nações foi considerada e
rejeitada, por ser telegenicamente fraca. A bandeira deveria tremular.
Mas isso não aconteceria sem a ajuda da Divisão de Serviços Técnicos da
Nasa. Uma bandeira não tremula sem vento. Como a Lua não tem
atmosfera, também não tem vento. E sua fraca gravidade — equivalente à
sexta parte da gravidade terrestre — reduz qualquer bandeira a um pano
murcho e inglório. Para evitar que isso acontecesse, fez-se uma bainha ao
longo da parte superior da bandeira e por ela foi passada uma barra que
seria presa ao mastro. Assim, a bandeira americana daria a impressão de
estar adejando num vento forte — de uma maneira bastante convincente
para alimentar décadas de falatório sobre o “embuste do pouso lunar” —,
embora na verdade estivesse pendurada, sendo menos uma bandeira do que
uma cortininha patriótica.
Os desafios não pararam aí. Como acomodar um mastro de bandeira no
espaço já abarrotado de um Módulo Lunar? Os engenheiros receberam
instruções para projetar um mastro e uma barra transversal retráteis. Mesmo
assim, não havia espaço. A Unidade da Bandeira Lunar — como,
inevitavelmente, o conjunto formado por bandeira, mastro e barra
transversal foi batizado — teria de ser montada fora do Módulo Lunar. Mas
isso significava que o conjunto teria de suportar o calor de mais de 1000 °C
gerado pelo motor de pouso. Fizeram-se testes. A bandeira derreteu a 150
°C. Convocada, a Divisão de Estruturas e Mecânica produziu um invólucro
feito com camadas de alumínio, aço e isolamento Thermoflex.
Quando enfim as coisas começavam a parecer resolvidas, alguém
lembrou que, por causa dos trajes pressurizados, os astronautas teriam
limitações preênseis e de movimentos. Seriam capazes de retirar o conjunto
da bandeira de seu estojo com isolamento térmico? Ou passariam pelo
vexame de fazer esforços inúteis diante de milhões de telespectadores?
Teriam condições de estender os segmentos retráteis? Só havia uma maneira
de saber. Fabricaram-se protótipos e a tripulação se reuniu para uma série
de simulações de instalação do conjunto.
Finalmente, chegou o grande dia. Uma vez embalada (um procedimento
de quatro etapas, supervisionado pelo chefe de garantia de qualidade) e
instalada no Módulo Lunar (onze etapas), a bandeira partiu para a Lua —
onde a barra transversal retrátil não se estendeu inteiramente e o solo era tão
duro que Neil Armstrong não conseguiu fincar o mastro mais do que quinze
ou vinte centímetros no terreno, provocando conjecturas de que,
provavelmente, o mastro teria sido derrubado, na decolagem, pelo propulsor
do Estágio de Ascensão do Módulo Lunar.
Bem-vindos ao espaço. Ninguém verá aqui o que é mostrado na
televisão, os triunfos ou os desastres marcantes, e sim o que acontece nos
intervalos entre eles — as pequenas comédias e as vitórias do dia a dia. O
que considero fascinante na exploração espacial não são os atos de
heroísmo e os lances de ousadia, mas as lutas humaníssimas e às vezes
absurdas que há por trás deles. Como o caso do astronauta do Projeto
Apollo que teve medo de fazer os Estados Unidos perderem a corrida à Lua
por vomitar na manhã de sua caminhada espacial, o que levou a Nasa a
considerar a possibilidade de um adiamento. Ou o do primeiro homem a ir
ao espaço, Yuri Gagarin, que, enquanto seguia pelo tapete vermelho diante
do Presidium do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética e
de uma multidão entusiasmada de milhares de pessoas, notou que o cordão
do sapato estava desamarrado e não conseguiu mais pensar em outra coisa.
No fim do Projeto Apollo, os astronautas foram entrevistados para opinar
sobre vários assuntos. Uma das perguntas: se um astronauta morresse do
lado de fora da nave durante uma caminhada espacial, o que você faria?
“Cortaria o cabo que o prende à nave”, dizia uma das respostas. Todos
concordaram. Uma tentativa de recuperar o corpo poderia ameaçar a vida
dos outros tripulantes. Só uma pessoa que conhece por experiência própria a
luta que é entrar numa cápsula espacial vestindo um traje pressurizado
poderia pronunciar essas palavras com tanta segurança. Só alguém que
vagou, solto, no domínio ilimitado do universo pode entender que o
sepultamento do astronauta no espaço, como o do marinheiro no mar, não
implica desrespeito, mas honra. Em órbita, tudo vira de cabeça para baixo.
Estrelas cadentes correm embaixo de você, o Sol nasce no meio da noite. A
exploração do espaço é, em certo sentido, uma exploração do que significa
ser humano. Até que ponto uma pessoa pode abrir mão da normalidade?
Durante quanto tempo? E o que isso lhe causa?
No início de minha pesquisa, eu soube de um momento — o
quadragésimo minuto de um total de 88 horas da missão Gemini VII — que
para mim sintetiza o que é ser astronauta e explica por que a exploração do
espaço me fascina. O astronauta Jim Lovell está falando ao Controle de
Missão a respeito de uma imagem que ele capturou em filme — “uma foto
bonita da Lua cheia contra o céu escuro e as formações de nuvens da Terra
lá embaixo”, lê-se na transcrição da missão. Depois de um momento de
silêncio, Frank Borman, companheiro de Lovell, aperta o botão de
comunicação. “Borman fazendo o despejo de urina. Urina [em] mais ou
menos um minuto.”
Duas linhas abaixo, vemos Lovell dizendo: “Que beleza!”. Não sabemos
a que ele está se referindo, mas há uma boa chance de não ser à Lua. De
acordo com as lembranças de mais de um astronauta, uma das mais belas
visões que se tem no espaço é a de um turbilhão de gotículas de líquidos
congelados, iluminados pelo Sol. O espaço não apenas aproxima o sublime
e o ridículo. Ele também apaga a linha que os separa.
1. ELE É INTELIGENTE, MAS SUAS

AVES SÃO TOSCAS

O Japão escolhe um astronauta

Primeiro descalço os sapatos, como faria ao entrar em qualquer casa


japonesa. Recebo um par de pantufas especiais de vinil azul-claro, usadas
em câmaras de isolamento, com o logotipo da Agência de Exploração
Aeroespacial do Japão, as letras Jaxa inclinadas para a frente, como se
voassem pelo espaço a uma velocidade espantosa. A câmara de isolamento,
uma construção separada dentro do edifício C-5 na sede da Jaxa na Cidade
da Ciência de Tsukuba, na verdade é uma espécie de lar, durante uma
semana, para os dez finalistas que competem por duas vagas no grupo de
astronautas do Japão. Quando estive nesse lugar, um mês antes, não havia
muito o que ver — um quarto com “caixas de dormir”, separadas por
cortinas, e o cômodo comum adjacente, com uma longa mesa de jantar e
cadeiras. Agora o lugar continua do mesmo jeito, mas há candidatos — que
estão ali para serem vistos. Cinco câmeras de TV em circuito fechado,
instaladas perto do teto, permitem que psiquiatras, psicólogos e dirigentes
da Jaxa os observem. Seu comportamento e as impressões que passarem
serão determinantes para a escolha dos dois que usarão trajes espaciais com
o logotipo da Jaxa, e não pantufas.
O objetivo é conhecer melhor esses homens e mulheres e avaliar sua
aptidão para a vida no espaço. Uma pessoa inteligente e muito motivada é
capaz de dissimular facetas indesejáveis de sua personalidade durante uma
entrevista ou ao preencher um questionárioa — testes já tinham eliminado
candidatos com transtornos claros —, mas é mais difícil escondê-las ao
longo de uma semana de atenta observação. Nas palavras de Natsuhiko
Inoue, psicólogo da Jaxa, “é difícil ser perfeito o tempo todo”. As câmaras
de isolamento são também uma forma de avaliar coisas como trabalho em
equipe, liderança e gestão de conflitos — qualificações impossíveis de
apreciar numa entrevista face a face. (A Nasa não utiliza câmaras de
isolamento.)
A sala de observação fica no andar de cima, sobre a câmara. É quarta-
feira, terceiro dia do isolamento de uma semana. Uma fileira de monitores
de TV em circuito fechado alinha-se diante dos observadores, sentados em
mesas longas com blocos de anotações e xícaras de chá. Nesse momento,
três psiquiatras e psicólogos da universidade fitam com atenção os
monitores. Um deles, inexplicavelmente, transmite um programa de
entrevistas.
Inoue está diante da mesa de controle, cheia de botões de zoom e de
volume. Sobre sua cabeça estende-se uma segunda fileira de pequenos
monitores de TV. Aos quarenta anos, Inoue tem uma carreira bem-sucedida
e é muito respeitado no campo da psicologia espacial. Mas alguma coisa em
sua aparência e seu comportamento faz com que a gente tenha vontade de
beliscar sua bochecha. Como muitos homens aqui, ele usa meias e chinelos
abertos na ponta. Para mim, que sou americana e possuo grandes lacunas
acerca da etiqueta japonesa com relação a chinelos, esse comportamento me
leva a crer que a Jaxa é para Inoue uma espécie de segundo lar. Durante
essa semana, pelo menos, isso é mais do que compreensível. Sua jornada de
trabalho começa às seis da manhã e só termina após as dez da noite.
Num monitor, vê-se um dos candidatos retirando um envelope de 23 × 28
centímetros de uma pilha dentro de uma caixa de papelão. Cada envelope
está marcado com uma etiqueta que identifica os candidatos — de A a J —
e contém uma folha de instruções e um pacote quadrado embrulhado em
papel celofane. Inoue diz que os materiais se destinam a um teste de
paciência e precisão sob pressão. Os candidatos abrem os pacotes e tiram
dali quadrados de papel colorido. “O teste exige... Desculpe, mas não sei
como se diz isso em inglês. Um artesanato feito com papel.”
“Origami?”
“Isso, origami!” Antes, naquele mesmo dia, eu tinha usado a cabine para
deficientes físicos no banheiro do corredor. Havia na parede uma confusa
série de alavancas, botões e correntinhas. Parecia a cabine de comando das
lançadeiras reutilizáveis, os chamados “ônibus espaciais”. Puxei uma
correntinha, querendo dar descarga, e com isso disparei o alarme de
emergência para chamar a enfermeira. Agora, diante das palavras de Inoue,
faço essa cara de novo — minha cara de espanto. Durante uma hora e meia,
os homens e as mulheres que competem para ser os próximos astronautas
do Japão, heróis para seus conterrâneos, estarão ocupados em fazer
cegonhas de papel.
“Mil cegonhas.” O chefe de serviços médicos da Jaxa, Shoichi
Tachibana, se apresenta. Estava parado, em silêncio, atrás de nós. Foi ele
quem propôs o teste. Segundo uma tradição japonesa, quem dobrar mil
cegonhas terá saúde e longevidade. (A dádiva, ao que parece, é transferível.
As cegonhas, enfiadas em cordões, são normalmente dadas a pacientes de
hospitais.) Mais tarde, Tachibana colocará uma cegonha amarela perfeita,
do tamanho de um gafanhoto, na mesa diante da qual estou sentada. Um
dinossaurozinho vai aparecer no braço do sofá no canto. Ele lembra um
daqueles vilões de filmes de terror que se esgueira para dentro da casa do
herói e deixa ali um pequenino animal de origami, como um sinistro cartão
de visitas, só para que se saiba que ele esteve ali. Ou então ele gosta de
origamis.
Os candidatos têm até domingo para terminar as cegonhas. Sobre a mesa
se espalham quadrados de papel de cores vibrantes, acentuadas pela aridez
do cômodo. Além da arquitetura nada imaginativa e dos foguetes
espalhados em vários ângulos pelos terrenos, a Jaxa conseguiu imitar
direitinho o verde-cinza absolutamente anódino que muitas vezes se vê nas
paredes internas dos prédios da Nasa. É uma cor que nunca vi em outro
lugar, nem mesmo em mostruários de tintas, mas ali está ela.
A genialidade do teste das Mil Cegonhas está em criar um registro
cronológico do trabalho de cada candidato. À medida que completam suas
cegonhas, os candidatos as enfiam num longo fio. No fim do período de
isolamento, a fieira de cegonhas de cada um deles é recolhida e analisada. É
um origami de peritagem: será que, à proporção que o prazo se aproxima do
fim e a pressão aumenta, as dobraduras dos candidatos se tornam
desleixadas? Como são as dez primeiras cegonhas se comparadas às dez
últimas? “A deterioração na qualidade de execução é sinal claro de
impaciência em condições de estresse”, diz Inoue.
Eu soube que 90% do trabalho em uma missão típica na Estação Espacial
Internacional (ISS, na sigla em inglês) são dedicados a montar, consertar e
manter a própria estação. É um trabalho de rotina, e grande parte dele é
feito por astronautas que usam trajes espaciais e têm um suprimento de
oxigênio limitado — um relógio em marcha. O astronauta Lee Morin
descreveu seu papel na instalação da seção central da treliça da ISS, a
espinha dorsal à qual estão fixados vários módulos de laboratório. “Ela é
presa com trinta parafusos. Eu apertei pessoalmente doze deles.” (“Ou seja,
são dois anos de formação para cada parafuso”, ele não resistiu à tentação
de acrescentar.) No laboratório de sistemas de trajes espaciais no Centro
Espacial Johnson há uma caixa de luvas, dessas que são usadas para
manipular materiais sensíveis ao ar ou à água, ou que exijam uma atmosfera
especial. Essa caixa imita o vácuo do espaço e infla um par de luvas
pressurizadas. No interior da caixa fica um dos mosquetões resistentes que
prendem os astronautas e suas ferramentas à estação espacial durante
atividades extraveiculares (EVA, na sigla em inglês). Prender um cabo a esse
mosquetão é como tentar distribuir cartas de baralho com luvas térmicas. O
simples ato de fechar o punho cansa a mão em minutos. O astronauta não
pode ser alguém que se frustra com facilidade e que dá por executado um
trabalho que ficou menos que perfeito.
Passa-se uma hora. Um dos psiquiatras parou de observar os candidatos e
está atento ao programa de entrevistas. Um jovem ator responde a perguntas
sobre seu casamento e o tipo de pai que almeja ser. Os candidatos estão
debruçados sobre a mesa, trabalhando em silêncio. O candidato A,
ortopedista e praticante de aiquidô, está na frente, com catorze cegonhas. A
maior parte dos demais fez sete ou oito. As instruções têm duas páginas de
extensão. Sayuri, minha intérprete, está dobrando um pedaço de papel de
caderno. Está na etapa 21, na qual o corpo da cegonha é inflado. As
instruções mostram uma minúscula lufada de ar ao lado de uma seta que
aponta para a ave. Isso só faz sentido se você já souber o que fazer. De outra
forma, é uma instrução de delicioso surrealismo: Ponha uma nuvem dentro
de uma ave.

É difícil, para não dizer engraçado, imaginar John Glenn ou Alan


Shepard aplicando seus talentos à arte secular de dobrar papel. Os primeiros
astronautas americanos foram selecionados por sua coragem e carisma. Os
sete astronautas do Projeto Mercury necessariamente eram ou tinham sido
pilotos de testes, homens cujo trabalho cotidiano envolvia quebrar recordes
de altitude e a barreira do som, ao mesmo tempo que quase desmaiavam e
sofriam acidentes com caças a jato ultravelozes. Até o voo da Apollo 11,
todas as missões assinalaram uma efeméride importante para a Nasa: a
primeira viagem tripulada ao espaço, a primeira órbita, a primeira
caminhada espacial, a primeira manobra de acoplamento de duas naves, a
primeira alunissagem. Faziam-se, regularmente, coisas do arco-da-velha.
A cada missão, a exploração espacial se tornava um pouco mais rotineira
— ao ponto de, ainda que pareça mentira, os astronautas se entediarem.
“Uma coisa engraçada aconteceu a caminho da Lua: quase nada”, escreveu
Gene Cernan, astronauta da Apollo 17. “Eu devia ter trazido umas palavras
cruzadas.” O fim do Projeto Apollo marcou a mudança da exploração para a
experimentação. Os astronautas não passavam dos limites da atmosfera
terrestre para montar laboratórios científicos em órbita — o Skylab, o
Spacelab, a Mir, a Estação Espacial Internacional. Executavam experiências
relativas à gravidade zero, lançavam satélites de comunicação e do
Departamento de Defesa, instalavam novas privadas. “A vida na Mir era
basicamente rotineira”, disse o astronauta Norm Thagard à Quest, revista de
história da astronáutica. “O enfado era meu problema mais comum.” Mike
Mullane resumiu sua primeira missão no ônibus espacial Discovery como
“apertar uns comutadores para lançar satélites de comunicação”. Algumas
missões ainda constituem efemérides, e a Nasa as divulga com orgulho, mas
elas já não rendem manchetes. A lista de pontos altos da missão STS-110,
por exemplo, incluiu “a primeira vez em que todas as caminhadas espaciais
da tripulação de um ônibus espacial foram feitas pela Escotilha Quest da
estação”. Um dos atributos recomendados pelo Grupo de Trabalho Interno
da Nasa sobre Seleção Psiquiátrica e Psicológica de Astronautas num
documento da era dos ônibus espaciais é a “capacidade de tolerar o tédio e
baixos níveis de estímulo”.
Hoje em dia há duas categorias de astronautas. (Ou três, se contarmos o
especialista em carga morta, categoria em que se enquadram professores,
senadores que pegam carona em missões à custa do dinheiro públicob e
príncipes sauditas festeiros.) Os astronautas pilotos são os que comandam
as missões. Os astronautas especialistas de missão realizam experiências
científicas, fazem reparos, lançam satélites. Ainda são os melhores e os
mais inteligentes, mas não necessariamente os mais ousados. São médicos,
biólogos, engenheiros. Hoje em dia, os astronautas podem ser tanto nerds
quanto heróis. (Até agora a Nasa tem classificado os astronautas da Jaxa
enviados à ISS como especialistas de missão. A ISS tem um módulo de
laboratório construído pela Jaxa, chamado Kibo.) A parte mais estressante
da vida de um astronauta, disse-me Tachibana, não é seu treinamento — é
não saber se e quando vai ser indicado para uma missão.
Quando conversei com um astronauta pela primeira vez, não sabia dessa
cisão entre piloto e especialista de missão. Imaginava os astronautas, todos
eles, como apareciam nas filmagens do Projeto Apollo: ícones com o rosto
oculto por um visor dourado, saltando como antílopes na fraca gravidade da
Lua. Esse astronauta era Lee Morin, Especialista de Missão. Morin é um
homem corpulento e de fala mansa. Ao andar, um de seus pés vira-se
ligeiramente para dentro. No dia em que nos conhecemos, ele vestia uma
calça de sarja cáqui. Havia veleiros e flores de hibisco em sua camisa.
Contou-me como ajudara a testar o lubrificante usado num tobogã de
evacuação na plataforma de lançamento do ônibus espacial. “Fizeram a
gente se curvar e esfregaram aquilo em nossos traseiros. E aí pulamos no
tobogã. E o lubrificante foi aprovado, de modo que [a missão do ônibus]
pôde ser realizada, e a estação espacial, construída. Fiquei orgulhoso”, disse
ele, na maior cara de pau, “com a minha participação na missão.”
Enquanto Morin ia embora, lembro-me de ficar olhando para ele,
observando seus passos meigos e o traseiro lubrificado em benefício da
ciência, e pensar: “Meu Deus, eles são gente como a gente”.
Numa medida considerável, as verbas destinadas à Nasa têm dependido
de idealizações. As imagens criadas durante os projetos Mercury e Apollo
praticamente não mudaram. Nas fotos 18 × 24 distribuídas pela Nasa,
muitos astronautas ainda aparecem com trajes espaciais, ainda seguram o
capacete junto ao corpo, como se a qualquer momento o estúdio fotográfico
do Centro Espacial Johnson pudesse se despressurizar. Na realidade, talvez
só 1% da carreira de um astronauta transcorra no espaço, e durante apenas
1% desse tempo ele usa um traje pressurizado. Morin estava disponível
naquele dia porque, como integrante do Grupo de Trabalho da Cabine de
Comando da cápsula espacial Orion, ajudava a determinar as linhas de visão
e a localização ideal da tela do computador. Entre uma missão e outra, os
astronautas passam os dias em reuniões e em comitês, falando em escolas e
em jantares do Rotary, avaliando programas e equipamentos de informática,
trabalhando no Controle de Missão ou, como eles dizem, pilotando uma
mesa.
Não que a coragem tenha sido inteiramente posta de lado. As qualidades
recomendadas para um astronauta incluem também “capacidade de atuação
diante de catástrofe iminente”. Se alguma coisa dá errado, é preciso que
todos mantenham a cabeça no lugar. Algumas comissões de seleção —
como a da Agência Espacial Canadense, por exemplo — parecem dar mais
ênfase a aptidões para lidar com desastres. Em 2009, os melhores
momentos dos testes para seleção de astronautas iam sendo postados, dia a
dia, na página inicial do site da AEC. Era um reality show. Os candidatos
foram enviados a um centro de treinamento de controle de sinistros, onde
aprendiam a escapar de incêndios em cápsulas espaciais e de helicópteros
que afundavam. Saltavam de alturas aterrorizantes, em pé, dentro de
tanques de mergulho, enquanto máquinas criavam ondas de um metro e
meio. Uma trilha sonora percussiva, típica de filmes de ação, incrementava
o drama. (É possível que as cenas mostradas se destinassem mais a atrair a
cobertura da mídia do que a escolher os próximos astronautas canadenses.)
Em certo momento, perguntei a Tachibana se ele pretendia fazer alguma
surpresa aos candidatos, para ver como se portavam sob a tensão de uma
emergência súbita. Ele disse que havia pensado em desativar a privada da
câmara de isolamento. Mais uma vez, não foi a resposta que eu estava
esperando, mas, a seu modo, era genial. Os vídeos canadenses talvez não
ficassem tão bons sem uma trilha sonora de timbales (ou talvez ficassem,
sei lá), mas a situação imaginada por Tachibana era mais apropriada. Uma
privada com defeito é mais representativa dos desafios que surgem durante
as viagens espaciais, e também pode ser bastante estressante (como
veremos no capítulo 14).
“Ontem, antes que a senhora chegasse”, acrescentou Tachibana,
“adiamos o almoço por uma hora.” Insignificâncias podem revelar
enormidades. Sem saber que um almoço tardio ou uma privada defeituosa
fazem parte do teste, os candidatos se comportam de forma mais coerente
com sua personalidade. Ao começar a escrever este livro, inscrevi-me como
candidata numa simulação de viagem a Marte. Passei pela primeira rodada
eliminatória, e me disseram que alguém da Agência Espacial Europeia me
ligaria, ainda naquele mês, para uma entrevista por telefone. O telefone
tocou às 4h30, e não procurei esconder minha irritação. Passado um tempo,
me dei conta de que aquilo provavelmente havia sido um teste, e de que eu
fora reprovada.
A Nasa utiliza táticas semelhantes. Ligam para um candidato e dizem que
precisam refazer alguns testes referentes a sua forma física e que só podem
marcá-los para o dia seguinte. “Na verdade, estão dizendo o seguinte:
‘Vamos ver se ele abandona tudo para fazer parte de nossa equipe’, é isso”,
diz o geólogo planetário Ralph Harvey, cujo programa Procura de
Meteoritos na Antártica (ANSMET, na sigla em inglês) vez por outra solicita à
Nasa um astronauta. (A Antártica é um ótimo sucedâneo do espaço, e as
pessoas que toleram bem a vida ali são vistas como bem preparadas,
psicologicamente, para a solidão e o confinamento das viagens espaciais.)
Há pouco tempo, Harvey recebeu um telefonema a respeito de um desses
candidatos. “Eles disseram: ‘Amanhã ele vai pilotar um T-38 pela primeira
vez. Seria bom que você o acompanhasse para observá-lo e nos dissesse
como ele se saiu’. Eu respondi: ‘Perfeitamente’. Mas eu sabia que isso não
iria acontecer. O que estavam fazendo era avaliar meu nível de confiança no
sujeito.”
Outra razão para que se avalie o modo como candidatos a astronauta
lidam com o estresse é que as opções para limitá-lo a bordo de uma nave
espacial são poucas. “Por exemplo, ir às compras”, diz Tachibana. “Isso é
uma coisa que não se pode fazer.” Ou beber. “Ou tomar um banho longo”,
acrescenta Kumiko Tanabe, assessora de imprensa e porta-voz da Jaxa,
cargo que, desconfio, a leva a tomar muitos banhos longos.

O almoço chegou, e os dez candidatos se levantam para abrir os


recipientes e arrumar os pratos. Sentam-se de novo, mas ninguém pega os
pauzinhos. Vê-se que agem assim por estratégia. Dar a primeira mordida
pode demonstrar liderança ou indicar impaciência e hedonismo. O
candidato A, o médico, se sai com o que parece a solução ideal. “Bon
appétit”, diz ao grupo. Pega os pauzinhos, como fazem também os demais,
mas a seguir espera que outra pessoa leve a comida à boca. Esperto, o A. Eu
apostaria nele.
Outra coisa mudou desde o auge da exploração espacial. As tripulações a
bordo dos ônibus espaciais e dos laboratórios científicos em órbita são duas
ou três vezes maiores que a tripulação das cápsulas Mercury, Gemini e
Apollo, e as missões duram semanas ou meses, e não dias. Isso faz com que
“os eleitos” da era Mercury sejam hoje “os rejeitados”. Os astronautas têm
de ser pessoas que se relacionam bem com as outras. A lista da Nasa de
atributos essenciais para os astronautas inclui a capacidade de criar
relacionamentos com sensibilidade, respeito e empatia. Adaptabilidade,
flexibilidade, justeza. Senso de humor. Capacidade de formar
relacionamentos interpessoais estáveis e de boa qualidade. A agência
espacial de hoje não quer coragem e orgulho. Deseja o Richard Gere de
Noites de tormenta. A “positividade” tem de ser “apropriada” e a “audácia”
tem de ser “saudável”. As qualidades valorizadas não são mais ousadia,
agressividade e virilidade. Ou “narcisismo, arrogância e insensibilidade
interpessoal”, como definiu Patricia Santy, a primeira psiquiatra da Nasa, em
A escolha dos eleitos. “Quem gostaria de trabalhar com uma pessoa
assim?”, pergunta ela.
Numa generalização bastante exagerada, os japoneses são pessoas muito
indicadas para trabalhar numa estação espacial. Estão acostumados a
espaços exíguos e a pouca privacidade. São mais leves e compactos do que
os americanos médios. E o mais importante, talvez: são criados para ser
corteses e controlar as emoções. Minha intérprete, Sayuri, uma mulher tão
gentil que limpa o batom da beira da xícara de chá antes de entregá-la aos
lavadores de pratos da lanchonete da Jaxa, me contou que seus pais lhe
diziam: “Não faça ondas na superfície lisa da lagoa”. Ser astronauta,
observou ela, é “um prolongamento da vida cotidiana”. “Eles são excelentes
astronautas”, concordou Roger Crouch, tripulante do ônibus espacial com
quem troquei e-mails durante minha estada no Japão.
Expus minha teoria a Tachibana. Tínhamos descido ao saguão para
conversar. Sentamos em sofás baixos dispostos sob retratos dos astronautas
da Jaxa. “O que a senhora está dizendo é verdade”, disse ele, levantando e
baixando os calcanhares. (O chefe dele tinha me dito, quando fui visitá-lo
naquele mesmo ano, que esse tipo de movimento era um sinal vermelho nas
entrevistas para seleção de candidatos, juntamente com a tendência a evitar
o contato visual. Durante o resto da conversa, o chefe de Tachibana e eu
ficamos nos olhando continuamente, de cada lado da mesa, ambos nos
recusando a desviar o olhar.) “Nós, japoneses, costumamos reprimir as
emoções e tentamos cooperar, tentamos nos adaptar, em excesso. Tenho a
impressão de que alguns de nossos astronautas se comportam bem demais.”
Reprimir os sentimentos com muita intensidade e por muito tempo cobra
um preço. A pessoa explode ou implode. “A maioria dos japoneses se
deprime, em vez de explodir”, diz Tachibana. Por sorte, acrescenta, os
astronautas da Jaxa fazem treinamento com astronautas da Nasa durante
vários anos, e durante esse tempo “tornam-se mais agressivos e mais
parecidos com os americanos”.
No teste anterior na câmara de isolamento, um candidato foi eliminado
por manifestar excessiva irritação, e outro por ser incapaz de expressar sua
irritação e fingir, passivamente, nada sentir. Tachibana e Inoue procuram
candidatos que consigam mostrar um equilíbrio nesse sentido. A astronauta
Peggy Whitson, da Nasa, parece-me um bom exemplo. Recentemente, na
Nasa TV, ouvi um homem lhe dizer que não conseguia achar uma série de
fotografias que ela ou outro membro de sua equipe tinha tirado havia pouco
tempo. Se eu tivesse passado a manhã tirando fotografias e elas fossem
perdidas pela pessoa que as pediu, eu responderia: “Procure de novo,
trapalhão”. Mas Peggy disse, sem sombra de irritação: “Não esquenta.
Podemos tirar as fotos de novo”.
Algo mais a evitar se você quer se tornar astronauta?
Roncar, responde Tachibana. Se o ronco for alto demais, a pessoa pode
ser eliminada do processo de seleção. “O ronco dela não deixa os outros
dormirem.”
De acordo com o Yangtse Evening Post, os testes médicos para seleção
de astronautas chineses excluem também candidatos com mau hálito. Não
porque isso indique a possibilidade de gengivite ou periodontite, mas
porque, nas palavras de Shi Bing Bing, da equipe de seleção, “o mau cheiro
afetaria seus colegas de trabalho num espaço limitado”.
Termina o almoço, e dois — logo três, quatro, cinco! — candidatos estão
limpando o tampo da mesa. A cena me lembra quando mando lavar meu
carro e um pequeno batalhão de empregados com materiais de secagem
avança sobre o veículo assim que ele sai da ducha. Mas ninguém precisa
limpar os pratos. As instruções orientam os candidatos a pôr os pratos sujos
e os talheres de volta no recipiente de plástico marcado com sua letra de
identificação, e em seguida introduzi-lo na “câmara pressurizada”. O que os
candidatos não sabem é que os pratos sujos são então postos num carrinho e
levados para ser fotografados. As fotos serão passadas a psiquiatras e
psicólogos, juntamente com as cegonhas de papel. Eu tinha visto as fotos
tiradas após o jantar da véspera. O assistente do fotógrafo abre cada
recipiente e segura um cartão com a letra do candidato e a data na parte
inferior do enquadramento, como se o prato tivesse sido recolhido no local
de um crime e estivesse sendo fotografado pela perícia.
Inoue foi vago com relação ao objetivo disso. Para ver o que comeram,
disse. Pode ser que não seja importante, mas C, uma moça, não comeu a
pele do frango, e G, um rapaz, separou a alga em sua sopa de missô. E, outro
rapaz, deixou metade da sopa e todos os picles. A, o candidato em que eu
apostaria, comeu tudo e colocou o prato de volta no recipiente exatamente
na mesma posição em que ele tinha chegado.
“Veja G-san”, disse o fotógrafo, em tom de desaprovação. (“San” é uma
forma de tratamento respeitosa, correspondente a “senhor” ou “senhora”.)
Levantou o pratinho de picles que G tinha posto sobre o prato de jantar.
“Está escondendo a pele.”
Não sei ao certo se entendo por que é importante que os astronautas
comam tudo que lhes é oferecido e empilhem os pratos sujos.
Evidentemente, manter a ordem é importante num espaço apertado, mas
acho que se trata de outra coisa. Se eu mostrasse a um estranho a lista das
atividades que estive observando esses dias e lhe pedisse para adivinhar
onde estive, duvido que ele respondesse “em uma agência espacial”. Talvez
dissesse “na escola”. Além do origami, os testes dessa semana envolveram
construir robôs com peças de Lego e fazer desenhos a lápis de cor sobre o
tema “Eu e meus colegas” (que serão examinados também por especialistas
em saúde mental).
Nesse exato momento, H está nas telas dos monitores, falando aos
colegas e às câmeras. A atividade chama-se “exposição de méritos
pessoais”. Eu esperava algo parecido com o que se vê em entrevistas
individuais de emprego, uma descrição de traços positivos da personalidade
e de qualificações profissionais. Mas o que vejo mais parece uma
demonstração de talentos artísticos ou esportivos num acampamento de
verão. O talento de C era cantar músicas em quatro línguas. D fez quarenta
flexões de braço em trinta segundos.
Para intensificar ainda mais a atmosfera de recreio escolar, os candidatos
usavam avental, do tipo que as crianças vestiam antigamente nas aulas de
educação física. Esses aqui trazem, impressa, a letra de cada candidato, para
que os observadores saibam quem são. Como a iluminação é fraca, e a
câmera raramente fecha nos rostos, é difícil dizer quem está falando. Antes
que os candidatos começassem a falar, todo mundo estava a cada instante se
debruçando para a frente e murmurando com o vizinho. “Quem é aquele? E-
san?” “Acho que é J-san.” “Não, J-san é aquele lá, de camisa listrada.”
H está dizendo: “Sei andar de bicicleta sem segurar o guidom”. Depois
junta as mãos em concha e encosta os polegares nos lábios. Após algumas
tentativas, sai um assovio baixo e inarmônico. “Não sei fazer nada como
vocês”, diz ele, chateado, a B, que acabou de nos contar do campeonato de
badminton que seu time ganhou e depois puxou para cima as pernas do
calção para que víssemos suas coxas musculosas.
Quando H se senta, F se levanta. É um dos três pilotos do grupo. “Para um
piloto, é importante saber se comunicar.” Depois de um início
convencional, a exposição dá uma guinada inesperada. F diz que muitas
vezes sai para beber com os amigos. “Vamos a lugares servidos por moças.
Isso facilita a comunicação e quebra o gelo.” F abre bem a boca. Está
fazendo alguma coisa com a língua. Os psiquiatras se aproximam dos
monitores. As sobrancelhas de Sayuri se erguem. “Eu faço isso para as
moças”, diz F. O quê? Inoue aproxima a imagem. A língua de F está
dobrada sobre si mesma. “Faço isso como uma técnica para quebrar o gelo.”
A seguir, é a vez de A, em quem estou apostando. Diz que vai demonstrar
uma técnica de aiquidô, e pede um voluntário. D se levanta. Seu avental está
meio torto no ombro, como uma alça de sutiã. A diz que quando estava na
faculdade os estudantes mais jovens ficavam tão bêbados que não
conseguiam se mexer. “Por isso eu torcia o braço deles, para ajudá-los a se
levantar.” Agarra o pulso de D, que dá um grito, e todo mundo ri.
“Isso está parecendo um clubinho de garotos da faculdade”, digo a
Sayuri. Tachibana está sentado ao lado de Sayuri, que lhe explica o que eu
quis dizer com “clubinho”.
“Com toda sinceridade”, diz Tachibana, “um astronauta é uma espécie de
universitário.” Ele recebe tarefas que tem de cumprir. Tomam decisões por
ele. Viajar ao espaço é como viver num internato militar de elite. Em vez de
sargentos e sub-reitores, ele está subordinado à administração da agência
espacial. É um trabalho duro, e é melhor obedecer às regras. Não falar de
outros astronautas. Não dizer palavrões.c Nunca se queixar. Como acontece
nas Forças Armadas, os criadores de caso se encrencam ou são expulsos.
Durante todo o período de existência da ISS, o astronauta ideal tem sido
um adulto de desempenho fora do comum que cumpre ordens e segue as
regras como uma criança excepcionalmente bem-comportada. O Japão
produz essas pessoas em quantidades industriais. Trata-se de uma cultura
em que quase nunca alguém atravessa a rua fora da faixa ou usa o asfalto
como lixeira. As pessoas não costumam confrontar a autoridade. A mulher
que estava a meu lado no voo para Tóquio me disse que a mãe lhe proibira
furar os lóbulos das orelhas. Só aos 37 anos ela juntou coragem para fazer
isso. “Só agora estou aprendendo a enfrentar minha mãe”, confidenciou.
Estava com 47 anos, e sua mãe, com 86.
“Explorar Marte será uma história diferente, é claro”, disse Tachibana.
“Vamos precisar de gente agressiva, criativa. Porque eles terão de fazer tudo
sozinhos.” Como os sinais de rádio demoram vinte minutos para ir da Terra
a Marte, numa emergência eles não poderão contar com instruções do
controle de terra. “Vamos precisar, de novo, de homens corajosos.”

Semanas depois que deixei Tóquio, recebi um e-mail do Departamento


de Relações Públicas da Jaxa, informando que os candidatos E e G tinham
sido selecionados. E é piloto da All Nippon Airways e fã de musicais
japoneses. Em sua exposição de méritos pessoais, representou uma cena de
seu musical favorito. A cena exigia que ele fingisse chorar e passasse os
braços em torno da mãe, invisível. Foi um ato de coragem, embora não a
coragem que se espera de um astronauta. G também é piloto, da Força de
Defesa Aérea do Japão. Os pilotos militares sempre foram uma boa fonte de
astronautas, e não apenas por causa de sua bagagem aeronáutica e de suas
qualificações profissionais. Estão acostumados a enfrentar riscos e a agir
sob pressão, a trabalhar em espaços exíguos e sem privacidade, a obedecer a
ordens e suportar longas separações da família. Além disso, como observou
um funcionário da Jaxa, a seleção de pilotos como astronautas tem também
um motivo político. As forças aéreas sempre tiveram vínculos com as
agências espaciais.
Uma semana depois que voltei do Japão, todos os dez candidatos foram
ao Centro Espacial Johnson para se reunir com astronautas da Nasa e com
membros de seu comitê de seleção. Tachibana e Inoue admitiram que a
fluência com que os candidatos falavam inglês seria um fator importante na
escolha, como também, imagino, a facilidade de relação com as equipes da
Nasa. “A parte mais importante de tudo isso, a essência do processo”, disse
Ralph Harvey, da ANSMET, “é a entrevista em que eles põem você ao lado de
alguns astronautas e você simplesmente fala. Você é uma pessoa que pode
acabar presa numa barraca na Antártica, durante não apenas seis semanas
ou seis meses, mas talvez dez anos, enquanto espera a oportunidade de
participar de uma missão, de trabalhar no Controle de Missão ou em outra
coisa. Eles estão escolhendo não apenas um colega de trabalho, mas um
companheiro.” Um piloto japonês tem uma vantagem em relação a um
médico — o fato de ter algo em comum com muitos astronautas da Nasa.
As Forças Armadas e a aviação comercial são fraternidades globais, e E e G
são membros delas.

Em minha primeira visita à Jaxa, viajei com outra intérprete. Depois de


sairmos da estação ferroviária, Manami foi traduzindo alguns letreiros na
estrada. Um deles nos dava as boas-vindas a TSUKUBA, CIDADE DA CIÊNCIA E
DA NATUREZA. Nela ficam não só a Jaxa, como também o Instituto de
Pesquisa Agrícola, o Instituto Nacional de Ciência dos Materiais, o Instituto
de Pesquisas da Construção, o Instituto de Silvicultura e Produtos
Florestais, o Instituto Nacional de Engenharia Rural e o Instituto Central de
Pesquisas de Rações e Pecuária. Há tantos institutos de pesquisa ali que eles
têm seu próprio instituto: o Centro de Institutos de Tsukuba. Manami me
contou que quando as pessoas começaram a ir para Tsukuba, não havia
árvores, parques ou qualquer coisa a se fazer por ali, a não ser trabalhar. As
pessoas simplesmente não paravam de trabalhar. Era alto o número de
suicídios, disse ela, e muitos saltavam da cobertura dos institutos. Por isso o
governo construiu um shopping center e alguns parques, plantou árvores e
gramados e mudou o nome do lugar para Tsukuba, Cidade da Ciência e da
Natureza. Ao que parece, foi uma boa ideia.
A história me fez pensar em uma viagem a Marte e em como seria passar
dois anos presa no interior de estruturas artificiais, sem ter como fugir do
trabalho e dos colegas, sem flores, árvores e sexo, e sem nada para ver pela
janela a não ser espaços vazios ou, na melhor das hipóteses, solo
avermelhado. A atividade dos astronautas é estressante pelas mesmas razões
que tornam estressante o seu trabalho e o meu — sobrecarga, falta de sono,
ansiedade, outras pessoas —, mas duas coisas agravam os fatores habituais:
a pobreza do meio ambiente e a impossibilidade de fugir dele. Isolamento e
solidão são questões muito sérias para as agências espaciais. As agências do
Canadá, da Rússia, da Europa e dos Estados Unidos estão gastando 15
milhões de dólares num complexo experimento de psicologia que coloca
seis homens numa maquete de nave espacial, para simular uma missão a
Marte. A escotilha vai ser aberta amanhã.

a Como aconteceu quando um psiquiatra da Nasa perguntou ao astronauta Mike Mullane que
epitáfio gostaria de ter gravado em seu túmulo. Mullane respondeu: “Um marido carinhoso e um pai
dedicado”, ainda que em seu livro A bordo de um foguete ele brinque: “Por uma viagem ao espaço,
eu teria vendido minha mulher e meus filhos como escravos”.
b Juntando-se os astronautas que usaram a fama para ganhar um lugar no Senado e os senadores
que usaram sua influência para conquistar um lugar numa missão da Nasa, tem-se praticamente um
quórum do Senado no espaço. (John Glenn conseguiu fazer as duas coisas, ao voltar ao espaço aos 77
anos, depois de ser eleito senador.) O ardil às vezes dá errado, como aconteceu quando Jeff
Bingaman derrotou Harrison Schmitt (astronauta do Projeto Apollo que se elegeu para o Senado pelo
Novo México), usando como slogan de campanha a frase “Mas, e em Terra, o que ele tem feito por
vocês?”.
c Na semana passada, li a transcrição preliminar de um depoimento em que os “merdas” e
“diabos” estavam riscados como se fossem nomes de agentes secretos num dossiê da CIA, a agência
de inteligência americana. Durante a missão da Apollo 10, Gene Cernan reagiu a um quase acidente
com “não poucos infernos, porras e bostas”, e o diretor de uma Escola Bíblica de Miami escreveu ao
presidente Nixon exigindo uma retratação pública. A Nasa obrigou Cernan a pedir desculpas. Mas ele
teve a última palavra em suas memórias: “Bando de putos bestalhões”.
2. A VIDA NUMA CAIXA

A perigosa psicologia da solidão

e do confinamento

Marte fica no andar de cima, à esquerda. O Simulador da Superfície


Marciana tem cinco módulos interligados e trancados, que formam a
simulação de missão conhecida como Marte500 — o número se refere aos
dias necessários para a viagem de ida e volta e uma estada de quatro meses
em Marte. A simulação está sendo realizada no andar térreo do Instituto de
Problemas Biomédicos de Moscou (IPBM), o principal centro de pesquisas
de medicina aeroespacial da Rússia. Cada um dos membros da equipe
recebeu 15 mil euros para ser submetido a uma bateria de experimentos
psicológicos com que se pretendia compreender e neutralizar os efeitos
nocivos da reclusão num ambiente limitado e artificial, com companheiros
impostos por terceiros.
Hoje eles vão “pousar”. Equipes de televisão sobem e descem as escadas,
em busca das melhores localizações para seus tripés. “No começo, eles
ficam todos lá embaixo”, diz um perplexo integrante do IPBM que foi
destacado para o mezanino sobre o Módulo Habitável. “E agora, veja esse
formigueiro aqui.”
Uma fanfarra militar gravada e um empurra-empurra de último minuto
por parte de repórteres anunciam a abertura da escotilha. Os seis homens
aparecem do lado de fora e sorriem para as câmeras. Estão habituados a
serem filmados. Foram monitorados dia e noite durante os últimos três
meses. (O isolamento mais breve serviu como exercício para a simulação de
quinhentos dias programada para 2010-11.) Os membros da equipe acenam
até que aquilo começa a ficar bobo e, um a um, eles baixam os braços.
Vestem “trajes de voo” azuis. Mais tarde, ao voltar para o metrô, passo pelo
pessoal da manutenção de um conjunto habitacional próximo, e todos
vestem o mesmo macacão azul, o que me dá a breve impressão de que os
cosmonautas estão fazendo horas extras como jardineiros e faxineiros.
Os experimentos com câmaras de isolamento vêm sendo, há décadas,
uma lucrativa atividade complementar do IPBM. Por acaso, achei um artigo
de 1969 com pormenores de uma missão simulada a um destino não
especificado que durara um ano. A configuração era semelhante à do
Projeto Marte500, embora com diferenças pequenas, mas interessantes,
como a “automassagem”, última atividade de cada dia. O artigo saiu numa
revista acadêmica, mas ao folheá-la tive a impressão de estar diante de uma
espécie de revista feminina para gays. Fotografias mostram os três homens
preparando o jantar, cuidando de plantas na estufa, ouvindo rádio com
pulôveres de gola rulê e suéteres ou cortando o cabelo um do outro. O
artigo não fazia nenhuma referência a desentendimentos ou a problemas de
relacionamento, do tipo “Bojko ameaça Ulibichev com a tesoura de
barbeiro”. Os artigos raramente incluem esses detalhes, e o mesmo se pode
dizer das entrevistas coletivas, que são uma oportunidade para discursos
prontos ou generalidades otimistas.
Por exemplo: “Não tivemos nenhum problema, nenhum conflito”, está
dizendo o comandante da Marte500, Serguei Riazanski. A coletiva está
sendo realizada numa sala do segundo andar, o que significa que a maioria
das equipes de TV teve de fechar seus tripés e tornar a subir a escada,
causando mais risadas do pessoal do IBMP. Haverá ali umas duzentas
cadeiras para trezentos traseiros.
“Todo mundo se apoiava.” Após mais dez minutos de blá-blá-blá de
Riazanski, um repórter intervém em nome de todos, por assim dizer. “Nós,
da imprensa, gostaríamos de ouvir algum caso interessante. Os senhores
podem dar algum exemplo de tensão que tenha surgido?”
Não podem. Astronautas de faz de conta têm de ser discretos, pois muitos
deles querem ser astronautas de verdade. No grupo do Marte500 há um
astronauta europeu esperançoso, um cosmonauta ambicioso e dois
cosmonautas na expectativa de serem selecionados para missões.
Apresentar-se como voluntário para uma missão simulada é um modo de
mostrar às agências espaciais que você tem ao menos um dos atributos que
se espera de um astronauta: a disposição de se adaptar a uma situação, em
vez de tentar mudá-la. Tolerância ao confinamento e a condições de vida
espartanas. Estabilidade emocional. Uma família complacente.
Outro motivo pelo qual Riazanski não vai falar das intimidades de seus
colegas é que, como a maioria dos voluntários para testes em câmaras de
isolamento, ele assinou um acordo de confidencialidade. As agências
espaciais querem saber o que ocorre quando trancam pessoas numa caixa,
sem privacidade, sem sono adequado e com uma alimentação deprimente,
mas tomam medidas para que nós não saibamos. “Se uma agência espacial
vem e diz: ‘Ah, todos esses problemas acontecem’, então as pessoas
respondem: ‘Ah, todos esses problemas acontecem! Por que viajamos ao
espaço? É arriscado demais!’”, diz Norbert Kraft, médico que agora faz
pesquisas de psicologia de grupo e de produtividade em missões de longa
duração para o Centro de Pesquisas Ames, da Nasa, na Califórnia. “As
agências tentam passar a melhor imagem possível, pois de outra forma não
recebem mais verbas.” O que acontece no Módulo Habitável fica no
Módulo Habitável.
A menos que alguém dê com a língua nos dentes, como aconteceu da
última vez que o IPBM organizou um isolamento. O voo simulado de uma
tripulação internacional numa estação espacial (Sfincss, no acrônimo em
inglês) deu ensejo a algumas manchetes em 1999, quando uma briga de
bêbados e um assédio sexual vazaram para a imprensa. É evidente que o
grupo atual foi orientado a manter a discrição.
“Nosso treinamento pessoal nos possibilitou evitar qualquer conflito”,
repete Riazanski. “As reações às emoções se deram realmente num nível de
respeito e foram muito, muito corteses.” Na sala, os jornalistas começam a
se dar conta de que percorreram centenas de quilômetros para nada. Daí a
minutos já há cadeiras suficientes para todos.
Os “incidentes” do Sfincss ocorreram no terceiro mês do isolamento,
quando os módulos “acoplaram”. Uma das tripulações compunha-se de
quatro russos; a outra era, intencionalmente, um saco de gatos intercultural:
uma canadense, um japonês, um russo e o comandante, o austríaco Norbert
Kraft. Às 2h30 do dia de Ano-Novo, em 2000, o comandante da tripulação
russa, Vasili Lukianiuk, empurrou a canadense Judith Lapierre para fora do
alcance das câmeras e tascou-lhe dois beijos de língua, embora ela
protestasse. Pouco antes, dois outros russos tinham começado uma briga
que deixou as paredes respingadas de sangue. Depois disso, a escotilha
entre os dois módulos foi fechada, o japonês abandonou o projeto e Judith
Lapierre queixou-se ao IPBM e à Agência Espacial Canadense. Os
psicólogos do IPBM, diz ela, não a apoiaram e ainda a acusaram de reação
exagerada. Embora tivesse assinado um acordo de confidencialidade, ela
contou sua história à imprensa. Nas palavras de Valeri Guchin, psicólogo do
IPBM, ela “lavou roupa suja em público”.
Quando fiz contato com Judith, isso já tinha acontecido. Ela confirmou
os fatos básicos e me pediu que procurasse Norbert Kraft, seu comandante
no Sfincss. Kraft tem experiência nos dois lados do sistema de TV em
circuito fechado — como consultor num teste de isolamento na Agência
Japonesa de Exploração Aeroespacial e como participante do Sfincss.
Apresentou-se como voluntário, disse, levado pelo desejo de saber como
são as coisas para os candidatos que ele monitora. Kraft é um homem que
extrai prazer de sua curiosidade espontânea. Seus dados biográficos no site
do Sfincss informam que ele gosta de dançar valsa, pratica mergulho,
prepara bolos de cereja e cuida de um jardim de pedras japonês. Foi com
satisfação que dirigiu de Mountain View até Oakland para conversar
comigo, porque, disse, “é uma coisa diferente”.
A descrição que Kraft fez do acontecido tinha nuances que faltavam à
versão dos jornais. Judith foi vítima menos de assédio sexual do que de
sexismo institucional. Fazendo uma paráfrase do que disse Guchin, os
russos gostam de mulheres que agem como mulheres, e não como iguais —
mesmo que sejam astronautas. De acordo com Peter Pesavento, historiador
do programa espacial soviético-russo, a astronauta britânica Helen Sharman
foi criticada por seus companheiros na Mir devido a um comportamento
que eles viam como demasiado profissional — ou seja, ela não se deixava
paquerar. Nas cinco décadas desde que Valentina Tereshkova conquistou o
título de “Primeira Mulher no Espaço” para a União Soviética, em 1963, só
duas mulheres participaram de missões na Rússia como cosmonautas. A
primeira, Svetlana Savitskaia, recebeu um avental florido ao entrar na
Salyut.
Desde o começo, o pessoal e os psicólogos do IPBM mostraram uma
atitude desdenhosa em relação a Judith. Não a levavam a sério como
pesquisadora porque, segundo Kraft, era mulher. Outro problema: barreira
linguística. Judith quase não falava russo e o “controle de terra” quase não
falava inglês.a No módulo russo, só o comandante era fluente em inglês. Era
gentil com Judith, e Kraft acredita que ela o via como um aliado em
potencial em sua tentativa de conquistar o respeito dos russos. Por isso, fez
o possível para fomentar a ligação. Mostrava-se amistosa, diz Kraft, de uma
forma atípica para as mulheres russas em geral: sentava-se em seu colo,
beijava-o no rosto. “Ela estava enviando sinais errados, mas não percebia
isso.”
Kraft diz que Judith Lapierre foi injustamente acusada de ter feito o
japonês deixar o projeto. O homem, Masataka Umeda, alegou ter tomado
essa atitude por solidariedade a ela. Diz também que Umeda fechou a
escotilha porque estava aborrecido com o fato de os russos verem vídeos de
pornografia e vinha buscando uma desculpa para sair.
Talvez eu fizesse o mesmo. Além do considerável nível de estresse
causado pelo confinamento, pela privação de sono, pelas barreiras
linguísticas e culturais e pela falta de privacidade, problemas mais sutis
atormentavam a tripulação. Havia baratas na cabine do chuveiro, mas não
água quente. Dia após dia, serviam kasha no jantar (“mingau de aveia”,
como dizia Judith). “Camundongos entravam pelo soalho e mofo subia pela
tubulação”, escreveu Kraft num e-mail em que juntou seis fotografias, uma
delas com a legenda “Piolhos”. A epidemia de piolhos não incomodou Kraft
— “Foi uma coisa nova” — e os russos calmamente raparam a cabeça.
Judith teve de enfrentar não só o estresse dos piolhos, como também a
reação do pessoal do IPBM. Kraft recorda: “Os russos disseram que Judith
recebera um pacote do Canadá e que os piolhos vieram junto”.
Como sabem bem os produtores de reality shows de televisão, não existe
maneira mais eficiente de atear fogo a frustrações reprimidas do que
encharcá-las de álcool. Oficialmente, havia apenas uma garrafa de
champanhe, oferecida pelo IPBM para o Réveillon do Milênio. Na realidade,
havia muitas garrafas, não só de champanhe, mas de vodca e conhaque.
Kraft diz que elas entram nas câmaras de isolamento por meio de suborno.
Se você quiser que os voluntários russos produzam bons resultados na
pesquisa, diz Kraft, “é melhor incluir vodca e salame no projeto”.
Ao que parece, foi isso o que aconteceu no caso dos laboratórios
espaciais russos. O astronauta americano Jerry Linenger, que trabalhou na
Mir, registrou em suas memórias ter ficado surpreso ao encontrar uma
garrafa de conhaque num dos braços de seu traje espacial e uma de uísque
no outro. (Linenger foi o Frank Burns da exploração espacial: “Cumpri
rigorosamente a política da Nasa contra o consumo de álcool a bordo”.) Em
missões russas de longa duração, comenta Kraft, “é melhor esconder o
desinfetante”. Quando estive na Rússia, um cosmonauta, que pediu para não
ser identificado, me mostrou uma das fotos que tirou no espaço: dois
tripulantes com canudinhos, um de cada lado de uma garrafa de cinco litros
de conhaque, como adolescentes dividindo um refrigerante.
Ainda que a cobertura desses episódios pela imprensa pusesse o Sfincss,
o IPBM e as agências espaciais na defensiva, os pesquisadores ficaram
satisfeitos por “obterem resultados ímpares”, como expressou Natsuhiko
Inoue. Aquilo era, afinal, um estudo de interações de grupos em missões
multiculturais. “O incidente”, disse-me Inoue por e-mail, “nos prestou
informações muito valiosas para a seleção e o treinamento de tripulações no
futuro.” No geral, coisas óbvias. Certificar-se de que falam uma língua
comum com fluência suficiente para se comunicar. Verificar se atuam bem
como equipe. Escolher pessoas com amplo senso de humor. Dar a todos um
curso intensivo de etiqueta intercultural. Alguém devia ter avisado Judith
Lapierre, por exemplo, que, para um russo, beijar uma mulher numa festa
“não é nada de mais” (palavras de Guchin). E que se você quer que ele pare,
deve lhe dar um tapa. Que “não” quer dizer “talvez”. E que para um russo,
tirar sangue do nariz de outro é “uma luta amistosa”. (Kraft confirmou essa
surpreendente informação. “É assim que eles resolvem disputas. Fizeram
isso na Mir.”)
Por mais estritas que sejam as tentativas de prever choques interculturais,
pode-se ter certeza de que alguma coisa será desconsiderada. Ralph Harvey,
que supervisiona equipes de caçadores de meteoritos em acampamentos
remotos na Antártica, me falou de um espanhol que tinha o hábito de
arrancar fios de cabelo e queimá-los na chama do fogão. “Na Espanha”,
explicou o homem, “os barbeiros queimam as pontas do cabelo, e eu gosto
do cheiro.” Durante a primeira semana, seu companheiro de barraca achou
graça, mas logo aquilo se tornou motivo de atrito. “Agora, faz parte do
questionário de seleção”, brincou Harvey. “Você queima seu cabelo para se
divertir?”
Kraft considera que a cobertura do episódio do Sfincss pela imprensa foi
útil porque proporcionou um raro retrato honesto das emoções que afloram
entre homens e mulheres confinados no espaço. Ele discorda do hábito que
têm as agências espaciais de mostrar os astronautas como super-heróis.
“Como se eles não tivessem hormônios, não alimentassem sentimentos em
relação a ninguém.” Isso também decorre do receio de publicidade negativa
e corte de verbas. O perigo disso está em que uma organização dedicada a
minimizar problemas psicológicos provavelmente não investirá muito
tempo na busca por soluções efetivas. “Até que uma astronauta”, diz Kraft,
“atravessa metade dos Estados Unidos usando fraldões.b Aí, de repente, os
astronautas viram pessoas de novo!” (Dois dias depois do lamentável
confronto de Lisa Nowak com Colleen Shipman, que estaria tendo um caso
com seu ex-marido, a Nasa ordenou que se fizesse uma revisão de seus
processos de classificação e avaliação psicológica dos astronautas.)
Para piorar as coisas, os próprios astronautas tentam esconder problemas
emocionais, por medo de acabarem na prateleira. Durante as missões, eles
têm acesso a psicólogos, mas preferem não consultá-los. “Toda
comunicação enviada a eles representa um registro especial em sua
caderneta de voo”, disse-me o cosmonauta Alexandr Laveikin. “Por isso,
fazemos o possível para não pedir ajuda a especialistas.” A missão de
Laveikin com Iuri Romanenko na Mir foi mencionada num artigo de Peter
Pesavento para a Quest, a respeito dos efeitos psicológicos das viagens
espaciais. Segundo Pesavento, Laveikin voltou mais cedo da missão devido
a “questões interpessoais e irregularidade cardíaca”. (Eu ia me encontrar
com Laveikin e Romanenko no dia seguinte.)
É uma situação perigosa. Se alguém a bordo de uma nave espacial está se
aproximando do ponto de ruptura, é importante que o pessoal do controle de
terra saiba disso. Há vidas que dependem dessa informação. Isso talvez
explique por que hoje em dia tantos experimentos de psicologia espacial se
concentrem em meios de detectar sinais de estresse ou depressão numa
pessoa que não pretende falar disso. Se as tecnologias que estão sendo
testadas no projeto Marte500 tiverem sucesso, as naves espaciais — e
outros locais de alto risco e alto nível de estresse — serão dotadas de
microfones e câmeras conectadas a equipamentos automáticos óticos e de
monitoramento da fala. Esses espiões robóticos podem detectar mudanças
em expressões faciais e na emissão vocal, o que ajudará a evitar uma crise.
O estigma dos problemas psicológicos também torna difícil estudá-los.
Os astronautas relutam em se apresentar como voluntários para estudos, por
medo de que os pesquisadores descubram algo pouco abonador. Na última
vez que falei com Pam Baskins, consultora de psicologia da Nasa, ela iria
dar início a uma pesquisa em que diferentes soníferos e dosagens seriam
comparados. Os astronautas seriam despertados quando estivessem em sono
profundo, para ver de que modo as drogas afetavam sua capacidade de agir
numa emergência simulada no meio da noite. Achei que aquilo poderia ser
divertido e perguntei se poderia assistir. “De jeito nenhum”, ela respondeu.
“Levei um ano para convencer esses caras a participar do estudo.”

Uma estação espacial é uma monstruosidade ambulante, um enorme


Mecano montado por um louco. Mas o habitáculo do módulo principal da
Mir, em que Alexandr Laveikin e Iuri Romanenko passaram seis meses
juntos, cabe dentro de um ônibus. As câmaras de dormir mais parecem
cabines telefônicas. Não têm portas. Lena, minha intérprete, e eu estamos
numa maquete que simula o módulo, no Museu Memorial da
Cosmonáutica, em Moscou. Laveikin, que atualmente administra o lugar,
está conosco. Iuri Romanenko também vem para cá. Achei que seria
interessante conversar com eles no lugar que quase os levou à loucura.
A figura de Laveikin em quase nada difere de seu retrato oficial, no qual
passa uma impressão de candura e jovialidade. Beija nossas mãos como se
fôssemos duquesas. Não faz isso por afetação nem com outras intenções, é
apenas uma coisa que os russos de sua geração foram ensinados a fazer.
Veste uma calça de linho bege e calçado leve de verão, creme, que durante
toda a semana vi nos pés dos homens no metrô. Usa uma colônia suave.
Laveikin acena para um homem atlético e bronzeado, de jeans, com os
óculos escuros pendurados no V da gola da camisa. É Romanenko. É
cordial, mas não beija nossas mãos. A fumaça dos cigarros deixou sua voz
rouca. Os dois se abraçam. Conto os segundos. Um, dois, três. Seja lá o que
foi que houve entre eles, já está esquecido ou perdoado.
Dentro da maquete, é fácil acreditar que a permanência numa peça
daquele tamanho, durante tanto tempo, possa mesmo fazer dois homens se
estranharem. Romanenko diz que os espaços fechados não são um
ingrediente indispensável para fazer duas pessoas se sentirem presas numa
armadilha. “A Sibéria é um lugar grande, enorme, aqui na Rússia. Mas os
caçadores que vão para a taiga e passam metade do ano lá preferem ir
sozinhos, só com um cão.” Romanenko está sentado em seu lugar na Mir,
do lado esquerdo do painel de controle, numa poltrona sem encosto, mas
com uma barra para apoiar os pés. (Mais tarde, as estações espaciais
dispensariam as poltronas, porque em gravidade zero não se precisa de
assentos.) “Porque se são dois ou três juntos, haverá conflito.”
“Além disso, no fim da estadia o cara ainda pode comer o cachorro”,
brinca Laveikin.
Os psicólogos usam a expressão “antagonismo irracional” para
denominar o que acontece entre pessoas juntas em isolamento por mais de
seis semanas. Um artigo da revista Aerospace Medicine, em 1961, deu um
bom exemplo, extraído do diário de um antropólogo francês que passou
quatro meses no Ártico na companhia de um comerciante de peles da baía
de Hudson.
Gostei de Gibson assim que o vi. [...] Era um homem equilibrado e
ordeiro, que levava a vida com calma e filosofia. [...] Mas com o avanço
do inverno ao nosso redor e à medida que, semana após semana, nosso
mundo se estreitava até reduzir-se às dimensões de uma armadilha, [...]
comecei a me enfurecer interiormente, e os mesmos atributos que no
começo eu julgara admiráveis por fim me pareciam odiosos. Chegou um
momento em que eu não suportava mais ver esse homem que era sempre
gentil comigo. A calma que eu antes admirava, via agora como
indolência; a serenidade filosófica tornava-se, a meus olhos,
insensibilidade. A organização meticulosa de sua vida era senilidade
maníaca. Eu poderia tê-lo assassinado.
Da mesma forma, o almirante Richard Byrd preferiu efetuar sozinho suas
observações meteorológicas na Antártica, em condições arriscadas e em
escuridão permanente, a enfrentar, como ele escreveu em Sozinho, o
instante em que “a pessoa nada mais tem a revelar à outra, quando até seu
pensamento em formação pode ser antecipado, suas ideias mais caras se
tornam uma baboseira sem sentido, e a maneira como o outro apaga uma
lâmpada a querosene, deixa as botas cair no chão ou mastiga a comida
torna-se um incômodo irritante”.
Os outros são apenas uma das agruras psicológicas que a exploração
espacial cria. Nobert Kraft fez uma excelente síntese. Eu lhe perguntei se
achava que ser astronauta era o melhor ou o pior emprego do mundo. “Você
é privado de sono, e tem de realizar suas tarefas com perfeição ou nunca
mais vai voar. Assim que você acaba de fazer isso, o controle de terra está
mandando você fazer aquilo. O banheiro fede, o barulho é incessante. Você
não pode abrir uma janela. Não pode ir para casa, não pode estar com a
família, não pode espairecer. E você não é bem remunerado. Pode apontar
um emprego pior do que esse?”
Laveikin diz que seu período na Mir, em 1987, foi cem vezes mais difícil
do que ele tinha previsto. “É um trabalho pesado, sujo. Muito barulhento,
com muito calor.” Ele enjoou durante mais de uma semana, sem remédios
que o ajudassem a suportar a situação. Lembra-se de ter se virado para o
comandante num dos primeiros dias e dizer: “Iuri, e nós vamos ficar seis
meses aqui?”. Chamando Laveikin pelo apelido, Romanenko respondeu:
“Sasha, muita gente fica na cadeia por dez anos ou mais”.
Em suma, o ponto principal é que o espaço é um ambiente frustrante,
inflexível, e o astronauta está preso nele. Se essa prisão durar o suficiente, a
frustração se transforma em raiva. A raiva exige uma saída e uma vítima.
Como vítima, o astronauta tem três opções: um companheiro, o Controle de
Missão ou ele mesmo. Os astronautas tentam não se hostilizar mutuamente,
pois isso só agravaria a situação. Não há portas para bater ou uma garagem
da qual sair de carro em disparada. “Além disso”, diz Jim Lovell, que
passou duas semanas num assento para dois com Frank Borman por ocasião
da Gemini VII, “você está executando uma tarefa perigosa e depende do
outro para permanecer vivo. É por isso que não antagoniza o sujeito ao
lado.”
Laveikin e Romanenko dizem que conseguiram evitar atritos devido à
clara hierarquia estabelecida pela idade e pelas patentes. “Iuri é mais velho
do que eu e tinha experiência de voo espacial”, diz Laveikin. “Por isso, era
natural que fosse o líder, o líder psicológico. Eu o acompanhava. E aceitava
esse papel. Nosso voo foi calmo.”
Foi difícil acreditar nisso. “Vocês nunca sentiram raiva?”
“Claro que sim”, responde Romanenko. “Mas principalmente do centro
de controle de voo.” Romanenko preferiu a opção Dois. Desafogar a
frustração no pessoal do Controle de Missão é uma tradição consagrada dos
astronautas, e a psicologia tem um nome para isso: “deslocamento”. Mais
ou menos por volta da sexta semana de uma missão, diz Nick Kanas,
psiquiatra espacial da Universidade da Califórnia, os astronautas começam
a se afastar dos companheiros, protegem seu território e deslocam para o
Controle de Missão a hostilidade mútua.
Ao que parece, o deslocamento de Jim Lovell foi dirigido principalmente
ao nutricionista da Gemini VII. “Recado para o dr. Chance”, reclama Lovell
ao Controle de Missão num trecho da transcrição. “Saem tantas migalhas
dos sanduíches de carne que nos sentimos numa tempestade de neve. E
pensar que cada refeição sai a trezentos dólares! Acho que o senhor pode
fazer melhor do que isso.” Sete horas depois, ele volta ao microfone: “Mais
um memorando para o dr. Chance: frango com legumes. Número de Série
FC680, o fecho está quase colado. Nem apertando a coisa sai”. Continuação
do mesmo memorando para o dr. Chance: “Consegui abrir os fechos. Agora
temos frango com legumes espalhados na janela”.
A missão de Lovell durou apenas duas semanas. Será que as dimensões
minúsculas da cápsula estavam intensificando os efeitos do confinamento?
Kanas não conhecia estudos formais, mas confirmou que, de modo geral,
quanto menor a nave, mais tensos ficavam os astronautas.
O deslocamento talvez explique por que a fúria de Judith Lapierre
voltou-se mais contra o IPBM e a Agência Espacial Canadense do que contra
o comandante russo, cuja conduta ela atribuiu a um mal-entendido cultural e
a “situações naturais entre homem e mulher”. Mas é fácil acreditar também
que ela tenha dirigido sua raiva contra o IPBM porque eles estavam sendo
popkas.
Até hoje Romanenko expressa uma certa indignação residual. “As
pessoas que nos demandavam tarefas não tinham ideia de como são as
coisas a bordo. Digamos que você esteja fazendo alguma coisa aqui” — ele
se vira para apontar o painel de controle da Mir — “e alguém lhe manda
uma ordem para fazer outra coisa. Não compreendem que essa outra coisa
tem de ser feita do outro lado e que não posso largar o que estou fazendo
aqui e ir para lá.” (É por isso que as agências espaciais costumam usar
astronautas como “cap coms” — “comunicadores de cápsulas” — no
Controle de Missão.) Segundo a história das estações espaciais soviéticas de
Robert Zimmerman, nas fases finais da missão (depois da saída de
Laveikin), Romanenko estava tão irritado com o centro de controle de voo
que seus companheiros assumiram todas as comunicações com o solo.
Já Alexandr Laveikin preferiu a terceira opção. Dirigiu a hostilidade a si
mesmo. O resultado, bem conhecido por todo psicólogo que lida com
grupos humanos confinados, é a depressão. Mais tarde, depois que
Romanenko se despede de nós, Laveikin admite que houve momentos em
que pensou em suicídio. “Eu queria me enforcar. Mas é claro que isso seria
impossível, por causa da ausência de peso.”
Romanenko prevê problemas numa missão a Marte. “Quinhentos dias!”,
diz, com evidente horror. Ele ainda permaneceu na Mir por quatro meses
depois da partida de Laveikin. Zimmerman conta em seu livro que ele se
mostrou instável e pouco cooperativo, “dedicando o tempo a escrever
poemas e canções” e a praticar exercícios. Peço a Lena que lhe pergunte a
respeito dessa fase da missão. Antes, eu tinha dito a ela que gostaria de
ouvir algumas das canções que Romanenko compôs no espaço, e foi sobre
isso que ela lhe falou.
“A senhora quer que a gente cante?” Romanenko dá sua risada rouca.
“Seria preciso uma boa dose de uísque.”
Peço desculpas por não ter trazido a bebida.
“Mas eu tenho”, diz Laveikin. “Em minha sala.”
São onze horas da manhã.
Laveikin nos conduz pelo museu, explicando, enquanto caminha, o que
estamos vendo. Ali estão modelos dos gigantescos foguetes soviéticos, cada
um em sua vitrine. De manhã eu tinha visitado, em Moscou, um museu de
história natural, e partes dele estavam organizadas desse mesmo jeito —
não por nicho ecológico ou critérios taxonômicos, mas com uma dimensão
pessoal: diários de campo de expedições, alguns espécimes especialmente
valorizados, honrarias conferidas pelos tsares. Ali, no museu de Laveikin,
os engenheiros astronáuticos estavam representados basicamente por
acessórios: canetas e relógios de pulso, óculos e cantis.
Em sua sala, Laveikin senta-se para procurar no computador a gravação
de uma música que Romanenko tinha composto na Mir. O tampo de sua
mesa está quase limpo. Da frente dele projeta-se um apêndice parecido com
uma prancha de portaló. Laveikin se levanta para abrir um armário de
bebidas e põe uma garrafa de Grant’s e quatro copos de cristal nesse
apêndice. É um bar. Na Rússia, as mesas de trabalho têm um barzinho
embutido!
Laveikin ergue seu copo. “A...” Procura as palavras em inglês. “A uma
boa situação psicológica!”
Brindamos e esvaziamos os copos. Laveikin volta a enchê-los. A música
de Romanenko está tocando, e Lena traduz: “Desculpe, Terra, estamos lhe
dando adeus... Nossa nave está subindo... Mas um dia vamos mergulhar no
azulado da madrugada, como uma estrela-d’alva”. E o refrão: “Vou cair na
grama e encher os pulmões de ar. Vou beber a água do rio...”. É uma música
cativante, fácil de aprender, e fiquei balançando na cadeira até notar que a
letra estava deixando Lena triste. “Vou beijar o chão, abraçar os amigos...”
Lena enxuga uma lágrima quando a música termina.
As pessoas não fazem ideia da falta que sentirão do mundo natural até
serem privadas dele. Já li casos de tripulantes de submarinos que ficam
rondando a sala do sonar só para ouvir cantos de baleias e ruídos feitos por
colônias de camarões-de-estalo. Às vezes comandantes de submarinos
concedem “liberdade de periscópio” — uma chance de os tripulantes
fitarem nuvens, aves e litorais e se lembrarem de que nuvens, aves e litorais
ainda existem.c Uma vez um homem me disse que, ao desembarcar em
Christchurch, na Nova Zelândia, depois de passar o inverno numa estação
de pesquisa no polo Sul, ele e os companheiros passaram alguns dias
andando de um lado para outro, olhando, pasmados, para flores e árvores. A
certa altura, um deles viu uma mulher empurrando um carrinho de bebê.
“Um bebê !”, gritou, e atravessaram a rua em disparada para ver o neném.
A mulher virou o carrinho e saiu correndo.
Nada supera o espaço como ambiente ermo e estranho à vida.
Astronautas que antes não se interessavam por jardinagem passam horas
cuidando de estufas experimentais. “Elas são o nosso amor”, disse o
cosmonauta Vladislav Volkov, referindo-se às mudinhas de linho que
dividiam com ele o pouco espaço da Salyut 1, a primeira estação espacial
soviética.d Em órbita, pelo menos se pode olhar pela janela e ver o mundo
natural lá embaixo. Numa missão a Marte, depois que os astronautas
perderem a Terra de vista, não haverá nada para ver pela janela. “Você vai
estar banhado permanentemente pela luz do Sol, de modo que não verá nem
estrelas”, explicou-me o astronauta Andy Thomas. “Será um breu só.”
O espaço não é lugar para o homem. Tudo em nós evoluiu para vivermos
na Terra. A imponderabilidade (ausência de peso) é uma novidade divertida,
mas quem flutua no espaço logo passa a sonhar com caminhadas. Antes
Laveikin nos tinha dito: “Só no espaço a gente percebe que felicidade
incrível é andar. Só andar... na Terra”.
Romanenko tinha saudade dos cheiros da Terra. “A senhora pode
imaginar o que é passar uma semana, só isso, num carro trancado? Cheiro
de metal. Cheiro de tinta, de borracha. As moças que nos mandavam cartas
punham nelas umas gotas de perfume francês. A gente adorava essas cartas.
Quem cheira a carta de uma moça antes de se deitar tem bons sonhos.”
Romanenko termina seu uísque e pede licença para ir embora. Abraça
Laveikin de novo e aperta nossas mãos.
Estou tentando imaginar a Nasa enchendo veículos de reabastecimento
com cartas de amor. Laveikin diz que é verdade. “Moças de toda a União
Soviética nos mandavam cartas.”
“Um brinde às moças”, digo. Os copos se tocam.
“Sentimos mesmo a falta de uma mulher”, diz Laveikin. Sem a presença
de Romanenko, ele fala com mais liberdade. “Há sonhos eróticos, em vez
disso. São constantes, durante toda a missão. Chegamos até a discutir que
talvez devêssemos levar algum desses brinquedos de sex shops. Isso foi
debatido no IPBM.”
Volto-me para Lena. O que ele queria dizer? “Uma vagina artificial?”
“Vagine?”, pergunta Lena. Segue-se um debate. Ela se vira para mim.
“Uma imitação.”
Laveikin põe-se a falar em inglês, como faz de vez em quando para
retocar uma tradução: “Uma mulher de borracha”. Uma boneca inflável. O
controle de terra, diz, vetou a ideia. “Eles disseram: ‘Para vocês fazerem
isso, nós teríamos de incluir a tarefa na lista de atividades’. Nós temos uma
piada. A senhora sabe que nossa comida vem em tubos.” Eu sabia. A
lojinha de presentes do museu vende tubos de sopa de beterraba espacial.
“Há tubos brancos e pretos. Nos brancos vem escrito: LOURA. E nos pretos:
MORENA.”
“Mas, por favor, compreenda: essa questão de sexo está longe de ser a
preocupação dominante no espaço. Ela está aqui na lista.” Ele indica com a
mão um nível na altura do joelho. “Digo apenas que seria um suplemento
legal. Mas quando se fala em quinhentos dias, aí, realmente, esse problema
começa a se tornar uma prioridade.” Ele acredita que a tripulação de uma
missão a Marte deveria ser composta de casais, para ajudar a reduzir a
tensão que se forma durante as missões longas. Segundo Norbert Kraft, a
Nasa cogitou enviar casais ao espaço — maridos e mulheres. Quando pedi
sua opinião sobre isso, ele disse que era contra. Seu raciocínio foi que um
astronauta poderia se ver com uma opção insustentável: pôr em perigo o
relacionamento ou pôr em perigo a missão. O astronauta Andy Thomas,
casado com a astronauta Shannon Walker, me falou de outro motivo pelo
qual a Nasa não quer saber de missões com casais. No caso de um acidente
ou explosão, não querem que uma família enfrente uma dupla perda,
sobretudo se o casal tiver filhos.
Laveikin escuta e emenda sua ideia: “Eles não precisam ser casados”.
“Está certo”, diz Lena. “A ética seria diferente lá em cima. Ao voltar à
Terra, sua mulher deveria entender que tudo foi diferente naquele período:
outra dimensão, outras regras, até você era outro.”
Laveikin ri. “Minha mulher é uma pessoa inteligente. Ela entenderia e
diria: ‘Você não é inteiramente fiel nem aqui na Terra. Que as coisas sejam
assim no espaço também’.”
Kraft concordaria. Ele me disse que é a favor de mandar casais não
monógamos, hétero e/ou homossexuais, a Marte. “[As agências espaciais]
vão ter de ser mais liberais e abertas nessa questão. Combinem com os
casais, sei lá.” Andy Thomas acredita que isso pode vir a acontecer
naturalmente numa missão a Marte, como costuma acontecer na Antártica.
“É muito comum que as pessoas lá formem pares para relacionamentos
sexuais que têm a duração da estada delas... que busquem uma estrutura de
apoio que as ajude a atravessar a experiência. Depois, no fim da estada, a
ligação se desfaz.”
Por dezessete anos, só homens trabalharam nas bases de pesquisas na
Antártica. Havia várias desculpas para isso, mas todas se resumiam a uma
só: as mulheres traziam problemas, como distração, promiscuidade, ciúmes.
Só em 1974 duas mulheres foram incluídas no pessoal de inverno da
estação americana McMurdo. Uma delas era uma bióloga solteira e
cinquentona, que aparece em fotografias com uma cruz de ouro por cima da
gola rulê. A outra era freira.
Hoje, um terço do pessoal dessa estação é de mulheres, a cuja presença
se atribui um aumento da produtividade e da estabilidade emocional. As
tripulações formadas por homens e mulheres, como diz Ralph Harvey, estão
mais “no meio da curva de sino”. Há menos lutas corporais e piadas sobre
peidos. “Ninguém fica com dor nas costas por levantar caixas grandes
demais.” Norbert Kraft me falou de um estudo sobre trabalho em equipe
que ele conduziu no Centro de Pesquisa Ames, da Nasa, comparando
equipes masculinas, femininas e mistas. As mistas deram os melhores
resultados. (Os piores couberam às equipes femininas. “Não se pode tolerar
tanta conversa-fiada”, disse Kraft corajosamente.)
Laveikin: “A senhora consegue visualizar seis homens a caminho de
Marte? O que vai acontecer?”.
“Eu sei”, respondo, embora sem ter certeza de que estamos pensando na
mesma coisa. “Veja só o que acontece nas cadeias.”
“E em submarinos. E entre geólogos no campo.”
Tenho de me lembrar de perguntar a Ralph Harvey sobre isso. Laveikin
se apressa em dizer que não se lembra de ter ouvido falar de “amor de
homem e homem” no grupo soviético de astronautas.e Por fim, ao que
parece, a tripulação menos problemática para uma missão a Marte talvez
seja a que Michael Collins, da Apollo 11, sugeriu de brincadeira: “Uma
unidade de eunucos”.

As primeiras câmaras de isolamento aeroespaciais abrigavam somente


um homem. Os psiquiatras da Mercury e da Vostok não tinham de se
preocupar com a forma como os membros da tripulação se davam uns com
os outros. Os voos duravam algumas horas ou, no máximo, alguns dias, e os
astronautas viajavam sozinhos. O que causava preocupação aos psiquiatras
era o próprio espaço. O que aconteceria a um homem sozinho num vácuo
negro e ilimitado? Para descobrir, tentaram simular o espaço aqui na Terra.
Trabalhando na Base Wright-Patterson, da Força Aérea americana,
especialistas do Laboratório de Pesquisa Aeromédica isolaram
acusticamente um freezer comercial de um metro e oitenta de largura por
três de comprimento, puseram em seu interior uma cama de campanha,
lanches leves e um urinol esmaltado e apagaram as luzes. Um período de
três horas nessa câmara de isolamento tornou-se uma das provas de
habilitação para os astronautas do Projeto Mercury. Um dos relatos que
pude ler, de uma candidata chamada Ruth Nichols, fala desse teste como o
mais difícil que os candidatos enfrentavam. Após apenas algumas horas,
disse ela, alguns homens “reagiam violentamente”.
O coronel Dan Fulgham, responsável pelos testes feitos na Base Wright-
Patterson, não recorda nenhum candidato do Projeto Mercury que tenha se
tornado violento ou perdido o controle durante o teste de isolamento.
Lembra que eles aproveitavam para recuperar horas de sono.
Os pesquisadores logo começaram a perceber que a privação sensorial
era uma simulação pouco eficiente do voo espacial. O espaço é negro, mas
a luz solar é abundante, e as cápsulas teriam iluminação. O contato por
rádio seria possível durante a maior parte do tempo. A claustrofobia e a
solidão eram as maiores preocupações, sobretudo numa missão mais longa.
Por isso, em 1958, um aviador do Bronx chamado Donald Farrell
empreendeu uma missão lunar de duas semanas no Simulador de Cabine
Espacial Individual na Escola de Medicina Aeronáutica, na Base Brooks da
Força Aérea, no Texas. De acordo com uma reportagem da revista Time, seu
diário (infelizmente desaparecido há muito tempo) ficava cada vez mais
obsceno, mas em entrevistas a jornais ele só se queixou da falta de cigarros
e de ter se esquecido de levar o pente. A maior provação de Farrell,
imagino, deve ter sido escutar “Love is a many-splendored thing”, do filme
Suplício de uma saudade, e outras músicas do gênero que tocavam
continuamente no simulador.
Em retrospecto, foi tolice pensar que seria possível simular a experiência
de viajar no espaço com um freezer adaptado.
Para descobrir o que aconteceria a um homem sozinho no cosmos, mais
cedo ou mais tarde seria necessário mandá-lo para lá.

a Esse é um tema recorrente ao longo das colaborações espaciais russo-americanas. Al Holland,


psicólogo da Nasa, conta que certo dia dirigia um carro cheio de russos, em Moscou, durante o
programa que reunia os ônibus espaciais americanos e a estação russa Mir. Os carros em sua pista
pararam, e um russo, que estava no banco traseiro, perguntou: “O que está havendo?”. Orgulhoso,
Holland respondeu, usando uma palavra nova que aprendera: “Stopka” (engarrafamento). Só que
disse: “Popka” (bundão!).
b Afinal, ela fez isso ou não? O policial William Becton, que a prendeu, escreveu em seu
depoimento juramentado que encontrou no carro de Lisa Nowak uma bolsa onde havia dois fraldões
usados. “Perguntei à sra. Nowak qual era o motivo daqueles fraldões. Ela respondeu que não queria
parar e procurar um banheiro, de modo que usava os fraldões para urinar.” É o que fazem os
astronautas — como não podem interromper uma caminhada espacial para ir ao banheiro, usam um
fraldão sob o traje espacial. Depois Lisa Nowak negou que usasse fraldões. Agora, diz que sua
família utilizara fraldões quando Houston foi evacuada por causa do furacão Rita, dois anos antes. Se
eu fosse ela, não teria me preocupado com os fraldões. Teria ficado mais apreensiva com o canivete
de caça, a marreta de aço, a pistola de ar comprimido, os tubos de borracha e os grandes sacos
plásticos de lixo que também foram achados no carro.
c A permissão é concedida também para evitar a deterioração da visão à distância. Quando tudo o
que se vê está apenas a alguns metros, os músculos que comprimem a lente do olho para focar à curta
distância podem travar, num efêmero “espasmo de acomodação”. Esse problema é grave o bastante
para que, ao desembarcarem após um longo período no mar, os tripulantes de submarinos sejam
proibidos de dirigir por um a três dias — uma boa medida por várias razões.
d Se as plantas forem comestíveis, poderá haver conflitos. Os astronautas não sentem falta só da
natureza, mas também de alimentos frescos. No diário do cosmonauta Valentin Lebedev há um caso
sobre cebolas levadas na Salyut para uma pesquisa sobre crescimento de plantas em gravidade zero.
“Quando estávamos descarregando a nave de reabastecimento, achamos pão de centeio e uma faca.
Comemos um pouco de pão. Depois vimos as cebolas que deveríamos plantar e as comemos ali
mesmo, com pão e sal. Estavam deliciosas. O tempo passou e um dia os biólogos nos perguntaram:
‘Como vão as cebolas?’. ‘Estão crescendo’, respondemos. [...] ‘E deram brotos?’ Sem hesitação,
respondemos que tinham dado brotos. Houve uma verdadeira comoção no centro de comunicação.
Nunca tinham plantado cebolas no espaço! Pedimos para falar com o biólogo-chefe em particular.
‘Pelo amor de Deus’, dissemos a ele, ‘não fique aborrecido, mas comemos as suas cebolas.’”
e Yuri Gagarin amava Serguei Korolev, engenheiro-chefe do programa espacial soviético, mas
não como se fosse um tubo de comida espacial. Em sua carteira, encontrada depois do acidente do
caça MIG-15 que o matou, havia uma única foto, hoje conservada, ao lado da carteira destroçada, no
museu da Cidade das Estrelas. A foto é de Korolev — não de sua mulher, da filha ou da mãe, que ele
tanto amava. Nem mesmo de Gina Lollobrigida. “Ela o beijou!”, exclamou Elena, nossa exuberante
guia no museu, ao mesmo tempo que se abanava com um leque de plástico, como que afogueada só
de pensar nisso.
3. LOUCURAS NAS ESTRELAS

O espaço pode causar alucinações?

Yuri Gagarin está num pedestal da altura de dois andares, num canteiro
gramado de uma avenida em Moscou. De longe, já é possível adivinhar que
é ele pela posição dos braços — um pouco afastados do corpo, com os
dedos juntos, como um super-herói voador. Da base do monumento,
olhando para cima, não se vê a cabeça do primeiro homem no espaço,
apenas o peito heroico e a ponta do nariz, projetando-se para a frente. Um
homem de camisa preta, com uma garrafa de Pepsi debaixo do braço, para a
meu lado. Tem a cabeça baixa, o que interpreto como um sinal de respeito,
até ver que ele está aparando as unhas.
Deixando de lado a glória nacionalista, o voo de Gagarin em 1961 foi
basicamente um feito psicológico. Sua tarefa era simples, embora de modo
algum fácil: “Entre nessa cápsula. Vamos mandar você, sozinho e com
muito perigo, para além da fronteira do espaço. Vamos catapultá-lo para um
nada letal e sem ar, onde homem algum jamais esteve. Você vai rodear o
planeta, depois descer e nos contar o que foi que sentiu”.
Havia muitas conjecturas na época — tanto na agência espacial soviética
quanto na Nasa — em relação às consequências psicológicas desconhecidas
de uma viagem ao cosmos. Será que a chegada ao “negro”, como os pilotos
o chamavam, faria o astronauta ter alucinações? Ouçamos as sinistras
palavras do psiquiatra Eugene Brody por ocasião do Simpósio de
Psiquiatria Espacial, em 1959: “Pode-se, pelo menos em teoria, esperar [...]
que a separação da Terra, com todo seu significado simbólico inconsciente
para o homem [...] produza — mesmo num piloto bem selecionado e bem
treinado — algo semelhante ao pânico da esquizofrenia”.
Temia-se que Gagarin, fora de controle, sabotasse a missão histórica. A
preocupação foi suficiente para que as autoridades, antes do lançamento,
impedissem a utilização dos controles manuais da cápsula Vostok. E se uma
coisa desse errado, as comunicações cessassem e o Piloto-Cosmonauta no 1
tivesse de assumir o controle da cápsula? Seus superiores também tinham
pensando nisso e, ao que parece, recorreram a programas de televisão e
filmes em busca de uma solução: Gagarin recebeu um envelope lacrado que
continha a combinação secreta para destravar os controles.
A preocupação não era totalmente infundada. Num estudo publicado na
revista Aviation Medicine, em abril de 1957, 35% dos 137 pilotos
entrevistados relataram ter experimentado uma estranha sensação de
separação da Terra ao voar em altitudes elevadas, quase sempre em voos
solitários. “Foi como se eu tivesse rompido os vínculos com a esfera
terrestre”, disse um piloto. O fenômeno chegou a ganhar nome: “efeito
distanciamento”. Para a maioria dos pilotos, a sensação não era de pânico,
mas de euforia. Só dezoito dos 137 chamaram de medo ou ansiedade o que
sentiram. “Parece tão pacífico, é como se eu estivesse em outro mundo.”
“Sinto-me como um gigante.” “Um rei”, disse outro. Três comentaram que
se sentiram mais perto de Deus. Um piloto chamado Mal Ross, que bateu
uma série de recordes de altitude com aviões experimentais no fim da
década de 1950, por duas vezes relatou uma estranha “sensação de
exultação, de querer voar sem parar, para sempre”.
Nesse mesmo ano, 1957, o coronel Joe Kittinger elevou-se a 29,3
quilômetros de altitude numa cápsula vertical lacrada, do tamanho de uma
cabine telefônica, suspensa sob um balão de hélio. Quando seu suprimento
de oxigênio baixou a um nível perigoso, o superior de Kittinger, David
Simons, ordenou-lhe que iniciasse a descida. “VENHA AQUI ME PEGAR”,
replicou Kittinger, letra por letra, em código Morse. Kittinger diz que foi
uma brincadeira, mas Simons não entendeu assim. (O código Morse sempre
foi um péssimo instrumento de humor.) Em seu livro de memórias Nas
alturas, Simons diz lembrar-se de ter pensado que “o estranho e pouco
conhecido fenômeno do distanciamento talvez tivesse se apoderado da
mente de Kittinger [...] que ele [...] estava tomado por esse devaneio
misterioso e decidido a voar para sempre, sem atentar às consequências”.
Simons comparou o fenômeno do distanciamento ao “êxtase mortal das
profundezas”. O “êxtase das profundezas” é um estado clínico: uma
sensação de calma e invulnerabilidade que pode tomar conta de um
mergulhador, geralmente em profundidades superiores a trinta metros. O
estado é conhecido, de modo mais prosaico, como narcose por nitrogênio
ou como Efeito Martíni (cada dez metros além de vinte metros de
profundidade equivaleriam a uma dose da bebida). Simons imagina que
num dia não muito distante os médicos aeroespaciais venham a falar de um
estado conhecido como o “mortal êxtase do espaço”.a
Simons estava certo, embora a Nasa preferisse a expressão menos
floreada “euforia espacial”. “Alguns psiquiatras da Nasa”, diz o astronauta
Gene Cernan em suas memórias, “haviam me avisado que quando eu
olhasse para baixo e visse a Terra girando, talvez fosse tomado pela euforia
espacial.” Pouco tempo depois, Cernan realizou uma caminhada espacial —
a terceira na história — durante o voo da Gemini ix. Os psicólogos estavam
nervosos porque os dois primeiros astronautas a fazer essas caminhadas
tinham manifestado não só uma singular euforia como uma preocupante
relutância em voltar para o interior da cápsula. “Eu me senti muito bem,
num estado de espírito animado, e relutei em deixar o espaço aberto”,
escreveu Alexei Leonov, o primeiro ser humano a flutuar livremente no
vácuo do espaço, em 1965, preso à sua cápsula Voskhod por uma mangueira
de ar. “Com relação à suposta chamada barreira psicológica, que seria
intransponível por um homem que se preparasse para confrontar sozinho o
abismo cósmico, não percebi barreira alguma e até esqueci que ela podia
existir.”
No quarto minuto da primeira caminhada espacial da Nasa, o astronauta
Ed White, da Gemini iv, declarou, num arroubo, que se sentia como o dono
de “1 milhão de dólares”. Esforçou-se para achar palavras que
descrevessem o que sentia. “Eu... É simplesmente incrível.” Há momentos
em que a transcrição da missão lembra a transcrição de uma sessão de
psicoterapia grupal da década de 1970. Vejamos a conversa de White e seu
comandante, James McDivitt, dois pilotos da Força Aérea, depois da
caminhada:
WHITE: Foi uma sensação muito natural, Jim.
McDVITT: [...] Você parecia estar no ventre de sua mãe.
O que a Nasa receava não era que o astronauta se sentisse eufórico, mas
que a euforia pudesse sobrepujar seu bom senso. Durante os vinte minutos
que durou o êxtase de White, o Controle de Missão tenta várias vezes
intervir. Por fim o comunicador da cápsula, Gus Grissom, fala com
McDivitt:
GRISSOM: Gemini iv, volte para dentro!
McDIVITT: Eles querem que você volte para cá agora.
WHITE: Voltar?
McDIVITT: Voltar.
GRISSOM: Recebido e entendido. Faz um bom tempo que estamos
tentando falar com você.
WHITE: Ei, Cabo, me deixem [tirar] umas fotos.
McDIVITT: Não, volte. Agora.
WHITE: [...] Ouça, eu sei que vocês estão com pressa, mas já estou indo.
Mas não estava. Passaram mais dois minutos. McDivitt começa a
implorar.
McDIVITT: Venha agora, por favor [...]
WHITE: Na verdade, estou só tentando tirar uma foto melhor.
McDIVITT: Não, venha agora.
WHITE: Estou tentando tirar uma foto da nave.
McDIVITT: Ed, venha para cá agora!
Mais um minuto se passa antes que White faça um movimento em
direção à escotilha, dizendo: “Este é o momento mais triste de minha vida”.
Em vez de se preocupar com astronautas que não querem voltar para a
nave, as agências espaciais deveriam ter se preocupado com a possibilidade
de eles não conseguirem entrar nela de volta. White precisou de 25 minutos
para passar pela escotilha e chegar em segurança ao interior da nave. Em
nada melhorava seu estado de espírito saber que, se ficasse sem oxigênio ou
desmaiasse por qualquer outra razão, McDivitt tinha ordens de cortar o cabo
que o ligava à nave em vez de arriscar a própria vida tentando fazer com
que ele passasse pela escotilha.
Consta que Alexei Leonov suou tanto que perdeu nada menos que cinco
quilos e meio num esforço análogo. Seu traje tinha sido tão pressurizado
que ele não conseguia dobrar os joelhos, e teve de entrar de cabeça, e não
com os pés, como fora treinado. Ficou preso tentando fechar a escotilha
atrás de si e teve de reduzir a pressão do traje para entrar — uma manobra
potencialmente letal, equivalente à de um mergulhador que sobe depressa
demais.
O relato do Escritório de História da Nasa inclui um detalhe fascinante da
Guerra Fria: Leonov teria recebido um comprimido letal para usar caso não
conseguisse entrar na nave e seu companheiro, Pavel Beliaiev, se visse
forçado a “deixá-lo em órbita”. Como a morte por cianureto, o veneno mais
comumente associado a comprimidos de suicídio, é mais lenta e mais
penosa do que a morte por privação de oxigênio, o uso do comprimido não
faz sentido. (À medida que as células cerebrais morrem por falta de
oxigênio, a euforia se instala e ocorre uma última e magnífica ereção.)
Um especialista em fisiologia espacial, Jon Clark, me disse que a história
do comprimido para suicídio é infundada. Eu enviara um e-mail a Clark, em
seu escritório no Instituto Nacional de Pesquisas Biomédicas Espaciais,
com relação à complicada logística necessária para que um astronauta
engolisse um comprimido quando metido num traje espacial, e ele fez
algumas consultas.b Suas fontes russas também desmentiram outro boato,
segundo o qual Beliaiev tinha ordens de dar um tiro em Leonov se ele não
conseguisse entrar na nave. Na verdade, foi a queda de Leonov e Beliaiev
no território de uma matilha de lobos sorrateiros o que levou ao acréscimo
de uma pistola leve, pelo menos por algum tempo, ao kit de sobrevivência
em regiões ermas dos cosmonautas.
Depois da caminhada espacial de Ed White, os relatos de euforia espacial
rarearam, e logo os psicólogos pararam de se preocupar. Tinham agora uma
nova fonte de apreensão: a “vertigem de altura em EVA”. Ver a Terra girar a
cerca de 350 quilômetros de distância pode causar um medo paralisante.
Jerry Linenger, que esteve na Mir, escreveu em suas memórias sobre a
sensação “medonha e persistente” de estar “caindo em direção à Terra [...]
dez ou cem vezes mais depressa” do que num salto livre de paraquedas. E
era isso mesmo o que estava acontecendo. (A diferença, naturalmente, é que
o astronauta está caindo num imenso círculo em torno da Terra e não vai
chegar ao chão.)
“Muito tenso, agarrei o corrimão [...]”, escreveu Linenger, referindo-se
aos momentos de pavor na ponta do braço retrátil de quinze metros da Mir,
“fazendo força para manter os olhos abertos e não gritar.” Um engenheiro
da Hamilton Sundstrand, empresa que produz trajes espaciais para a Nasa,
me falou do caso de um astronauta não identificado que, logo após sair pela
escotilha, passou os dois braços em torno das pernas de um colega.
Charles Oman, especialista em enjoos e vertigens que trabalha no
Instituto Nacional de Pesquisas Biomédicas Espaciais, diz que a vertigem
de altura não é uma fobia e sim uma reação normal à nova e aterrorizante
realidade cognitiva de estar caindo no espaço a uma velocidade de 28 mil
quilômetros por hora. Seja isso o que for, os astronautas relutam em
comentar. “É muito difícil extrair relatos deles”, diz Oman.
Como treinamento para as caminhadas espaciais, os astronautas vestem o
traje de EVA e ensaiam, dentro de uma enorme piscina, o tanque de
flutuabilidade neutra, os movimentos que terão de fazer. Flutuar na água
não é exatamente igual a flutuar no espaço, mas é uma boa simulação para
que os astronautas ensaiem a execução de tarefas e se familiarizem com o
lado de fora de uma nave espacial. (No fundo do tanque, em Houston, há
maquetes de partes externas da ISS.) No entanto, o treinamento não contribui
em nada para eliminar a vertigem de altura durante a EVA. O treinamento
com realidade virtual pode ajudar um pouco, mas não há como simular de
modo eficaz a sensação de uma queda livre no espaço. Se o leitor quiser ter
uma ideia bastante remota do que é isso, suba num poste telefônico (usando
um cinto de segurança) e tente ficar de pé na ponta dele — como às vezes
fazem os participantes de seminários de energização e os candidatos a
emprego em companhias telefônicas. “As empresas de telefonia perdem
mais ou menos um terço de seus estagiários nas primeiras semanas”, diz
Oman.

Atualmente, os psicólogos estão voltando a atenção para Marte. Ao que


parece, o efeito de distanciamento foi reformulado e agora se chama
“fenômeno da Terra invisível”:
Na história da humanidade, ninguém jamais esteve numa situação em
que a Mãe Terra e todos os aspectos protetores e reconfortantes a ela
associados [...] tenham sido reduzidos à insignificância [...] Parece
possível que isso induza a algum estado de disjunção interna em relação
à Terra. Esse estado poderá estar associado a um amplo leque de
respostas pessoais de desajustamento, entre as quais ansiedade e reações
depressivas, intenção de suicídio ou mesmo sintomas psicóticos como
alucinações ou delírios. Além disso, poderá ocorrer uma perda parcial ou
completa de comprometimento com o habitual sistema de valores (ligado
à Terra) e com as normas de comportamento.
O trecho foi extraído do livro Psicologia e psiquiatria espacial. Eu o li
em voz alta para o cosmonauta Serguei Krikaliov, veterano de seis missões
ao espaço e hoje diretor de treinamento no Centro de Treinamento
Cosmonauta Yuri Gagarin, na Cidade das Estrelas, perto de Moscou, onde
vivem e trabalham, com as famílias, os cosmonautas e outros profissionais
ligados à exploração do espaço.
Krikaliov não é uma pessoa depreciativa, mas sua resposta implicou uma
reação de desdém: “Os psicólogos precisam escrever e publicar teses”.
Contou-me então que nos primeiros tempos das estradas de ferro havia o
receio de que as pessoas enlouquecessem com a visão de árvores e campos
passando velozmente pelas janelas. “Houve até quem sugerisse a construção
de cercas dos dois lados da via férrea, para que os passageiros não
enlouquecessem. E ninguém falava disso, a não ser os psicólogos.”
De vez em quando encontramos astronautas que descrevem uma
ansiedade característica do espaço. Não se trata de medo, ainda que,
aparentemente, exista mesmo astrofobia, o medo do espaço e dos astros.c É
mais um tipo de piração intelectual, uma sobrecarga cognitiva. “A ideia de
100 trilhões de galáxias é tão estarrecedora”, escreveu o astronauta Jerry
Linenger, “que tento não pensar nisso antes de me deitar, porque fico tão
exaltado, agitado ou alguma coisa assim que não consigo dormir com
tamanha enormidade na cabeça.” Linenger deu a impressão de estar agitado
só de escrever isso.
O cosmonauta Vitali Jolobov relatou ter contemplado uma estrela durante
uma missão a bordo da estação espacial soviética Salyut 5 e apreendido, de
modo súbito e visceral, que o espaço é um “abismo sem fundo” e que
seriam necessários milhares de anos para viajar até aquela estrela. “E ela
não está no fim de nosso mundo. Pode-se viajar além e além, e essa viagem
não tem limite. Fiquei tão chocado que senti algo subindo pela minha
espinha.” A missão, em 1976, terminou antes do previsto devido ao que um
artigo numa revista de história da astronáutica classificou como
“dificuldades psicológicas e interpessoais”.
Jolobov mora na Ucrânia, mas Lena, minha perseverante intérprete russa,
localizou seu companheiro de voo, Boris Volinov, que estava com 75 anos e
morava na Cidade das Estrelas. Lena telefonou-lhe para perguntar se ele
dispunha de tempo para uma conversa. A ligação foi breve. Houve
dificuldades psicológicas e interpessoais.
“Por que devo conversar com ela?”, respondeu Volinov. “Para ela vender
um monte de livros e ganhar um monte de dinheiro às minhas custas? Ela
vai me usar como se estivesse ordenhando uma vaca.”
“Nesse caso, desculpe por tê-lo incomodado, Boris”, disse Lena.
Volinov fez uma pausa. “Ligue para mim quando chegar aqui.”
O cosmonauta saiu para fazer compras. Lena e eu vamos encontrá-lo no
restaurante no andar superior do mercado da Cidade das Estrelas, aonde ele
foi, com os netos, comprar algumas coisas para receber uma visita. De
nossa mesa na varanda do restaurante, podemos ver os edifícios de
apartamentos e as instalações de treinamento. Com cerca de quatro
quilômetros quadrados, a Cidade das Estrelas é mais uma vila do que uma
cidade. (“Vila Estrelada” é uma tradução mais correta, ainda que menos
expressiva.) Tem um hospital, escolas, um banco, mas não ruas. Os
edifícios são interligados por calçadas rachadas de betume e caminhos de
terra que cortam campos de flores silvestres e bosques de pinheiros e
bétulas. O posto de controle de passaportes cheira a sopa. Fabulosas
esculturas da era soviética decoram os saguões e os pátios, enquanto
mosaicos e murais sobre temas espaciais cobrem muitas paredes. Para mim,
o lugar parece marcado por um encanto antigo. Muitos astronautas
americanos que passam por treinamento aqui, preparando-se para usar a
cápsula Soyuz na volta da Estação Espacial Internacional, não têm essa
impressão. Com o encanto antigo vem também sua companheira, a
degradação. As escadas estão gastas e lascadas. Pedaços de reboco caíram
da fachada do mercado, como se ele tivesse levado tiros de canhão. No
museu, quando me levantei para ir ao banheiro, uma funcionária correu
atrás de mim, agitando um maço amarrotado de papel higiênico cor-de-rosa,
pois não havia porta-papel.
Avistei Volinov através dos balaústres do guarda-corpo do pátio. Tem
ombros largos e uma cabeleira cheia e espetacular, nada rala. Tampouco se
movimenta como a maioria dos homens de 75 anos. Caminha a passos
largos, inclinado para a frente, com objetivo e firmeza (e as compras). Veio
usando suas medalhas. (A estrela de Herói da União Soviética era conferida
aos cosmonautas ao completarem uma missão.) Fiquei sabendo depois que
Volinov foi afastado de sua primeira missão depois que o governo descobriu
que sua mãe era judia. Embora tivesse recebido treinamento junto com Yuri
Gagarin, ele só foi ao espaço em 1969.
Volinov pede chá com limão. Lena lhe diz que estou interessada em saber
sobre a Salyut 5. O que aconteceu? Por que ele e Jolobov desceram antes do
previsto?
“No quadragésimo segundo dia”, Volinov começa, “um acidente.
Eletricidade desligada. Nenhuma luz, tudo parou, todos os motores, todas as
bombas. Lado escuro da órbita. Nenhuma luz pelas janelas. Ausência de
peso. Não sabemos qual é o chão e qual é o teto, talvez é uma parede.
Nenhum oxigênio novo vindo. Então, você só pode contar com o que já
estava na estação. Ninguém na Terra podia nos escutar, e nós sem conexão
com eles. Muitos problemas. Cabelo assim.” Com as duas mãos, Lena finge
estar arrancando os cabelos. “O que fazer? Por fim, começamos a voar
sobre transmissores e conseguimos falar com Terra. Eles nos disseram...”
Volinov ri ao se lembrar. “Disseram para abrir o livro de instruções na
página tal. É claro que isso não adianta. Consertamos a estação com nossa
cabeça e nossas mãos. Levou uma hora e meia.
“Depois disso, Vitali não dormiu mais. Começou a ter dor de cabeça,
terrível. Estresse. Já comemos todos remédios. Em terra, estavam
preocupados com ele. Mandaram a gente descer.” Volinov diz que trabalhou
sozinho 36 horas sem dormir, preparando o Módulo de Descida. Ao que
parece, Jolobov teve algum tipo de colapso nervoso.
Depois, naquela mesma tarde, Lena e eu saímos para um passeio pelos
pinheiros com o psicólogo dos cosmonautas, Rostislov Bogdachevski, que
morava na Cidade das Estrelas havia 47 anos. Grande parte do que ele me
diz são coisas abstratas e opacas. Minhas notas contêm registros como
“auto-organização de estruturas dinâmicas de relações interpessoais na
sociedade humana”. Mas o que ele tinha a dizer sobre Volinov e Jolobov era
simples e claro. “Eles estavam exaustos por excesso de trabalho. O
organismo humano é feito para tensão e relaxamento, trabalho e sono. A
vida tem como princípio o ritmo. Quem de nós pode trabalhar sem descanso
durante 72 horas? Eles transformaram aqueles dois em pessoas doentes.”
Nem Volinov nem Bogdachevski se referiram a dificuldades
interpessoais a bordo da Salyut 5. Se alguma coisa aconteceu naquela
missão, foi eles ficarem mais unidos, o que acontece comumente em casos
de desastre e iminente risco à vida. Assim Volinov recorda a chegada do
helicóptero de resgate: “Vitali escutou primeiro. Disse: ‘Boris, existem
pessoas que são parentes seus por ligação de sangue. Mas também existem
pessoas que são parentes seus por causa de coisas que vocês fazem juntos.
Agora você é mais próximo de mim do que de seu irmão ou sua irmã.
Pousamos. Estamos vivos. O prêmio é a vida’”.
Ao ficar sabendo que Lena e eu tínhamos estado no museu da Cidade das
Estrelas, Volinov nos contou que, numa missão posterior, ele voltou à Terra
numa cápsula Soyuz idêntica à que está em exibição. “Ainda consigo entrar
nela”, diz. Tento imaginar a situação — Volinov de terno se espremendo
para penetrar nos limites placentários do assento de uma Soyuz.
Sua própria cápsula, a Soyuz 5, não está em exibição porque ficou
totalmente danificada. Não se separou direito do resto da nave Soyuz,
começou a dar cambalhotas e reentrou na atmosfera de costas. Volinov,
viajando sozinho, batia de um lado para outro “como uma bola de pingue-
pongue”. Como só um lado da cápsula tem revestimento resistente ao calor,
sua parte externa quase virou carvão e o interior começou a abrasar. A
borracha da junta de vedação da escotilha estava queimando. “Eu via balões
grandes por causa do calor.”
“Balões?”
Lena consulta Volinov, depois se vira para mim. “Quando você assa
batatas numa fogueira, vê a mesma coisa nas batatas. Espuma? Pústulas.”
“Bolhas!”
“Da, da, da. Bolhas.”
Volinov espera que acabemos de confabular. “Minha nave parecia essas
batatas.” Havia um barulho como o de um trem, diz. “Pensei que o chão
estava abrindo debaixo de meus pés, e eu não tinha o traje pressurizado.
Pensei: ‘É isso. É o fim’.” Se afinal a cápsula não houvesse se soltado de
um pedaço da nave e se estabilizado na posição correta, ele teria morrido.
“Quando o helicóptero chegou, perguntei para a tripulação: ‘Meu cabelo
está branco?’.”
Para os primeiros viajantes espaciais e para os homens responsáveis por
sua sobrevivência, a saúde mental ocupa um lugar secundário na lista de
apreensões. Havia muito mais coisas com que se preocupar.
O Herói da União Soviética tira um pente do bolso. Ergue os braços e se
detém, como um regente pronto a dar início à sinfonia. Passa o pente pela
gloriosa cabeleira (que na época daquele episódio não estava branca, mas
agora está) e se abaixa para pegar as compras. “Agora preciso correr. Tem
gente me esperando.”

a Toda modalidade de viagem tem sua aberração mental característica. Os caçadores esquimós
que viajam sozinhos em águas calmas e vítreas são por vezes atacados pela “angústia do caiaque” —
um delírio em que veem o barco sendo inundado, ou sua proa afundando ou se erguendo sobre a
água. Os leitores talvez se interessem pelo artigo “Relatório preliminar sobre a angústia do caiaque
entre os esquimós da Groenlândia Ocidental”, que inclui um exame das motivações para o suicídio
entre os esquimós e observa que quatro dos cinquenta suicídios estudados tinham sido cometidos por
esquimós idosos “que tiravam a própria vida como resultado direto da inutilidade decorrente da
velhice”. O artigo não informa se eles se lançavam em massas de gelo flutuantes, como às vezes se
ouve dizer, ou se a viagem em massas de gelo tem sua própria síndrome de ansiedade característica.
b O comprimido teria de estar preso a um suporte no interior do capacete, da mesma forma que
ficam as barras de cereais, posicionadas de modo que basta ao astronauta virar a cabeça para comê-
las. Ou, como me disse um deles, Chris Hadfield, virar a cabeça e ficar com a cara lambuzada. As
barrinhas ficam ao lado do tubo de beber, que costuma vazar, transformando a pasta de cereal numa
“massa gosmenta”. “Por isso deixamos de usá-las”, disse ele.
c Uma página de autoajuda na internet garante que “se você não tenciona viajar ao espaço [...] a
astrofobia talvez não afete sua vida de maneira significativa”.
4. VOCÊ PRIMEIRO

A perspectiva alarmante da

vida sem gravidade

O primeiro foguete do Ocidente foi construído pelos nazistas para efetuar


bombardeios sem fazer uso de aviões e aviadores. Apesar de toda a
barulheira e do fogaréu, um foguete é simplesmente um meio de transportar
alguma coisa — muito depressa e para muito longe. O foguete nazista
chamava-se V-2. A primeira carga foi a diabólica saraivada de explosivos
que caiu sobre Londres e outras cidades dos Aliados durante a Segunda
Guerra Mundial.
A segunda carga foi Albert.
Albert era um macaco reso de quatro quilos que usava uma fralda de
gaze. Em 1948, mais de uma década antes de o mundo ouvir falar de Yuri
Gagarin, de John Glenn ou do astrochimp Ham, Albert tornou-se a primeira
criatura viva a ser lançada ao espaço por um foguete. Como parte dos
despojos de guerra, os Estados Unidos haviam se apoderado de trezentos
vagões de trem com componentes do V-2. Eram, basicamente,
brinquedinhos de generais, mas os V-2 incendiaram a imaginação de um
punhado de cientistas e sonhadores, homens mais interessados na subida do
que na descida.
Um deles era David Simons. Num de seus depoimentos sobre a história
da astronáutica, ele fala sobre uma conversa que teve com seu chefe, James
Henry, no Laboratório de Pesquisa Aeromédica, na Base Holloman da
Força Aérea dos Estados Unidos, perto do Campo de Provas de White
Sands, no Novo México.
O dr. Henry introduz o assunto. “Dave, você acredita que o homem um
dia vá à Lua?” Eu posso imaginá-lo com um jaleco de laboratório,
pensativo e cutucando o queixo com a ponta de borracha de um lápis
número 2.
Simons responde sem hesitar. “Ora, claro que sim. É uma simples
questão de projeto de engenharia e de tempo para resolver os problemas
que...”
Henry o interrompe. “Bem, o que você acha de nos ajudar a pôr num
foguete V-2 um macaco, que seria então exposto a mais ou menos dois
minutos de ausência de peso para medir as suas respostas fisiológicas?” Foi
uma pergunta comprida.
“Ótimo! É um projeto maravilhoso! Quando começamos?”
Ao menos para mim, esse momento marca o nascimento da exploração
do espaço pelos Estados Unidos. Ele capta tanto a empolgação técnica
quanto a incerteza aflita com relação ao que poderia ocorrer a um
organismo humano levado aos limites do mundo conhecido. O espaço era
um ambiente em que ninguém e nada na Terra tinha evoluído, ou no qual,
pelo que os cientistas sabiam até então, ninguém ou nada poderia
sobreviver.
Henry incumbiu Simons de gerenciar o Projeto Albert. Estou folheando
um livro com fotografias do projeto. Numa delas aparece um foguete V-2
com mais de quinze metros de altura pronto para decolar. Outra foto mostra
Albert, com suas costeletas de macaco reso e as pálpebras delicadas meio
fechadas, como as de uma boneca. Logo embaixo há uma foto de Albert
amarrado a uma maca minúscula que será posta dentro da cápsula de
alumínio improvisada para depois ser acomodada na ogiva do foguete, onde
ficavam as cargas explosivas. Não se vê o rosto do soldado que segura a
maca, apenas sua cintura. Suas unhas estão sujas. Ele usa uma aliança. O
que pensava sua mulher? O que ele pensa? Será que achava esquisito lançar
esse foguete enorme, o primeiro míssil balístico do mundo, tendo a bordo
apenas um macaco dopado?
Provavelmente, não. Na época, os profissionais da medicina aeroespacial
estavam tomados por maus pressentimentos quase universais com relação à
perspectiva de o homem se libertar da força de gravidade. E se os órgãos
humanos dependessem da gravidade para funcionar? E se o coração não
conseguisse bombear o sangue pelas artérias e veias, só conseguisse agitá-lo
no mesmo lugar? E se os globos oculares mudassem de forma,
comprometendo a acuidade visual? Se esse homem se cortasse, o sangue
coagularia? Eles se preocupavam com pneumonia, insuficiência cardíaca,
cãibras debilitantes. Alguns temiam que, sem a gravidade, os sinais
emitidos pelos ossos flutuantes do ouvido interno e outras indicações da
posição do corpo cessassem ou se tornassem contraditórios — e que isso
causasse perturbações que, para citar Otto Gauer e Heinz Haber, pioneiros
da medicina aeroespacial, “afetassem profundamente as funções nervosas
autônomas e por fim levassem a uma sensação muito intensa de
sucumbência, associada a uma absoluta incapacidade de ação”. (Procurei
num dicionário on-line o termo sucumbência. Ele me perguntou de volta:
“Você não quis dizer suculentas?”.)
O único jeito de saber se esses temores tinham fundamento consistia em
mandar ao espaço um “piloto simulado” — lançar um animal na ogiva de
um trovejante V-2. A última tentativa de fazer algo semelhante a isso tinha
ocorrido em 1783. Na ocasião, os pesquisadores eram Joseph e Étienne de
Montgolfier, inventores do balão de ar quente. Parecia coisa de livro
infantil. Numa tarde de verão, um pato, um carneiro e um galo, pendurados
num belo balão, deram um passeio no céu de Versalhes. Passaram sobre o
palácio do rei e o pátio cheio de homens e mulheres que acenavam e
aplaudiam. Na verdade, foi uma investigação engenhosa e controlada sobre
os efeitos da altitude “elevada” (450 metros) sobre organismos vivos. O
pato era o elemento de controle. Como os patos estão habituados a essas
altitudes, os irmãos Montgolfier podiam presumir que qualquer dano que
acometesse um pato provavelmente teria sido causado por outro fator. O
balão pousou normalmente depois de um percurso de pouco mais de três
quilômetros. “Os animais estavam bem”, reza o relatório que Étienne de
Montgolfier escreveu sobre o voo, “e o carneiro tinha urinado na jaula.”
A gravidade acabou se mostrando a última das preocupações dos Alberts.
Havia seis Alberts, diferenciados por um numeral romano depois do nome,
como os reis ou os filmes em série. Foi Albert II quem fez história. (Albert I
sufocou-se enquanto esperava a decolagem.) O livro Animais no espaço
(excelente, por sinal) reproduz o registro impresso do gravador que
monitorou os batimentos cardíacos e a respiração de Albert II durante a
parte de gravidade zero do voo, a 133 quilômetros de altitude. Ficaram
dentro da normalidade. (Como todos os Alberts, ele tinha sido anestesiado.)
Foram também os últimos batimentos e respirações para ele. A ogiva
soltou-se do paraquedas e caiu no deserto. Na pior das hipóteses, uma
situação letal. Na melhor, uma sensação muito forte de sucumbência (ou
suculenta, como sugeriu o dicionário). Os Arquivos Nacionais dos Estados
Unidos guardam filmagens do lançamento e do voo de Albert II. Não
solicitei uma cópia. A listagem de tomadas bastava.
CU [close-up]: [...] Várias cenas do macaquinho sendo preparado para o
voo no V-2, sendo colocado na caixa com a cabeça para fora, recebendo
uma injeção [...]
Tomada noturna, lançamento do V-2.
CU: Paraquedas enrolado como uma bola no solo.
CU: Instrumentos e equipamentos amassados na ogiva.
CU: Restos da seção que continha o macaco.

À primeira vista, é difícil compreender o Projeto Albert. Um bando de


homens cogita mandar um ser humano ao espaço, atrelado a uma enorme
quantidade de substâncias químicas explosivas, e se preocupa com a
possibilidade de ele ser afetado pela gravidade?
Para entender a mentalidade do Projeto Albert, temos de refletir alguns
momentos sobre as forças de gravitação. Se você for como eu, você pensa
na gravidade como pequenos aborrecimentos pessoais: copos quebrados e
partes do corpo pendentes. Até esta semana, eu não me dava conta da
gravitas da gravidade. Junto com o eletromagnetismo e as forças nucleares
forte e fraca, a gravidade é uma das “forças fundamentais” que movem o
universo. Era, sim, razoável supor que a gravidade reservasse alguma outra
surpresa de que a humanidade ainda não tivesse noção.
Uma rápida revisão: a gravidade é a atração, mensurávela e previsível,
que um corpo com massa exerce sobre outro. Quanto maior a massa
envolvida e menor a distância entre as massas, mais forte será a atração. A
Lua está a uma distância média de 384 mil quilômetros de nós, mas tem
massa suficiente para que, sem qualquer esforço, sem tocar em nada, atraia
para si as águas e até as placas tectônicas da Terra, causando as marés
oceânicas e as marés terrestres, estas últimas pequeníssimas. (A Terra
exerce forças semelhantes sobre a Lua.)
É por causa da gravidade que existem estrelas e planetas.
A gravidade é, praticamente, Deus. No princípio, o cosmos não passava
de um espaço vazio com vastas nuvens de gases. Por fim, os gases
resfriaram a ponto de ocorrer uma coalescência de minúsculos grãos. Esses
grãos teriam passado a eternidade movendo-se pelo espaço, ignorando-se,
se a atração gravitacional não os houvesse juntado. A gravitação é a luxúria
do cosmos. À proporção que mais partículas aderiam à orgia, essas bolhas
celestes aumentavam de tamanho. Quanto maiores se tornavam, mais forte
era a atração que exerciam. Logo (em termos de milhares de séculos) já
conseguiam atrair partículas maiores e mais distantes para o charco de
betume de sua influência gravitacional. Com o tempo, surgiram estrelas,
corpos com tamanho suficiente para atrair planetas e asteroides e fazer com
que girassem ao redor deles. Pronto, sistema solar.
A gravidade é o principal motivo pelo qual existe vida na Terra. Certo,
para haver vida é preciso água, mas sem gravidade a água não estaria aqui.
Nem o ar. É a gravidade da Terra que segura em torno do planeta as
moléculas de gás que compõem nossa atmosfera — da qual dependemos
não só para respirar mas também para nos proteger da radiação solar. Sem
gravidade, as moléculas voariam espaço afora, juntamente com a água dos
oceanos, os carros das ruas, você e eu, os âncoras de programas de
entrevistas na TV e as caçambas de lixo nas áreas de estacionamento.
A expressão “gravidade zero” é enganosa quando aplicada à maioria dos
voos de foguetes. Os astronautas em órbita ao redor da Terra permanecem
dentro da atração do campo gravitacional do planeta. Artefatos como a
Estação Espacial Internacional orbitam a uma altitude da ordem de 460
quilômetros, onde a atração gravitacional da Terra é apenas 10% mais fraca
do que em sua superfície. É por isso que flutuam. Quando alguma coisa é
posta em órbita — seja uma nave espacial, um satélite de comunicações ou
as cinzas de Timothy Leary —, ela é lançada, graças ao empuxo de um
foguete, com tanta rapidez e a tão grande distância que quando a atração da
gravidade enfim retarda o avanço do objeto o suficiente para que ele
comece a cair, esse objeto erra o alvo (a Terra). Fica caindo ao redor da
Terra, e não nela. Enquanto o objeto “cai” (gira), a gravidade terrestre
mantém seu puxão, de modo que o objeto gira sem interrupção e, da mesma
forma, é atraído para a Terra. A trajetória resultante é um circuito repetitivo
em torno do planeta. (Entretanto, a repetição não é interminável. Numa
órbita baixa ao redor da Terra, onde giram as naves espaciais, ainda há
vestígios de atmosfera, moléculas de ar suficientes para criar um levíssimo
atrito que — depois de alguns anos — desaceleram uma nave espacialb o
suficiente para que, sem o impulso ascensional dado por um motor de
foguete, ela reentre na atmosfera e deixe de estar em órbita.) Para escapar
completamente à atração gravitacional da Terra, um objeto tem de viajar à
velocidade de escape da Terra: 40 320 quilômetros por hora. Quanto maior
for a massa de um corpo celeste, mais difícil será escapar da atração. Para
fugir da monstruosa gravidade de um buraco negro (uma imensa estrela
implodida), uma nave teria de viajar a uma velocidade maior que a da luz (1
079 252 848,80 quilômetros por hora). Em outras palavras, nem a luz
escapa de um buraco negro. É por isso que ele é negro.
Voltemos à ausência de peso. O peso é, de certa forma, uma coisa difícil
de explicar. Eu sempre pensara em meu peso, em qualquer momento, como
uma constante, uma característica física como minha altura ou a cor de
meus olhos. Não é. Na Terra eu peso 57,6 quilogramas, mas na Lua, dada a
força de gravidade que equivale a um sexto da terrestre, eu peso mais ou
menos como um beagle. Nenhum dos dois pesos é meu peso real. Não
existe um peso real, apenas uma massa real. O peso é determinado pela
gravidade. É uma medida da velocidade com que você vai acelerar se
estiver caindo pelo ar como a maçã de Newton. (Aqui na Terra, se não
houvesse o arrasto atmosférico, a gravidade faria a velocidade de sua queda
aumentar 35,4 quilômetros por hora a cada segundo.) Se você está de pé no
solo, obviamente não sofre aceleração, mas a força continua a ser exercida.
Você não está caindo, só comprimindo o solo. A aceleração traduz-se como
peso numa balança de banheiro. Quando não há nada contra o que ser
comprimido, como ocorre numa queda livre em órbita, você não tem peso.
A “gravidade zero” experimentada pelos astronautas a bordo de uma nave
em órbita é simplesmente um estado de queda em torno da Terra.
Se alguma coisa proporcionar uma fonte suplementar de aceleração — se
alguma coisa aumentar a aceleração da gravidade terrestre — seu peso vai
mudar. Ponha a balança do banheiro no elevador de seu edifício e veja
aonde vai o ponteiro quando você subir. Por um momento você vai ganhar
peso — e talvez uma certa fama de excentricidade. A aceleração do
elevador somou à gravidade terrestre um puxão adicional em direção à
Terra. Já quando o elevador se aproxima do andar de destino e diminui de
velocidade, a desaceleração, por um instante, torna você mais leve; ele
acelerou você em direção ao céu, neutralizando parte da gravidade que puxa
você para o centro da Terra.
Por que existe essa força, essa atração entre objetos? Passeando pela
internet, em busca de uma entidade paciente a quem perguntar, dei com a
Gravity Research Foundation (Fundação de Pesquisa sobre Gravitação),
criada por Roger Babson, magnata que ficou multimilionário fabricando e
vendendo alarmes de incêndio. Depois que a gravidade puxou a irmã dele
para o fundo de um rio, onde se afogou, Babson tornou-se o mais veemente
ativista antigravidade da história, publicando sermões em que apontava a
gravidade como nosso inimigo no 1. Se eu fosse Babson, teria dado esse
título à água ou aos rios, mas o homem mostrava-se inabalável em sua
cólera.c
Babson morreu, mas a fundação continua a existir. Já não qualifica suas
iniciativas de antigravitacionais, termo que passou a ter a conotação de
“doidice”. “Não somos nem ‘pró-gravidade’ nem ‘antigravidade’”, declarou
George Rideout Jr., diretor da fundação, a um jornalista que traçou um
perfil da organização em 2001. O que fazem, disse, é tentar aprender o
máximo a respeito do assunto. Procurei Rideout em busca de uma
explicação para a existência da gravitação. Ele me aconselhou a procurar
um físico.
Fiz isso. Transformei a questão em meu tema predileto. Mas por que
duas massas são atraídas uma para a outra, perguntava. “Santo Deus, Santo
Deus”, era o tipo de resposta que eu mais ouvia. “Porque o espaço-tempo
existe”, disse um físico. “O que ‘por que’ quer dizer?”, indagou outro.
Talvez a gravidade seja um mistério até para aqueles que a compreendem.
Agora entendo bem por que a perspectiva de se meter com ela foi mesmo
assustadora para os pioneiros da medicina aeroespacial no meio do deserto,
em 1948.

Consternados, mas resolutos, Simons e sua equipe lançaram ao espaço


outros quatro Alberts. O foguete de Albert III explodiu. Os Alberts IV e V, tal
como Albert II, foram vítimas de paraquedas defeituosos. Albert VI voltou
ao solo com seus sinais vitais pouco alterados, mas morreu em decorrência
da exposição ao calor enquanto o pessoal de resgate procurava a ogiva. Por
fim, a Força Aérea — e você há de perguntar por que demoraram tanto —
parou de chamar seus malfadados macacos-cobaias de Albert. E, mais
importante, começaram a deixar de lado os V-2 por um foguete menor e
menos problemático, o Aerobee.d
Patricia e Michael, em 1952, foram os primeiros macacos a sobreviver a
uma viagem à Terra da Imponderabilidade. A frequência cardíaca e a
respiração dos animais foram monitoradas durante todo o voo e
permaneceram normais. A pesquisa biomédica nessa época parecia ter
fixação em pulso e respiração. Fotos de divulgação do período mostram
invariavelmente um médico de jaleco branco e cabelo penteado com um
estetoscópio encostado no peito dos macacos. Isso era tudo o que os
documentos sobre os Alberts informavam. Não havia como diagnosticar
muita coisa — além de “ainda está vivo” —, mas, por volta de 1950, esse
era o limite dos dados que podiam ser transmitidos de um foguete a
cinquenta, oitenta ou 130 quilômetros de altitude. Para excluir quaisquer
efeitos mais sutis da ausência de peso, a Força Aérea precisava de uma
cobaia que fosse capaz de dar informações: um ser humano. Para isso,
entretanto, as autoridades aeronáuticas precisavam desenvolver uma
tecnologia mais segura.
Coube aos irmãos Fritz e Heinz Haber, pioneiros em medicina
aeroespacial da Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, imaginar, em 1950, uma
técnica hoje chamada de voo parabólico. Os Haber supuseram que, se o
piloto fizesse um avião descrever o mesmo tipo de arco parabólico de um
foguete suborbital (ou de uma bola atirada para a frente e para o alto), seus
passageiros teriam a sensação de imponderabilidade experimentada pelos
macacos, durante um período entre vinte e 35 segundos, no segmento
superior do arco. Se a seguir o piloto encerrasse o mergulho, subisse de
novo e voltasse a mergulhar, repetindo o processo até sua reserva de
combustível baixar, os cientistas acumulariam vários minutos de ausência
de peso com os quais trabalhar — a uma fração do custo de construir e
lançar foguetes. As agências espaciais ainda utilizam esses voos de
gravidade zero do tipo “montanha-russa” no treinamento de astronautas,
testes de equipamento ou para se vingar de escritoras que amolaram seus
dirigentes por meses a fio. (Mais adiante voltarei ao assunto.)
Neste ponto, a cena se transfere para a América do Sul. Os Haber tinham
um colega, Harald von Beckh, que se radicara em Buenos Aires depois da
guerra. Von Beckh sabia, em decorrência dos voos dos foguetes V-2 e
Aerobee, que a ausência de peso não constituía nenhuma ameaça grave à
sobrevivência, mas se perguntava se ela não desorientaria o piloto ou
prejudicaria, de alguma outra forma, sua capacidade de comandar uma
nave. Von Beckh reuniu então alguns cágados-de-pescoço-de-cobra, que,
como nazistas no pós-guerra, são endêmicos na Argentina, Paraguai e
Brasil. Essa espécie de cágado caça como as cobras, dobrando o longo
pescoço em forma de S e desferindo então botes rapidíssimos, que
raramente erram o alvo. Era isso que Von Beckh tencionava testar. A
imponderabilidade prejudicaria o desempenho desses animais? Sim. Os
cágados se moviam “devagar e de modo inseguro” e não atacavam uma isca
viva colocada bem na frente deles. Além disso, a água em que nadavam não
parava de subir e extravasar do recipiente, formando também uma “cúpula
ovoide”. Mas quem poderia comer nessas circunstâncias?
Von Beckh rapidamente passou dos cágados para pilotos argentinos. Na
seção intitulada “Experimento com pacientes humanos” — título que eu
teria modificado, se fosse médica e tivesse prestado serviços à Alemanha
nazista —, Von Beckh descreve os esforços dos pilotos para escrever letras
X no interior de quadradinhos durante voos normais e em condições de
imponderabilidade. Durante estes últimos, muitas dessas letras
extrapolavam o espaço dos quadrados, indicando que os pilotos talvez
viessem a ter dificuldade para manobrar suas aeronaves e resolver
problemas de palavras cruzadas durante batalhas aéreas.
No ano seguinte, Von Beckh foi recrutado pelo Laboratório de Pesquisas
Aeromédicas, na Base Holloman — onde Dave Simons conduzia o Projeto
Albert. Simons logo procurou dar prosseguimento a sua pesquisa sobre
gravidade zero usando a nova técnica de voo parabólico. Só precisava de
um piloto disposto a participar. Apenas um homem se apresentou como
voluntário. Joe Kittinger “fez carreira” como voluntário. “Se você não se
apresenta como voluntário, não faz nada de realmente interessante”, diz ele
num depoimento arquivado no Museu de História Natural do Novo México.
(Kittinger tem uma concepção de divertimento muito peculiar. Em 1960,
apresentou-se como voluntário para fazer um salto de paraquedas já quase
fora da atmosfera, a 31 300 metros de altitude, a fim de testar equipamentos
de sobrevivência para salvamentos em altitudes extremas. Voltaremos a
falar disso no capítulo 13.)
Kittinger fazia um avião subir num ângulo de 45 graus para em seguida
descrever um arco e mergulhar, ao mesmo tempo que observava uma bola
de golfe suspensa por um fio no teto da cabine. “Essa era a nossa
instrumentação!”, disse-me ele. Quando o avião atingia a gravidade zero, a
bolinha começava a flutuar. O mesmo acontecia com Kittinger, é claro, mas
ele estava atado ao assento. Enquanto isso, atrás da cabine, aquela foto
surrealista de Salvador Dali, em que ele aparece no meio de gatos atirados
ao ar, ganhava vida. Von Beckh e Simons estavam estudando, entre outras
coisas, a capacidade dos gatos de se endireitar em gravidade zero. “Os caras
levavam os gatos e deixavam que eles flutuassem”, lembra-se Kittinger.
“Um gato passava por aqui e eu o empurrava para trás. Houve ocasiões em
que um macaco entrou flutuando na cabine, e eu também tive de empurrá-
lo.”
Ao ficar claro que alguns segundos de ausência de peso eram mais
divertidos do que perturbadores, o pessoal da medicina aeroespacial
começou a orientar sua energia ilimitada para o cenário de missões de maior
duração. Posto em órbita ao redor da Terra durante três ou quatro dias ou
numa viagem à Lua, um astronauta seria capaz de comer? Ou a gravidade
era necessária para que o alimento chegasse ao estômago e fosse digerido?
Como ele beberia água? Um canudinho funciona em gravidade zero? No
fim de 1958, três capitães da Escola de Medicina de Aviação da Força
Aérea dos Estados Unidos, na Base Randolph, no Texas, requisitaram um
caça F-94C. Com quinze voluntários, empreenderam um projeto para
responder essas perguntas simples. No entanto, o artigo que relatava os
resultados do projeto, publicado numa revista científica, tinha o seguinte
título, nada simples: “Resposta fisiológica à subgravidade: mecânica da
nutrição e da deglutição de sólidos e líquidos”.
Os capitães não se tranquilizaram com o que descobriram. Surgiram
novos perigos, nunca antes imaginados. A água transformava-se numa
“massa ameboide” que levitava para fora do copo e “envolvia” o rosto. “O
fluido escorria para o interior dos [...] seios nasais quando os pacientes
tentavam respirar. A sensação de sufocamento — praticamente uma
sensação de afogamento — foi uma ocorrência comum.” Comer também foi
considerado perigoso. “Alguns pacientes relataram que pedacinhos de
alimentos se mantinham em suspensão na orofaringe e vários outros
contaram que pedacinhos de alimentos deslizaram sobre o palato mole e
penetraram nos condutos nasais.” Alimentos mastigados, diziam, subiam
pelo esôfago até a boca, onde “faziam com que os pacientes vomitassem e
se sentissem mal”. Eu teria presumido que o vômito era provocado pela
trajetória louca do avião ou, talvez, que estivesse relacionado ao efeito da
gravidade zero sobre o sistema vestibular, mas os pesquisadores agarraram-
se a suas manias e deram nome a uma entidade mórbida que não existia: o
“fenômeno de regurgitação durante voos em regime de ausência de peso”.
Avancemos cinco meses. Os três capitães são agora majores. Requisitam
outro F-94C e dão início à pesquisa sobre “resposta fisiológica à
subgravidade: início da micção”. A preocupação era legítima. Se você
neutralizar a atração da gravidade, a bexiga se esvaziará corretamente? Com
base em suas experiências com copos de água em situação de gravidade
zero (“muitíssimo desordenadas”), os pesquisadores sabiam que não
podiam fazer os rapazes urinar num recipiente aberto. Lançando mão de
pedaços de mangueiras tiradas de máscaras de oxigênio e pequenos balões
meteorológicos, produziram receptáculos de urina fechados. Para garantir
que todos urinassem, os voluntários foram instruídos, com o típico zelo da
Força Aérea, a beber oito copos de água nas duas horas que precederam a
decolagem. Disso resultou intenso desconforto e vários rapazes tiveram de
ir ao banheiro bem antes da hora da partida. Por fim, tudo saiu bem e a
urina fluiu normalmente.
Kittinger dá um nome especial aos pesquisadores: trouxas. “Os
especialistas espalharam pela base artigos científicos que diziam que aquilo
[a gravidade zero] seria o fator que impediria o homem de viajar ao
espaço”, diz Kittinger em seu depoimento oral. “E eu quase me mijava de
rir, porque adorava aquilo! Gostava mesmo, e muito.”
Na verdade, não se pode culpar os trouxas. Temos de situar os seus
temores no contexto da época. O espaço e a gravidade zero eram terreno
desconhecido, no qual se podia presumir que as regras habituais não se
aplicariam. No decorrer da história, o mesmo tipo de ansiedade vinha à tona
toda vez que surgia uma forma de transporte nova e mais rápida. “Quando o
aperfeiçoamento técnico da máquina a vapor possibilitou o
desenvolvimento das estradas de ferro, alguns cientistas temeram que a
velocidade dos trens exercesse efeitos nocivos sobre o corpo humano.” A
citação vem de um texto de medicina da aviação publicado em 1943.
(Naquela época, as locomotivas não passavam de 28 quilômetros por hora.)
No começo da década de 1950, ao surgirem os voos comerciais, muitos
médicos receavam que voar lesionasse o coração e tivesse efeitos adversos
sobre a circulação. Quando um certo dr. John Marbarger mostrou que isso
não acontecia, a United Airlines, agradecida, lhe concedeu o prêmio Arnold
F. Tuttle.
As agências espaciais ainda realizam voos parabólicos, mas hoje em dia
não testam mais seres humanos, e sim equipamentos. Toda vez que a Nasa
cria alguma coisa física — seja uma bomba, um elemento aquecedor ou
uma privada —, alguém tem de voar com ela num avião que decola do
Aeródromo Ellington, perto de Houston, para verificar que tipo de problema
pode surgir em gravidade zero. Duas vezes por ano, coisas ainda mais
problemáticas decolam dali: estudantes de universidade e jornalistas.

a Para medir a gravidade, usa-se um gravímetro. Levando esse instrumento para uma área de
formações rochosas muito densas, veremos a atração da gravidade aumentar. (As variações na
densidade da Terra alteram a gravidade o suficiente para desviar em até um quilômetro e meio a
trajetória dos mísseis, razão pela qual, na era da Guerra Fria, os mapas da gravidade da Terra eram
ultrassecretos.) O efeito diminui se a rocha densa for uma montanha alta e se você estiver a sete ou
oito quilômetros acima da superfície média da Terra. Se você levar uma balança de banheiro para o
alto do Everest, notará que lá em cima você pesa um pouco menos, descontando-se, é claro, os
quilinhos que obviamente perdeu na subida.
b Ou um saco de lixo da estação espacial, ou uma espátula da Nasa. Se um astronauta solta
objetos, eles se tornam satélites durante um período (de semanas ou meses) em que perdem
velocidade, até sair de órbita. O termo “satélite” se aplica a qualquer objeto que orbite em torno da
Terra. A tal espátula estava sendo usada para testar uma técnica de calafetagem para reparar
amassaduras no exterior dos ônibus espaciais, causadas, ironicamente, por lixo espacial. Não há
motivo para você temer ser morto pela queda de espátulas ou gurus do LSD, porque essas coisas
pegam fogo ao reingressar na atmosfera terrestre. (As cinzas do dr. Leary foram novamente cremadas
em algum momento de 2003.)
c Para animar as futuras gerações a assumir a luta contra a gravidade, Babson financiou a
construção de monumentos de pedra em treze importantes faculdades americanas. A “pedra
antigravidade”, como se tornou conhecida a do Colby College, assim declara sua meta: “Lembrar aos
estudantes as bênçãos que advirão quando se descobrir um semi-isolador capaz de explorar a
gravitação como uma força livre e reduzir os acidentes aéreos”. Os estudantes se animaram de uma
forma inesperada: numa atividade que virou um divertido rito pró-gravidade, derrubaram a pedra
antigravidade tantas vezes que a faculdade por fim a transferiu para um lugar de mais difícil acesso.
Além das pedras, Babson fez às faculdades doações pequenas, mas sem declarar explicitamente que o
dinheiro deveria ser empregado em pesquisas antigravidade. Por opor-se a promover ciência “Mickey
Mouse”, o Colby College utilizou o dinheiro para construir um caminho elevado entre dois edifícios.
“Pelo menos”, declarou uma pessoa ligada à instituição, “a passagem está longe do chão.”
d O sistema direcional dos foguetes V-2 era notoriamente instável. Em maio de 1947, um deles,
lançado do Campo de Provas de White Sands, em vez de ir para o norte, foi para o sul, caindo a
quatro quilômetros e meio do centro de Juárez, no México. A reação do governo mexicano ao
bombardeio americano foi admiravelmente contida. O general Enrique Diaz Gonzales e o cônsul-
geral Raul Michel reuniram-se com autoridades americanas, que divulgaram pedidos de desculpas
oficiais e os convidaram a assistir ao “próximo lançamento de foguete” em White Sands. A
população mexicana mostrou-se igualmente fleumática. “Queda de bomba não interrompe o festival
da primavera”, anunciou a manchete do El Paso Times, acrescentando que “muitas pessoas pensaram
que a explosão fosse um tiro de canhão anunciando a abertura da fiesta”.
5. SEM AMARRAS

Gravidade zero a bordo do C-9 da Nasa

Se por acaso você vier a adentrar o Edifício 993 no aeroporto de


Ellington Field, você se sentirá na obrigação de parar para admirar o que ali
se vê. O letreiro na entrada é tão interessante e absurdo como o que está
gravado numa placa de latão que diz Ministry of Silly Walks — Ministério
das Caminhadas Bobas — num esquete de Monty Python. O letreiro diz
Escritório de Gravidade Reduzida. Eu sei o que existe lá dentro, mesmo
assim sou obrigada a parar por um instante e dar largas à imaginação, na
qual vejo bules de café flutuando no ar e secretárias vagueando de um lado
para outro como aviõezinhos de papel. Ou, melhor ainda, imagino uma
organização dedicada a não levar nada a sério.
O verdadeiro Escritório de Gravidade Reduzida supervisiona um
programa em que universitários e colegiais competem pela chance de
executar projetos relacionados à gravidade zero durante voos parabólicos
num jato de transporte, o McDonnell Douglas C-9.a O programa é
patrocinado pela Nasa, mas com um excesso de gravidade.
Cheguei atrasada para as instruções de segurança. Estou inscrita como
jornalista de uma equipe da Universidade de Ciência e Tecnologia do
Missouri que estuda soldagem em regime de gravidade zero ou reduzida.
“Gravidade reduzida” refere-se à situação que existe, por exemplo, na Lua,
onde a gravidade equivale a um sexto da terrestre, ou em Marte, onde é de
um terço.
A instrutora de segurança aponta para a asa do C-9, estacionado no meio
do hangar em que estamos reunidos. Seu cabelo é castanho, longo e liso, e
ela usa uma blusa para amamentação. “Houve casos documentados”, diz,
“em que homens feitos foram puxados pela tomada de ar de uma turbina a
mais de três metros de distância.”b Já sei disso porque consta do Manual do
Participante. O livreto usa a palavra ingerido, como se o avião tivesse
desempenhado um papel ativo e sinistro no episódio.
Na parede atrás dela vê-se uma ferramenta de cabo comprido que lembra
os ganchos com que os baleeiros prendiam cetáceos com várias toneladas
de gordura ao costado dos navios. Um letreiro identifica o instrumento
como GANCHO PARA RESGATE DE CORPOS. É usado para salvar uma pessoa que
está sendo eletrocutada. Em muitos casos, a eletricidade contrai os
músculos dos braços e das mãos da vítima, fazendo com que ela fique
agarrada ao próprio objeto que a está matando. Se outra pessoa tentar puxá-
la segurando-a pelo braço, os músculos de sua mão se contrairão também, e
as duas pessoas precisarão ser resgatadas. O cabo é isolado, o que permite a
uma pessoa hábil usar o gancho para salvar uma ou duas vidas sem aderir
ao trenzinho de eletrocutados. Na mesma parede, um quadro relaciona as
muitas coisas capazes de provocar uma descarga acidental de espuma anti-
incêndio no edifício. Fico nervosa ao ver que “solda” está na lista.
A lista de perigos é enorme. Na pista de pouso e decolagem é
fundamental o uso de proteção auditiva. Não podemos usar chinelos de
dedo ou sandálias. Brincadeiras de mau gosto são expressamente proibidas.
No material de divulgação que recebi há uma fotografia de um C-9 no
segmento ascendente do arco parabólico. O avião voa num ângulo absurdo,
da maneira como uma criança movimenta um aviãozinho de brinquedo pelo
ar. Parece-me estranho que a Força Aérea fique falando dos perigos de
espumas antifogo e de calçados abertos e não dos perigos de voar num jato
que não para de fazer mergulhos camicases e subidas tão íngremes que as
turbinas chegam a estremecer.
Essa mescla de extremos — paranoia no dia a dia seguida de temeridade
aeronáutica — parece típica da astronáutica custeada pelo governo. Os
edifícios da Nasa estão cheios de letreiros com advertências relativas ao
grande número de perigos corriqueiros. Por todo lado se veem avisos sobre
riscos de ESCORREGÃO, TROPEÇO e QUEDA. Literalmente: por todo lado. No
interior dos compartimentos do banheiro da lanchonete do Centro Espacial
Johnson, o porta-papel tem um balão de diálogo de histórias em quadrinhos
com a seguinte mensagem: “Moças, não me atirem no chão. Ali posso me
tornar um risco de escorregão, tropeço e queda!”. Na entrada dos edifícios
há recipientes para guarda-chuvas molhados, cortesia da Equipe de
Segurança, para manter os pisos secos. É como se a Nasa fosse povoada por
legiões de comediantes como Mr. Bean. Se um corredor dá uma guinada de
noventa graus, um aviso em letra de fôrma adverte: ESQUINA: AVANCE COM
CUIDADO.
Manter a concentração em pequenos perigos no local de trabalho talvez
ajude as agências espaciais a enfrentar os enormes perigos com que se
confrontam em cada missão: explosões, colisões, incêndio,
despressurização. Tal como a guerra, o espaço é um tenebroso bicho-papão
que leva embora suas vítimas por mais cuidado que se tenha ao planejar
cada situação. Não é possível controlar o tempo ou a gravidade, mas é
possível controlar os sapatos que a visitante usa e a quantidade de água que
pinga de sua sombrinha.
Para fazer justiça à Nasa, nunca uma aeronave em voo parabólico caiu. O
predecessor do C-9 foi o KC-135, modelo que é exibido num suporte de aço
no gramado externo, a três metros de altura e aparentemente voando rumo à
intendência. Esse avião fez 58 mil parábolas sem nenhum “infortúnio”.c No
entanto, esse é o tipo de coisa que os astronautas diziam uns aos outros até o
dia em que a Challenger explodiu a catorze quilômetros de altitude sobre o
Atlântico.

São seis da tarde. Os estudentifica-se a quem telefona para lá como


“Estada Prolongada América Centro Espacial Johnson” —, a Nasa TV é o
primeiro canal da televisão. Eu adoro a Nasa TV. Em geral mostra apenas
cenas sem manipulação, captadas por câmeras instaladas na estação
espacial. Você verá um clipe de dez minutos de uma bateria de painéis
solares, imóvel no silêncio do espaço, passando veloz sobre a África, o
Atlântico, a Amazônia. Aquilo tem sobre mim um efeito calmante. Escuto
gente da Nasa dizer que acham aquilo enfadonho, e tem havido esforços
para incrementar essas tomadas com gráficos e programas com
apresentadores, mas a maior parte do que a Nasa TV mostra é, felizmente,
material sem manipulação.
Naquele dia, os astronautas da estação espacial tinham acabado de
instalar o Kibo, o novo módulo experimental do Japão. Depois da
inauguração e da entrevista coletiva, vejo os astronautas entrando no
módulo pela primeira vez. Parecem touros em direção à arena, induzidos ao
movimento pelo repentino surgimento de um espaço aberto. Já assisti muita
coisa na Nasa TV, e raramente se vê esse tipo de naturalidade. Em geral o
que se vê é um sujeito debruçado sobre um circuito eletrônico, com um pé
num apoio, balançando de leve como um barco ancorado. Ou a tripulação
disposta em fileiras de assentos, virada para a câmera, enfrentando
perguntas de jornalistas. E se não fosse o fio do microfone flutuando, ou o
colar de ouro de uma moça erguendo-se diante de seu queixo, você até
esqueceria que eles não têm peso.
Meu prato de massa esfriou porque não consigo desviar os olhos da TV.
Um astronauta está girando na horizontal, como se a Nasa houvesse
contratado um daqueles camaradas que fazem efeitos especiais para filmes
de artes marciais. Karen Nyberg está ricocheteando como uma bola de
bilhar: parede, teto, parede, chão. Ninguém usa sapatos, porque ninguém
precisa pisar no chão, e, mesmo se precisar, a poeira e a sujeira não se
depositam ali. O astronauta japonês, Akihiko Hoshide, está agachado junto
da entrada do módulo, esperando que ela seja desimpedida. Ele se mexe e
voa pelo ar com os braços estendidos, como um super-herói. Já fiz isso em
sonhos: estou num imenso edifício antigo, com pé-direito de quinze metros
e sancas ornamentadas. Impulsiono o corpo com os pés, contra a sanca,
deslizo para o outro lado do salão, faço a volta junto da parede e atravesso o
salão de novo. Sejam quais forem os perigos dos voos parabólicos, não
diminuem a alegria da expectativa de superar a gravitação. Vou dormir
sentindo-me como uma criança de seis anos na véspera do Natal.
De manhã, quando chego ao hangar, o experimento de soldagem de
minha equipe já foi levado para o C-9. Visto de fora, o avião não difere
basicamente de qualquer jato de grande porte, mas por dentro ele foi
eviscerado. Só restam seis fileiras de assentos, no fundo. O dispositivo de
solda é um braço mecânico montado numa caixa com parede frontal de
vidro num armário com porta. O armário está fixado a um carrinho como
aquele que os mágicos empurram de um lado para outro do palco. Dois
estudantes e o supervisor estão de quatro, tentando prender as pernas do
carrinho em suportes montados no piso. As medidas não coincidem por
milímetros.
Michelle Rader, integrante da equipe, explica o projeto do grupo. Muita
coisa do que os astronautas vêm fazendo na estação espacial na última
década equivale a obras de construção civil, mas normalmente as peças são
aparafusadas, e não soldadas. Fagulhas e metal fundido deixam a Nasa
nervosa. Uma gota de metal superaquecido que caia no traje espacial de um
astronauta pode atravessar as camadas de tecido e provocar um vazamento.
Pode-se cogitar a possibilidade de um soldador blindado ou robótico, mas
primeiro é preciso ter certeza de que soldar em condições de gravidade zero
não compromete a resistência da soldagem. É isso que os estudantes do
Missouri estão testando hoje.
O som agudo de um estalo faz com que muitas cabeças se virem. Um dos
estudantes do projeto de soldagem tentou forçar uma das pernas do carrinho
no suporte, e ela quebrou. O gerente do Programa de Gravidade Reduzida,
Dominic Del Rosso, fita o bolo de estudantes. Tem a cabeça rapada e os
braços cruzados. Lembram-se do ator Yul Brynner como o rei do Sião? É
ele, metido num traje espacial. Glacial e irritado. “O que aconteceu?”
Uma vozinha: “Nós, hum...”.
Alguém explica o que houve: “Uma solda quebrou”.
A equipe de soldagem observa que não foram eles que soldaram as
pernas do carrinho. Essas soldagens foram executadas por alguém da
oficina mecânica da S&T, no Missouri. Alguém disca o número desse
homem num celular. Não há nada que o homem possa fazer por eles, a não
ser lamentar o ocorrido, o que é, provavelmente, o que todos querem fazer
nesse momento. Del Rosso não está interessado em saber quem foi o
culpado. Aponta para a porta do avião. “Tirem isso daqui.”
O quê? Eu suportei dois dias de exposições da Nasa sobre segurança a
troco de nada? Será tarde demais para trocar de equipe? Vou ter de me
insinuar junto à equipe de detecção do analito mediante nanoesporos
proteicos? De volta ao hangar, puxo papo com um dos estudantes do grupo
de Missouri. Ele tem um certo conhecimento sobre explosivos, assim como
a personalidade um tanto amarga e misantrópica de alguém que nada
deveria saber dessas coisas. Pergunto a ele se sua equipe ainda vai participar
do voo se conseguirem consertar a perna do carrinho.
Ele não sabe. Faz parte do pessoal de apoio terrestre e não iria voar
mesmo. Dirige-me um sorriso forçado. “Tudo bem.” E a seguir, lembrando-
se das palavras que alguém lhe recomendara usar: “É uma honra
simplesmente estar aqui”.
Ao meio-dia, o dispositivo de soldagem está de volta a bordo, fixado
diretamente ao piso do avião. A Equipe de Soldagem Espacial vai realizar
sua experiência, enfim.

Nunca pensamos no peso dos órgãos dentro de nós. O coração é uma


bomba de duzentos e poucos gramas presa na extremidade da aorta. Os
braços sobrecarregam os ombros como baldes presos a uma canga. O cólon
usa o útero como um pufe de bolinhas. Até o peso do cabelo causa uma
sensação no couro cabeludo. Em condições de imponderabilidade, tudo isso
desaparece. Os órgãos flutuam dentro do tronco.d O resultado é uma sutil
euforia física, uma sensação indescritível de estarmos livres de uma coisa
que não sabíamos que existia.
Quem consulta na internet o site da Microgravity University, da Nasa,
pode ver fotos e mais fotos de estudantes concentrados seriamente em seus
projetos e, no segundo plano de muitas delas, duas bobas risonhas voando
uma na direção da outra como blusas numa secadora. Somos Joyce e eu.
Joyce é do departamento de educação, na sede da Nasa, em Washington. Ela
ajuda a administrar o programa de voos de estudantes, mas nunca havia
participado de um deles. Na verdade, eu deveria estar com minha equipe,
tomando notas sobre como as coisas estão indo. No entanto, não posso fazer
isso porque minha caderneta está flutuando diante de meu rosto, com todas
as páginas abertas, e preciso ver isso mais um pouco. Ela paira no ar, sem
subir nem cair, como um balão inflável alguns dias depois da festa.
(Quando volto para o quarto do hotel a fim de rever minhas anotações,
constato que não escrevi nada importante. Eu estava mais para testar minha
Caneta Espacial Fisher do que para tomar notas. Minhas notas dizem:
“UAU” e “EBA”.)
Na noite passada, na Nasa TV e em resposta à pergunta de uma criança,
um astronauta disse que em gravidade zero uma pessoa se sente como se
estivesse flutuando na água. Não é bem isso. Na água, a pessoa sente a
ajuda do líquido, que suporta seu peso e a faz boiar. Quando a gente se
move, sente que ela nos empurra para trás. A pessoa está flutuando, mas
continua a sentir um peso. No C-9, porém, durante 22 segundos de cada
vez, a pessoa flutua no ar sem esforço, sem ajuda, sem resistência. A
gravitação está de folga.
Quem nos oprime e pesa sobre nós é Del Rosso. Ele recomendou que
segurássemos numa alça com uma das mãos. Por isso, toda vez que estou
flutuando e alcanço o limite de meu cabo, meu corpo vira para a esquerda.
Isso me obriga a invadir o espaço aéreo sobre o sistema de acoplamento
eletromagnético da equipe da Universidade de Kansas. Para me afastar dali,
tenho de esticar a perna para baixo e me impulsionar apoiando o pé na
armação dessa coisa. “Não chute o experimento deles!”, rosna Del Rosso.
Como se eu fizesse isso de propósito. Eu odeio essa porcaria de
acoplamento! O que acontece é que a gente leva um tempo para se
acostumar com esse lance de flutuar. Perguntem a Lee Morin. O
Especialista de Missão Morin me disse que uma pessoa demora mais ou
menos uma semana para se sentir à vontade flutuando. “Depois parece o
estado natural. Flutuar como um anjo. Não sei se é como se a gente
estivesse de volta ao ventre da mãe, alguma coisa assim, mas flutuar parece
o estado natural. E fica muito esquisito pensar em andar com sapatos.”
“Pés para baixo!”, grita um traje espacial azul. Isso indica que devemos
nos posicionar, porque a gravidade está voltando. Ela volta devagar — a
pessoa não cai do teto —, mas, ainda assim, ninguém quer estar com a
cabeça no chão quando ela chegar. Alguns se deitam de costas no segmento
de gravidade dupla, pois ouvimos dizer que assim se sente menos náusea.
A gravidade volta a desaparecer, e levantamos do piso como espectros de
uma tumba. É como o Êxtase a cada trinta segundos. A microgravidade é
como a heroína, ou como eu imagino que seja a heroína. A pessoa a
experimenta uma vez, e quando seu efeito passa, ela só consegue pensar no
quanto deseja prová-la de novo. Mas, ao que parece, a emoção aos poucos
passa. “No começo”, escreveu o astronauta Michael Collins num livro para
adolescentes, “flutuar na nave é muito divertido, mas depois de certo tempo
isso começa a chatear e a pessoa quer ficar parada em um lugar só. [...]
Minhas mãos não paravam de flutuar diante de mim, e bem que eu gostaria
de ter bolsos ou outro lugar onde enfiá-las.” O astronauta Andy Thomas
comentou comigo como era exasperante nunca conseguir prender as coisas.
“Tudo precisa ter um pedacinho de velcro. A gente está sempre perdendo
coisas. Levei uma lixa de unhas para a Mir, e tinha muito cuidado com ela.
Mais ou menos um mês antes do fim da missão, ela saltou de minha mão.
Virei-me para pegá-la, mas tinha sumido. Ela desceu com a Mir. Certa vez
perdemos uma caixa coletora de agulhas usadas. Uma coisa incrível. Sumiu.
Nunca mais a vimos.”
Hoje temos alguns contratempos. O computador de uma das equipes não
para de travar. É um daqueles laptops robustos que, como proteção, travam
ao detectar um aumento repentino na aceleração. Na Terra, esse aumento
significa que ele está caindo. Aqui em cima, indica que o piloto está saindo
do mergulho.
Nada funciona como se espera em gravidade zero, ou zero G, como
também se diz. “Nem mesmo algo simples como um fusível”, disse-me o
astronauta Chris Hadfield, imaginando que eu soubesse alguma coisa sobre
o funcionamento de fusíveis. Agora eu sei: os fusíveis têm um filamento de
metal que se funde quando ocorre um pico de corrente. A fusão do
filamento deixa uma lacuna no circuito que interrompe o fluxo de energia.
Sem gravidade, a gota não cai, de modo que a energia continua a passar até
o metal ferver — quando o equipamento já fritou. A gravidade zero é parte
do motivo pelo qual os gastos da Nasa parecem tão absurdos. Todo
componente ou equipamento novo utilizado numa missão — toda bomba,
ventoinha, válvula reguladora, qualquer outro dispositivo — requer um
protótipo a ser testado no C-9 para garantir que funcionará em zero G.
O superaquecimento de equipamentos é um problema comum em
gravidade zero. Qualquer coisa que produza calor tende a superaquecer,
porque em zero G não há correntes de convecção no ar. Na Terra, o ar
quente sobe — porque é mais tênue e mais leve; as moléculas mais
enérgicas ricocheteiam umas nas outras e se espalham mais do que no ar
mais frio. Quando o ar quente sobe, o ar frio ocupa o vácuo que ele deixou.
Mas quando nada tem peso, o ar quente permanece onde está, esquentando
cada vez mais e, por fim, danificando o equipamento.
A máquina humana tende a superaquecer pela mesma razão. Sem
ventiladores, todo o calor gerado pelos astronautas em ação pairaria em
torno de seus corpos como um miasma tropical. O mesmo aconteceria com
o ar que exalam. Astronautas que penduram seu saco de dormir em locais
mal ventilados sentem dor de cabeça, provocada pelo dióxido de carbono.
No caso da equipe de soldagem espacial, foi a maquinaria humana a que
mais apresentou problemas. Não era algo que se pudesse resolver com um
ventilador.
a Alguns meses depois de minha visita, os voos foram terceirizados e ficaram a cargo da Zero G
Corporation, que usa um Boeing 727. A maioria das pessoas chama o avião de “Cometa do Vômito”,
mas a Nasa não gosta disso e pediu que nos referíssemos ao aparelho como Maravilha de
Imponderabilidade. Mesmo assim algumas pessoas ainda vomitam.
b Alguns meses depois, falei da história a um Guarda Aéreo do Oregon. Ele respondeu que isso
tinha acontecido a um conhecido dele. “Eu vi fotos”, disse, chegando para a frente no assento. “Ele
estava assim, como que vazando do lado de trás.” Uma busca no Google com a frase “Human FOD”
[Dano por objeto estranho humano] leva ao vídeo de um jovem aviador sendo puxado para a tomada
de ar de um jato A-6, o que faz centelhas atingirem o outro lado, mas não o do próprio rapaz. Em
outro vídeo ele aparece, no mesmo dia, desperto e conversando, com a cabeça enfaixada, mas em
bom estado físico. Um médico militar me disse que, nesses casos, para sobreviver, o truque é lançar
uma lanterna ou chave de catraca em direção à turbina. Esse objeto será feito em pedaços, mas
travará a turbina antes que a sua cabeça chegue até ela. Uma página na internet recomenda o uso de
óculos presos a alças de pescoço, para que não sejam arrancados do rosto da pessoa. A seguir,
informa que a sucção de uma turbina pode ser forte o suficiente para arrancar os globos oculares das
órbitas, mas não recomenda nenhum produto para evitar isso.
c Isso seria um infortúnio classificado pela Nasa como de tipo A, já que acarretaria,
provavelmente, “lesão ou doença resultante em óbito”. Um fato que certamente seria um “infortúnio”
para você ou para mim (por exemplo, alguma coisa envolvendo um piso escorregadio) não é um
infortúnio, nem sequer um infortúnio do tipo D. É um “quase acidente”. Mesmo assim, existe um ato
burocrático a cumprir, o preenchimento do formulário de notificação de quase acidente (Formulário
JSC 1257).
d Eles migram para cima, reduzindo a cintura de uma pessoa de um modo que dieta alguma
poderia fazer. Um pesquisador da Nasa deu a isso o nome de Tratamento de Beleza Espacial. Na
ausência da gravidade, o cabelo tem mais volume. Os seios não caem. Mais fluidos corporais migram
para a cabeça e alisam nossos pés de galinha. Como os sensores de volume de sangue só se localizam
na parte superior do corpo, o sistema pensa que você está retendo muito líquido e se livra de 10% a
15% de seu peso em água. (Entretanto, também já vi isso ser chamado de síndrome do rosto inchado
e pata de galinha.)
6. PARA LÁ, PARA CÁ, PARA... FORA!

O sofrimento secreto do astronauta

No teto do C-9 há um mostrador numérico vermelho do tipo que se vê em


balcões de lojas de conveniência, informando aos clientes que número será
atendido. Este, o do avião, conta parábolas: 27 até o momento. Mais três e o
voo estará terminado. Fomos instruídos a “não bancar o Super-Homem na
cabine”, mas não resisto. No momento em que a gravidade desaparece na
28a parábola, levanto as pernas, agacho-me junto a uma janelinha e me
desenrosco suavemente, lançando-me de um lado para outro da aeronave. É
como me impulsionar contra a parede de uma piscina, só que a piscina está
vazia e estou deslizando no ar. Provavelmente, o momento mais sensacional
de minha vida. Mas não da vida de Pat Zerkel. O soldador espacial do
Missouri foi amarrado na primeira fileira de assentos. Ainda que sem peso,
parece muito sobrecarregado. Um saco branco paira perto de seu rosto. Ele
o mantêm aberto com as duas mãos, como se caminhasse com um chapéu
no meio de uma porção de gente, coletando gorjetas.
“Uuuuu-aaaaaa-gggggg-hhhhh-uuuaakkkkk.” Pat está passando mal
desde a quarta parábola. Na sétima, o médico de bordo resolveu segurá-lo
durante o arco de ausência de peso, na esperança de que isso o ajudasse. (E
também, como me disse depois, para impedir que ele, “incapacitado,
flutuasse de um lado para outro e vomitasse o avião todo”.) Na décima
segunda parábola, homens de trajes azuis lhe deram uma injeção e o
ajudaram a ir para o fundo do aparelho, onde ele permaneceria durante todo
o resto do voo. A maldade especial do enjoo, o ápice de sua crueldade, está
em às vezes atacar a pessoa quando ela está muito feliz. Um passeio de
barco na baía de San Francisco ao entardecer, a primeira vez que uma
criança se diverte na montanha-russa, o primeiro voo de um astronauta no
espaço.a Não existe meio mais rápido de uma pessoa passar da felicidade à
agonia, do eba ao uuu-aaaa-ggg-hhh-uaakk.
No espaço, o enjoo é mais do que um desagradável constrangimento. Um
tripulante incapacitado é o doente mais caro do mundo. Uma missão
soviética, a Soyuz 10, teve de ser abortada devido a um enjoo. Seria de
imaginar que a ciência já tivesse dado um jeito nisso. Não tem sido por falta
de esforço.

Para determinar a melhor forma de evitar o enjoo é preciso, primeiro,


determinar a forma mais eficaz de provocá-lo. A pesquisa aeroespacial tem
obtido êxitos retumbantes nessa parte, mas não na outra. E, talvez, as
melhores respostas tenham sido obtidas no Instituto Médico Aeroespacial
da Marinha dos Estados Unidos, em Pensacola, Flórida: foi ali que surgiu o
aparelho de desorientação humana. Num estudo de 1962 financiado pela
Nasa, vinte cadetes aceitaram ser presos a um assento montado, de lado,
numa lança horizontal. Assim presos, os rapazes foram postos a girar, como
se estivessem numa assadeira de frangos, num ritmo de até trinta rotações
por minuto. Para se ter uma ideia, um frango num espeto motorizado
normalmente faz cinco rotações por minuto. Somente oito dos vinte
voluntários chegaram ao fim do estudo.
Atualmente, o indutor de enjoo por excelência é a cadeira giratória.b A
pessoa se senta nela, com o tronco ereto, como se fosse transcrever um
ditado. Um motorzinho faz com que a cadeira gire em sua base, conferindo,
à primeira vista, um quê de contentamento ao ambiente, como se a pessoa
tivesse, ela mesma, feito a cadeira girar — um pilequinho na festa de Natal
do escritório. A uma ordem do condutor do experimento, os voluntários, de
olhos fechados, inclinam a cabeça para a esquerda e depois para a direita,
ainda girando. Experimentei rapidamente a cadeira giratória instalada no
laboratório de enjoo espacial da pesquisadora Pat Cowings, no Centro
Ames da Nasa. Na primeira inclinação da cabeça, alguma coisa sacudiu
dentro dela. “Posso fazer uma pedra enjoar”, disse Pat, e não duvido disso.
O que foi que as várias torturas da pesquisa sobre enjoo ensinaram à
aeromedicina? Para começar, hoje conhecemos sua causa: o conflito
sensorial. Surge um mal-entendido entre os olhos da pessoa e seu sistema
vestibular. Digamos que essa pessoa seja um passageiro no camarote de um
navio que balança. Como ele está se movendo junto com as paredes e o
piso, seus olhos informam ao cérebro que está sentado, imóvel, no
camarote. Mas seu ouvido interno conta uma história diferente. Como o
navio o sacode para cima e para baixo e de um lado para outro, seus otólitos
— minúsculas concreções de carbonato de cálcio que repousam sobre o
revestimento de pelos do vestíbulo da orelha interna — registram esses
movimentos. Se o navio, por exemplo, afunda numa depressão entre duas
ondas, os otólitos sobem; quando o navio se eleva num vagalhão, eles
descem. Como o camarote está se movendo junto com a pessoa, os olhos
dela não detectam esses dois movimentos. O cérebro se confunde e, por
motivos ainda pouco compreendidos, reage deixando a pessoa nauseada.
Daí a pouco ela estará pondo tudo para fora. (É por isso que é melhor ficar
no convés, onde os olhos podem registrar o movimento do navio em relação
ao horizonte.)
A ausência de gravidade causa um conflito sensorial de excepcional
complexidade. Na Terra, quando a pessoa está em pé, a gravidade faz com
que seus otólitos repousem nos cílios do fundo da orelha interna. Se ela se
deita de lado, eles repousam nos cílios daquele lado. Numa situação de
gravidade zero, em ambos os casos, os otólitos flutuam no meio da orelha
interna. Ora, se a pessoa vira a cabeça de repente, eles estão livres para
quicar de um lado para outro nas paredes do vestíbulo. “Com isso, a orelha
interna da pessoa informa que ela se deitou e levantou, se deitou e
levantou”, diz Pat Cowings. Até o cérebro aprender a reinterpretar os sinais,
a contradição pode provocar enjoos sem fim.
Em vista da culpa dos otólitos, não surpreende saber que movimentos
súbitos de cabeça são extremamente “provocativos”, para usarmos o jargão
dos especialistas em enjoo. Quem consultar edições antigas da revista
Aerospace Medicine verá fotos de soldados da Segunda Guerra Mundial
com a expressão tensa e a cabeça metida entre apoios acolchoados na
vertical nas paredes dos aviões de transporte de tropas: a forma que alguém
imaginou para tentar conter a catadupa de vômitos. (O cheiro das emissões
de outras pessoas em ambientes fechados é também muito “provocativo”.
Pat prefere o termo “motivador”.) O enjoo no mar e no ar foi um problema
tão sério durante a guerra que, em 1944, o governo criou uma Subcomissão
Federal de Cinetose. (Por outro lado, criou também uma Subcomissão
Federal para Nutrição de Aves Domésticas e outra para tratar de
sedimentação.) Para confirmar os perigos dos movimentos desordenados da
cabeça, Charles Oman, especialista em enjoo do Instituto Nacional de
Pesquisas Biomédicas Espaciais dos Estados Unidos, instalou acelerômetros
atrás dos capacetes dos astronautas.
As pessoas que, por sua própria natureza, costumam sacudir muito a
cabeça são as que mais tendem a sofrer com enjoos durante uma missão. O
que é válido no espaço é válido também dentro de um carro numa estrada
sinuosa: por mais que o motorista do carro de trás pareça um homem das
cavernas, não vire a cabeça de repente para olhar. De acordo com estudos
realizados pelo ativo pesquisador Ashton Graybiel na década de 1960, em
pessoas muito suscetíveis, um único movimento de cabeça gera uma
elevação mensurável no nível de transpiração — indicação de que o mal
está a caminho.c
“Na verdade, propusemos a fabricação de um gorro sonoro”, disse Oman.
Se os astronautas movessem a cabeça depressa demais ou com muita
frequência, escutariam um bipe de advertência. Ele não registrou as reações
dos astronautas à proposta do gorro sonoro, mas meu palpite é de que foram
muito “provocativas”, como dizem, pois o gorro astronáutico não apareceu.
Em uma missão, Oman conseguiu fazer com que os astronautas aceitassem
experimentar colares acolchoados, projetados para desestimular
movimentos de cabeça desnecessários, mas eles foram logo removidos. “Os
astronautas acharam que causavam irritação”, comentou Oman,
desconsolado.
Os astronautas têm de lidar com a mãe de todos os conflitos sensoriais: a
ilusão de reorientação visual. Isso acontece quando o “em cima”, de
repente, vira o “embaixo”. “Você está executando uma tarefa [...] e
aparentemente reorientando o ‘embaixo’ sem prestar atenção nisso, e então
se afasta e percebe que o ambiente inteiro estava inteiramente de pernas
para o ar em relação ao que você estava pensando”, lembra-se um
astronauta do Spacelab citado em um dos trabalhos de Oman. (Pode ter sido
esse o problema de Pat Zerkel; ele me disse que tinha “a sensação clara de
perder toda a percepção de em cima e embaixo”.) Isso acontece mais
depressa em espaços onde não há pistas visuais óbvias sobre onde fica o
piso, o teto ou as paredes. O túnel do Spacelab tinha péssima fama. Para um
certo astronauta, passar por ele era garantia de enjoo, tanto assim, disse ele
a Oman, que às vezes ia ali unicamente para “vomitar e se sentir melhor”. A
simples visão de um colega de equipe numa posição diferente provocava o
mal-estar. “Vários tripulantes do Spacelab relataram episódios súbitos de
vômito após verem um membro da equipe flutuando de cabeça para
baixo.”d Nada pessoal.
Oman e outros especialistas ainda não chegaram a uma conclusão: os
medicamentos são úteis ou não? No espaço, tal como no mar, o
restabelecimento é uma questão de adaptação. Se a pessoa está debaixo das
cobertas, em posição fetal, não expõe o sistema vestibular à nova realidade.
Por outro lado, exagerar na exposição pode significar ir além do limite
pessoal e adoecer. As drogas mantêm os astronautas fora do leito,
permitindo que se mexam e trabalhem. Mas também dão uma falsa
sensação de imunidade, incentivando as pessoas a exceder sua capacidade.
Os medicamentos antienjoo não tornam o paciente imune, apenas elevam o
limiar de tolerância.
Para uma pessoa que faz uma viagem curta, por exemplo, atravessando o
canal da Mancha ou a bordo do C-9, os medicamentos são eficientes. A
Nasa nos ministrou Scop-Dex (a dextroanfetamina compensa os efeitos
sedativos da escopolamina). Mesmo assim, a maioria dos voos tem pelo
menos um ou dois “derrubados”, que é como os trajes espaciais azuis
chamam os acometidos de enjoo. Pat Zerkel já parecia nauseado antes
mesmo que começassem as parábolas. Talvez ele seja alguém que
desenvolveu uma resposta condicionada à simples vista de um veículo —
no caso, um avião — que um dia o fez passar muito mal. Quem diz que
“enjoa só de ver um barco” nem sempre está exagerando. (Técnicas de
relaxamento e anticondicionamento podem ser úteis nesses casos.) Há
pessoas que também desenvolvem respostas condicionadas ao cheiro de
vômito. “É por isso que o enjoo parece contagioso”, diz Oman.
Uma coisa que a pesquisa de Pensacola comprovou é que fixar a atenção
em outra coisa pode ajudar. Os oito cadetes que foram até o fim do
experimento com a máquina de desorientação humana foram aqueles a
quem tinham sido dadas tarefas “constantes de aritmética mental” ou de
premir botões em certa sequência e em determinado tempo. Tarefas mentais
e não escritas, porque a última coisa que uma pessoa quer fazer quando luta
contra o enjoo é ler. Evite, especialmente, ler artigos como “Análise de
vômitos e conteúdos do trato gastrintestinal”.

Rusty Schweickart fez tudo errado. Na Apollo 9, ele fora incumbido de


testar a mochila de suporte de vida que Neil Armstrong e Buzz Aldrin, da
Apollo 11, utilizariam em seu histórico desembarque na Lua. Deveria
prendê-la nas costas, ligá-la e entrar no Módulo Lunar despressurizado.
Como enjoara nos voos parabólicos de treinamento, agiu com enorme
cuidado durante os três dias que precederam sua caminhada espacial. “Todo
o meu modus operandi [...]”, disse em seu depoimento para os arquivos da
Nasa, “consistiu em manter a cabeça o mais imóvel possível e não me
movimentar muito.” Esse foi o primeiro problema: ele retardou sua
adaptação. No terceiro dia, teria de vestir seu traje de EVA. Isso, nas palavras
dele, era um “verdadeiro desafio de contorcionismo”. Problema no 2:
movimentos de cabeça. “De repente, eu tinha de vomitar, [...] e, digamos,
essa não é uma sensação agradável. Mas é claro que a pessoa se sente
melhor vomitando.” Mais animado, ele deu prosseguimento a seus
preparativos, passando para o Módulo Lunar. Problema no 3: ele tinha
pavor da ilusão de reorientação visual. “Você está acostumado a estar de
cabeça para cima, mas, quando chega lá, ela está para baixo.” Quando
Schweickart chegou, teve de esperar que seu colega verificasse em que
ponto ele estava na lista de tarefas. “Não tenho praticamente nada a fazer.”
Problema no 4. “Quando a cabeça da pessoa está vazia... as prioridades
[dela] já eram, aí [...] o mal-estar passa a ser a prioridade máxima em seu
cérebro. De repente, tive de vomitar de novo.”
No caso do enjoo espacial, o impulso de vomitar pode se dar com
inusitada subitaneidade. Um dos astronautas do Spacelab entrevistados por
Oman recorda estar sentado ao lado de um colega que comia uma maçã.
“Bem no meio daquilo, ele disse ‘Ah, uuéé!’, jogou a maçã para um lado e
vomitou num jato.” O pessoal da plataforma de lançamento enche os bolsos
dos novatos com sacos de vômito extras antes da partida, mas, mesmo
assim, regurgitações repentinas são comuns.e As regras de etiqueta da Nasa
determinam que cada um deve limpar a própria sujeira. Como disse um dos
entrevistados por Oman, “Ninguém vai fazer isso por você... e você com
certeza não vai querer ninguém fazendo isso mesmo”. No entanto, não se
pode acusar os colegas de Schweickart de desumanidade. Este é,
provavelmente, o momento mais comovente na transcrição, de 1200
páginas, da missão Apollo 9:
DAVE SCOTT, PILOTO DO MÓDULO DE COMANDO: Por que você não deixa o
resto do desligamento e tudo mais por nossa conta e vai tirar o traje, se
limpar, tentar comer e deitar?
SCHWEICKART: Certo. Me limpar é tudo o que eu quero.
SCOTT: Pegue uma daquelas toalhas e se lave... enfim, essas coisas. Isso
vai fazer você se sentir melhor.
SCHWEICKART: Certo. Você quer tomar conta do rádio?
SCOTT: Quero, eu faço isso.
Por motivos que explicarei daqui a pouco, a Nasa faz o possível e o
impossível para evitar que os astronautas, de ambos os sexos, vomitem no
capacete durante uma caminhada espacial. Schweickart e Scott tiveram uma
conversa séria sobre a possibilidade de eliminar essa EVA e simplesmente
dizer à Nasa que ela tinha sido feita. A missão Apollo 9 era um passo crítico
na corrida para levar um homem à Lua. O sistema de sobrevivência que
Armstrong e Aldrin usariam na Lua tinha de ser testado, do mesmo modo
que o equipamento e os procedimentos de encontro e acoplamento de
módulos. “Já estamos em março de 1969”, lembra-se Schweickart em seu
depoimento. “O fim da década está à vista. [...] Essa missão seria
desperdiçada porque Schweickart está vomitando? [...] Quer dizer, existia
uma possibilidade real em minha mente, na época, de que eu fosse a causa
de não cumprirmos a promessa de Kennedy de que, até o fim da década, os
Estados Unidos levariam um homem à Lua e o trariam de volta.”
O que acontece se você vomitar no capacete durante uma caminhada
espacial? “Você morre”, respondeu Schweickart. “Você não consegue tirar
aquela gosma da boca. [...] Ela fica flutuando bem ali e você não tem como
tirar aquilo de seu nariz ou da boca para poder respirar, de modo que vai
morrer.”
Não é bem assim. Já no tempo do projeto Apollo, os capacetes dos
astronautas americanos dispunham de canais de ar que dirigem o fluxo para
baixo, a uma taxa de 0,17 metro cúbico por minuto, de modo que o vômito
seria afastado do rosto e lançado no traje espacial. Nojento, sim. Fatal, não.
Repassei todo o cenário de morte por vômito com Tom Chase, engenheiro
de trajes espaciais da Hamilton Sundstrand. “Há uma possibilidade
extremamente remota de que um pouco de vômito penetre no duto de
retorno do oxigênio nas costas do astronauta”, ele explicou. “São cinco
dutos de retorno, sendo que quatro ficam nas pernas e nos braços, de modo
que mesmo que um deles fique bloqueado, seria improvável um bloqueio de
todo o sistema. E ainda que isso viesse a acontecer, o astronauta poderia
desligar o ventilador dos dutos e ativar o modo ‘drenagem’, o que faria os
dutos se limparem, por meio da válvula de drenagem do Módulo de
Informação e Controles, e manterem o fluxo de oxigênio, proveniente dos
tanques pressurizados, para o capacete.” Chase desligou seu ventilador por
um momento. “Como vê, essa questão foi pensada e resolvida em todos os
detalhes.”
Ainda que o vômito ficasse parado diante do nariz e da boca do
astronauta, isso o mataria? É improvável. Se alguém inala seu vômito ou,
aliás, o de qualquer outra pessoa, isso provoca uma reação reflexa protetora
nas vias respiratórias: a tosse. Se tudo ocorrer como a natureza dispôs, o
vômito será expelido assim que começar a entrar. Jimi Hendrix morreu por
ter inalado vômito (basicamente vinho tinto), mas só inalou-o porque estava
tão bêbado que desmaiou: seu reflexo de tosse estava desativado.
Mas há um porém. O vômito é mais perigoso do que, por exemplo, água
de lagoa. Mesmo uma quantidade pequena — um quarto do que cabe na
boca — pode ser desastrosa. O suco gástrico, ingrediente rotineiro do
vômito, digere com facilidade o revestimento dos pulmões. Além disso, o
vômito, ao contrário (assim esperamos) da água de uma lagoa, muitas vezes
inclui pedaços de alimentos recém-ingeridos que podem ficar presos na
traqueia e acabar sufocando a pessoa.
Se o suco gástrico é capaz de digerir um pulmão, imagine o que acontece
se ele cai nos olhos de alguém. “Se o vômito bater na parede interna do
capacete e voltar para os olhos do astronauta, seria realmente
incapacitante”, diz Chase. Esse é o perigo mais realista da regurgitação
dentro do capacete. Isso e um visor sujo que obstrua a visão.
Sujeira no visor é um sério problema astronáutico. Nas palavras de
Charlie Duke, piloto do Módulo Lunar da Apollo 16, “Uma coisa eu lhe
digo: é difícil pra caramba enxergar as coisas direito se você está com um
capacete cheio de suco de laranja”. (Na verdade, Tang.)f A bolsa de
hidratação de Duke começou a vazar durante as verificações do traje
espacial a bordo do Módulo Lunar.g (As bolsas de hidratação incorporadas
ao traje espacial são a versão da Nasa para a mochila CamelBak.) O
Controle de Missão supôs que o problema estivesse relacionado à gravidade
zero e que se “resolveria” na gravidade lunar. Isso não aconteceu ou, pelo
menos, não de todo. Vejam o que disse Charlie Duke (na transcrição da
missão Apollo 16) quando dirigia um veículo explorador na superfície lunar
assim que percebeu que chegara a duas crateras de nomes estranhos. Era o
ponto alto de sua vida. “Estou vendo Wreck e Trap, além de suco de
laranja.”
Historicamente, não eram os astronautas que se preocupavam com a
possibilidade de inalar o próprio vômito, mas os pacientes das primeiras
cirurgias. A anestesia, do mesmo modo que quatro litros de vinho tinto, tem
duas consequências: faz uma pessoa vomitar e amortece o reflexo de tosse.
Esse é um dos motivos por que, atualmente, os pacientes cirúrgicos jejuam
antes da operação. Nos raros casos em que uma pessoa com o estômago
cheio entra numa sala de cirurgia e põe tudo para fora, os médicos usam um
aspirador. No caso de Jimi Hendrix, o pessoal de resgate utilizou “um
sugador de 46 centímetros”.
E, para o paciente, o melhor modelo de aspirador é aquele com tubo de
sucção de diâmetro grande. Em 1996, quatro médicos do Centro Médico
Madigan, do Exército norte-americano, em Fort Lewis, no estado de
Washington, compararam o tempo necessário para aspirar noventa mililitros
de vômito simulado, usando primeiro um tubo de sucção padrão e, depois,
um modelo aperfeiçoado, de grande diâmetro. Este último, como informou
a revista American Journal of Emergency Medicine, foi dez vezes mais
rápido, além de oferecer menos perigo de sugar pedaços dos pulmões.
Talvez você esteja imaginando o que os médicos utilizaram como
“substância simuladora de vômito”. Usaram sopa de legumes Progresso. O
site da sopa Progresso menciona, na parte de imprensa, publicações como
Food & Wine, Cook’s Illustrated e Consumer Reports, mas não a American
Journal of Emergency Medicine (o que é compreensível). A julgar por seu
site, o pessoal da Progresso ficaria horrorizado se soubesse desse uso. Eles
têm uma atitude bastante séria e respeitosa em relação a alimentos
enlatados, chegando a recomendar vinhos que harmonizam com sua linha
de produtos.
Algum astronauta chegou mesmo a vomitar as tripas no capacete? Uma
fonte me disse que isso aconteceu com Schweickart, mas depois voltou
atrás em seu depoimento. Charles Oman me disse que tem conhecimento de
apenas um incidente com um astronauta metido no traje espacial, e que “o
volume foi pequeno”. O incidente ocorreu na câmara de compressão da
Estação Espacial Internacional, quando o astronauta se preparava para uma
caminhada espacial. Oman não divulgou o nome do regurgitador — vomitar
no traje espacial ainda hoje é um estigma.
Contudo, nem de longe tão forte como no tempo de Schweickart.
Durante o Projeto Apollo, ele lembra, dizia-se ou pensava-se que “enjoo era
coisa de panacas”. Cernan concorda: “Admitir enjoo era admitir uma
fraqueza, não só para o público e os outros astronautas, mas também para os
médicos”, que poderiam então desqualificar o astronauta para missões no
espaço. Em suas memórias, Cernan conta que se sentiu mal por ocasião da
Gemini IX, mas que escondeu o fato para que os colegas não o vissem como
“um fracote num cruzeiro de verão”.
O comandante da Apollo 8, Frank Borman, escondeu seu enjoo. Deixo
que Schweickart atire a primeira pedra: “Era do conhecimento geral entre
os astronautas que Frank tinha vomitado mais de uma vez, mas [...] por uma
série de razões que só Frank conhece, ele nunca abria o jogo”. Isso levou
Schweickart a assumir o título de, como ele diz, “o único astronauta
americano que vomitou no espaço”. (Nos projetos espaciais Mercury e
Gemini, o enjoo era menos comum, provavelmente porque as cápsulas eram
tão apertadas que não permitiam movimentos que provocassem enjoo.) Bem
mais tarde, Borman admitiu que, como Cernan escreveu em suas memórias,
estava “enjoado como um cachorro durante toda a viagem até a Lua”.h
Após seu voo, Schweickart dedicou-se ao estudo do enjoo espacial.
“Viajei a Pensacola e [...] tornei-me a cobaia, a almofadinha em que as
pessoas espetavam seus alfinetes, suas sondas e sei lá mais o quê. Durante
seis meses, [...] meu trabalho consistiu em aprender o máximo possível a
respeito do enjoo. Para ser franco, não aprendemos muita coisa, e mesmo
hoje em dia não sabemos muito mais do que antes.” O trabalho valeu a pena
porque, pelo menos, Schweickart conseguiu fazer com que o enjoo deixasse
de ser motivo de vergonha. “Rusty pagou por todos nós”, escreveu Cernan.
“Jamais se disse em público algo contra ele, mas ele nunca mais participou
de outra missão.”
Disseram coisas em público a respeito de Jake Garn, o astronauta-
senador de Utah. Disseram coisas em público numa tira de quadrinhos
distribuída em todo o país. O cartunista Garry Trudeau, criador da tira
Doonesbury, vinha batendo duramente no fato de Garn ter participado de
uma missão do ônibus espacial, em 1985, criticando o episódio como uma
enrolação cara e inútil. Ao saber que Garn tinha passado mal durante grande
parte da missão, um dos personagens da tira passou a chamar de “garn” a
unidade de intensidade com que seria medido o enjoo espacial. (Na vida
real não existe nenhuma unidade, embora exista uma escala, que começa
em “Ligeiro mal-estar” e termina em “Vômitos incontidos”.)
Pat Cowings gargalhou mais do que ninguém. Quando Garn estava em
treinamento, ela se dispôs a lhe ensinar uma técnica de biofeedback que
havia criado para impedir o enjoo espacial. Ele rejeitou a ideia, dizendo: “É,
eu ouvi falar desse negócio de meditação na Califórnia. Isso vai trazer meu
cabelo de volta?”. (Apesar dos resultados, que me parecem bastante
significativos, Pat luta até hoje contra a reputação que o biofeedback
ganhou por se basear em toques físicos mútuos. Nem seu próprio
empregador utiliza o método que ela criou. “Eu digo à Nasa: Estão vendo
essa grande empresa aqui? Chama-se Marinha. E eles estão usando o
método agora.”)
Ninguém deve se sentir constrangido por vomitar no espaço — e,
certamente, não Jake Garn, Rusty Schweickart ou Frank Vomitador. Cerca
de 50% a 75% dos astronautas apresentaram sintomas de enjoo espacial. “É
por isso que em geral não se veem filmagens feitas no ônibus espacial nos
primeiros dois dias. É bem capaz de todo mundo estar vomitando num
canto”, diz Mike Zolensky, curador de poeira cósmica da Nasa. Ele próprio
passou por um enjoo épico num voo parabólico. O único passageiro em pior
situação que a dele foi o que estava ajudando astronautas a aprender a
coletar sangue em gravidade zero. Como seus braços estavam presos no
assento de coleta, alguém teve de segurar o saco de vômito junto a seu
rosto.
Tecnicamente, a cinetose — o enjoo decorrente de movimento — não é
uma doença. É uma reação normal a uma situação anormal. Afeta certas
pessoas mais depressa e com mais intensidade do que outras, mas todo
mundo pode acabar vomitando. Até os peixes podem enjoar. Um
pesquisador canadense lembra-se de uma história que lhe foi contada pelo
dono de uma incubadora de bacalhaus. Esse cidadão tinha de transportar por
mar parte de sua criação. “Algum tempo depois da partida do barco, toda a
ração que os peixes tinham comido foi vista no fundo do tanque.” Esse
pesquisador listou todas as espécies sabidamente suscetíveis ao enjoo:
macacos, chimpanzés, focas, carneiros, gatos. Cavalos e bois podem enjoar,
mas, por questões anatômicas, não podem vomitar. Há polêmicas, ele
contou, em relação às aves.i O pesquisador adiantou que ele, pessoalmente,
vira um pombo vomitar ao ser posto a girar numa plataforma rotatória.
“Não é habitual”, acrescentou. Concordo.
Os únicos seres humanos previsivelmente imunes ao enjoo são os que
apresentam orelha interna não funcional. Em 1886, um grupo de surdos-
mudos, que passou incólume por uma aflitiva viagem marítima, chamou a
atenção dos cientistas para a relação entre a cinetose e o sistema vestibular.
Entre os doentes estava um médico chamado Minor. Ele declarou em seu
artigo que tinha notícia de dois outros grupos de surdos-mudos — 22 no
primeiro grupo e 31 no segundo — que faziam longas viagens marítimas
sem nenhuma indisposição. Antes do artigo de Minor, a medicina atribuía a
cinetose a sacolejos do conteúdo estomacal e à oscilação da pressão do ar
nos intestinos. Na época, artigos da revista médica Lancet prescreviam
vários tipos de cintas. Os leitores responderam com suas próprias
estratégias para estabilização do estômago: cantar, prender a respiração
quando o barco subia na onda e “comer uma boa quantidade de cebolas em
conserva”. A justificativa para a última receita é que a cebola produz gás,
que infla o estômago e estabiliza a pressão abdominal. O canto e a
flatulência talvez expliquem o grande número de surdos-mudos em viagens
oceânicas naquele tempo.
Por ironia, Bill Toscano, pesquisador de cinetose do Centro Ames da
Nasa, tem um sistema vestibular defeituoso. Ignorava isso até sentar-se na
cadeira giratória. “Achamos que havia um problema na cadeira”, diz Pat
Cowings, colega de Toscano. Conversei com Toscano enquanto ele
rodopiava na cadeira, com a voz subindo e baixando a cada rotação. Esse é
seu superpoder.
Como o enjoo é uma reação natural a um movimento estranho do ponto
de vista sensorial, ou a um ambiente gravitacional, os astronautas têm de
passar por tudo de novo ao retornar à Terra depois de uma longa missão.
Durante as semanas ou meses de microgravidade, o cérebro interpretou
todas as pistas dos otólitos como aceleração numa direção ou outra. Por
isso, quando mexem a cabeça, o cérebro lhes diz que estão se
movimentando. A astronauta Peggy Whitson descreveu assim seus
primeiros momentos na Terra depois de 191 dias na Estação Espacial
Internacional: “Fiquei de pé e o mundo estava girando em torno de mim a
28 160 quilômetros por hora, em vez de eu estar circundando o mundo a 28
160 quilômetros por hora”. Isso recebe o nome de vertigem de pouso ou
enjoo terrestre. (Entre outros subprodutos obscuros da cinetose estão o
enjoo causado por brinquedos em parques de diversão, por espetáculos, por
filmes em widescreen, por montar em camelos, por simuladores de voo e
por balanços.)
Por mais desagradável que seja, o ato de vomitar merece nosso respeito.
Trata-se de uma produção orquestral, complexa e impecavelmente
coordenada, do abdome: “Há uma inspiração forçada, o diafragma desce, os
músculos abdominais e o duodeno se contraem, a cárdia e o esôfago
relaxam, a glote se fecha, a laringe é levada à frente, o palato mole sobe e a
boca se abre”. Não admira que todo um “cérebro emético” — ou “centro
vomitador” — seja dedicado ao fenômeno. Lembro-me de ter lido em
algum lugar que o brontossauro tinha um cérebro na base da cauda para
coordenar os movimentos da parte baixa de seu corpo. Eu imaginava um
órgão cinzento, em forma de encéfalo, aninhado na pelve do dinossauro.
Agora acho que me enganei. Porque o “cérebro emético” não é um
verdadeiro cérebro, do mesmo modo que o Centro Vomitador não tem uma
área de estacionamento nem um conselho administrativo. É apenas um local
no quarto ventrículo, alguns aglomerados de núcleos com uma fração de
milímetro de diâmetro.
No caso da cinetose, o vômito chama a atenção por representar muito
trabalho sem motivo aparente. Vomitar faz sentido como uma resposta do
organismo a alimentos envenenados ou contaminados — é preciso tirá-los
do corpo com urgência —, mas por que como reação a um conflito
sensorial? Irrelevante, responde Oman. Ele diz que o fato de o cérebro
emético ter se desenvolvido bem ao lado da parte do cérebro que cuida do
equilíbrio foi apenas um infeliz acidente da evolução. A cinetose é, com
toda probabilidade, um caso de linha cruzada entre os dois. “Uma das
brincadeiras de Deus”, diz Pat Cowings.

Na versão londrina da peça O homem elefante, de 1980, Joseph Merrick


suicida-se deitando na cama e deixando a cabeça grotescamente aumentada
pender sobre a beirada, obstruindo suas vias respiratórias.j Um suicídio por
meio da gravidade. Sua cabeça aumentara tanto de tamanho que os
músculos do pescoço não conseguiam mais levantá-la. Durante vinte
segundos de cada vez, sei exatamente o que é isso. Quando o C-9 sai de seu
mergulho para iniciar outra subida, somos empurrados contra o piso com
uma força de aproximadamente 2 G, o dobro da gravidade da Terra. De
repente, minha cabeça pesa nove quilos, e não 4,5. Tal como Merrick, estou
deitada de costas — não para me matar, mas porque me disseram que isso
diminui a possibilidade de sentir náusea. É muito estranho. Não consigo
levantar a cabeça e tirá-la do fundo do avião.
Li em algum lugar que uma baleia encalhada na praia morre de uma
overdose de gravidade. Fora da água, que normalmente faz seus órgãos
flutuarem, os pulmões e o corpo são esmagados pelo próprio peso do
animal. O diafragma e os músculos torácicos não têm força para expandir
seus pulmões e erguer a opressiva massa de gordura e ossos, agora muito
mais pesada, e o animal se sufoca.
Na década de 1940, os pesquisadores espaciais descobriram um meio de
simular um aumento de gravidade na Terra. Um rato, um coelho, um
chimpanzé e, por fim, um astronauta do Projeto Mercury foram postos na
extremidade de um longo braço giratório. A força centrífuga acelera órgãos
e fluidos para fora, para longe do centro da máquina centrífuga. Como
aprendemos no capítulo 4 e quase com certeza já esquecemos, a gravidade
é, nada mais, nada menos, que uma força de aceleração. Assim, para
simular estar de pé em situação de supergravidade, o pesquisador deita a
cobaia com os pés na extremidade externa do braço giratório. Quanto mais
depressa gira a centrífuga, mais pesados se tornam os órgãos, os ossos e os
fluidos da pessoa.
Se o leitor quiser ver como ficam os órgãos de um rato no interior de seu
corpo, a 10 G e 19 G, localize a edição de fevereiro de 1953 da revista
Aviation Medicine e abra na página 54. Mas não recomendo que faça isso.
Um grupo de oficiais da Marinha americana criou uma engenhosa e
horrenda “técnica de congelamento rápido”, na qual ratos anestesiados eram
imersos em nitrogênio líquido e postos a girar numa centrífuga no
Laboratório de Aceleração Médica da Aviação. O sangue no coração, agora
dezenove vezes mais pesado, acumulou-se no fundo do órgão e o alongou
como um pedaço de massa de modelar. Os órgãos abdominais ficaram
amontoados na pelve como sacos de areia, a cabeça afundou entre os
ombros e nem quero falar dos testículos. Uma outra fotografia mostra o rato
virado para o outro lado — com a cabeça na extremidade externa do braço
da centrífuga. Os órgãos superpesados estão agora amontoados sob a caixa
torácica, esmagando os pulmões e deixando o resto do tronco
estranhamente vazio.
Os oficiais não estavam apenas se divertindo. Os primeiros especialistas
em aeromedicina estudaram os limites da tolerância humana à
supergravidade a fim de aprender a proteger os pilotos de caças e, mais
tarde, os astronautas. Os pilotos de jatos suportam até 8 G ou 10 G ao sair
de mergulhos e executar outras manobras em alta velocidade. Os
astronautas aguentam alguns segundos de gravidade dupla ou tripla durante
o lançamento e até 4 G, às vezes mais, quando a nave reentra na atmosfera
da Terra. Passar do vácuo do espaço para uma parede de moléculas de ar
desacelera a espaçonave de 28 160 quilômetros por hora para algumas
centenas de quilômetros por hora. Como acontece em qualquer veículo que
diminui de velocidade rapidamente, seus passageiros são empurrados para a
frente, na direção do movimento. O perigo da reentrada está no fato de o
período de força G duplicada ou quadruplicada durar até um minuto, e não
apenas a fração de segundo de uma colisão de automóvel.
O número de forças G que o corpo humano tolera sem lesão depende do
tempo de exposição. Durante um décimo de segundo, as pessoas suportam
normalmente entre 15 G e 45 G, dependendo de sua posição em relação à
força. Quando o tempo sobe para um minuto ou mais, a tolerância cai
drasticamente. O sangue, agora bem mais pesado, se acumula durante um
tempo considerável nas pernas e nos pés, privando o cérebro de oxigênio, e
a pessoa perde os sentidos. Se a situação durar tempo suficiente, acaba em
óbito. A 16 G, escreveu John Glenn a respeito de seu treinamento na
centrífuga da Nasa, “foi preciso toda a resistência e a técnica, mas toda
mesmo, para manter a consciência”. É por isso que os astronautas se deitam
durante a reentrada — para que o sangue não se acumule nas pernas e nos
braços. Mas, de costas, eles ficam como a baleia na praia. Sentem dor sob o
esterno. Respirar exige muito esforço. Por ocasião da reentrada malfeita de
uma Soyuz, a comandante da Expedição 16 da ISS, Peggy Whitson, teve de
suportar uma reentrada demasiado rápida e em ângulo muito agudo — e
nada menos do que um minuto em 8 G, cerca do dobro da hipergravidade
normal de reentrada. Os astronautas aprendem, na centrífuga, a enfrentar
esse problema: movimentos respiratórios rápidos e curtos, ofegantes, para
que os pulmões não fiquem completamente vazios em momento algum, e
inspirações usando o diafragma, músculo mais forte, e não os músculos
menores, ligados às costelas. Mesmo assim, Peggy teve de se esforçar
bastante.
O braço humano pesa, em média, quatro quilos. Isso significa que,
durante a reentrada, o braço de Peggy Whitson pesava 32 quilos. Nas
palavras de Otto Gauer, pioneiro da medicina aeroespacial, “em geral,
acima de 8 G, só são possíveis movimentos do punho e dos dedos”. Isso
significa que a astronauta poderia morrer por não conseguir erguer um
braço para alcançar um painel de controle. Peggy minimizou os perigos.
Uma semana depois de conversar com ela, porém, conheci um especialista
em medicina aeroespacial que me mostrou fotografias tiradas logo após o
incidente. Ela parecia, para usar a palavra dele, “emaciada”. Em outra foto
que ele me mostrou, aparecia a cratera aberta pelo impacto da Soyuz contra
o solo. Era como se alguém tivesse tentado construir uma piscina no meio
da estepe do Cazaquistão.
Descer é tão aterrador quanto subir.

a Ou o passeio de uma jornalista no biplano de dois lugares de Tom Cruise, que fez uma série de
acrobacias aéreas, a última das quais um “estol de badalo” que acabou comigo. O avião era desses de
nacela aberta e eu estava no assento da frente, o que significava que qualquer coisa que escapasse do
saco que se agitava ao vento junto de meu cotovelo iria direto no rosto bronzeado e perfeito do sr.
Cruise. Ele é um homem limpo. O desastre se avizinhava, mas consegui manter os tacos onde
estavam — por um triz.
b Não foi a medicina aeroespacial que a inventou. No caso de pacientes mais turbulentos, era
frequente que os hospícios do século XIX prescrevessem algumas rotações na cadeira de Cox. Em
1834, um médico escreveu num relatório sobre novas técnicas psiquiátricas: “Quando um paciente
comete um ato irracional ou violento, é posto a girar, preso à cadeira rotatória, [...] até se acalmar,
pedir desculpas e prometer emendar-se ou até começar a vomitar”. Eram tempos difíceis para os
insanos. Outros “tratamentos” incluíam “mergulhos-surpresa em água gelada”.
c O movimento intestinal também foi investigado como sinal de náusea iminente. Um astronauta
do ônibus espacial usou um “monitor acústico intestinal” sobre o ventre durante toda a missão. Não
sinta pena dele. Tenha pena do camarada da Força Aérea que foi incumbido de passar duas semanas
escutando sons intestinais para garantir que nenhuma conversa que encerrasse informações sigilosas
tivesse sido gravada inadvertidamente.
d Ficar de cabeça para baixo é visto como descortesia com os companheiros da tripulação por
outra razão. É difícil compreender o que uma pessoa diz quando sua boca está voltada para baixo.
Numa conversa normal, fazemos mais uso de leitura labial do que julgamos. O astronauta Lee Morin
me disse que é dificílimo ler os lábios de uma pessoa inclinada mais de 45 graus. Além disso,
acrescentou ele, “acontece o lance do queixo”. Os queixos ficam parecendo narizes. Muito
perturbador.
e Num voo parabólico, as manobras evasivas são críticas. Joe McMann, que dirigia o Escritório
de Gestão de EVA, da Nasa, contou-me que certa vez estava voando na companhia de um homem que
de repente vomitou. “Eu me dei conta de que em mais ou menos três segundos aquele vômito iria
bater em mim com a força de 2 G. Estava fazendo todos os movimentos possíveis para sair do
caminho.” Um funcionário da Nasa com quem conversei jura que a gravidade dupla torna mais difícil
vomitar.
f A Nasa não inventou o Tang, mas os astronautas dos projetos Gemini e Apollo o tornaram
famoso. (Foi a Kraft Foods que inventou o insumo, em 1957.) A Nasa ainda usa o Tang, apesar de
surtos periódicos de má publicidade. Em 2006, terroristas juntaram Tang com um explosivo líquido
caseiro, uma mistura que pretendiam utilizar num voo transatlântico. Na década de 1970, o Tang era
misturado com metadona para desestimular os usuários de heroína em reabilitação a injetarem a
droga. Mas mesmo assim injetavam. Consumido dessa maneira, o Tang provoca dores nas
articulações e icterícia, mas reduz a incidência de cáries.
g Chato, mas provavelmente menos do que o incidente em que a camisinha de látex de sua bolsa
de urina se soltou, pouco antes da decolagem que o traria de volta à Terra. Duke minimizou o caso:
“Bem, um líquido quente descendo pela perna esquerda [...] e uma bota cheia de urina”.
h O que significa “enjoado como um cachorro”? Depende do cachorro e de como ele estiver
viajando. De acordo com pesquisas realizadas na Universidade McGill na década de 1940, não há
como provocar enjoo em 19% dos cães. Em um certo experimento, dezesseis cães foram postos a
navegar com tempo ruim. Dois vomitaram no caminhão que os levava ao lago. Sete vomitaram no
barco e um vomitou tanto no caminhão quanto no barco. Embora a viagem de barco deixasse os cães
“abatidos e obviamente prostrados” — ainda que, talvez, não mais do que os donos do caminhão e do
barco —, um estudo posterior com cães submetidos a grandes balanços provocou muito vômito, mas
“poucas evidências subjetivas de que o cão ache o balanço desagradável”. Usam-se cães para estudar
o enjoo humano porque as duas espécies são quase igualmente suscetíveis ao mal. Não se usam
porquinhos-da-índia nem coelhos porque as duas espécies parecem ser as únicas imunes ao enjoo.
i Por uma estranha coincidência, assisti hoje, ao meio-dia, a uma palestra sobre esse assunto.
(“Urubus-de-cabeça-vermelha: fato ou ficção?”) O palestrante levara consigo sua mascote, uma
dessas aves, de nome “Amigão”, que cheirava ainda pior do que se poderia imaginar. Isso se devia ao
fato, disse ele, de Amigão ter passado mal no trajeto de carro e vomitado. Antes ele tinha nos
informado que, quando ameaçados, os urubus-de-cabeça-vermelha se defendem vomitando naquilo
que os ameaça. Eu estava na segunda fileira de assentos, e acredito piamente que o vômito dessas
aves seja um poderoso veneno. A menos que você seja um coiote. Fato: o coiote considera o vômito
do urubu-de-cabeça-vermelha uma iguaria, e ataca as aves apenas para fazer um lanchinho.
j Há quem creia que Merrick suicidou-se, enquanto outros afirmam que foi um acidente. Mas
todos concordam que seu prenome era Joseph, e não John. A produção londrina, se bem me lembro,
usou “John”, nome mais conhecido, talvez para não sobrecarregar o programa com uma nota de
rodapé (como estou sendo obrigada a fazer). Aproveito a oportunidade para lhes dizer que David
Bowie interpretou Merrick uma vez. Não lançou mão de maquiagem ou próteses e usou pouquíssima
roupa. Trabalhou todo torto, como era Merrick, e sua atuação foi de partir o coração.
7. O CADÁVER NA CÁPSULA ESPACIAL

A Nasa visita o Laboratório de

Testes de Colisão

O mundo da simulação de colisões é feito, basicamente, de metal e


homens. No Centro de Pesquisas de Transportes, em Ohio, o simulador está
instalado num galpão barulhento, do tamanho de um hangar, com poucos
lugares onde uma pessoa possa se sentar, nenhum deles estofado. Há pouca
coisa no galpão além da catapulta de colisão, que corre sobre trilhos, e
alguns engenheiros com óculos de proteção, sempre andando de um lado
para outro com canecas de café. Quase não há cores, a não ser o vermelho e
o laranja das luzes de advertência e dos avisos de segurança.
O cadáver parece conferir ao ambiente um ar quase doméstico. F usa uma
cueca azul e está sem camisa, como se espairecesse em seu apartamento.
Mostra-se profundamente relaxado. Como fazem os mortos. Como eles são.
Está meio derreado na cadeira, e suas mãos descansam nas coxas. Se fosse
vivo, não estaria tão tranquilo. Em poucas horas, um êmbolo da grossura de
uma sequoia vai disparar um jato de ar pressurizado no assento ao qual ele
estará amarrado. Pode-se ajustar tanto a força do impacto quanto a posição
do assento para criar qualquer tipo de colisão que o pesquisador desejar:
uma colisão frontal contra uma parede, a cem quilômetros por hora, ou,
digamos, um carro atingindo, de lado, outro que corre a sessenta por hora.
A nova cápsula Orion da Nasa vai ser testada hoje, chegando do espaço e
caindo no mar. F vai fazer o papel de um astronauta. No caso de uma
cápsula espacial, todo pouso é uma aterrissagem forçada. Ao contrário de
um avião ou de um ônibus espacial, uma cápsula não tem asas ou trem de
pouso. Quando reentra na atmosfera terrestre, seu fundo largo arremete
contra a massa de ar, cada vez mais densa, e a resistência do ar a desacelera
até o ponto em que os paraquedas podem se abrir sem perigo de rasgar. Se
tudo corre bem, a cápsula cai no mar com uma força correspondente a uma
batida leve de carro — de 2 G a 3 G, no máximo 7 G.
A queda no mar é mais suave do que no solo. Por outro lado, os oceanos
são imprevisíveis. E se um vagalhão atinge a cápsula no momento da
queda? Por isso, os passageiros precisam de proteção não só contra a força
da queda, mas também contra um impacto de lado ou de cabeça para baixo.
Para garantir que os ocupantes da Orion saiam dela incólumes, qualquer
que seja o estado do mar, primeiro bonecos são usados como cobaias nos
testes e, depois, cadáveres. As simulações de aterrissagem são um projeto
conjunto que envolve o Centro de Pesquisas de Transportes, a Nasa e o
Laboratório de Pesquisas da Biomecânica de Lesões da Universidade
Estadual de Ohio.
F está sentado numa cadeira metálica alta, ao lado do carril do êmbolo.
Um estudante de graduação, Yun-Seok Kang, está atrás dele, usando uma
chave Allen para instalar um dos blocos de instrumentação, do tamanho de
um relógio de pulso, numa vértebra exposta. Juntamente com calibradores
de esforço colados a vários ossos na parte frontal do corpo, esses
instrumentos medirão as forças envolvidas no impacto. Mais tarde, ainda
hoje, tomografias e uma autópsia revelarão quaisquer lesões causadas por
essas forças. Na véspera, Kang trabalhou até tarde da noite com outro
cadáver, e também hoje de manhã, mas está alerta e animado. É um rapaz
jovial e ativo, com aquela personalidade que os programas de autoajuda
prometem, mas raramente produzem. Usa óculos de lentes retangulares, e o
cabelo comprido cai de ambos os lados do rosto. Os dedos enluvados
reluzem de gordura, que, por ser escorregadia e em grande quantidade,
dificulta a tarefa. Faz mais de meia hora que ele está lutando com esse
bloco. Os mortos têm uma paciência infinita.
F vai ser atingido em seu eixo lateral. Imaginem um boneco de pebolim
com a vareta que o mantém suspenso. Essa vareta é o eixo lateral do corpo.
Digamos que o boneco de totó saia dirigindo e que outro veículo bata no
carro dele num cruzamento. Seu corpo e seus órgãos (se ele os possuísse)
seriam acelerados para a esquerda ou para a direita ao longo dessa vareta.
Numa colisão frontal ou traseira, eles seriam acelerados ao longo do eixo
transverso: da frente para trás ou vice-versa. O terceiro eixo que os
pesquisadores consideram é o longitudinal — ao longo da espinha. Nesse
caso, o boneco está pilotando um helicóptero. O aparelho entra em estol e
cai na vertical. O coração do bonequinho se projeta para baixo, preso à
aorta, transformada em corda elástica de bungee jump. Ele devia ter se
limitado ao futebol.
Como os astronautas estão reclinados de costas no momento do impacto,
se uma cápsula espacial cai num oceano calmo, ela cria uma força sobre o
eixo transverso — da frente para trás — que é a mais suportável pelo corpo.
(Deitados de costas, bem apoiados e protegidos, toleramos uma força G três
a quatro vezes maior — durante um décimo de segundo até 45 G — do que
sentados ou em pé, posição em que o eixo longitudinal, mais vulnerável,
suporta todo o esforço.)a
É frequente que as colisões envolvam forças ao longo de mais de um
eixo — dois ou três. (Embora as simulações estudem somente um eixo de
cada vez.) Se acrescentarmos um mar agitado ao cenário da queda da
cápsula, temos de considerar agora forças ao longo de múltiplos eixos. Um
modelo útil para o tipo de impacto que a Nasa tem de prever — multiaxial e
imprevisível — é a colisão de carros de corrida. Na mesma semana em que
estive em Ohio, Carl Edwards, da Nascar, bateu em outro carro a quase 320
quilômetros por hora, fazendo com que seu próprio carro voasse, girando
como uma moeda de cara ou coroa antes de atingir a mureta com toda força.
Edwards soltou-se dos cintos de segurança, saiu das ferragens destroçadas e
afastou-se do acidente calmamente. Como isso foi possível? Para citar as
palavras de um recente artigo na revista Stapp Car Crash Journal, graças a
um “acondicionamento no cockpit bastante protetor e muito bem ajustado”.
Atenção para a palavra: acondicionamento. Salvaguardar um ser humano
para uma possível colisão multiaxial não é muito diferente de embalar um
vaso precioso que será transportado durante a mudança. Como não se sabe
de que lado o rapaz da mudança vai deixá-lo cair, é preciso protegê-lo por
todos os lados. Os pilotos de carros de corrida ficam presos e bem ajustados
em assentos feitos sob medida, com um cinturão de segurança abdominal,
dois cintos escapulares (de ombros) e uma tira de virilha para impedir que
deslizem sob o cinto abdominal. Um dispositivo Hans (Head and Neck
Support, ou apoio de cabeça e pescoço) impede que a cabeça se dobre para
a frente, e coxins verticais ao longo das laterais do assento evitam que a
cabeça e a coluna vertebral sejam atiradas para a esquerda ou para a direita.
Dustin Gohmert, especialista em métodos de sobrevivência da Nasa, tem
conversado muito com técnicos que projetam sistemas de proteção de
pilotos de carros de corrida. Ele e dois colegas do Centro Espacial Johnson
vieram assistir às simulações esta semana. Enquanto Kang e outros três
estudantes acabavam de instalar instrumentos em F, Gohmert concordou em
responder algumas de minhas perguntas. Tem olhos azuis e cabelo preto,
além de um vívido humor texano que, de modo geral, deixa de lado ao se
ver diante de um gravador. Durante a entrevista, senta-se em posição ereta e
sem se mexer, como se o simples ato de falar sobre apoios e protetores de
tronco o imobilizasse.
No começo, a Nasa rejeitara assentos de carros de corrida como modelos
para a Orion. Para começar, os pilotos de corrida dirigem sentados, não
reclinados. Má ideia para astronautas que têm alguma experiência no
espaço. Na verdade, deitar-se não só seria mais seguro (menos para quem
precisa pilotar), como evitaria que os astronautas perdessem os sentidos.
Além disso, as veias das pernas normalmente se contraem quando estamos
em pé, o que ajuda a impedir que o sangue se acumule nos pés. Mas depois
de semanas sem gravidade, esse fenômeno deixa de ocorrer. O problema se
agrava porque os sensores do volume de sangue situam-se na metade
superior do corpo, onde, devido à gravidade zero, o sangue se acumula em
maior quantidade. Os sensores interpretam isso como um excesso de sangue
e enviam uma ordem para que sua produção seja reduzida. No espaço, os
astronautas apresentam um volume de sangue 10% a 15% menor que na
Terra. A combinação de baixo volume de sangue e veias preguiçosas deixa
os astronautas tontos quando voltam para a gravidade após uma longa
estada no espaço. É a chamada hipotensão ortostática, e pode ser
constrangedora. Em alguns casos, astronautas desmaiaram durante
entrevistas coletivas depois de uma missão.
Entretanto, ficar deitado de costas num traje espacial e num assento
muito seguro constitui um problema: “Pegamos um assento de carro de
corrida, pusemos um sujeito nele e perguntamos: ‘Você consegue sair?’. Foi
como pôr uma tartaruga de cabeça para baixo”, lembra-se Gohmert. Meses
atrás, acompanhei um teste de egressão horizontal (saída da cápsula) no
Centro Espacial Johnson. O astronauta chegou a usar o verbo “tartarugar”:
“Estou tentando ver se tartarugo para sair”.
Sair depressa de uma cápsula é fundamental quando alguma coisa dá
errado: por exemplo, quando a cápsula está afundando no mar ou pegando
fogo. A última vez que as coisas deram errado a bordo de uma cápsula
espacial foi em setembro de 2008, quando a cápsula Soyuz retornava à Terra
com membros das Expedições 16 e 17 da Estação Espacial Internacional.
(A Nasa vinha pagando à Agência Espacial da Federação Russa pelo
transporte de tripulações da ISS de volta à Terra quando nenhum ônibus
espacial estava à disposição.) O módulo de reentrada penetrou na atmosfera
em posição errada — como aconteceu quando Boris Volinov estava a bordo,
em 1969. Isso interferiu na resistência aerodinâmica que normalmente
contribui para diminuir o ângulo da rota e suavizar a reentrada e o pouso. A
reentrada submeteu a tripulação, durante um minuto, a uma força de 8 G —
e não ao habitual pico de 4 G — e a um impacto de pouso de 10 G. A
cápsula caiu muito longe do local previsto, num campo ermo na estepe do
Cazaquistão, onde faíscas geradas pelo impacto atearam fogo ao matagal.
Os assentos da Soyuz, como os de carros de corrida, têm imobilizadores
para a cabeça e para o tronco. Isso os torna mais seguros, a menos que o
usuário precise deixar o veículo às pressas. “Eu tinha planejado tudo”,
disse-me Peggy Whitson, comandante da Expedição 16, numa entrevista
por telefone. “Pensei: ‘Vou soltar a correia e apoiar a mão aqui, e depois
baixar os pés’, e é claro que nada disso deu certo. Aconteceu que caí para o
fundo do assento, com a cabeça e os ombros no assento de So-yeon e as
pernas para cima, atravessadas sobre a escotilha.” A gravidade atrapalhava
ainda mais. “Depois de seis meses, a gente esquece como as coisas são
pesadas. Por exemplo, como nós mesmos somos pesados.” Além disso,
depois de meses de ausência de peso, as pessoas não sabem mais usar as
pernas. “Os músculos esquecem o que devem fazer.” E os astronautas não
contam com uma equipe de mecânicos que correm para ajudá-los a sair das
ferragens.b Por sorte, o vento soprava para longe deles e o incêndio no mato
logo acabou.
Temendo que os imobilizadores escapulares, como os usados pelos
pilotos da Nascar, elevassem de forma perigosa o tempo necessário para um
astronauta sair da cápsula, Gohmert e seus colegas fizeram algumas
simulações somente com imobilizadores de cabeça. Para esses estudos,
utilizaram bonecos de testes — ou “manequins”, como Gohmert os chama,
o que me fez imaginá-los tomando porrada em lojas de roupas masculinas.
Os resultados foram ruins. Gohmert descreveu para mim o vídeo em câmera
lenta. “A cabeça se manteve imóvel, mas o corpo não parava de se agitar.
Ficamos realmente preocupados com a integridade do manequim.” Como
um meio-termo, os imobilizadores escapulares foram mantidos, porém
reduzidos.
Os assentos dos carros da Nascar são fabricados sob medida para cada
piloto, mas ficaria caro demais proceder assim para cada astronauta. Os
assentos das cápsulas Soyuz adotam uma solução mais econômica: uma
peça inserida no assento e moldada para o corpo de cada astronauta. Mas
essa peça ainda tem de caber no assento, o que, em última instância, impõe
limites ao tamanho dos cosmonautas. “Os russos têm uma faixa bem menor
de medidas para pretendentes a astronautas”, comenta Gohmert,
melancólico. Na época em que conversamos, os assentos (e os trajes
espaciais) deviam servir para corpos que se enquadravam em algum ponto
entre o primeiro percentil feminino e o 99o percentil masculino. Ou seja, de
1,48 metro a 1,98 metro, embora a altura em pé seja o menos importante.
Um sistema de assentos que apoie e imobilize todo o corpo do astronauta
sentado tem de servir para extensões de nádegas a joelhos do primeiro ao
99o percentil, e o mesmo se diga para o astronauta sentado, com relação à
altura do peito, ao tamanho dos pés, à largura dos quadris e a dezessete
outros parâmetros anatômicos.c
Nem sempre foi esse o caso. Os astronautas do Projeto Apollo deviam
medir entre 1,65 metro e 1,78 metro. Era uma barreira simples e inflexível,
a versão oficial do letreiro que fica ao lado de brinquedos em parques de
diversões: SÓ PARA CRIANÇAS ATÉ ESTE TAMANHO. Devido à estatura, muitos
candidatos perfeitamente habilitados em outros aspectos foram excluídos do
programa espacial. Para os que hoje defendem atitudes politicamente
corretas, o caso lembra discriminação.
Para Dustin Gohmert, lembra bom senso. Hoje em dia, a Nasa gasta
milhões de dólares e horas de trabalho para que os assentos sejam
generosamente ajustáveis. E de modo geral, quanto mais ajustável o
assento, mais fraco e pesado ele se torna.
Mais uma complicação para os astronautas que não atinge os pilotos de
carros de corrida: no traje deles estão instalados diversos componentes —
mangueiras, bocais, conectores, interruptores.d Para garantir que as partes
duras do traje espacial não machuquem o astronauta num pouso violento, F
usará um simulador de traje espacial: um conjunto de anéis presos por fita
adesiva ao pescoço, aos ombros e às coxas. Esses anéis são cópias dos
rolamentos de mobilidade, ou juntas, de um traje espacial. O cadáver de
amanhã, que ainda está descongelando,e usará um colete no qual estarão
instalados “cordões umbilicais” — mangueiras de suporte de vida e suas
conexões. Uma preocupação específica naquele dia era que, num pouso de
lado, um rolamento de mobilidade pudesse colidir com o apoio de ombro e
bater no braço do astronauta com força suficiente para quebrar um osso.f
Gohmert explica como funcionam as juntas de anéis, que permitem a um
astronauta levantar o braço. O traje espacial pressurizado é um balão de alta
resistência em forma de corpo — na verdade, está mais para um quartinho
inflado do que para uma roupa. Quando plenamente pressurizado, é quase
rígido se não tiver algum tipo de junta. Atualmente, o traje espacial típico
tem nos ombros anéis de metal que se contorcem, possibilitando aos
astronautas girar todo o braço para cima e para baixo, como as bonecas
antigas. Sou eu que estou fazendo essa analogia, não Gohmert. No começo
da conversa, comparei os componentes dos trajes espaciais da Nasa, de
tamanhos diferentes e selecionados conforme as necessidades de cada
astronauta, com a opção, surgida pouco tempo antes, de se escolher e
combinar, separadamente, as duas peças de um biquíni. “Eu não comprei
um biquíni”, Gohmert teve o cuidado de frisar, “mas acho que é isso
mesmo.”

John Bolte não está no 99o percentil, mas é bem grande. Quando dirigiu
o carrinho vagabundo que aluguei, ele tinha de se debruçar para a frente,
por cima do volante, para caber ali. Enquanto dirigia, lia torpedos no
celular, atualizando-se sobre o placar do jogo de beisebol do filho mais
velho. Eu tinha quase certeza de que, se ele saísse da estrada, o carro
viraria, mas ele se levantaria do meio das ferragens como se nada tivesse
acontecido, dizendo: “Final do oitavo período, nove a três!”.
Bolte acaba de chegar da Universidade Estadual de Ohio, onde dirige o
Laboratório de Pesquisas da Biomecânica de Lesões. Está aqui para conferir
o trabalho de seus alunos e ajudar nos últimos preparativos antes que o
êmbolo dispare. Veste uma roupa de centro cirúrgico e um boné de beisebol
virado para trás. Está ajudando a vestir F, empurrando o punho do morto na
manga arregaçada de uma camiseta de mangas longas, uma tarefa que ele
compara com a de vestir o filho de cinco anos.
Agora o desafio é pôr F no assento do trenó. É mais ou menos como
meter um bêbado quase em coma num táxi. Dois estudantes o seguram
pelos quadris, enquanto Bolte sustenta as costas de F com as duas mãos. F
está deitado de costas com as pernas dobradas erguidas, como um homem
cuja cadeira à mesa do jantar caiu para trás.
O êmbolo está à direita de F. O cadáver sofrerá o impacto ao longo do
eixo lateral. “As colisões laterais são muito mortais porque...”, Gohmert se
detém, “não devo dizer colisão.” A expressão preferida pela Nasa é “pulso
de pouso”. (A Nascar dá preferência a “contato”.) “A Nasa tem de treinar
esses camaradas”, admirou-se Bolte em dado momento. “Você dirige uma
pergunta a esses rapazes e vê que eles fazem uma pausa e refletem
cuidadosamente sobre a resposta.” Já Bolte não é assim. A frase de que eu
mais tinha gostado naquele dia, até então, tinha sido dele: “Ele está vazando
tanto assim por causa de alguma coisa séria?”.
O que esses “pulsos” laterais têm de tão mortíferos? A lesão axônica
difusa. Quando uma cabeça desprotegida é agitada bruscamente de um lado
para outro, o cérebro chacoalha contra as paredes do crânio. O cérebro é
formado por uma substância molenga. Ao ser chacoalhado, ele
alternadamente se comprime e se distende. No caso de um impacto lateral,
em contraposição a um choque frontal, a distensão estica as longas
extensões dos neurônios, chamadas axônios, que conectam os circuitos do
cérebro entre os dois lobos. Os axônios incham, e se incharem demais a
vítima pode entrar em coma e morrer.
Algo semelhante ocorre com o coração. Cheio de sangue, o coração pode
pesar 340 gramas. Num impacto lateral, ao contrário do que acontece num
impacto frontal, há mais espaço para que ele chacoalhe contra a aorta.g Se a
aorta se distende o suficiente, e se o coração estiver repleto de sangue nesse
momento, o órgão e a artéria podem se separar. “Anatomização aórtica”,
como disse Gohmert. Isso ocorre com menos frequência numa colisão
frontal porque, como o tórax é relativamente plano nessa direção, o coração
fica mais ensanduichado em seu lugar. O coração também se solta no caso
de impactos longitudinais, como os que acontecem em quedas de
helicópteros, porque há muito espaço para que ele se projete para baixo e
exceda o limite da capacidade de distensão da aorta.
F está pronto, finalmente. Passamos ao pavimento superior a fim de ver a
ação da sala de controle. Baterias de refletores se acendem com um funf
dramático. Entretanto, o impacto propriamente dito é uma frustração só.
Como o impacto se faz com ar,h os testes com o trenó são inesperadamente
silenciosos — tragédias sem dor. E são rápidos, rápidos demais para que o
olho capte muita coisa. O teste é filmado em velocidade ultrarrápida, de
modo que o vídeo possa ser reproduzido em câmera extremamente lenta.
Todos nos aproximamos um pouco da tela. O braço de F se dobra para
cima sob o apoio do ombro, projetando-se no espaço onde antes ficava o
apoio das costelas que fora removido. O braço parece ter uma junta auxiliar,
dobrando-se onde não deveria se dobrar. Isso tem sido um problema
constante. Como diz Gohmert, “A tendência é que os espaços vazios no
assento se encham de partes do corpo”. (Depois se verificou que o braço
não estava quebrado.)
F suportou um impacto máximo de 12 G a 15 G — ou seja, o limiar da
lesão. Gohmert explica que a extensão das lesões da vítima de um acidente
depende não só de quantos G ela suportou, mas também de quanto tempo o
veículo leva para parar. Por exemplo, se um carro se detém no momento em
que bate num muro, o motorista pode suportar, durante uma fração de
segundo, uma carga máxima de 100 G. Se o carro dispõe de um capô
dobrável — um componente de segurança comum atualmente —, a energia
desses mesmos 100 G é liberada de forma mais gradual, reduzindo a força
máxima para, talvez, 10 G, o que aumenta bastante as chances de
sobrevivência.
Quanto mais tempo o carro levar para parar, melhor — com uma exceção
perigosa. Para compreendê-la, é preciso entender o que acontece ao corpo
durante uma colisão. Os diferentes tipos de tecido são acelerados com maior
ou menor rapidez. Os ossos aceleram mais depressa que os músculos. Num
impacto lateral, o crânio deixa para trás as bochechas e a ponta do nariz.
Pode-se ver isso ao congelar a imagem do rosto de um boxeador no
momento em que ele recebe um golpe de lado na cabeça.i Na colisão frontal
de um carro, o corpo do motorista começa a se deslocar primeiro. É atirado
para a frente até ser detido — pelo volante ou pelo cinto de segurança — e
depois arremessado para trás. Uma fração de segundo depois que o
motorista começa a ser lançado para a frente, seu coração e os outros órgãos
se separam. Ou seja, no instante em que o coração é jogado para a frente,
choca-se com as costelas, que já fazem o percurso de volta. Tudo se desloca
para a frente e para trás a velocidades diferentes, colidindo com a caixa
torácica e dando rebote. E isso acontece em milésimos de segundo. Tão
depressa que palavras como jogar, atirar e arremessar não são corretas. Os
ossos e órgãos estão de fato vibrando ali.
O grande perigo, explica Gohmert, é que um desses órgãos (ou mais de
um) comece a vibrar em sua frequência de ressonância. Isso fará com que as
vibrações se amplifiquem. Se um cantor emite uma nota que corresponde à
frequência de ressonância de uma taça de vinho, o vidro começa a vibrar,
com energia cada vez maior. Se a nota for emitida com sonoridade
suficiente e mantida durante tempo suficiente, a taça se quebrará. Os que
têm a minha idade vão se lembrar dos anúncios de Memorex, com Ella
Fitzgerald, em que a taça de vinho se desfazia em mil pedaços. A mesma
coisa pode acontecer a um órgão do corpo humano que atinge sua
frequência de ressonância numa colisão. Ele pode livrar-se de suas amarras.
Pior: “Na verdade”, disse Gohmert, depois de buscar a melhor forma de se
expressar, “a pessoa morre como se estivesse numa batedeira”.
Talvez você esteja se perguntando: Ella Fitzgerald conseguiria
despedaçar o fígado de uma pessoa? De jeito nenhum. O vidro tem uma
frequência de ressonância relativamente elevada, na faixa das ondas sonoras
audíveis. Os órgãos do corpo ressoam na faixa de comprimento de ondas
longas, inaudíveis, chamadas infrassom. Já um foguete cria poderosas
vibrações infrassônicas. Porventura essas ondas sonoras seriam capazes de
agitar e separar os órgãos de uma pessoa? A Nasa realizou testes sobre isso
na década de 1960, para ter certeza, como me disse um especialista em
infrassons, de “que não levaria geleia à Lua”.
Os alunos de Bolte estão pondo F numa maca e levando-o para um
furgão branco. Ele será transportado para o Centro Médico da Universidade
Estadual de Ohio, onde passará por tomografias e radiografias. Todos esses
procedimentos se desenrolarão exatamente como ocorreriam se o paciente
estivesse vivo, incluindo uma fila de espera de 45 minutos e problemas
burocráticos.
O olhar de Gohmert para em F. É difícil interpretar sua expressão. Estará
constrangido por ter submetido um corpo humano a esse tipo tratamento?
Ele se volta para Bolte. Por essa eu não esperava. “Você algum dia já pôs
um deles no banco dianteiro para poder andar na pista exclusiva para carros
com duas pessoas ou mais?”

Lembro-me de uma imagem do começo dessa manhã. Hannah e Mike,


dois alunos de Bolte, estão ao lado de F, conversando e rindo enquanto
desembaraçam os fios longos e finos presos aos extensômetros que seriam
instalados nos ossos do cadáver. A cena não parecia macabra e, pelo
contrário, passava uma sensação de tranquilidade doméstica, como uma
família que instalasse pisca-piscas numa árvore de Natal. Fiquei
impressionada com a serenidade dos jovens. Para eles, o cadáver parecia
ocupar uma categoria intermediária de existência: menos que uma pessoa,
mais que uma massa de tecidos. F ainda era visto como um ser humano, mas
um ser humano que dispensava qualquer cuidado para não sentir dor.
Hannah, sobretudo, o tratava com muita naturalidade. Quando F estava
sendo submetido a uma tomografia computadorizada, já tarde da noite, uma
gravação determinou: “Prenda a respiração”. “Ele é muito bom nisso”, disse
Hannah. Foi engraçado, mas também um reconhecimento indireto dos
talentos e aptidões dos mortos.
Já o pessoal da Nasa não se mostrava tão à vontade. Fora do contexto do
teste (e da piada da pista exclusiva), faziam pouquíssimas referências a F, e
em geral o tratavam como um objeto. Obter autorização para estar ali havia
me custado meses de troca de e-mails com um relações-públicas da Nasa,
que culminaram em um monte de telefonemas tensos na manhã em que
cheguei ali. Os mortos incomodam a Nasa. A agência não usa a palavra
cadáver em seus documentos e publicações, preferindo o eufemismo
paciente humano post mortem (ou, ainda mais discretamente, PHPM). Em
parte, creio, por causa das associações. Cadáveres em naves espaciais
remetem a fatos que o pessoal da Nasa prefere não se lembrar: a
Challenger, a Columbia, o incêndio da Apollo 1. Além disso, eles não estão
habituados a cadáveres. Eu soube de um único projeto que utilizou um
cadáver nos últimos 25 anos de pesquisa da medicina aeroespacial. Em
1990, um crânio humano subiu ao espaço a bordo do ônibus espacial
Atlantis, ligado a dosímetros, para ajudar os pesquisadores a determinar o
nível de radiação que penetra na cabeça dos astronautas em órbita baixa ao
redor da Terra. Temerosos de que os astronautas ficassem nervosos com a
companhia de um passageiro decapitado, os pesquisadores revestiram o
crânio com um plástico rosado moldado com a forma aproximada de um
rosto. “O resultado ficou muito mais ameaçador do que teria sido um crânio
exposto”, comentou o astronauta Mike Mullane.j
Durante o Projeto Apollo, o desconforto da Nasa com relação ao uso de
cadáveres em estudos de impacto de cápsulas superou, ao que parece, todo
o desconforto que pudessem ter em usar pessoas vivas. Em 1965, a Nasa
colaborou com a Força Aérea numa série de testes muito semelhantes ao
que assisti hoje — mas com voluntários humanos. Ao todo, 79 militares da
Base Holloman foram submetidos a testes no assento de uma maquete da
cápsula Apollo, montada num trenó de impacto, usando capacetes e outros
componentes do traje espacial. Esses homens passaram por 288 quedas no
mar: na posição normal, de cabeça para baixo, de costas, de frente, de lado,
em ângulo de 45 graus. As acelerações chegaram a 36 G, mais que o dobro
dos 12 G a 15 G inflingidos a F hoje.
O coronel John Paul Stapp, pioneiro na pesquisa da tolerância humana a
impactos, resumiu o projeto em poucas palavras numa nota para a imprensa:
“Pode-se dizer que, ao custo de alguns torcicolos, dores nas costas,
cotovelos machucados e um ou outro palavrão, tornamos a cápsula Apollo
segura para os três astronautas que já enfrentarão perigos de sobra nos
riscos desconhecidos da primeira viagem à Lua”.
Conversei com um homem que se submeteu a seis testes no trenó Daisy,
na Base Holloman, em várias posições, usando um capacete da Apollo. Earl
Cline tem 66 anos. Seu último teste aconteceu em 1966 — 25 G. Ele
respondeu que não tinha tido nenhum problema, mas à medida que a
conversa avançava, começaram a surgir coisas. Até hoje ele sente dores no
ombro que suportou um impacto lateral. Quando se aposentou, descobriram
que ele tinha uma válvula cardíaca lacerada e um olho “um pouco
prejudicado”.
Cline se sentia solidário com o homem que sofreu uma ruptura de
tímpano e com outro que testou o assento da Apollo de cabeça para baixo,
“com o traseiro virado para o ar”, e acabou com uma ruptura de estômago.
Não demonstra ressentimento ou desgosto, nem reivindicou indenização por
invalidez. “Sinto muito orgulho por ter dado minha contribuição. Gosto de
pensar que, por causa dos testes de que participei, quando os astronautas
viajavam nas missões Apollo, os capacetes deles não se despedaçavam ou
qualquer coisa do gênero.” Um voluntário chamado Tourville expressou
sentimentos semelhantes ao ser entrevistado por um jornal na época em que
Stapp aludiu a “alguns torcicolos”: “Não me importo em perder o sono
alguns dias por causa de dores nas costas, porque sei que isso vai evitar que
os astronautas da Apollo se machuquem em seus pousos”. Tourville
suportou 25 G e sofreu uma lesão compressiva do tecido mole em torno de
três vértebras.
A generosa ajuda de custo por trabalho insalubre constituía uma
motivação adicional. Bill Britz, veterinário da Base Holloman da Força
Aérea, lembra-se de que recebia cem dólares extras mensais. Cline recebia
entre sessenta e 65 dólares, a cada mês, para se submeter a testes no trenó
até três vezes por semana. Como na época seu salário era de 72 dólares, o
adicional era significativo. “Eu vivia como um oficial”, disse-me Cline,
acrescentando que havia uma lista de espera de voluntários para o trenó
Daisy. Não era esse o caso na empresa Stanley Aviation, em Denver, que a
Nasa contratara para realizar alguns estudos de impacto. Maquetes de
cápsulas eram suspensas por guindastes e soltas sobre superfícies de
diferentes compressibilidades para verificar que espécie de lesões um
astronauta poderia ter de enfrentar se a cápsula não caísse no mar, e sim em
áreas de terra, de cascalho ou no estacionamento de um supermercado
qualquer. Ali, disse-me Britz, pagavam apenas 25 dólares. “Eles só
conseguiam vagabundos mortos de fome!” Poderíamos imaginar que a Nasa
mais temesse um escândalo nos jornais devido ao uso de indigentes mal
remunerados do que uma onda de indignação causada pela utilização de
cadáveres, mas as coisas eram diferentes naquele tempo. Os sem-teto eram
“vagabundos” e “marginais”, e cadáveres eram pessoas que repousavam em
almofadas de cetim.

O primeiro americano a sobreviver a um contratempo no pouso de uma


cápsula espacial suportou 3 G a mais do que os planejadores da missão
tinham previsto. Sua cápsula subiu 68 quilômetros mais do que devia e
pousou a 710 quilômetros do ponto previamente determinado. Quando os
navios de resgate a alcançaram, duas horas e meia depois, ela tinha sido
invadida por 360 quilogramas de água e estava semissubmersa. Com muita
apreensão, a escotilha foi aberta. O viajante espacial estava vivo! Ao
retornar à base, saltou nos braços do sargento Ed Dittmer, da Força Aérea,
que o esperava.
O astronauta era Ham, um chimpanzé de três anos, e o sargento Dittmer,
seu adestrador. Ham foi, é claro, mais do que o protagonista do primeiro
problema no pouso de uma cápsula espacial. Foi o primeiro americano a
viajar numa cápsula e voltar vivo. Por isso, ofuscou um pouco o brilho dos
astronautas do Projeto Mercury. O voo de Ham, cercado de muita
publicidade, deixou uma coisa clara para todos: o astronauta não conduz a
cápsula; a cápsula conduz o astronauta. Junto com o astrochimp Enos, que
descreveu uma órbita em torno da Terra três meses antes de John Glenn,
Ham personificou um debate que persiste até hoje: os astronautas são
mesmo necessários?
a Por isso, a forma mais segura de sobreviver a uma queda de elevador consiste em deitar-se de
costas. Sentar-se é ruim, porém melhor do que ficar em pé, pois as nádegas são um amortecedor
natural fornecido pela natureza. Músculos e gordura são compressíveis e ajudam a absorver as forças
G do impacto. Quanto a dar um salto no ar antes que o elevador toque o fundo, isso só retarda o
inevitável. Além disso, você poderá estar agachado no momento do impacto. De acordo com um
estudo de 1960 do Instituto Civil de Pesquisas Aeromédicas dos Estados Unidos, agachar-se numa
plataforma em queda causa “fortes dores dos joelhos” em forças G relativamente baixas.
“Aparentemente, os músculos flexores [...] agiram como um fulcro para abrir a articulação do
joelho”, observaram os pesquisadores, com óbvio interesse e sem sinal de remorso.
b Para sua surpresa, Peggy Whitson e seus companheiros tiveram quem os ajudasse. Não muito
tempo depois do pouso, ela sentiu que alguém a puxava para fora da cápsula. “Foi meio assim:
‘Legal, os caras da busca e resgate já chegaram’. Eles me deitaram no chão, perto do altímetro de
césio. Isso me pareceu esquisito, porque sempre nos tinham dito para ficar longe daquele altímetro.
Por isso, comecei a observar o pessoal do resgate. [...] Um deles estava usando algo que parecia uma
calça feita com um saco de aniagem. Eram camponeses cazaques.” Um deles falava um pouco de
russo e perguntou a Iuri Malentchenko, um dos companheiros de Peggy: “De onde veio esse barco?”.
(O incêndio tinha consumido os paraquedas.) “Iuri respondeu alguma coisa como ‘Não, isto é uma
nave espacial. Nós estávamos no espaço’. E o sujeito respondeu: ‘Nu, ladna’, qualquer coisa como
‘Certo, tanto faz’.”
c Ninguém é excluído do corpo de astronautas com base no tamanho do pênis. Presume-se que a
anatomia masculina se ajustará a um dos três tamanhos disponíveis para o dispositivo de coleta de
urina, semelhante a um preservativo, preso no interior do traje de EVA. Para evitar que astronautas
constrangidos optem pelo tamanho G, quando na verdade deveriam optar pelo P, e com isso causem
contratempos, não existe tamanho P. “Temos G, XG e XXG”, diz Tom Chase, engenheiro de trajes
espaciais da Hamilton Sundstrand. A situação era diferente durante o Projeto Apollo. Entre os 106
objetos deixados na superfície da Lua por Neil Armstrong e Buzz Aldrin, há quatro conjuntos de
coleta de urina — dois grandes e dois pequenos. Quem usava estes ou aqueles ainda gera conjecturas.
d E um fraldão. A falta de um fraldão não significa que os pilotos de carros de corrida não urinem
em seus macacões. “Eles fazem isso o tempo todo”, disse Danica Patrick numa entrevista à revista
Women’s Health. Exceto Danica. “Eu tentei no ano passado.” Ela explica que isso aconteceu, como
era de esperar, durante uma bandeira amarela (o sinal para diminuir a velocidade e acompanhar o
safety car, em geral devido a um acidente). “Foi meio assim, ‘... vamos lá’.” A Nike não patrocina
Danica.
e Como se sabe quando um cadáver já descongelou? Bolte enfia um transdutor de temperatura na
traqueia. Quando a temperatura interna passa de 15,5 oC, ele está pronto. Na ausência desse
equipamento, um “termômetro no reto” dará uma ideia bastante boa, como também movimentar
braços e pernas para verificar a flexibilidade das articulações. Em geral bastam dois a três dias (num
refrigerador, por favor).
f É preciso ter cuidado com objetos intermediários. Na edição de abril de 1995, o Journal of
Trauma relatou o caso de um homem que fumava cachimbo quando o air bag de seu BMW se
expandiu. Um pedaço do tubo do cachimbo penetrou em seu olho, provocando “uma ruptura do
globo ocular”. O autor do artigo, um médico suíço, tem um penetrante globo ocular para detalhes e
observa que “havia fumo espalhado por todo o piso do carro” e que a lesão foi semelhante àquelas
que se veem “após a estocada do chifre afiado de um touro”. O texto termina com uma exortação aos
motoristas para que tenham “uma conduta apropriada”: não devem, “ao dirigir, beber líquidos em
copos, [...] pôr objetos no colo ou usar óculos”. Nada tenho a dizer em favor de desferir estocadas
com chifres afiados, mas decerto dirigir de óculos mais evita do que causa acidentes.
g O movimento é grande ou pequeno? É suficiente para que a pessoa às vezes o perceba. Num
estudo sobre desaceleração súbita para o Projeto Apollo, cinco dos 24 pacientes queixaram-se do que
o pesquisador chamou de “sensação de deslocamento visceral abdominal”.
h O ar pode parecer coisa delicada, mas não é. Basta a gente lembrar Javier Bardem em Onde os
fracos não têm vez. Se você não viu o filme, pense em trabalhadores de um abatedouro de porcos
que, segundo um artigo na MedPage Today, usam rajadas de ar comprimido para retirar os miolos da
cabeça do animal. “Isso ‘emulsifica’ o tecido cerebral”, explicou uma fonte.
i Vê-se isso também no artigo “Tolerância voluntária do ser humano a acelerações da cabeça em
decorrência de impactos”. Onze voluntários, pelo menos um deles de terno e gravata, receberam
golpes na cabeça, dados por pêndulos de quatro e nove quilogramas. Nas palavras dos autores:
“Observou-se uma distorção considerável do rosto quando a estrutura óssea da cabeça foi acelerada e
se afastou das partes mais moles”. Temos uma dívida de gratidão para com esses homens. Nas
primeiras pesquisas sobre impactos na cabeça, um cadáver pouco ajudava. Não havia como lhe pedir
que fizesse uma contagem regressiva de sete em sete ou que dissesse o nome do presidente, nem
nunca podíamos saber que tipo de dor de cabeça ele sentia.
j Outra possível razão por que a Nasa evita pesquisas com cadáveres: os próprios astronautas.
Escreveu Mullane: “Flutuei para um saco de dormir, meti os braços nos ‘bolsos’ e escondi a cabeça
ali dentro. Pepe e Dave prenderam o crânio na parte de fora do saco de dormir com fita adesiva [...]
Silenciosamente, me fizeram flutuar até a cabine de comando e me colocaram atrás de John Casper,
que estava concentrado num painel de instrumentos. Quando ele se virou e deu com a criatura junto
de seu rosto, agitando os braços, quase morreu de susto. Depois, nós prendemos [o crânio] no
banheiro”. Se na sua vida você só puder ler o livro de memórias de um astronauta, que seja o de
Mullane.
8. UM PASSO PELUDO

PARA A HUMANIDADE

As estranhas carreiras de Ham e Enos

Todo o Parque Aéreo e Espacial John P. Stapp é feito de coisas que


podem acabar ferindo uma pessoa. Onze mísseis históricos são exibidos em
canteiros em meio a suculentas espinhosas do deserto. Ao longo das trilhas
de pedrinhas, leem-se pequenos letreiros: figo-da-índia, eupatório,
equinocarpo. Às vezes, o simples nome não basta para que se identifique o
que está sendo exposto: cabeça de turco é um cacto ou uma munição
explosiva? Trinta metros adiante, uma nova confusão. Descendo a ladeira,
junto aos mastros que assinalam a entrada do parque e de dois prédios
contíguos, o do Museu de História Espacial do Novo México e o da Galeria
da Fama Internacional do Espaço, encontra-se uma placa tumular de bronze
que diz: HAM, PRIMEIRO ASTROCHIMP DO MUNDO.a Os chamados astrochimps
despertam muitas controvérsias. As pessoas não sabem ao certo como vê-
los. Chimpanzés ou astronautas? Animais de pesquisa ou heróis nacionais?
Não se sabe. Alguém deixou uma cesta de flores no túmulo; outra pessoa
deixou uma banana de plástico.
Não se pode criticar as pessoas por se sentirem confusas. As carreiras de
Ham e Enos — os chimpanzés que, em 1961, participaram dos ensaios
gerais para o primeiro voo suborbital (janeiro) e orbital (novembro) dos
Estados Unidos — não foram muito diferentes, em vários aspectos, das de
Alan Shepard e John Glenn. Os animais e os dois astronautas que os
seguiram ao espaço não treinaram juntos, mas poderiam. Estiveram nas
mesmas câmaras de altitude e experimentaram a microgravidade nos
mesmos voos parabólicos, submeteram-se às mesmas máquinas centrífugas
giratórias e às mesmas plataformas de vibração para se habituar ao ruído, ao
tremor e à hipergravidade do lançamento. Quando chegava o grande dia,
astrochimps e astronautas eram vestidos e conduzidos à plataforma de
lançamento pelo mesmo reboque Airstream.
Para os chimpanzés e os homens, as funções de pilotagem variavam de
simples a inexistentes. As cápsulas Mercury, como diz Bill Britz, o
veterinário de Ham, “não eram máquinas voadoras, eram projéteis”. Era
dispará-los para o alto, enviar um sinal para os paraquedas e vê-los descer
de volta.b Referindo-se tanto aos homens quanto aos chimpanzés, Britz
disse: “Eram organismos postos a bordo”. A ciência do Projeto Mercury era
uma extensão dos voos dos foguetes V-2, do Aerobee e dos voos
parabólicos que levaram a ele. A biologia aeroespacial havia determinado
que os seres humanos podiam funcionar por alguns segundos sem
gravidade. Mas o que dizer de uma hora, um dia, uma semana? “As pessoas
perguntavam: Por quê?”, diz Britz, referindo-se à era dos chimpanzés
espaciais. “A gente simplesmente não sabia!” Quais eram os efeitos a longo
prazo das viagens espaciais — não só os efeitos da ausência de gravidade,
mas também da radiação cósmica? (Partículas atômicas de alta energia
estão zunindo pelo espaço, a velocidades fantásticas, desde o Big Bang. O
campo magnético da Terra nos protege, desviando os raios cósmicos, mas
no espaço esses projéteis invisíveis atravessam as células, causando
mutações. O problema é suficientemente sério para que os astronautas
sejam vistos como profissionais que trabalham com radiação.)
Do mesmo modo que os Alberts prepararam o terreno para o Projeto
Mercury, Ham, Shepard e os demais fizeram o mesmo para os astronautas
do Projeto Gemini. E estes, por sua vez, preparariam o terreno para o
Projeto Apollo. Missões de seis meses na ISS estão preparando o terreno
para a longa viagem que um dia se fará a Marte. Cada programa espacial
proporciona oportunidades para a ciência planetária, mas em sentido macro,
cada programa é, em essência, um treinamento e uma preparação para
viagens futuras mais longas e mais distantes.
A gravidade zero ainda assombrava a Nasa. “O grande bicho-papão era a
ausência de gravidade”, disse John Glenn numa entrevista à Associated
Press em 1967. “Muitos oftalmologistas temiam que o olho mudasse de
forma e que isso alterasse a visão, de modo que talvez no espaço o homem
não conseguisse ver nada.” Por isso, se você olhasse o interior da cápsula de
Glenn, veria uma versão reduzida do quadro optométrico de Snellen fixado
no painel de instrumentos. Glenn tinha sido instruído a olhar o quadro a
intervalos de vinte minutos. Ali também havia um teste de daltonismo e um
dispositivo para medir o astigmatismo. Quando eu ouvi falar do voo
histórico de Glenn, pensei: “Gente, como terá sido isso — ser o primeiro
astronauta da Nasa a orbitar em torno da Terra?”. Agora eu sei. Foi como
consultar um oftalmologista.
O excesso de gravidade — as múltiplas forças G do lançamento e da
reentrada — também preocupava a Nasa. Um astronauta tinha de ser capaz
de alcançar o painel de instrumentos caso alguma coisa desse errado. Se um
braço estendido pesasse 36 quilos, em vez de quatro, seu dono teria força
para erguê-lo? Foi por isso que Ham (e, mais tarde, Enos) passou semanas
aprendendo um procedimento pelo qual tinha de se aproximar de um painel
de instrumentos e puxar alavancas durante todo o voo. A movimentação
também permitia aos pesquisadores acompanhar qualquer queda cognitiva
durante o voo dos animais. Eles queriam saber se a gravidade zero,
combinada com algum fator X ainda a ser descoberto, não desorientaria um
viajante espacial ou retardaria sua reação.
Como os astronautas do Projeto Mercury eram militares e pilotos de
testes de primeira linha, a preocupação não tinha muito sentido. Esses
homens nunca tinham ido ao espaço, mas tinham passado muito tempo em
seu limiar e por isso tinham certeza de que se sairiam bem. Como pilotos de
testes, tinham suportado, durante subidas e mergulhos, forças G maiores e
durante períodos mais longos do que teriam de enfrentar num voo do
Projeto Mercury. Eles não se preocupavam com suas aptidões;
preocupavam-se, no máximo, com a viagem. Dois meses antes do
lançamento, o foguete Redstone, que levaria a cápsula de Shepard ao
espaço, começou a se comportar mal e passou por sete modificações de
última hora em peças que não tinham sido testadas adequadamente. Esse foi
um motivo adicional para que a Nasa preferisse mandar chimpanzés ao
espaço antes de homens. (A agência viria a lamentar o excesso de cautela.
Três semanas antes de Alan Shepard subir, o cosmonauta Yuri Gagarin
tornou-se o primeiro homem a chegar ao espaço.)
O voo de Ham deixou implícito — de uma maneira amplamente
divulgada — que o astronauta, o herói americano, não passava de um
chimpanzé melhorado. “Serem precedidos por um chimpanzé foi um golpe
para o ego deles”, disse-me Bill Britz. Os astronautas sem dúvida teriam
preferido o lançamento, sem fanfarras, de outro boneco. Meses antes do
lançamento de Ham, foi posta no espaço uma cápsula que levava um
“simulador de tripulante” que respirava, consumindo oxigênio e produzindo
dióxido de carbono, para testar os sensores da cabine.c As mesmas
observações depreciativas feitas com relação a um chimpanzé poderiam ter
sido feitas com relação a um boneco, mas a imprensa não cobria voos de
bonecos da mesma forma que voos de chimpanzés. O dispensador de
rodelas de banana tinha sido retirado quando Shepard e Glenn subiram a
bordo, mas o estigma persistia. Como disse o piloto de testes Chuck Yeager,
numa frase sempre lembrada: “Eu não gostaria de ter de limpar cocô de
macaco do assento antes de entrar na cápsula”.
Embora Ham, Enos e seus congêneres vivessem e treinassem em
reboques estacionados ao lado do alojamento e local de trabalho dos
astronautas, no famoso Hangar S, no Centro Espacial Kennedy, Britz diz
que não se lembra de ter falado com Alan Shepard mais do que uma ou
duas vezes. “Nós e os astronautas não tínhamos muito contato.” Jerry Fineg,
o veterinário de Enos, concorda: “Eles não queriam admitir que estávamos
ali”. Piadas de chimpanzés eram mal recebidas. Britz me contou uma
história sobre um cartaz afixado no furgão em que o astrochimp e o
astronauta eram levados à plataforma de lançamento. “A trajetória de Alan
Shepard estava desenhada no cartaz. Com muito cuidado, desenhamos a
trajetória de Ham, mais alta e mais distante da Terra.” (Devido a uma falha,
Ham subiu 68 quilômetros a mais do que o planejado.) “Uma coisa eu lhe
digo, aquilo realmente deixou umas pessoas furiosas. Aquela coisa
desapareceu em um minuto.” Certa vez, Guenter Wendt, diretor da
plataforma de lançamento das cápsulas Mercury, repreendeu Shepard,
ameaçando substituí-lo por um daqueles sujeitos que trabalham por
bananas. Shepard, ao que consta, atirou-lhe um cinzeiro na cabeça.
As brincadeiras relacionadas a chimpanzés foram menos incômodas para
John Glenn do que tinham sido para Alan Shepard, e isso porque Enos não
obteve o mesmo sucesso midiático. Na época do voo de Ham, duas cadelas
soviéticas, Belka e Strelka, já haviam voltado vivas à Terra depois de várias
órbitas em torno do planeta, e a imprensa estava impaciente por alguma
façanha dos Estados Unidos no espaço. Quando Ham amerrissou vivo, a
mídia o apresentou menos como um animal de pesquisa do que como uma
espécie de astronauta baixinho e peludo. O chimpanzé apareceu na capa da
Life, em seu traje de voo, ao lado da manchete “Um ‘Ham’ confiante. De
volta do espaço”.d O público adorou. Cartas, flores e presentes endereçados
a Ham começaram a chegar à colônia de chimpanzés na Base Holloman,
para onde Ham voltou depois de seu voo. As pessoas mandavam também
seus exemplares da Life, pedindo que fossem “autografados” por Ham. O
pessoal da base as atendia com toda paciência, comprimindo a mãozinha do
animal tantas vezes numa almofada de carimbo que hoje um exemplar da
Life com o “autógrafo” de Ham não vale mais de quatro dólares no eBay. (E
talvez seja falso. Britz me disse que, temendo que Ham se cansasse daquilo,
depois de certo tempo o pessoal da base passou a carimbar a revista com a
mão de qualquer chimpanzé.)
Os bancos de dados dos jornais em geral têm cinco vezes mais matérias
sobre Ham do que sobre Enos. “Enos não tinha o mesmo carisma, e não foi
o primeiro”, diz Fineg. Por isso, a glória de John Glenn foi pouco ofuscada
por um predecessor simiesco. Ademais, Glenn reduziu as comparações
indelicadas porque ele mesmo fazia as piadas. Num encontro com
congressistas, aludiu à experiência humilhante que foi ouvir Caroline, a
filha do presidente Kennedy, lhe perguntar, ao lado do pai: “Onde está o
macaco?”.e
Enos chegou a ser malquisto, enquanto Ham tinha sido amado. Nos
comunicados à imprensa, percebe-se o esforço de Fineg no sentido de
encontrar formas positivas para se referir a Enos. Em vez de “obstinado” e
“genioso”, termos que emprega com frequência, Fineg o descrevia como
“calado, taciturno, o tipo do pilar da sociedade”.
“Ele era um safado”, lembrou-se Fineg quando conversamos. O pessoal
da base o chamava de Enos Tarado. “Porque ele era um desclassificado.”
“Quer dizer, libidinoso.”
“Isso.”
O apelido Enos Tarado é mencionado no livro Animais no espaço, mas os
autores dão uma explicação bastante diferente para seu surgimento.
Segundo eles, a Nasa teria inserido um cateter balão em seu pênis, em parte
para desestimular o hábito da masturbação. (Tanto Ham quanto Enos foram
filmados durante seus voos.) Em certo momento, o sistema de alavancas
teria começado a funcionar mal, recompensando reações corretas com
choques, em vez de péletes de banana. Frustrado, Enos teria arrancado o
cateter e “começou a se masturbar diante da câmera”. Ou, pelo menos, essa
era a história.
Passei alguns dias, esbaforida, remexendo arquivos públicos em busca
dos vídeos censurados de Enos. Encontrei filmagens de Ham em voo e de
Enos sendo preparado para o voo, mas nenhuma de Enos no interior da
cápsula, manipulando alavancas — a sua ou as da Nasa. Entrei em contato
com Fineg outra vez.
“Não sei de onde saiu isso”, disse ele. “Trabalhei com Enos vários anos,
e ele nunca fez nada disso na minha frente. O apelido nasceu do
comportamento dele.”
“Quer dizer que o cateter não foi usado para impedir que ele ‘se
tocasse’?” (Em geral não uso eufemismos, mas Fineg é um homem que diz
“traseiro” numa frase como “Tenho uma foto de quando ele me mordeu no
traseiro”.) Na verdade, o cateter estava na artéria femoral do chimpanzé
(para monitorar sua pressão sanguínea), e não em sua uretra.
Ainda pouco convencida, liguei para Bill Britz, colega de Fineg que fora
veterinário de Ham, mas também trabalhara com Enos.
“Nada disso”, disse Britz. “Quer dizer, quase todos os chimpanzés
machos se masturbam. Mas ele nem conseguiria pegar no membro.” Britz
explicou que o berço no interior da cápsula fora projetado com uma
barreira, para impedir que o animal levasse a mão abaixo da cintura e
puxasse o cateter arterial durante o voo. Britz concordou com Fineg: Enos
não tinha essa reputação.
Entrei em contato com Chris Dubbs, um dos autores de Animais no
espaço, para descobrir qual seria a fonte dessa história. Ele me indicou um
artigo que o coautor do livro encontrara no site de um certo dr. Mohammad
al-Ubaydii. O relato de al-Ubaydii continha um novo detalhe surpreendente.
“Durante a entrevista coletiva que se seguiu, Enos pôs-se a puxar sua fralda
para baixo. O pessoal da Nasa estremeceu de horror, imaginando o que
poderia acontecer a seguir. Por sorte, Enos se comportou com bastante
classe e se conteve.”
Respondendo a um e-mail meu, o dr. Al-Ubaydii disse que havia topado
com a história no livro Corrida espacial, de 2007. Nessa versão, Enos se
mostra menos contido: “No momento em que baixou a calça, as câmeras
clicaram, disparando flashes e garantindo que seu nome fosse imortalizado
tanto por seu passatempo como por suas proezas astronáuticas”. Indagações
dirigidas ao autor não foram respondidas, mas uma pesquisa no Google
Books desencavou outra referência, dessa vez em O lado escuro da Lua,
publicado em 2006. “No dia seguinte, por ocasião de sua entrevista coletiva
pós-voo, ele horrorizou seus tratadores da Nasa, ao arrancar a fralda e
começar a se tocar.” O lado escuro da Lua cita um outro livro sobre a
corrida do Projeto Apollo chamado A corrida, de James Schefter, publicado
em 1999.
“[Enos] baixava a fralda no meio de um exercício de treinamento e
começava a se masturbar. Seus tratadores e médicos imaginaram que ele
pararia com aquilo se inserissem um cateter para drenar a urina, em vez de
usarem um dispositivo semelhante a um preservativo preso a um tubo. Não
deu certo. [...] Criaram um cateter avançado, com um pequeno balão
inflável, que dificultava sua retirada.” Nessas poucas linhas, Schefter se
mostra, como disse um crítico, um autor que “não permite que os fatos
atrapalhem uma boa história”. O dispositivo formado por preservativo e
tubo lembra o coletor de urina criado para utilização pelos astronautas do
Projeto Mercury durante os voos espaciais. Nunca foi usado em
chimpanzés. E é difícil imaginar que alguém se dispusesse a enfrentar a
trabalheira e o risco de inserir um cateter num chimpanzé apenas para
impedir que ele se masturbasse durante as sessões de treinamento. Quanto
ao cateter balão, foi patenteado em 1963 — dois anos depois do voo de
Enos — como instrumento para remover coágulos sanguíneos, e não para
desestimular a masturbação de chimpanzés. A corrida não menciona fontes
ou bibliografia, e Schefter morreu em 2001.
O interessante é que Schefter em nenhum momento diz que Enos se
masturbou durante o voo. Afirma apenas que ele retirou o cateter.
Tampouco diz que Enos tenha mexido no pênis durante a entrevista coletiva
(que aconteceu na Base Kindley, da Força Aérea, nas Bermudas, a pouca
distância do local onde a cápsula foi recuperada). Para Schefter, a cena se
deu no Centro Espacial Kennedy, e não numa entrevista coletiva, mas
diante de alguns repórteres e dirigentes da Nasa, quando Enos descia a
escada do avião que o trouxe das Bermudas. E ele apenas baixou a fralda.
E como quem conta um conto aumenta um ponto, a história foi crescendo
até que Enos teve o primeiro orgasmo orbital do mundo e depois voltou e se
masturbou descaradamente diante de um mar de câmeras e flashes.
Assim começa a matéria enviada por um repórter da Associated Press
depois da famigerada entrevista coletiva nas Bermudas: “Durante sua
primeira aparição pública depois de voltar do espaço sideral, o chimpanauta
treinado na Base Aérea Holloman recusou-se, na quinta-feira, até mesmo a
dar cambalhotas para os jornalistas presentes na entrevista coletiva. ‘Na
verdade, ele é um sujeito reservado e nada exibicionista’, disse o capitão
Jerry Fineg”.
Seu nome está limpo, Enos.

Uma ventania derrubou as flores do túmulo de Ham. Estou aqui de olhos


meio fechados por causa do calor e do sol do meio-dia, comendo um
sanduíche e descongelando depois de passar a manhã nos arquivos
agressivamente refrigerados do museu. Agora eu conheço a história por trás
da placa de bronze. As mesmas dúvidas que cercaram Ham enquanto ele era
vivo continuaram depois de sua morte. A Galeria Internacional da Fama
Espacial foi bombardeada (palavra de seus dirigentes) por consultas da
imprensa e do público sobre o destino de seus restos mortais. Houve um
certo dilema. Qual seria o procedimento apropriado a tomar com relação a
um chimpanauta morto? Serviço fúnebre ou crematório?
A posição da Força Aérea ficou clara no rascunho de uma carta do
coronel William Cowan: Ham era um artefato histórico. Referindo-se
continuamente aos restos de Ham como “a carcaça”, Cowan recomendou
que, depois da autópsia, os ossos fossem removidos, enviados à colônia de
besouros dermestídeos do Instituto Smithsoniano para eliminação de todo
vestígio de músculos, nervos etc., e depois entregues ao arquivo do Instituto
de Patologia das Forças Armadas.
A pele de Ham já tinha sido retirada, caso o Instituto Smithsoniano
desejasse empalhá-lo. Isso me pareceu uma má ideia: vi uma fotografia de
Ham tirada dez anos depois de seu voo. Depois da aposentadoria, tinha
quase cinquenta quilos a mais, e alguns dentes a menos. Outros dentes se
projetavam para fora da boca em ângulos estranhos. Era impossível
reconhecer naquela imagem o jovem rosado, em seu traje espacial, que
aparecera na capa da Life. Ele mais parecia Ernest Borgnine.
Mas ninguém pediu a minha opinião. O Instituto Smithsoniano anunciou
o projeto de empalhar Ham e acrescentá-lo à “exposição interior sobre
Ham” da Galeria Internacional da Fama Espacial, exposição que na época
consistia em “uma fotografia de Ham”. O público enfureceu-se. Os arquivos
ainda conservam algumas cartas. “Prezados senhores: Ham é um herói
nacional, e não uma coisa. [...] Os senhores pretendem empalhar John
Glenn também?” “Um chimpanzé não é um pimentão recheado.” O tom
geral era esse. O jornal Washington Post pôs mais lenha na fogueira da
indignação pública ao publicar um artigo assinado que insinuava
inclinações comunistas por parte do Instituto Smithsoniano. “Os únicos
heróis nacionais que podemos recordar e que se acham empalhados e em
exibição permanente são V. I. Lênin e Mao Tsé-tung.” (Confirmando a
inclinação comunista de empalhar heróis, as cadelas espaciais soviéticas
Belka e Strelka estão conservadas, lado a lado, em caixas de vidro, no
Museu Memorial de Cosmonáutica em Moscou, com a cabeça erguida
como se fitassem o céu ou esperassem um osso.)
Logo se anunciou que Ham não seria empalhado. Teria “um
sepultamento de herói” num jazigo diante dos mastros da Galeria da Fama.
É difícil imaginar o que sobrou de Ham após a autópsia e a remoção dos
ossos e da pele. Seja lá o que for, temos de supor que ele esteja ali debaixo
das flores.
O museu tinha agora de providenciar um serviço fúnebre apropriado.
Precisava de uma figura pública respeitada que se dispusesse a proferir
algumas palavras sobre as contribuições de Ham à exploração espacial
realizada pelos Estados Unidos. Na afobação do momento, a relações-
públicas do museu dirigiu uma carta a Alan Shepard, famoso desafeto de
Ham. A missiva lembrava que Shepard receberia “atenção nacional de
todos os setores da mídia”. Como se Shepard, o primeiro americano a ir ao
espaço, quisesse ou precisasse de atenção da mídia. Além disso, num evento
que, mais uma vez, o faria dividir os refletores com um chimpanzé. A
autora da carta reconhecia a existência de “pilhérias e, às vezes,
brincadeiras ‘sem graça’ sobre a situação”. As aspas foram um toque
infeliz, dando a impressão de que a própria redatora achava graça nas
brincadeiras.
A resposta chegou em papel timbrado de uma distribuidora da cervejaria
Coors, da qual Shepard era presidente. Ele agradecia ao museu pelo
“atencioso convite” e lamentava não poder aceitá-lo. A carta foi
datilografada por sua secretária, que deixou suas iniciais: JC. Não trazia
assinatura. Sem desanimar, o setor de relações públicas da Galeria da Fama
procurou em seguida John Glenn, que a essa altura não era apenas um
astronauta, e sim um senador e candidato à presidência. Glenn declinou
educadamente do convite, alegando compromissos anteriores.
Uma breve reportagem sobre o evento saiu no Albuquerque Journal,
acompanhada de uma foto que mostrava um grupo de umas quarenta
pessoas reunidas na área dos mastros. “O coronel Stapp pronunciou
algumas palavras e integrantes da Tropa de Bandeirantes 34, de
Alamogordo, depuseram uma coroa de flores junto a uma pequena placa
comemorativa.” Stapp dirigia o programa de pesquisa sobre aceleração e
desaceleração na Base Holloman. Nos estudos feitos na Base sobre medidas
de segurança, tanto para fins aeroespaciais quanto automotivos, em geral
usavam-se chimpanzés em impactos tidos como demasiado perigosos para
os aviadores. Isso fazia de Stapp uma escolha adequada e, ao mesmo tempo,
inadequada. Ele conhecia intimamente os sacrifícios heroicos dos primos
mais próximos do homem; ele próprio assinara os documentos relativos à
maioria desses sacrifícios. A homenagem foi respeitosa, ainda que
destituída de sentimento.f Dela, fez parte um raríssimo elogio fúnebre
integrado por dados numéricos sobre forças G.
Enos não tem um monumento. Um livro de registro das aquisições de
chimpanzés da Base Holloman contém uma nota: “Restos no
Smithsoniano”.g No entanto, ninguém no instituto parece saber onde foram
parar. Chris Dubbs, autor de Animais no espaço, falou com alguém cuja
mãe havia dissecado os olhos de Enos para estudar os efeitos da radiação
cósmica, mas o homem nada sabia a respeito do restante do chimpanzé. Isso
leva a crer que seu corpo tenha sido subdividido para pesquisas — o destino
habitual e apropriado para um objeto de pesquisas.
A verdade nua e crua é que Ham e Enos foram isso e nada mais que isso.
Tiveram um papel vital no esforço espacial americano, mas eu não usaria o
termo “heróis”, por uma simples razão: o que fizeram não envolveu bravura
alguma. Um ato heroico é o que se empreende com conhecimento dos
perigos que acarreta. Para Ham, o dia 31 de janeiro de 1961 foi apenas mais
um dia esquisito num quartinho metálico. Alan Shepard pode não ter usado
sua perícia como piloto de testes, mas decerto estava se portando com
coragem. Deixou-se amarrar a um assento na ponta de um míssil e foi
lançado ao espaço: uma façanha cercada de perigos espantosos e
empreendida, até aquela data, por um único homem.
De qualquer forma, não foi fácil tomar a decisão de pôr um chimpanzé
no espaço antes de um astronauta. A Nasa teve de levar em conta, de um
lado, a preocupação com a tripulação da cápsula Mercury e a falta de
confiança no equipamento, e, de outro, a enorme pressão no sentido de
superar a União Soviética. Os primeiros tempos do Projeto Apollo seriam
atormentados pela mesma mescla de urgência e cautela. Depois de verem a
União Soviética acumular uma série de triunfos — o primeiro satélite
artificial, o primeiro voo orbital de um animal vivo (a cadela Laika), o
primeiro resgate de animais vivos depois de voos orbitais (Belka e Strelka),
o primeiro homem no espaço, a primeira caminhada espacial —, os Estados
Unidos estavam mais do que determinados a chegar à Lua primeiro. A Nasa
trabalhava com ardor para cumprir a meta anunciada publicamente pelo
presidente Kennedy. No fim dos anos 1960, os americanos levariam um
homem à Lua. Ou, de qualquer forma, algo bem próximo disso.

Primeira bandeira dos EUA na Lua pode ser hasteada por um chimpanzé

Entre maio de 1962 e novembro de 1963, Harold R. Williams, repórter


veterano da Associated Press, publicou quatro reportagens baseadas em
visitas a um novo centro de treinamento de chimpanzés no Laboratório de
Pesquisas Aeromédicas da Base Holloman. A “Faculdade dos
Chimpanzés”, como ele apelidou o lugar, era uma expansão, de muitos
milhões de dólares, das instalações precárias em que Ham, Enos e outros
chimpanzés tinham sido treinados para as missões do Projeto Mercury.
Contava com 26 funcionários, “dormitórios” novos em folha, uma área
externa para cada jaula, uma suíte cirúrgica, uma cozinha e um currículo de
tarefas “novas, complicadas e secretas”. As matérias de Williams saíram em
dezenas de jornais nos Estados Unidos, com várias manchetes, como, por
exemplo: “Primeira bandeira dos EUA na Lua pode ser hasteada por um
chimpanzé”. Quase todas destacavam a possibilidade de uma missão lunar:
“Primeiros americanos na Lua? Chimpanautash dão duro em programa
espacial secreto”. “Macaco da Base Holloman pode ser o primeiro a chegar
à Lua.” “Aluno da faculdade dos chimpanzés espaciais pode ser o primeiro
terráqueo na Lua.”
Williams fez uma descrição de Bobby Joe, um “doutor” da faculdade,
sentado diante da réplica de um painel de instrumentos, manobrando sem
dificuldade um manche para manter dois fios cruzados dentro de um
círculo. “Não há dúvida”, disse o guia de Williams, o major Herbert
Reynolds, que se tornaria depois presidente da Faculdade de Medicina
Baylor. “Ele seria capaz de pilotar uma nave até o espaço e trazê-la de
volta.” Numa outra visita, Williams viu pela janela de um “simulacro de
nave espacial” uma fêmea de chimpanzé chamada Glenda, que estava ali
havia três dias, dormindo e trabalhando nos mesmos turnos que um
astronauta teria de cumprir. Ela ficaria ali mais dois dias.
Cinco dias foi o tempo que os astronautas da Apollo 11 levaram para
chegar à Lua e fincar nela a bandeira americana. Será verdade? Teriam a
Nasa e a Força Aérea planejado bater os soviéticos na corrida à Lua
mandando para lá um chimpanzé treinado, numa missão só de ida? Uma
viagem de ida e volta estava fora de cogitação. Decolar da Lua e acoplar
com uma nave em órbita estava além das aptidões de um símio. Mas um
lançamento em direção à Lua e a alunissagem de uma cápsula podiam ser
controladas da Terra, tal como hoje em dia veículos exploradores são postos
em planetas por controle remoto.
A parte mais delicada seria contornar o problema de relações públicas
criado pela morte de um chimpanzé-herói. Era melhor não seguir o exemplo
soviético. Em novembro de 1957, uma simpática e paciente vira-lata de
Moscou, chamada Laika, viajando sem traje espacial numa cápsula
pressurizada, tornou-se a primeira criatura viva a girar em torno de nosso
planeta.i Infelizmente, não havia plano algum para trazê-la de volta em
segurança. Durante uma semana, as autoridades soviéticas se calaram sobre
a questão, negando-se a dizer se Laika ainda estava viva. Ignoraram as
indagações da mídia e de grupos de proteção aos animais, até que os
protestos públicos praticamente eclipsaram a glória da façanha. Por fim,
nove dias depois do lançamento, a Rádio Moscou confirmou que Laika
estava morta. Os detalhes não foram revelados. Em 1993, o treinador Oleg
Gazenko revelou a um dos autores de Animais no espaço que a cachorrinha
morrera porque um defeito fez com que a cápsula fosse superaquecida,
apenas quatro horas após o lançamento.
Talvez fosse menos escandaloso enviar ao espaço um voluntário humano.
Em 1962, o mesmo ano em que Williams começou a publicar suas
reportagens sobre os chimpanzés da Base Holloman, saiu no This Week, um
suplemento dominical distribuído por vários jornais, uma matéria segundo a
qual a União Soviética pretendia enviar um cosmonauta numa missão sem
volta. No mesmo ano, de acordo com Dave Doolong (historiador da
exploração espacial), três revistas — Missiles and Rockets, Aviation Week &
Space Technology e Aerospace Engineering — expuseram os pormenores
de uma missão semelhante que estaria sendo cogitada pela Nasa. A
expedição lunar “unidirecional e solitária” era fruto da imaginação de dois
engenheiros da Bell Aerosystems, John M. Cord e Leonard M. Seale. “Seria
a forma mais barata, mais rápida e talvez a única para superar os russos”,
teria dito Cord. Dooling destaca que informações obtidas pelo serviço
secreto na época levavam a crer que os soviéticos teriam condições de fazer
uma nave tripulada pousar na Lua já em 1965. (Os americanos pousaram na
Lua em 1969.)
Nem o plano soviético nem a sua versão americana propunham deixar o
infeliz astronauta morrer na Lua. Alguém o resgataria num prazo de um a
três anos — assim que descobrissem como fazê-lo e como construir os
veículos necessários. Um total de nove lançamentos se seguiria ao do
cosmonauta, para entregar um módulo de habitação, um módulo de
comunicações e aparelhos, equipamentos de construção para montagem dos
módulos, além de 4495 quilogramas de alimentos, água e oxigênio para
serem usados durante a espera pelo resgate.
E quem concordaria em ir? “Acredita-se sinceramente”, escreveram Cord
e Seale, “que serão encontradas pessoas capazes e qualificadas que se
disponham a ser voluntários para a missão, mesmo que a possibilidade de
retorno seja nula.” Eu acredito nisso. Há astronautas hoje que se
cadidatariam, alegremente, a aceitar uma viagem apenas de ida até Marte.
Esse cenário não promete nenhuma eventual viagem de volta. Em vez disso,
a tripulação teria de passar o resto da vida recebendo ajuda de veículos de
reabastecimento não tripulados. “Passei a vida treinando para ir ao espaço”,
disse a astronauta Bonnie Dunbar a Jerome Groopman, da revista The New
Yorker. “Se minha vida terminar numa missão a Marte, não será uma
maneira ruim de morrer.” Valentina Tereshkova, a primeira mulher a viajar
ao espaço, disse numa entrevista, em 2007, que viajar a Marte era o sonho
dos primeiros cosmonautas e que ela adoraria, aos 72 anos, realizá-lo:
“Estou pronta para viajar sem volta”. É possível que lançar naves
automáticas de reabastecimento, durante anos ou décadas, seja mais caro ou
mais difícil do que criar a tecnologia para fabricar combustível para os
motores de ascensão usando recursos marcianos. Ou pôr combustível e
equipamentos para a viagem de volta nesses veículos não tripulados, em vez
de suprimentos de sobrevivência.
Dooling considera improvável que alguém na Nasa tenha de fato
cogitado a ideia de Cord e Seale de uma missão lunar tripulada sem volta.
Mas a proposta torna crível a possibilidade de que a comunidade
aeroespacial tenha considerado — ainda que por um momento — a ideia da
viagem sem retorno de um chimpanzé.
Reli as reportagens de Williams. Fora os títulos, não havia referências
concretas a uma missão lunar. Será que os editores dos jornais forçavam a
mão para tornar as matérias mais chamativas? Eu precisava de outra fonte.j
O major Reynolds tinha morrido. Jerry Fineg deixara a Base Holloman em
1962. Tanto ele como Britz declararam não se lembrar de ter ouvido
qualquer coisa a respeito, embora Britz recordasse ter visto macacos resos
na Base Brooks, da Força Aérea, perto de San Antonio, sendo ensinados a
usar um manete. “Estavam tentando ver se eles poderiam realmente
pilotar”, disse-me ele num e-mail. “Os macacos eram bons!” Britz não sabia
qual seria o objetivo final do projeto. Sei, com certeza, que ainda em 1964
havia chimpanzés em treinamento para tarefas relacionadas ao espaço
porque localizei um documento que fazia referência à lesão sofrida por um
chimpanzé no simulador de nave espacial quando as chapas de apoio dos
pés apresentaram defeito e deram ao animal algo além do habitual choque
elétrico “fraco mas incômodo”.
Rudy Purificato, historiador da Força Aérea, está trabalhando num livro
sobre a história da Base Wright-Patterson, outra incubadora de pesquisas na
área da medicina aeroespacial na década de 1960. Escrevi a ele. “É possível
que realmente tenha havido planos para mandar um chimpanzé à Lua”, ele
me respondeu. Acrescentou que a maior parte das pesquisas com primatas
ainda corria sob sigilo, e que nesse caso Fineg e Britz (e também ele,
Purificato) não podiam falar sobre o que sabiam. Sendo assim, quem teria
passado a informação a Williams? Provavelmente, disse Purificato, o
repórter da Associated Press fora ajudado por um “lapso” de alguém que ele
havia entrevistado.
A Base Holloman fica a dez minutos de carro do Museu de História
Espacial do Novo México. Talvez os arquivos da Base pudessem
proporcionar algumas respostas. O curador do museu, George House, me
deu um número de telefone para tentar. O pessoal da instituição me enrolou
até que alguém conseguisse localizar a Pessoa Encarregada de Mentir à
Imprensa. A PEMI disse que a sala onde ficam os arquivos estava trancada e
que somente o curador tinha a chave. E que no momento a Base Holloman
estava sem curador. Evidentemente, a primeira tarefa do novo curador seria
achar um meio de abrir os arquivos. Com isso eu tive certeza: os
documentos a respeito da viagem de um chimpanzé à Lua estavam
trancados ali, juntamente com as fitas de Enos praticando em voo o vício
solitário e fotografias do coronel Stapp num tutu de balé clássico. A
paranoia é um estilo de vida em Alamogordo, lugar onde foi realizado o
primeiro teste da bomba atômica e que fica relativamente perto de Roswell
e da Área 51, o centro ultrassecreto de testes de aeronaves experimentais da
Força Aérea e de assuntos ligados a objetos voadores não identificados.
House me disse que os e-mails com a palavra primata, inclusive alguns
enviados por mim, desapareciam misteriosamente a caminho de seu
computador. Mas ele não acreditava que isso tivesse alguma coisa a ver
com missões secretas de chimpanzés à Lua. Disse que tinha a ver com um
processo judicial aberto pela entidade Pessoas em Prol do Tratamento Ético
de Animais. O processo não é contra a Força Aérea em si, mas contra a
empresa que ela contratou para cuidar — sendo que “cuidar” é um enorme
exagero — da colônia de chimpanzés na década de 1970, quando a Força
Aérea já não precisava deles. Ora, pois.
Saí de novo para o gramado dos mísseis e folheei minhas fotocópias
outra vez. Notei uma coisa que me havia passado despercebida. Um dos
artigos dizia que, antes de ser retirada da cápsula, Glenda “teria de reentrar
através das forças avassaladoras da atmosfera terrestre”. Isso significava
que a missão simulada de Glenda era de ida e volta, e não apenas de ida.
Estou imaginando que Glenda era uma astronauta simulada do Projeto
Gemini. (O Projeto Gemini de voos orbitais, de 1965 a 1966, foi precursor
do Projeto Apollo de missões lunares.) De 1964 ao começo de 1966, os
primatas da “faculdade de chimpanzés” foram chamados a responder
perguntas como “O que acontecerá a um astronauta se seu traje pressurizado
se rasgar quando ele estiver fora da cápsula?”. “Antes disso”, comentou o
repórter da AP que cobriu uma série de simulações de EVA com chimpanzés,
“os cientistas acreditavam que a exposição direta ao vácuo do espaço
resultaria em morte, com o sangue fervendo e a ausência de pressão
atmosférica possivelmente levando à expansão e até ao estouro do corpo.”k
Mais um motivo para a Base Holloman não permitir que a porta de seu
arquivo se abra.
O Projeto Apollo teve, sem dúvida, função política. Um indício disso é a
possibilidade de que uma missão lunar pilotada por um chimpanzé tenha
sido levada a sério, a ponto de se transformar em notícia. O objetivo do
programa? Pura e simplesmente, pôr alguma coisa lá antes que outros o
fizessem. Nas primeiras missões na superfície lunar, as atividades
científicas tiveram importância secundária: Já que você vai estar lá, pegue
umas rochas, certo? O primeiro geólogo só foi pisar na Lua por ocasião da
Apollo 17, seis missões depois.
A Guerra Fria acabou, e as metas da exploração espacial passaram a se
fundamentar, ostensivamente, na ciência. Há quem argumente que módulos
robóticos executam as tarefas científicas com mais eficiência — ou, ao
menos, com mais economia. E que a principal razão para usar seres
humanos na exploração espacial e na ciência planetária consiste em manter
o interesse e o apoio por parte do público. Como diz a Nasa, “Sem
astronautas audazes, o Congresso não libera verbas”.
Outros discordam. “Se a meta for dar resposta a perguntas específicas,
como ‘Qual é a dureza das rochas na superfície de Marte?’, um robô é
perfeito. Se as perguntas forem mais complexas, do tipo ‘Como foi a
história de Marte?’, aí vai ser preciso uma infinidade de robôs”, diz Ralph
Harvey, planetologista que ajudou a planejar expedições de pesquisa na
Lua. “Mas poderiam ser só um ou dois seres humanos. Porque os seres
humanos dispõem desse instrumento prodigioso chamado intuição, com o
qual elaboraram um catálogo de experiências que consultam a qualquer
momento para, ao examinar uma cena durante um minuto — seja em Marte,
seja na cena de um crime —, descobrir o que aconteceu ali.”
Durante os últimos 23 anos, Harvey vem supervisionando a Procura de
Meteoritos na Antártica, de modo que sabe muita coisa sobre como fazer
geologia em condições extremas. Quando conversamos, ele tinha acabado
de voltar do Centro de Voo Espacial Goddard, onde estava ajudando a
planejar uma expedição lunar prevista para alguma data próxima ao ano
2025.l
E por que são necessários quinze anos para planejar um passeio na Lua?
Você vai ver.

a O dístico em inglês, WORLD’S FIRST ASTROCHIMP HAM, melhoraria bastante com uma vírgula
antes de Ham. Do jeito que está, alguém pode imaginar um prato de ham [presunto, em inglês] feito
com a carne de um animal de pesquisa morto. Há antecedentes. Num inacreditável lapso de relações
públicas, conhecido como Projeto Churrasco, porcos que haviam morrido de manhã num teste de
cintos de segurança promovido pela Força Aérea em 1952 foram servidos no jantar.
b Os astronautas tinham como pilotar as cápsulas, usando foguetes direcionais, mas não havia
necessidade para tanto. A cápsula podia ser pilotada por um sistema automático, operado pelo
controle de terra, no “modo chimp”, como disse o astronauta Mike Collins.
c O simulacro de astronauta é uma tradição que remonta ao Projeto Sputnik, quando os soviéticos
realizaram testes com um boneco, a que deram o nome de Ivan Ivanovitch, e também com gravações,
para verificar a qualidade da transmissão de voz. De início, sugeriu-se a gravação da voz de uma
pessoa cantando, de modo a deixar claro para as estações de escuta ocidentais que não se tratava de
um espião. Alguém observou que isso poderia gerar boatos de que um cosmonauta espião
enlouquecera. A gravação foi mudada para um coral, pois mesmo o mais ingênuo funcionário da
contraespionagem ocidental saberia que não era possível acomodar um coro num satélite Korabl-
Sputnik. Como se fosse pouco, houve quem propusesse ainda uma voz lendo uma receita de sopa
russa. O chimpanzé-astronauta americano chamado Enos girou em volta da Terra com uma gravação
em fita que dizia: “Comunicador de cápsula, aqui fala o astro. Estou na janela e a vista é tremenda”, o
que levou o presidente Kennedy a anunciar ao mundo: “O chimpanzé decolou às 10h08. Informou
que tudo está perfeito e funcionando bem”. Sem dúvida, gerando boatos, na KGB, de que o presidente
americano enlouquecera.
d Ham e Enos viajaram em compartimentos pressurizados e por isso não precisaram de trajes e
capacetes pressurizados. Não obstante, tinham sido criados alguns protótipos de trajes espaciais para
chimpanzés, entre os quais o “Traje SPCA” — homologado pela Sociedade para a Prevenção de
Crueldade contra Animais. “Para provar que um traje era seguro para um homem, tencionávamos
testá-lo num chimpanzé, mas para provar que o traje era seguro para um chimpanzé, tínhamos de
testá-lo num homem”, disse num e-mail Joe McMann, coautor de Trajes espaciais americanos. “Um
problema complicado.”
e Uma verdadeira fixação para a menina. Três meses antes, mais ou menos na época do voo de
Enos, Jackie Kennedy alugou um macaco para a festa do primeiro aniversário da filha, na Casa
Branca, um evento amplamente coberto pelas agências de notícias na época. Além de um macaco
vivo, a festa tinha sanduíches de geleia, apitos, triciclos que corriam “de um lado para outro do andar
térreo da Casa Branca” e, acredito, sedativos para Jackie. Caroline sem dúvida desejava muito ter seu
próprio chimpanzé espacial. Era uma expectativa razoável, já que Nikita Kruschev dera à mãe dela
um dos filhotes da cadela espacial Strelka. O cachorrinho foi um presente, mas também uma troça:
Strelka tinha feito um voo orbital mais de um ano antes de Enos. Segundo o livro Animais no espaço,
o pessoal da Casa Branca fez com que o filhote fosse radiografado “em busca de microfones ou de
uma possível arma apocalíptica”.
f Não que Stapp fosse destituído de sentimentos. O coronel escrevia sonetos e poemas de amor
para sua mulher, Lilian, bailarina do American Ballet Theater. Estão reunidos numa coletânea à
venda, por cinco dólares, na lojinha do Museu de História Espacial do Novo México. Stapp não leu
um poema de sua lavra no sepultamento de Ham, embora um trecho de um deles fosse apropriado
para a ocasião: “Se os chimpanzés falassem, logo desejaríamos que não o fizessem”.
g Ham tem dois registros, o primeiro como “Chang” e o segundo como “Ham” (acrônimo de
Holloman Aeromedical). Quando o animal foi escolhido como finalista para o voo, as autoridades
decidiram mudar seu nome, temendo que um macaco chamado Chang ofendesse os chineses. Por
medida de segurança, daí em diante os chimpanzés passaram a receber nomes de membros do pessoal
da Base Holloman ou alcunhas que fizessem referência a sua própria aparência, como no caso de
Feioso, Donzelinha, Malvadão e Orelhudo.
h O pessoal da Base Holloman desistiu desse termo depois de receber muitas cartas de
etimologistas irritados. O sufixo “nauta”, que vem do grego e do latim, significa “navegante”. Assim,
a palavra astronauta refere-se ao “navegante do espaço”. Já chimponauta seria um neologismo de
formação equivocada.
i Segundo Asif Siddiqi, historiador da astronáutica, os russos preferiam treinar cães para as
viagens espaciais porque os símios são demasiado excitáveis, muito propensos a se resfriar e “mais
difíceis de vestir”. E porque Serguei Korolev, mandachuva do programa espacial soviético, tinha
paixão por cães. Os Estados Unidos e a União Soviética construíram um Túmulo do Soldado
Desconhecido, mas só a Rússia tem um Túmulo do Cão Desconhecido (perto de São Petersburgo),
homenageando as contribuições de objetos de pesquisa caninos.
j Não eram jornais de grande nível. Certas manchetes proclamavam absurdos como “Black Label
foi eleita cerveja de qualidade” e “Ciência cura hemorroidas!” — anúncios compostos ardilosamente
na tipologia do jornal, de forma a parecer notícias. Isso para não falar de uma matéria sob um título
capcioso que levava o leitor a crer que Ham fora sequestrado. Mas, segundo a matéria, dois homens
haviam arrombado a porta dos fundos de um supermercado e fugido com mais de uma dúzia de latas
de presunto.
k Ao contrário do que em geral se crê, o sangue de um astronauta não ferve se o traje espacial se
rasgar ou se houver uma despressurização da nave. E ainda que ele inche, não estourará. O corpo
funciona como uma espécie de traje pressurizado para o sangue, mantendo em estado líquido os
gases dissolvidos. Só os fluidos corporais expostos diretamente ao vácuo é que realmente fervem.
(Como aconteceu, em 1965, a um voluntário que, num teste, vestia um traje espacial defeituoso numa
câmara de altitude. A última coisa de que se lembrava, antes de perder os sentidos, era a sensação da
saliva borbulhando na língua.) Além disso, hoje em dia os trajes espaciais são projetados para
compensar rasgões com uma rajada de ar a uma pressão muito maior. Atenção: numa situação de
despressurização de nave e desde que disponha de um suprimento de oxigênio, um astronauta tem
dois minutos para descobrir qual é o problema e repará-lo. Se esse tempo for excedido, ele estará em
sérias dificuldades. Sabe-se disso devido a experiências em câmaras de vácuo cujos detalhes, se você
os conhecesse, fariam seu sangue ferver.
l Ou nunca, se o orçamento da Nasa para 2010 for aprovado sem emendas.
9. POSTO MAIS PRÓXIMO:

320 MIL QUILÔMETROS

É mais fácil planejar expedições reais à


Lua do que expedições simuladas

Houve um tempo em que os astronautas exploravam a Lua em carrinhos


elétricos abertos, de dois lugares. Eram parecidos com os que se veem num
campo de golfe, ou numa daquelas enormes lanchonetes de Miami em que
clientes idosos apreciam uma carona entre a loja e o estacionamento. Os
carrinhos conferiam à exploração lunar, na década de 1970, um ar relaxado,
típico das comunidades de aposentados. Agora isso acabou. Os novos
veículos exploradores da Nasa parecem trailers futuristas. A cabine é
pressurizada, o que permite que os astronautas se livrem de seus trajes
brancos de EVA, volumosos e incômodos, além do capacete bulboso. A Nasa
se refere a uma área pressurizada como “um ambiente manga de camisa”, o
que me faz imaginar os astronautas com camisas polo e sem calças. Se a
Nasa algum dia instalar um posto avançado na Lua, os astronautas farão
expedições de extensão e complexidade sem precedentes.a Equipes de
exploradores sairão em dois veículos que se encontrarão todos os dias,
voltando finalmente à base depois de duas semanas de trabalho. Esses
novos veículos acomodam duas pessoas e estão equipados com um
aquecedor de refeições, um sanitário com “cortina de privacidade” e dois
porta-copos.
Antes que os primeiros protótipos dos veículos exploradores
pressurizados sejam testados em ambientes análogos — áreas terrestres
semelhantes ao solo da Lua —, a Nasa já está realizando experiências
aproximadas. São “excertos” (dois dias) das expedições de duas semanas,
utilizando veículos com as mesmas dimensões. Essas expedições simuladas
ajudam a Nasa a reunir um conhecimento inicial a respeito de “desempenho
e produtividade” — o trabalho que é realizado, o tempo necessário para
isso, o que funciona e o que não dá certo. Atualmente, o simulador do
Pequeno Veículo Explorador Pressurizadob é um Humvee laranja mandado
para a Estação de Pesquisa do Projeto Haughton-Marte (HMP, na sigla em
inglês), na ilha de Devon, no Alto Ártico canadense. A ilha de Devon é
bastante semelhante a certas áreas de Marte, e ali já se realizaram também
simulações de expedições marcianas.
Em síntese, a ilha de Devon é o lugar mais parecido com a Lua a que se
pode chegar sem um foguete. A cratera Haughton, com mais de dezenove
quilômetros de diâmetro, é quase uma cópia da cratera Shackleton, na Lua,
em cuja borda a Nasa, desde 2004, vinha planejando montar uma base. As
crateras se formam devido a choques de meteoroides, que voam pelo espaço
a velocidades da ordem de 160 mil quilômetros por hora.c Sem o atrito da
atmosfera para desacelerá-los e incinerá-los, como acontece sobre a Terra,
até meteoroides minúsculos abrem buracos na superfície da Lua. O impacto
de um seixo é capaz de abrir uma cratera de um metro ou mais de diâmetro.
Os planetologistas nutrem muita simpatia pelos meteoritos, por serem
escavadores naturais, dando acesso a materiais geológicos de eras passadas
cuja obtenção em geral é cara e difícil.
Tal como a Lua ou Marte, a ilha de Devon é um lugar muito
inconveniente. Fica a milhares de quilômetros das coisas que são
necessárias numa expedição geológica. Como não é habitada, não há
eletricidade, antena de celular, porto, aeroporto ou suprimentos de qualquer
natureza. Isso faz parte do jogo. Fazer ciência ali é um exercício de
planejamento extremo. Um simulacro da Lua ou de Marte, e não o astro
verdadeiro, é o lugar ideal para alguém perceber, por exemplo, que talvez
seja melhor um grupo de exploração ser formado por três pessoas e não
duas. Que fazer um veículo explorador atravessar um campo de pedras leva
o dobro do tempo antes previsto pelos planejadores da missão, ou que será
necessário o dobro de oxigênio para escalar a escarpa ao redor de uma
cratera. Como disse alguém ontem, na reunião em que a expedição foi
planejada, “Este é o lugar para se cometer erros”.

Tal como a Lua, a ilha de Devon só fica interessante quando se chega


perto dela. Pela janela de um Twin Otter em baixa altitude, terrenos que em
imagens de satélite pareciam constituídos de terra — e nada mais —
mostram-se riscados por faixas sinuosas criadas pelo escoamento de água
— faixas avermelhadas, cor de canela, cinzentas, douradas, bege. Águas de
degelo polar entalharam, esfregaram e coloriram o solo de tal maneira que
se tem a impressão de estar sobrevoando uma enorme extensão de papel
marmorizado.
Ao desembarcar ali, logo compreendo por que os planetologistas fazem
questão absoluta de visitar esse lugar. Há outros locais em que os meteoritos
cavaram crateras do tamanho da Haughton, mas a maior parte deles está
coberta de florestas ou shopping centers. A paisagem do Alto Ártico é a
mais elementar possível: terra e céu. Do centro da cratera Haughton irradia-
se um “manto de ejeção” do mesmo tipo encontrado em torno das crateras
lunares. Quando um meteoroide colide com outro corpo celeste, a energia
do impacto esmaga e derrete ao mesmo tempo a rocha que está sob ele. O
mingau de rocha resultante, semelhante ao magma, esguicha, cai no solo e
resfria, formando uma espécie de pé de moleque chamado breccia de
impacto. E a seguir espera 39 milhões de anos até que um sujeito de botas e
capacete espacial apareça por ali e o pegue.
Hoje há dois sujeitos de capacete. No assento do motorista do simulador
do Pequeno Veículo Explorador Pressurizado, está Pascal Lee,
planetologista e diretor do Projeto Haughton-Marte. Em 1997, com apoio da
Nasa, do Instituto de Pesquisa de Inteligência Extraterrestre (SETI), do
Instituto Marte e de outros parceiros, Lee criou a Estação de Pesquisa do
PHM na Haughton. No banco do passageiro está Andrew Abercromby, do
Projeto de Sistemas e Desempenho de Fisiologia de Atividades
Extraveiculares, da Nasa. Abercromby é um rapaz vistoso, louro e sardento,
que só escapou de ser a encarnação do perfeito americano por causa de um
curioso círculo de cabelo branco, do tamanho de um dólar de prata, e do
sotaque escocês. Espremidos entre Lee e Abercromby vão Jonathan Nelson,
estagiário do PHM, e Ping Pong, o inseparável amigo canino de Lee. Três
veículos com tração nas quatro rodas acompanham o Humvee, levando o
mecânico Jesse Weaver, o engenheiro de trajes espaciais Tom Chase e eu.
Formamos, os seis, o Grupo Alfa do Pequeno Veículo Explorador
Pressurizado, ou, como o “controle terrestre” nos chama, o PVEP-Alfa. Os
homens e mulheres do PVEP-Bravo fazem uma rota diferente, e irão se
encontrar conosco no fim do dia.
Avançamos devagar, respeitando a média planejada de dez quilômetros
por hora do veículo real. As colinas baixas e cobertas de cascalho são aqui
de um cinzento mais uniforme do que em outras partes da ilha. O cenário é
muito parecido com o do vale Taurus-Littrow, na Lua, que os astronautas da
Apollo 17 exploraram com o chamado jipe lunar em 1972. Dirigindo o
veículo quatro por quatro por aquele terreno ermo, com um capacete
bulboso e dotado de visor, fica fácil, embora embaraçoso, fazer de conta
que estou na Lua. Agora entendo melhor a evidente emoção de Lee com a
excursão — “Você consegue acreditar que eu sou pago para fazer isso?”. O
lugar transformou todos nós em geeks.
Menos o nosso mecânico. Weaver nunca olha em torno para ver a
paisagem. Quanto a mim, não paro de fazer isso. Ontem, por um triz não
bati no veículo que ia à minha frente. A paisagem constituía uma distração
perigosa durante as missões lunares. Por isso, seus organizadores
encaixaram momentos de pasmo nas programações detalhadíssimas.
“Temos direito a duas olhadas rápidas pela janela”, Gene Cernan lembrou a
Harrison Schmitt ao se prepararem para descer à superfície lunar na missão
Apollo 17.
Lee detém o Humvee e consulta o GPS. Chegamos a nosso primeiro
“ponto de referência”. É uma parada geológica: vestir trajes espaciais,
escalar uma ribanceira, coletar amostras. Lee e Abercromby estão de pé ao
lado de seu veículo, mexendo nos fones de ouvido, que lhes permitem falar
um com o outro e com o “controle de terra” na base do HMP. Junto da
traseira do Humvee, Chase dispôs os componentes dos simulacros de trajes
espaciais sobre duas esteiras. Se o Humvee fosse o veículo explorador real,
os trajes estariam pendurados em dois nichos abertos na traseira. Os
astronautas entrariam nele de dentro do veículo, contorcendo o tronco para
retirar o traje do nicho e sair dali. E inverteriam o processo ao voltar,
deixando os trajes pendurados, como exoesqueletos. Com isso, os trajes não
atravancam o atulhado interior do veículo, nem a poeira entra nele.
A poeira é o grande inimigo do astronauta na Lua. Sem água ou vento
que as desgastem, as duras partículas das rochas lunares permanecem
cortantes. Arranharam capacetes e lentes de máquinas fotográficas durante
o Projeto Apollo, destruíram rolamentos, entupiram juntas de
equipamentos. Limpar o pó na Lua é o mesmo que enxugar gelo na Terra.
Ao contrário do que acontece em nosso planeta, cujo campo magnético
repele as partículas carregadas do vento solar, na Lua essas partículas
bombardeiam a superfície e transmitem uma carga eletrostática. A poeira
lunar gruda como um pé de meia ao sair, eletrizado, de uma secadora. Os
astronautas que desceram na Lua com seus reluzentes trajes brancos
voltaram ao módulo de descida horas depois parecendo mineiros. Os trajes
espaciais e as ceroulas dos tripulantes da Apollo 12 ficaram tão imundos
que, a certa altura, disse-me o astronauta Jim Lovell, os tripulantes “tiraram
toda a roupa de baixo e ficaram nus durante metade do trajeto de volta”.
Outra razão para manter a poeira fora do veículo: com uma gravidade tão
fraca, as partículas inaladas pousam mais devagar e, por isso, penetram
fundo nos pulmões, atingindo os tecidos mais vulneráveis, localizados
longe da boca e do nariz. A Nasa vem financiando um volume tão grande
de pesquisas sobre poeira e atenuação dos problemas causados por ela que
já existe toda uma indústria de simulacros de poeira lunar.d (As rochas e
seixos trazidos da Lua são classificados como “tesouros nacionais” e não
podem ser vendidos, mas tal proibição não se aplica à poeira lunar, real ou
simulada, o que explica por que um distintivo da missão Apollo 15, coberto
de poeira, foi vendido por 300 mil dólares num leilão da Christie’s em
1999.)
Lee pensou em abrir buracos na traseira do Humvee e tentar improvisar
dois nichos de trajes espaciais para as simulações desta semana. Weaver
ficou possesso. “Eu disse a ele, ‘Você não vai cortar o Humvee’.” O
mecânico do PHM é um estudante de ensino médio do Tennessee que mal
começou a se barbear, mas tem um sangue-frio impressionante. Lee, que
conhece a mãe de Weaver, o viu reconstruindo o motor de uma motocicleta
velha e lhe ofereceu o melhor bico de férias para estudantes da história.
Lee se ajoelha numa das esteiras enquanto Chase se prepara para instalar
o sistema portátil de suporte de vida (PLSS, na sigla em inglês — aquela
volumosa mochila branca de astronauta) nas costas de Lee. Está com os
braços estendidos, como se suplicasse ou cantasse um número musical de
um show da Broadway. A empresa em que Chase trabalha, a Hamilton
Sundstrand, fabrica tanto trajes espaciais de verdade como seus simulacros,
e tanto uns quanto os outros exigem ajudantes para vestir. (Um dos aspectos
menos heroicos de uma caminhada espacial: alguém terá de ajudar você a
levantar a calça.)e Enquanto Chase e Lee se esfalfam com o simulacro de
PLSS, Weaver tira do bolso um maço de Camels. Para ele, uma EVA é pausa
no trabalho. Ele está inclinado a fazer carreira na aviação, mas como piloto
de aviões pequenos em áreas remotas e de difícil acesso, e não como
astronauta.
Como no Canadá existe oxigênio, talvez o leitor esteja imaginando o que
há dentro de um simulacro de mochila de suporte de vida. O elemento
principal é um ventilador, para impedir que o visor do capacete fique
embaçado. A função essencial do simulacro é servir de sobrecarga para os
usuários e restringir seus movimentos e seu campo de visão, do mesmo
modo que uma mochila real faria. Depois a Nasa lhe dá algumas
ferramentas e tarefas e vê que tipos de problemas surgem.
Como no Projeto Apollo, as tarefas estão anotadas num bloco preso com
velcro no punho do traje espacial. O espaço é um mundo de listas: listas de
coisas no punho, listas de coisas na superfície lunar, listas de regras de
missão e de “tarefas de avanço”. A manhã em órbita começa com um fax ou
e-mail com a lista de tarefas do dia, atualizada com mudanças de última
hora. Qualquer desvio da lista e do cronograma tem de ser informado ao
Controle de Missão. Com exceção de uma ou duas horas, designadas “pré-
sono”, todas as demais são planejadas.
Abercromby está folheando a lista de seu punho. Ele a plastificou,
porque chove muito na ilha de Devon e ele é fanático por planejamento.
Não sei muita coisa sobre Abercromby ou, aliás, sobre a Nasa, mas, pelo
que já presenciei, até posso imaginá-lo dirigindo a instituição um dia. Ele
leva muito a sério essas simulações. Seu Plano de Testes de Campo, com 66
páginas, inclui cronogramas, objetivos, uma análise de riscos de quatro
páginas, uma Árvore de Resolução de Situações Imprevistas para cada
expedição simulada, prioridades de ciência, alvos de oportunidade, tarefas
de avanço e regras de missão. O documento foi distribuído a cada
participante, mas é provável que nem todos o tenham lido.
Abercromby veste um dos macacões Tyvek, brancos, que estão fazendo
as vezes de trajes espaciais. Ping Pong morde as luvas de Lee e saltita ao
redor dos pés dos homens. “Ping Pong quer fazer uma EVA?” Lee usa a voz
esganiçada com que fala a Ping Pong. Abercromby o interrompe. “Devemos
repassar as tarefas de avanço e os alvos de oportunidade.”
Weaver olha para eles através da fumaça. “Vocês estão parecendo uma
turma de pintores.”
Depois de Abercromby e Lee terem posto os capacetes na cabeça e os
simuladores de suporte de vida nas costas, Chase os filma durante uns
poucos momentos. Abercromby parece pouco à vontade. Lee não tem
problemas com a roupa. Mesmo um traje espacial de faz de conta — é o que
me disseram, mas reluto em acreditar — é um ímã para moças. Lee, com 45
anos, é solteiro e um conquistador de corações na comunidade espacial.
Com um martelo de geólogo na mão, Lee começa a subir a encosta de
uma colina. Abercromby o segue com uma bolsa de amostras. As tarefas
das equipes obedecem ao modelo das expedições lunares do Projeto Apollo:
escolher e coletar amostras de rochas e solo, fotografar aspectos do relevo e
fazer leituras do gravímetro e de radiação.
Só um astronauta do Projeto Apollo, Harrison Schmitt, era geólogo. Os
demais eram pilotos que tinham recebido um curso intensivo de geologia
lunar para aprender a identificar o que viam e a ler a paisagem. O
treinamento incluiu algum tempo num laboratório de geologia da Nasa com
basaltos e breccias terrestres, simulacros de rochas lunares de isopor
pintado e, depois da Apollo 11, amostras lunares reais. Expedições de
campo os levavam à Área de Testes de Nevada, 105 quilômetros a noroeste
de Las Vegas, onde a Comissão de Energia Atômica testou bombas
nucleares na década de 1950, deixando crateras por todo o deserto. Como as
rochas ainda estavam radioativas, os astronautas não podiam pegá-las e
examiná-las. Ninguém parecia se importar, pois estavam, como recorda Jim
Irwin no comentário dos astronautas, no Diário da Superfície Lunar da
Apollo 15, “ansiosos para voltar a Las Vegas”.
Um dos focos da expedição de hoje é o tempo. Com que precisão os
veículos exploradores podem cumprir os tempos previstos? Com que
frequência devem manter contato com o controle de terra e atualizar o plano
durante o teste, se um grupo se atrasar na lista de tarefas? Pediu-se às
equipes que registrassem a hora do começo e das interrupções de cada fase
da expedição, para que se pudesse verificar se as tarefas estavam exigindo
mais tempo do que o previsto e, em caso positivo, o que as estava
retardando. Em algum momento, o estagiário Jonathan Nelson submeterá
um relatório de “mensuração de produtividade” que fará algum
administrador da Nasa se sentir mais calmo em relação à verba de 200 mil
dólares que autorizou para projetos análogos no Ártico neste verão. Por
enquanto, isso significa muitas conversas como a seguinte:
NELSON: O que você quer, mais tempo para o traje?
LEE: Não. Basicamente, quando começamos a vestir o traje...
NELSON: Então você quer mais tempo para o traje.
LEE: É esse o tempo para o traje?
NELSON: Há uma diferença entre preparação e traje.
ABERCROMBY: Então, qual foi nosso tempo de botas no chão?
O tempo é uma questão crítica para um astronauta que se movimenta
numa superfície extraterrestre. Sem saber quanto tempo ele leva para
percorrer uma dada distância em certo tipo de terreno, seja a pé ou num
veículo, é difícil saber quanto oxigênio ou bateria serão necessários. Os
astronautas do Projeto Apollo tinham de respeitar as “restrições de retorno”.
Para definir essas restrições, punha-se — e ainda se põe — um astronauta,
com o simulador de traje espacial, mais ou menos a cinco quilômetros da
base, em terreno análogo ao da superfície lunar, marcava-se a hora de
partida e ele começava a voltar para a base. Os astronautas da Apollo só
tinham autorização para se afastar do Módulo Lunar até um ponto do qual
pudessem voltar a pé sem que lhes faltasse oxigênio, no caso de um defeito
do veículo explorador. (Por isso também os dois veículos: se um apresentar
defeito, o outro poderá ir buscar a tripulação.)
Se as restrições de retorno eram fonte de preocupação para os
planejadores das missões, eram motivo de frustração para os astronautas.
Na falta de árvores ou construções que lhes dessem um senso de escala, era
difícil estimar distâncias com precisão. Por motivos de segurança, as
estimativas eram conservadoras, às vezes demasiado prudentes. Retornando
de um passeio lunar por ocasião da Apollo 15, o astronauta Dave Scott viu
uma rocha preta pouco comum. Sabia que se pedisse autorização do
Controle de Missão para ir pegá-la, teria ordem de continuar a dirigir, pois a
EVA já estava atrasada em relação ao cronograma. Já que o Controle de
Missão ouvia as conversas deles, Scott inventou um defeito no cinto de
segurança. A rocha ficaria conhecida como “o basalto do cinto de
segurança”.
SCOTT: Ei... Rapaz, tem um pedaço de basalto vesicular bem ali. Puxa!
Ei, e se [...] Vamos parar só um segundo, nós temos de [...]
IRWIN: Certo, estamos parando.
SCOTT: Me deixe ajeitar o cinto de segurança. [...] Ele não para de se
soltar.
IRWIN: [percebendo logo o ardil] Por que você não me dá seu cinto?
SCOTT: Só um minuto [...] Se eu conseguir achar esse cinto. [pausa]
Pronto. [pausa] Por favor, segure aqui um segundo.
IRWIN: Certo, já peguei. [pausa longa]
A tarde já vai caindo. Chegamos ao ponto de encontro do fim do dia. Lee
e Abercromby vão pernoitar aqui, em catres precários, na parte de trás do
Humvee, enquanto o resto da equipe vai voltar para o acampamento e
encontrá-los novamente na manhã seguinte. Como não se vê o Grupo Bravo
em parte alguma, andamos a esmo e fotografamos uns aos outros à beira de
uma ravina. Mais tarde, ao olhar essas fotos, terei a impressão de que, na
verdade, visitei uma mina a céu aberto. É difícil dizer por que acho a ilha de
Devon bonita. Mas há momentos em que a gente está caminhando, de
cabeça baixa por causa do vento, e os olhos recaem num montinho de
musgo com florzinhas vermelhas, como grânulos de chocolate num doce, e
a visão impacta. Talvez seja por causa do heroísmo improvável de uma
coisa tão delicada crescer e sobreviver num lugar inóspito e duro. Talvez
seja apenas pela surpresa da cor. Em dado momento, ontem, enquanto eu
caminhava por outro cânion, cinzento e bege, uma mamangaba passou por
mim. Seu amarelo parecia uma alucinação, alguma coisa colorida numa
fotografia em preto e branco. “Olá, companheira”, saudou alguém. “Onde
foi que você errou a curva?”
Começa a chover e retornamos para o Humvee. Lee e Abercromby estão
animadíssimos, após concluir o primeiro dia da primeira expedição da Nasa
com um veículo pressurizado e parecido com o explorador real. “É
sensacional”, diz Abercromby. “Não deve haver muitos lugares no mundo
onde o terreno e a escala se aproximem tanto das condições...”
“Terra, aqui é o Grupo Bravo.” É o rádio. Brian Glass, geofísico da Nasa
e líder da expedição do Grupo Bravo do Pequeno Veículo Explorador
Pressurizado, lê suas coordenadas de GPS e uma atualização da previsão do
tempo. Ler não é o verbo certo. O que ele realmente faz é alguma coisa
entre gritar e cuspir. Chove forte onde eles estão. A visibilidade caiu para
noventa metros. O Grupo Bravo não está num Humvee. O simulador do
veículo explorador deles é uma caminhonete Kawasaki Mule, um quatro
por quatro maior, de caçamba curta. As velas da Mule se molharam quando
eles tiveram de atravessar riachos que pareciam mais rasos nas fotos de
satélites. Uma das velas sobressalentes não servia para a Mule. Em certo
momento, ficaram quase duas horas atrasados.
Weaver cobre a cabeça com o capuz. “Parece que o pessoal lá não está se
divertindo nem um pouco.”

A manhã no Projeto Haughton-Marte começa com o som dos zíperes das


barracas. As acomodações para dormir são trinta barracas de náilon,
dispostas numa encosta, em total discordância com o plano de cores da ilha.
Todos se levantam mais ou menos ao mesmo tempo, porque toda manhã
começa com uma reunião. A de hoje está sendo realizada na barraca do
escritório. Seguindo o padrão de reuniões da Nasa, um sistema telefônico da
Nasa Agência foi instalado na ilha de Devon. O pessoal do Centro Ames, na
Califórnia, pode discar um ramal de quatro algarismos e, numa ligação
interna da organização, fazer contato com Lee, que está a algumas centenas
de quilômetros do polo Norte magnético. (O PHM é uma dessas instalações,
estranhas mas comuns na era da internet, com cobertura de VoIP, mas sem
descarga nos banheiros.)f
Uma webcam do PHM está montada sobre um tripé num canto, permitindo
que pessoas em todo o mundo vejam Andrew Abercromby tentando manter
a ordem e a civilidade na Revisão de Lições Aprendidas, que acontece
depois da expedição. Uma das metas secundárias de pesquisa do PHM é
estudar a “dinâmica humana resultante de contato prolongado em ambientes
apertados”. Espero não ser indicada para fazer as anotações de hoje.
“Ninguém nos disse que estávamos atrasados depois da primeira EVA”,
queixa-se Glass. “De acordo com o cronograma impresso, estávamos dez
minutos adiantados.” Alguma coisa nas entradas do cabelo ruivo de Glass e
na forma do bigode e da barba me faziam pensar em Sir Walter Raleigh. É
fácil imaginá-lo com um colar elisabetano sobre a roupa de lã sintética.
Glass diz que o controle de terra os fez esperar quase duas horas enquanto
mapeavam uma rota mais rápida. “Eu...” Ele respira fundo. “Eu tive a
impressão de que estávamos sendo levados de um lugar para outro para que
o Grupo Alfa tivesse tempo de chegar de volta na hora do jantar.”
Lee insiste no fato de que o Grupo Alfa não soubera que nada daquilo
estava acontecendo.
“Bem, isso mesmo”, diz Glass, “mas porque...” Vira-se para
Abercromby. “Pascal estava com o fone Iridium na função Ignorar.”
“Estava em Vibrar!”
“Podemos tentar passar para as lições aprendidas?”
Glass está falando agora das ligações “verdadeiramente incessantes” do
controle de terra para verificar o que eles estavam fazendo. “Todas as vezes,
eu tinha de parar, procurar um lugar sem ruído de vento ou de motores, tirar
o capacete [...]”
Lição aprendida: os exploradores precisam de uma certa autonomia. Os
cronogramas rigidamente previstos, típicos de atividades extraveiculares
breves em superfícies planetárias, terão de ser afrouxados se a Nasa adotar
expedições de duas semanas em viagens a Marte. A autonomia é o assunto
do momento entre os psicólogos espaciais. Os astronautas queixam-se com
frequência aos médicos militares por não poderem fazer eles mesmos seus
cronogramas e tomar decisões sobre seu trabalho. Tal como Glass, alguns
consideram a gestão do Controle de Missão frustrante e humilhante. Nick
Kanas, psiquiatra da Universidade da Califórnia em San Francisco, estudou
os efeitos psicológicos da alta e da baixa autonomia em três simulações
espaciais diferentes. Os homens e mulheres que ele estudou de modo geral
se mostravam mais felizes e criativos no cenário de alta autonomia. A
exceção foi o pessoal do Controle de Missão, que “relatou certa dubiedade
com relação a seu papel”.
A reunião não mostra sinais de se encaminhar para o fim. Weaver está
quase dormindo. O guia de campo do PHM, conhecido por seu inabalável
princípio de não intervenção, está coçando as costas na porta, como um urso
na muda. Glass ainda não acabou: “[...] para o almoço só tínhamos
barrinhas de cereal. O Grupo Alfa tinha levado muitas coisas que...”.
“Essa não”, diz Lee. “Nós tínhamos dois sanduíches.”
“Lição aprendida: pedir mais pão”, diz Abercromby, tranquilo.
Mike, o cozinheiro, intervém. “Roubaram pão em Resolute.” (Os voos
para a ilha de Devon partem da vila inuíte de Resolute.) Mike teve três dias
para, sozinho, planejar as refeições e comprar provisões para trinta e poucas
pessoas, que fariam um trabalho de campo de seis semanas. O escritório de
planejamento de expedições da Nasa deveria, com certeza, contratar Mike.
Um dos problemas do planejamento de expedições hoje, em comparação
com o que acontecia há quarenta anos, é que a Nasa cresceu muito. Um
número elevado de cozinheiros faz com que levem um tempão para chegar
a um acordo sobre a receita de um caldo. Consta que Wernher von Braun
teria comentado, em relação ao pouso da Apollo 11 na Lua: “Se nosso grupo
fosse maior, teríamos fracassado”.
No comentário dos astronautas para o Diário da Superfície Lunar da
Apollo 17, Gene Cernan lamenta que atualmente a Nasa se dedique a
preparativos intermináveis e perca tempo levantando as mais implausíveis
hipóteses. “Não sei se nós [...] temos a mentalidade... não quero dizer
‘coragem’... de correr o tipo de risco que corríamos quando [fomos à Lua]
pela primeira vez. [...] E este é um comentário triste.” Afinal de contas, não
importa o quanto se planeje ou o cuidado com que se façam as coisas,
sempre haverá problemas. Uma observação do gerente de segurança da
oitava missão Apollo ficou conhecida: “A Apollo 8 tem nada menos que 5
600 000 componentes. [...] Mesmo que todos funcionassem com 99,9% de
confiabilidade, poderíamos esperar 5600 defeitos”.
Por outro lado, como eles dizem, “falha ao planejar é planejar uma
falha”.
Há alguns anos, entrevistei o astronauta Chris Hadfield para um artigo
sobre a maneira como as tripulações treinam para uma caminhada espacial
(EVA em que os astronautas flutuam do lado de fora da nave espacial, em
geral para fazer reparos na nave ou instalar novos equipamentos).
Perguntei-lhe se achava que a Nasa exagerava em seus prolongados ensaios
e no planejamento. Hadfield passava 250 horas no Laboratório de Flutuação
Neutra (NBL) para realizar uma EVA de seis horas. (O NBL é um gigantesco
tanque coberto que contém réplicas de partes da ISS. Flutuar num traje
espacial na água é uma simulação sofrível de caminhada espacial.) “É, há
muitas opções”, ele respondeu. “Poderíamos não fazer nada e esperar que
tudo saísse bem, ou poderíamos gastar bilhões de dólares em cada voo e
tentar resolver tudo nos mínimos detalhes.” A Nasa, disse ele, busca algum
ponto intermediário entre essas duas opções. “O que importa é a
preparação”, acrescentou. “Essa é a nossa profissão. Não ganhamos a vida
voando no espaço. Fazemos reuniões, planejamos, treinamos, nos
preparamos. Eu sou astronauta há seis anos, e estive no espaço oito dias.”
Hadfield me disse que o famoso incidente da Apollo 13 — a explosão a
caminho da Lua e a solução que Jim Lovell e seus companheiros
encontraram — na verdade tinha sido simulado pela Nasa ao menos uma
vez. Ao que parece, tudo o que Lovell fez no espaço tinha sido simulado em
terra. Inclusive não tomar banho durante duas semanas.

a Em fevereiro de 2010, ao ser apresentado o primeiro orçamento da Nasa do governo Obama,


previa-se que a base lunar seria construída em algum momento da década de 2020. Esse programa
(Constellation) foi cortado, e agora iremos a um asteroide perto da Terra ou a Marte. No entanto, o
Congresso ainda tem de aprovar o orçamento, de modo que é difícil saber, quando escrevo, onde
nossos carrinhos irão rodar.
b Seis meses depois de nossa expedição, alegando questões de relações públicas, a Nasa mudou o
nome Pequeno Veículo Explorador Pressurizado para Veículo Elétrico Lunar. Seu nome inicial era
Flexible Roving Expedition Device [Veículo Flexível de Expedição Exploratória], ou FRED, mas a
direção da Nasa o vetou, pela mesma razão pela qual eliminou a palavra “Excursão” de Módulo de
Excursão Lunar Apollo — passava uma ideia de frivolidade. Há pouco tempo, um protótipo de
hábitat lunar móvel, um pouco maior, o ATHLETE — All-Terrain Hex-Legged Extra-Terrestrial
Explorer [Explorador Extraterrestre de Seis Pernas para Qualquer Terreno] —, passou ileso pela mesa
do censor de frivolidades da Nasa. Seja ele quem for, é uma pessoa rigorosa. Passei os olhos por toda
a lista de acrônimos da Nasa, com 53 páginas, e não achei nada que fosse engraçado.
c Um meteoroide é um fragmento de rocha, em geral de origem planetária, que circula pelo
sistema solar. Se corresponder a um grande naco de rocha, chama-se asteroide. E se alguma parte de
um meteoroide chega intacta à Terra, em vez de se incendiar ao precipitar-se na atmosfera, ela passa a
se chamar meteorito. O caminho visível de um meteoroide na atmosfera é um meteoro. Um
astronauta atingido por um meteoroide é um defunto. Um meteoroide do tamanho de uma semente de
tomate fura um traje espacial.
d A Nasa compra esse simulacro de poeira a toneladas, mas quem quiser pode comprá-lo a quilo
(por 28 dólares). Basta entrar no site de produtos educacionais da eNasco, mas não aconselho isso
para quem tem estômago fraco. “Poupe tempo no laboratório!”, recomenda o material promocional
sobre gatos esfolados. A seção de espécimes para dissecção da eNasco oferece dez tipos diferentes de
gatos esfolados.
e E você terá de usar um fraldão. Hoje em dia ele se chama veste de máxima absorção (MAG). O
MAG substituiu o DACT (calção de contenção absorvente descartável), que tinha capacidade
insuficiente. Durante o Projeto Apollo, os astronautas usavam um dispositivo de contenção fecal
(FCD) e um dispositivo de contenção de urina (UDC) ligado a uma camisinha. Deixemos que o
astronauta Charlie Duke, que fez comentários para o Diário de Superfície Lunar da Apollo 16,
explique o sistema: “[O FCD] era como uma cinta de mulher, no qual se entrava, e era cortado na
frente, para que o pênis ficasse para fora e o astronauta pudesse usar o UDC [...] Creio que havia
também um suporte atlético, com uma abertura para o pênis, e então a pessoa enrolava o UDC e o
abotoava ou prendia no suporte”.
f Nesse caso, para manter a ilha mais semelhante a Marte ou à Lua. (Os dejetos biológicos
estimulam o crescimento de plantas.) Catorze tambores de 190 litros de urina são retirados da ilha a
cada temporada. Os homens urinam diretamente nos tambores por meio de um funil. As mulheres
primeiro se agacham sobre um jarro — um daqueles jarros de plástico transparente usados para servir
chope em bares de universidades. Despejá-lo lembrava um embalo de sábado à noite condensado
num único gesto. A deposição de dejetos sólidos acontece numa tábua de privada montada sobre um
saco plástico que depois você tem de levar para o depósito de lixo. Ou seja, você é seu próprio
cachorro.
10. HOUSTON, TEMOS UM FUNGO

Higiene no espaço e os homens

que pararam de tomar banho

em nome da ciência

Jim Lovell ficou mais conhecido como o comandante da Apollo 13, o


astronauta que teve um problema. Como sabem todos os que viram o filme
estrelado por Tom Hanks, um tanque de oxigênio explodiu quando a nave
estava a caminho da Lua, provocando falta de energia elétrica no Módulo de
Comando, o que obrigou Lovell e os outros dois tripulantes a se
entrincheirar no Módulo Lunar durante quatro dias, com pouco oxigênio,
pouca água e pouco aquecimento. Durante quarenta anos, as pessoas que se
aproximavam de Lovell lhe diziam: “Deus do céu, que suplício!”. Eu
também lhe disse a mesma coisa, mas não me referia à Apollo 13. Falava da
Gemini VII: dois homens, duas semanas, sem banho, a mesma roupa de
baixo. Metidos num traje pressurizado, dentro de uma cápsula tão apertada
que Lovell sequer podia esticar as pernas.
A Gemini VII, lançada em 4 de dezembro de 1965, foi um ensaio geral
médico para o Projeto Apollo. Uma viagem de ida e volta à Lua leva duas
semanas, e nunca astronauta algum tinha passado tanto tempo em condições
de gravidade zero. (O recorde da Nasa naquele tempo era de oito dias.) Se
uma emergência médica ocorresse no décimo terceiro dia, por exemplo, os
médicos do centro de controle preferiam que os astronautas estivessem a
320 quilômetros da Terra, e não a 320 mil.
Havia o temor de que usar um traje pressurizado durante duas semanas,
num espaço do tamanho do banco dianteiro de um fusquinha, fosse
insuportável. Sempre cautelosa, a Nasa propôs a Lovell e a seu
companheiro, Frank Borman, que se submetessem a uma simulação em
tempo real da estada no interior da Gemini VII numa maquete da cápsula —
um ensaio do ensaio. “Catorze dias sentados num assento ejetável em
Terra?”, diz Borman em seu depoimento à Nasa. “Conseguimos torpedear
esse absurdo na mesma hora.”a
Na verdade, esse absurdo não foi necessário porque um absurdo
semelhante já havia ocorrido na Base Wright-Patterson da Força Aérea, em
Ohio. De janeiro de 1964 a novembro de 1965, uma série de nove
experimentos na área de “higiene pessoal mínima”— que incluía a
simulação de uma permanência de duas semanas na Gemini VII — foi
efetuada num simulador da cápsula espacial, feito de alumínio, no Edifício
824 dos Laboratórios de Pesquisa Médica Aeroespacial (AMRL, na sigla em
inglês). E aquela gente não brincava em serviço. Por “higiene mínima”
entendia-se “não tomar banho ou passar esponja no corpo, não fazer a
barba, não cuidar das unhas e dos cabelos, não trocar a roupa do corpo e da
cama, fazer uma higiene bucal precária e usar o menor número possível de
lenços de papel” durante duas ou três semanas, a depender do experimento.
Um grupo de voluntários viveu e dormiu com os trajes espaciais e os
capacetes durante quatro semanas. Suas cuecas e meias se deterioraram de
tal forma que precisaram ser substituídas. “O voluntário C ficou tão
nauseado com o cheiro exalado pelo corpo que depois de menos de dez
horas foi obrigado a tirar o capacete. A essa altura, os voluntários A e B já
tinham tirado os seus.” De nada adiantou. Sem o capacete, os cheiros
corporais eram “expelidos pela gola do traje pressurizado”, criando uma
situação qualificada por B, no quarto dia, de “absolutamente horrível”. Isso
explica por que Frank Borman, na gravação do segundo dia na Gemini VII,
pergunta a Lovell se tinha um pregador de roupas. Ele se preparava para
abrir seu traje. (“É para o seu nariz”, disse ele ao atônito Lovell.)
No caso de outro grupo de voluntários, a temperatura foi elevada para
33,3 oC. A tripulação simulada da Gemini VII não só passou duas semanas
vestida dia e noite com o traje espacial como teve de lidar com os mesmos
sistemas de coleta de dejetos que em breve atormentariam Lovell e Borman.
Para quantificar a sujeira, os cientistas da Força Aérea acompanharam os
homens — muitos deles eram estudantes da Universidade de Dayton, que
ficava ali perto — a uma ducha portátil, um a um, e coletaram os resíduos
para análise. John Brown era o oficial responsável pela cápsula espacial
simulada, oficialmente denominada Avaliador de Sistemas de Suporte de
Vida, mas chamada por eles de “a câmara”. Estranhamente, a ducha foi a
parte de que os homens mais reclamaram, conta Brown. Isso porque a água
não era aquecida. “Eles não queriam que a água quente cozinhasse as
escamas de pele.” Essas últimas palavras não costumam andar juntas.
Por mais desagradável que esse projeto tenha sido para os participantes,
tampouco foi um mar de rosas para os pesquisadores. Foram suas fungadas,
aqui e ali, que possibilitaram a conclusão: “O odor corporal é mais intenso
nas axilas, na virilha e nos pés”.
As axilas e a virilha estão em primeiro lugar porque é nelas que se
encontram as glândulas sudoríparas apócrinas. Ao contrário das glândulas
sudoríparas écrinas, que refrescam o corpo, secretando basicamente água, as
apócrinas produzem uma secreção opaca e viscosa que, quando decomposta
por bactérias, dá origem ao típico cê-cê ou cheiro de corpo — o odor
corporal. Não sei muito bem como dizer isso, nem o que isso pode revelar a
meu respeito, mas nunca detectei cê-cê na região púbica. Perguntei sobre
isso a Jim Leyden, dermatologista e pesquisador de cheiros corporais da
Universidade da Pensilvânia. Ele confirmou a presença das glândulas
apócrinas na virilha e insistiu que exalavam um cheiro semelhante. “Só não
é muito fácil perceber porque o dispositivo sensorial está um pouco
distante”, disse ele. Resolvi deixar por isso mesmo.
As glândulas apócrinas estão ligadas ao sistema nervoso autônomo.
Medo, raiva e nervosismo provocam um aumento de suas secreções (as
empresas que testam desodorantes chamam esse fenômeno de “suor
emocional”, para distingui-lo do suor induzido pelo calor).b Todos hão de
convir que estar amarrado a um foguete prestes a ser lançado é uma
situação em que um homem, como diria Leyden, “extrai dessas glândulas
tudo o que elas podem dar”. Perguntei a Jim Lovell, por telefone, se ele se
lembrava dos comentários dos homens-rã que abriram a escotilha da Gemini
VII depois da amerrissagem.
“Você está pesquisando um aspecto bastante incomum do voo espacial”,
disse ele. Com relação ao resgate da Gemini, ele não se lembrava desse
pormenor, mas recordava os comentários feitos pelos homens que abriram a
escotilha da Apollo. “Eles receberam uma lufada que vinha do interior da
nave e sentiram um cheiro…” — aqui seu cavalheirismo falou mais alto —
“bem diferente do que era trazido pela brisa do oceano lá fora.”
O suor debaixo dos braços proporciona alimento e hospedagem para
bactérias. O suor das glândulas écrinas, composto principalmente de água,
oferece a umidade de que as bactérias precisam para se desenvolver. Já as
secreções apócrinas são um restaurante aberto 24 horas (embora o suor
écrino também contenha elementos comestíveis, cuja decomposição origina
substâncias que, nas palavras de Leyden, “fazem parte do bouquet final,
digamos assim”. É um cheiro mais brando, como o de um vestiário).
As axilas não são o paraíso absoluto das bactérias, como poderia parecer.
O suor tem propriedades antimicrobianas que, embora não esterilizem a
pele, impõem limitações ao desenvolvimento das bactérias. Essa pode ser
uma das razões pelas quais o odor dos rapazes da Força Aérea atingiu um
patamar e ali permaneceu, em vez de se tornar cada vez pior à medida que
transcorriam as semanas. O relatório técnico diz que o odor corporal
daqueles homens chegou à “altura máxima” entre o sétimo e o décimo dias,
e depois começou a cair. Altura é um atributo esquisito quando se pensa em
cheiro, mas nesse caso o odor poderia parecer estar assumindo proporções
físicas, tornando-se mais alto e fazendo brotar cabeças, membros e penas.
Em 1969, o biólogo espacial russo V. N. Tchernigovski pôs em prática
um experimento particular de restrição de banho que envolvia contagem de
bactérias. As populações de bactérias nas axilas e virilhas dos voluntários
chegaram ao máximo entre a segunda e a terceira semanas. Nesse ponto,
havia cerca de três vezes mais colônias do que numa pele recém-lavada. (A
não ser nos pésc e nas nádegas, onde havia de sete a doze vezes mais.) Um
estudo da Marinha chegou a resultados semelhantes: nesse caso, em alguns
indivíduos, a contagem de bactérias chegou a regredir ao cabo de duas
semanas.
Outra explicação para esse patamar do odor é que o cheiro dos rapazes
tivesse se tornado tão forte a ponto de impedir que qualquer avaliador
conseguisse detectar alterações para cima. A explicação é dada pela Lei de
Weber. O limiar de detecção de alterações num cheiro determinado (ou
ruído, ou sensação) varia de acordo com a intensidade do cheiro (ou ruído,
ou sensação) de fundo. Suponhamos que você esteja num restaurante
barulhento. Se o nível de ruído aumentar uns poucos decibéis, você nem vai
notar. Mas se o salão estivesse em silêncio, você notaria. Se as axilas de
uma pessoa estão berrando há dias, é difícil detectar quando elas passam a
berrar um pouco mais alto. Jim Leyden dá o exemplo de seu filho, que era
remador na época de faculdade. Numa temporada, sua equipe resolveu usar
o mesmo uniforme durante toda a competição. “Bem, eles foram campeões
nacionais naquele ano. Mas você não podia chegar nem perto do barco. O
cheiro deve ter atingido o patamar, mas até onde eu sei era simplesmente
horrível, sempre.”
No fim, a mente deixa de registrar o cheiro do corpo. Como diz Leyden,
“é como se ela pensasse ‘Não preciso me dar o trabalho de continuar a lhe
informar isso’”. Infelizmente, para o grupo de voluntários dos AMRL que
participaram de uma simulação de vinte dias sem banho para o Projeto
Apollo, esse ponto só foi atingido no oitavo dia.
A Nasa teria agido bem incluindo a anosmia para odores corporais em
sua lista de qualidades desejáveis para os astronautas. Algumas pessoasd
são geneticamente incapazes de sentir o cheiro (ou seja, são anósmicas) de
uma ou das duas mais pronunciadas variedades de cê-cê: o ácido 3-metil-2-
hexanoico e a androsterona. “Você já esteve num elevador com alguém e
pensou ‘Como essa pessoa pode sair com esse cheiro?’. Bem, ela pode ser
anósmica para o próprio cheiro”, diz Leyden. “E se você nunca viveu essa
situação, é possível que seja uma dessas pessoas do elevador que intriga
todo mundo.”
Além do cheiro corporal, uma das coisas que mais contribuem para
aquilo que um pesquisador chamou de “percepção da sujeira pessoal” não é
sujeira propriamente dita, mas emanações corporais que se formam na pele.
Mais especificamente: oleosidade, suor e caspa.e Nas partes do corpo em
que há pelos, há glândulas sebáceas; ou seja, no corpo inteiro, exceto nas
palmas das mãos e nas solas dos pés, onde a oleosidade é um acidente de
percurso e portanto uma reminiscência.
Experimentos soviéticos de 1969 sobre restrição higiênica monitoraram a
formação de secreção sebácea (sebo) em voluntários do sexo masculino.
(Neste caso, além de não tomar banho, eles tinham de passar “a maior parte
do tempo sentados numa poltrona”. O astronauta simulado da década de
1960 era um sujeito fedorento que via TV com uma camiseta suja.) Na
primeira semana sem banho, a oleosidade da pele permaneceu constante.
Por que não aumentou? Porque a roupa absorve de forma excelente o sebo e
o suor. Os pesquisadores soviéticos coletaram a água do banho dos
voluntários numa bacia e a água de lavagem de suas roupas em outra, e
compararam a quantidade de gordura, suor e descamações dos dois
recipientes. De 86% a 93% das secreções da pele ficaram na água com que
a roupa fora lavada. Em outras palavras, com exceção de 7% a 14% das
secreções, tudo o mais foi absorvido pelos tecidos das roupas. Isso valia
para o algodão, para a mescla de algodão e raiom e, em menor medida, para
a lã.
As descobertas dos soviéticos ajudam a explicar os relaxados hábitos de
higiene nos séculos XVI e XVII. Os médicos renascentistas desaconselhavam
a higiene corporal com água. Acreditavam que a remoção da camada oleosa
da pele expunha a pessoa a doenças epidêmicas, tuberculose e vários outros
males que se supunha disseminados por “miasmas” que se introduziam no
corpo pelos poros. É famosa a frase da rainha Elizabeth I, fenômeno de
limpeza para sua época, segundo a qual “tomo banho uma vez por mês,
precisando ou não”. Muita gente passava um ano sem banho.
Mas esta é a questão: em vez de tomar uma chuveirada uma ou duas
vezes por dia, os homens e mulheres renascentistas mudavam a roupa de
baixo. Já os homens da Gemini VII e os da câmara dos AMRL não podiam
trocá-la. Os autores do estudo dos AMRL observaram que as roupas dos
voluntários acabavam “grudando na […] virilha e outras dobras do corpo,
tinham um cheiro muito forte e começavam a se decompor”, situação
qualificada de “muito problemática”. Lovell me contou que na Gemini VII
as ceroulas chegaram ao fim da missão em mau estado. “Estavam muito
ensebadas nas entrepernas” — mais do que as de uma pessoa que durante
duas semanas não tomasse banho nem trocasse a roupa de baixo, já que
nessa situação ela não estaria testando um novo sistema de manejo da urina
que “às vezes permitia vazamentos significativos”. No segundo dia de voo,
por exemplo, quando Lovell relatou ao Controle de Missão que estava
lançando urina para fora da nave, observou que “não era muita; a maior
parte ficou na minha cueca”.
A certa altura, as roupas chegam ao ponto de saturação e o sebo começa
a se acumular na pele. Segundo os pesquisadores soviéticos, que
monitoraram o nível de oleosidade no peito e nas costas dos voluntários,
uma peça de algodão leva de cinco a sete dias para chegar a esse ponto. É
difícil dizer o dia específico em que os astronautas da Gemini VII
começaram a notar aquilo que estava se acumulando em sua pele. No
décimo dia, “começaram a sentir coceira” e “a ficar meio nojentos” no
couro cabeludo e na região genital. Basta ouvi-los no décimo segundo dia:
CONTROLE DE MISSÃO: Gemini VII, aqui é o médico. Frank, você ainda
tem algum hidratante?
BORMAN: Hidratante?
CONTROLE DE MISSÃO: Exato.
BORMAN: Ainda temos um pouco, mas com certeza não precisamos dele,
Jack. Não poderíamos estar mais gordurosos.
É pouco comum deparar-se com a palavra “hidratante” na transcrição de
uma missão da Nasa. Ao que parece, Borman ficou irritado com a
preocupação da Nasa acerca do cuidado com a pele, como se isso estivesse
comprometendo a virilidade da missão. A certa altura, o médico pegou o
microfone e perguntou: “Como está a pele de vocês?”. Antes disso, tinha
surpreendido Borman com a pergunta: “Você está tendo algum problema de
ressecamento dos lábios?”. “Pode repetir, por favor?”, responde Borman.
Mas tem-se a impressão de que ele ouviu muito bem. No quarto dia, o
Controle de Missão passou a se preocupar com a transpiração de Borman.
Ele, da mesma forma que sua epiderme, tinha chegado ao ponto de
saturação. Recusou-se a responder, obrigando o Controle de Missão a pedir
a ajuda de Lovell.
CONTROLE DE MISSÃO: Ao olhar para ele, você nota se a pele dele está
hidratada?
LOVELL: Vou deixar que ele responda essa pergunta.
BORMAN: [silêncio]
CONTROLE DE MISSÃO: Você tem suado muito, Frank?
BORMAN: [silêncio]
CONTROLE DE MISSÃO: Gemini VII, aqui é Carnarvon. Entendeu?
BORMAN: Sobre o suor? Eu diria que sim, estou transpirando um pouco.
CONTROLE DE MISSÃO: Muito bem. Obrigado.
Depois que a muda de roupas fica saturada e a oleosidade começa a se
acumular na pele, até onde vai isso? Será que a pele não lavada se torna
cada vez mais oleosa com o passar dos dias? Não é assim. Segundo a
pesquisa dos soviéticos, a pele para de produzir sebof depois de cinco a sete
dias sem banho e sem troca da roupa ensebada. As glândulas sebáceas só
voltam a funcionar depois que a pessoa troca de camisa ou toma uma ducha.
A pele, ao que parece, fica mais contente com o acúmulo de oleosidade de
cinco dias. Vamos ouvir o que diz a professora Elaine Larson, editora da
revista American Journal of Infection Control, a respeito do estrato córneo,
a camada mais externa da pele humana: “Essa camada queratinosa já foi
comparada com uma parede de tijolos (corneócitos) e argamassa (lipídios)”
e ajuda a “manter a hidratação, a elasticidade e a eficácia da pele como
barreira”.
Estamos prejudicando a saúde da pele ao esfregá-la sem parar, retirando a
argamassa? Será que nossa pele prefere um banho de cinco em cinco dias?
É difícil dizer. O que se sabe é que pessoas que lavam as mãos com muita
frequência — profissionais de saúde e pessoas com Transtorno Obsessivo-
Compulsivo — muitas vezes apresentam irritação e eczema. Segundo
afirma Elaine Larson, 25% das enfermeiras que participaram de uma
pesquisa apresentavam pele seca e danificada. Sem querer, as enfermeiras
podem estar agravando justamente aquilo que a lavagem das mãos tenta
evitar: a disseminação de agentes infecciosos. Larson diz que a pele
saudável elimina 10 milhões de partículas por dia, e 10% delas abrigam
bactérias. A pele seca e danificada descama mais do que a pele saudável e
lubrificada, e portanto dispersa mais bactérias. A pele danificada também
abriga mais agentes patogênicos do que a pele saudável. Como diz Larson,
“Talvez, às vezes, o limpo seja limpo demais”. A maior parte dos
americanos não lava as mãos com uma frequência que possa causar
problemas epiteliais, mas com certeza faz isso mais do que é preciso. Nas
palavras de um acadêmico (cujo nome não posso citar porque perdi a
primeira página de seu trabalho): “A higiene pessoal como é praticada hoje
nos Estados Unidos é em grande parte um fetiche cultural, promovido por
interesses comerciais”.
No espaço, como nas Forças Armadas, tomar banho é mais uma questão
de disposição de ânimo que de saúde. As agências espaciais, admitindo o
que um pesquisador chamou de “insuficiência psicológica do banho de
esponja”, dedicaram muito tempo e dinheiro na década de 1960 na tentativa
de criar uma ducha adaptada à gravidade zero para estações espaciais. Um
dos primeiros protótipos testados era o de um “traje-chuveiro”. O relatório
técnico que li trazia um resumo pouco estimulante: “Os resultados deixaram
muito a desejar quanto aos procedimentos de banho, enxágue e secagem”.
Os mecanismos habituais não funcionavam; a água esguichada pelo
chuveiro percorria um pequeno trajeto e depois formava uma gota cada vez
maior: fascinante, mas de pouca serventia no que tange a abluções. Se o
chuveiro fosse aproximado do corpo o bastante para impedir a formação da
enorme gota, a água ricocheteava contra a pele, formando gotas flutuantes
que depois exigiam dez minutos de buscas para impedir que saíssem
boiando pela estação. “Acabou sendo mais fácil deixar aquilo de lado”,
disse o astronauta Alan Bean, sobre a ducha dobrável da Skylab.
A ducha da estação espacial soviética Salyut tentou usar um fluxo de ar
para fazer com que a água corresse em direção aos pés do cosmonauta. Teve
pouco sucesso. Formavam-se gotas, e as gotas tendem a aderir às
concavidades corporais, inclusive a boca e as narinas. Para não se afogar, o
cosmonauta Valentin Lebedev e seu parceiro Tolia Berezovoi usavam
apetrechos de mergulho. “Era uma visão exótica”, escreveu Lebedev em seu
diário. “Um homem nu [voando] pela estação […] com um snorkel na boca,
uma máscara sobre os olhos e um pregador no nariz.” Como era de esperar,
a tripulação da Salyut 7, assim como Elizabeth I, só tomava banho uma vez
por mês. Hoje não existem mais duchas espaciais. Os astronautas se
higienizam com lenços umedecidos e xampu sem enxágue.
Tomar banho é mais importante nas estações espaciais, porque as missões
são mais demoradas e exigem uma rotina de exercícios diários que
aumentam a sudorese. Como complemento aos lenços umedecidos,
astronautas japoneses da ISS usaram o “J-Wear”, criado na Universidade
Feminina de Tóquio com um tecido que “tem a função de dissolver a sujeira
e o odor corporal por fotocatálise e evita o cheiro de podre do suor com
uma técnica nanomatricial de finalização antibacteriana”. O astronauta
Wakata Koichi (bem a propósito, o sobrenome pronuncia-se co-itchy, que
em inglês lembra comichão) usou a mesma ceroula J-Wear durante 28 dias
sem reclamar.
Os astronautas da Gemini VII só podiam sonhar com “roupas
confortáveis, de uso diário, para viver numa nave espacial”, como um
comunicado definiu o J-Wear. Para dormir, em vez de pijamas, usavam
trajes espaciais quentes, pesados e volumosos. Os voluntários do simulador
da Gemini VII da Força Aérea foram acometidos de “assaduras e muita
irritação na virilha”. Se acaso algum dia você questionou a necessidade de
uma higiene completa e trocas frequentes de roupa de baixo, aqui terá um
motivo. Em pessoas que têm hábitos higiênicos precários ou são submetidas
a restrições de higiene, como os rapazes da Força Aérea na década de 1960,
os coliformes fecais migram. Pesquisadores da Wright-Patterson tomaram
amostras de treze pontos do corpo humano para a busca de E. coli.
Depararam-se com uma notável diáspora. Os coliformes fecais tinham
chegado aos olhos e orelhas daqueles homens e, em dois casos, aos
tornozelos. Cinco em cada seis soviéticos que ficaram trinta dias sentados
em poltronas apresentaram foliculite — infecção bacteriana nos folículos
pilosos da pele. Três deles apresentaram furúnculos — infecção
particularmente grave dos folículos, com dor e inchaço.
Lovell não se lembra de nenhum problema de pele. “A diferença é a
gravidade zero”, disse ele. “Esse é o segredo da coisa.” Quando um homem
flutua a uma curta distância de sua cadeira, e seus braços pendem longe das
laterais do corpo, ele apresentará menos assaduras e irritação causadas pelo
atrito das roupas úmidas e sujas contra a pele suada e sem banho. As cuecas
dos astronautas não ficam coladas a suas nádegas. Seja qual for a bactéria
que estiver à espreita em seu suor, ela não chegará a seus folículos. Existe
uma doença chamada foliculite da banheira que costuma se manifestar nas
nádegas e na parte posterior das coxas de pessoas que tomam banho de
banheira, justamente os pontos em que há maior fricção e pressão. (A água
da banheira é quente, mas não o bastante para matar as bactérias. Uma
banheira mal higienizada é, para citar o microbiólogo Chuck Gerba, da
Universidade do Arizona, “um caldo de E. coli”.)

Sexto dia da Gemini VII. Frank Borman está ao microfone. O diálogo se


dá no jargão machista próprio da comunicação entre o piloto e sua base. Até
que:
CONTROLE DE MISSÃO: Vou passar para o médico, Gemini VII.
BORMAN: [silêncio]
CONTROLE DE MISSÃO: Gemini VII, aqui fala o médico. Teve algum
problema de caspa até agora, Frank?
BORMAN: Não.
CONTROLE DE MISSÃO: Repita.
BORMAN: N-A-O-TIL! Não, negativo!
O comandante Borman não estava disposto a debater cuidados com a
pele. Mas depois, em seu livro de memórias, ele escreveria sobre “nosso
couro cabeludo” e sobre seu caso de “caspa terminal”. Mas talvez,
tecnicamente falando, não se tratasse de caspa. A caspa é causada por uma
resposta inflamatória ao ácido oleico, excretado pelo fungo Malassezia
globosa depois que ele janta os óleos de nosso couro cabeludo. A pessoa
pode ou não ser sensível ao ácido oleico. Se Borman não tivesse caspa antes
de viajar ao espaço, não teria depois, diz o dermatologista Jim Leyden.
Certa vez, Leyden pagou a um grupo de presidiários para que ficassem um
mês sem lavar a cabeça, exatamente para verificar se desenvolviam caspa.
Isso não aconteceu. Os flocos que havia na cabeça e na pele de Borman
eram mais provavelmente um acúmulo de milhões de partículas de pele
morta — que em condições normais são eliminadas pelo banho —
misturadas com secreção sebácea, formando grumos.
A atmosfera dos acampamentos da Antártica é igualmente seca, e as
instalações para banho igualmente inexistentes ou complicadas, o que torna
a estada de seis semanas para o Projeto Pesquisa de Meteoritos na Antártica
uma boa analogia para a higiene espacial. “Seis semanas de pele morta
representam duas camadas completas”, diz o líder da equipe, Ralph Harvey.
Às vezes elas vão embora de uma só vez, no primeiro banho. Harvey
reconhece que é fascinado pelo espetáculo. “Lembro-me de que na volta
tomei uma ducha e todo o revestimento terminal de meu dedo simplesmente
desapareceu.”
O que torna a questão da caspa mais tolerável na Antártica é que se pode
sair de casa e sacudir as ceroulas e o saco de dormir. No espaço, assim
como no espaço simulado, não. A descrição de um simulador de cabine
espacial da Marinha no fim do experimento parecia o relatório sobre uma
estação de esqui: “Foi encontrada uma fina camada de escamas poeirentas
cobrindo o piso da câmara”.
Em gravidade zero, os flocos nunca caem. Perguntei a Lovell sobre isso.
Acho que minhas palavras exatas foram: “O que acontecia era parecido com
esses globos de vidro com ‘neve’ dentro?”. Ele respondeu que não se
lembrava de nada assim. Ou não que não lembrava de nada “de tal
magnitude que pudesse permanecer em minha memória durante todos esses
anos”. (Para saber o que ficou em sua memória durante todos esses anos,
ver capítulo 14.)
A cabeça, em geral, é um problema. A maioria de nossas glândulas
sebáceas está ligada a folículos pilosos, de modo que o couro cabeludo, se
não for lavado, em pouco tempo fica muito oleoso. Tanto assim que os
banhófobos do século XVI esfregavam polvilho ou farinha no couro
cabeludo antes de dormir, mais ou menos como fazemos hoje ao despejar a
areia do gato nas manchas de óleo da garagem. Como o suor, a secreção
sebácea adquire um cheiro característico quando é decomposta pelas
bactérias. “Pelo menos dois dos astronautas da Skylab relataram ter tido
mau cheiro na cabeça”, observou o psicólogo espacial Jack Stuster num
relatório da Nasa de 1986 sobre a habitabilidade da estação espacial.

Borman e Lovell não usaram seus trajes durante toda a missão, como
estava previsto. No segundo dia, o médico Charles Berry começou a
interceder junto à administração da Nasa em favor deles. Chegou-se a um
acordo: pelo menos um de cada vez se manteria vestido com o traje espacial
(para o caso de ocorrer uma despressurização de emergência). Borman tirou
o palitinho mais curto, e Lovell pulou fora de seu traje. Durante anos, o
filho de Lovell contaria aos amigos: “Papai orbitou a Terra só de cueca!”.
Na hora 55, Borman abriu o zíper de seu traje e baixou-o até a metade.
Na hora 100, pediu à direção da Nasa para tirá-lo completamente.
Passaram-se cinco horas. Houston voltou à linha. Borman poderia tirar seu
traje se Lovell vestisse o dele. Lovell tentou resistir (“eu preferiria deixar as
coisas como estão, se vocês não se importarem”), mas a Nasa foi firme.
Hora 163: Lovell está com o traje, Borman está sem ele. Finalmente,
Charles Berry venceu e os dois trajes foram postos de lado. Recorda Berry
em seu depoimento, caso não tivesse sido autorizado, “acho que não
teríamos completado catorze dias naquela nave […] São dois sujeitos
usando trajes espaciais, sentados, um com a perna no colo do outro. É uma
situação realmente difícil”.
Poderia ser pior. Tente passar três meses de cama.

a Borman às vezes era um tanto rude. Como diria Lovell, “Passar duas semanas com Frank
Borman em qualquer lugar é uma provação”.
b Por isso, os testes de eficácia dos desodorantes e antitranspirantes incluem uma “coleta
emocional”. Um grupo de voluntários, com almofadinhas debaixo dos braços para absorver as
secreções, é obrigado a cantar ou falar diante de uma plateia. Depois disso, confere-se o peso das
almofadinhas e os cheiros das axilas são avaliados por juízes profissionais. Certa vez, quando eu
escrevia um artigo sobre cheiros corporais, fui convidada a servir como juíza. “Dê umas cheiradinhas
rápidas, de coelho”, me recomendaram.
c Por causa do suor e da pele morta (calosidades), as plantas dos pés e os espaços entre os artelhos
constituem uma meca para as bactérias, em quantidade e variedade. Uma espécie de bactéria que se
alimenta de pele morta, a L. brevis, excreta substâncias que têm cheiro de queijo curado. Talvez fosse
mais exato dizer que certos queijos curados têm cheiro de chulé: os queijeiros normalmente inoculam
a L. brevis em alguns de seus produtos.
d E talvez os cervos. Uma edição de 1994 da revista Crop Protection detalha a tentativa
fracassada mas divertida de botânicos da Universidade da Pensilvânia que pretendiam proteger certo
tipo de arbusto ornamental contra ataques do veado-de-cauda-branca borrifando a planta com ácido
3-metil-2-hexanoico. O que provoca uma inusitada dúvida de marketing: quem gostaria de ter em
casa um rododendro exalando cê-cê?
e Ou seja, pele morta. O Dorland’s Medical Dictionary define caspa como “substância farelenta
de origem epidérmica” — uma sugestiva combinação de caspa e cereal matinal. Experimente os
novos Flocos de Caspa Kellogg’s!
f Cerca de 4,2 mililitros por dia, segundo a tabela que consta de um estudo de Mattoni e Sullivan
intitulado “Sinopse de peso e volume de dejetos corporais de todo tipo gerados no ambiente fechado
de um veículo espacial tripulado de alto desempenho”. Isso dá pouco menos de uma colher de chá de
secreção oleosa, equivalência obtida com auxílio de uma tabela de conversão. Empregadas em
sequência, as duas tabelas permitiriam a um padeiro maluco ou geograficamente isolado substituir
sebo por gordura vegetal ou calcular o equivalente a uma xícara de farinha em descamação epitelial.
11. OS ELEITOS NA HORIZONTAL

Como seria nunca sair da cama?

Leon M. não parece em nada um dos “eleitos”. Tem um passado confuso


e contas muito atrasadas. Seu último emprego foi como segurança.
Atualmente, passa semanas inteiras na cama, vendo filmes e jogando
videogames. No entanto, debaixo da calça de moletom e das tatuagens, há
uma espécie de astronauta. O esqueleto de Leon está diminuindo, da mesma
forma que o de um astronauta no espaço.
Leon faz parte da pesquisa sobre acamados financiada pela Nasa na
Unidade de Pesquisa de Analogias de Voo (Faru, na sigla em inglês) da
Faculdade de Medicina da Universidade do Texas em Galveston. Faz
décadas que agências espaciais em todo o mundo vêm remunerando
generosamente pessoas que passam dia e noite de pijama, sem fazer nada.
No caso de Leon, que ouviu falar do bico numa resenha de manchetes
excêntricas do locutor Howard Stern, a coisa foi apresentada assim: NASA
PAGA PARA VOCÊ FICAR NA CAMA.
Durante três meses, 24 horas por dia, Leon não sai da cama nem se senta
para nada: nem para tomar banho, nem para comer, nem para ir ao banheiro.
Ficar de cama é uma analogia (ou uma mímica) de voo espacial, em que o
fato de não estar de pé causa o mesmo tipo de degradação física que a
ausência de gravidade. Para dizer de forma mais crua, os ossos afinam e os
músculos se atrofiam. As agências espaciais estudam acamados para tentar
entender essas mudanças e descobrir como elas podem ser combatidas.
Muitas vezes, os estudos sobre acamados servem para avaliar os efeitos
positivos (ou não) de drogas e dispositivos para exercícios —
contramedidas, como se diz no jargão da medicina aeroespacial —, mas
esse estudo de que Leon participa é mais simples. O pesquisador está
analisando as mudanças que ocorrem em homens, para compará-las às que
acometem as mulheres. Leon dá uma pausa no episódio de Magnum, P.I.,
que acompanha pelo smartphone comprado pela internet com seu primeiro
cheque. “Então é isso, estou me deteriorando. E eles só querem observar.”
Diz isso alegremente, como alguém que relata uma promoção ou uma noite
de sorte na mesa de jogo. Leon têm pômulos salientes, cabelos compridos e
macios e sorriso cativante.
O corpo humano é como um funcionário medíocre: faz o essencial —
mas nada além disso. Mantém a força dos músculos e ossos na medida
certa, nem mais nem menos. “Use ou perca” é o mantra elementar do corpo
humano. Se uma pessoa começa a praticar exercícios ou ganha dez quilos,
seus ossos e músculos se fortalecerão conforme a necessidade. Se larga os
exercícios ou perde os dez quilos, seu corpo se reduz na medida adequada.
Os músculos se regeneram em questão de semanas depois que os
astronautas retornam à Terra (e depois que os acamados se levantam), mas
os ossos levam de três a seis meses para se recuperar. Alguns estudos fazem
crer que os ossos dos astronautas participantes de missões de longa duração
nunca se recuperam totalmente, e por isso eles têm sido objeto da maior
parte dos estudos em lugares como o Faru.
No corpo humano, o capataz de plantão é uma célula chamada osteócito,
alojada em toda a matriz óssea. Cada vez que você dá uma corrida ou
carrega uma caixa pesada, causa um pequeno dano a seus ossos. Os
osteócitos percebem isso e enviam uma equipe de reparo: osteoclastos, que
removem as células danificadas, e osteoblastos, que remendam os buracos
com novas células. O reparo fortalece o osso. É por essa razão que os
exercícios de impacto, como a corrida, são recomendados para mulheres de
ossos finos e pequenos, de ascendência norte-europeia, cuja predisposição
genética as obriga, depois da menopausa, a pegar a fila de candidatos a uma
prótese de quadril.
Do mesmo modo, se você deixa de pressionar e forçar os ossos —
viajando ao espaço, permanecendo numa cadeira de rodas ou sendo um
acamado voluntário —, isso sinaliza aos osteoclastos, sensíveis à tensão,
que devem levar embora os ossos. O corpo humano parece ter uma
tendência à racionalização. Trate-se de músculo ou osso, ele evita empregar
seus recursos em funções que não estão atendendo a nenhum objetivo.
Tom Lang, osteologista da Universidade da Califórnia em San Francisco,
trabalhou com astronautas e explicou-me o assunto. Disse-me que um
médico alemão chamado Wolff previu essa questão na década de 1800 ao
estudar radiografias do quadril de crianças que deixavam de engatinhar para
andar. “Ocorre toda uma nova evolução da estrutura óssea para suportar a
carga mecânica associada ao andar”, disse Lang. “Essa foi a grande sacada
de Wolff: a forma é consequência da função.” Mas, infelizmente, Wolff não
sacou que o câncer seria o resultado do uso indiscriminado dos primitivos
aparelhos de raios X do século XIX.
Até onde vai isso? Se você nunca mais ficar de pé, seu corpo vai
desativar por completo o seu esqueleto? Os seres humanos se
transformariam em geleia se nunca ficassem de pé? Não é bem assim. Os
paraplégicos acabam perdendo de um terço a metade da massa óssea na
parte inferior do corpo. Modelos computacionais feitos por Dennis Carter e
seus alunos da Universidade Stanford indicam que uma missão a Marte com
duração de dois anos teria o mesmo efeito sobre o esqueleto. Será que, ao
voltar de Marte, um astronauta corre o risco de quebrar um osso ao sair da
cápsula para a gravidade terrestre? Carter acha que sim. E isso faz sentido,
pois sabe-se que mulheres portadoras de osteoporose em grau extremo
fraturam o quadril (na verdade, a cabeça do fêmur, no ponto em que esse
osso se insere na pélvis) pelo simples ato de transferir o peso do corpo de
uma perna a outra. Elas não caem e quebram um osso; quebram o osso e
caem. E essas mulheres normalmente perderam bem menos de 50% de sua
massa óssea.
A Nasa financiou o trabalho que conduziu aos modelos computacionais
de Carter. “Mas parece que ninguém aqui leu nosso relatório”, diz ele. “Eles
insistem na ideia de que podem enviar astronautas lá para cima e esperar
que a perda óssea se estabilize em poucos meses, mas as evidências que
temos não sustentam essa opinião. Uma missão de dois anos a Marte
constitui uma perspectiva assustadora.”

Em alguns locais de pesquisa com acamados, os voluntários são


chamados de “terranautas”. No início, imaginei que isso não passava de
uma tentativa de conferir um clima de importância à pesquisa (como
chamar um faxineiro de “engenheiro sanitário”). Mas durante três meses, o
cotidiano dos terranautas guarda semelhanças com o dos astronautas que
orbitam a Terra. Cada dia começa com música transmitida pelos alto-
falantes. (Hoje de manhã, tocava Metallicaa na estação espacial e “alguma
coisa de Beethoven” na Faru.) O voluntário passa o tempo todo confinado
num ambiente pequeno, ou num conjunto de ambientes, e se tentar sair vai
criar problemas. É difícil ter privacidade. Na Faru, as câmeras de um
circuito fechado estão apontadas para as camas, para que a equipe tenha
certeza de que todos permanecem deitados. (Os voluntários só estão
autorizados a correr a cortina que circunda sua cama para usar a comadre.)
Os resmungões não têm vez. Leon diz que atravessou um período de
irritabilidade lá pela metade de sua permanência, mas que ele é “tão alegre
que nem notaram”. Na meia hora que passei com ele, ouvi uma única
queixa. Dizia respeito ao frango. “Vem em pedacinhos. Quero frango com
pele e osso! Não me deem esses cubinhos.”
Leon pede licença, pois o massagista está chegando. Ao contrário dos
astronautas, os acamados recebem uma massagem de dois em dois dias,
para combater a dor lombar, consequência da imobilidade no leito. Antes,
os médicos costumavam prescrever repouso para pacientes acometidos de
dor lombar. Segundo um artigo publicado em 2003 na revista Joint Bone
Spine,b mesmo que o paciente sinta muita dor, quase sempre é
recomendável que saia da cama assim que possível.
Sem ter o peso do corpo a comprimi-la, a curvatura da coluna diminui e
os discos existentes entre as vértebras se expandem e absorvem mais água.
Depois de uma semana no espaço, os astronautas voltam até 6,5 centímetros
mais altos. (O ganho mais comum é de 3% da altura total.) Da mesma
forma que as crianças, eles “perdem” suas roupas se não for prevista uma
folga na confecção.

Aaron F. está “de cabeça para baixo” há oito semanas. (A expressão se


refere à inclinação de seis graus da cama. Como a gravidade zero faz os
fluidos corporais se dirigirem para a parte mais elevada do corpo, na cama
deve ocorrer o mesmo.) Um grande ventilador ao lado da cama funciona à
velocidade máxima, não para refrescá-lo, mas para dissimular os ruídos de
fora. Ele vinha se sentindo preso numa armadilha, incapaz de sair. E o pior
era que seu companheiro de quarto, Tim, ainda estava na “fase
ambulatória”. Vai ficar de cabeça para baixo em poucos dias, mas por
enquanto está autorizado a caminhar pela unidade usando pantufas e a se
sentar na cama de pernas cruzadas, que é o que está fazendo agora.
Um funcionário da cozinha entra no quarto com um carrinho.
“O ponto alto do meu dia!”, diz Tim. Ele parece realmente animado com
a perspectiva de comer comida de hospital. Aaron aceita sua bandeja sem
dizer nada. Apoia-se em um dos cotovelos. É estranho ver uma pessoa
reclinada comendo. Parece uma cena sem graça e antisséptica das Mil e
uma noites, com homens recostados em almofadas comendo com apenas
uma das mãos.
Tim me leva para um passeio guiado pelo jantar, indicando com o garfo:
“Aqui temos frango…”.
Lembro-me de Leon. “Em cubos?”
“Em cubos, sim. Quase dá para jogar dados com eles! E aqui temos
rodelas de cenoura…” Há um quê de fascínio em sua voz, como se
estivéssemos fitando dobrões de ouro. “… maçã fatiada, leite, dois rolinhos,
gelatina. Adoro a comida daqui.”
Aaron procura alguma coisa positiva para dizer. “É bem variada... Mas,
depois, a mesma variedade de novo. Comemos bastante peixe…”
“Oh, meu Deus.” Tim, de novo. “O peixe é impressionante!”
Tim se reinscreveu depois de sua primeira estada ali, alguns anos antes.
Um letreiro em sua parede diz BEM-VINDO DE VOLTA, 9290 com tinta de
purpurina tomada de empréstimo à unidade de oncologia pediátrica ao lado.
Antes que eu possa detê-lo, Tim escorrega para fora da cama e vai
perguntar ao funcionário da cozinha se não há um jantar extra para mim.
Aaron está impaciente e inquieto, levantando as pernas para formar um A
sob os lençóis para logo esticá-las outra vez. Da mesma forma que Leon e
outros com quem falei, ele está aqui para tentar pagar umas contas de
cartões de crédito. As pesquisas com acamados são uma espécie de prisão
moderna de endividados. E não só pelo dinheiro que ganham — dezessete
mil dólares por três meses de serviço —, mas pelas poucas chances de
gastá-lo. Durante três meses, não se paga aluguel, não se faz supermercado
nem se compra combustível, não há contas de bar nem passagens aéreas.
Passar uma temporada na cama é um jeito de se obrigar a abandonar maus
hábitos. (Embora não seja totalmente eficaz: as compras pela internet
fizeram da Faru uma das paradas mais movimentadas da rota local dos
correios.)
Tim formou-se em administração, mas não tinha dinheiro para montar
um negócio. Mudou-se para um ashram de meditação porque sentia
necessidade de refletir sobre o futuro e porque “eles te alimentam de
graça!”. Depois de muita reflexão e muito arroz, decidiu ser ator. Passou os
quatro anos seguintes como “artista morto de fome, literalmente”, e foi
então que ouviu falar na pesquisa da Faru. Quando acabou, voltou a atuar e
entrou para uma companhia teatral de New Hampshire que encenava
“Macbeth para crianças”, o que me apavora só de pensar. Quando apareceu
a oportunidade de voltar à Faru, ele aceitou de imediato. Atualmente, está
dividido entre opções profissionais radicalmente distintas: entrar para a
polícia de Houston, abrir uma lavanderia automática, inscrever-se na escola
de oficiais da Marinha, montar uma loja de paisagismo e tornar-se
palestrante motivacional. Como ele diz, está “na crise de um quarto da
vida”.
Segundo Joe Neigut, gerente da Faru, 30% das pessoas que se inscrevem
nas pesquisas de acamados dizem que não fazem isso apenas pelo dinheiro,
mas para participar do programa espacial. Como diz Leon, “É o mais perto
que posso chegar de ser astronauta”. No mínimo, a associação com voos
espaciais dá um certo charme à tarefa. Sabendo disso, os funcionários
pedem aos astronautas que mandem fotos com mensagens de
agradecimento. Volta e meia, aparece por lá um astronauta para entregá-las
em pessoa. Aaron já recebeu uma visita dessas, mas não se lembra do nome
do homem. Tim recebeu uma foto autografada de Peggy Whitson. (“Uma
astronauta bem do caralho”, disse ele.)
Tim voltou da cozinha. Não há jantar para mim. “Perdi alguma coisa?”,
perguntou ele.
“Perdeu”, diz Aaron. “Me mexi um pouco para a esquerda.”

O maior esqueleto do Centro Espacial Johnson pertence a John Charles,


que tem mais de dois metros de altura. Aos dez anos, ele já sabia que queria
ser astronauta. Mas seu esqueleto, mesmo sabendo disso, sabotou seu sonho
e cresceu além do permitido para a função. Charles obteve seu doutorado
em fisiologia e foi trabalhar para a Nasa. O trabalho dele consiste em fazer
tudo o que puder para proteger o corpo e os ossos dos astronautas.
Numa tarde dessas, Charles e eu conversamos na Sala de Reuniões
Lyndon B. Johnson, no edifício de relações públicas do centro espacial que
também se chama Johnson. Uma “dama de companhia” do Escritório de
Relações Públicas ficou sentada quieta num canto, como que para impedir
que Charles e eu nos lançássemos nos braços um do outro ali mesmo.
Charles devia deixar o pessoal de relações públicas de cabelo em pé. É
conhecido por dizer tudo o que pensa e está num ponto da hierarquia alto o
bastante para não ter de se preocupar com as consequências.
Como na Terra, exercícios de força são a melhor maneira de preservar os
ossos. Em gravidade zero, é claro, faz-se necessário criar o peso. A maneira
de fazer isso no espaço, problemática e dispendiosa, é dotar a estação
espacial de um ambiente rotatório, uma grande centrífuga habitável que
empurra os astronautas contra as paredes, criando gravidade artificial. (O
ator Keir Dullea é visto correndo numa delas em 2001: Uma odisseia no
espaço.) Uma alternativa mais bizarra e acessível seria simular peso
empurrando o corpo do astronauta para baixo enquanto ele corre numa
esteira. Normalmente, isso exige arreios e cordas elásticas, muitos palavrões
e irritação da pele. O especialista em perda óssea Tom Lang diz que esse
tipo de dispositivo empurra contra a esteira a pessoa que se exercita com
aproximadamente 70% do peso do corpo, cenário que ainda se traduz em
“grande perda óssea”.
Não se sabe o quanto os exercícios ajudam. “Provavelmente, exercitar-se
no espaço é melhor do que não fazer nada”, diz Charles, “mas não se sabe o
quanto pode ser útil porque nunca fizemos essa experiência.” Ninguém quer
expor um grupo de controle ao tipo de perda óssea que pode resultar da falta
total de exercício. “Se você tivesse centenas de astronautas que praticassem
diversos tipos de exercício, poderia classificá-los em grupos e verificar que
este grupo fez um pouco menos e apresentou este resultado, e aquele grupo
usou uma esteira e não bicicleta, e isso teve tal efeito. Mas não dispomos
desse grande número. Temos uma pessoa que usou esteira, uma que usou
bicicleta e depois mudou para a esteira, sendo a primeira uma mulher de
quarenta e poucos anos, e a segunda um homem na casa do sessenta. Tudo o
que se pode obter é uma espécie de média de dados agrupados. Essa média
indica que temos medidas preventivas que ainda não estão protegendo os
astronautas da maneira como gostaríamos.” Segundo Lang, os astronautas
estão voltando de períodos de seis meses na estação espacial com uma
perda óssea de 15% a 20%.
De uns tempos para cá, a Faru fez um estudo sobre as vibrações como
meio de evitar a perda óssea. Voluntários se exercitaram puxados por cordas
elásticas para uma plataforma vibratória instalada nos pés de sua cama. É o
mesmo tipo de plataforma vibratória que se vê anunciada na internet
prometendo ganho de massa muscular e óssea, redução de gordura e
abdomes chapados. Fiquei surpresa ao vê-las naquele lugar. John Charles
também. Quando perguntei a ele sobre a vibração como medida de
prevenção contra perda óssea, ele disse: “Isso acabou. Não funciona”. O
formulário de consentimento da Faru observa que o pesquisador tem uma
“relação” com a plataforma vibratória. Ajudou a inventá-la.
Dennis Carter também ficou surpreso com a pesquisa sobre vibrações.
Disse que os únicos dados promissores vieram de um estudo com animais
em que as vibrações pareciam acelerar a cicatrização de fraturas. “Mas em
animais que apresentam pouca massa óssea, isso praticamente não alterou
essa massa.”
As vibrações têm uma falsa fama há muito tempo. Publicações médicas
de 1905 a 1915 estão cheias de artigos sobre “massagem vibratória” e as
muitas doenças que ela cura. Coração fraco e rins flutuantes. Contrações
esofágicas histéricas e catarro no ouvido interno. Surdez, câncer, deficiência
visual. E uma enorme quantidade de problemas de próstata. Um certo dr.
Courtney W. Shropshire escreveu, em 1912, que estava impressionado por
constatar que com “um aplicador prostático especial, bem lubrificado,
encaixado no vibrador e introduzido no reto”, conseguia “eliminar as
secreções das vesículas seminais”. Não é de estranhar. Os pacientes de
Shropshire voltavam dia sim dia não para o tratamento, sem dúvida
estabelecendo uma relação afetiva com a máquina vibratória.
Tim e Aaron não estão participando de pesquisas sobre exercícios.
“Deixar-me atrofiar está sendo a coisa mais difícil que já fiz na vida”, diz
Tim. Até o início da pesquisa, Tim corria de cinco a oito quilômetros, três
vezes por semana. Tinha um plano de prevenção que ele mesmo criara.
“Ouvi a história de um prisioneiro de guerra no Vietnã.” Faz uma pausa
para comer gelatina. A colher bate na tigela de vidro. “Ele estava trancado
numa gaiola.” Clique, clique, clique. “Todos os dias ele jogava golfe
mentalmente, e melhorou sua marca em seis tacadas!” Recosta-se em seu
travesseiro. “Então, mentalmente, posso dar uma corrida.”
Aaron está catando pedaços de um pãozinho e ouvindo sem fazer
comentários. Vira-se para nós. “Estive fazendo agachamentos mentais.” Diz
que andou pensando em sugerir à Nasa a contratação de professores de ioga
ou monges budistas para ensinar aos astronautas como treinar a mente para
combater os efeitos da gravidade zero. Divirto-me mentalmente com a
imagem.
O carrinho do jantar está de volta, e as bandejas são retiradas. A
funcionária põe o copo de Tim sobre a mesa dele. “Você não tomou o leite
todo”, diz ela. A ingestão dos alimentos é documentada como parte da
pesquisa. Estudantes contratados para monitorar os acamados se certificam
de que eles não escondam comida debaixo do colchão ou atrás das placas
do teto. (Ambas as coisas já aconteceram.)
“Você tem de comer tudo”, diz Aaron. “Eles trazem de volta o copinho
de xarope de bordo e fazem você tomar o que sobrou.”

Peggy Whitson passou exatamente pelo que mais preocupa Dennis Carter
e John Charles. Nesse cenário, os astronautas que foram privados de peso
durante meses ou anos no espaço, comprometendo ossos e músculos, se
veem numa emergência: suportar a gravidade durante um pouso forçado,
saltar para fora da cápsula, puxar os colegas por medida de segurança. No
caso de Peggy, como já vimos, isso aconteceu em 2008. Ela e dois outros
tripulantes voltavam da Estação Espacial Internacional quando tiveram de
enfrentar um reingresso na atmosfera à velocidade de um projétil e um
pouso em 10 G. Fagulhas desprendidas durante o pouso incendiaram a
grama, e o astronauta So-yeon Yi machucou as costas.
Falei com Peggy sobre o incidente.c No dia para o qual a entrevista
estava programada, houve problemas técnicos com o sistema telefônico.
Quando ouvi a voz de Peggy na linha, já haviam se passado seis dos quinze
minutos que eu tinha. Pulei das amenidades direto para o fogo e ossos
fraturados. “Comandante, sou uma grande admiradora. Não teve medo de
que suas pernas se quebrassem quando teve de sair da cápsula Soyuz?”
“Não”, disse Peggy. Ela tinha preocupações mais urgentes. Respirar
durante a reentrada em 8 G, por exemplo, e não vomitar diante dos
agricultores cazaques no campo em que pousaram.
Em sua primeira missão na ISS, disse Peggy, ela tinha feito tanto
exercício que seus ossos ficaram mais densos do que eram antes da partida.d
Sua perda foi de menos de 1%. “Fiz tantos agachamentos que na verdade
aumentei um pouco nos quadris.” Tom Lang, que estudou o esqueleto dos
astronautas da ISS, não fica muito convencido com essas coisas. A massa
óssea total de um astronauta ao retornar pode ser muito parecida ao que era
antes da missão, mas está distribuída de maneira diversa. A maior parte do
aumento se dá em partes ósseas exigidas para sustentar o andar. Mas as
partes do quadril que podem se quebrar numa queda não estavam nem perto
do que eram antes, o que deixaria mulheres como Peggy vulneráveis a
fraturas em idade mais avançada.
Quando alguém cai, a parte superior do quadril — mais especificamente,
o colo femoral e o trocânter maior, que formam a parte superior do fêmur
— sofre o impacto de um golpe lateral. Não é essa a estrutura que se
fortalece com corridas ou agachamentos. As partes do osso exigidas pelo
andar e pelas atividades diárias se mantêm surpreendentemente bem com a
idade. O corpo tende a redistribuir massa óssea nessas áreas — à custa de
outras estruturas, inclusive aquelas sobre as quais a pessoa cai. Por esse
motivo, alguns especialistas em osteoporose acham que evitar quedas é uma
prevenção contra fratura de quadril melhor do que os exercícios de força.
Perguntei a Tom Lang se alguém já pensara na possibilidade de prevenir
fraturas simplesmente aplicando uns golpes no quadril de pessoas idosas
algumas vezes por dia. Não tão fortes a ponto de quebrar alguma coisa, é
claro, mas com energia suficiente para que o impacto estimulasse os
osteócitos a fortalecer a estrutura. Eu não esperava que ele respondesse com
uma afirmativa. Disse-me para entrar em contato com Dennis Carter na
Universidade Stanford.
“Era só uma ideia”, disse Carter quando telefonei. “Nunca construímos o
aparelho.” Ele não batia, mas apertava. “Você se sentaria numa
espreguiçadeira com um dispositivo de cada lado apertando seus quadris,
bem sobre o trocânter maior, que é o osso que recebe o golpe numa queda.”
Parece uma ideia bem inteligente, mas as empresas com que Carter
conversou não se interessaram. Será que elas acharam que as mulheres
poderiam quebrar os quadris e processá-los? “É isso. E acho que era bizarro
demais para eles.”
Seria possível fortalecer os ossos do quadril com algum tipo de queda
controlada? Mais uma vez, eu não esperava um sim. Carter contou que uma
aluna de graduação do Laboratório de Pesquisa Óssea da Universidade
Estadual do Oregon tinha estudado a questão. Como parte de sua tese, Jane
LaRiviere fazia seus pacientes se deitarem de lado, levantar-se a uma altura
de dez centímetros e cair no piso de madeira, trinta vezes em cada sessão,
três vezes por semana. Ao fim da experiência, as imagens mostraram um
aumento significativo, ainda que pequeno, da densidade óssea no colo do
fêmur daquele lado do corpo em comparação com o outro. Um dos
professores de Jane LaRiviere, Toby Hayes, acredita que se os impactos
tivessem sido um pouco mais fortes e o experimento, mais prolongado, os
resultados teriam sido mais evidentes.
Mas se examinarmos com cuidado, nada funciona muito bem. O cálcio
falha. Até certo ponto, o exercício também. Os bifosfonatos estão sob
suspeita de causar necrose da mandíbula em alguns pacientes. “A última
novidade em matéria de prevenção é a mesma de quarenta anos atrás”,
admite John Charles.
Os astronautas não se importam. “Eles querem ir a Marte”, diz Charles.
“Foi para isso que entraram neste programa.”
Peggy Whitson acredita que alguém vai arranjar uma solução médica
segura quando a missão tripulada a Marte se tornar uma realidade. O
cenário mais provável é que exames genéticos passem a integrar a seleção
de astronautas. (Há um importante componente hereditário no que se refere
a perda óssea.) Charles imagina que a Nasa recrute, para viagens a Marte,
astronautas “quase à prova de balas — pessoas que nunca tiveram pedras
nos rins, com boa densidade óssea, boas taxas de colesterol, baixa
sensibilidade à radiação…”.
Os ossos das mulheres negras são entre 7% e 14% mais densos, em
média, do que os de brancas e asiáticas. (Não tenho estatísticas para homens
negros, mas cabe supor que eles também tenham ossos mais robustos.)
Perguntei a Charles se a Nasa não deveria pensar numa tripulação negra
para a viagem a Marte. “Por que não?”, ele respondeu. “Durante décadas,
tivemos um projeto totalmente louro e de olhos azuis.”
Uma tripulação de ursos-negros seria outro meio de tratar a questão da
perda óssea. Depois de quatro a sete meses de hibernação, eles saem de suas
tocas com os ossos tão fortes quanto eram antes. Alguns pesquisadores
creem que os ursos podem ter a solução para o tratamento e a prevenção da
perda óssea. Falei com um desses pesquisadores, Seth Donahue, professor
de engenharia biomédica na Universidade Tecnológica de Michigan. Ele
disse que os ossos dos ursos hibernadores quebram da mesma forma que os
de acamados e astronautas. A diferença é que o corpo deles absorve cálcio e
outros minerais do sangue e os reaplicam aos ossos. Do contrário, o cálcio
presente no sangue deles atingiria uma concentração mortal. Isso porque
durante esses quatro a sete meses de hibernação os ursos não se levantam
nem para ir ao banheiro. Todos os minerais ósseos que são lançados na
corrente sanguínea quando os ossos se desfazem se acumulariam no sangue.
“Por isso, eles desenvolveram um mecanismo de reciclagem do cálcio.” É
por isso que não morrem. A proteção aos ossos é “uma feliz consequência”.
Donahue e outros pesquisadores estudaram os hormônios que controlam
o metabolismo dos ursos para tentar identificar algum componente que
pudesse ajudar as mulheres na pós-menopausa (e os astronautas) a
desenvolver novos ossos. Chegaram ao hormônio paratireoidiano. Uma
empresa de Donahue produz uma versão sintética desse hormônio que está
sendo testada em ratos e, se tudo correr bem, será testada em mulheres na
pós-menopausa. Até o hormônio paratireoidiano humano provoca o
crescimento dos ossos nas mulheres. É uma das maneiras mais eficazes de
aumentar a densidade óssea pós-menopausa. Infelizmente, em ratos, doses
elevadas desse hormônio provocam câncer ósseo, e por isso a Food and
Drug Administration, o órgão federal que regulamenta alimentos e
medicamentos nos Estados Unidos, restringe o seu uso a um ano e apenas a
mulheres que já tenham sofrido fraturas. Segundo Donahue, o hormônio
paratireoidiano dos ursos ao que parece não tem efeitos colaterais adversos,
então cruze as garras para que isso funcione.
Há outra razão para o interesse da Nasa pelos ursos hibernadores. Se os
seres humanos pudessem hibernar, inalando um quarto do oxigênio que
consomem normalmente, sem comer ou beber durante seis meses dos dois
ou três anos que duraria uma missão a Marte, imaginem a economia de
oxigênio, alimento e água! (Quanto menos bagagem a bordo de uma nave,
mais barato se torna o lançamento. Uma vez que atingisse a velocidade
necessária para escapar à gravidade da Terra e deixasse para trás a
resistência da atmosfera terrestre, a espaçonave praticamente deslizaria até
Marte.) Cada quilo a mais no peso lançado soma milhares de dólares ao
custo do projeto. Escritores de ficção científica roubaram essa ideia há
décadas, equipando espaçonaves fictícias com hibernáculos de temperatura
controlada de alta tecnologia.
Algum dia as agências espaciais chegaram a discutir a hibernação
humana? Sim, e continuam a fazê-lo. “O tema nunca morre”, diz John
Charles. “Só hiberna.” Charles não aposta muito nessa possibilidade.
“Mesmo que funcionasse, nós reduziríamos mesmo as provisões de uma
nave tripulada numa missão de três anos a Marte? E se o hibernáculo
pifasse e todo mundo acordasse? Quanto alimento e oxigênio extras
levaríamos, por via das dúvidas? E quando essa quantidade chega ao ponto
de anular a economia obtida com a hibernação?”
Há outra razão pela qual a coisa poderia não funcionar. Os ursos
hibernadores tiram toda a água e energia de que necessitam das reservas de
gordura que acumulam comendo sem parar antes de entrar na toca. Segundo
o Centro de Ursos da Universidade Estadual de Washington, um urso
pequeno (do tamanho de um astronauta) se entope de maçãs e bagas,
comendo o equivalente a 40% de seu peso corporal por dia — mais de trinta
quilos diários de alimento — durante esse período.
Seis meses vivendo apenas de gordura — mesmo sendo sua própria
gordura — provavelmente não seria algo muito saudável, a menos que o
corpo estivesse adaptado a isso. Fato pouco conhecido: os ursos
hibernadores têm altas taxas do mau colesterol. (Têm também taxas do bom
colesterol muito elevadas — o que talvez explique por que não há registro
de doenças cardíacas entre eles.)

Acamados não são ursos. Precisam comer, beber e excretar, e esta última
função foi a desgraça de Tim. Na Faru, cocô se faz na cama e em nenhum
outro lugar. Usar uma comadre deitado de costas é uma maneira pouco
natural e esquisita de se “fazer” (como diria minha sogra, Jeanne). Tim
sentou-se e foi flagrado pela câmera que filmava seu companheiro de
quarto. (Ele não tinha puxado a cortina daquele lado porque Aaron não
estava presente.) “Não pensei que isso tivesse tanto impacto”, disse-me ele.
“Mas acabou bagunçando os dados científicos.”e Tim foi convidado a
deixar o experimento.
Leon não tem nenhum problema com esse aspecto da condição de
acamado. “Depois das primeiras vezes, isso vira uma coisa natural. E eu
vou… um montão. Pelo menos quatro ou cinco vezes mais que qualquer
outro voluntário aqui. No fim de três meses, isso dá cerca de 260 vezes [...]”
Essa é uma das coisas em que os acamados são diferentes dos astronautas.
Com acamados, não há tabus quanto aos temas de entrevista.
Isso inclui sexo. Joe Neigut havia me mostrado a área de banho, um
ambiente azulejado do tamanho de uma baia de estrebaria, guarnecido de
uma maca à prova d’água. “Então o banho”, perguntei, “é o único…
momento de privacidade para eles, entende o que quero dizer?”
“É…”, respondeu Joe. E começou a falar sobre o novo chuveiro, que
tinha substituído um jato industrial parecido com os que se usam nos
restaurantes para lavar pratos. Eu não estava bem certa de que ele tinha me
entendido, por isso perguntei a Leon. Ele confirmou que o chuveiro era
“onde a maioria faz isso”. Como acontece com os astronautas em órbita, os
voluntários da Faru não recebem orientação formal sobre masturbação. Mas
Leon, sendo Leon, perguntou ao psicólogo da unidade. “Quero dizer, se
fosse uma coisa que pusesse o teste a perder, ou algo assim, eu não faria.” O
psicólogo corou e deu-lhe sinal verde.
Numa biografia, o astronauta Michael Collins conta o caso de um médico
da era Apollo que recomendava masturbação regular durante missões mais
longas como prevenção de infecções prostáticas. O médico da missão de
Collins à Lua “decidiu ignorar o conselho”, e desde então a atitude básica
quanto à pressão sexual humana tem sido ignorá-la. A agência espacial
russa faz a mesma coisa. O cosmonauta Alexandr Laveikin contou-me que
também ouvira dizer que a abstinência prolongada pode causar infecções de
próstata, mas que a agência espacial finge que o problema não existe. “Fica
a seu critério o modo de lidar com o assunto. Mas todo mundo faz, todo
mundo entende. Não é nada de mais. Meus amigos perguntam: ‘Como se
faz sexo no espaço?’. Eu respondo: ‘Com a mão!’.” E no que se refere à
logística? “Há meios para isso. E às vezes acontece por si só quando a gente
está dormindo. É natural.” John Charles me contou que tinha ouvido falar
na relação entre a saúde da próstata e a “manoestim” — na Nasa tudo tem
uma abreviatura —, mas nunca ouvira um debate formal, pró ou contra a
masturbação orbital.
Nem sobre sexo a dois, aliás. Aqui na Faru, o assunto aparece nas regras,
embora indiretamente. Os visitantes não podem sentar-se ou deitar-se nas
camas. “Minha mulher não deu bola para isso”, graceja Leon. “Um pouco
de mim saiu daqui!” Eu tinha passado pelo quarto dele de novo, para me
despedir. Ele queria me mostrar fotos da família no computador.
“Já vou indo. Sei que você tem…”
Leon sorri. “Nada para fazer?”

a As famílias dos astronautas se revezam na escolha. Na era Gemini, o Controle de Missão


transmitia música, mas nem sempre agradava, como indica este diálogo com a Gemini VII:
CAP COM [comunicador de cápsula]: O que estão achando da música?
COMANDANTE FRANK BORMAN: Desligamos. Estamos um pouco ocupados e desligamos por algum
tempo.
CAP COM: Certo. Escolheram umas músicas havaianas legais para mandar a vocês.
b Exemplo raro de economia silábica em nomes de revistas médicas. Só a Gut [revista
internacional de gastroenterologia e hepatologia publicada na Grã-Bretanha; gut significa “intestino”]
é digna de maior louvor. Confiram: American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics,
Official Publication of the American Association of Orthodontists, Its Constituent Societies, and the
American Board of Orthodontics!
c Como todas as atividades dos astronautas, as entrevistas são planejadas e cronometradas com
exatidão. São como pequenas missões espaciais. Minha missão com Peggy foi abortada e
reprogramada duas vezes. Quando enfim chegou a hora, minha chamada foi transmitida por uma
telefonista à cabine onde Peggy deveria estar. Passou um tempo. “Não estou recebendo resposta”,
disse a telefonista. “Para que horas sua entrevista está programada?” Eu disse que para a meia-noite e
meia. “O.k., você está adiantada”, disse ela. “Ainda faltam dois minutos.” Você vai ouvir o
comentarista da Nasa TV dizer coisas como “O turno de sono está programado para a 1h59 da
madrugada. Horário Central. A tripulação deve acordar às 9h58. Horário Central”. Remédio para
dormir? Com certeza.
d Diz-se com frequência que o crânio dos astronautas fica mais espesso em gravidade zero. Supus
que isso acontecesse porque os fluidos mais abundantes na metade superior do corpo aumentam o
cérebro e o corpo reage a essa maior pressão espessando o crânio — da mesma forma como reage ao
aumento da pressão sanguínea espessando as artérias. “Hipótese interessante”, comentou o
fisiologista John Charles. Mas então ele me disse que não é verdade que o crânio dos astronautas
fique mais espesso. Pelo menos não literalmente. É comum que os astronautas apresentem “burrice
espacial” — distúrbio cognitivo causado por “privação de sono, cronogramas apertados e todas as
outras afrontas com que os sobrecarregamos”.
e Com que frequência voluntários de pesquisa trapaceiam? Depois de dar uma olhada em
comentários na revista Guinea Pig Zero, eu diria que com muita frequência. “Todo mundo abre suas
pílulas para ver se são de maisena”, diz um voluntário de uma pesquisa sobre medicamentos a
respeito dos grupos de controle supostamente cegos.
12. O CLUBE DOS TRÊS GOLFINHOS

Acasalamento em ausência de gravidade

Sean Hayes estava tirando sua roupa de mergulho quando telefonei. Ele é
biólogo marinho e escreveu uma dissertação sobre estratégias de
acasalamento das focas-comuns. A flutuação na água é bem parecida com a
flutuação em gravidade zero — tanto que os astronautas treinam as tarefas
que desempenharão no espaço numa enorme piscina. E como é mais fácil
encontrar um especialista em focas (caramba, focas!) disposto a falar sobre
sexo em ausência de peso do que fazer a Nasa tocar no assunto, voltei-me
para os biólogos marinhos.
“Elas são muito discretas”,a diz Hayes sobre as espécies da família dos
focídeos (ao contrário de suas primas, da família dos otarídeos, que
acasalam na praia e equilibram bolas no focinho). Hayes inventou um
equipamento especial para espionar focas-comuns selvagens e mesmo assim
nunca conseguiu ver a euforia flutuante dos pinípedes. Em seu hábitat
natural, a foca-malhada, da mesma forma que os homens do espaço, nunca
foi vista no ato. Se você quiser saber como é, precisa pôr um casal dessas
focas numa piscina. Hayes mandou-me um estudo escrito por dois
pesquisadores da Johns Hopkins que fizeram exatamente isso.
O que os biólogos observaram confirmou uma desconfiança minha:
quando se trata de intercurso sexual, a gravidade é cúmplice. “O macho
passa a maior parte do tempo segurando a fêmea com firmeza, tentando
assumir a posição de coito e nela permanecer”, disseram os pesquisadores.
Seus dentes funcionam como uma terceira mão, mordendo as costas da
fêmea para evitar que a flutuação os separe.b Uma foto mostra o casal no
fundo da piscina, tentando contrariar a terceira lei de Newton: a cada ação
corresponde uma reação igual e contrária. Elimine ou reduza muito a força
da gravidade: o empuxo vai levar o objeto amado para longe.c
Ao contrário do que ocorreu com a foca-malhada, os astronautas não
foram postos numa piscina para que se visse como eles fazem. Apesar do
que disse o falecido G. Harry Stine no livro A vida no espaço:
Na década de 1980, realizaram-se experimentos clandestinos na calada
da noite no tanque de simulação de flutuação neutra em ausência de
gravidade do Centro Espacial George C. Marshall, em Hutsville,
Alabama. Os resultados experimentais mostram que seres humanos
podem copular em ausência de gravidade. No entanto, permanecer juntos
é um problema. Os pesquisadores clandestinos descobriram que era bom
ter uma terceira pessoa para empurrar na hora certa para o lugar certo. Os
pesquisadores anônimos […] descobriram que essa é a solução adotada
pelos golfinhos. Um terceiro golfinho está sempre presente durante o
processo de acasalamento. Isso levou à criação do equivalente espacial
do Mile High Club da aviaçãod conhecido como Clube dos Três
Golfinhos.
Stine é mais conhecido por seus livros de ficção científica, e parecia não
conseguir abandonar seus hábitos ao escrever não ficção. Ou talvez alguém
do Centro Marshall tenha lançado o boato? Escrevi para o escritório de
relações públicas de lá para ver se alguém poderia esclarecer a origem do
caso. Arredios como esquilos. “Oi, Mary. Estou mandando cópia deste e-
mail a nosso historiador, Mike Wright, já que ele provavelmente poderá lhe
proporcionar informação histórica sobre o Laboratório de Flutuação Neutra.
Em princípio a resposta é sim, tivemos um Laboratório de Flutuação Neutra
no Centro Marshall, mas ele foi fechado (Mike pode dar mais dados) e o
trabalho passou a ser feito no Centro Espacial Johnson, em Houston.” Era
como se meu e-mail não tivesse sequer mencionado sexo ou G. Harry Stine.
A julgar por seu nível de exatidão em relação aos golfinhos, Stine não é
confiável. Nas palavras de Randall Wells, o mais conhecido especialista em
golfinhos dos Estados Unidos, “Apenas dois golfinhos são necessários para
o acasalamento”. Depois de certa insistência minha, Wells observa que às
vezes um segundo macho ajuda a encurralar a fêmea, mas nunca se viu que
desse algum empurrão para facilitar o coito. Aliás, esse terceiro parceiro é
mesmo desnecessário porque o pênis do golfinho é preênsil.e A
pesquisadora Janet Mann, da Universidade de Georgetown, explicou que o
macho pode “enganchar-se na fêmea” e mantê-la junto de si durante os
poucos segundos necessários para terminar seu serviço. No entanto, ela
desconfia que os machos precisam dessa vantagem não tanto porque seja
difícil manter-se acasalado flutuando, mas porque normalmente as fêmeas
se esquivam e tentam escapar. A julgar pelo que ouvi a respeito de
astronautas do sexo masculino, no caso deles não é esse o problema.
Com relação ao experimento descrito por Stine, ele faz pouco sentido.
Por que funcionários da Nasa se arriscariam a perder o emprego se podiam
fazer o mesmo “estudo” na piscina do quintal? E por que alguém precisaria
de um experimento formal? Como me disse por e-mail o astronauta Roger
Crouch, se um casal quisesse fazer sexo no espaço poderia simplesmente
fazer o que os casais fazem na Terra: “é só começar e melhorar com a
experiência”.
Quanto à afirmação de Stine sobre a dificuldade que os participantes
teriam de “permanecer juntos”, Crouch mostrou incredulidade. “Nada
impede o uso de braços e pernas para manipular ou segurar o parceiro. Uma
vez que um dos parceiros tenha enroscado firmemente os pés ou o corpo”
— e aqui ele sugere o uso de silvertape se tudo o mais falhar — “o resto
depende da imaginação dos parceiros. Nem o Kama Sutra poderia cobrir
todas as possibilidades.”
Escrevi a Crouch a respeito de uma outra pilhéria sobre sexo espacial na
internet, a Publicação Nasa 14-307-1792. Trata-se de um “sumário pós-
voo” forjado, produzido por volta de 1989, sobre os resultados da
exploração supostamente realizada na missão STS-75, de “abordagens das
relações maritais continuadas num ambiente orbital de gravidade zero”. Foi
a primeira vez que vi uma fraude que citava outra fraude — os
“experimentos similares realizados num tanque de flutuação neutra” de
Stine.
Com uma “barreira pneumática amortecedora de som” erguida entre os
deques para obter privacidade, um casal de astronautas teria experimentado
dez posições, quatro delas “naturais” e seis com restrições mecânicas. A
posição no 10 foi uma das duas selecionadas como “as mais satisfatórias”:
“Cada um dos parceiros segurando a cabeça do outro entre suas coxas”. O
relatório concluía com uma recomendação para triagem de futuros casais de
astronautas com base em “sua capacidade de aceitar ou adaptar-se às
soluções usadas nos testes 3 e 10” e com uma referência a um próximo
vídeo de treinamento sobre sexo para astronautas. Ainda que pareça
mentira, com um intervalo de anos, dois autores de livros sobre o espaço
morderam a isca e citaram o Documento 14-307-1792 como se fosse
autêntico. Uma rápida visita ao site da Nasa teria mostrado que a missão
STS-75 foi realizada em 1996, sete anos depois do surgimento do
“documento”, e, a propósito, tinha uma tripulação integralmente masculina.

Dezenas de astronautas já voaram em tripulações mistas. A tripulação de


um ônibus espacial incluiu um casal (que tinha se apaixonado durante o
treinamento e se casou, sem avisar à Nasa, pouco antes da missão). É difícil
imaginar que todos esses homens e mulheres, sem exceção, tenham
resistido à tentação. A privacidade pode ser difícil numa lançadeira
espacial, mas não em estações espaciais como a Mir e a ISS. Valeri Poliakov
e a encantadora Elena Kondakova passaram cinco meses juntos na Mir.
“Torturamos Valeri com perguntas sobre se eles tinham feito sexo”, contou-
me o cosmonauta Alexandr Laveikin. “Ele só dizia ‘Não me façam essas
perguntas’.” Elena Kondakova é casada com o cosmonauta Valeri Riumin, o
que explica por que Poliakov teve de manter fechado o zíper de seu traje
espacial (ou sua boca). Laveikin mencionou um provérbio russo que ao
mesmo tempo perde e ganha alguma coisa na tradução: “É no mistério que
o amor esconde suas setas”. Ou, como diz James Oberg, especialista em
astronáutica (tomando de empréstimo um velho aforismo militar): “O que
dizem, não sabem; e o que sabem, não dizem”.
A Nasa não trata especificamente do sexo em suas normas de conduta.
Seu Código de Responsabilidade Profissional do Astronauta traz um vago
apelo, à moda do juramento do escoteiro: “Lutaremos para evitar a
aparência de impropriedade”. Para mim, isso significa apenas “Não se deixe
flagrar”. O Código de Conduta da Tripulação da ISS — que na verdade é
parte do Código de Regulamentos Federais dos Estados Unidos — é
igualmente reservado: “Nenhum membro da tripulação da ISS deve […] agir
de forma que resulte em, ou passe a impressão de (1) dar tratamento
preferencial indevido a qualquer pessoa ou entidade no desempenho de
atividades da ISS [...]”. Essa é uma forma de ver a paquera sexual: tratamento
preferencial indevido.
Na verdade, nada precisa ser explicitado ou objeto de legislação. A Nasa
é financiada pelos contribuintes. Da mesma forma que senadores e
presidentes, os astronautas são servidores públicos de alta visibilidade.
Tropeços sexuais e qualquer quebra da etiqueta moral não são relevados
com facilidade. Saem nos jornais. Vexame público. Corte de verbas. O
astronauta sabe disso. Mesmo que nenhuma palavra sobre uma ligação
amorosa em gravidade zero saia dos limites da Nasa, os envolvidos sabem
que nunca mais voarão.
Assim, da mesma forma que é difícil crer que nenhum astronauta tenha
praticado sexo no espaço, é difícil crer que algum deles o tenha feito. Tentei
explicar isso a meu agente, Jay: os anos de educação e treinamento. A
ansiedade de não saber se haverá outro voo. O extraordinário
comprometimento e a devoção à carreira. Há muita coisa em jogo, muito a
perder. Jay me ouviu e depois disse: “Deve valer a pena, não?”.f
Todo um novo ramo de negócios surgiu com base nas fantasias de
pessoas como meu agente. O presidente da Sociedade de Turismo Espacial,
John Spencer, imagina um “superiate” em órbita imitando uma “cabaninha”
e uma banheira em gravidade zero. O fundador da Budget Suites America,
Robert Bigelow, agora à frente da Bigelow Aerospace em Las Vegas,
começou a testar e vender componentes infláveis para uma “estação
espacial comercial” que seria arrendada para pesquisa, teste de produtos
industriais, férias no espaço e luas de mel.g Bigelow espera inaugurar seu
negócio em 2015.
Teoricamente, não seria preciso esperar pelos quartos de hotel de
Bigelow no espaço nem pelo superiate de Spencer. O que fascina as pessoas
no referente a sexo no espaço não é a altitude a que se encontram os
participantes, mas o fato de não terem peso. Sendo esse o caso, um voo
parabólico poderia resolver a parada, embora você tivesse apenas intervalos
de vinte segundos espremidos entre períodos em que o sexo seria arriscado
do ponto de vista clínico, já que o casal teria o dobro do peso habitual.
Desde 1993, a Zero G Corporation oferece voos parabólicos em sua frota
de Boeings 727. Teria algum dos sem-peso ficado também sem-calça? O
homem com quem falei, e que depois disso saiu da empresa e prefere ficar
no anonimato, disse que não havia possibilidade alguma de fazer sexo no
avião. A Zero G começou fazendo um contrato com a Nasa para transportar
estudantes de graduação e professores em voos de gravidade reduzida para
promover o programa espacial entre os estudantes. Se a empresa começasse
a permitir que as pessoas fizessem sexo no avião, a Nasa tenderia
fortemente a não renovar o contrato. Além disso, o casal interessado teria de
alugar o avião inteiro, a um custo de 95 mil dólares.
Não fui a primeira a perguntar sobre isso. Alguém do Mile High Club já
procurara a Zero G “em muitas ocasiões” com o propósito de alugar o
avião. Mas esse não é um clube formal com regras e deveres, e sim um site
da internet onde pessoas que “aderiram ao clube” apenas pelo fato de terem
feito sexo num avião podem postar seus casos. Se alguém já tivesse feito
sexo num voo parabólico, provavelmente essa organização saberia disso.
“Não sabemos se alguém já tentou essa proeza”, diz Phil, o homem que
responde aos e-mails enviados ao site do Mile High Club. “Se você
encontrar o que está procurando, por favor nos avise para que possamos
noticiar o fato no site.” Phil anexou duas fotos de um casal de jovens
paraquedistas anônimos fazendo sexo em queda livre. Sua posição era bem
convencional — para fazer sexo, não para saltar de paraquedas: homem
sentado, mulher de pernas abertas. A única concessão às inusitadas
circunstâncias aerodinâmicas era que os braços do homem estavam
lançados para trás para garantir a estabilidade. Divertido, mas não muito
bom como analogia de gravidade zero. O vento açoitava com força as
costas nuas do homem, que funcionavam como uma superfície, opondo
resistência para que o casal se mantivesse colado. Fiquei curiosa,
imaginando que o homem poderia ter acabado com uma crise de flatulência
devido ao impacto de ar, mas a atividade sexual não me interessou muito.
Só quem trabalha com pornografia teria motivos aceitáveis para bancar a
despesa de alugar um avião inteiro para montar um espetáculo de sexo em
ausência de gravidade. A Playboy procurou a Zero G Corporation, e o
mesmo fez um produtor da série Girls Gone Wild. “Você não vai acreditar
no quanto eles insistiram e no quanto ofereceram”, disse a pessoa que
contatei na Zero G a respeito da Girls Gone Wild. O produtor e a tripulação
acabaram alugando um avião na Rússia, mas ninguém fez sexo. Só se veem
imagens de garotas com os peitos empinados, desta vez ainda mais
empinados pela ausência de gravidade.
Meses depois, folheando uma revista europeia chamada Colors, vi
referência a um filme pornô de 1999 chamado Experiência em Urano cujo
produtor teria alugado um jatinho para um voo parabólico. “Quando o avião
mergulhou em direção à terra, houve o tempo exato para filmar a cena de
cópula.” A estrela do filme era uma atriz tcheca chamada Silvia Saint. Teria
sido ela o primeiro ser humano a ter um intercurso em ausência de peso?
Embora Silvia Saint tivesse uma forte presença na internet, pelo endereço
de e-mail não manda resposta. Uma conhecida que escreve uma coluna on-
line sobre sexo, muito lida, sugeriu que eu procurasse um “relações-
públicas para adultos”, que ela conhece, chamado Brian Gross. (Como não
sou adulta, achei graça não só no nome como nas atribuições do cargo,
imaginando uma categoria alternativa de “relações-públicas para crianças” e
esperando que algumas delas trabalhassem na Nasa.) Uma olhada na lista de
clientes do senhor Gross leva a crer que é um homem de grande
versatilidade, tendo sido representante, num período ou outro, tanto da ABC
News quanto do Booble, a ferramenta de busca adulta. O senhor Gross deu
uma pista que me levou a outra pessoa, e esta disse que Silvia Saint tinha
saído do ramo havia cinco anos, “voltou para a República Tcheca e sumiu
da face da Terra”.h
Próxima parada: Berth Milton, o homem cuja empresa, a Private Media
Group, sediada em Barcelona, produziu Experiência em Urano. Afável pai
de família e dono de um sotaque impossível de identificar, Milton
conseguiu que eu baixasse seus filmes sobre Urano (é uma trilogia) e
prometeu procurar uma pista de Silvia Saint. O avião em que ocorreu o ato
sexual histórico, disse, pertencia a uma frota de jatinhos corporativos na
qual ele tinha uma participação.
“O senhor pediu ao piloto de um jato corporativo para voar em
parábolas?”, perguntei.
“Exatamente.”
“O piloto já tinha feito isso antes?”
“Não.” A informação era surpreendente. Mas Milton continuou falando
sobre o desgaste dos motores de jatos e de como o avião ficou dois dias em
terra depois disso para inspeção e manutenção, e preferi acreditar nele.
Milton não estivera no voo, de modo que não podia dar detalhes das
cenas em gravidade zero. Afinal, isso acontecera dez anos antes, e nessa
época a Private Media lançava dez filmes por mês. Ele se lembrava do
cinegrafista, que se destacava por ter trabalhado, certa vez, para Ingmar
Bergman.
Milton acrescentou que não apreciava a arte de Bergman. “Ganhou um
monte de prêmios, mas ninguém via os filmes dele. É muito depressivo.
Não diverte.”
Falei em Fanny e Alexander.
“O.k., esse deve ser o único filme que você consegue ver inteiro. O resto
é horrível.”
Tenho de admitir que me diverti mais com Experiência em Urano do que
com O sétimo selo. O filme começa com um cosmonauta nu sentado numa
mesa de exame na agência espacial russa. Um eletrodo branco está colado
em seu peito, como um adesivo de nicotina. É uma cena estranha, já que ele
está ali para tirar uma amostra de sêmen. Na sala ao lado, homens de queixo
duplo da agência espacial russa discutem um experimento ultrassecreto
“para determinar de que modo a gravidade zero afeta a produção de
esperma”. Corta para uma loura vestida com um jaleco branco apertado,
tendo um tubo de ensaio entre os dedos de unhas bem pintadas. “Olá”, diz
ela. “Que belo membro você tem aí!”
Avancei rapidamente até o fim dessa cena e de uma outra que se passa
em dependências da Nasa (aqui pronunciada “Nassau”), na qual ficamos
sabendo de que modo a agência seleciona suas estagiárias do sexo feminino.
(Parece que a graduação em ciências aeroespaciais não tem a menor
importância.) Parei de avançar o filme no momento em que a ação
transcorre em gravidade zero. Dois ônibus espaciais em órbita, um russo e
um americano, começaram a fazer uma manobra de acoplamento barriga
contra barriga. Até as naves estão fazendo sexo.
A escotilha que separa as duas naves está entreaberta e as tripulações
estão sem seus trajes espaciais. Silvia Saint se mantém na vertical, subindo
e descendo como se estivesse se banhando num mar encrespado. Seu rabo
de cavalo pende às suas costas, e diante dela pendem outras coisas. Sem
gravidade, as coisas não ficam penduradas. Isso não foi filmado em
gravidade zero! As pernas dos atores estão ocultas atrás de um console; eles
apenas se erguem nas pontas dos pés e voltam a baixar, balançando os
braços no ar.
Um press release sobre a trilogia menciona uma única tomada “em
imponderabilidade total”, em Experiência em Urano 3. Levantei-me do sofá
para ejetar o número 2, mas não consegui. Uma orgia astronáutica, liderada
por um certo comandante Wilson, ganha vida na tela gigante do Controle de
Missão. Está sendo transmitida para o mundo inteiro. Escândalo e caos! A
Nasa é fechada. O presidente americano está ao telefone. O terno é grande
demais para ele, que está trabalhando num quarto de motel ordinário. “É
coisa da KGB! Posso ver o dedo deles nisso.”
O comandante Wilson e Silvia Saint continuam a violar o Código de
Conduta das Tripulações da Nasa no episódio 3. Talvez seja coisa da minha
imaginação, mas o comandante Wilson parece mais bem-dotado do que nos
episódios 1 e 2. Seria efeito da ausência de peso? Sem a gravidade para
puxar o sangue para a metade inferior do corpo, um volume maior
permanece na metade superior. Os peitos ficam maiores, e informação
anedótica sugere que os pênis apresentam o mesmo efeito bomba.
“Tive uma ereção tão intensa que chegou a doer”, escreveu o astronauta
Mike Mullane em A bordo de um foguete. “Eu poderia ter perfurado uma
placa de criptonita.”
Já o astronauta Roger Crouch disse que “ouvi outros dizerem exatamente
o contrário”, tendo o cuidado de deixar sua própria broca fora disso. Recorri
a John Charles, fisiologista da Nasa, como árbitro. Ele me disse que
segundo Buzz Aldrin, os astronautas da Mercury e da Gemini relataram
uma clara ausência de atividade na região. “Eles vão dar um prêmio ao
primeiro homem que mostrar uma reação. Mas como provar o fato?”
Charles pensou um pouco. Ele concordava com Aldrin e Crouch. E tinha a
ciência médica do seu lado. A linha divisória entre a parte do corpo que
recebe mais fluidos e a parte que recebe menos fica na região do diafragma.
É chamada de ponto de indiferença hidrostática. “Os penduricalhos
masculinos estão abaixo desse ponto”, diz Charles, “e portanto são
provavelmente drenados e não inflados.”
Isso poderia ter criado um problema para o elenco masculino de
Experiência em Urano. Mas não foi o que aconteceu, imagine só por quê:
nada daquilo foi filmado em gravidade zero. O que o cinegrafista fez foi
filmar a ejaculação do comandante, deitado de costas, e depois virar a
imagem para cima a fim de dar a impressão de flutuação. Por acaso eu sei
como se veria “uma cena de ejaculação em ausência total de gravidade”. E
sei disso porque li um estudo da Nasa de 1972 chamado “Algumas
propriedades dos alimentos fluidos em gravidade nula”, e entre esses
alimentos havia pudim de caramelo e sopa de batata. O estudo trazia uma
versão de um nutricionista da ejaculação em gravidade zero: uma
demonstração de como um fluxo de leite “se transforma rapidamente numa
esfera perfeita”. Isso não aconteceu com o pudim de caramelo do
comandante Wilson.
Um e-mail acusador, embora afetuoso, dirigido a Berth Milton não
obteve resposta.

Embora seja improvável que uma pesquisadora de bioastronáutica


masturbasse o comandante para extrair uma amostra de sêmen — ou que
antecedesse a operação com a fala “Olá, que belo membro você tem aí!” —,
a ideia de uma agência espacial estudando os efeitos da ausência de peso
sobre o esperma é bastante válida. Se o objetivo da exploração espacial
tripulada é nos preparar para missões fora da Terra cada vez mais longas, as
agências espaciais vão precisar pesquisar os efeitos da gravidade zero sobre
a reprodução humana — não sobre o intercurso, mas sobre suas
consequências. Uma razão autêntica para o desconforto das agências
espaciais quanto à prática sexual por astronautas é que ninguém sabe o que
espera um embrião concebido no espaço. Fora da proteção da atmosfera
terrestre, os níveis de radiação cósmica e solar aumentam
significativamente. Células em processo de divisão são extremamente
sensíveis à radiação, portanto os riscos de mutação e abortamento também
aumentam.
A radiação é preocupante mesmo antes do início da divisão celular. Há
um debate oficial na Nasa sobre a necessidade de congelamento de óvulos
de astronautas do sexo feminino antes de voos prolongados. Um desses
estudos sugere que a calça do traje espacial masculino seja forrada de “um
escudo protetor de órgãos […] para os testículos”. (John Charles diz que a
Nasa não adotou a “colhoneira extraterrestre”, pelo menos até agora.)
Estudos realizados com vítimas de chuva radioativa proveniente das
bombas atômicas no Japão durante a Segunda Guerra Mundial levam a crer
que viagens curtas ao espaço não causam infertilidade. Astronautas que
voltaram de missões espaciais de seis meses de duração não parecem ter
dificuldade para conceber na volta à Terra. Mas os riscos da radiação são
cumulativos. Quanto mais tempo você ficar lá, maiores são eles. É por isso
que os astronautas selecionados para missões a Marte de dois a três anos de
duração provavelmente serão, como diz John Charles, gente mais velha.
“Eles já tiveram filhos e morrerão naturalmente antes de desenvolver um
câncer.”
Seria possível a concepção de mamíferos em gravidade zero? Não se
sabe. Em 1988, a Agência Espacial Europeia pôs espermatozoides de touro
em órbita a bordo de um foguete para analisar de que forma a gravidade
zero afetaria sua motilidade. Os espermatozoides se deslocavam mais
rápido e com mais facilidade em zero G, o que parece indicar que a
imponderabilidade aumenta a fertilidade. Foi então que surgiu Joseph Tash
e a ejaculação de ouriços-do-mar. Tash descobriu que uma das enzimas que
afetam a motilidade dos espermatozoides — a que diz a eles que parem de
agitar a cauda — era ativada mais devagar do que de costume em zero G.
Isso por si só não é uma grande coisa. Mas se a imponderabilidade atrasava
a ativação de uma enzima, preveniu Tash, poderia atrasar a ativação de
outras — inclusive daquela que prepara o espermatozoide para depositar
seus pacotes de DNA. Os óvulos também podem ser engambelados. O
sexólogo britânico Roy Levin supõe que, em gravidade zero, pode ser
difícil ou impossível que o óvulo entre na tuba uterina e percorra seu trajeto
através dela.
Por que não pôr ratos em órbita para ver o que acontece? A agência
espacial soviética fez isso. Em 1979, um grupo de ratos foi lançado com um
biossatélite não tripulado. Após o lançamento, uma divisória subiu
automaticamente, permitindo que os machos passassem ao outro lado.
Nenhuma das fêmeas voltou prenhe à Terra, embora haja indícios de que a
concepção ocorreu. “O estudo indica que algumas das fases iniciais deram
errado”, diz April Ronca, obstetra e ginecologista que estudou a gravidez e
o parto de mamíferos em condições de gravidade zero no Centro de
Pesquisas Ames da Nasa antes de se transferir para a Escola de Medicina da
Universidade de Wake Forest. “Talvez a placenta não consiga se formar.
Talvez a implantação no útero não se realize da forma adequada. Qualquer
ponto do processo pode ficar comprometido pela ausência de gravidade, de
formas que jamais previmos. Não sabemos nada sobre isso.”
Deixando de lado os perigos da radiação, uma gestação em gravidade
zero pareceria, no domínio intuitivo, ser menos problemática. Dado que
mulheres grávidas às vezes devem permanecer de cama — um equivalente
popular da gravidade zero, como já vimos — e que o feto flutua num
líquido (outro equivalente da gravidade zero), a imponderabilidade não
representaria, portanto, uma ameaça ao feto em desenvolvimento. April
Ronca enviou ratazanas prenhes ao espaçoi nas duas últimas semanas de
gestação. Dois dias depois do pouso, elas deram à luz. (A Nasa preferiu não
promover partos no espaço, sobretudo por questões de logística. Alguém
teria de inventar um suporte para o parto das fêmeas e um berçário em que
os bebês fossem impedidos de flutuar e se afastar da teta.) Afora alguns
problemas de equilíbrio vestibular de menor importância, os recém-
nascidos eram normais.
Só o nascimento propriamente dito não foi normal, mesmo as mães já
estando de volta do espaço nessa ocasião. As fêmeas que passaram duas
semanas no espaço têm contrações uterinas mais escassas e mais débeis. Na
opinião de April Ronca, essa diferença é perigosa. As contrações
desempenham importante papel na adequação de um recém-nascido à vida
extrauterina. A compressão exercida sobre o feto pelas paredes vaginais
causa uma poderosa liberação de hormônios do estresse nos fetos; são os
mesmos hormônios da reação de lutar ou fugir (reação de estresse agudo)
que leva os adultos a atos de extrema potência. “Essa onda hormonal parece
ser muito importante para desencadear o funcionamento dos sistemas
fisiológicos. De repente o recém-nascido tem de respirar por si próprio,
precisa descobrir como se suga um mamilo. Se não houver contrações
suficientes, a liberação de hormônio é menor e o feto tem mais
dificuldades.” Estudos já mostraram que, comparados aos bebês que
nascem de parto vaginal, os nascidos por meio de cesárea planejada, sem
contrações, correm mais riscos de apresentar problemas respiratórios e
hipertensão arterial, levam mais tempo para expelir líquidos pulmonares e
mostram retardo no desenvolvimento neurológico. Em outras palavras,
submeter o bebê a um estresse parece fazer parte dos planos da natureza.
(Por esse motivo, April Ronca condena também o parto na água.)
Fiquei surpresa ao constatar que em mais de trinta anos de laboratórios
científicos orbitais tenha sido feito tão pouco trabalho. Seria por
conservadorismo institucional? Melindres masculinos a respeito de questões
obstétricas? April Ronca acha que é mais uma questão de prioridades que
de escrúpulos. “Não sabemos muita coisa sobre os efeitos da
imponderabilidade sobre todos os sistemas básicos do corpo — ósseo,
muscular, cardiovascular. Sabemos ainda menos sobre o cérebro. A
reprodução não está no começo da lista.”
E agora o dinheiro se foi. O programa de ciências biológicas da Nasa
acabou. Por pouco não escrevi “morreu na praia”, mas me contive. O último
estudo biológico importante da Nasa sobre mamíferos subiu a bordo da
lançadeira espacial Columbia em 2003. Os ratos morreram com a
tripulação. Não havia nada que se pudesse fazer para salvá-los, embora o
mesmo talvez não possa ser dito sobre os astronautas.

a Você também seria, se entre suas preliminares figurasse a emissão de “sons de porta rangendo”
e você precisasse vir à tona para “manter contato visual enquanto um arqueja na cara do outro”.
b A lontra-do-mar dá outras provas das dificuldades do sexo em gravidade reduzida. Para ajudar a
manter a fêmea no lugar, o macho costuma puxar a cabeça dela para trás e segurar-lhe o nariz com os
dentes. “Nossos veterinários tiveram de fazer rinoplastia em algumas das fêmeas”, diz Michelle
Staedler, coordenadora de pesquisa sobre lontras-marinhas do Aquário da Baía de Monterey. (O sexo
pode ser traumático também para o macho, vítima de ataques aéreos de gaivotas que confundem seu
pênis ereto com alguma nova iguaria oceânica e aplicam-lhe bicadas.)
c Essa é sem dúvida a razão pela qual Steve “Caçador” Hunt, o homem cujas fotos e vídeos
aparecem em underwatersex.net, preferiu deixar de lado a flutuabilidade neutra e “submergir até um
banco de areia situado a uns dez metros de profundidade” para seu encontro “Mergulhadores Nus”
com uma anônima “dona de casa solitária e entediada”. Diz Steven: “Você é capaz de imaginar todas
as posições que pode praticar sem gravidade?”. Vai precisar, porque Steven ensaia as mesmas velhas
posições que você pode ver num tanque de mergulho, só que com uma nada atraente máscara de
mergulho distorcendo o rosto.
d O Mile High Club é o grupo informal a que passa a pertencer o casal que tem relações sexuais
num avião a pelo menos uma milha de altitude. (N. T.)
e Os golfinhos são capazes de usar o pênis, literalmente, para segurar coisas e até mesmo, como já
aconteceu, pessoas que pagaram para nadar com eles. “Houve casos em que machos em cativeiro
[…] seguraram uma pessoa pelo tornozelo com o pênis”, disse Janet Mann, e por esse motivo os
machos acabaram sendo retirados da maior parte desse tipo de entretenimento. A darmos crédito ao
site Sex with Dolphins, as fêmeas também fazem isso. “De repente, ela resolveu segurar meu pé com
a abertura genital”, diz o autor, e explica que as fêmeas não só têm fendas vaginais musculosas como
podem “manipular e transportar objetos com elas”. Que maravilha para quem não tem pernas! Eu
quis perguntar a Janet Mann que coisas já se viu golfinhos carregarem com os órgãos genitais, mas a
essa altura ela tinha parado de responder meus e-mails.
f Esse é o mesmo homem que, depois de ver uma foto panorâmica de uma belíssima e
inesquecível paisagem marciana, observou: “Parece a periferia de Las Vegas”. É engraçado que ele
tenha dito isso. Enquanto escrevo, está sendo levantado um financiamento de 1,6 bilhão de dólares
para o resort Mundo de Marte, no deserto perto de Las Vegas.
g Felizmente, não foi inspirada no modelo de negócios de Bigelow em terra firme. Estes são
trechos de comentários publicados no TripAdvisor sobre as Budget Suites of America, administradas
pela empresa de Bigelow em Las Vegas. “[…] um desagradável cheiro de mofo […] A cama não
tinha estrado, apenas molas ensacadas postas no velho carpete”; “[…] a área da piscina tinha cheiro
de urina […] a água turva”; “[…] o ar-condicionado não funciona […] a TV não funciona […] os
seguranças parecem agentes da Gestapo.”
h Até se aposentar, Silvia Saint apareceu em mais de duzentos filmes pornográficos. Embora um
ou outro tenha uma pitada de classe (como o kubrickiano De boca bem aberta), a maior parte de sua
filmografia (Hot Bods and Tail Pipe #14, The Adventures of Pee Man) indica que ela, aos 33 anos,
teve um merecido descanso.
i April Ronca e seus colegas desenharam um distintivo para pesquisadores que mostrava uma
nave espacial grávida cercada de naves-bebês. (Da mesma forma que os astronautas, os cientistas que
trabalham numa missão costumam comemorar seus projetos costurando distintivos nas roupas.) A
Nasa vetou o distintivo, embora permitisse um distintivo “Espermatozoide no Espaço”, que mostrava
a cabeça de Homer Simpson com uma cauda de espermatozoide. (A mulher do pesquisador de
espermatozoides tinha uma ligação familiar com o criador dos Simpsons, Matt Groening.) Pode não
haver sexo no espaço, mas sexismo há.
13. VENTANIAS E VERTIGENS

Como se ejetar no espaço

O túnel de vento vertical da Perris SkyVenture é como um furacão preso


numa lata. O ar se desloca a mais de 160 quilômetros por hora através de
uma estrutura cilíndrica parecida com uma torre de controle de tráfego
aéreo. Não deve ser a construção mais alta de Perris — um núcleo de
shopping centers e conjuntos residenciais a poucas horas de Los Angeles
—, mas é como se fosse. Perto do topo, onde estariam os controladores de
voo, várias portas se abrem para a coluna de vento. As pessoas jogam-se no
vazio, abrem os braços e as pernas e começam a voar. É uma sensação de
queda livre sem perigo e sem deslocamento: um salto de paraquedas
castrado. Na primeira visita de um cliente, um funcionário vai ajudá-lo a
ficar firme e evitar que ele dispare para cima, entre em pânico e comece a
bater contra as paredes como se estivesse numa pipoqueira.
Esta é a primeira visita de Felix Baumgartner à SkyVenture, mas
ninguém precisa segurá-lo. Baumgartner, austríaco de 41 anos e muito
fotogênico, é um experiente paraquedista e saltador da modalidade de
paraquedismo denominada Base.a Você pode ir ao YouTube e ver
Baumgartner saltando do braço direito da estátua do Cristo Redentor no Rio
de Janeiro ou, de modo mais prosaico, do telhado do Hotel Marriott em
Varsóvia. Para a maior parte de seus saltos, ele usa um traje de paraquedista.
No vídeo do Marriott, ele está com roupa de trabalho. Fez isso para poder
passar pelo saguão do hotel sem levantar suspeitas, mas a impressão que se
tem ao vê-lo subindo ao telhado de camisa social e gravata é que saltar de
edifícios é para ele apenas mais um dia de trabalho.
Esta noite Baumgartner está vestido de astronauta. Viajou a Perris esta
semana como parte da Missão Stratos da Red Bull. A missão tem um duplo
objetivo. Eu me interesso sobretudo pelo aspecto médico. Baumgartner vai
testar um novo traje para fuga de emergência criado pela David Clark
Company, que produz os trajes espaciais desde os tempos do Projeto
Mercury.b Desde 1986, quando o ônibus espacial Challenger explodiu 72
segundos após o lançamento, os astronautas usam trajes pressurizados não
apenas para atividades extraveiculares, mas durante o lançamento, na
reentrada na atmosfera e no pouso — os momentos mais perigosos do voo.
Baumgartner usaria um traje desses para sobreviver a um “salto espacial”
iniciado a 36 mil metros de altitude. (Tecnicamente, esse ponto ainda não
está no espaço — que começa a cem mil metros de altitude — mas perto
dele; a pressão atmosférica a essa altitude equivale a menos de um
centésimo da pressão no nível do mar.) O salto — a data e o local não
estavam definidos na primavera de 2011 — proporcionaria a engenheiros
especializados em sistemas de ejeção preciosas informações sobre o
comportamento de um corpo vestido com um traje pressurizado em queda
livre através do ar extremamente rarefeito e sobre as reações desse corpo às
velocidades transônicas e supersônicas. Como lá em cima a resistência do ar
é mínima, esperava-se que Baumgartner atingisse a velocidade de 1100
km/h em vez dos 190 km/h de um salto a menor altitude. Nunca, numa
emergência, alguém ejetou-se durante um voo espacial, e não se sabe como
isso poderia ser feito com segurança em cada fase do voo.
Baumgartner diz que tem orgulho de contribuir para a maior segurança
das viagens espaciais, mas que seu interesse principal é bater recordes. O
recorde atual de salto é de 31 333 metros. Essa marca foi estabelecida por
um homem que testava equipamentos de sobrevivência em altitudes
elevadas. Em 1960, num projeto de nome Excelsior, o capitão da Força
Aérea Joe Kittinger saltou de uma gôndola de aço, aberta e transportada por
um balão de hélio, usando um traje parcialmente pressurizado, a 35
quilômetros de altitude. Estava testando um sistema de paraquedas de
multiestágios. Na transcrição de seu depoimento ao Museu de História
Espacial do Novo México, Kittinger diz que transpôs a barreira do som
durante a queda livre, mas não levava o instrumental necessário para que o
recorde fosse homologado. Assim, Baumgartner seria também o primeiro
ser humano a atingir a velocidade do som sem um avião ou outro aparelho.
A Missão Stratos é financiada, em grande parte, pela empresa
patrocinadora de Baumgartner, a Red Bull. Patrocinar atletas radicais é a
forma que a Red Bull encontrou de dizer ao mundo que sua marca é
símbolo não apenas de energéticos cafeinados, como diz a publicidade, mas
de “ampliar limites” e “fazer o impossível acontecer”. No entanto,
adolescentes com poucas chances de se tornar patinadores profissionais ou
quebrar recordes de saltos Base podem ingerir a bebida e sentir a emoção. A
Nasa deveria adotar a atitude da Red Bull em relação à gestão de marca e à
astronáutica. De uma hora para outra, o homem que veste um traje espacial
deixa de ser um servidor público mal pago para se tornar o suprassumo do
atleta radical. A Red Bull sabe como fazer modismo espacial.
Baumgartner se encaixa bem no papel. Para citar um folheto sobre
máquinas industriais de corte que vi há algum tempo, ele tem excelente
dimensões e potência de sobra. É parecido com Mark Wahlberg e lembra
Arnold Schwarzenegger, embora seja mais reservado que ambos. Neste
momento ele está no túnel de vento, de bruços, equilibrando-se na clássica
posição de braços e pernas estendidas. O traje espacial foi pressurizado.
Contei nele dez touros vermelhos. A logomarca, que aparece na vertical nas
mangas e nas pernas, faz com que alguns touros sejam vistos como se
estivessem executando uma postura de salto chamada sit-fly. Baumgartner
tateia a seu redor para ter uma noção de onde está o cordel que abre o
paraquedas. (Não pode vê-lo, porque o traje espacial não deixa abaixar a
cabeça.) Agora ele estica as pernas, avaliando a flexibilidade do traje. Isso
faz com que a área do corpo exposta ao vento aumente, e ele sobe uns três
metros, para e fica flutuando sobre um grupo de observadores, como um
balão no desfile do Dia de Ação de Graças.
Depois de Joe Kittinger, nenhum sistema de fuga ou de paraquedas de
emergência foi testado em saltos de altitudes elevadas. (É muito caro.
Baumgartner deverá subir numa cápsula pressurizada suspensa por um
enorme balão de hélio de 740 mil metros cúbicos.) Mas talvez esses
sistemas devessem ser testados. Com tão pouca resistência do ar, é difícil
controlar a posição do corpo. Imagine como seria manter a mão do lado de
fora de um carro a 100 km/h. Inclinando-a ligeiramente para expor uma
superfície maior ou menor ao vento, você sentirá inequívocas variações de
direção e pressão. Se o carro estivesse se deslocando no ar a uma
velocidade de 40 km/h, você não sentiria nada disso. É difícil para os
paraquedistas — ou astronautas, ou turistas espaciais ejetados a altitudes
elevadas — deter um giro, e um traje mal projetado pode piorar a situação.
Baumgartner precisaria de uma queda livre de cerca de trinta segundos para
ganhar uma velocidade capaz de gerar vento com força suficiente para
controlar sua posição — ou fazer uso do paraquedas de estabilização de
emergência que ele levará.
Quem me explicou os perigos do giro foi Dan Fulgham, coronel
reformado da Força Aérea e paraquedista veterano, especialista da Força
Aérea e da Nasa em testes de sistemas de fuga, que trabalhou no apoio a Joe
Kittinger no Projeto Excelsior. Durante um teste do sistema de ejeção do
espaçoplano X-20, Fulgham entrou em parafuso e sofreu o efeito de forças
centrífugas tão poderosas que não conseguia dobrar os braços na direção do
peito para puxar o cordel de abertura. “Era como se eu estivesse num
envoltório de ferro”, disse ele. O paraquedas abriu-se automaticamente, mas
mesmo assim ele viu a morte de perto. Os sensores mostraram que ele
girava a 177 rotações por minuto (rpm). “Pusemos uns macacos na
centrífuga de Wright-Pat”, disse, referindo-se aos Laboratórios de Pesquisa
Médica Aeroespacial Wright-Patterson, “onde a força centrífuga exercida
na cabeça deles era de cerca de 144 rpm. O cérebro ficava tão comprimido
contra a parte superior do crânio que separava-se da medula. Isso poderia
ter acontecido comigo.” Ele também poderia ter sido vítima de eritropsia,
que ocorre quando o sangue circula pelo cérebro com tanta força que rompe
os vasos. Quem viu a patinadora Mirai Nagasu com o nariz sangrando ao
fim de sua apresentação nas Olimpíadas de inverno de 2010 sabe do que se
trata. A força centrífuga empurrou o sangue para fora da cabeça dela, como
a água numa secadora de verduras.
Uma coisa que Baumgartner e a equipe da Stratos querem testar hoje é se
o traje lhe permitirá assumir uma posição de “rastreador”: curvado para
baixo com os braços estendidos para a frente, como o Super-Homem. Essa
posição faz com que o saltador se desloque para o lado enquanto cai. Quem
me explica isso é Art Thompson, diretor técnico da Missão Stratos da Red
Bull, que está supervisionando os testes dessa noite. Thompson usa um par
de óculos de leitura dobráveis para fazer sua demonstração. Deslocando o
centro de rotação, a posição de rastreador transforma um giro estreito, no
plano horizontal, numa espiral tridimensional maior e mais lenta. Os óculos
de Thompson se afastam do peito e fazem uma curva à esquerda. Se isso
não funcionar, as forças do giro abrirão um paraquedas de emergência. Esse
paraquedas vai manter a cabeça de Baumgartner erguida e evitar que ele
entre num giro que possa provocar eritropsia, e, como se espera, salvar-lhe a
vida. (A menos que o paraquedas abra antes da hora, se enrole no pescoço
dele e o sufoque, fazendo-o desmaiar, como aconteceu com Joe Kittinger no
salto de 23 300 metros para teste do traje do Projeto Excelsior.)
Não há como simular, na Terra, uma queda livre no vácuo. A equipe do
Projeto Excelsior tentou simulá-la ejetando bonecos antropomórficos
levados por balões a altitudes elevadas. Os resultados foram preocupantes.
Diga-se de passagem que às vezes havia pessoas circulando pela zona de
lançamento, que esticavam o pescoço para ver o que estava acontecendo.
Como o projeto era secreto, as equipes de recolhimento dos bonecos tinham
de agir depressa e furtivamente. Além disso, os dedos dos bonecos eram
unidos e eles não tinham orelhas nem nariz. Daí que começaram a circular
boatos sobre um Ovni cheio de alienígenas que teria caído num matagal na
periferia de Roswell,c fato que os militares estariam tentando encobrir.
Numa outra ocasião, o “E.T.” que algumas pessoas estavam certas de ter
visto era Dan Fulgham. Ele e Kittinger sofreram um acidente num sábado
de manhã, quando o balão em que se encontravam desceu num
descampado, nos arredores de Roswell. A gôndola de 350 quilos soltou-se
do balão antes da hora, começou a rodar e só parou ao atingir a cabeça de
Fulgham. Quando ele tirou o capacete, estava com a cabeça tão inchada que
Kittinger disse que o rosto dele parecia “uma grande bolha”. Fulgham foi
levado ao hospital da Base Aérea de Walker, que tinha funcionários civis.
Perguntei a ele se conseguia se lembrar de gente apontando e olhando-o
como se estivesse vendo um E.T. “Não sei”, respondeu, “porque a única
maneira que eu tinha de enxergar era pondo os dedos sobre as pálpebras e
forçando-as a abrir.” Kittinger conduziu Fulgham pela escada do avião,
levou-o ao local onde a mulher do ferido estava à espera, e ela perguntou
onde estava o marido. “Eu respondi: ‘Este é seu marido’, e ela gritou e
começou a chorar”, contou Kittinger em seu depoimento a The Roswell
Report, publicação da Força Aérea. Vi fotos de Fulgham feitas depois do
acidente. Passaram-se semanas antes que ele recuperasse a forma humana.
Thompson acha que os resultados obtidos com os bonecos foram
enganadores e que seria pouco provável que a rotação em altitudes elevadas
representasse um sério problema para Baumgartner. Falei do parafuso quase
fatal de Fulgham e da “gravata” que o paraquedas de Kittinger lhe aplicou
no pescoço. Thompson lembrou que nessa época as pessoas não saltavam
por esporte como fazem agora. “Eles não estavam habituados à ideia de
controlar a posição do corpo em voo. Houve muito progresso.” Isso fica
claro para qualquer pessoa que se disponha a passar algum tempo olhando o
pessoal da SkyVenture, pairando no ar e logo disparando pelo túnel, como
beija-flores.
Mas os astronautas não são saltadores experientes como esses sujeitos.
Enquanto Baumgartner deveria começar seu salto a zero quilômetro por
hora, depois de saltar de um balão que voa entre correntes de ar, uma pessoa
ejetada de uma nave durante o reingresso na atmosfera estará a uma
velocidade aproximada de 19 mil quilômetros por hora. Você não ia gostar
nem um pouco de estar ali.
O diretor médico da Missão Stratos da Red Bull é uma pessoa bem
habilitada para o cargo. Jon Clark foi paraquedista de altitudes elevadas das
Forças Especiais dos Estados Unidos, médico das tripulações dos ônibus
espaciais da Nasa e participou das investigações sobre o acidente com a
lançadeira reutilizável Columbia. (A Columbia desintegrou-se ao
reingressar na atmosfera em fevereiro de 2003. Um pedaço do revestimento
de espuma isolante desprendeu-se do tanque externo e fez um buraco na asa
esquerda durante o lançamento, prejudicando o isolamento térmico
necessário para um reingresso seguro.) A equipe de Clark examinou os
laudos das autópsias dos tripulantes na tentativa de determinar por que e em
que momento do acidente eles pereceram, e se algo poderia ter sido feito
para salvá-los.
Clark não está aqui na Perris hoje. Estive com ele há mais de um ano, na
ilha de Devon, durante as simulações de uma expedição lunar na Estação de
Pesquisa Polar Haughton-Marte. Pude ouvi-lo antes de vê-lo. Sua barraca
estava armada ao lado da minha, e todas as noites, por volta das onze, eu
ouvia os suspiros doloridos de um homem de meia-idade que tentava se
acomodar no chão duro e gelado. Na noite em que por fim o conheci, ele
fez para mim uma apresentação em PowerPoint sobre as tecnologias criadas
pelas forças aéreas e agências espaciais de vários países e, enfim, por
empresas privadas para manter aviadores e astronautas vivos quando
alguma coisa dá errado. A apresentação incluía também o que acontece
quando essas tecnologias falham. Como diz Clark, “todas as coisas que
podem ferrar com você”.
Sentamos à mesa dele na barraca médica. Não havia ninguém por perto.
Lá fora, um aerogerador emitia um zumbido incessante e melancólico. A
certa altura, sem nenhum comentário, Clark me deu um distintivo da missão
STS-107, como os que os astronautas da Columbia usavam em seus trajes.
Agradeci e coloquei-o sobre a mesa. Pareceu-me um bom momento para lhe
perguntar sobre o trabalho dele na investigação do acidente.
Como eu tinha lido o Relatório da Investigação sobre a Sobrevivência da
Tripulação da Columbia, sabia que os astronautas não estavam com a
viseira abaixada quando o compartimento da tripulação despressurizou.
Imaginava que talvez pudessem ter sobrevivido se estivessem usando trajes
pressurizados e dispusessem de paraquedas de abertura automática. O
precedente mais próximo tinha sido o acidente de Bill Weaver, piloto de
testes da Força Aérea. Em 25 de janeiro de 1966, Weaver conseguiu
sobreviver à desintegração de seu SR-71 Blackbird a Mach 3,2 — mais de
três vezes a velocidade do som. Duas coisas o protegeram do aquecimento
provocado pelo atrito com o ar e do windblast que, em altitudes menores,
teriam facilmente matado uma pessoa em deslocamento a tal velocidade:
seu traje pressurizado e o fato de ele estar voando a 24 quilômetros de
altitude, onde a densidade do ar equivale a apenas 3% de seu valor ao nível
do mar. A Columbia voava a Mach 17, mas dada a densidade desprezível da
atmosfera a 65 quilômetros de altitude, o windblast era o equivalente a uma
rajada de cerca de 640 km/h no nível do mar. (Daqui a pouco falaremos
mais sobre windblast.) Representava o que Art Thompson define como
risco administrável. “Dá para sobreviver”, disse Clark.
Mas os astronautas da Columbia enfrentaram circunstâncias mais cruéis
do que o windblast e queimaduras por calor. “Havia um tipo de ferimento
incomum que não podia ser explicado com nada daquilo a que estávamos
habituados”, disse Clark. Por “nós” ele queria dizer médicos aeroespaciais:
gente habituada a cérebros descolados da medula e membros quebrados
pelo windblast.
“Sabemos como as pessoas se desintegram”, continuou Clark. “Elas
quebram nas juntas.” Como frangos. Como qualquer animal vertebrado.
“Mas não foi isso que aconteceu daquela vez. Era como se eles tivessem
sido cortados, mas não por algum tipo de estrutura.” Ele falava manso e
baixo, de um jeito que me lembrava o agente Mulder da série de TV Arquivo
X. “E não poderiam ser ferimentos de blast, porque é preciso haver
atmosfera para que o blast se propague.”
Eu estava olhando para o distintivo da Columbia. Os sobrenomes dos
sete tripulantes, bordados, emolduravam a peça: McCOOL RAMON ANDERSON
HUSBAND BROWN CLARK CHAWLA. Clark. Tive um estalo. Assim que cheguei
à ilha de Devon, ouvi dizer que o cônjuge de um dos astronautas da
Columbia estaria lá. Eu acabava de entender que Laurel Clark era a mulher
de Jon Clark. Fiquei sem saber se dizia alguma coisa, ou o quê. O momento
passou, e Clark continuou falando.
A atmosfera a 65 quilômetros de altitude é rarefeita demais para que
existam ondas de blast, mas não ondas de choque. A equipe encarregada da
investigação concluiu, principalmente por um processo de eliminação, que
foi isso o que matou os astronautas da Columbia. Clark explicou que em
explosões ocorridas a velocidades superiores a Mach 5 — cinco vezes a
velocidade do som, ou cerca de 5500 km/h — entra em ação um tipo de
onda de choque pouco conhecido chamado interação choque-choque.
Quando uma nave se desintegra ao reingressar na atmosfera, centenas de
pedaços — nenhum deles com a aerodinâmica rigorosa da nave quando
íntegra — passam a voar a velocidades hipersônicas, criando uma rede
caótica de ondas de choque. Clark comparou-as às ondas em arco que se
formam atrás de uma lancha de esqui aquático. Nos nós dessas ondas de
choque — em seus pontos de interseção — as forças se somam com
intensidade enorme, sobrenatural.
“Foi isso, principalmente, o que fragmentou os astronautas”, disse Clark.
“Mas não todos. Tudo dependeu muito da localização. Há objetos que
foram recuperados completamente intactos.” Uma pessoa da equipe de
busca que percorreu o rastro de 640 quilômetros dos destroços deixados
pela Columbia no Texas encontrou um tonômetro, aparelho usado para
medir a pressão intraocular, que continuava funcionando.
O vento do lado de fora da barraca médica havia aumentado. O
aerogerador emitia um som torturante. Era uma noite esquisita. Estávamos
sentados lado a lado, vendo slides no laptop de Clark, ele falando e eu
ouvindo. De vez em quando eu o interrompia com alguma pergunta, mas
não com todas que tinha na cabeça. Eu queria lhe perguntar como convivera
com a descoberta dos detalhes da morte da mulher. Por que resolvera
participar da investigação? Mas seria indelicado. Imaginei que ele tinha se
envolvido naquilo pela mesma razão que o levara a se envolver na Missão
Stratos da Red Bull. Ele quer saber tudo o que puder sobre o que acontece
com o corpo humano quando o veículo que o transporta se desintegra em
altitudes elevadas e a velocidades alucinantes. Ele quer aplicar o que
aprende para projetar novas tecnologias que possam ser usadas para
proteger o corpo humano, manter astronautas e turistas espaciais vivos e
conservar a integridade das famílias.
É um desafio extremamente complicado. Qualquer sistema de fuga de
uma espaçonave funciona até certo limite de altitude e velocidade. Assentos
ejetáveis, por exemplo, funcionarão nos oito a dez segundos iniciais do
lançamento, antes que a força Q — a interação entre a densidade do ar e a
força do vento gerado pela velocidade — chegue a um patamar mortal. Um
sistema de ejeção deve lançar o astronauta longe o bastante para evitar que
ele entre em colisão contra elementos da nave ou seja envolvido na bola de
fogo de uma explosão catastrófica. O sistema de fuga mais recente dos
ônibus espaciais consistia num longo mastro ao qual os tripulantes se
prenderiam para deslizar para fora da nave e manter-se afastados de sua asa.
Terry Sunday, engenheira aeroespacial aposentada e historiadora do espaço,
observa que isso só funcionaria bem se o ônibus estivesse em voo estável,
plano e nivelado. “E, nesse caso, para que deixar a nave?”
Sobreviver aos extremos de velocidade e calor no reingresso é ainda mais
problemático. A agência espacial russa já testou protótipos de uma cápsula
inflável de fuga, que funde os conceitos de balão e paraquedas. A proteção
antitérmica na ampla face frontal da cápsula funciona como um escudo que
protege o passageiro aterrorizado contra o calor, e sua grande superfície cria
a força de arrasto necessária para reduzir a velocidade a um ponto em que
um sistema de paraquedas de múltiplos estágios possa ser aberto, se tudo
der certo, conduzindo o passageiro em segurança até a Terra. (Essa cápsula
nunca percorreu todo o caminho do espaço ao solo.) Um outro sistema de
paraquedas poderia conduzir toda a cápsula ou a cabine da tripulação até o
solo. (Os planos da Nasa incluíam uma nova cápsula Orion que seria usada
inicialmente como meio de fuga da ISS.) O paraquedas seria pesado, e seu
lançamento, dispendioso — e no caso do ônibus espacial, o processo de
separação do compartimento da tripulação do resto da nave apresentou
graves problemas técnicos. O paraquedas também precisaria de seu próprio
escudo antitérmico para não derreter durante o reingresso, o que tornaria o
seu emprego mais complicado.
E o que dizer sobre os passageiros de um avião? Haveria um jeito seguro
de resgatá-los de um jato prestes a cair? Por que motivo, além do peso e do
custo, as linhas aéreas não equipam cada assento com um tubo portátil de
oxigênio e um paraquedas? Por muitas razões. Chegou a hora de uma
aulinha sobre o windblast e a hipóxia.

No ponto médio da escala Beaufort da força dos ventos, o ar se desloca a


uma velocidade entre 41 e 50 km/h. “Fica difícil manter um guarda-chuva
aberto”, afirma a Beaufort, com certa dramaticidade. No seu ponto mais
alto, os ventos vão de 119 a 300 km/h — a velocidade de um furacão. Esse
é o máximo que a natureza pode alcançar. Onde a escala Beaufort termina,
começa o estudo do windblast. O windblast não é uma condição climática.
O ar não está batendo em você, é você que bate contra ele — ao saltar ou
ser ejetado de uma aeronave em perigo.
À velocidade de um avião particular normal — 215 a 290 km/h —, os
efeitos do windblast são principalmente cosméticos. As faces são
pressionadas contra o crânio, conferindo ao rosto um aspecto mais esticado.
Sei disso por ter visto lamentáveis fotos minhas tiradas no túnel de vento da
SkyVenture e por um artigo de 1949 da revista Aviation Medicine sobre os
efeitos do windblast de alta velocidade. Nesse artigo, um homem
identificado como J. L., bonitão a zero quilômetro por hora, é mostrado
num windblast de 440 km/h com os lábios arreganhados, as gengivas
totalmente à mostra, como um camelo irritado a blaterar.
A 560 km/h, a cartilagem do nariz se deforma e a pele do rosto começa a
tremer. “As ondas partem dos cantos da boca […] e avançam pelo rosto, na
proporção de trezentas por segundo, em direção às orelhas, onde quebram,
fazendo-as ondular.” Usar um guarda-chuva está fora de questão. Em
velocidades mais altas, essa força Q causa deformações que podem, como
diz sutilmente o estudo da Aviation Medicine, “ultrapassar a resistência do
tecido”.
A velocidade de cruzeiro de um jato transcontinental de passageiros fica
entre 800 e 960 km/h. Não salte. Para citar Dan Fulgham, nessa situação,
“uma fatalidade seria mais que provável”. Um windblast a 400 km/h
arrancaria uma máscara de oxigênio do rosto. A 640 km/h, removeria um
capacete — como fez com o copiloto de Bill Weaver no SR-71. O visor se
abriu e atuou como uma vela, atirando a cabeça dele contra o anel metálico
do traje e quebrando seu pescoço. A 800 km/h, a pressão dinâmica do ar
irrompe pela traqueia com energia suficiente para romper diversos
componentes do sistema pulmonar. Um piloto de testes anônimo,
mencionado num estudo de John Paul Stapp, ejetou-se a mais de 960 km/h.
O windblast forçou sua epiglote a se manter aberta e inflou-lhe o estômago
como se fosse uma boia de piscina. (Isso acabou sendo a sorte dele, que
tinha se ejetado sobre a água. “Os três litros de ar que estavam em seu
estômago substituíram o mecanismo de flutuação, que ele não tinha
condições de acionar”, disse Stapp.)
Em velocidades supersônicas, o corpo enfrenta um tipo de força Q que
costumava despedaçar jatos experimentais. Dan Fulgham ouviu falar de
pilotos que se ejetaram a mais de 960 km/h. “Os assentos ejetáveis da época
tinham aletas de metal de ambos os lados da cabeça, para evitar que ela
chacoalhasse de um lado para outro”, disse-me ele. “Na autópsia,
descobriam que o cérebro tinha sido emulsificado por causa da intensa
vibração da cabeça entre as placas de aço.” Sempre que podem, os pilotos
de caça se mantêm no jato avariado até poderem reduzir sua velocidade,
com isso diminuindo a força Q e aumentando suas chances de
sobrevivência. A Red Bull tinha motivos para se preocupar com
Baumgartner. Ele podia sofrer vibrações até morrer, dentro de seu traje, à
medida que se aproximasse — ou fosse além — da velocidade do som.
A consequência imediata e desastrosa de um mergulho em ar rarefeito é a
falta de oxigênio. A 10 mil metros de altitude, um ser humano terá entre
trinta e sessenta segundos de “consciência útil”. Sem dúvida, você gostaria
de ser o primeiro da fila diante da saída de emergência. Sei bem o que é
vagar pelos limites da consciência útil. Como pré-requisito para o voo
parabólico que menciono no capítulo 5, a Nasa submeteu os estudantes de
engenharia — e a mim — a um seminário sobre fisiologia aeroespacial que
incluiu uma demonstração de hipóxia (insuficiência de oxigênio) no interior
da câmara de altitude do Centro Espacial Johnson. Extraindo o ar de uma
câmara vedada, os técnicos simulavam a atmosfera a qualquer altitude, até
chegar perto do vácuo absoluto — uma grande caixa de espaço exterior. O
pessoal da agência espacial usa essas câmaras para testar trajes espaciais e
outros equipamentos que serão expostos ao vácuo no espaço.
Depois de cerca de um minuto sem máscaras de oxigênio a 7600 metros
— altitude em que a pessoa tem de dois a cinco minutos de consciência útil
—, pediram-nos para executar uma lista de tarefas mentais. Uma das
questões dizia: “Subtraia vinte anos de seu ano de nascimento”. Eu me
sentia bem, mas lembro-me de ter me enrolado com isso, sentindo-me
profundamente perplexa. Uma das últimas perguntas era: “O que significa a
sigla Nasa?”. É claro que eu sabia responder, mas escrevi apenas “N”.
Mais do que consciência útil, você vai precisar de sorte, uma vez que
outras quatrocentas pessoas em pânico estarão querendo fugir ao mesmo
tempo, gerando um perigo real de embolar cordames e velames. Mas você
poderia sobreviver, desde que permanecesse no avião até que ele atingisse
uma velocidade mais baixa e suportável. Você sentiria dor, mas nada mais
grave. Em altitudes mais elevadas, à medida que a pressão atmosférica cai,
o ar que ocupa as cavidades internas do próprio corpo tenta extravasar seus
limites e se expandir. Um bolsão de gás dentro de uma cárie dental não
obturada pode pressionar o nervo e provocar dor. Coisa parecida acontece
com o ar nos seios paranasais — sobretudo se estiverem congestionados.
Até mesmo os gases diluídos no líquido encefalorraquidiano, nos
ventrículos cerebrais, tentam se expandir. Se eu tivesse um buraco no
crânio, meus companheiros da câmara de altitude poderiam ter visto meu
cérebro se avolumando através dele.d A expansão gasosa que você mais
provavelmente notaria seria a do trato digestivo. A 7600 metros, o volume
de ar no estômago triplica. “Vão em frente, soltem”, dizia nosso instrutor,
como se onze universitários do sexo masculino precisassem de convite.

Baumgartner está dando um tempo. Escarrapachado numa cadeira, com o


capacete no colo, beberica um pouco d’água. (A Perris SkyVenture não
serve Red Bull.) Art Thompson, diretor técnico do projeto, está de bom
humor. O traje está funcionando bem e Baumgartner se sente à vontade com
ele. (Tão à vontade quanto alguém pode se sentir metido num traje espacial.
Como dizia Harold McMann, historiador de trajes espaciais, “Não é um
lugar agradável para ficar. Sequer é agradável para visitar”.)
Estou otimista em relação às chances de sobrevivência de Baumgartner.
Um otimismo cauteloso. Saltar de altitudes extremamente elevadas é
arriscado, mas provavelmente não tanto quanto a ocupação normal de
Baumgartner — saltar de altitudes extremamente baixas. Se alguma coisa
começar a dar errado durante um mergulho no espaço, ele terá cinco
minutos para decidir como remediar a situação. Num salto da modalidade
Base, não tem nem cinco segundos. Saltadores Base não têm paraquedas de
reserva, já que não terão tempo de abri-los. “É por isso que em geral eles
não têm uma longa…” Thompson procura a palavra certa.
“Vida?”, sugeri.
“Carreira.”
Thompson diz que não está preocupado. “Com o tempo, quase todos os
saltadores Base se tornam desleixados, mas Felix é realmente um cê-dê-efe
no que faz. É isso que o mantém vivo.”
Corajoso e cê-dê-efe: o explorador espacial ideal. Mas você não vai
encontrar “cê-dê-efe” na lista de atributos desejáveis para um astronauta. A
Nasa não usa palavras desse gênero. A menos que seja obrigada.

a Base é um acrônimo formado por Building Antenna [torre de rádio], Span [ponte] e Earth
[penhasco] — os quatro pontos baixos e perigosos de onde ele salta. Segundo um estudo da revista
Journal of Trauma em 2007, o índice de mortalidade e ferimentos nos saltos Base é de cinco a oito
vezes mais elevado do que no salto livre. Mesmo assim, é mais baixo do que você imaginaria: em dez
anos, nove de 20 850 saltos do maciço Kjerag, na Noruega, terminaram em morte.
b A Nasa procurou a David Clark Company devido à experiência da empresa com tecidos
emborrachados. “Um traje espacial não passa de um saco emborrachado antropomórfico”, diz o
coronel Dan Fulgham, especializado em testes de sistemas de fuga. “Não tínhamos nenhuma
experiência de trabalho com sacos emborrachados. Recorremos à David Clark Company, de
Worcester, Massachusetts. Eles estavam produzindo vinte grosas por mês de sutiãs e cintas para a
Sears e a Roebuck.” Fulgham guarda belas lembranças de quando ia de carro a Worcester para
reuniões e dava espiadas em modelos de provas que perambulavam por ali. O contrato para a
produção dos trajes de pouso lunar da Apollo foi firmado com a International Latex, que mais tarde
se tornaria a Playtex. Na época isso não teve muita publicidade.
c Os bonecos eram realistas o bastante para enganar um grupo de mulheres de oficiais reunidas
para um chá na casa do general Edwin Rawlings, da Força Aérea. De uma hora para outra, um vulto
humano estatelou-se no chão a pouca distância do quintal de Rawlings. Ato contínuo, apareceu Joe
Kittinger ao volante de uma caminhonete, jogou o boneco na caçamba e saiu em disparada. As
mulheres acharam que se tratava não de um alienígena e sim de um aviador. Mais tarde, Kittinger
recebeu uma ligação informando que as convidadas da senhora Rawlings tinham reclamado da forma
desrespeitosa como tinha sido tratado o “paraquedista” morto.
d Fato comprovado. Em 1941, cientistas do Laboratório de Pesquisa de Medicina da Aviação da
Fundação Mayo convenceram uma mulher que tinha uma abertura pós-cirúrgica no crânio a
submeter-se à câmara de altitude. A paciente (nunca esse nome foi mais adequado) foi posta diante
de uma régua, e os pesquisadores, como caddies num campo de golfe, fincaram uma bandeirinha
triangular bem no ponto onde estava o buraco. Quando a “transportaram” a 8500 metros de altitude, a
bandeirinha tinha subido um centímetro inteiro.
14. A ANGÚSTIA DA SEPARAÇÃO

A saga permanente da excreção

em gravidade zero

Provavelmente não é a primeira vez que uma turma de rapazes se reúne


para instalar uma câmera de vídeo em circuito fechado no vaso sanitário de
um órgão do governo. Mas com certeza é a primeira vez que isso acontece
com as bênçãos e o financiamento do próprio órgão. E que o monitor é
instalado lá mesmo no banheiro, de modo a facilitar a visão da pessoa que
usa o vaso.
Na parede do lado esquerdo do usuário há um pequeno letreiro de
plástico:

Treino de Posição

Sente-se no assento de treinamento e separe as nádegas

A “câmera do penico” do Centro Espacial Johnson, como é chamada


informalmente, é um recurso de treinamento de astronautas. Proporciona
uma perspectiva nítida e interessante de algo com que você teve contato
estreito durante toda a vida, mas na verdade nunca viu. Talvez não seja
muito diferente de ver, do espaço, seu próprio planeta pela primeira vez. O
posicionamento é fundamental porque a abertura do vaso sanitário de um
ônibus espacial tem apenas dez centímetros de diâmetro, em comparação
com os vinte centímetros a que estamos habituados na Terra. Jim Broyan,
engenheiro hidráulico que projeta vasos sanitários e outras instalações para
astronautas da Nasa, me mostra o lugar. Broyan tem uma compleição esguia
e um rosto anguloso. Fita o visitante por cima de um par de óculos de
armação metálica. Tem um humor discreto, que expressa com a fisionomia
impassível, e imagino que deve ser divertidíssimo trabalhar com ele.
“A câmara permite que você veja sua bunda, seu…” Broyan faz uma
pausa em busca de uma palavra melhor: não mais cortês, apenas mais exata.
“Seu ânus alinhado com o centro.” Na ausência de gravidade, é impossível
avaliar direito a própria posição pelas sensações. Na verdade, você não se
senta numa superfície. Você flutua muito perto dela. A tendência, segundo
Broyan, é entrar em contato com a superfície demasiado atrás. Dessa forma,
você erra o ângulo de aproximação, suja a parte traseira do tubo
transportador e entope alguns dos orifícios de ar que circundam a borda.
Péssima jogada. As privadas espaciais funcionam como aspiradores; as
“contribuições”, para usar o termo de Broyan, são levadas, ou
“conduzidas”, por um fluxo de ar e não por água ou gravidade, duas coisas
escassas ou inexistentes numa nave em órbita. Orifícios de ar entupidos
podem inutilizar uma privada. Além disso, se você obstruir os orifícios,
caberá a você limpá-los — tarefa que Broyan classifica como “árdua”.
O ambiente em que está instalada a câmara do penico é um banheiro em
pleno funcionamento, com pia e papel-toalha, mas serve principalmente
como sala de aula. Em matéria de penico, todo astronauta é treinado por
Scott Weinstein, que acaba de juntar-se a nós. Encarregado também do
treinamento de cozinha — como comer no espaço —, ele está numa
situação pedagógica ímpar: pegar algumas das pessoas mais preparadas,
credenciadas e bem-sucedidas do mundo e levá-las de volta à creche. Tudo
o que esses homens e mulheres aprenderam quando estavam começando a
andar — atravessar uma sala, usar uma colher, sentar numa privada — deve
ser reaprendido para as condições do espaço.
Scott é grandalhão — tem 1,95 metro de altura — e não lhe faltam
gorduras amortecedoras. Tem filhos pequenos, e é fácil imaginá-lo com eles
— no colo, nos ombros, escalando-o como se ele fosse um brinquedo de
parquinho. Embora tenha formação em engenharia hidráulica, passou sete
anos desempenhando outras tarefas na Nasa, traçando trajetórias de
foguetes. Por fim, resolveu que queria trabalhar com pessoas. Suponho que
ele seja muito bom no que faz. De índole afável e sem rodeios, ele torna
fácil a conversa sobre coisas das quais normalmente não se fala.
Isso é mais importante do que você pode pensar. A excreção em
condições de gravidade zero não é apenas assunto de piada. Em ausência de
gravidade, o simples ato de urinar pode se tornar um caso de emergência
médica que exija o emprego de um cateter e constrangedoras consultas com
médicos do Controle de Missão. “A vontade de urinar é diferente no
espaço”, explica Weinstein. Não há um sistema de aviso prévio, como na
Terra. A gravidade faz os rejeitos líquidos se acumularem na base da
bexiga. Quando ela enche, estimula receptores nervosos que controlam sua
elasticidade e alertam seu portador para o volume em aumento, dando sinais
cada vez mais insistentes de que deve esvaziá-la. Em condições de
gravidade zero, a urina não se acumula no fundo da bexiga. A tensão
superficial faz com que ela se junte nas paredes de todo o órgão. Só quando
a bexiga está quase completamente cheia é que seus lados começam a
esticar e a provocar o impulso de urinar. E nesse momento a bexiga já pode
estar tão cheia que passa a pressionar a saída da uretra. Weinstein aconselha
os astronautas a programar visitas regulares ao banheiro mesmo que não
tenham vontade. “E a mesma coisa acontece com o trânsito intestinal”, diz
ele. “Você não experimenta as mesmas sensações.”
Broyan e Weinstein me convidaram a fazer o Treino de Posição.
Weinstein estende a mão para uma parede e aciona um interruptor, com o
que o interior do vaso se ilumina. Isso porque ao se sentar você bloqueia a
luz que vem do teto. “Então”, diz Weinstein, “você vai tentar se alinhar,
acender a luz e verificar o resultado.”
Pergunto a ele se os astronautas se observam enquanto vão ao banheiro
ou antes de começar.
Broyan, contido, parece assustado. “Você não pode defecar nesse vaso.”
Ele olha para Weinstein, rapidíssimo, mas a mensagem é inequívoca: Deus
do céu, ela ia cagar na câmera!
Eu não ia, digo com sinceridade.
Weinstein, sempre amável: “Bem, tecnicamente pode, mas depois o
pessoal da Crew Systems teria de vir para limpar”.
“Esse vaso não é funcional, Mary”, diz Broyan, para ter certeza de que eu
tinha entendido.
Isso já tinha acontecido uma vez, e o responsável pelo acidente fugiu sem
prestar socorro. “Foi antes do meu tempo”, diz Weinstein. “Se eu estivesse
aqui, teria cercado o vaso com fitas plásticas de segurança.” Desejou-me
boa sorte. Os dois saíram e fecharam a porta.
Imagine se deparar, por acaso, com um canal pornô especialmente
pesado, e perceber que é você quem está na tela. Meu cérebro prefere
reinterpretar a imagem: Está vendo o boneco engraçadinho? Olhe só a boca
dele. O que ele está dizendo? Está dizendo “Uuuuuuuh-aaaah-
uuuuuuuuuh”.
Quando Weinstein e Broyan voltam, Weinstein diz duvidar que os
astronautas usem a câmera do penico. “Tenho a impressão de que a maior
parte deles não quer se ver.” Weinstein propõe uma tática de
posicionamento alternativa, “o método das duas juntas”. A distância entre o
ânus e a frente do assento deve ser igual à distância entre a ponta do dedo
médio e sua articulação maior.
Ao longo da mesma parede onde está o Treino de Posição há uma
privada de ônibus espacial totalmente equipada e em funcionamento. Mais
parece uma máquina de lavar de alta tecnologia e abertura superior do que
uma privada. Embora esse equipamento seja uma versão fiel do que existe a
bordo de uma nave, a experiência não é igual. Ali no Centro Espacial
Johnson há gravidade, e isso faz toda a diferença. A gravidade facilita
aquilo que nos círculos de coleta de resíduos aeroespaciais se conhece como
“separação”. Em ausência de gravidade, a matéria fecal nunca pesa o
bastante para se desprender, cair e descartar-se por conta própria. O fluxo de
ar numa privada espacial é mais do que um método alternativo de descarga.
Ele facilita o Santo Graal da eliminação em zero G: uma correta separação.
A resistência do ar funciona para puxar o material para longe de sua fonte.
Uma estratégia de separação, por gentileza de Weinstein: separe bem as
“bochechas”. Dessa forma, haverá menor contato entre o corpo e o “bolo”
(mais um termo do enorme arsenal de eufemismos da engenharia sanitária)
— e portanto menos tensão superficial a vencer. O assento mais recente foi
projetado para servir como “separador de bochechas”, proporcionando um
desprendimento mais limpo.
Uma solução mais sensata seria adotar a postura escolhida por grande
parte do resto do mundo — e pelo próprio sistema excretório humano. “O
agachamento tende a separar as nádegas”, diz Don Rethke, engenheiro
sênior da Hamilton Sundstrand, empresa prestadora de serviços que há
muitos anos produz os sistemas de descarte da Nasa. Rethke sugeriu que a
agência espacial americana adotasse um par de estribos instalados num
ponto mais alto para acomodar aqueles que preferissem adotar uma postura
de agachamento em condições de gravidade zero. Não funcionou. Quando
se trata de hábitos diários dos astronautas, o costume derrota a praticidade.
Uma mesa de cozinha não tem muito sentido sem gravidade, mas todas as
naves para voos de longa duração têm uma. As tripulações querem sentar-se
à mesa no fim do dia para comer, conversar e se sentir como pessoas
normais, esquecendo por um momento que estão voando absolutamente sós
através da escuridão de um vácuo letal. Depois da Apollo, em que havia
bolsas fecais em vez de privadas, as instalações sanitárias tornaram-se
obrigatórias. “Quando os astronautas voltavam, estavam física e
psicologicamente ansiosos por um vaso sanitário”, diz Rethke.
É compreensível. A bolsa fecal é um saco plástico semelhante às bolsas
para vomitar, tanto em tamanho e capacidade quanto no dom de inspirar
relutância e repulsa.a Havia um anel adesivo na parte superior da bolsa,
calculado para a curvatura média das nádegas dos astronautas. Raramente
se ajustava. O adesivo grudava nos pelos. E pior, sem gravidade nem fluxo
de ar para provocar a separação, o astronauta era obrigado a usar um dedo.
Cada bolsa tinha uma espécie de bolsinho perto da boca, chamado
“camisinha de dedo”.
Mas a graça não parava aí. Antes de enrolar e fechar a bolsa para
aprisionar o monstro repulsivo, o tripulante tinha de abrir um pacote de
germicida, espremer o conteúdo dentro da bolsa e misturar manualmente o
germicida com as fezes. Sem isso, permitiria que os coliformes fecais
cumprissem sua tarefa bacteriana de digerir os dejetos e expelir os gases
que, se estivessem no interior de seu intestino, seriam seus próprios gases.
Como uma bolsa fecal plástica não emite ventosidades, seria possível que,
sem o germicida, ela acabasse explodindo. “A maior prova de amizade que
você poderia pedir a um companheiro de tripulação seria levar-lhe sua bolsa
para que ele misturasse completamente o germicida à matéria fecal”, disse-
me o astronauta Jim Lovell, que participou dos projetos Gemini e Apollo.
“Eu dizia ‘Escute, Frank, estou ocupado’.”
Dada a complexidade da tarefa, os “fujões” — nome dado à matéria fecal
flutuante nos círculos astronáuticos — atormentaram as tripulações. Segue-
se um trecho da transcrição de um diálogo da missão Apollo 10, estrelada
por Thomas Stafford, comandante da missão, por Gene Cernan, piloto do
Módulo Lunar, e por John Young, piloto do Módulo de Comando, que
descreviam órbitas em torno da Lua, a quase 300 mil quilômetros do
banheiro mais próximo.
CERNAN: […] Você sabe que quando sai da órbita lunar, você pode fazer
uma porção de coisas. Você pode desligar [...] E o que está acontecendo
é…
STAFFORD: Ei!... Quem fez isso?
YOUNG: Quem fez o quê?
CERNAN: O quê?
STAFFORD: Quem fez isso? [risos]
CERNAN: De onde saiu isso?
STAFFORD: Rápido, me passem um guardanapo. Tem uma bosta
flutuando aqui.
YOUNG: Não fui eu. Esse não é dos meus.
CERNAN: Não acho que seja meu.
STAFFORD: O meu era um pouco mais pegajoso que esse. Jogue isso fora.
YOUNG: Deus Todo-Poderoso!
[Oito minutos depois, quando discutiam a hora do descarte de água
servida.]
YOUNG: Eles disseram que podíamos fazer a qualquer hora?
CERNAN: Eles disseram em 135. Foi o que disseram... Lá vai outro
maldito cagalhão. O que é que há com vocês, rapazes? Aqui, me passem
um…
YOUNG/ STAFFORD: [risos] [...]
STAFFORD: Estava flutuando por aí?
CERNAN: Isso.
STAFFORD: [risos] O meu era mais pegajoso que esse.
YOUNG: O meu também. Ele bateu naquela bolsa...
CERNAN: [risos] Não sei de quem é. Não posso dizer que é meu, nem que
não é. [risos]
YOUNG: Que diabos está acontecendo aqui?
Broyan me mostrou uma foto tirada por volta de 1970 em que se vê um
funcionário da Nasa demonstrando como se usa a bolsa fecal da Apollo. O
homem veste calça xadrez e uma camisa em tom mostarda, com os punhos
fechados por abotoaduras. Como tantas fotos da década de 1970, certamente
constrangeu a pessoa para o resto da vida. E essa mais do que qualquer
outra. O homem está curvado, com o traseiro empinado na direção da
câmera. Vê-se uma bolsa fecal colada aos fundilhos da calça. Os dois
primeiros dedos da mão direita estão metidos na camisinha de dedo, abertos
em tesoura. Um largo anel de prata adorna o dedo mínimo. Embora seu
rosto esteja oculto, Broyan diz que há “especulações” sobre a identidade do
homem. Broyan incluiu essa foto na seção histórica da primeira versão de
um artigo recente que escreveu para uma revista de engenharia, mas seus
superiores pediram para retirá-la. Acharam que “não passava uma boa
imagem da Nasa”.
Eis um resumo feito por Broyan das opiniões dos astronautas sobre o
sistema de bolsas fecais da Gemini-Apollo, constante do artigo mencionado.
Fica evidente que nem todos os tripulantes enfrentaram a situação com o
mesmo espírito esportivo de Young, Stafford e Cernan.
O sistema das bolsas fecais tinha funcionalidade limitada e as tripulações
o classificavam como “desagradável”. Opinavam que era difícil
posicionar a bolsa. Era difícil defecar sem se sujarem e sem sujar as
roupas e a cabine. Na pequena cápsula, as bolsas não proporcionavam
controle de odores, e o cheiro era forte. Devido à dificuldade para o uso
da bolsa, cada tripulante precisava de mais de 45 minutos para defecar,b o
que fazia com o que os odores persistissem durante muito tempo. A
rejeição às bolsas fecais foi tanta que alguns tripulantes faziam uso
contínuo de […] medicamentos para minimizar a excreção durante a
missão.
As bolsas de urina da Gemini-Apollo eram vistas como menos ruins, mas
nem tanto. Sobretudo quando estouravam, como aconteceu com Jim Lovell
na Gemini VII. De acordo com as memórias de Gene Cernan, Lovell disse
que a missão foi “como passar duas semanas numa latrina”. Tom Chase,
engenheiro de trajes espaciais e vasos sanitários da Hamilton Sundstrand,
resumiu claramente o sentimento imperante entre os engenheiros e a direção
da Nasa ao fim do projeto Apollo: “Temos de fazer melhor”.
A primeira privada para condições de gravidade zero da Nasa foi um
modelo do tipo “faça você mesmo”, “use e remova sua bolsa”, projetado
para facilitar a coleta de amostras nas missões de pesquisa médica do
Skylab.c Era colada na parede. Mais tarde, para atender a necessidades
psicológicas das tripulações e para evitar distúrbios do equilíbrio vestibular,
os engenheiros e projetistas da Nasa começaram a construir espaços e
laboratórios num estilo mais congruente com a gravidade terrestre: mesas
nos “pisos” e iluminação nos “tetos”.
As privadas dos ônibus espaciais sempre foram montadas no piso, mas
nunca poderiam ser chamadas de normais. O vaso sanitário original tinha
um conjunto de lâminas de liquidificador que giravam a 1200 rpm a uma
distância de apenas 15 centímetros abaixo da anatomia do usuário. O
dispositivo macerava fezes e papel higiênico — se tudo corresse bem, os
testículos escapavam — e lançava essa pasta nas laterais de um tanque de
armazenamento. “Ficava colado lá como se fosse papel machê”, diz Rethke.
O problema surgia quando o material que se achava no tanque de
armazenamento era exposto ao vácuo frio e seco do espaço. (Congelar e
secar era uma forma de esterilização.) Agora o material não era homogêneo
como antes. O papel tinha perdido seu machê. Quando o astronauta seguinte
ligava o macerador, minúsculas partículas do ninho de vespa fecal que
forrava as paredes do tanque se separavam e se espalhavam pelas lâminas,
virando uma poeira que vazava para a cabine da nave.
Eis a medida da catástrofe, como aparece no Relatório 3943 de prestação
de serviços da Nasa: “Segundo se informou, os astronautas a bordo da
presente missão STS (41-F) recorreram ao uso das bolsas adesivas como as
da missão Apollo. Em missões anteriores, nuvens de poeira fecal
produzidas pela privada de gravidade zero levaram alguns astronautas a
deixar de comer para diminuir a frequência ao banheiro”. Em outro ponto
do relatório, afirma-se que a poeira fecal era não apenas repulsiva, mas
podia provocar “um crescimento mórbido de bactérias E. coli na boca”,
como acontecia a bordo de submarinos em que ocorria escapamento de
emanações de águas servidas.
O macerador foi aposentado há muito tempo, mas vez por outra
vazamentos ainda atormentam as tripulações. O vilão de hoje em dia é a
“pipoca fecal”, um fenômeno sobre o qual você poderá se informar em
documentos da Nasa e — torça! — em mais nenhum outro lugar. Broyan
teoriza com jovialidade: “Como tudo o mais está congelado, o material que
entra, dependendo da dureza da privada, tende a ricochetear nas paredes.
Sabe as antigas máquinas de pipoca? Elas têm um fluxo de ar que produz o
mesmo tipo de circulação. O material flutua na corrente de ar e tende a
subir de volta pelo tubo”. Agora aguente.
A pipoca fecal é a razão pela qual as privadas dos ônibus espaciais eram
equipadas com espelhos retrovisores. “A gente pede a eles que deem uma
olhada para dentro ao fechar a tampa corrediça”, diz Broyan, “para ver se
não há nada subindo de volta pelo tubo.” A pipoca fecal é o fenômeno que
precede a decapitação fecal. Você não ia querer que ocorresse uma
decapitação fecal a bordo de sua nave. Se um tripulante fechar a tampa
corrediça que está no topo do tubo transportador da privada bem no
momento em que alguma pipoca estiver subindo, a tampa corrediça poderá
decapitá-la ao fechar-se. Esse é um cenário abominável por duas razões:
qualquer material que sujar o lado de cima da tampa corrediça vai dividir a
cabine com a tripulação, e, para citar Broyan, “eles vão sentir o cheiro”.
Além disso, o material que suja o lado inferior da tampa corrediça vai
congelar e secar, mantendo a tampa fechada. Assim, a privada fica
interditada e todos terão de usar o sistema emergencial de coleta de dejetos
do ônibus: a bolsa da Apollo. Se o responsável pela besteira for você, pode
ter certeza de que será alvo de odoríferas represálias por parte de seus
companheiros.

Não há como prever um fenômeno como o da pipoca fecal. Há coisas que


você só pode saber quando entra em órbita. É por isso que as privadas,
como tudo aquilo que voa fora da atmosfera, são levadas para um voo
parabólico de teste. Nesse caso, o teste apresenta desafios singulares.
Vou dar um exemplo. Ontem, no fim da tarde, me deu na cabeça
experimentar a privada de treinamento do ônibus espacial. Eu já tinha um
encontro marcado com Broyan, Weinstein e Gayle Frere, minha
acompanhante do departamento de relações públicas, para o meio-dia do dia
seguinte. Nove da manhã, é o máximo que posso esperar, disse meu cólon.
Liguei para Gayle e tentei explicar a ela meu dilema e remarcar para a
primeira hora da manhã. Ela estava na formatura do neto, e precisava gritar
em meio ao barulho para que eu a ouvisse. Imaginei o marido dela deixando
de lado as comemorações para perguntar o que estava acontecendo.
Imaginei Gayle gritando no ouvido dele. É aquela escritora. Ela quer fazer
cocô na privada do ônibus espacial. Pedi desculpas e desliguei depressa.
Minha grande dúvida é que programar uma evacuação para dentro de
algumas horas pode ser complicado. Imagine tentar fazer isso com precisão
num período de imponderabilidade de vinte segundos. Uma vez, Charles
Bourland, engenheiro de alimentos aposentado da Nasa, estava a bordo de
um voo parabólico com um grupo de engenheiros para testar um protótipo
de privada para gravidade zero. A privada tinha uma espécie de biombo em
volta, mas Bourland podia ver o homem. “Era o número dois”, disse-me ele.
“Ele estava muito bem preparado para aquilo, mas não conseguiu expelir na
hora certa. Houve muitas brincadeiras e gritos de incentivo”, embora não da
parte de Bourland, que lutava contra o enjoo enquanto experimentava
amostras de 72 novos alimentos para a Skylab, entre os quais ervilhas com
creme e picadinho de carne.
Alguns dos testes feitos em condições de imponderabilidade eram mais
de natureza exploratória. “Por estranho que pareça, se você quer controlar o
que sai pela extremidade posterior, tem de saber como aquilo vai se
comportar”, diz Tom Chase, engenheiro da Hamilton Sundstrand que
encontrei por acaso numa expedição lunar simulada no Ártico. Naquela
semana, ele estava mais para trajes espaciais do que para privadas, mas
mesmo assim prontificou-se a falar sobre merda. “Por exemplo…” Chase
começou a desenhar num bloco de papel milimetrado, apoiado em seu
joelho. “Sem a gravidade, que atrai os cocôs em linha reta, eles tendem a se
enroscar à medida que saem.”d Isso foi documentado pela Nasa e pelos
engenheiros sanitários da Hamilton Sundstrand em uma série de filmes em
dezesseis milímetros. Graças a esse trabalho, os engenheiros de sistemas
aeroespaciais de coleta de resíduos não só estão informados sobre o
“enroscamento” como conhecem seu grau e sua trajetória mais provável
(para trás). Sabem que, até certo ponto, os cocôs mais leves se enroscam
mais. E por que precisam saber disso? Porque o enroscamento pode entupir
a parte superior do tubo de transferência e comprometer o fluxo de ar.
Os filmes tinham como atores voluntários de ambos os sexos, sendo as
moças, segundo Chase, “garotas do corpo de enfermagem”. Oficialmente,
os filmes eram de distribuição limitada, mas, de acordo com o folclore da
Hamilton Sundstrand, quase sempre transpunham os limites prescritos.
“Qualquer pessoa que tivesse um amigo na área de projeto de manejo de
dejetos” conseguia vê-los, disse um colega de Chase. “Esses filmes eram
disputadíssimos.”
Acabou acontecendo que alguém que viu a merda viu também a
possibilidade de que fosse atirada no ventilador. “Você pode imaginar a
reação”, disse Chase. E se alguém invocasse a Foia? (Foia é a sigla da
Freedom of Information Act, ou Lei da Liberdade de Informação, pela qual
jornalistas e público podem solicitar cópias de documentos oficiais não
sigilosos.) Os filmes foram destruídos. Chase se lembra disso com tristeza.
Ele pertence à equipe que trabalha nas privadas para missões lunares. “É
uma pena, porque estávamos passando por essa fase aqui e os filmes seriam
muito úteis para nós.”
Don Rethke acha que os problemas de engenharia mais difíceis — daí o
destaque que tinham nas filmagens — referem-se à micção. Para começo de
conversa, os líquidos no espaço tendem a aderir ao corpo. “Quando a
gravidade desaparece”, diz Rethke, “a tensão superficial torna-se a força
física dominante.” A tensão superficial faz com que os líquidos grudem até
nos cabelos. Assim, uma pessoa de cabelos compridos pode reter neles de
dois a três litros de água. A Nasa queria saber em que medida os pelos
pubianos poderiam comprometer a “velocidade potencial” feminina. (Scott
Weinstein, providencialmente, diz que isso é tão fácil como “escrever o
nome na neve com o jato de xixi”.)
Chase começa a rabiscar de novo. “As pessoas não urinam com um jato
externo perfeitamente cilíndrico, se é que alguma vez já prestaram atenção
ao que acontece. No caso das mulheres, há mais coisas que atrapalham a
formação de um fluxo direto.” Ou seja, lábios genitais e pelos pubianos. E
um jato mais fraco tende a se dispersar e formar bolhas e gotas flutuantes.
Foi nesse ponto que Chase me contou algo surpreendente. Disse que
conheceu mulheres que, quando saem para longas caminhadas ou
excursões, são “capazes de baixar as calças até os tornozelos e, encostando-
se numa árvore, movendo as coisas um pouquinho para abrir espaço, fazem
pontaria e direcionam o fluxo”. Houve um silêncio enquanto eu processava
essa informação, capaz de mudar minha vida. Chase foi em frente. “Estou
dizendo que vocês, mulheres, podem fazer xixi com mais dificuldade que os
homens. Mas vocês têm de estar dispostas a manipular a anatomia. O que
acontece é que algumas moças sentem-se mais à vontade do que outras para
explorar suas possibilidades.”
Nenhum tipo de moça, não importa o quanto se sinta à vontade, quer uma
plateia de engenheiros sanitários e seus companheiros. Acabou que as
enfermeiras ficaram sabendo o que estava acontecendo e se negaram a
continuar participando das filmagens. A Hamilton Sundstrand foi obrigada
a ser criativa. “Um dos rapazes tinha uma barriga bem cabeluda”, disse
Chase, e a essa altura ele se recostou na cadeira e estufou a própria pança.
“Se ele fizesse isso…” — pôs as mãos dos dois lados da barriga e apertou-a
contra o umbigo, de modo que foi possível adivinhar a formação de uma
dobra vertical na carne por debaixo da camisa — “… teria quase que o
mesmo aspecto. Assim, em zero G, podiam esguichar nele uma solução
sucedânea [de urina], filmar e explicar a formação de gotas.” Chase
afrouxou a barriga. “Não foi uma ideia ruim.”

Há outras formas de testar uma privada para uso em condições de


gravidade zero. “No Centro de Pesquisas Ames da Nasa, assumimos a
tarefa de criar simulacros de fezes humanas”, diz Kanapathipillai “Wiggy”
Wignarajah num artigo técnico de 2006. Wignarajah é com certeza o mais
sofisticado criador nessa área, mas não foi o primeiro. Outros antes dele —
por exemplo, na indústria de fraldas — já usaram massa de bolo, manteiga
de amendoim, recheio de torta de abóbora e purê de batata. Wignarajah
despreza essas tentativas, já que nenhuma dessas substâncias chega nem
perto da forma como, segundo ele, “as fezes humanas se comportam”. Ou
seja, não tem as mesmas propriedades retentoras de água nem sua reologia
— disciplina que, em engenharia de alimentos, refere-se ao estudo da
consistência, determinada por fatores como viscosidade e elasticidade.
Tecnólogos de alimentos usam instrumentos especiais para medir essas
propriedades e, se forem espertos, não vão emprestá-los ao pessoal do
Centro Ames da Nasa.
Um simulacro feito de feijões resfriados recebeu boa nota de Wignarajah.
Embora seu conteúdo proteico seja elevado demais e portanto não apresente
propriedades retentoras de água, o feijão tem fama de ser tão parecido com
o cocô humano em aspecto e comportamento que futuras visitas a taquerías,
para mim, ficaram arruinadas para sempre. Os criadores do simulacro à
base de feijão eram de Umpqua, no Oregon, e suponho que com isso
Wignarajah quis se referir ao Umpqua Community College, e não ao
Umpqua Bank ou à tribo indígena dos umpquas.
O simulacro de cocô do Centro Ames da Nasa deixa o do Umpqua no
chinelo. A receita compreende oito ingredientes, entre eles missô, óleo de
amendoim, mucilagem, celulose e “matéria vegetal seca moída de forma
grosseira”. Pode não ter um gosto tão bom quanto o do simulacro do
Umpqua, mas é superior em todos os outros aspectos. O principal
ingrediente são coliformes fecais, a bactéria E. coli, que responde por 30%
do peso do material, da mesma forma que nas fezes humanas autênticas.
Não sei dizer se a divisão de privadas do Ames cultiva colônias de
coliformes fecais lá mesmo — além das que habitam os intestinos de todos
os seus empregados vivos — ou se elas são encomendadas pelo correio.
Wignarajah não respondeu meu e-mail.
A única característica que faltava ao simulacro do Ames era o odor fecal.
Para garantir que as futuras medidas de controle do odor correspondam às
expectativas, Wignarajah pretende acrescentar componentes malcheirosos
ao simulacro. Isso pode levar alguém a perguntar: por que perder tempo
com uma imitação? Se eles precisam de algo que tenha o cheiro da própria
coisa, por que não usam a própria coisa? Usar, usam, mas só bem no fim.
“O teste final será rematado com alguns experimentos que usarão fezes
humanas autênticas.” Tão forte é o tabu sobre o contato com excremento
humano que os pesquisadores da Nasa já fizeram, no passado, simulações
com fezes de macaco e de cachorro.

Na frente da camisa polo de Broyan há um distintivo da missão ISS-ULF2,


que levou equipamentos à Estação Espacial Internacional. O desenho
mostra vários elementos da privada da ISS, dispostos dentro de uma moldura
oval, como um assento de privada. Nela lê-se o lema “Orgulho de ser útil”.
Broyan tem bons motivos para estar orgulhoso, tal como Weinstein,
Chase, Rethke, Wignarajah e todos os que trabalham com eles. Uma boa
privada para uso em gravidade zero é uma requintada obra de engenharia,
ciência dos materiais, fisiologia, psicologia e etiqueta. Como acontece com
os simulacros de Wiggy, a falta de um único elemento fará com que as
coisas não funcionem bem. E poucas falhas técnicas têm tanto poder de
comprometer de forma tão drástica e inelutável o bem-estar de uma
tripulação.
É possível que a questão da excreção tenha tido ramificações ainda mais
profundas. Entrevistei o coronel Dan Fulgham, que participou da seleção de
astronautas para a primeira missão do Projeto Mercury. Ele me disse que o
problema da excreção era o principal entrave para a escolha de pilotos do
sexo feminino.e “Sabíamos que as mulheres eram tão boas quanto os
homens. Tivemos mulheres entre os pilotos durante toda a Segunda Guerra
Mundial. Elas pilotavam caças. Eram capazes de pilotar bombardeiros.”
Mas não eram capazes de usar por baixo da roupa um dispositivo para a
coleta de urina em forma de camisinha. “A coleta de dejetos corporais era
um problema real do ponto de vista logístico.” (É evidente que a fralda para
adultos não aparecia na tela de radar de ninguém.)f “Estávamos sob pressão
para fazer o projeto caminhar”, recorda Fulgham. “Então dissemos ‘Vamos
limitar o número de preocupações que já temos’.”
O livro Mercury 13: A história não contada de treze americanas e o
sonho do voo espacial mostra que as mulheres enfrentam outros fatores
adversos. Como o vice-presidente Lyndon Johnson, que, em vez de assinar
uma carta ao diretor da Nasa instando-o a permitir que pilotos de caça do
sexo feminino se candidatassem a astronautas, escreveu no pé da página:
“Vamos parar com isso agora!”.
A duração das missões foi aumentando, a ponto de exigir uma estratégia
fecal, e as tripulações passaram a se compor de duas pessoas. O problema
feminino persistia. “A questão da privacidade foi um fator importante para a
relutância da Nasa em admitir mulheres astronautas”, escreveu Patricia
Santy, que trabalhou na agência espacial na era Gemini-Apollo. No livro A
escolha dos eleitos, ela cita a criação do banheiro espacial privativo —
“provavelmente mais do que qualquer outra razão” — como o fator
determinante para a Nasa passar a aceitar mulheres astronautas.
As privadas foram uma razão para excluir mulheres ou apenas uma
desculpa? Seria lícito pensar que a aprovação de proibições federais
relativas à discriminação de gênero na contratação de pessoas seria um
incentivo mais forte que uma porta de privada. A ironia é que as mulheres
são uma opção mais prática para a navegação espacial. Em média, elas
pesam menos, respiram menos, precisam de menos água e menos comida
que os homens. Consequentemente, isso significa que seria preciso
transportar menos oxigênio, menos água e menos comida.
Em vez de baixar os custos do lançamento enviando ao espaço seres
humanos menores e mais compactos, a Nasa preferiu lançar bifes,
sanduíches e doces menores e mais compactos. Poucas vezes uma coisa tão
fofa foi tão desperdiçada.

a No entanto, poderia ter sido pior. Também foi cogitada, para as tripulações do Projeto Apollo, a
“luva de defecação”. Com ela, o astronauta teria de levar a mão às costas e defecar na própria palma
e virar a luva pelo avesso, mais ou menos como se faz hoje para recolher e descartar cocô de
cachorro com um saco plástico. Depois pensou-se na Algema de Dedos Chinesa, uma bolsa que se
fechava em torno do bolo quando era puxada pela extremidade. O nome “dedo chinês” se refere ao
brinquedinho de criança de mesmo nome — e possivelmente ao gesto que os astronautas faziam em
reação à geringonça.
b Como o tempo dos astronautas era rigidamente programado, e como normalmente os
movimentos intestinais não podem sê-lo, os tripulantes eram levados a ter conversas como esta,
transcrita da missão Apollo 15, entre o comandante Dave Scott e o piloto do Módulo Lunar James
Irwin:
SCOTT: Al, por que você e eu não damos uma parada agora, quando…
IRWIN: Eu gostaria de fazer um cocô, se houver uma brecha, Dave.
SCOTT: Está bem.
IRWIN: Diga-me quando posso ir.
c Ainda existem amostras dos astronautas da época da Skylab e da Apollo, guardadas em freezers
na cobertura de um edifício de segurança máxima, sem janelas, no Centro Espacial Johnson, em
Houston — o único que abriga a coleção de rochas lunares (não biológicas) da Nasa. “Não tenho
certeza de como estará agora nosso estoque de excrementos da Apollo”, diz John Charles. “Quarenta
anos de congelamento, com ocasionais degelos em blecautes provocados por furacões, podem tê-los
reduzido a meros vestígios de sua antiga glória.” Em 1996 eles ainda estavam lá, pois o geólogo
planetário Ralph Harvey deu com eles quando se perdeu, ao conduzir um grupo de turistas VIP em
visita. “Na época, todas as portas se abriam com a mesma senha”, recorda. “Abri aquela porta, e foi
como dar com uma cena de Os caçadores da arca perdida. Havia filas e mais filas de freezers
compridos e baixos. Todos eles tinham uma luzinha piscando, um indicador de temperatura e uma
etiqueta com o nome do astronauta. Merda, tive a impressão de que eles armazenavam os astronautas
ali! Tirei as pessoas daquele lugar às pressas. Mais tarde, soube que era ali que eles guardavam fezes
e urina dos astronautas.” Harvey não se lembra do número da sala. “Você tem de topar com ela, é a
única maneira de encontrá-la. É como Nárnia.”
d Rethke chama isso de “efeito casca de laranja”. O termo se refere também a um defeito numa
superfície pintada com spray, comum no acabamento de um carro. Seja como for, o cara da oficina
lhe deve um pedido de desculpas.
e Foi também a principal razão para que os russos preferissem fêmeas — ao menos para voos de
animais. Era dificílimo treinar cachorros para que urinassem num dispositivo de coleta, pois as
limitações da cápsula impediam que assumissem a posição natural para isso: com a perna levantada.
f Segundo um cronograma da evolução da fralda, no site disposablediaper.net, a fralda para
adultos teve sua estreia em 1987, no Japão. A ideia da fralda descartável, no entanto, remonta a 1942.
Quem a inventou foi uma empresa sueca — e não a Nasa, como se pensa. Ao examinar o diagrama,
contudo, pode-se ter a impressão de que a Nasa estava envolvida no assunto. Existem fraldas com
secagem a vácuo, fraldas sem enchimento, fraldas com sistema de fechamento flexível e “chassi
menor e orelhas laterais elásticas”. A fralda para adultos da Nasa é um produto adquirido na rede
comercial. A atual chama-se Absorbencies [absorvências]. É difícil imaginar nome pior para uma
fralda, exceto talvez o nome anterior, Rejoice [júbilo].
15. DESGULOSEIMAS

O que acontece quando veterinários


pilotam o fogão e outros casos trágicos de
testes da culinária aeroespacial

No dia 23 de março de 1965, um sanduíche de carne de uma loja da rede


Wolfie’s foi lançado ao espaço. Havia uma filial da Wolfie’s em Cocoa
Beach, na Flórida, perto do Centro Espacial Kennedy. O astronauta Wally
Schirra pediu o sanduíche para viagem e levou-o para o centro espacial,
onde convenceu o astronauta John Young a contrabandeá-lo para dentro da
cápsula Gemini III e dar um susto em seu companheiro de tripulação, Gus
Grissom. Passadas duas horas de um voo de cinco horas de duração, foi o
que Young fez. As coisas não aconteceram bem como ele tinha imaginado.
GRISSOM: De onde saiu isso?
YOUNG: Eu trouxe. Vamos ver que gosto tem. Cheira bem, não?
GRISSOM: Sim, [e] está se partindo. Vou metê-lo no bolso.
YOUNG: Foi só uma ideia.
GRISSOM: Tá.
Naquele ano, o “incidente do sanduíche de carne” serviu de munição para
os detratores da Nasa nos debates sobre orçamento no Congresso Nacional.
Na sessão de 12 de julho de 1965, o senador Wayne L. Morse, que defendia
uma redução de 50% na verba de 5 bilhões de dólares proposta para a Nasa,
disse que Young tinha “debochado” do programa científico Gemini, com
ingestão de alimentos e eliminações rigorosamente calculadas. Outra pessoa
perguntou ao administrador da Nasa, James Webb, de que forma ele
pretendia controlar uma verba multibilionária se não conseguia nem
controlar dois astronautas. Young recebeu uma advertência formal.
O contrabando do sanduíche da Wolfie’s infringiu nada menos que
dezesseis requisitos para a produção formal de “sanduíches de carne,
desidratados (do tamanho de uma mordida)”. Os requisitos enchem seis
páginas e são vazados na linguagem austera dos mandamentos bíblicos.
(“Não deverá haver [...] áreas molhadas ou úmidas.” “A crosta não deverá
lascar ou escamar.”) Além do mais, o sanduíche da Wolfie’s apresentava o
Defeito 102 (“odor estranho, por exemplo, rançoso”) e o Defeito 153
(“quebrar ao ser manuseado”), entre dezenas de outros, embora felizmente
não incorresse no Defeito 151, “osso, concha ou matéria tendinosa
aparente”.
A comida a ser ingerida numa cápsula espacial é o contrário de um
sanduíche da Wolfie’s. Deve ser muito leve. Cada quilo de peso extra que a
Nasa lança ao espaço custa milhares de dólares em combustível. Tudo tem
de ser muito compacto. A cápsula da Gemini III não era maior que o interior
de um carro esportivo. Devido aos limites rígidos de volume e peso, os
tecnólogos em alimentos visavam à máxima “densidade calórica”:
condensar a maior quantidade possível de nutrientes e energia no menor
volume possível de alimento. (Exploradores polares, que enfrentam
limitações semelhantes e não têm verbas públicas de pesquisa, levam
bastões de manteiga.) Até o bacon é espremido numa prensa hidráulica para
se tornar mais compacto.
O alimento prensado não só ocupa menos espaço na estocagem, como
tem menos chance de se esmigalhar. Para o engenheiro espacial, as
migalhas eram muito mais do que uma preocupação de asseio doméstico.
Em gravidade zero, a migalha não cai no chão, onde poderia ser ignorada e
permanecer até a chegada do faxineiro. Ela flutua. Pode meter-se atrás do
painel de controle ou no olho de alguém. Foi por isso que Grissom
escondeu o sanduíche quando viu que estava se partindo.
Ao contrário de um sanduíche da Wolfie’s, um cubinho de sanduíche
pode ser comido de uma só mordida. Nem mesmo uma torrada deixará cair
migalhas se for posta inteira na boca. E isso você pode fazer, como fizeram
Young e Grissom, se a torrada tiver a forma de um cubinho. Para maior
segurança, as migalhas são evitadas por meio de uma crosta comestível.
(“Resfrie as torradas com uma camada de gordura até que congelem…”, diz
a receita.)
As equipes de nutrição aeroespacial — algumas da Força Aérea, outras
da Marinha, outras particulares — tiveram bastante trabalho no
aperfeiçoamento da crosta de seus cubinhos alimentares. Um relatório
técnico destaca uma progressão de fórmulas em busca do equilíbrio. A
Fórmula 5 era grudenta demais. A Fórmula 8 rachava no vácuo. Mas a
Fórmula 11 (toucinho derretido, proteína do leite, gelatina, maisena e
sacarose) foi tida como adequada. Exceto pelos que tinham de comê-la.
“Deixa um gosto ruim e cola no céu da boca”, reclamou Jim Lovell ao
Controle de Missão durante o voo da Gemini VII.

Uma coisa é arquitetar um cubinho de sanduíche laqueado que pese


menos de 3,1 gramas e resista à fragmentação “ao cair sobre uma superfície
dura de uma altura de meio metro”. Outra é fazer dele um alimento
saudável e gostoso que uma pessoa possa comer durante semanas a fio. As
missões dos projetos Mercury e Gemini foram, com uma ou duas exceções,
de curta duração. As pessoas podem viver praticamente de qualquer coisa
por um dia ou uma semana. Mas a Nasa tinha em vista missões lunares de
mais de duas semanas de duração. Então, era preciso saber: o que acontece
com a saúde digestiva de um homem que consome habitualmente refeições
compostas de flocos de toucinho e amido de milho gorduroso pré-
gelatinizado? Quanto tempo um ser humano poderia sobreviver com os
alimentos concebidos pelas cozinhas experimentais militares? Outra coisa,
durante quanto tempo ele se disporia a isso? De que modo esse tipo de
alimentação pode influir sobre o estado de espírito dos tripulantes?
Durante a década de 1960, a Nasa pagou um dinheirão a um monte de
gente na tentativa de responder a essas perguntas. Os contratos de pesquisa
e desenvolvimento de alimentos espaciais foram concedidos aos
Laboratórios de Pesquisa Médica Aeroespacial (AMRL), da Base Aérea
Wright-Patterson, e mais tarde à Escola de Medicina Aeroespacial (SAM), da
Base Aérea Brooks. Os Laboratórios Natick, da Marinha, especificavam as
exigências para a produção, entidades privadas produziam os alimentos e os
AMRL e a SAM faziam os testes com voluntários em terra. Nessas duas bases
foram instalados simuladores de uma cabine espacial, onde grupos de
voluntários ficavam confinados durante voos espaciais de mentirinha,
alguns deles de até 72 dias de duração. Muitas vezes, a comida era testada
juntamente com trajes espaciais, procedimentos de higiene e diferentes
atmosferas — uma delas, deliciosa, com 70% de hélio.
Três vezes por dia, os nutricionistas deixavam as refeições experimentais
numa imitação de compartimento pressurizado. Ao longo dos anos, os
voluntários sobreviveram a todas as formas de alimentos aeroespaciais
processados e controlados: cubinhos, palitos, mingaus, barrinhas, pós e
“reidratáveis”. Os nutricionistas pesavam, mediam e analisavam tudo o que
era ingerido e faziam o mesmo com o que era eliminado. “As amostras de
fezes eram […] homogeneizadas, secas e congeladas, e analisadas em
duplicata”, escreveu o primeiro-tenente Keith Smith na avaliação
nutricional de uma dieta aeroespacial que incluía picadinho de carne e
pudim de chocolate. Você tinha de torcer para que o tenente não
confundisse seus recipientes.
Uma foto da época mostra dois homens numa situação extremamente
desconfortável, usando camisolas de hospital e ligados a uma espécie de
monitor de sinais vitais. Um deles, jovem, está sentado todo encurvado na
parte inferior de um beliche tão estreito e fino que mais parece uma tábua
de passar de dois andares. Tem na mão esquerda algo que parece ser um
biscoitinho e, no colo, um saco plástico com mais quatro cubinhos selados:
o jantar. No nariz, vê-se um tubo seguro por esparadrapo. Seu companheiro
de quarto usa óculos pretos como os de Clark Kent, fones de ouvido e está
sentado numa espécie de console que parecia futurista em 1965 e agora
parece um suvenir de Jornada nas estrelas. A legenda não ajuda: “Pessoal
da alimentação espacial, 1965 a 1969”. Quem a escreveu talvez tenha
tentado alguma coisa mais informativa, como “Teste dos efeitos de
sanduíches em miniatura sobre o ritmo cardíaco e respiratório” — mas não
conseguiu encontrar uma forma de expressar-se sem comprometer a
dignidade da Força Aérea.
Muitas das imagens são fotos do gênero “Antes” e mostram aeronautas
infelizes e sorridentes posando na entrada da câmara de testes da SAM, junto
da nutricionista May O’Hara, pouco antes de entrar na câmara e ter a porta
fechada atrás de si. May O’Hara tinha exatamente o aspecto que se podia
esperar de uma nutricionista — nem abaixo nem acima do peso, bem
penteada e de boa aparência, embora fosse pouco provável que exercesse
algum efeito mais profundo sobre o ritmo cardíaco e respiratório dos jovens
recrutas da Força Aérea. May era uma pessoa bem bacana. Num artigo para
uma publicação militar, ela manifesta preocupação com a aceitação dos
diversos alimentos espaciais, “dia após dia, durante trinta dias ou mais”.
Parecia a única voz da razão. Embora os alimentos em cubinhos tivessem
uma recepção morna, seus criadores continuavam a prensá-los, entusiástica,
incansável e hidraulicamente. Não chegavam a entender que alimentos
reidratados com saliva — permanecendo “na boca durante dez segundos”
— podem acabar com o ânimo de uma pessoa num voo de uma semana. E
assim foi. Missão após missão, os sanduíches em cubinhos eram, segundo
Charles Bourland, antigo engenheiro de alimentos da Nasa, “uma das coisas
que normalmente vinham de volta”. (Ele quis dizer que continuavam a
bordo depois do pouso, não que tivessem sido regurgitados. Acho eu.)
Liguei para a casa de May O’Hara, no Texas, num dia de semana logo
depois do almoço. Ela está agora na casa dos setenta. Perguntei-lhe sobre o
que tinha comido. Tinha sido um almoço de nutricionista, e a resposta foi de
uma nutricionista, como o cardápio de uma lanchonete: “Carne grelhada,
sanduíche de queijo, uvas e mix de frutas”. Perguntei se era frequente que
os voluntários do simulador da SAM abandonassem a pesquisa pela metade,
ou que escapassem da câmara para uma visita noturna a uma lanchonete de
hambúgueres. Mas não. “Eles cooperavam o quanto podiam”, disse May. Se
não por outra razão, porque acabavam de sair do treinamento básico. A
perspectiva de passar um mês sem nenhuma exigência física mais cansativa
além de mastigar tinha certo atrativo. Além disso, em troca do voluntariado,
eles podiam escolher onde serviriam na Força Aérea em vez de ser enviados
para qualquer lugar.
Já no simulador dos AMRL, os voluntários eram estudantes de graduação
da Universidade de Dayton e recebiam pagamento. Talvez pelo fato de
serem pagos, ou porque a Dayton era uma escola católica, esses rapazes
também eram prestativos e geralmente bem-comportados. Apesar disso, a
falta da eucaristia ocasionalmente se tornava um problema.a Um dos
voluntários ficou tão alterado que os cientistas quebraram o protocolo e
chamaram um padre, que lhe deu a comunhão por meio de um circuito
fechado de televisão e um microfone. Numa espécie de passa-pratos, foram
postas uma pequena quantidade de vinho e uma única hóstia, cujo sabor
provavelmente empatava com o da comida normal da câmara.
Uma das dietas testadas conseguiu avaliação ainda pior que os alimentos
em cubinhos. “Era milk-shake no café, no almoço e no jantar”, diz John
Brown, oficial encarregado do simulador de cabine espacial dos AMRL.
Numa escala de 1 a 9, os voluntários que se alimentaram assim durante
trinta dias deram à comida uma nota média de 3 (moderadamente ruim).
Brown disse-me que 3 provavelmente significava 1: “Os voluntários
preenchiam seus formulários com aquilo que você queria ouvir”. Um deles
confidenciou a Brown que ele e seus companheiros costumavam esconder
porções da fórmula debaixo do piso da cabine. Apesar da má aceitação da
dieta, os pesquisadores avaliaram não menos de 24 fórmulas dietéticas
líquidas comerciais e experimentais. Cheguei a ler um relatório da Força
Aérea que enumera os requisitos desejáveis do papel comestível: “Insípido,
flexível e firme”. É como eu imagino alguns desses caras da comida
espacial.
Enquanto isso, na SAM, Norman Heidelbaugh testava uma dieta líquida de
sua própria lavra. Um comunicado da Força Aérea chamava-a de “dieta da
gemada”. May O’Hara definiu-a como “uma espécie de Ensureb em pó”.
“Era realmente intragável”, disse ela, sincera como poucas vezes. O próprio
Heidelbaugh parecia deixar um gosto desagradável na boca das pessoas.
Embora parecesse que a ciência da nutrição estava atraindo uma
linhagem singular de sádicos gustativos, havia outras forças em movimento.
Estávamos em meados da década de 1960. Os americanos estavam
maravilhados com o conforto e as tecnologias da era espacial responsáveis
por isso. As mulheres voltavam a trabalhar e tinham menos tempo para
cozinhar e cuidar da casa. Uma refeição em barra ou num saquinho era ao
mesmo tempo uma novidade e uma maneira bem-vinda de poupar tempo.
Essa foi a mentalidade que impulsionou a prolongada e lucrativa carreira
de uma das menos apreciadas dietas líquidas dos AMRL, que tinha o nome de
Carnation Instant Breakfast. O Space Food Stick também começou a vida
como um subproduto militar. Aquilo que a Força Aérea chamava de
“comida em bastão para alimentação em altitudes” foi criado originalmente
como um alimento que pudesse passar através da abertura do capacete de
um traje pressurizado. “Não conseguimos torná-lo rígido o bastante”,
contou-me May O’Hara. Então Pillsbury levou de volta seus bastões e
comercializou-os. Bourland diz que ocasionalmente eles eram despachados
com os astronautas simplesmente como lanchinhos de bordo — às vezes
com o nome de Bastões Alimentares de Nutrientes, outras como Bastões de
Caramelo, sem enganar ninguém.
Nem mesmo as empresas que produzem alimentos em barrinhas ou
shakes esperam que a família americana se alimente exclusivamente deles.
Tenho motivos para crer que uma conspiração de nutricionistas radicais
estava influenciando o pensamento da Nasa. Eram homens que se referiam
a um coquetel como “composto de dois carbonos”. Gente que escreveu
capítulos inteiros de livros didáticos sobre “estratégias de molhos ou glacê”.
Assim o nutricionista Nevin S. Scrimshaw, do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, defendeu a fórmula dietética líquida na Conferência sobre
Nutrição no Espaço e Problemas Correlatos de Descarte, em 1964: “Para
manter a produtividade e o moral, as pessoas que têm outras coisas
importantes e desafiadoras para preencher sua vida não precisam
necessariamente encher a boca com bocados e mastigar, nem de alimentos
variados”. Scrimshaw se vangloriava de ter alimentado seus voluntários do
MIT com jantares líquidos durante dois meses sem ouvir reclamação. Os
astronautas da Gemini escaparam por pouco de um destino pior do que os
cubinhos. “Esperamos, para o Projeto Gemini”, disse Edward Michel, da
Nasa, na mesma conferência, “chegar a um tipo de fórmula dietética […]
que usaríamos no pré-voo, durante o voo e por mais duas semanas no
período pós-voo.”
Scrimshaw estava enganado. As pessoas precisam sim “encher a boca
com bocados e mastigar”. Submeta-as a uma dieta líquida e elas vão
implorar por alimentos sólidos. Passei uma única manhã fazendo a dieta dos
tubos da era Mercury, e foi o que aconteceu. Os astronautas já não usam
comida em tubos, mas os pilotos militares sim, quando estão no meio de
uma missão e não podem parar para desembrulhar um sanduíche. Vicki
Loveridge, uma prestativa e simpática tecnóloga de alimentos do Conselho
de Alimentação de Combate do Exército americano em Natick, disse que as
formulações e a tecnologia pouco mudaram desde a era Mercury.
Convidou-me para ir a Natick. (“Dan Nattress vai preparar torta de maçã
em tubos no dia 21 de manhã.”) Não pude ir, mas ela fez a gentileza de me
mandar uma caixa de amostras. Pareciam os tubos de tinta de minha
enteada Lily.
Comer comida de tubo é uma experiência inquietante como poucas.
Exige passar ao largo dos dois sistemas de controle de qualidade do corpo
humano: o visual e o olfativo. Bourland disse que os astronautas odiavam
os tubos exatamente por esse motivo: “Eles não podiam ver nem cheirar o
que estavam comendo”. A textura, ou “sensação bucotátil”, para usar um
termo da tecnologia de alimentos, também é irritante. Quando um rótulo diz
“sanduíche de carne moída”, você espera alguma carne moída. A versão da
Natick não tem nenhuma característica perceptível da carne moída. É tudo
uma pasta. Toda comida de tubo é assim, porque, como diria Charles
Bourland, “a textura se resume ao orifício do tubo”. A primeiríssima
comida espacial era basicamente papinha de bebê. Mas até mesmo os bebês
comem com colher. Os astronautas da Mercury precisavam chupar sua
comida através de um orifício de alumínio. Não tinha nada de heroico.
Nem, como acabou se vendo, nada de necessário. Uma colher e um
recipiente aberto funcionam bem em gravidade zero desde que o alimento
tenha, para citar a adorável May O’Hara, “vis-co-si-da-de ou algo assim”.
Se for espesso e úmido o bastante, a tensão superficial vai evitar que ele
escape.
O sanduíche de carne moída tinha gosto de molho de enchilada
congelada. O prato vegetariano da Natick — que alguém, obviamente sem
saber como classificá-lo, etiquetou apenas “vegetariano” — era outro purê
de tomate vagamente condimentado. Ser astronauta da Mercury devia ser
como estar preso na gôndola de molhos de um mercadinho minúsculo. Mas
o purê de maçã da Natick — fórmula idêntica à do histórico tubo de purê de
maçãc de John Glenn — estava bem bom.
Em parte, imagino, por ser conhecido. Espera-se que o purê de maçã seja
um purê. Um dos problemas com os primeiros alimentos espaciais era sua
estranheza. Quando você está em disparada pelo espaço dentro de uma lata
fria, apertada e esterilizada, quer alguma coisa aconchegante e familiar. A
culinária espacial atraiu o público americano por ser novidade, mas os
astronautas já tinham tido novidade suficiente para muitas vidas.

De tempos em tempos, falava-se, entre astronautas, que seria bom ter


algo para beber no jantar. A cerveja não é voadora, porque sem gravidade as
bolhas gasosas não sobem à superfície. “Tudo o que você consegue é uma
espumarada”, diz Bourland. Ele me disse também que a Coca-Cola investiu
450 mil dólares na pesquisa de um dispensador para gravidade zero, apenas
para ser derrotada pela biologia. Como as bolhas não sobem à parte superior
do estômago, os astronautas têm dificuldade para arrotar. “Muitas vezes o
arroto é acompanhado de um jato líquido”, completa Bourland.
Ele fora encarregado de uma efêmera tentativa de servir vinho nas
refeições de bordo na Skylab. Enólogos da Universidade da Califórnia
recomendaram xerez, que se conserva melhor por ser aquecido no processo
de produção. É o suco de laranja pasteurizado do mundo dos vinhos. Como
é proibido levar garrafas ao espaço por razões de segurança, ficou decidido
que a bebida, um xerez doce da vinícola Paul Masson, seria embalada em
sacos plásticos dentro de latas de pudim. Isso restringiu ainda mais o já
escasso atrativo do xerez doce.
As latas de xerez, como qualquer outra tecnologia criada para o espaço,
foram submetidas a um voo parabólico para o teste de gravidade zero.
Embora a embalagem tenha funcionado bem, ninguém a bordo ficou muito
entusiasmado com o produto. Um cheiro forte de xerez invadiu prontamente
a cabine, complementando os atributos enjoativos mais comuns de um voo
parabólico. “Assim que você abria a lata”, relembra Bourland, “via gente
agarrando seus saquinhos para vomitar.”
Não obstante, Bourland preencheu uma ordem de compra, pelo governo,
de diversas caixas do Paul Masson. Pouco antes que o xerez fosse
embalado, o assunto foi mencionado numa entrevista e começaram a chegar
à Nasa cartas de contribuintes abstêmios. Foi assim que, tendo gasto sabe
Deus quanto dinheiro no embalamento, na requisição e nos testes do xerez
doce enlatado, a Nasa cancelou toda a compra.
Se tivesse voado, o xerez da Skylab não teria sido a primeira bebida
alcoólica requisitada pelo governo como parte do rancho para uma missão
de serviço nacional. A ração da Marinha britânica tinha rum até 1970. De
1802 a 1832, a refeição dos militares americanos incluía um gill (120
mililitros) — pouco mais de duas doses — de rum, brandy ou uísque, junto
com a cota diária de carne e pão. A cada cem rações, os soldados recebiam
também sabão e 700 gramas de velas. Estas podiam ser usadas para
iluminação, escambo ou, se você fosse do tipo organizado, para derreter e
envolver seus sanduíches de carne.
Os nutricionistas não foram os únicos responsáveis pela desumanidade
da antiga comida espacial. Charles Bourland me alertou para algo que eu
não tinha percebido: o título “USAF VC” depois do nome de Norman
Heidelbaugh, o patrono da dieta líquida. Heidelbaugh era membro do Corpo
Veterinário da Força Aérea. O mesmo acontecia com Robert Flentge, um
dos editores de Prescrições para produção de alimentos para a alimentação
aeroespacial, manual de 229 páginas para os preparadores de comida
astronáutica. “Muitos dos caras da tecnologia de alimentos eram
veterinários militares”, revelou Bourland. Na época do lançamento dos
macacos no foguete Aerobee e das pesquisas sobre desaceleração com
trenós do coronel Stapp, a Força Aérea tinha colônias de cobaias animais e,
portanto, precisava de veterinários (ou, para quem acha que seis sílabas não
bastam, “veterinários de apoio astronáutico”). Segundo o artigo “O céu é o
limite para os veterinários da Força Aérea!”, de 1962, entre as atribuições
desses militares estavam “formular e testar alimentos” — primeiro para
animais e, depois, para astronautas. Má notícia para as tripulações espaciais.
Os veterinários encarregados da pesquisa de alimentos para cobaias ou
gado têm três preocupações: custo, facilidade de uso e prevenção de
problemas de saúde. Entre elas não está o fato de macacos ou vacas
gostarem da comida. Isso explica a fórmula dietética da calda de caramelo,
os flocos de milho prensados e o creme de amendoim em cubos. É o que
acontece quando o fogão é pilotado por veterinários. Como lembra
Bourland, “o veterinário diria: ‘Para alimentar animais, misturo um saco de
ração, ponho lá e eles comem tudo de que precisam. Por que não se pode
fazer o mesmo com os astronautas?’”.
Às vezes fazem. O relatório técnico de Norman Heidelbaugh “Método
para a produção de alimentos peletizados em pequenas quantidades”, de
1967, é prova disso. Heidelbaugh criou a ração de astronauta! Os dois
ingredientes principais, considerando seu peso relativo na fórmula, eram o
Coffee-mate, um sucedâneo do leite, e dextrose/ maltose, o que lança
dúvidas sobre a afirmação do veterinário de que os péletes para seres
humanos eram “extremamente palatáveis”. Mais uma vez, a gostosura não
figurava entre as principais preocupações do homem. Peso e volume, sim.
Segundo esses critérios, Heidelbaugh criou um campeão: “A densidade
calórica será suficiente para proporcionar 2600 kcal [2,6 milhões de
calorias] a partir de aproximadamente 600 mililitros de comida”.
Os métodos de Heidelbaugh para economizar espaço só parecem
exagerados a quem não conhece a solução proposta em 1964 por Samuel
Lepkovsky, professor de pecuária avícola na Universidade da Califórnia em
Berkeley. “Se fosse possível encontrar astronautas competentes e obesos”,
começa Lepkovsky, aparentemente sem perceber que estava maluco.d “Uma
pessoa obesa com 20 kg de gordura […] tem uma reserva de 184 mil
calorias. Isso significa mais de 2 mil calorias por dia durante 90 dias.” Em
outras palavras: pensem no combustível que se pode poupar se não
oferecermos ao astronauta comida alguma!
Matar astronautas de fome durante a missão resolveria outro dos
primeiros problemas da Nasa: o manejo de dejetos. Não só o uso da bolsa
fecal era alvo de fortes objeções como o produto final fedia e ocupava
espaço precioso na cabine. “Tudo o que os astronautas queriam era poder
tomar uma pílula e não comer”, diz Bourland. “Eles falavam nisso o tempo
todo.” Os engenheiros de alimentos bem que tentaram fazer isso acontecer,
mas falharam. A solução encontrada pelos astronautas foi pular refeições,
privação que se tornava mais suportável pelo fato de conhecerem o
conteúdo dos saquinhos de alimento.
Jim Lovell e Frank Borman estiveram trancados na cápsula da Gemini VII
durante catorze dias. O jejum já não era uma estratégia viável de manejo de
dejetos. (Mas quase: “Frank passou, acho, nove dias sem ter de ir ao
banheiro”, diz Lovell na transcrição de seu depoimento para a história oral
da Nasa. Nessa altura, Borman anunciou: “Foi isso, Jim”. E Lovell
respondeu: “Frank, você só tem mais cinco dias para ir ao banheiro aqui!”.)
O novo imperativo da Nasa era criar alimentos não apenas leves e
compactos, mas que deixassem “pouco resíduo”. “Em missões curtas da
Mercury e da Gemini”, escreveu Borman em suas memórias, “o movimento
intestinal era raro.”
Entram em cena outra vez os falsos astronautas. O relatório técnico AMRL
66-147, “Efeitos de dietas experimentais e das condições espaciais
simuladas sobre a natureza dos dejetos humanos”, detalha os catorze dias de
privações de quatro homens que serviram de dublês digestivos de Lovell e
Borman no simulador dos AMRL. A primeira dieta testada foi a do infame
tudo-em-cubinhos: cubinhos de sanduíche, “bocados de carne” e
sobremesas em miniatura. Era como se a cozinha fosse comandada por
bonecas.
Os cubos foram um fiasco digestivo. A crosta tinha sido modificada, com
azeite de dendê em lugar do toucinho. O azeite valsou pelo intestino quase
sem ser digerido, dando a nossos aeronautas uma esteatorreia, e a você e a
mim uma nova palavra. (Esteatorreia é a formação de fezes gordurosas, em
oposição à diarreia, ou fezes aquosas.) A esteatorreia provocou, para citar o
San Antonio Express, “efeitos gastrointestinais incompatíveis com o
desempenho eficiente num veículo em órbita”.e O repórter foi discreto, mas
o documento técnico disse tudo claramente. Fezes oleosas são sujas e têm
um cheiro horroroso. A opção número 3 — “macio mas não líquido” — era
uma das escolhidas com maior frequência pelos voluntários (cujas
desgraças do dia a dia eram ampliadas pela tarefa de inspecionar e avaliar
os próprios dejetos). O relatório não menciona vazamento anal, mas eu sim.
Se você tiver oleosidade no cocô — seja ela proveniente de Xenical ou da
crosta dos cubinhos da comida espacial —, uma parte dela vai escapulir.
Quando se tem apenas uma cueca para um voo espacial de duas semanas, o
vazamento anal não é boa companhia.
Também foi testada uma das dietas líquidas: 42 dias de milk-shakes.
Supunha-se que a dieta líquida pudesse reduzir tanto o volume de dejetos
sólidos produzidos pelos homens quanto a “frequência da descarga fecal”.
Se você bebe, você urina, era o raciocínio provável. Mas não é assim. Por
causa de todas as fibras dissolvidas na bebida, a “massa diária” pode
aumentar bastante. Em alguns casos, mais que dobrar.
Ironicamente, se você quiser minimizar o “resíduo” de um astronauta,
deve alimentá-lo exatamente com aquilo que ele deseja: um bife. A proteína
e a gordura animais são os alimentos de maior digestibilidade da face da
Terra. Quanto melhor o corte, mais completamente a carne é digerida e
absorvida — a ponto de não haver quase nenhuma egesta (o contrário de
ingesta). “Para carne de vaca, porco, frango ou peixe, a digestibilidade é de
cerca de 90%”, diz George Fahey, professor de ciências zoológicas e
nutricionais da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign. Cerca de
94% das gorduras são digeridas. Um bife de filé de trezentos gramas dá
origem a não mais de trinta gramas de, como se diz no laboratório de Fahey,
egesta.f O melhor de todos: ovo. “Poucos alimentos”, diz Franz J.
Ingelfinger, que fez parte do painel da Conferência sobre Nutrição no
Espaço e Problemas Correlatos de Descarte de 1964, “são digeridos e
assimilados de modo tão completo quanto o ovo cozido.” Essa é uma razão
pela qual o café da manhã tradicional da Nasa no dia do lançamento se
compõe de bife com ovos.g O astronauta deve ficar deitado de costas,
completamente vestido, durante pelo menos oito horas. Você não ia querer
comer Fiber One na manhã anterior ao lançamento. (A agência espacial
soviética não tinha o hábito de dar bife com ovos aos cosmonautas antes do
lançamento; dava-lhes um clister de um litro.)
Fahey, o especialista em resíduos, presta consultoria para a indústria de
alimentos de animais domésticos. Esse é o pessoal de ciências zoológicas
com quem a Nasa deveria ter trabalhado, não os veterinários da Força
Aérea. Quais são as duas preocupações principais do fabricante de ração?
Sabor e “características fecais”: além do prato limpo, um tapete da sala
limpo. Em primeiro lugar, e mais importante: o dono de um cachorro quer
alimentar seu animal com alguma coisa de que ele goste. Prefiro pensar que
esse é também o objetivo da Nasa. “A preocupação número dois”, disse
Fahey, fazendo uma piada não intencional, “é a consistência do cocô.
Preferimos que a matéria fecal seja firme o bastante para que possa ser
recolhida e descartada com facilidade. Nada daquele monte de coisa
molenga.” O mesmo vale para os astronautas da Gemini e da Apollo.
Os fabricantes de ração também buscam o antigo objetivo dos
engenheiros de alimentos espaciais, a “baixa frequência de descarga fecal”.
Um cachorro de apartamento não tem mais de duas oportunidades de
descarga: de manhã, antes que o dono saia para o trabalho, e de noite. “Ele
deve ser capaz de reter durante oito horas”, diz Fahey. O mesmo que um
astronauta na plataforma de lançamento. Ou então, como espera o
astronauta, que se passe o maior tempo possível entre dois encontros com a
bolsa fecal.
Outra forma de baixar a frequência seria escolher uma raça de astronauta
mais tranquila. Os cães hiperativos têm metabolismo mais rápido; o
alimento transita com maior rapidez, por isso não tem tempo de ser
completamente digerido. Cães de caça, agitados por natureza, costumam
fazer cocô mole. E como foram programados para sair correndo atrás da
presa a qualquer momento, devoram o alimento. Isso agrava o problema.
Quanto menos se mastiga, mais alimento fica sem digerir.
O que Fahey teria dado de comer aos primeiros astronautas? Como
cereal, ele recomenda arroz, que dentre todos os carboidratos é o que gera
menos resíduo. (É por isso que a ração Purina produz o sabor Carneiro &
Arroz e não Carneiro & Batatinhas.) Fahey dispensaria frutas frescas e
verduras, que provocam situações de grande volume e alta frequência. Por
outro lado, se você lhes der apenas alimentos altamente processados, sem
resíduo e nenhuma fibra, eles terão prisão de ventre. O que, a depender da
duração do voo, seria o ideal. “Nas atuais condições”, escreveu Franz
Ingelfinger, “com a ênfase em voos de curta duração, tenho certeza de que a
solução mais prática para o problema de descarte de dejetos seria um
astronauta constipado.”

Doze anos depois do incidente do sanduíche de carne, o astronauta John


Young causou mais um constrangimento a seu empregador pela imprensa
nacional. Young estava com seu companheiro de tripulação da Apollo 16,
Charlie Duke, sentado no Módulo Lunar, após um dia de atividade
extraveicular para a coleta de rochas. Durante o debriefing feito por rádio
ao Controle de Missão, imprevistamente, Young declara: “Estou peidando
outra vez. Outra vez, Charlie. Não sei que diabos está me causando isso
[…] Acho que é ácido no estômago”. Depois da Apollo 15, a escassez de
potássio foi responsabilizada pela arritmia cardíaca sofrida pelos
tripulantes, e a Nasa introduziu no cardápio bebidas de laranja, grapefruit e
outros cítricos enriquecidas com potássio.
Young foi em frente. Está tudo na transcrição da missão. “Quero dizer
que nem em vinte anos ingeri tanto cítrico. E vou dizer uma coisa: em outro
período de doze dias, não vou mais comer porra nenhuma de cítrico. E se
quiserem me dar potássio no café da manhã, vou vomitar. Gosto de uma
laranja de vez em quando, claro que gosto. Mas vou me ferrar se me
afogarem em laranjas.” Pouco depois, o Controle de Missão entrou na linha
e deu a Young mais alimento para sua indigestão.
COMUNICADOR: Orion, aqui Houston.
YOUNG: Sim, senhor.
COMUNICADOR: Escute, você [está] sendo gravado.
YOUNG: Oh! Há quanto tempo?
COMUNICADOR: Durante todo o debriefing.
Dessa vez não foi o Congresso que se aborreceu. No dia seguinte à
chegada dos comentários de Young à imprensa, o governador da Flórida fez
uma declaração em defesa do principal produto agrícola de seu estado,
parafraseada nas memórias de Charlie Duke: “Não é o suco de laranja o
causador do problema. É um sucedâneo artificial que não vem da Flórida”.
Na verdade, era o potássio, não o suco de laranja. O “coeficiente de
flatulência” do suco de laranja — para usar a terminologia de Edwin
Murphy, pesquisador de flatulência do Departamento de Agricultura e mais
um integrante do painel da Conferência sobre Nutrição no Espaço e
Problemas Correlatos de Descarte de 1964 — é baixo.
Murphy mencionou pesquisas feitas por ele com uma “refeição
experimental de feijões” em que os voluntários foram ligados por um
cateter retal a um dispositivo de medição de gases expelidos. Ele estava
mais interessado nas diferenças de indivíduo para indivíduo — não apenas
quanto ao volume total de flatulência, mas na proporção dos gases que
entram em sua composição. Devido a peculiaridades da flora intestinal, só
metade da população produz metano. Isso faz da outra metade as pessoas
mais adequadas para a astronáutica, não por causa do mau cheiro do
metano, que é inodoro, mas por ele ser altamente inflamável. (O metano é o
gás de uso doméstico conhecido como “gás natural”.)h
Murphy faz uma sugestão inusitada à comissão de seleção de astronautas:
“O astronauta deve ser selecionado dentre a metade da população que
produz pouco ou nenhum metano ou hidrogênio” — o hidrogênio também é
explosivo — “e uma taxa bem baixa de sulfeto de hidrogênio e outros
integrantes malcheirosos dos gases flatulentos ainda não identificados […]
Além disso, como alguns astronautas podem apresentar graus diversos de
reação flatulenta a certa quantidade de alimento, devem ser escolhidos
indivíduos que mostrem grande resistência a transtornos intestinais e à
formação de flatulência”.
Nesse trabalho, Murphy encontrou o tal candidato ideal a astronauta. “De
particular interesse para futuras pesquisas foi o voluntário que praticamente
não apresentou flatulência para 100 g (peso da matéria seca) de feijão
ingerido”, ao contrário do intestino comum, que durante o período de pico
da flatulência (cinco a seis horas depois do consumo de feijão) vai produzir
de uma a quase três xícaras de flatos por hora. No extremo superior da
escala, está a produção de duas latas de Coca-Cola cheias de peidos. Isso
num espaço exíguo, onde não é possível abrir janelas.
Como alternativa ao recrutamento de não flatulentos por natureza, a Nasa
criou “não produtores” por meio da esterilização de seu trato digestivo.
Murphy deu a famosa refeição de feijão a um voluntário que estava
tomando um bactericida e percebeu que ele expelia 50% menos gases. A
solução mais razoável, e a única que a Nasa emprega atualmente, é
simplesmente evitar alimentos que produzam muitos gases. Na época do
projeto Apollo, feijão, repolho,i couve-de-bruxelas e brócolis estavam na
lista negra. “Não se usava feijão até a era dos ônibus espaciais”, afirma
Charles Bourland.
Houve gente que festejou a chegada do feijão, e não só porque fosse
gostoso. O peido em gravidade zero virou uma apreciada atividade orbital,
principalmente em voos tripulados só por homens. Há histórias sobre
astronautas que usam os gases intestinais como propelente para “lançarem-
se a si mesmos através da fuselagem central”, como disse o astronauta
Roger Crouch. Ele ouvira comentários a respeito e tinha suas dúvidas. “A
massa e a velocidade do gás expelido”, disse ele, num e-mail com o qual me
conquistou para sempre, “é muito pequena se comparada à massa do corpo
humano.” Portanto, é improvável que pudesse propelir um astronauta de
oitenta quilos. Crouch lembrou que uma expiração não impulsiona o
astronauta em nenhuma direção, e que os pulmões retêm cerca de seis litros
de ar — em contraposição ao peido, que, como aprendi com o dr. Murphy,
enche no máximo duas latinhas de refrigerante.
Isso, de qualquer forma, para o indivíduo médio. “Meus genes me
agraciaram com uma extraordinária capacidade de expelir alguns dos
subprodutos da digestão”, disse Crouch. “Sendo assim, acho que eu devia
ser posto à prova. Depois de uma eliminação que na minha opinião foi
realmente volumosa e rápida, fracassei redondamente na tentativa de
deslocamento.” Crouch supõe que seu experimento pode ter sido
prejudicado pelo efeito de “ação e reação do gás passando através da calça”.
Para seu desapontamento, a tripulação de seus dois voos era mista, de modo
que ele se viu desestimulado a “arriar as calças” e tentar outra vez. Estava
indo para Cabo Cañaveral e prometeu investigar a eliminação gasosa de
outros astronautas, mas até agora nenhum deles, como dizem, “deu com a
língua nos dentes”.

A comida de astronauta, nas últimas décadas, tornou-se mais gostosa e


mais normal. Já não é preciso prensar ou desidratar as refeições, pois a
Estação Espacial Internacional tem bastante lugar para armazenamento. Os
pratos vêm lacrados em sacos plásticos, termoestabilizados, e depois são
aquecidos num aparelho parecido com uma maleta. Com a publicação do
incomparável Culinária do astronauta, em 2010, de Charles Bourland, você
agora pode preparar 85 pratos e acompanhamentos autênticos da era dos
ônibus espaciais em sua própria cozinha, desde que tenha na despensa
“aditivo de amido National 150, da National Starch and Chemical
Company” e “base de alho caramelizado #99-404, da Eatem Foods”.
Mas para uma missão a Marte, as coisas provavelvemente vão ficar
esquisitas outra vez.

a A observância de ritos religiosos é ainda mais difícil numa espaçonave real. As limitações de
peso levaram Buzz Aldrin a carregar uma “hóstia minúscula” e um cálice de vinho do tamanho de um
dedal para sua comunhão “faça você mesmo” na Lua. A gravidade zero e o dia orbital de noventa
minutos suscitaram tantas dúvidas para astronautas muçulmanos que foi preciso escrever um
“Manual de instruções para a prática do culto na Estação Espacial Internacional”. Em vez de exigir
que os astronautas rezassem cinco vezes durante cada órbita de noventa minutos em torno da Terra, o
manual permitia que eles se guiassem pelo ciclo de 24 horas do local de lançamento. Podiam usar
lenços de papel (“não menos de três”) para as abluções rituais. E como o muçulmano em órbita que
começasse a orar voltado para Meca provavelmente terminaria sua oração de bunda para Meca,
tomou-se o cuidado de permitir que ele simplesmente se voltasse para a Terra ou “para qualquer
lugar”. Finalmente, em vez de abaixar a cabeça até o chão, manobra árdua em gravidade zero, o fiel
poderia prostrar-se “abaixando o queixo até perto do joelho”, “usando a pálpebra como indicador da
mudança de postura” ou — no mesmo espírito de “para qualquer lugar” — simplesmente
“imaginando” a sequência de movimentos.
b Suplemento nutricional líquido fabricado pelos laboratórios Abbott. É comumente administrado
por via oral ou nasogástrica e indicado a pessoas incapazes de se alimentar ou que enfrentam
problemas graves para perda de peso. (N. E.)
c O primeiro alimento consumido por um astronauta da Nasa no espaço, mas não o primeiro
alimento consumido no espaço. Os soviéticos ganharam mais essa corrida. O purê de maçã de Glenn
perdeu para a carne pulverizada com gelatina fragmentada da Laika e para o lanche sem nome de
Yuri Gagarin (nas palavras de Elena, arquivista do Museu Gagarin, “Alguns chamam de sopa, outros
de purê. Com certeza era alguma coisa em tubo!”).
d Perdão, eu quis dizer inovador. Esse foi o adjetivo usado pelo autor do obituário de Lepkovsky
no boletim da Universidade da Califórnia em 1985. O texto nos informa que Lepkovsky foi coautor
do primeiro atlas do cérebro da galinha e isolou riboflavina a partir de “centenas de milhares de
galões de leite”. No pouco tempo que lhe sobrava, gostava de dançar e atuava como analista amador
do mercado de ações, sem dúvida colhendo ganhos substanciais com laticínios no mercado de
futuros.
e Os testes de alimentação no simulador foram notícia em San Antonio, cidade onde fica a Base
Brooks da Força Aérea. Além do Express, o San Antonio Light também publicou uma reportagem. O
anúncio que saiu ao lado era da Blue Cross/ Blue Shield, na época a principal seguradora do país. O
subtítulo da matéria dizia (posso mandar uma cópia a quem não acreditar): “Vamos lá, San Antonio!
Todos fazendo o número 1!”.
f Egesta é meu novo eufemismo favorito para “fezes” e um nome comercial para privadas ainda
melhor do que Ejecto. Com certeza é melhor que Totó. Quem daria a uma privada o nome de seu
cãozinho?
g Os astronautas poderiam viver de bife e ovos? Má ideia. Deixando de lado os problemas com o
colesterol, ficaria faltando a maior parte das vitaminas. Fahey informa que nem mesmo cães
selvagens vivem apenas de proteína. “Quando matam a presa, comem um verdadeiro smorgasbord de
coisas diversas.” É um smorgasbord diferente do que é servido no restaurante sueco. “Normalmente,
eles comem primeiro o conteúdo do estômago.” Como a presa costuma ser herbívora, essa é a parte
que corresponde às verduras.
h Se você estiver entre os 50% da população que produzem metano, pode brincar de luz piloto
humana: seus amigos aproximam um fósforo de seus gases para vê-lo inflamar-se e queimar com
uma chama azul.
i O repolho ressurgiu sob a forma de kimchi — repolho fermentado e condimentado — a bordo da
Estação Espacial Internacional por ocasião da visita do primeiro astronauta coreano. O criador do
kimchi espacial, Lee Ju-woon, trabalha no Instituto Coreano de Pesquisa em Energia Atômica, onde
os cientistas estão criando meios de captar a energia da fissão intestinal do kimchi. Brincadeira. Mas
poderiam estar.
16. ROUPA SUJA PARA O JANTAR

Marte vale a pena?

Digo com toda sinceridade e sem exagero que, atualmente, a melhor


parte do almoço na lanchonete do Centro Ames da Nasa é a urina. É
límpida e fresca, ainda que não da forma como imaginamos um riacho de
montanha límpido e fresco. Ela mais parece Karo. Foi dessalinizada por
meio de pressão osmótica. O que ocorreu, essencialmente, foi uma troca de
moléculas entre a urina e uma solução concentrada de açúcar. A urina é uma
substância salina (embora menos que o chili da lanchonete) e se, numa
situação de emergência, uma pessoa a bebesse para se reidratar, o efeito
seria o oposto. Mas se o sal for retirado e as moléculas orgânicas
desagradáveis ao paladar forem eliminadas por um filtro de carvão ativado,
a urina se transforma numa bebida restauradora e de surpreendente sabor
para ser consumida no almoço. As pessoas objetam. E muito.
“Fico doente só de pensar em guardar urina na geladeira”, disse Ed, meu
marido. Eu tinha acabado de passar a produção de ontem pelo filtro de
carvão e pela bolsa de osmose, e a guardara, numa garrafa de vidro, na
porta da geladeira, para o almoço em Mountain View. Respondi que todas
as matérias inadequadas tinham sido removidas, e que os astronautas não se
importam de beber urina tratada. As narinas de Ed se inflaram, e ele
declarou que as circunstâncias teriam de ser “pós-apocalípticas” para
cogitar fazer tal coisa.
Eu estava almoçando com Sherwin Gormly, engenheiro especializado em
águas servidas que colaborou no projeto do equipamento destinado a
reciclar urina na Estação Espacial Internacional. A imprensa já o chamou de
“o rei da urina”, o que não o incomoda. O que o chateou foi ter ficado
conhecido, por algum tempo, como o sujeito que disse que a Lua poderia
ser um bom lugar para armazenar plutônio de qualidade adequada para uso
em armas nucleares, fora do alcance de déspotas megalomaníacos. Não era
uma proposta séria, e sim uma especulação em voz alta. É o que se faz no
Centro Ames. Para quem ainda não percebeu isso por tudo o que Norbert
Kraft já disse e escreveu, a Nasa do Centro Ames é uma instituição
diferente da Nasa do Centro Espacial Johnson. “O Ames é um grande
centro de estudos”, diz Gormly. “Somos, digamos, os maluquinhos.”
Gormly está de calça cargo e camisa Henley lilás. Não há nada de muito
radical numa calça cargo ou numa camisa lilás, mas em quatro viagens ao
Centro Johnson nunca vi nem uma nem outra. Gormly está bronzeado e em
boa forma física. É preciso inspecioná-lo atentamente para dar um palpite
correto sobre sua idade: alguns fios grisalhos apontam no corte à escovinha,
e as sobrancelhas começam a mostrar pelos rebeldes.
Não deveremos desembarcar em Marte antes da década de 2030, mas a
perspectiva está sempre presente na mente coletiva da Nasa. Tudo o que se
planejou para uma base lunar nos últimos cinco anos foi com um olho em
Marte. Grande parte do que há de mais inovador veio do Centro Ames. Não
que tudo venha a se tornar realidade. “Nada do que fazemos”, diz Gormly,
“torna-se uma realidade no espaço antes de passar por alguns filtros.” É
compreensível que as pessoas queiram filtrar as coisas que saem da cabeça
de Sherwin Gormly.
Fazer uma nave espacial pousar em Marte é um problema do passado. Há
três décadas, as agências espaciais vêm lançando sondas que pousam em
Marte. (Lembre-se: depois que uma nave sai da atmosfera, não há mais
arrasto atmosférico que a desacelere; afora pequenas correções de rumo, ela
continua a viajar pelo vácuo do espaço sem necessidade do impulso de um
foguete. Uma espaçonave praticamente desce ladeira abaixo até Marte.
Combustível só será necessário para o pouso e para a decolagem, no
retorno.) Os foguetes com potência suficiente para levar a Marte uma sonda
de 360 quilos não têm nada a ver com um foguete capaz de fazer isso
transportando cinco ou seis pessoas, além de suprimentos para dois anos.
Na década de 1960, quando os cientistas julgavam que o desdobramento
de um desembarque na Lua seria uma missão tripulada a Marte, houve um
surto de fantástica criatividade ao estilo Ames. Uma alternativa óbvia ao
transporte de 3600 quilos de alimentos seria cultivá-los — ao menos parte
deles — em estufas a bordo. Entretanto, no começo da década de 1960, a
carne reinava na mesa do jantar. Durante um breve e assombroso momento,
os nutricionistas espaciais voltaram a atenção para a possibilidade de
pecuária em gravidade zero. “Que tipo de animal deveria ser levado para
Marte ou Vênus?”, perguntou Max Kleiber, professor de zootecnia, na
Conferência sobre Nutrição no Espaço e Problemas Correlatos de Descarte,
de 1964. Kleiber tinha uma visão abrangente da pecuária; junto com gado
bovino e ovino, incluiu em seus cálculos camundongos e ratos. Deixou para
outros a tarefa de resolver a nada sedutora logística do abate em gravidade
zero e do manejo de esterco, pois sua paixão era o metabolismo. O que ele
desejava saber era o seguinte: que animal proporciona o maior número de
calorias em relação ao menor peso no lançamento e ao consumo de ração?
Para servir carne bovina a dois ou três astronautas em Marte, “será preciso
levar ao espaço um novilho com quinhentos quilogramas de peso corporal”.
A mesma quantidade de calorias poderia ser obtida com apenas 42
quilogramas de camundongos (cerca de 1700 indivíduos). “Os astronautas”,
afirmava Kleiber no encerramento de sua tese, “deveriam consumir
guisados de camundongo em vez de bifes de filé.”
À mesma conferência estava presente D. L. Worf, da Martin Marietta
Company (antes que a Lockheed se metesse). Worf era mestre em
apresentar ideias inovadoras, e depois querer comê-las. “Os alimentos
podem ser processados mediante muitas das mesmas técnicas que
utilizamos para fabricar perfis de plástico.” Worf não limitava esse modo de
pensar a recipientes de alimentos, mas incluía estruturas de naves espaciais
que normalmente eram alijadas ou deixadas para trás quando os astronautas
se preparavam para retornar à Terra. Em outras palavras, antes de abandonar
o Módulo Lunar na Lua, a tripulação da Apollo 11 poderia ter tirado
pedaços dele para comê-los durante a viagem de volta. Com isso, poderiam
levar menos alimento na viagem de ida. Worf imaginou um cardápio de
regresso que incluía Tanque de Combustível, Motor do Foguete e Proteção
de Instrumentos. Deixando ainda lugar para a sobremesa! “Peças fundidas
de açúcar transparente como sucedâneo de janelas” também integravam a
lista de ideias de Worf.
Ninguém se queixaria de um café da manhã que incluísse o papel de
albumina de ovo de Worf se já tivesse provado a cozinha de papel do dr.
Carl Clark. Bioquímico da Marinha, Clark foi mencionado num artigo da
revista Time, em 1958, a respeito de missões espaciais de longa duração.
Recomendava que os astronautas acrescentassem papel retalhado — o tipo
comum de papel, de polpa de madeira — como “espessante” a um prato
principal de água com açúcar enriquecida com vitaminas e minerais. Não
sei qual função Clark atribuía ao papel retalhado nessa dieta. Fico
imaginando se melhorava seu sabor, sua consistência ou a segurança de
documentos sigilosos.
“Se permitirmos que a imaginação ganhe asas” — e a de D. L. Worf sem
dúvida voava —, os astronautas poderiam também comer suas roupas
velhas. Worf calculou que “no caso de uma missão de noventa dias, uma
tripulação espacial de quatro homens descartará aproximadamente 55 quilos
em peças de vestuário, se não houver meios de lavá-las”. (Agora há, em
grande parte graças a Sherwin Gormly.) Para uma missão de três anos a
Marte, isso representa 650 quilos de roupa suja e provisões. Worf anunciou
que várias companhias já vinham produzindo tecidos a partir de proteínas
de soja e leite, e que o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos
havia “confeccionado fibras [têxteis], a partir de clara de ovo e penas de
frango, que seriam bastante aceitáveis como alimentos no ambiente
controlado de uma espaçonave”. Imagino que ele quisesse dizer que um
homem disposto a jantar roupa velha provavelmente não rejeitaria penas de
frango.
Mas por que incorrer na despesa adicional de fazer compras nas estações
de pesquisa experimental do Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos? “As fibras de proteína de queratina, como lã ou seda”, pondera
Worf, “poderiam ser convertidas em alimentos mediante hidrólise parcial
[...]”
Quando se fala em hidrólise a bordo, os astronautas começam a se sentir
pouco à vontade. A hidrólise é um processo pelo qual as proteínas, que são
comestíveis, embora não necessariamente saborosas, são decompostas em
constituintes ainda comestíveis, porém muito menos saborosos. A proteína
vegetal, por exemplo, pode ser hidrolisada para produzir glutamato
monossódico. Praticamente qualquer aminoácido pode ser hidrolisado,
inclusive aqueles que, suscetíveis de reciclagem, não ousam dizer seu
nome. Uma tripulação de quatro pessoas, ao longo de três anos, gerará uma
quantidade de fezes da ordem de 450 quilos. Nas palavras sinistras de Emil
Mrak, nutricionista espacial da década de 1960, “a possibilidade de
reutilização deve ser levada em conta”.
No começo da década de 1990, o microbiologista Chuck Gerba, da
Universidade do Arizona, foi convidado a participar de uma oficina de
estratégia marciana que tinha entre os seus temas o manejo de resíduos
sólidos. Gerba me disse que se lembra de ter ouvido de um dos químicos:
“Ora, a gente poderia hidrolisar a coisa, reconvertendo-a em carbono, e
fazer tortinhas com ela”. Ao que os astronautas presentes responderam:
“Não vamos comer merda na volta”.
Do ponto de vista do moral da tropa, esse tipo de reciclagem extrema é
contraproducente. O atual pensamento da Nasa com relação a Marte
prioriza o envio de depósitos de alimentos com antecedência, utilizando
naves não tripuladas. (A estratégia de enviar caixas de alimentos a Marte
veio à baila durante uma entrevista com cosmonautas russos. Lena, minha
intérprete, fez uma pausa e disse: “Mary, o que foi mesmo que você disse
sobre kasha em Marte?”.)
Uma forma melhor de reciclar subprodutos astronáuticos seria lacrá-los
entre placas de plástico e usá-los como escudos contra radiação cósmica. Os
hidrocarbonetos se prestam bem a isso. O corpo metálico das naves, não; as
partículas de reação se dividem em partículas secundárias ao atravessá-lo.
Essas partículas fragmentadas podem ser mais perigosas do que as
partículas primárias intactas. E quem se importaria, exclamou Gerber,
exultante, “de voar cercado de merda?”. Melhor do que contrair leucemia.

Gormly e eu estivemos conversando sobre os obstáculos psicológicos ao


progresso. Não somos os únicos californianos a beber urina tratada esta
tarde. (Em solidariedade, Gormly tratou uma garrafa da urina dele.) Os
cidadãos do condado de Orange estão bebendo a mesma coisa que nós. A
diferença, diz Gormly, é que o condado de Orange bombeia a urina para o
solo, onde fica durante algum tempo antes de voltar a ser chamada de água
potável. “Não há nenhuma justificativa técnica para a rejeição. São razões
psicossociais e políticas”, diz ele. As pessoas não estão prontas para o
conceito “da privada à torneira”.
Nem mesmo aqui, no Centro Ames. Enquanto Gormly estava na fila para
pagar seu sanduíche, o homem à nossa frente perguntou o que havia na
garrafa. “É urina tratada”, respondeu ele, sério, mas obviamente se
divertindo. O homem olhou para Gormly em busca de algum sinal que
confirmasse sua esperança de que ele estivesse brincando. “Não, não é”,
determinou, afastando-se.
A moça do caixa seria mais dura. “O que foi que o senhor disse que havia
na garrafa?” Ela parecia disposta a chamar os seguranças.
Dessa vez Gormly respondeu: “Pesquisa de suporte de vida”.
Confrontada com a ciência, a mulher nada mais disse.
Uma das coisas que eu adoro na exploração tripulada do espaço é que ela
força as pessoas a modificar certas noções do que é ou não aceitável. E
possível. É incrível o que às vezes se consegue fazer graças a uma mudança
mental que de início é chocante, mas depois se mostra inofensiva. Retirar os
órgãos de um morto e costurá-los em outras pessoas é um ato bárbaro e
desrespeitoso ou uma operação simples que salva múltiplas vidas? Evacuar
num saco enquanto se está sentado ao lado do colega de tripulação constitui
um abandono da dignidade humana ou uma forma sem paralelo e cômica de
intimidade? A última opção, na opinião de Jim Lovell. “A gente passa a
conhecer o outro tão bem que nem se dá o trabalho de se virar.” Sua mulher
e seus filhos já viram você na privada. Agora Frank Borman o vê. Quem se
importa? Vale a pena, pela recompensa que está no fim do túnel.
Quando alguém diz a um grupo de astronautas que eles terão de beber
suor e urina tratados — não só deles mesmos, mas também dos
companheiros e, quem sabe, dos 1700 camundongos da despensa, eles dão
de ombros e dizem: “E daí?”. Talvez os astronautas não sejam somente os
protagonistas de feitos perigosos. Talvez sejam homens e mulheres talhados
para servir como arautos do novo paradigma experimental. Como diz
Gormly, “A engenharia da sustentabilidade e a engenharia do voo espacial
humano são apenas aspectos diferentes da mesma tecnologia”.
A pergunta mais difícil não é: “É possível ir a Marte?”, e sim: “Vale a
pena?”. Segundo estimativas não oficiais, o custo de uma missão tripulada a
Marte equivale, grosso modo, ao da guerra do Iraque até 2010: 500 bilhões
de dólares. Será essa viagem igualmente difícil de justificar? Que bem
advirá do envio de homens a Marte, sobretudo se naves automáticas podem
realizar grande parte das tarefas científicas tão bem quanto astronautas, se
não com a mesma rapidez? Eu poderia papaguear o Escritório de Relações
Públicas da Nasa e expor uma longa lista de produtos e tecnologias gerados
por inovações aeroespaciais ao longo de décadas.a Em lugar disso,
entretanto, acato a reação de Benjamin Franklin. Na época em que foram
feitos os primeiros voos tripulados da história — na década de 1780, com os
balões de ar quente dos irmãos Montgolfier —, alguém perguntou a
Franklin que utilidade ele via em tal frivolidade. “Qual é a utilidade de um
recém-nascido?”, ele retrucou.
Talvez não fosse tão difícil levantar os recursos. Se as nações envolvidas
consultassem suas empresas de entretenimento, seria possível disponibilizar
verbas bastante expressivas. Quanto mais a gente lê sobre missões a Marte,
mais se convence de que seria o reality show mais incrível da TV.
Eu estava numa festa no dia em que a nave automática Phoenix pousou
em Marte. Perguntei ao dono da casa, Chris, se ele tinha um computador em
que eu pudesse ver a cobertura feita pela Nasa TV. No começo, só Chris e eu
estávamos assistindo. Depois que a Phoenix atravessou, intacta, a atmosfera
marciana e se preparava para abrir o paraquedas no final da descida, metade
dos convidados já se achava no andar de cima, reunidos em torno do
computador. Nem víamos ainda a Phoenix. As imagens ainda não tinham
chegado. (Os sinais levam vinte minutos para percorrer a distância entre
Marte e a Terra.) A câmera mostrava o Controle de Missão, no Laboratório
de Propulsão a Jato. O salão estava abarrotado de engenheiros e
administradores, pessoas que tinham passado anos trabalhando em escudos
de calor, sistemas de paraquedas e propulsores, todos os quais, nessa hora
final, poderiam falhar de cem maneiras diferentes, e cada uma dessas falhas
fora simulada e resolvida com computadores e programas de emergência.
Um homem fitava a tela de seu computador com os dedos das duas mãos
cruzados. Chegou enfim o sinal do pouso, e todos ficaram de pé, fazendo
barulho. Os engenheiros abraçavam-se uns aos outros com tanto entusiasmo
que entortavam as hastes dos óculos. Alguém começou a distribuir charutos.
Todos nós gritamos também e alguns de nós sentimos um nó na garganta.
Era incrível o que esses homens e mulheres tinham realizado. Tinham
conseguido fazer um instrumento científico delicado voar cerca de 650
milhões de quilômetros até Marte para depositá-lo no planeta, com cuidado,
como se fosse um bebê, exatamente onde queriam.
Em nossa cultura, cada vez mais, as pessoas vivem por meio de
simulações. Viajamos protegidos pela tecnologia de satélites, nos
socializamos em computadores. Uma pessoa pode percorrer o Mar da
Tranquilidade usando o Google Moon e visitar o Taj Mahal graças ao Street
View. No Japão, fãs de animê já dirigiram petições ao governo solicitando o
direito de se casar legalmente com personagens bidimensionais. Nos
Estados Unidos, já começaram a arrecadar fundos para a construção de um
resort bilionário na borda de uma cratera marciana simulada no deserto
perto de Las Vegas. (Os promotores não têm como simular a gravidade
marciana, mas as botas dos trajes espaciais serão “um pouco mais
saltitantes”.) Ninguém mais sai para brincar lá fora. A simulação está
virando a realidade.
Mas a simulação está longe de ser a realidade. Pergunte a um médico que
passou um ano dissecando um cadáver, tendão por tendão, glândula por
glândula, nervo por nervo, se aprender anatomia numa simulação de
computador seria a mesma coisa. Pergunte a um astronauta se participar de
uma simulação espacial é a mesma coisa que ir ao espaço. O que é
diferente? O suor, o risco, a incerteza, as dificuldades. Mas, também, o
assombro. O orgulho. Uma coisa inefavelmente esplêndida e emocionante.
Um dia, no Centro Espacial Johnson, visitei Mike Zolensky, curador de
poeira cósmica e um dos responsáveis pela coleção de meteoritos da Nasa.
Vez por outra, um fragmento de asteroide choca-se com Marte com força
suficiente para que o impacto lance ao espaço pequenos fragmentos do solo
marciano, e eles continuam a viajar até serem capturados pela atração
gravitacional de outro planeta. Às vezes, esse planeta é a Terra. Zolensky
abriu uma caixa e tirou dela um meteorito marciano, pesado como uma bola
de boliche, que me entregou. Fiquei ali, sentindo sua dureza e seu
significado, sua realidade, com uma expressão que, tenho certeza, nunca
antes tinha precisado fazer. O meteorito não era bonito, nem tinha aspecto
exótico. Com um bolo de asfalto e um pouco de graxa de sapato, faço para
quem quiser um excelente simulacro de meteorito marciano. O que não
posso simular para ninguém, de jeito nenhum, é a sensação de estar
segurando nas mãos um pedaço de Marte de nove quilos.
Para mim, tem sido cada vez mais difícil crer na nobreza do espírito
humano. Guerra, hipocrisia, cobiça, shopping centers, narcisismo. Vejo uma
nobreza equívoca no dispêndio excessivo e pouco prático de dinheiro, que
se faz apenas porque uma comunidade se dá as mãos e diz “Nós podemos
fazer isso”. Realmente, o dinheiro poderia ser mais bem gasto na Terra. No
entanto, isso aconteceria? Desde quando o dinheiro poupado pelo governo
ao restringir serviços a grupos étnicos ou sociais foi gasto em educação ou
pesquisa sobre câncer? Ele é sempre desperdiçado. Vamos desperdiçar um
pouco em Marte. Vamos sair e brincar lá fora.

a Se o produto é sem fio, à prova de fogo, leve e robusto, miniaturizado ou automático, é bem
provável que a Nasa tenha alguma coisa a ver com sua tecnologia. Estamos falando de
compactadores de lixo, coletes à prova de bala, transferência de dados sem fio a alta velocidade,
monitores cardíacos implantáveis, ferramentas elétricas sem fio, membros artificiais, aspiradores de
pó sem fio, tops de ginástica, painéis solares, aparelhos ortodônticos invisíveis, bombas de insulina
computadorizadas, máscaras de bombeiros. De vez em quando, aplicações terrestres enveredam por
um caminho inesperado: analisadores digitais de imagens lunares permitem à Estée Lauder
quantificar “sutilezas de outro modo indetectáveis” na pele de mulheres que usam seus produtos,
criando fundamento para absurdas afirmativas referentes à eliminação de rugas. Bombas de calor
eletrônicas e miniaturizadas, criadas para o Programa Apollo, levaram à Porca Robótica. “Na hora da
alimentação, uma lâmpada de aquecimento, que simula o calor do corpo da porca, acende-se
automaticamente e a máquina emite grunhidos rítmicos como uma mamãe porca chamando os
filhotes. No momento em que estes correm em direção à mãe mecânica, um painel em sua parte
frontal se abre, expondo a fileira de tetas”, escreveu um não identificado escriba de novidades da
Nasa, certamente arrancando grunhidos de seus superiores no Escritório de Relações Públicas da
agência.
AGRADECIMENTOS

Na primeira vez que visitei o Centro Espacial Johnson, um aviso junto à


porta do edifício de relações públicas dizia “USO OBRIGATÓRIO DE CAPACETE”.
Essa foi apenas a primeira restrição que encontrei. Um monte de “nãos”
atravancava meu caminho. As agências espaciais exercem um controle
férreo sobre sua imagem pública, e para funcionários e prestadores de
serviços é menos problemático dizer não a uma pessoa como eu do que
pagar para ver o que eu escreveria. Felizmente, há pessoas que trabalham
nos aspectos humanos da exploração espacial e valorizam a cobertura não
convencional (ou são simplesmente amáveis demais para dizer não). Por
sua receptividade e sagacidade — e pela forma generosa com que
dispuseram de seu tempo e de seus conhecimentos —, meus supergalácticos
agradecimentos a John Bolte, Charles Bourland, James Broyan, John
Charles, Tom Chase, Jon Clark, Sherwin Gormly, Ralph Harvey, Norbert
Kraft, Rene Martinez, Joe Neigut, Don Rethke e Scott Weinstein; aos
astronautas Roger Crouch, Jim Lovell, Lee Morin, Mike Mullane, Andy
Thomas e Peggy Whitson; na Rússia, aos cosmonautas Serguei Krikaliov,
Alexandr Laveikin, Iuri Romanenko e Boris Volinov.
Não tenho formação em questões espaciais ou aeromédicas. Muitas das
pessoas com quem falei não serviram apenas como fontes, mas como
instrutores não remunerados. Falo de Dennis Carter, Pat Cowings, Seth
Donahue, George Fahey, Brian Glass, Dustin Gohmert, Sean Hayes, Toby
Hayes, Natsuhiko Inoue, Nick Kanas, Tom Lang, Pascal Lee, Jim Leyden,
Marcelo Vazquez, April Ronca, Charles Oman, Brett Ringger, Shoichi
Tachibana, Art Thompson, Nick Wilkinson e Mike Zolensky. Todos eles me
dedicaram mais tempo do que poderiam, e por isso sou sinceramente grata.
Terry Sunday, que com seus imensos conhecimentos e sua perspicácia
revisou exaustivamente os originais, e Linda Wang, com seu conhecimento
dos arquivos do Congresso, foram indispensáveis. Pelo mergulho em coisas
acontecidas há muito tempo, agradeço a Bill Britz, Earl Cline, Jerry Fineg,
Dan Fulgham, Wayne Mattson, Joe McMann, May O’Hara, Rudy Purificato
e Michael Smith. Pam Baskins, Simone Garneau, Jenny Gaultier, Amy
Ross, Andy Turnage e Violet Blue proporcionaram valiosos contatos e
assistência. Sou grata também a eles.
Embora o pessoal de relações públicas nem sempre tenha podido ajudar
da maneira como eu, ingenuamente, esperava, todos foram extremamente
prestativos e profissionais. Aaisha Ali, Gayle Frere, James Hartsfield e
Lynnette Madison, do Centro Espacial Johnson, foram particularmente
atenciosos, assim como Kathryn Major, do Instituto Nacional de Pesquisa
Biomédica Espacial, e Trish Medalen, da Red Bull. Kumiko Tanabe, da
Agência de Exploração Aeroespacial do Japão, fez milagres a meu favor.
Gostaria de agradecer também às pessoas que reuniram os projetos de
história oral e o diário da superfície lunar, ambos da Nasa, e o projeto de
história oral do Museu de História Espacial do Novo México, assim como
ao pessoal do departamento de empréstimos interbibliotecários da
Biblioteca Pública de San Francisco. Foi um material de valor inestimável.
Lena Iakovlena, Sayuri Kanamori e Manami Tamaoki são não apenas
brilhantes intérpretes como excelentes companheiras de viagem. Tive a
sorte de contar com Fred Wiemer para a preparação deste livro e do
anterior. Obrigada ao designer Jamie Keenan por mais uma capa perfeita e
criativa; à curadora Deirdre O’Dwyer pelas horas que passou pesquisando
fotos e direitos obscuros; à fabulosa Kristen Engelhardt pelas traduções
simultâneas; aos acamados por seu bom humor sem limites; a Jeff
Greenwald pelos livros, pelo gim e pelo entusiasmo; e a Dan Menaker pela
melhor citação que fiz neste livro.
Como em todos os meus livros, um eventual sucesso deve ser creditado
em grande parte a todo o pessoal da editora W. W. Norton. Com a ajuda de
pobres metáforas astronáuticas, eu gostaria de destacar algumas pessoas.
Minha inigualável editora, Jill Bialosky, comandou os originais através de
necessárias correções de rota, e Rebecca Carlisle, Erin Sinesky Lovett e
Steve Colca administraram com competência o lançamento e a trajetória do
produto concluído.
Meu marido, Ed Rachles, e meu agente, Jay Mandel, desativaram
amavelmente a angústia e o pessimismo rabugento que fazem parte
inevitável de todas as minhas aventuras. Não seria possível fazer o que faço
sem a ajuda dessas duas excelentes pessoas.
LINHA DO TEMPO

O macaco reso Albert II torna-se o primeiro ser vivo


1949 a experimentar gravidade zero a bordo de um
foguete.
A Força Aérea dos Estados Unidos promove voos
parabólicos para simular gravidade zero e estudar
1950-1958
seus efeitos sobre chimpanzés, gatos e seres
humanos.
NOVEMBRO A cadela Laika, lançada pelos soviéticos, orbita a
DE 1957 Terra e morre no espaço.
As cadelas Belka e Strelka, lançadas pelos
AGOSTO DE
soviéticos, são os primeiros animais a voltar com
1960
vida do espaço.
ERA DO PROGRAMA ESPACIAL MERCURY, 1961-3
O astrochimp Ham sobrevive a um voo suborbital
31/01/1961
numa cápsula espacial Mercury.
Yuri Gagarin torna-se o primeiro homem no espaço
12/04/1961
e o primeiro a orbitar a Terra.
Alan Shepard torna-se o primeiro americano no
05/05/1961
espaço.
29/11/1961 O astrochimp Enos orbita a Terra.
John Glenn torna-se o primeiro americano a orbitar a
20/02/1962
Terra.
VOOS ESPACIAIS DO PROJETO GEMINI, 1965-6
A Força Aérea testa dietas e “restrição de banho” em
1965-6
simuladores de cabine espacial.
Alexei Leonov torna-se o primeiro homem a sair de
18/03/1965
uma nave no espaço.
23/03/1965 Incidente do “sanduíche de carne” na Gemini III.
Gemini IV: Ed White torna-se o primeiro homem da
3/06/1965
Nasa a “caminhar” no espaço.
04- Gemini VII: dois homens, duas semanas, nenhum
18/12/1965 banho.
MISSÕES LUNARES DA APOLLO, 1968-72
03- Apollo 9: Rusty Schweickart luta contra o enjoo no
13/03/1969 espaço.
20/07/1969 Apollo 11: primeiros homens na Lua.
07-09/12/
Apollo 17: primeiro cientista no espaço.
1972
ERA DA ESTAÇÃO ESPACIAL EM ÓRBITA (E DOS ÔNIBUS ESPACIAIS),
1973-2015
Missões da estação espacial americana Skylab; o
1973-9
chuveiro espacial revela-se inviável.
1971-82 Missões das estações espaciais soviéticas Salyut.
JANEIRO DE
Primeira americana candidata a astronauta.
1978
12/04/1981 Lançamento do primeiro ônibus espacial.
28/01/1986 Acidente com o ônibus espacial Challenger.
1986-2001 Mir.
NOVEMBRO
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DE 2000
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RYAN, Craig. The Pre-Astronauts: Manned Ballooning on the Threshold of Space. Annapolis, Md.:
Naval Institute Press, 1995.
STAPP, John P. “Human Tolerance Factors in Supersonic Escape.” Aviation Medicine, fev. 1957, pp.
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14. A ANGÚSTIA DA SEPARAÇÃO

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BROYAN, James Lee, Jr. “Waste Collector System Technology Comparisons for Constellation
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wignarajah, Kanapathipillai e litwiller, Eric. “Simulated Human Feces for Testing Human Waste
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15. DESGULOSEIMAS
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Trabalho Islâmica: < http://makkah.wordpress.com >.
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BOURLAND, Charles T. História Oral. Projeto História Oral do Centro Espacial Johnson:

< http://www.jsc.nasa.gov/history/oral_histories.htm >.


BOURLAND, Charles T.; VOGT, Gregory L. The Astronaut’s Cookbook: Tales, Recipes, and More. Nova
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DUKE, Charlie e DUKE, Dotty. Moonwalker. Nashville, Tenn.: Oliver-Nelson, 1990.
FLENTGE, Robert. L.; BUSTEAD, Ronald L. “Manufacturing Requirements of Food for Aerospace
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INGELFINGER, Franz J. “Gastric and Bowel Motility: Effect on Diet.” Documento apresentado na
Conferência de Nutrição no Espaço e Problemas Correlatos de Descarte, Tampa, Fla., 27-30 de
abril de 1964. Patrocinada pela Nasa e pela Academia Nacional de Ciências.
LEPKOVSKY, Samuel. “The Appetite Factor.” Documento apresentado na Conferência de Nutrição no
Espaço e Problemas Correlatos de Descarte, Tampa, Fla., 27-30 de abril de 1964. Patrocinada pela
Nasa e pela Academia Nacional de Ciências.
MURPHY, Edwin L. “Flatus.” Documento apresentado na Conferência de Nutrição no Espaço e
Problemas Correlatos de Descarte, Tampa, Fla., 27-30 de abril de 1964. Patrocinada pela Nasa e
pela Academia Nacional de Ciências.
SLONIM, A. R.; MOHLMAN, H. T. “Effects of Experimental Diets and Simulated Space Conditions on
the Nature of Human Waste.” Relatório técnico dos Laboratórios de Pesquisa de Medicina
Aeroespacial, Base Aérea de Wright-Patterson, Okla., AMRL-TR 66-147, nov. 1966.

16. ROUPA SUJA PARA O JANTAR

KLEIBER,Max. “Animal Food for Astronauts.” Documento apresentado na Conferência de Nutrição


no Espaço e Problemas Correlatos de Descarte, Tampa, Fla., 27-30 de abril de 1964. Patrocinada
pela Nasa e pela Academia Nacional de Ciências.
WORF, D. L. “Multiple Uses for Foods.” Documento apresentado na Conferência de Nutrição no
Espaço e Problemas Correlatos de Descarte, Tampa, Fla., 27-30 de abril de 1964. Patrocinada pela
Nasa e pela Academia Nacional de Ciências.
Copyright © 2010 by Mary Roach

A Editora Paralela é uma divisão da Editora Schwarcz S.A.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico

da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor

no Brasil em 2009.

título original Packing for Mars: The Curious Science of Life in the Void

Capa Rodrigo Maroja

Preparação Diogo Henriques

ISBN 978-85-8086-635-3

Revisão Larissa Lino Barbosa e Juliane Kaori

Todos os direitos desta edição reservados à

editora schwarcz s.a.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32

04532-002 — São Paulo — sp

Telefone (11) 3707-3500

Fax (11) 3707-3501

www.editoraparalela.com.br

atendimentoaoleitor@editoraparalela.com.br
Curiosidade mórbida
Roach, Mary
9788543803326
272 páginas

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Curiosidade mórbida é uma leitura cativante e


divertida que explora a vida após a morte, mas não
no sentido sobrenatural: a autora Mary Roach
investiga o que acontece com os cadáveres, revelando
que eles têm rotinas inesperadas e surpreendentes.
Por dois mil anos, eles estiveram envolvidos nas
descobertas e pesquisas científicas mais ousadas:
foram cobaias nas primeiras guilhotinas da França e,
os primeiros a navegarem em foguetes da Nasa e
estiveram presentes em todos os novos
procedimentos cirúrgicos, fazendo história de forma
silenciosa. Nesse relato fascinante, Mary Roach faz
uma análise histórica dessas contribuições ao longo
dos séculos e, com seu jeito único, revela o que
nossos corpos fazem depois que os deixamos para
trás.

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O acordo
Kennedy, Elle
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360 páginas

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Tocante, profundo, engraçado, sexy... Um romance


que vai te encantar e surpreender a cada página.

Hannah Wells finalmente encontrou alguém que a


interessasse. Mas, embora seja autoconfiante em
vários outros aspectos da vida, carrega nas costas
uma bagagem e tanto quando o assunto é sexo e
sedução. Não vai ter jeito: ela vai ter que sair da zona
de conforto… Mesmo que isso signifique dar aulas
particulares para o infantil, irritante e convencido
capitão do time de hóquei, em troca de um encontro
de mentirinha.

Tudo o que Garrett Graham quer é se formar para


poder jogar hóquei profissional. Mas suas notas cada
vez mais baixas estão ameaçando arruinar tudo
aquilo pelo qual tanto se dedicou. Se ajudar uma
garota linda e sarcástica a fazer ciúmes em outro cara
puder garantir sua vaga no time, ele topa. Mas o que
era apenas uma troca de favores entre dois opostos
acaba se tornando uma amizade inesperada. Até que
um beijo faz com que Hannah e Garret precisem
repensar os termos de seu acordo.

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Dia de beauté
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Quase nada é tão divertido quanto maquiagem. O


lema de Victoria Ceridono, blogueira e editora de
beleza da Vogue, é especialmente verdadeiro em seu
livro Dia de beauté – um guia de maquiagem para a
vida real. Com mais de 130 fotos e ilustrações,
promete ensinar tudo que existe entre um make
básico, quase nada, e uma maquiagem para festa.
Sem nunca perder o tom divertido, as dicas de
Victoria são acessíveis, vindas de quem
experimentou de tudo para descobrir o que vale
mesmo a pena. Um livro para todo tipo de leitor(a) –
desde iniciantes até obcecadas, passando por quem
apenas busca dicas para sair da rotina, ou alguém não
interessado que sem querer foi parar com o livro em
mãos. Um livro para inspirar e despertar a vontade de
mergulhar nesse fantástico universo da maquiagem.

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Um desejo selvagem
Day, Sylvia
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Neste segundo livro da série, Vash, a segunda


vampira mais importante do mundo, e Elijah, líder
dos licanos, assumem o papel central. Além de serem
representantes de duas espécies que sempre se
perseguiram, Elijah e Vash se odeiam, mas são
obrigados a se aproximar em busca de parceria numa
guerra contra os anjos. O único problema é que o
ódio entre eles vai se transformando em uma paixão
incontrolável. Vash, uma mulher dura e determinada,
perde a concentração nas lutas, passa a ter ciúmes e a
não controlar mais seus sentimentos, enquanto Elijah
parece decidido a conquistá-la, usando os mais
tentadores artifícios.

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Quando estou com você - Parte 8
Kery, Beth
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Quando estou com você — segundo e-book seriado


de Beth Kery, escritora best-seller da lista do New
York Times — chega ao seu clímax quando Elise,
Lucien, Francesca e Ian descobrem as verdades que
os cercam, revelam os segredos que os assombram e
o incontrolável desejo que pode destruí-los ou salvá-
los...

Na luxuosa cobertura de Ian, ele, Francesca, Lucien e


Elise passam uma noite que começa agradável e
termina devastadora, pois finalmente os segredos do
passado de Lucien são revelados. Graças à
impulsividade de Elise, a dolorosa verdade que ele
esconde há tanto tempo vem à tona. Mas revelar a
verdade era muito mais grave do que Elise
imaginava, fazendo-a se sentir culpada por ter
afastado o homem que ama.

Quando Lucien e Ian vão para Londres, Elise é


deixada para trás e sofre com a indiferença de
Lucien, que certamente está furioso por ela ter
revelado seu segredo — esse era o medo dele desde
que se reencontraram. Com o coração partido, Elise
toma uma decisão difícil para ambos. Mas Lucien
ainda tem uma revelação a fazer, que pode uni-los ou
afastá-los. Uma revelação que pode mudar o futuro
do casal para sempre.
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