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Como se lê acima, desenhar o perfil doutrinário do Estado Novo parece ter sido
fundamentalmente o objetivo das autoras. Ademais, a obra aborda com maestria toda a
contribuição dos intelectuais da época envolvidos na construção de um modelo de Estado
segundo os princípios varguistas.
O jurista Miguel Reale, autor d´O Estado Moderno, fora à época, simpatizante do Fascismo. Reale
identificara duas correntes no Estado Fascista, a saber: 1) Fascismo Totalitário, regime que
anulava a liberdade do indivíduo, pois havia um Estado absoluto que absorvia o indivíduo; 2)
Fascismo Integralista que integrava valores comuns, mas respeita valores específicos e
exclusivos. Integrar discriminando era a regra. Com esta última linha de pensamento Reale se
identificava ideologicamente. O jurista, consagrado internacionalmente, chegou a chefiar na
ocasião o Departamento Nacional de Doutrina da Ação Integralista Brasileira.
Cândido Mota, tal como Reale e Arinos, era também um reacionário, notório admirador do
estadista Mussolini. Mota entendia o Fascismo como solução política necessária ao
fortalecimento do Poder Executivo. Admirava o poder que o Estado fascista possuía
estabelecendo um todo coeso e orgânico entre sociedade e Estado.
Importa ressaltar que a maioria dos doutrinadores atuantes naquele período da história insistia
em negar qualquer inspiração no regime de Mussolini. No mesmo sentido, os teóricos de 1937
não admitiam haver quaisquer vínculos entre o Estado Novo e o Fascismo italiano.
É sabido, entretanto, que tal fato não correspondia à realidade, posto que os doutrinadores do
Estado Novo trabalhavam para o governo de Vargas e, supõe-se, quiseram esconder posições
ideológicas que comprometessem a imagem do Regime autoritário de então.
Vejamos o que na realidade distinguia o Estado Novo do Estado Fascista. O Fascismo propõe
todo o poder ao Estado, o mesmo ocorrendo com o Estado Novo. É uma semelhança entre
ambos os regimes, porém há reconhecidas diferenças. Se, por um lado, o regime fascista resulta
de um movimento organizado que toma o poder, por outro lado, o regime estadonovista não
resultou da tomada do poder por nenhum movimento revolucionário.
O Fascismo aceitava a existência de um partido político único que dava sustentação ao regime.
Já o Estado Novo nunca aceitou partido político algum no país, sendo que havia apenas os
Sindicatos na condição de responsáveis pela representação de categorias profissionais. Outra
diferença a salientar entre Fascismo e Estado Novo está na proposta de Mussolini em militarizar
as suas “forças”, fato que acaba por ocorrer. Já com Getúlio Vargas, no Brasil, a proposta de
militarização da juventude foi recusada.
A literatura sobre o papel dos intelectuais costuma ressaltar os aspectos de rebeldia, de crítica e
de oposição à ordem estabelecida. No presente caso, estamos interessados em assinalar o outro
lado da moeda: o papel dos intelectuais como participantes da construção da tradição, buscando
valores que fundamentem a legitimidade da ordem. (OLIVEIRA, 1982, p.33).
Em Estado Novo: Ideologia e Poder, Lúcia Lippi Oliveira (1982) dedica-se ao estudo do
pensamento de Almir de Andrade e Azevedo Amaral, ambos representantes expressivos da
doutrina estadonovista.
O Estado Novo possuía dois importantes órgãos de imprensa – as Revistas Cultura Política e
Ciência Política –, ambos ligados ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), cuja função
maior estava na difusão da doutrina do Estado Novo. Almir de Andrade foi diretor da Revista
Cultura Política. A ênfase em seus escritos estava em relacionar a ação política do governo com
as tradições culturais do país. O pensador buscava na história do Brasil aquilo que de mais
pertinente caracterizasse o espírito brasileiro. Para Andrade a tradição era como uma lei social
que deve ser respeitada.
Almir de Andrade fundamentou suas teses no estudo das obras de Gilberto Freire, de Sérgio
Buarque de Holanda, entre outros autores. Os estudos realizados permitiram compreender que a
colonização do Brasil gerou uma mentalidade política bastante original. No país, constatou-se, a
autoridade política foi deslocada das mãos do Estado para o senhor patriarcal. Duas
consequências nasceram dessa mentalidade: o interesse local passou a predominar sobre os
interesses gerais; o brasileiro tornou-se refratário às leis e princípios que não se corporificassem
na figura concreta de um chefe.
Com base nesses conhecimentos da tradição cultural brasileira, Almir de Andrade procurou
legitimar a ideologia do Estado Novo e a condição de Vargas no poder.
Outro nome consagrado entre os doutrinadores de 1937 foi o do médico e jornalista Azevedo
Amaral. Tratava-se de um ideólogo conservador, defensor do Estado autoritário e da
centralização do poder. Para Amaral a ordem é vista como condição preliminar para o êxito de
qualquer revolução.
O doutrinador foi influenciado pela biologia – ciência com imenso prestígio à época – sendo
comuns em seus escritos as metáforas biológicas. Segundo Amaral, a sociedade brasileira estaria
enferma, seria como um organismo em desequilíbrio. Até mesmo o fundamento da hierarquia
que, segundo o estudioso, deve haver na sociedade – posto que os homens não são iguais,
havendo os superiores e os inferiores –, até mesmo a hierarquia tinha uma explicação biológica.
Para o doutrinador da Era Vargas a evolução natural da sociedade deveria ser conduzida pelas
elites nacionais.
A partir da análise do discurso contido nas páginas das revistas Cultura Política e Ciência Política,
ambas supervisionadas pelo DIP, a socióloga Mônica Velloso (1982) demonstra em Estado Novo:
Ideologia e Poder como se buscava, na época, legitimar o Estado Novo.
Cultura Política era a revista oficial do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Foi
editada entre os anos de 1941 e 1945, sob a direção de Almir de Andrade. Sua proposta
consistia em definir o rumo das transformações sociais e políticas do país. Grandes intelectuais
escreviam em suas páginas, a saber: Graciliano Ramos, Gilberto Freire, Azevedo Amaral, entre
outros.
Os responsáveis pela revista Cultura Política diziam aceitar contribuições de qualquer intelectual,
independentemente de sua filiação ideológica, todavia, os autores publicados eram em sua
maioria doutrinadores vinculados ao Estado varguista.
Velloso (1982) salienta que a revista Cultura Política trazia em suas páginas um conteúdo
filosófico e sociológico bastante elaborado acerca da política do Estado. A linguagem hermética,
quase inacessível, fazia de seus leitores um grupo reduzido de iniciados. A população brasileira,
em sua maioria de pouca instrução, não se interessava pela revista.
A revista Ciência Política foi uma publicação do Instituto Nacional de Ciência Política (INCP),
órgão filiado ao DIP. Fundada em 1940, foi editada até o ano de 1945 e teve como diretores
Paulo Filho e Pedro Vergara. A principal meta da revista estava em difundir os fundamentos do
Estado Novo, assegurando-lhe estabilidade.
Com uma linguagem bastante acessível, a revista Ciência Política tinha um número significativo
de leitores. Esta publicação, onde escreviam intelectuais de pequena projeção, decodificava os
discursos técnicos produzidos pelos ideólogos do Estado Novo.
O processo de legitimação da ideologia do Estado Novo era diferente nas duas publicações. A
revista Cultura Política desenvolveu uma argumentação teórica sobre o Estado Novo,
prendendo-se à discussão sociológica e à reflexão. Por outro lado, a revista Ciência Política
apresentava propostas imediatas de implementação de uma nova “cultura política”, o que fazia
dela um periódico voltado para a ação.
Em ambas as revistas a concepção de política perdeu seu caráter pejorativo; política passou a ser
entendida como ciência de orientação social. Havia uma tônica moralista e um resgate de
valores humanistas e cristãos, esquecidos no liberalismo. Entusiastas desses valores foram à
época Alceu Amoroso Lima – conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athaíde –, Plínio
Salgado, entre outros.
O redescobrimento do Brasil
O capítulo IV da obra Estado Novo: Ideologia e Poder é intitulado O redescobrimento do Brasil e
tem a autoria de Ângela Maria Castro Gomes. O trabalho da pesquisadora está pautado na
análise dos artigos da revista Cultura Política e objetiva examinar a construção do projeto
político-ideológico que se definia, no tempo de Vargas, como democracia social e era visto
como revolucionário.
A Revolução de 1930 será apontada como a única e verdadeira revolução brasileira, em razão de
seu caráter construtivo. “A Revolução de 1930 assume o caráter de um movimento de libertação
da trágica experiência liberal da Primeira República”, escreve Gomes (1982, p.115). A questão
central do movimento inaugurado no ano de 1930 e concretizado em 1937 estava na prioridade
atribuída à questão social, diferentemente das preocupações políticas e jurídicas que
predominavam até então.
O Estado Novo (1937-1945) estabeleceu a democracia social como uma espécie de meio termo
entre a proposta democrática do Estado Liberal e a proposta totalitarista dos Estados Fascista ou
Comunista. Tratava-se, portanto, de uma quarta via de acesso à democracia. “A nova democracia
tinha o ser humano como alvo de suas preocupações, não desejando nem a sua desintegração,
como ocorria no liberalismo, nem a sua estatização, como ocorria no totalitarismo” (GOMES,
1982, p.126).
O liberalismo dava primazia à liberdade e à igualdade formal, mas não resolvia problemas
sociais e econômicos. De sua parte, a nova democracia instituída pelo Estado Novo enfatizava a
justiça social e não a liberdade. Havia agora uma democracia social e econômica, porém não
uma democracia política.
Na avaliação de Gomes (1982, p.143) o legado do Estado Novo está em “um projeto
democrático que se concebe como autoritário”. Com efeito, a democracia autoritária está no
cerne do projeto político do Estado Novo, e é a partir dela que todas as ideias ganham um
significado.
Ademais, sob o regime instituído em 1937, a preocupação com a família era uma questão
central, necessária à proteção do homem brasileiro e ao progresso material e moral do país. A
política de proteção à família e ao trabalho resultou em uma crescente atenção voltada para a
educação.
Considerações Finais
O Estado Novo foi instaurado no Brasil ao mesmo tempo em que uma onda de transformações
varria a Europa, instaurando governos autoritários e reforçando a versão de que a democracia
liberal estava definitivamente liquidada.
No Brasil o governo do Estado Novo foi centralizador, ou seja, concentrou no governo federal a
tomada de decisões, antes partilhada com os Estados-membros.
A ideologia estadonovista recuperou práticas políticas autoritárias que pertenciam à tradição
brasileira, mas também incorporou outras mais modernas, que faziam da propaganda e da
educação, instrumentos de adaptação à nova realidade social. Foi esse o papel do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), conforme demonstrado.
Ambas as doutrinas apresentavam traços totalizadores, já que seu campo de ação não se atinha
somente à ordem política, mas envolvia também outros aspectos da vida social: cultura, religião,
filosofia. Entretanto, conforme salientado nesse estudo, o regime fascista italiano resultou de um
movimento organizado que tomou o poder. O partido teve um papel fundamental como
propulsor das transformações por que iria passar o Estado.
Ainda que haja semelhanças no tocante ao cerceamento da liberdade individual, tanto do ponto
de vista doutrinário como da realidade histórica, o Estado Novo brasileiro certamente não foi a
reprodução literal do fascismo italiano. A leitura atenta de Estado Novo: ideologia e poder
permite assim concluir.
REFERÊNCIAS
GOMES, Ângela Maria Castro. O redescobrimento do Brasil; A construção do homem novo: o
trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Velloso; GOMES, Ângela Maria
Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2009.
LEVINE, Robert. O Regime de Vargas, 1934-1938: os anos críticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980.
VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e poder político: uma configuração do campo intelectual. In:
OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Velloso; GOMES, Ângela Maria Castro. Estado Novo:
ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
SUGESTÕES DE LEITURA:
CARONE, Edgard. Brasil: anos de crise, 1930-1945. São Paulo: Ática, 1991.
CUNHA, Célio da. Educação e autoritarismo no Estado Novo. São Paulo: Cortez; Autores
Associados, 1981.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). São Paulo: Paz e
Terra, 1992.
Publicado em 24/01/2012
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