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A liberdade como problema

a torneira seca Embora partam de perspectivas diferentes, os dois


(mas pior: afalta poemas apontam para o grande tema da ética, desde
de sede)
que ela se tornou questão filosófica: o que está e o que
a luz apagada
(mas pior: o gosto não está em nosso poder? Até onde se estende o poder
do escuro) de nossa vontade, de nosso desejo, de nossa consciên­
a portafechada cia? Em outras palavras: até onde alcança o poder de
(mas pior: a chave nossa liberdade? O que está em nosso poder e o que
por dentro). depende inteiramente de causas e forças exteriores?
PAES, J osé Pau lo. O melhor poeta da minha rua. São Pa u lo: Ática, 2008.
Essa mesma interrogação encontra-se presente, de
Esse poema de José Paulo Paes (1926-1998) traz, de outra maneira, no poema "Velho tema" de Vicente de
forma concentrada e precisa, o núcleo da liberdade e, Carvalho (1866-1924):
ao mesmo tempo, a ausência dela. O poeta faz um con­ Só a leve esperança, em toda a vida,
traponto entre uma situação externa experimentada Disfarça a pena de viver, mais nada,
como um fato dado (a torneira seca, a luz apagada, a Nem é mais a existência, resumida,
porta fechada) e a inércia resignada no interior do su­ Que uma grande esperança malograda.
jeito (a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por
O eterno sonho da alma desterrada,
dentro). O contraponto é feito pela expressão "mas pior".
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
O que significa ela? Que, diante de condições ad­ É uma horafeliz, sempre adiada
versas, renunciamos a enfrentá-las, tornamo-nos cúm­ E que não chega nunca em toda a vida.
plices delas. Porém, não é isso o pior. Pior é a renúncia
à liberdade. Renunciamos à sede, que nos faria abrir a Essafelicidade que supomos,
torneira; renunciamos ao desejo de luz, que nos faria Árvore milagrosa que sonhamos
acender a lâmpada; renunciamos ao desejo de sair, que Toda arreada de dourados pomos
nos faria girar a chave.
Existe, sim: mas nós não a alcançamos,
Dessa maneira, secura, escuridão e prisão deixam Porque está sempre apenas onde a pomos
de estar fora de nós para se tornarem nós mesmos, E nunca a pomos onde nós estamos.
com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e nos­ CARVALHO, Vicente de. Ve l h o tema. l n : Poemas e canções.
São Pau lo: Saraiva, 1962. p. 33.
sa falta de iniciativa para girar a chave.
Um trecho de outro poema também oferece um
contraponto entre nós e o mundo:
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
A N D RADE, Carlos D r u m mond de. Poema de sete faces. l n :
Alguma poesia. B e l o Ho rizonte: Pindorama, 1930. p. 9-10.

Nesse poema, Carlos Drummond de Andrade (1902-


-1987), como José Paulo Paes, confronta-nos com a rea­
lidade exterior: o "vasto mundo" do qual somos uma
pequena parcela e no qual estamos mergulhados. To­
davia, o poema de Drummond difere do anterior, pois,
em vez da inércia resignada, nos coloca diante da afir­
mação de que nosso ser é mais vasto do que o mundo.
Pelo nosso coração - sentimentos e imaginação - so­
mos maiores do que o mundo, criamos outros mundos
Ensaio de Esperando Godot, de Samuel Beckett, em montagem de
possíveis, inventamos outra realidade. Abrimos a tor­ Gabriel Vilela, na cidade de São Paulo (SP), em 2006. Podemos
neira, acendemos a luz e giramos a chave. alcançar a liberdade e a felicidade diante das contingências?

A li b erda d e S
O poeta começa dizendo q u e somente a esperança tu ro i ncerto, n e m u ma á rvore d ista nte, posta pelos
disfa rça a dor de viver. Esse disfa rce significa q u e a exis­ deuses em algum lugar não loca lizável do vasto mundo.
tência não é senão uma "espera nça malograda", pois A fel i cidade está, isso sim, em nós, em nossa "leve es­
espera m os pela h o ra da fel icidad e, mas essa h ora é perança", dependendo apenas de nós mesmos, "porque
sem pre adiada. Mas por que nosso malogro? Por que está sem pre a penas onde a pomos".
não obtemos a fel icidade? Os três poetas nos coloca m dia nte de d i lemas:
Retomando uma i magem da m itologia grega, a á r­ • porta fechada; vasto m undo árvore milagrosa: a
vore de frutos de ou ro, ina lca nçável pelos morta is, o fel icidade pa rece depender i nte i ramente do que
poeta contrasta o su bsta ntivo "po mos" (frutos) e o se encontra fora de nós, esta ndo longe de nosso
verbo "pomos" (coloca r a lguma coisa em a lgu m l uga r).
a l ca nce e de nosso poder;
Com isso, contra põe a "espera nça malograda" de feli­
cidad e e a fel icida d e que "existe, sim", m a s que não • chave por dentro; coração mais vasto do que o
a lca nça mos porq u e "n u n ca a pomos onde nós esta­ mundo; estar sempre apenas onde a pomos: a fe­
mos", em bora esteja "sem pre a penas onde a pomos". l icidade pa rece depender i nte i ramente de nossa
Nossa a l ma fica desterrada no sonho, exi lada da l i berdade ou de nós mesmos.
rea l i dade, por ser i nca paz de reco n hecer que a fel i cida­ Esses d i lemas, por sua vez, nos coloca m dia nte da
de não é nem a hora sem pre adiada, situada num fu- l i berdade como problema.

A liberdade como q uestão filosófica


Vimos que a fi losofia disti ngue entre o necessá rio ­ Contingência ou acaso sign ifica m que a rea l idade é im­
a q u i l o que a contece da mesma maneira em todos os previsível e m utável. Porta nto, i m possi b i l ita m del i be­
tem pos e luga res - e o contingente - aq u i lo que pode ração e decisão raciona is, elementos defi nidores da li­
ou não acontecer, q u e ocorre por acaso. Fi losofica men­ berdade. N u m m u n d o o n d e tudo acontece por
te, a q uestão da l i berdade se a p resenta na forma de acidente ou por acaso, somos como um frágil ba rquinho
dois pa res de opostos : o pa r necessidade versus liberda­ pe rd i d o n u m ma r tempestuoso, levado em todas as
de e o pa r contingência versus liberdade. d i reções, ao sabor das ondas e dos ventos.
O pa r necessidade versus l i berdade ta m bém pode Necessidade, Jatalidade, determinismo sign ifica m
ser formu lado como destino versus l i berdade e como que não há l uga r pa ra a l i berdade, porque o curso das
determin ismo versus l i berdade. coisas e de nossa vida já está fixado de ma neira i rre­
Necessidade é o termo em pregado pa ra se referir versíve l. Contingência e acaso sign ifica m q u e não há
ao todo da rea lidade, existente em si e por si, que age luga r pa ra a l i berdade, porq u e não há como prever o
sem nossa i nterferência e nos i nsere em sua rede de cu rso das coisas e de nossa vida. Em resumo, não há
ca usas e efeitos, condições e consequências. l uga r pa ra a liberdade q uando não pod emos intervi r no
Destino é o ter m o usado q u a n d o pensa m os e m cu rso das coisas e de nossa vida.
forças tra nscendentes superiores a nós e q u e nos go­ Retomemos o que d izem os poemas.
vernam, quer o queira m os, quer não. Torneira seca; luz apagada; portafechada: a rea lida­
Determinismo é o te rmo e m p regado, a pa rt i r do de é feita de situações adversas e opressoras, contra as
sécu lo XIX, pa ra se referir às relações ca usa is necessá­ q uais nada podemos, pois não dependem de nós e pa­
rias que regem a rea l idade con hecida e controlada pe­ recem ter a mesma necessidade que as coisas naturais.
la ciência. Ao ser usado pa ra referir-se ao ser h u m a n o, Vasto mundo: se a rea lidade natural segue leis ca u­
trata-o como objeto das ciências naturais (Física, Quí­ sais necessá rias e a cu ltural tem normas obrigatórias, se
m ica e Biologia) e das ciências hu m a nas (Sociol ogia e nen h u ma delas depende de nós, se nossa consciência e
Psicologia). Porta nto, subordina-o completamente a leis nossa vontade são determ i nadas por leis da natureza e
e ca usas q u e cond iciona m seus pensa mentos, senti­ normas da cu ltura, como falar em l i berdade humana? A
mentos e ações, torna ndo a l i berdade i l usória. necessidade que rege as leis naturais e as normas cultu­
O pa r conti ngência versus li berdade ta m bém pode rais não seria mais vasta, maior e mais poderosa do que
ser formu lado pela oposição entre acaso e l i berdade. nossa l iberdade? O que poderia esta r em nosso poder?

S Ca pítulo 29
Árvore milagrosa: se a felicidade é um milagre, en­ Na primeira situação - mulher, negra, pobre, numa
tão não depende de nós, acontece por puro acaso ou sociedade machista, racista, classista -, parece que
pura contingência. Se o mundo é um tecido de acasos nada posso fazer. A porta está fechada e a luz apagada.
felizes e infelizes, sem causa ou explicação, como espe­ Porém, nada estará no poder de minha liberdade? Terei
rar que sejamos sujeitos livres ou responsáveis? Se tu­ de recusar a luz e permanecer com a porta fechada? Se
do é contingente, onde colocar a liberdade? a ética afirmar que a discriminação sexual, étnica e de
classe é imoral (isto é, violenta), se eu tiver consciência
Algu ns exe m p los disso, nada farei contra tal situação? Mantendo-me
Tomemos um exemplo da necessidade oposta à resignada, conformada, passiva e omissa, não estarei
liberdade. fazendo da necessidade uma desculpa para não agir?
Não escolhi nascer numa determinada época, num
determinado país, numa determinada família, com de­
terminado corpo. As condições de meu nascimento e
de minha vida fazem de mim aquilo que sou, e minhas
ações, meus desejos, meus sentimentos, minhas inten­
ções, minhas condutas resultam dessas condições, na­
da restando a mim senão obedecê-las. Como dizer que
sou livre e responsável?
Se, por exemplo, nasci mulher, negra, numa família
pobre, numa sociedade machista, racista e classista, que
me discrimina sexual, racial e socialmente, que me impe­
de o acesso à escola e a um trabalho bem remunerado,
que me proíbe a entrada em certos lugares, que me inter­
dita amar quem não for da mesma "etnia" e classe social,
como dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de
uma maneira que não escolhi, mas me foi imposta? Em 1955, Rosa Parks desafiou a legislação racista do estado do
Alabama, nos Estados Unidos, e recusou-se a ceder seu lugar no
Tomemos, agora, um exemplo de contingência ônibus a um passageiro branco. Sua detenção levou a uma série de
oposta à liberdade. protestos que resultaram na revogação da segregação racial em
Quando minha mãe estava grávida de mim, houve transportes públicos. Foto tirada em 21 de dezembro de 1956, um dia
depois do fim da segregação.
uma epidemia e minha mãe adoeceu. Nasci com proble­
mas de visão. Foi por acaso que a gravidez de minha mãe Na segunda situação - epidemia, desemprego, fim
coincidiu com o acaso da epidemia: por acaso, ela adoe­ dos serviços públicos de saúde -, também parece que
ceu; por acaso, nasci com deficiências visuais. Tendo tais nada posso fazer. Será verdade? Não estarei transfor­
deficiências, preciso de cuidados médicos especiais. mando os acasos de meu nascimento e das condições
No entanto, na época em que nasci, o governo de políticas em desculpa e álibi para minha resignação?
meu país instituiu um plano econômico que resultou Falarei em "destino" e "má sorte" para explicar o fecha­
em redução de empregos e privatização do serviço pú­ mento de todas as alternativas possíveis para mim?
blico de saúde. Meu pai e minha mãe ficaram desem­ Renunciarei à vastidão do meu coração, aceitando que
pregados e não puderam contar com o serviço de saúde a felicidade sempre será posta onde não estou?
para meu tratamento. Tivesse eu nascido em outra Nos dois exemplos, podemos indagar se para nós
ocasião ou em outro país, talvez pudesseter sido curada resta somente "a pena de viver, mais nada" ou se, ao
de meus problemas visuais. Como, então, dizer que sou contrário, como escreveu o filósofo francês Jean-Paul
livre para decidir e escolher, se vivo num mundo onde Sartre (1905-1980), "o que importa não é saber o que
tudo acontece por acaso? fizeram de nós, e sim o que fazemos com o que quise­
Diante da necessidade e da contingência, como afir­ ram fazer conosco".
mar que "mais vasto é meu coração" - ou que a felici­ As teorias éticas procuraram enfrentar o duplo pro­
dade "está sempre onde a pomos" ? Examinemos mais blema da necessidade e da contingência, definindo o
de perto os dois exemplos mencionados. campo da liberdade possível.

A li b erda d e @
Três grandes concepções filosóficas da liberdade
As con cepções de Aristóteles e Em sua obra O ser e o nada (1943), Sartre levou essa

d e Sartre concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a


escolha incondicional que o próprio ser humano faz de
A primeira grande teoria filosófica da liberdade foi seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o
exposta por Aristóteles (e. 384 a.C.-322 a.e.) em sua obra poder de forças externas mais poderosas do que nossa
Ética a Nicômaco e, com variantes, permaneceu ao longo vontade, esse julgamento é, na verdade, uma decisão
dos séculos. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que livre, pois outras pessoas, nas mesmas circunstâncias,
é condicionado externamente (necessidade) e ao que não se curvaram nem se resignaram.
acontece por acaso (contingência). No entanto, o filósofo Em outros termos, para Sartre, conformar-se ou
introduz um terceiro termo: o possível, isto é, aquilo que resignar-se é uma decisão tão livre quanto não se
pode ser feito ou pode acontecer desde que um ser hu­ resignar nem se conformar. Quando dizemos que não
mano delibere e decida realizar uma ação. Assim, na con­ podemos fazer alguma coisa porque estamos fatiga­
cepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher, dos, a fadiga é uma decisão nossa, tanto assim que
num ato voluntário, entre alternativas possíveis. outra pessoa, nas mesmas circunstâncias, poderia
Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si decidir não se sentir cansada e agir. Da mesma ma­
mesmo o princípio para agir ou não agir. A liberdade é neira, quando dizemos estar sem força para fazer
concebida como o poder pleno e incondicional da von­ alguma coisa, a fraqueza é uma decisão nossa, pois
tade para escolher realizar ou não realizar uma ação. É outro poderia, nas mesmas circunstâncias, não se
uma capacidade que não encontra obstáculos nem é considerar fraco e agir. Em resumo: toda e qualquer
forçada por coisa alguma para agir. decisão que tomamos e toda e qualquer ação que
Contrariamente à necessidade e à contingência, sob realizamos são livres.
as quais uma causa externa obriga o agente a agir de Por isso, Sartre faz uma afirmação aparentemente
determinada maneira, no ato voluntário livre o agente paradoxal: "estamos condenados à liberdade". Qual o
tem o poder para se autodeterminar, sendo por isso cau­ paradoxo? Identificar liberdade e condenação, isto é,
sa integral de sua ação. Para que um ato livre se realize dois termos incompatíveis, pois é livre quem não está
são necessárias duas condições interiores ao próprio condenado.
agente: que domine seus impulsos passionais e que de­ O que Sartre pretende dizer? Que, para os humanos,
libere seguindo o que a razão lhe mostra ser bom e justo. a liberdade é como a necessidade e o destino: não po­
A liberdade será ética quando o exercício da vontade es­ demos escapar dela. É ela que define a humanidade dos
tiver em harmonia com a finalidadeapontada pela razão. humanos, sem escapatória.

A atriz Daria Halprin interpretando


personagem homônima em cena
do filme Zabriskie Point (1 970),
dirigido por Michelangelo
Antonioni. Para Sartre, a fadiga e a
fraqueza como justificativas para
não reagirmos diante de um estado
de opressão seriam frutos de
nossa livre decisão.

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Liberdade: uma condenacão
D ostoievski escreveu: "Se Deus n ã o existisse, tudo
seria p ermitido". Aí se situa o p onto de p artida do exis­
ten cialismo. Com efeito, tudo é p e rmitido se Deus n ã o
existe, fica o homem, p o r conseguinte, abandonado, j á
que não se encontra em si, nem fora de si, u m a p ossibi­
lidade a que se apegue. Antes de mais n ada, não h á des­
culpas p a ra ele. Se, com efeito, a existência p recede a
essência, não será nunca possível referir uma explicação
a u m a natureza h u m ana dada e imutável; por outras p a ­
lavras, não h á determinismo, o h o m e m é Livre, o homem
é Liberdade. Se, por outro Lado, Deus não existe, não en­
contramos diante de n ós valores ou imp osições que nos
Legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás
de n ós, nem diante de n ós, n o dom ín io Luminoso dos va­
lores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem des­
culp as. É o q u e traduzirei dizendo q u e o h o m e m está
con denado a ser Livre. Condenado, porque não se criou a Sartre, em foto de 1946.
si p róprio; e no entanto Livre, porque uma vez Lan çado ao
mu n do é resp onsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não p ensará
nunca que u m a b ela paixão é u m a torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos
e que, p o r conseguinte, tal paixão é u m a desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável p o r essa
paixão. O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sin al dado sobre
a terra, e que o h á de o rien tar; p o rque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sin al como Lhe apro u ­
ver. Pensa, portanto, que o h o m em, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está con denado a cada
instante a inventar o h o m em.
SARTRE, Jea n-Pa u l. O existe ncia lismo é u m h u ma n is m o.
l n : Sartre. São Pau lo: Abril C u l t u ra l , 1973. p. 15-16. (Os Pensadores).

1 . Como Sa rtre i nterpretou a hi pótese d e Dostoievski e q ue pa pel e l e atribuiu à responsa bilidade dos indiví­
d uos nas esco l has h u m a nas?
2. Você considera q ue a hi pótese de Dostoievski (se Deus não existisse, tudo seria permitido) leva a uma
indiferença dos seres h u ma nos em relação às suas escol has, ou seja, leva à conclusão de q ue q ua lquer
esco l ha é vá lida? Explique sua posição.

A con cepção q u e u n e N o enta nto, d iferentem ente d e Aristóteles e d e


Sa rtre, esses fi lósofos n ã o situam a li berdade no ato d e
n ecessidade e li berdade escolha rea lizado pela vontade i n d ivid u a l, em oposição
A segu nda concepção d a l i berdade foi, i n icia lmen­ à necessidade. Afi rma m que a lguém age l ivremente
te, desenvolvida pelo estoicismo (sécu lo Ili a.C.-século li porque age necessa ria mente. Pa ra entendermos essa
d.e.). Essa concepção, modificada em vá rios aspectos, j u nção entre l i berdade e necessidade, precisa mos leva r
ressurgi u no sécu lo XVI I com Espi nosa (1 632-1 677) e, no em conta que esses fi lósofos modifica m a ideia de ne­
sécu lo XIX, com Hegel (1770-1831). Ela conserva a ideia cessidade. Pa ra eles, necessário é tudo que age a penas
a ristotélica de que a l i berdade é a a utodeterm i nação, pela força i nterna de sua própria natu reza. Qua ndo o
assim como a ideia de que é livre aquele q u e age sem que penso, si nto e faço depende a penas de m i n h a pró­
ser forçad o nem constra ngido por nada ou por n in­ pria natu reza, sou l ivre porq ue sigo necessa ria mente
guém - portanto, q u e age i m pu lsionado por u m a força as leis de m i n h a natureza racional sem ser forçado ou
i nterna ao seu próprio ser. coagido por a lgo exterior a m i m.

A li b erda d e S
Isso significa que a liberdade não é um poder in­ A li berdade co m o possi b i lidade
condicionado para escolher entre alternativas possíveis,
e sim o poder interior de alguém para agir em confor­ o bj etiva
midade consigo mesmo, sendo necessariamente o que Além das concepções anteriores, há uma terceira,
é e fazendo necessariamente o que faz. que procura unir elementos das duas outras. Afirma,
Para os estoicos, o ser humano livre é aquele cuja como a primeira, que a liberdade é um ato voluntário
razão conhece a necessidade natural e a necessidade de decisão e escolha entre vários possíveis. Entretanto,
de sua própria natureza e faz sua vontade exercer um não se trata da liberdade de querer alguma coisa, e sim
poder absoluto sobre a irracionalidade das paixões. defazer alguma coisa. Somos livres para fazer alguma
Para Espinosa, o homem livre é aquele que age co­ coisa quando temos o poder de fazê-la. Afirma, como
mo causa interna, completa e total de sua ação, decor­ a segunda, que não somos um poder incondicional de
rente do desenvolvimento espontâneo da essência escolha entre quaisquer possíveis, mas que nossas es­
racional do agente. Em outras palavras, o indivíduo livre colhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais,
age por necessidade de sua própria essência. Somos psíquicas, culturais e históricas em que vivemos.
livres quando nosso ser se realiza como uma potência Essa terceira concepção da liberdade introduz a
interna capaz, por si só, de uma pluralidade simultânea noção de possibilidade objetiva e é apresentada por
de ideias, afetos e ações. Somos livres quando o que pensadores marxistas, como Georg Lukács (1885-1971)
somos, o que sentimos, o que fazemos e o que pensa­ e Lucien Goldmann (1913-1970), e da fenomenologia e
mos não nos vem de fora, e sim exprime nossa força do existencialismo, como Merleau-Ponty (190 8-1961). O
racional interna para existir e agir. possível não é apenas alguma coisa sentida ou perce­
Para Hegel, o ser humano livre aparece na história bida subjetivamente por nós: é, sobretudo, alguma
e na cultura sob duas formas principais. Na primeira, a coisa existente objetivamente na própria necessidade
liberdade humana coincide com o surgimento da cul­ (seja esta natural, psicológica ou social), indicando que
tura - ou seja, é livre quem não se deixa dominar pela o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em
força da natureza e a vence, dobrando-a à sua vontade certas direções e sob certas condições. A liberdade é a
por meio do trabalho, da linguagem e das artes. Sob capacidade para perceber tais possibilidades e o poder
essa primeira forma, a liberdade refere-se muito mais para realizar aquelas ações que mudam o curso das
a uma atitude da humanidade, e não do indivíduo - é coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
a vitória da cultura sobre a natureza. Na verdade, a não ser aqueles filósofos que afir­
Já a segunda forma, o ser humano livre como in­ maram a liberdade como um poder incondicional da
divíduo livre, aparece na história em dois momentos vontade (como Sartre), os demais sempre levaram em
sucessivos. O primeiro é o do surgimento da interiori­ conta a tensão entre nossa liberdade e os condiciona­
dade cristã, que descobre a consciência como consci­ mentos - naturais, culturais, psíquicos - que nos fazem
ência de si dotada de livre-arbítrio. O segundo momen­ ser o que somos, mas que em certas circunstâncias
to, decorrente do primeiro, é o do surgimento da podem ser superados por nossa ação. Essa superação
individualidade racional moderna ou do indivíduo co­ é a liberdade. As discussões sobre as paixões, os inte­
mo consciência de si reflexiva, que concebe sua razão resses, as circunstâncias histórico-sociais, as condições
e sua vontade como independentes da necessidade naturais sempre estiveram presentes na ética. Por isso,
natural e da coação de autoridades externas sobre seu uma ideia como a de possibilidade objetiva sempre es­
pensamento e sua vontade. teve implícita nas teorias sobre a liberdade.

Vida e morte
Vida e morte não são, para nós, simples aconteci­ Viver e morrer são a descoberta da finitude huma­
mentos biológicos. Como disse Heidegger (18 89-1976), na, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma
as coisas aparecem e desaparecem, os animais nascem vida é minha e minha é a morte. Somente a morte com­
e perecem, mas somente o ser humano sabe que vive pleta o que somos, dizendo o que fomos. Por isso, os
e morre, isto é, que existe. Para os humanos, vida e filósofos estoicos propunham que somente após a mor­
morte são acontecimentos simbólicos, são significa­ te podemos afirmar que alguém foi feliz ou infeliz.
ções, possuem sentido e fazem sentido. "Quem não souber morrer bemterá vivido mal", afirmou

S Ca pítulo 29
Sêneca (4 a.C.-65 d.e.). Enquanto vivos, somos tempo e são do mais alto ideal de uma existência livre. Assim,
mudança, estamos sendo. Espinosa afirma que o ser humano é mais livre na com­
Os filósofos existencialistas disseram: a existência panhia dos outros do que na solidão e que "somente
precede a essência, significando com isso que nossa es­ os seres humanos livres são gratos e reconhecidos uns
sência é a síntese do todo de nossa existência. aos outros", pois os sujeitos livres são aqueles que agem
Morrer é um ato solitário. Morre-se só: a essência da com generosidade e sempre de boa-fé.
morte é a solidão. O morto parte sozinho; os vivos ficam
sozinhos ao perdê-lo. Restam saudade e recordação.
Viver, ao contrário, é estar na companhia de ou­
tros: a essência da vida é a intercorporeidade e a in­
tersubjetividade. Os vivos estão entrelaçados: esta­
mos com os outros e eles estão conosco, somos para
os outros e eles são para nós.
A ética é o mundo das relações intersubjetivas, isto
é, entre o eu e o outro como seres conscientes, livres e
responsáveis. Nenhuma experiência evidencia tanto a
dimensão essencialmente intersubjetiva da vida e da
vida ética quanto a do diálogo.
Porque a vida é intersubjetividade corporal e psí­
quica e porque a vida ética é reciprocidade entre sujei­ No leito de morte (1 895), óleo sobre tela de Edvard Munch.
tos, muitos filósofos definiram a amizade como expres- Morrer é um ato solitário.

Co n exões
Esta atividade trabalha com conteúdos de Filosofia e Geografia.
Escolha uma situação recente, no Brasil ou no mundo, sobre a qual você tenha tido conhecimento pela tele­
visão, pelo rádio, pela internet, por jornais ou revistas. Escreva uma breve análise do caso escolhido sob a luz dos
conceitos de necessidade, contingência, possível e possibilidade objetiva. Procure relacionar a análise do fato em
si com conceitos da Geografia humana.

Mulher busca água em


Bonfim da Feira (BA),
durante a seca que
atingiu o Nordeste
brasileiro em 2012.
Como as condições
naturais influ enciam
as possibilidades de
escolha dos
indivíduos?

A li b erda d e 8
1. Vi mos três poemas q u e nos faze m pens a r sobre a 4. Expl i q u e a afi r m a çã o de Sa rtre de q ue "esta mos
l i be rdade. Qua l é a pri nci pa l d ife re nça e ntre o poe- condenados à l i be rda de".
ma de José Pa u l o Paes e o de Carlos Drum mond de 5. Que filósofos reu n i ra m n ecessi dade e l i b e rdade?
Andrade?
Que m uda nça eles i ntrod uzi ra m nos co nceitos de
2. Exp l i q u e a diferença entre n ecessidade e conti n- necessidade e l i be rdade?
gê ncia . Quais s ã o a s oposições entre esses dois
co nceitos e o de l i berdade?
6. Exp lique como Espinosa defi ne a liberdade huma na .

3. P o r q u e Aristóte les i ntroduz a i d e i a d o possíve l pa- 7. Co m o Hege l exp lica o s u rgi m e nto histó rico da fi-
ra exp lica r a l i be rda de? Qua ndo somos livres, se- gu ra do i n d ivíd u o l ivre?
gundo Aristóte l es? 8. Qua l é a relação entre vida ética, diálogo e a m izade?

l n d i c a cõ e s

O jogo da imitação
• Direção de Morten Tyldum. Reino U nido/Estados Unidos, 2014.
I n s p i ra d o em fatos rea is, o fi l m e m ostra a bu sca obsessiva do matemático britâ n i co A l a n
Tu ring pela i nven ç ã o de u m a m á q u i n a capaz de decodificar m ensagens secreta s a l e m ã s d u ­
ra nte a Segu n d a G u erra M u n d ia l . D u ra nte o desenvolv i m e nto do proj eto, e l e e s u a e q u i p e
percebem q u e, a l é m das h oras gastas entre n ú m eros e e q u a ções, seu tra ba l h o envolvia u m a
s é r i e de d ifíceis decisões éti ca s.

Capa do DVD do filme O jogo da


imitação, de Morten Tyldum.

Maus
• Escrito e ilustrado por Art Spiegelman. Quad rin hos na Cia., 2005.
I ntriga do pelo passado de seu pai, u m sobrevivente do H ol ocau sto, o q u a d r i n ista esta d u n i d e n ­
se Art Spiegel m a n d e c i d e entrevistá-lo para reconstit u i r o período da persegu ição na zista e d a
v i d a nos ca m pos de concentra çã o. Além de revel a r u m a h istória de d u ras escol h a s e a rriscadas
a ções, o genioso pai de Art leva o escritor a enfrentar a s próprias dificu ldades de relaci o n a m e n ­
t o entre os dois.

Capa do livro Maus, de Art


Spiegelman.

A idade da razão
• Escrito por Jean-Paul Sa rtre. Nova Fronteira, 2011.
Este rom a n ce tra z a l g u m a s das q u estões sobre l i berda de pensadas por Sa rtre. E m Pa ris, à s vés­
peras da Segu nda G u e rra M u n d ia l , Math ieu Delarue defe n d e a ideia da l i berda de i n divi d u a l e
despreza q u a l q u e r tipo de com p rom isso. A gravidez ines perada da n a m orada, em m e i o à crise
político-soci a l da época, põe em xeq u e seus conceitos e o con d u z à n ecessi dade da esco l h a.

Capa do livro A idade da razão, de


Jean- Paul Sartre.

S Ca pítulo 29

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