Você está na página 1de 45

Velhas Cidades e Nova

Construção Urbana ***


Gustavo Giovannoni

Quando Sisto V se dispôs, energicamente, a execu-


tar o grandioso projeto de renovação e – como diriam os
nossos homens de negócio – de “valorização dos terre-
nos” da Roma alta e, através das casas e dos vinhedos do
Esquilino, do Viminale, do Quirinale, traçou as longas
vias, retas como a sua vontade, deparou-se com um gran-
de monumento, o Coliseu, que, com o seu enorme tama-
nho, bloqueava o eixo da nova Avenida de S. Giovanni.
Rápido e intolerante aos obstáculos como ele era, a sua
decisão foi logo tomada: que o Coliseu seja cortado e a

  * Título original: “Vecchie Città ed Edilizia Nuova”, Nuova Antologia,


1913, vol. CLXV, fasc. 995 (1o de junho), pp. 449-472 (N. dos T.).
** Tradução: Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade e
Revisão: Tania Onorati.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 91 31/01/12 14:55


92    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

estrada passe. E o fiel Fontana, que já havia destruído o


Septizónio (a chamada Casa de Virgílio) e que tinha do
Papa plena autorização para se valer de antigos materiais
para as novas construções, foi encarregado de executar a
ordem. Mas, contra isso, levantou-se, com bela audácia,
o cardeal de Santa Severina, Giulio Antonio Santorio1, o
qual, trazendo para o seu lado outros cardeais, tanto fez
que induziu o papa a desistir da vândala empresa e o
Anfiteatro Flávio foi poupado.
Como observa Gnoli ao se referir a tal fato2, na-
quele tempo, certamente, não devem ter faltado, a esse
benemérito defensor do grande monumento romano, os
epítetos de pedante, de reacionário, de conservador de
inúteis velharias. Mas, no nosso tempo, o propósito do
papa Sisto – de subordinar a existência de uma obra
assim gloriosa a uma linha, mal idealizada, de uma
nova via – não seria mais concebível, nem mesmo por
parte dos inovadores mais ardorosos, já que, quanto
ao respeito para com os monumentos da antiguidade,
foram feitos passos gigantescos. E, talvez, não esteja
distante o tempo no qual o interesse e o estudo dos
quais agora são objeto também os edifícios da Idade
Média e do Renascimento serão traduzidos – da mesma
forma e com o mesmo atraso que houve para as obras

1. Ver Autobiografia del Cardinale Santorio (Mss. della Biblioteca Corsinia-


na, n. 808). Ver também alusões em Avvisi Urbinati (Arquivo Vaticano:
Cod. Urb. Lat. 1053, c. 383, 385).
2. Ver Domenico Gnoli, “Nuovo Accesso in Piazza S. Pietro”, Archivio Sto-
rico dell’Arte, 1889, p. 138.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 92 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    93

antigas – em uma análoga tendência conservadora em


direção a esses, ou, mais propriamente, em direção
àqueles que terão, nesse momento, sobrevivido aos
imprevistos atuais.
O delinear-se desse sentimento nós podemos colher
em outro episódio romano, posterior àquele referido há
pouco, mas não diferente desse. Em 1811, outro grande,
muito potente e pretensioso, Napoleão I, tinha (com o
mesmo decreto que estabelecia a ampliação da Praça
São Pedro e a da Fonte de Trevi) ordenado a demolição
do Palazzetto de Venezia para prolongar em mais um
trecho o Corso em direção ao Capitólio. Mas, em defesa
do edifício surgiu o enérgico cônsul do Reino Itálico,
Giuseppe Tambroni, e a ele uniram-se os artistas, entre
os quais o grande Canova. Um feroz protesto – cheio de
argumentações não apenas artísticas, mas também jurí-
dicas e financeiras – foi enviado a Paris para combater
“les projets destructeurs des employés français”* e para
opor-se à inútil destruição do edifício quatrocentista,
“precioso anel que liga o gosto bárbaro ao moderno” 3: e
teve pleno sucesso, já que Napoleão – sem dúvida sabia-
mente aconselhado por De Tournon – retirou o decreto e
o “Jardim de S. Marco” foi salvo. Ou, para melhor dizer,
teve a vida prolongada por um século precisamente, até
o dia em que as condições visuais e de espaço requeridas

  * “Os projetos destruidores dos empregados franceses” (N. dos T.).
3. Ver Philipp Dengel, “Geschichte des Palazzo di S. Marco”, na obra de
Philipp Dengel, Max Dvořák e Hermann Egger, Der Palazzo di Venezia,
Wien, 1909, p. 139.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 93 31/01/12 14:55


94    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

pelo novo monumento ao rei Vittorio Emanuele tornaram


necessária a sua demolição.
Esses dois episódios representam os primeiros sin-
tomas daquilo que, no nosso tempo, no rápido e tumul-
tuoso ampliar-se das cidades e, por outro lado, com a
difusão da cultura e do sentido de arte reflexo, tornou-se
caloroso debate do dia a dia: debate no qual a sorte que
coroou os nobres esforços do cardeal Santorio ou do revo-
lucionário Tramboni certamente nem sempre favorece a
conservação do caráter monumental e artístico. Existem,
naquele momento como agora, duas tendências e dois
procedimentos que se batem de frente quando se trata
de renovar um velho centro e de determinar as relações
entre o ambiente antigo e o desenvolvimento novo: para
um, quando se excluem as obras de importância singular
e os monumentos altamente venerados, todos os restos do
passado não representam mais que “obstáculos” na nova
sistematização edilícia; para o outro são, ao contrário,
“pontos de referência” imutáveis.
Essa divergência de critérios tem toda a aparência
de um contraste irredutível entre duas concepções opos-
tas, entre a Vida e a História. Parece que de um lado estão
as exigências positivas do desenvolvimento moderno e do
moderno modo de viver, do outro, o respeito pelas memó-
rias históricas e artísticas, pelas condições de ambiente*
nas quais a velha cidade se desenvolveu. E a luta inflama

  * Como a noção de “ambiente” tem um lugar importante na obra de Gio-


vannoni e como ainda não há consenso sobre a tradução do termo para

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 94 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    95

precisamente sobre tais questões de princípio. Os inova-


dores dizem: as cidades não são museus ou arquivos, mas
são feitas para serem vividas da melhor forma possível e
nós não podemos comprometer o desenvolvimento delas
e parar o caminho da civilização, fechando a vida nova
dentro de ruas estreitas e tristes, apenas por um equivo-
cado respeito fetichista em relação ao passado. As nos-
sas exigências são complemente diversas daquelas dos
nossos antepassados; e, a essas, nós não podemos mais
nos adaptar – da mesma forma que não saberíamos mais
usar os seus vestidos, pitorescos, mas incômodos. Ar, luz,
comodidade, higiene, isso nós queremos! As habitações,
sejam cômodas e abertas, as ruas, sejam amplas, úteis,
de rápido percurso; e se, em seu traçado, encontram-se
edifícios importantes e obras de arte que não possam ser
removidas (a não ser que não se trate de monumentos
excepcionais), não há outra coisa a fazer além de demoli-
-los, e, no máximo, se houver tempo, conservar a lem-
brança deles por meio de documentos gráficos.
Respondem os conservadores: a vida não pode ser
movida somente por um conceito material utilitário, sem
um ideal, sem uma busca de beleza; menos ainda do
que a vida de um indivíduo, pode ser tal a vida coletiva
das cidades, que deve conter em si os elementos de
educação moral e estética e que não pode prescindir da

o português (consta inapropriadamente como “proximidade” na versão


brasileira da Carta de Atenas do Restauro), optou-se pela manutenção
dessa palavra traduzida literalmente do italiano (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 95 31/01/12 14:55


96    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

tradição na qual se encontra boa parte da glória nacio-


nal. E a tradição é ofendida no dia em que se demole ou
se deturpa um monumento e se tira um testemunho de
arte e de história ou que se transforma violentamente a
fisionomia do ambiente que os séculos paulatinamente
imprimiram a todo um bairro. A razão de ser, a impor-
tância, frequentemente também a prosperidade presen-
te de muitas cidades (como Roma, Florença, Veneza,
e Nuremberg, e Bruges, e Siena, e Verona) está, bem
mais do que no seu valor atual, na luz que o passado
irradia sobre elas: não a obscureçamos destruindo seus
restos monumentais e ofuscando seu caráter. E se esse
respeito, que pode dizer-se um dever nobiliário, levará
a percorrer uma via com algum maior incômodo, não
nos lamentemos disso se assim se salvam os direitos da
Beleza e da História.
Como acontece frequentemente em questões com-
plexas (e poucos fatos humanos são mais complexos
do que o desenvolvimento de uma cidade), todos esses
princípios extremos, todos esses aforismos, são respei-
táveis e justos, mas são teoria, contemplam o grave pro-
blema apenas de um lado e frequentemente se demoram
em termos formais e combatem no vazio. Na prática, ao
contrário, especialmente tendo prevalecido agora recen-
tíssimas tendências edilícias e tendo sido aperfeiçoados
numerosos “mecanismos” a serviço das cidades, a ques-
tão frequentemente se desloca e acontece nesse campo
aquilo que em tantos outros campos a cultura moderna
e os modernos meios produziram, mudando inesperada-

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 96 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    97

mente perante problemas que pareciam insolúveis. Tanto


que eu não acredito exagerar em otimismo afirmando
que, de um estudo feito com amplitude de visão, com
exata cognição das reais exigências da construção urba-
na e dos meios à sua disposição, com afeto sincero para
com a arte e as memórias citadinas, não apenas é quase
sempre possível encontrar um acordo entre as duas or-
dens de critério dando a cada uma racionalmente o seu
campo de ação, mas não raramente também se chega a
fazer de forma tal que, das próprias dificuldades, surja a
solução lógica e viva, pensada e genial, distante da vul-
gar e fácil aplicação de disposições geométricas boas (ou
mais facilmente ruins) para todos os casos e para todos
os lugares, expressões

… du rythme commode,
Comme un soulier trop grand*.

A grande dificuldade é, antes, dada pela necessida-


de de uma preparação profunda no enfrentamento – com
tais critérios abrangentes – das questões gravíssimas da
inserção da nova construção nos velhos troncos. Quem
de tais assuntos se ocupa deveria ser, como diz Hauss-
mann4, “un administrateur doublé d’artiste, épris de
toutes les grandes choses, passionné par le Beau…, mais
sachant pour expérience que les choses secondaires ne

  * … do ritmo cômodo, como um sapato muito grande (N. dos T.).
4. Ver Mémoires du Baron Haussmann, tomo I, Paris, 1890, p. 12.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 97 31/01/12 14:55


98    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

sont pas à négliger” **. Ao contrário, muito frequente-


mente, é vigente nesse campo uma improvisação fácil e
imprevidente, um desleixo; e quase não há prefeito ou
chefe de escritório técnico municipal que não se veja
capaz de resolver, como se fosse uma tarefa de adminis-
tração habitual, tudo aquilo que é relativo à viabilidade
de um bairro, quase como se a construção não viesse a
dar caráter permanente aos erros traçados com poucos
traços de caneta e de tiralinhas.
Um dos inimigos piores é dado por aquela que po-
deria chamar-se a retórica edilícia. Muito frequentemen-
te, não se trata de verdadeiras exigências e as soluções
que são propostas – e é o caso dos dois exemplos rela-
tivos ao Coliseu e ao Palazzetto di Venezia citados no
início – não se ligam a um programa pensado, não são as
únicas possíveis e nem também as mais úteis. Ao contrá-
rio, respondem, muitas vezes, a uma frase sem nenhum
conteúdo (assim, por exemplo, foi dito recentemente em
Roma: unamos a Reggia com o Pantheon; formemos na
zona monumental uma avenida tão larga quanto o Tibre;
sigamos o traçado da antiga “Via Recta” etc.); ou, mais
frequentemente, seguem combinações geométricas in-
dicadas em projeções sobre o plano, não imaginadas na
prática, e formam retas e se agrupam em tabuleiros de
xadrez, em polígonos, em estrelas, que, sobre o papel,
poderão configurar-se regulares e até elegantes, e que

** “um administrador dublê de artista, enamorado por todas as grandes


coisas, apaixonado pelo Belo …, mas sabendo por experiência que as
coisas secundárias não devem ser negligenciadas” (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 98 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    99

talvez assim pareçam do alto quando a navegação aérea


estiver mais desenvolvida5, mas que, na realidade, não
têm nenhuma razão orgânica nem de função nem de
estética. Às vezes parece até que a geometria queira se
justificar por ela mesma e que o desenho planimétrico
não seja o meio, mas o fim; grande expressão daquela
que Galassi, em um recente estudo6, chama arquitetura
acadêmica, a qual, no fundo “exige muito menos estudo
e esforço e também menor engenho, diferente da outra,
positiva, a qual requer uma trabalhosa e minuciosa obra
de orquestração de todos os elementos”.
*
* *
Da arquitetura acadêmica aplicada à construção
urbana, mas, ainda mais, da vulgaridade e do despre-
paro, o século passado representou o triunfo. Nesse,
o grandioso fenômeno do Urbanismo e o consequente
enorme desenvolvimento edilício tomou de surpresa os
estudiosos, os artistas, os administradores das cidades.
A arte hesitava entre classicismo e romantismo e quase
desdenhava os novos grandes problemas da vida pública;
a cultura histórica e artística era ainda bem pouco difu-
sa; e, por outro lado, os meios de transporte, não ainda

5. Dizia sabiamente Napoleão I aos seus arquitetos Percier e Fontaine, que


defendiam um velho projeto de Perrault para esconder a dissimetria entre
o Louvre e as Tuileries: “les oiseaux seuls s’aperçoivent de l’irrégularité
des grands espaces” [“apenas os pássaros percebem a irregularidade dos
grandes espaços”].
6. Ver F. Galassi, “Considerazioni sull’Architettura e sui Piani d’Amplia-
mento delle Città”, Annuario dell’Accademia di S. Luca, Roma, 1911.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 99 31/01/12 14:55


100    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

rápidos e aperfeiçoados, faziam com que o movimento


citadino representasse um obstáculo, não um meio eficaz
de descentralização; prevalecia, sobretudo, o elemento
econômico, a busca de valorizar as áreas naquelas que
pareciam as melhores condições, o desejo de fazer logo.

Fig. I.  Planta de Nova York.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 100 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    101

Assim, aconteceu que, quando – com vertigino-


sa rapidez progressiva – pequenos burgos tornaram-se
grandes cidades e, modestas cidades, imensas metrópo-
les; quando o tráfego nas ruas citadinas começou a ter
uma intensidade até aquele momento nunca sonhada
e as fibras das velhas casas tranquilas vibraram com
a passagem contínua de carroças e bondes; quando as
tendências da higiene moderna e do moderno modo de
viver fizeram com que se quisesse ar e luz e comodidade
e os novos regimes niveladores eliminaram o caráter
individual da vida, os novos bairros germinaram “como
grãos de trigo”, ao redor e dentro dos velhos centros,
sem uma orgânica coordenação e uma justa previsão do
incremento futuro, sem um aspecto de arte, sem uma ver-
dadeira correspondência com as condições locais: tanto
que, visto um bairro, todos os outros são iguais; vista uma
cidade, são vistas todas as outras7.
No predomínio dos traçados geométricos para as
redes viárias dessa nova expansão, dois conceitos preva-
leceram: ou a regular distribuição das quadras de forma
que fosse fácil a subdivisão dos lotes e simples a cons-
trução das casas, e daí o traçado em tabuleiro de xadrez,
intersecções de duas séries normais de retas, esquema
que havia feito suas provas não belas antigamente em

7. Diz muito bem a tal propósito Buls: “Se lançamos um olhar sobre a planta
de uma das nossas cidades, distinguiremos imediatamente a parte antiga
da moderna: a primeira é formada por uma rede de ruas que se ramificam
ou se reunem como as artérias e as veias de um organismo vivo; a segun-
da, com as suas vias paralelas e perpendiculares, tem o caráter de uma
cristalização artificial, árida e matemática”.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 101 31/01/12 14:55


102    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

muitas cidades romanas e no século XVIII em Turim, em


Mannheim etc., ou se quis a convergência de artérias em
alguns nós para fim de tráfego ou para fim artístico, já
que o conceito da reunião das visuais em alguns pontos
permaneceu o único critério artístico sobrevivente, mas
também ele cristalizado e geometrizado, tanto que a rótu-
la da praça de l’Etoile em Paris ou o leque de Karlsruhe
representaram o ideal. Mas, de qualquer forma, essas
manifestações do sistema “radial” foram exceções em
comparação ao grande desenvolvimento do primeiro, o
sistema “retangular”.
Esse, especialmente, não teve freio algum – e é
instrutivo observar isso – nas cidades norte-americanas,
onde nenhum “obstáculo” à edificação era colocado pe-
las construções e pelas obras de arte de séculos anterio-
res. E Nova York e Chicago e São Francisco surgiram
como imensos, monótonos reticulados de estradas todas
iguais e de quadras todas iguais. As ruas tiveram que
ser individualizadas mediante números, e a mania da
retificação (como foi também para alguns dos traçados
do papa Sisto V em Roma) chegou ao ponto de fazê-las
desenvolver-se com inclinações enormes sobre colinas
e vales, ou, mesmo, induziu a trabalhos colossais de
aterramento para adaptá-las artificiosamente à forma do
terreno – exemplo característico de concepção sobre a
planta, isto é, em duas dimensões apenas.
Certamente seria injusto dizer que nada tenha sido
feito de bom e genial nessas ampliações e nessas adap-
tações edilícias. Viena com o seu Ring grandioso que

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 102 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    103

substitui o centro por um anel, Paris e Munique, com


os amplos traçados correspondentes ao conceito das
visuais convergentes, Londres, que mantém a tradição
da descentralização nos bairros de habitação, na Itália,
Florença, com seu belo desenvolvimento de avenidas ex-
ternas (até o triste período do plano regulador de 1884),
representam tantos pontos salientes e respondem a ver-
dadeiras e pensadas manifestações de “estilo edilício”;
nessas e em poucas outras expressões que emergem do
pântano da vulgaridade, pode agora a “jovem escola”
basear seus conceitos e suas propostas.
Mas, considerado no seu conjunto, e também con-
siderado independentemente dos problemas postos pelo
passado, pode-se bem afirmar que o período edilício,
que agora gostaríamos de dizer ultrapassado, tenha
falhado na sua tarefa. A essa altura, de toda parte se
dirigem, a esse, críticas e acusações. Não são apenas
os estetas a protestar contra a monotonia e o tédio da
geometria edilícia, a perceber como as longas vias reti-
líneas não dão nenhum sentido de grandiosidade e qua-
se não permitem que os edifícios sejam vistos; não são
apenas os amantes do natio loco* a condenar a perda do
caráter individual da localidade; mas também os higie-
nistas começaram a observar que esse grande desenvol-
vimento de vias retas não é privado de inconvenientes,
seja pela infeliz orientação que constantemente resulta
dele para toda uma série de moradias, seja pela predo-

  * Do lugar onde nasceram (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 103 31/01/12 14:55


104    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

minância dos ventos que levantam a poeira, a qual (diz


um aforismo do Chantemesse) pode ser em um dia de
vento bem mais danosa à saúde pública que o ar dos es-
gotos. Mais ainda pareceu-lhes um perigo grave a densa
construção de edificações enormes que seguiu a forma-
ção das quadras regulares, nas quais se adensa a popu-
lação de subúrbios inteiros. Se, enquanto isso, as estru-
turas e os serviços higiênicos das cidades modernas não
tivessem imensamente progredido, poder-se-ia duvidar
se estas desvantagens não neutralizariam ou, ainda
mais, superariam as vantagens trazidas pela amplia-
ção das vias, pela invasão do ar e da luz em torno das
construções.

Fig. 2.  Planimetria de um bairro de Fig. 3.  O mesmo bairro segundo o


casas segundo o velho sistema. traçado proposto pela Association for
Garden-City.
(Do periódico The Garden-City 1909)

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 104 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    105

Nem muito melhores resultaram as condições em


relação aos dois principais elementos que também ti-
nham exercido influência predominante: o tráfego e a
economia. As secções viárias, que pareciam enormes,
tornaram-se insuficientes quando o movimento foi outra
vez intensificado, especialmente quando chegaram os
bondes elétricos; ainda mais insuficientes se tornaram
justamente onde não havia sido dividido o movimento
de intensidade variada na previsão do percurso. O tipo
geralmente difuso de encontro de várias ruas em um
único ponto mostrou-se, com o aumento da velocidade
dos veículos, perigoso e obstrutivo e, mesmo que possa
parecer um paradoxo, também o tipo de cruzamento nor-
mal, intersecção em ângulo reto de duas vias contínuas,
mostrou-se, pela possibilidade dos encontros dos auto-
móveis, ainda pior do que quando a circulação é dividida
e as vias secundárias não se encontram no mesmo ponto
da principal8. Finalmente, no que se refere ao custo da
sistematização viária, ele resulta altíssimo, seja pela
grande área exigida pelas ruas, frequentes e todas rela-
tivamente amplas (nas cidades americanas mais de 2/5
da superfície da cidade é ocupada pelo sistema viário),
seja pelos trabalhos de nivelamento artificial inerentes à
artificial configuração altimétrica, que trazem custo para
a reforma e custo para a fundação de cada edifício: por-
tanto, ônus enormes para as administrações municipais
e aumento do valor das áreas passíveis de construção,

8. Ver Camillo Sitte, Der Städtebau nach seinen Kunstlerischen Grundsätzen,


Wien, 1889.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 105 31/01/12 14:55


106    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

mesmo quando a esse valor a agiotagem não acrescenta-


va seu coeficiente.
*
* *
Por sorte, neste campo, estão avançando, a grandes
passos, uma nova ciência e uma nova arte; de forma que
os critérios acerca do modo de se considerar os pro-
blemas das cidades progridem rapidamente e aqueles
que eram, ontem, inovadores são, hoje, retrógados. A
Construção Urbana* já vem vigorosamente se delineando
como um novo ramo do conhecimento ao qual diversas
disciplinas trazem a sua contribuição e no qual a cidade
é considerada como uma vasta e complexa obra de arte;
e eleva-se sobre a base dos novos meios com os quais
finalmente a mecânica moderna alcançou o desenvol-
vimento das cidades e graças ao grandioso patrimônio
de experiência que – vantagem não pequena no âmbito
do grande dano – nos trouxe o não feliz período que, no
momento, aponta na direção do ocaso.
Um novo elemento já começa a ter importância es-
sencial nas cidades, causando uma revolução nos sistemas
edilícios: o elemento cinemático. Os rápidos meios de
comunicação modernos, ferrovias, bondes, automóveis,
já permitem, à vida citadina, estender-se bem longe das
velhas muralhas; permitem, à nova construção, descen-
tralizar-se em espaços vastíssimos e desenvolver-se em
superfícies mais do que em altura. E eis que se difunde o

  * Ver considerações sobre a opção de traduzir Edilizia por Construção


Urbana na introdução a essa tradução.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 106 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    107

tipo das cidades-jardins da Inglaterra, onde os primeiros


exemplos geniais de Portsunlight, de Letchworth, de Bour-
nville se uniram à tradicional tendência das habitações
familiares “em direção ao espaço aberto” 9; e eis que se
constituem, na Alemanhã, os bairros de diversas classes,
de variada função e de tipo construtivo variado, associados
entre si, em várias gradações, do geschlossene* ao offene
Bauweise**, bem coordenados por regulamentos edilícios
precisos10; e jardins e parques são deixados também nas
partes centrais para constituir destaque entre as diversas
zonas, benéficas reservas de ar e luz11.
Outro campo de renovação é aquele dos traçados
viários: a adaptação altimétrica e planimétrica ao relevo
natural do terreno, a subdivisão em ruas de tráfego, am-
plíssimas, e em ruas habitacionais de largura modesta,
com as quais se substituiu a uniformidade pelo ritmo
nesses elementos de comunicação, são tendências que têm
principalmente alcance econômico, por diminuir, ao tor-
ná-lo mais racionalmente distribuído, o custo da reforma,
que se torna sempre mais pesado, para os prefeitos, pela

9. Ver Alessandro Schiavi, “Villaggi e Città-giardino in Inghilterra”, Nuova


Antologia, 1909, IV. Ver também os periódicos: The Garden-City, Muni-
cipal Journal, Der Städtebau etc.
  * Conjunto (N. dos T.).
** Estilo ao ar livre (N. dos T.).
10. Ver Joseph Stübben, “Der Städtebau”, Handbuch der Architektur, IV Th.
9 Bd.
11. Ver o estudo de Hénard no VII Congresso Internacional de Arquitetos,
Londres, 1906 (Transactions etc., p. 382), na qual são também interessan-
tes as propostas para a adoção de boulevards à redans, nos quais muitos
jardins deveriam ser criados nas reentrâncias dos limites frontais de cada
edifício.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 107 31/01/12 14:55


108    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

nova descentralização edilícia12; mas essas tendências pa-


ralelamente terminaram em vantagens muito grandes pelo
aspecto vivo e simpaticamente variado dos novos bairros e
constituem o substrato positivo das novas teorias estéticas.
Essas tiveram início há uns vinte anos atrás por
obra de dois “heróis”, Sitte e Buls: o primeiro, autor da
obra fundamental sobre a Arte di costruire le città***, o
segundo13, ativo executor das novas ideias como prefeito
de Bruxelas. O pequeno núcleo logo se torna legião e a
ele se aproximaram não só artistas como Fierens-Gevaert
e Henrici, mas também técnicos e administradores,
como Stübben, Goecke, Adickes, também higienistas
como Nussbaum; e em Bruxelas, em Marienberg, em
Darmstadt, em Königsberg, em Brünn, em Warrington,
em Colônia etc., nos planos de ampliação das cidades,
as aplicações do sistema se multiplicaram. Introduzir
um sentido pitoresco nas novas cidades, seja valendo-
-se das visuais naturais e monumentais, seja estudando
as linhas de circulação e os espaços abertos não como
linhas e figuras geométricas, mas como agrupamentos
variados e vivos; limitar a adoção da reta para as ruas
aos casos necessários, mas possivelmente desviando-a e

12. Ver Theodor Goecke, “Allgemeine Grundsätze für Bebauungspläne”, Der


Städtebau, 1906, p. 2.
*** Ver op.cit. Ver também a bela edição francesa de Camille Martin, Genève,
1903. [O livro de C. Sitte, Der Städtebau nach seine Künstlerrischen
Grundsätzen, Viena, 1889, foi traduzido para o italiano, numa versão
reduzida, por U. Monneret, em 1907, ganhando o título Note sull’Arte di
Costruire le Città (N. dos T.)].
13. Ver Charles Buls, L’Esthétique des Villes, Bruxelas, 1894; La Construction
des Villes, Bruxelas, 1895.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 108 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    109

associando-a a curvas, amplas e breves, ou valendo-se


de monumentos e de jardins para interromper a continui-
dade uniforme; devolver às praças principais o caráter
fechado daquelas dos nossos antepassados; e, sobretu-
do, conservar, na concepção geral e especial, o caráter
individual da cidade ou do bairro: estão aí os cânones
fundamentais da nova tendência, a qual, de resto, en-
quanto busca uma verdadeira e alta forma de arte, não
poderia chegar a fórmulas precisas e determinadas para
a materialização dos princípios gerais, sem recair na re-
tórica e sem abandonar o seu critério de aplicação caso a
caso, segundo a inspiração subjetiva do artista e segundo
as condições objetivas dos elementos concretos da arte
local, que constituem o ambiente.

Fig. 4.  Moderno bairro de casas (arquiteto Puetzer)


(De Sitte, op. cit., tav. I)

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 109 31/01/12 14:55


110    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

Grande forjadora desses estudos e dessas tentativas


foi a Alemanha, onde exposições e congressos sobre
vários argumentos relativos à cidade já ocorrem todo
ano e uma completa literatura de importantes obras e de
periódicos férteis faz dela sujeito exclusivo. Oito univer-
sidades têm lá cursos completos sobre questões edilícias
e os Ministérios dos Trabalhos Públicos fazem um grande
número de seus técnicos seguir tais cursos. Toda hora são
anunciados concursos públicos (entre os quais o mais
importante foi aquele para a Gross Berlin* para planos
de expansão ou de organização dos bairros, nobremente
seguindo a tradição italiana dos concursos artísticos, por
nós quase esquecida14. E, justamente, pôde, portanto, o
ilustre Stübben, em uma conferência no Congresso dos
Arquitetos em Roma, em 191115, afirmar que toda essa
nova atividade, que aponta para um novo tipo citadino,
racional e belo, é especialmente atividade alemã. Com
certeza nós não poderíamos dizer, infelizmente, que é
atividade italiana.
Não será inoportuno, para tornar as ideias menos
abstratas, seja ilustrar esses sinais fugazes com alguns
exemplos, trazidos de planos de novíssimos bairros ou de

  * Grande Berlim (N. dos T.).


14. Nas outras nações os concursos de Antuérpia, de Marselha, de Barcelona,
representam nesses últimos anos as disputas mais notáveis. Único exem-
plo, na Itália, de recente aplicação nesse campo teria sido o concurso de
1911, em Turim, para a organização da antiga Piazza d’Armi, se ele não
tivesse terminado em um concurso de fachada, depois do qual o Escritório
técnico municipal retomou “os seus direitos”.
15. Ver Atti del IX Congresso Internazionale degli Architetti in Roma, Roma,
1913.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 110 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    111

propostas teóricas ou práticas – exemplos (veja figs. 2 a


5) que não necessitam de esclarecimentos especiais –
seja, finalmente, resumir brevemente algumas resoluções
de recentes congressos que, examinando os diversos la-
dos da múltipla questão, constituíram, da mesma manei-
ra, fontes de referência no caminho que indicamos agora.
Já desde 1874 a Deutscher Ing. u. Architekten Verein*
aprovava uma ordem do dia que estabelecia, como proce-
dimento essencial para o estudo dos planos de expansão,
a classificação entre rede principal de artérias, a qual
deve ser estudada sistematicamente, com vastos crité-
rios, e a rede menor dos bairros intermediários, na qual,
fixadas algumas linhas, possivelmente coordenadas com
linhas existentes, o fracionamento deveria ser estudado
exclusivamente para atender as necessidades do futuro
imediato.
E, nessa mesma ordem de conceitos, o Congresso
de Liverpool, de 1909, sobre planos reguladores, ocupa-
-se principalmente da secção das vias, a qual deve ser
bastante grande nas linhas de tráfego máximo, mas não
nas demais.
A “Town Planning Conference” ** de Londres, de
1910, conclui pela variedade a ser dada às vias, que
devem adaptar-se à configuração do terreno, pela ado-
ção de parques e jardins, especialmente entre a parte
antiga e a nova de uma cidade, por um estudo da zona
subterrânea relativa às grandes artérias, de forma a as-

  * Associação Alemã de Engenharia e Arquitetura (N. dos T.).


** “Conferência de Planejamento Urbano” (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 111 31/01/12 14:55


112    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

segurar, da melhor maneira possível, uma contribuição


às comunicações e aos múltiplos serviços da cidade; e,
afirmado o respeito pelos monumentos, estabelece a re-
solução de que cada transformação e cada ampliação não
deverão nunca acontecer sem a aprovação com base em
um estudo sério e profundo de uma comissão de artistas
e de estudiosos.
Os Congressos de “Art Public” * ocorridos em
1905, em Liège e, em 1911, em Bruxelas, afirmam ambos
(nos relatos de Stübben) a necessidade da conservação
das particularidades locais, tanto do ponto de vista da
paisagem, como da arquitetura e da história.
No Congresso artístico ocorrido em Veneza, em
1905, no Congresso Internacional dos Arquitetos de
1906, em Londres, naquele, finalmente, de 1911, em
Roma, o aplauso e a adesão dos participantes voltaram-
-se às conclusões de Ojetti, de Buls, de Stübben, que
afirmavam, de maneira diversa e de diversos pontos de
vista, os postulados da nova estética edilícia.
*
* *
Tudo isso vale para os novos bairros considerados
como organismos à parte, como pequenas cidades em
si16. Mas há também aplicações diretas no problema,
frequentemente gravíssimo, da renovação e da adaptação

  * “Arte Pública” (N. dos T.).


16. O caso de cidades inteiramente novas, fundadas longe de antigos centros
habitados, como o foram, por exemplo, na Antiguidade, Alexandria do Egito
e, na Idade Média, Alexandria “da Paglia”, já é muito raro. De exemplos ou,

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 112 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    113

dos velhos centros às funções de uma vida nova, para os


quais o afirmar-se das recentes tendências, o início da
novíssima era edilícia, abre inesperadamente a possibi-
lidade de um desenvolvimento racional, não congestio-
nado e tumultuado.
Até agora, quase sempre aconteceu que a velha
cidade, ampliada sem medida pelos novos bairros acres-
cidos, tenha permanecido o núcleo central da cidade
moderna, tornando-se o coração da localidade, para o
qual converge o movimento, e transformando-se mal no
bairro dos negócios, das lojas, das habitações de luxo.
Esse desenvolvimento centrípeto fez aumentar
enormemente o valor das áreas e das construções e,
portanto, produziu acréscimos e elevações de velhos
edifícios, um adensamento sempre maior, que tornou
ainda piores as condições. Naquele momento, não se viu
outro remédio além das operações cirúrgicas, e a picareta
atuou, quase sempre de forma ineficaz, frequentemente
sacrificando obras de arte e perturbando a harmonia e o
caráter, mas sem chegar a resultados correspondentes
ao objetivo.
O problema não deveria ter sido colocado assim,
já que, querer introduzir, à força, a máxima intensidade

para melhor dizer, de projetos recentes na Europa, pode-se citar aquele de


Zeebrügge, a cidade que deveria ser construída no mar do Norte, na desem-
bocadura do canal de Bruges, e para a qual os planos foram estudados com
grande cuidado (ver Stübben, op. cit., fig. 624), mas que, provavelmente,
não nascerá nunca para não atrapalhar os interesses da Antuérpia. Mais
frequentes são os exemplos americanos, dentre os quais são grandiosos, mas
não tão recentes, aqueles de Washington e La Plata.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 113 31/01/12 14:55


114    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

de vida moderna em um organismo edilício feito com


critérios antigos é querer aguçar de maneira insanável o
dissídio entre duas ordens essencialmente diferentes e
não resolvê-lo. A via a seguir deve ser, quando possível,
outra: desadensar o velho núcleo citadino, impedindo
que o novo desenvolvimento edilício, agindo sobre esse,
venha a atribuir-lhe uma função à qual é totalmente
inadaptado; colocá-lo fora das grandes linhas de tráfego;
reduzi-lo a um modesto bairro misto de casas de negó-
cio e de simples habitações. Só então, uma organização
local, sabiamente idealizada e pacientemente colocada
em ação, poderá, nessa antiga localidade, levar, caso a
caso, a oportunas transações entre os novos propósitos e
as condições relativas ao passado.
Duas ordens de questão, portanto, delineiam-se: co-
ordenação dos novos bairros em relação ao antigo centro
e sua sistematização local.
No que diz respeito à primeira ordem, eu não sa-
beria encontrar paralelo mais apropriado do que aquele
dos sistemas de drenagem. Quando as águas invadem e
encharcam um vale ou uma planície e os meios de deflu-
xo comuns não conseguem deixá-la evadir, é necessário,
primeiramente, reter as águas altas, ou seja, desviar
todas as correntes externas que afluíam para o pânta-
no, dirigindo-as, por outra via, ao mar ou a um curso
d’água que as coletem, de forma a poder desenvolver os
trabalhos de drenagem, seja dando escoamento natural
aos terrenos, seja exigindo providências artificiais de
elevação e de aterro apenas às águas internas da bacia.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 114 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    115

Abandonar essa norma e levar os cursos d’água


superiores a atravessar a bacia que se gostaria de secar,
como em parte aconteceu nos pântanos Pontinos, na
incompleta drenagem de Pio VI, conduziria, inevitavel-
mente, a uma perturbação de todo o regime das águas
internas, produzindo estagnações e refluxos nos canais
transversais feitos para o seu escoamento.
Também assim para o movimento citadino: distin-
guir o tráfego local daquele externo que vai em direção
aos nós principais, e daquele de passagem que, simples-
mente, atravessa pelo meio da cidade ou por um bairro
seu, canalizar esses dois últimos em vias oportunamente
sinalizadas (ordinariamente radiais umas e periféricas
outras) é a primeira norma para o desenrolar regular
da vida da cidade. Valer-se desses traçados para isolar
alguns bairros em vez de atribuir-lhes importância artifi-
ciosamente é o meio mais eficaz nas mãos de quem deve
prover, mediante os planos reguladores, um rumo, com
cuidado previdente, para o desenvolvimento futuro e es-
tabelecer, para cada uma das zonas, a função mais apro-
priada naquele complexo organismo que é uma cidade17.
Os dois sistemas planimétricos mais racionais que
foram adotados para esses tipos de soluções podem ser
considerados, pelas suas maiores aplicações, o sistema
de Viena e aquele de Berlim.

17. A comparação hidráulica poderia continuar por tantos outros elementos,


especialmente pelas leis de confluência e defluência de cada um dos
ramos, pelo regime e pelas anomalias das correntes etc.; e talvez fosse
interessante prosseguir com ele, se não fosse demorar tanto.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 115 31/01/12 14:55


116    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

Fig. 5.  Bairro da ampliação de Dessau.


Projeto do arquiteto Henrici.
(De HENRICI, Beiträge zur Aestetik im Städtebau, fig. 19)

Viena tem o Ring: e nessa grandiosa artéria circular


encontra expressão regular e lógica aquela que é a na-
tural tendência de estratificação periférica das cidades,
na qual, geralmente, o antigo circuito, as muralhas, as
fortificações demolidas, sinalizam, com a sua linha, uma
etapa do desenvolvimento. Mas o Ring vienense, talvez
a mais monumental concepção edilícia dos tempos mo-
dernos, é algo maior: é um vasto espaço que separa os
bairros externos do interno e impede que o aprisionem
e o sufoquem; é a linha máxima do movimento e dos
negócios, que circula em torno da velha cidade sem
penetrá-la. Em seguida, as mais amplas artérias peri-

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 116 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    117

féricas externas, ou seja, a linha dos Gürtel* e a outra


ainda maior que agora está sendo feita, e as vias radiais
e a ferrovia metropolitana que oportunamente segue em
parte o curso do rio Wien, completam o sistema e aten-
dem racionalmente aos vários tipos, bem divididos, de
tráfego viário, coordenando os vários centros.
O sistema foi possível de maneira assim perfeita em
Viena pela relativa pequenez do núcleo, em comparação
com a grande metrópole ou, melhor dizendo, pela previ-
são de quem soube, em tempo, antes do desenvolvimento
colossal, idealizar, para esse, o traçado e a extensão.
Da mesma forma foi possível, em período mais recente,
em Nuremberg que, ajudada pela sua conformação al-
timétrica, pôde, com a avenida que circunda as antigas
muralhas, permanecidas intactas, salvar o seu admirável
caráter medieval. Foi, ainda, assim, em Leipzig e em
algumas das cidades renanas, como Colônia e Düssel-
dorf, nas quais o grande desenvolvimento é recente,
mas muito rápido18. Em outros lugares chegou muito
tarde ou a cidade já era muito vasta e irregular, como em
Paris e em Milão, onde as linhas dos boulevards** e das
avenidas são, ao contrário, muito úteis para constituir
circuitos externos e intermediários (agora quase em todo

  * Cinturões (N. dos T.).


18. Talvez em nenhum lugar como na Prússia renana foi assim grandioso o
desenvolvimento das cidades. Basta pontuar a formação de centros como
Dortmund, Gelsenkirchen, Oberhausen, Duisburg, Ruhrort, Meiderich
etc., que apenas vinte anos atrás eram vilarejos. Exemplos os quais
nós, na Itália, podemos apenas superficialmente traçar um paralelo com
aquele de Spezia.
** Bulevares (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 117 31/01/12 14:55


118    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

lugar se vai acrescentando, nas cidades, a grande linha


de cincunvalação externa), mas não para desembaraçar
realmente a zona central.
Em Berlim, ao contrário, a solução foi dada pelo
deslocamento do centro de gravidade da metrópole, que
aconteceu naturalmente com o desenvolvimento dos no-
vos bairros (Charlottemburg, Wilhelmsdorf, Berlin-W),
não igualitariamente para todos os lados, mas, prevalen-
temente, em direção ao sul e ao oeste, de tal forma que
o atual centro não se encontra mais – como até uns anos
atrás – no encontro Friedrichstrasse-Unter den Linden,
mas já se encontra em direção à Postdamerplatz; ali em
torno, agrupam-se, agora, os bairros de casas senhoriais,
os bancos, os edifícios públicos principais; ali chegam,
até as estações da Nollendorf-Platz e da Wittemberg-
-Platz, as novas vias subterrâneas e os cruzamentos com
as vias preexistentes.
Berlim é exemplo grandioso dessa solução. Menor,
contudo muito mais completo e típico, é o exemplo de
Estrasburgo, no qual toda a Neustadt* foi desenvolvida
em torno aos novos nós principais, como os edifícios dos
Ministérios, a Universidade etc., completamente a leste
e a norte da antiga cidade, que permaneceu intacta no
aspecto característico do seu povoado, que se agrupa em
torno da grande catedral.
Esse sistema de deslocamento do centro parece,
como é fácil entender, de aplicação não ágil, mas possí-

  * Cidade nova (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 118 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    119

vel em cada cidade em desenvolvimento progressivo19,


mais do que o sistema do Ring, que se liga a condições
especiais; e não faltam os casos, na variadíssima e múlti-
pla conformação das cidades, em que ambos os sistemas
podem cooperar e ter, pelo menos, uma aplicação parcial.
Mas idealizar um previdente plano de ampliação
não basta se, a esse, não se faz seguir uma pensada e
constante “Política edilícia” por parte das administra-
ções municipais e, principalmente, se essa não se baseia
na diretriz racional daquele que foi chamado de elemen-
to cinemático das cidades. Escavar canais de drenagem
é inútil se a eles não se amarram, cuidadosamente, as
fontes, se, conjuntamente, não forem canalizados os cur-
sos dos riachos das montanhas, que para eles afluem.
Não adianta traçar uma rede de estradas se, em tempo,
as artérias de comunicação não forem coordenadas a
ela, e não se contribua para direcionar a construção dos
bairros com numerosas medidas (regulamentos edilícios,
isenções fiscais, construção de edifícios públicos etc.)
das quais as administrações podem dispor.
Seria pueril insistir sobre a importância prática dos
meios de comunicação nas cidades modernas e sobre
sua influência sobre aquilo que é o elemento econômi-
co intermediário do desenvolvimento edilício, ou seja,
o valor das áreas. Diz, assim, justamente Maggiorino

19. Nos centros de crescimento lento, como são quase todas as menores
cidades italianas, o desenvolvimento edilício de um único lado acontece
naturalmente na medida em que os edifícios se aproximam da estação
ferroviária.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 119 31/01/12 14:55


120    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

Ferraris20: “Sobretudo nas cidades não muito vastas, a


eletricidade, aplicada às ferrovias, às linhas de bonde,
aos ônibus, revolucionou inteiramente o regime das áreas
e das habitações econômicas…, acabou com a agiotagem
das áreas… O motor elétrico supera de uma vez o mo-
nopólio e se lança em poucos minutos no campo aberto,
onde valoriza extensões ilimitadas de área passíveis de
construção por pouco dinheiro o metro quadrado”.
As cidades-jardins inglesas surgiram desse modo,
precedidas pelo desenvolvimento da rede ferroviária e
de bondes suburbana. Na região renana, assim, o restrito
vale entre Barmen e Elberfeld logo se tornou toda uma
cidade linear, depois que foi instituída a Schwebe-bahn*,
que, com audaciosa solução, passa (para não ocupar
espaço) equilibrando-se na parte de cima do rio. E, final-
mente – caso, dentre todos, exemplar –, em Düsseldorf
todo um bairro, agora muito próspero, foi criado pela
Rheinische Bahngesellschaft do outro lado da ponte
sobre o Reno, em terrenos, até poucos anos atrás, rurais,
que a Sociedade comprou e que “lavrou” ao irradiar
neles uma completa rede de bondes, a qual, por algum
tempo, funcionou com perdas, e, depois, rendeu a altos
juros o capital empregado.
Dever-se-ia, portanto, afirmar-se um princípio,
que mesmo entre nós, em grande atraso de ideias e de
atividade no que diz respeito à organização edilícia, é

20. Ver Maggiorino Ferraris, “Il Rincaro delle Pigioni e le Case degli Impie-
gati in Roma”, Nuova Antologia, 16 luglio, 1908.
  * Via suspensa (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 120 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    121

bem distante de ser colocado em prática: os municípios


nunca deveriam abrir mão da arma muito potente na
atual “Política habitacional” que é dada pelos meios
de comunicação. O traçado das ruas dos bairros no-
vos, as providências para sua completa sistematização,
a construção das ferrovias e dos bondes que os ligam
não deveria nunca, como geralmente acontece, seguir
cansativamente e tardiamente o desenvolvimento da
obra, mas corajosamente precede-la. Apenas assim as
Prefeituras poderiam direcionar de forma racional tal
desenvolvimento e providenciar, a tempo, as múltiplas
exigências das novas e antigas zonas: e somente assim
poderiam, além de exercer sua função direta, voltar-se a
um campo de especulação útil, justa e oportuna em suas
mãos, tanto quanto é geralmente malsã naquelas dos
particulares e das Sociedades, ou seja, a especulação
das áreas edilícias.
*
* *
Vejamos um momento – e não é um exame muito
alegre – aquilo que foi feito em Roma nessa ordem de
questões, relativas à coordenação do desenvolvimento
novo com o centro antigo. Roma, desde 1870, assim como
iniciou uma nova era para a sua história, iniciou uma para
a sua construção urbana, acrescentando outro capítulo
àquele dos seus acontecimentos construtivos, longos e
complexos como em nenhuma outra cidade do mundo.
Precisamente por essa complexidade e essa con-
tinuidade é possível dizer que Roma velha não corres-

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 121 31/01/12 14:55


122    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

pondesse a um único e orgânico sistema edilício, mas


sim a vários, integrados e sobrepostos entre si. Já no
período antigo, a cidade vinha se compondo como uma
aglomeração densa e informe de bairros, reunidos em
torno ao Fórum, em direção ao qual as principais artérias
convergiam radialmente: também o incremento edilício
dado por Augusto que, ultrapassando o antigo pomério*,
tinha povoado de monumentos o Campo de Marte, e,
especialmente, por obra de Mecenas, tinha transforma-
do os bairros altos de casarões (que logo passaram ao
patrimônio imperial e constituíram parques colossais),
se aumentou a beleza e o fausto da capital, não mudou
substancialmente o centro de gravidade do grupo imenso
de vici e de insulae**, entre os quais21 fervilhavam as
mais de centenas de milhares de habitantes que com-

  * Na antiga Roma, a faixa de terreno ao longo das muralhas, livre das


construções (N. dos T.).
** Vici refere-se a bairros, quarteirões. Insulae refere-se a condomínios, a
moradias de aluguel, em oposição a habitações de uma só família (ver
Gustavo Giovannoni, Vecchie Città e Edilizia Nuova, Torino, Unione
Tipografico-Editrice Torinese, 1931, p.18) (N. dos T.).
21. Devia ser enorme o adensamento da população nas insulae; e é sabido
como Augusto, para frear o grande desenvolvimento das construções em
altura, além de em superfície, às vezes alcançando dez pisos, decretasse
que não poderiam ser elevadas acima de setenta pés. É natural que tal
adensamento fosse bem maior nos bairros populares do que naqueles
senhoris, onde prevalecia o tipo da domus: os primeiros agrupamentos
em direção a Suburra (que Augusto quis separada da zona dos Fóruns
por meio de um grande muro), os segundos, especialmente no Quirinal,
na região Alta Semita.
   [Pé: unidade de medida que corresponde a aproximadamente 30,48 cm
(N. dos T.)].
   [Domus: refere-se à casa de uma só família. Ver Giovannoni, op. cit., 1931,
p. 18 (N. dos T.)].

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 122 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    123

punham a população romana22. E podem ser considera-


dos simples episódios, geniais ou trágicos, o grandioso
projeto de Júlio César, que tinha idealizado o desvio do
Tibre e a inclusão, na cidade, da zona de vale, o atual
bairro de Prati; ou o incêndio neroniano, movido, como
agora parece demonstrado, pelo desejo de desapropriar
de forma rápida a grande zona de terreno necessária para
a domus aurea23.
Chegada a Idade Média e, com essa, a pobreza e o
abandono, interrompidos os aquedutos, reduzida a po-
pulação àquela de um vilarejo, a cidade restringe-se aos
bairros pobres, em torno ao Tibre, em direção ao Regola
e sob o Capitólio, e eis que, de fato, vê-se o mercado
mudar de lugar e, ultrapassando o monte Capitolino, do
Fórum romano transportar-se aos pés da Igreja de Ara-
coeli24. Novamente se desloca no início do Renascimento
e chega à Praça Navona seguindo o vigoroso incremento
edilício, que sob Sisto IV (como um século depois sob
Sisto V) decididamente e conscientemente se adequa ao

22. O número de habitantes no período de César e de Augusto e depois nova-


mente sob Aureliano pode ser, pelos dados dos censos, avaliado em torno
de 400 000 ou 500 000 (ver Piero Castiglioni, Della Popolazione di Roma,
dalle Origini ai Nostri Tempi, Roma, 1878). As cifras de vários milhões
(dois milhões e meio segundo Höck, além de oito segundo Vossio etc.)
devem ser, então, relegadas a lendas.
23. Ver Attilio Profumo, Le Fonti e i Tempi dell’Incendio Neroniano, Roma,
1905. Com certeza o desejo de Nero foi ultrapassado, já que das qua-
torze regiões de Roma talvez sete se incendiaram. Mas a cidade foi logo
reconstruída com ruas muito mais largas, mas com população tão densa
como antes e com um método de construção, parece, mais insalubre do
que antes (Tácito, Ann. XV, 38, 43).
24. Ver Ferdinando Gregorovius, Storia di Roma nel Medio Evo. Ver também
Pasquale Adinolfi, Roma nell’Età di Mezzo, Roma, 1881, vol. I.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 123 31/01/12 14:55


124    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

sistema da mudança do centro de construção. Em direção


ao Vaticano, no Borgo, nos bairros de Parione e de Ponte
inicia-se a nova atividade edificadora, e a Via Papal, o
bairro de Banchi, mais tarde a Via Giulia, tornam-se a
zona mais nobre e rica da cidade.
Depois, pouco a pouco, a cidade expande-se em
direção ao Campo de Marte e aos Montes; para além
desses dois bairros, eis que rapidamente se desenvolve
o grande plano de Sisto V26, o qual traça as suas vias
convergentes em direção a nós principais, que são a
Praça do Popolo, de Spagna, Santa Maria Maggiore, S.
Giovanni em Laterano: vasta rede, da qual os séculos
sucessivos preencheram alguns espaços, especialmente
em direção ao Popolo e à Via Urbana, mas que somente o
período recente definitivamente transformou em cidade.
Quase se pode dizer que o programa de Sisto V
é oposto àquele que, nesse período moderníssimo, de
1870 até hoje, foi desenvolvido. Naquele momento, uma
grande rede viária sem casas; agora, um desenvolvimento
enorme de construções – tanto que em pouco tempo a
cidade mais que duplicou – sem o uso de um conceito
orgânico na coordenação de vias e de bairros. Naquele
momento, uma concepção megalomaníaca de uma grande
cidade futura que devia ser canalizada nas novas ruas;
agora, um viver dia após dia perseguindo tardiamente o
desenvolvimento das construções, sem um amplo critério
edilício, sem um meditado pensamento de arte, sem uma

25. Ver Ludwig von Pastor, Geschichte de Päpste, IV, IV.


26. Ver Johannes A. F. Orbaan, Sixtine Rome, London, 1911.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 124 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    125

previdente diretriz do desenvolvimento econômico e do


movimento citadino.
Na verdade, infelizmente em quase todas as mani-
festações novas faltou na Roma moderna um sentimento
verdadeiramente elevado: nem a compreensão do signi-
ficado que tem a tradição ininterrupta da cidade eterna,
nem a fé certa nos futuros destinos da capital da Itália27.
Assim, da mesma forma que os edifícios públicos,
os Ministérios, os tribunais e as escolas se adaptaram da
melhor forma possível, com frequência indecorosamente,
em velhos conventos, os bairros surgiram aqui e ali por
obra da especulação privada sem uma linha diretora por
parte da administração municipal, a qual chegou até
mesmo a fingir ignorar a existência de alguns desses,
como aquele de S. Lorenzo, que surgiu contrariamente à
sua vontade. Para dizer a verdade, uma nova organização
foi pensada logo e, desde 30 de setembro de 1870, foi
nomeada, pela Junta Provisória de Roma, uma primeira
Comissão de 14 engenheiros e arquitetos para os estudos,
e já em novembro de 1871, o Escritório de Arte Munici-
pal tinha redigido um primeiro esquema de plano regula-
dor28. Mas doze anos foram empregados em discussões –
entre as quais muitas se referiam à habitabilidade do

27. Para se ter uma prova dessa mesquinhez de critérios, releiam – nas
atas parlamentares e naquelas do Conselho municipal de Roma – as
discussões de diversos tipos relativas ao desenvolvimento da capital
que, especialmente entre 1870 e 1880, aconteceram no Parlamento e no
Município.
28. Ver Relazione Intorno al Piano Regolatore di Roma, 1873. Ver também
Raccolta degli Atti del R. Governo del Parlamento, del Comune Relativi
al Piano Regolatore…, Roma, Bencini, 1885.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 125 31/01/12 14:55


126    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

futuro bairro de Prati di Castello – e, apenas em 1883,


foi possível ter um plano regulador bastante completo,
apesar de pobre e infeliz; apenas em 1888, depois que
grande parte das construções tinha sido levantada desor-
denadamente, chegou um Regulamento edilício!
Não faltou, para falar a verdade, quem tivesse um
conceito menos míope. Quintino Sella, um dos poucos
que tinham amado profundamente Roma, pareceu apro-
ximar-se da ideia, para alguns expressa por Haussmann,
o renovador de Paris29, segundo a qual a nova cidade de-
veria desenvolver-se não contendo a antiga, mas ao lado
dessa, em direção ao Monte Mario e a Prati di Castello.
Outros propuseram a zona fora da Porta S. Giovanni. Mas
o ceticismo e a falta de consciência prevaleceram. Por
que enfrentar as febres do campo e ir longe, quando não
se sabia se e como a cidade se desenvolveria e quando
não faltavam, no centro, locais para colocar os minis-
térios? E o futuro ficou comprometido e o transtorno se
iniciou e se acentuou.
Vieram as novas ruas, algumas externas, outras
internas, algumas traçadas felizmente em alguns trechos
(como a Via Nazionale, o Corso Vittorio Emanuele, a
Via Veneto), mas quase todas unidas na característica
de partir de um ponto sem que se soubesse aonde deve-
riam terminar. E assim a Via Nazionale (que De Merode
parecia querer dirigir para o Fórum Romano!) oscilou
por um longo tempo entre a saída da Praça de Veneza

29. Na verdade, nenhuma menção disso se encontra nas Mémories publicadas


pelo barão Haussmann (op. cit.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 126 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    127

e aquela em direção à Praça Colonna. A Via Cavour, a


Via Arenula, o belíssimo Passeio Gianicolense, o Corso
Vittorio Emanuele, o prolongamento da Via dei Serpenti
foram executados, e talvez também idealizados, como
vias unipolares, sem saída ou com saídas estreitas e in-
decorosas, de qualquer forma, quase nunca de maneira
correspondente a uma verdadeira função edilícia. Nem
função edilícia tiveram, como foi acenado, os novos
bairros que, por todo lado, levantaram-se, apertando e
sufocando a velha cidade: não a tiveram em termos de
ligação à rede existente, nem como organismos de bair-
ros em si, apressadamente traçados seguindo o sistema
retangular, sem uma relação com o relevo do terreno
(o qual foi cheio em alguns pontos com montanhas de
entulho resultantes das demolições), sem uma pesquisa
de arte, a qual poderia ser obtida facilmente, se não
por meio de agrupamentos pitorescos, o que talvez seja
muito árduo de imaginar, pelo efeito das grandiosas
visuais na direção de elementos naturais e artísticos já
existentes. No bairro de Prati, nenhuma rua tem o eixo
em direção à cúpula de S. Pietro ou ao Castelo S. An-
gelo, nenhuma praça se abre em direção ao admirável
quadro do Monte Mario.
No centro congestionado da cidade alguns cortes
pareceram necessários: alguns foram consequência da
obra dos Lungotevere, outros, como aqueles do Corso
Vittorio Emanuele, da Via Arenula, da Via Tomacelli etc.
representaram artérias de travessia; e, dado o modo como
a questão tinha sido comprometida, eram, na verdade,

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 127 31/01/12 14:55


128    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

quase todos necessários e também, em grande parte,


pode-se dizer que foram bem idealizados, e, talvez, até
de forma genial. Mas não é pouco o balanço passivo
dessa atividade demolidora: economicamente, um gasto
improdutivo de cerca de 170 milhões30, um agravo nada
leve na crise dos alugueis; artisticamente (enquanto a
ampliação sacrificava mansões magníficas como a Ludo-
visi, a Rospigliosi, a Patrizi), aconteceu a destruição de
edifícios consideráveis e característicos da Idade Média
e do Renascimento31 e a alteração do seu ambiente. E se
a destruição já se havia tornado em grande parte inevitá-
vel, é deplorável que não se tenha pensado em conservar
os fragmentos que ainda podiam ser recolhidos e utili-
zados32 e, nem mesmo, em fixar os documentos gráficos
mediante fotografias e levantamentos metodicamente
executados.
Em geral, portanto, foi um período triste aquele do
último desenvolvimento edilício romano. Certamente,
o problema era grave, e, além daquele de índole geral,
dificuldades de todo gênero o agudizavam: a irregular
conformação altimétrica, a pobreza financeira, a existên-
cia, no centro, da zona arqueológica dos Fóruns e do Pa-
latino, cidade fechada na cidade, a índole da população
relutante a novidades (é conhecido como nem mesmo de

30. Ver Maggiorino Ferraris, op. cit., p.27.


31. Ver G. B. Giovenale, Prefazione dell’Inventario dei Monumenti di Roma,
publicada pela Associazione artistica fra i cultori d’Architettura, Roma,
1913.
32. Ver o meu artigo “Reliquie d’Arte Disperse della Vecchia Roma”, Nuova
Antologia, 1908.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 128 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    129

graça se conseguiu dar terrenos com a obrigação de cons-


truir quando a via Nazionale foi começada)33; e, por outro
lado, seria injusto dizer que tudo aquilo que foi feito
seja feio e vulgar. Mas, certamente, é doloroso constatar
como foi perdida a ocasião de fazer da Roma moderna,
retomando as suas tradições de arte e as suas condições
de beleza, uma das mais esplêndidas cidades do mundo.
Ao contrário, é de se considerar quase providencial a
repentina crise de 1888 (causada, precisamente, mais do
que pelo rebuliço financeiro, pelo modo indisciplinado
com o qual a cidade cresceu) que parou de um só golpe
a construção e permitiu chegar tempos mais maduros;
já que agora também aqui se abrem caminhos a novas
noções e se determinam novos meios, e uma consciência
edilícia começa a formar-se nas Administrações e no
público.
Data de 1906 o plano regulador apresentado por
Benucci, que eu aqui defini como uma simpática girân-
dola de vias e de jardins; e a ele seguiu-se, em 1908, o
plano de Sanjust di Teulada, que é, por hora, o definiti-
vo. Quando tantos anos eram transcorridos sem que um
plano completo e concreto fosse preparado, dessa vez
se quis tê-lo pronto em apenas três meses: três meses
para “analisar em profundidade” o passado e o futuro de
Roma. A cultura, o engenho, a faculdade assimilativa do
Sanjust, o método liberal adotado de ouvir as sugestões

33. Ver F. Galassi, “Sugli Odierni Criterii Edilizi…”, Annali della Società
Ingegneri ed Architetti Italiani, 1905, p. 193. Ver também Pacifico Di
Tucci, Dopo la Speculazione Edilizia, Roma, 1890.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 129 31/01/12 14:55


130    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

das Associações competentes e de conciliar as propostas


dos particulares com o interesse público não podiam,
portanto, evitar, então, as diferenças e a inorganicidade
próprias de todas as improvisações em problemas com-
plexos. Aquelas relativas ao traçado viário dos novos
bairros foram assinaladas, com crítica severa, pelo ilus-
tre Stübben na sua conferência sobre planos reguladores
das cidades, ocorrida no Congresso internacional de
Arquitetos de 191134 e em recentes estudos seus, que
apareceram em vários periódicos alemães35. Ali, ele des-
tacou a adaptação frequentemente infeliz às condições
altimétricas, os encontros e as articulações de ruas mal
combinadas, as quadras exageradamente vastas, o abuso
das ronds points* que representam um dos lugares co-
muns das soluções edilícias, já antiquado, depois que a
prática mostrou (especialmente em Paris que é talvez a
pátria deles) os inconvenientes graves para a circulação
que essas unem à vulgaridade da disposição. “Todo o
progresso, diz Stübben, que em todas as nações se ma-
nifesta em direção a uma nova era edilícia, permaneceu
sem influência sobre o novo plano diretor de Roma,…
no qual em vão se procuraria a ideia arquitetônica do
espaço, em vão uma nota artística que recorde as grandes
criações do barroco romano”.

34. Ver Atti del IX Congresso Internazionale degli Architetti, op. cit.
35. Ver Deutsche Bauzeitung, 1909, n. 29 e Centralblatt der Bauverwaltung,
1913, n. 27.
  * Rotatórias (N. dos T.).

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 130 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    131

Fig.6.  Roma. O bairro de S. Pedro Fig.7.  O bairro de S. Pedro segundo


segundo o plano municipal (projeto as propostas de Stübben.
Sanjust).

Fig.8.  O bairro de Porta S. Pan- Fig.9.  O bairro de Porta S. Pan-


crazio segundo o plano municipal. crazio.

E, a essa crítica negativa, o notável estudioso de


questões edilícias quis, no último dos trabalhos agora
citados, publicado no Centralblatt der Bauverwaltung
de abril de 1913, unir a obra positiva de propostas con-
cretas, contrapondo, às soluções do plano oficial para
os vários novos bairros, alguns esboços de soluções es-
tudadas por ele sobre o lugar: mesmo advertindo que
não pretende, com isso, propor nada de definitivo (o

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 131 31/01/12 14:55


132    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

que exigiria outro tipo de estudo analítico), mas apenas


exemplificar e assinalar a via que poderia ser percorrida.
“O escopo poderia, ele assim conclui, ser obtido a partir
de um concurso internacional, único meio adequado para
obter ‘o melhor’; por que só o melhor é digno de Roma!”.
Algumas dessas geniais propostas de Stübben estão
reproduzidas (cedidas em cortesia) nas figs. 7, 9, 11, ao
lado dos correspondentes traçados do plano municipal
(figs. 6, 8, 10); e são, precisamente, aquelas relativas aos
bairros de S. Pedro, S. Pancrazio e Praça de Armi. E o
confronto, parece-me, não precisa de comentário.
Mas, retornando dessas observações especiais ao
exame integral do plano adotado pelo Município de
Roma, em relação ao agrupamento dos bairros em si e à
sua ligação com o centro, pode ser diverso o juízo sobre
as propostas de tipo variado: se se mostra providencial e
racional a repartição do sistema de ocupação nas diver-
sas zonas, se é considerável (mas incompleta) a tentativa
de colocar um plano de organização das redes de bonde
e ferroviária paralelo àquele da organização viária, ao
contrário, não parecem resolvidas as questões que se re-
ferem à posição topográfica dos novos centros de constru-
ção, cada um dos quais é ampliação de um bairro já exis-
tente. Novamente, portanto, o desenvolvimento edilício
circunda, por todos os lados, a cidade, cujas condições
de viabilidade interna não poderão certamente resultar
melhoradas, apesar de um insuficiente e incompleto anel
que se ligou entre o Lungotevere e os Viali delle Mura e
apesar da imensa linha exterior.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 132 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    133

Fig. 10.  O bairro de Piazza di Armi segundo o plano municipal.

Fig. 11.  O bairro de Piazza di Armi segundo as propostas de Stübben.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 133 31/01/12 14:55


134    •    Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos

Até mesmo o plano de Sanjust, se não responde à


cidade do nosso sonho, é, pelo menos, uma base concre-
ta e, com oportunas modificações, orgânicas ou pouco
significativas, pode ser mesmo uma base útil; e, já que
não se pode ter a ilusão de que a nobre ideia de Stübben
venha a ser escutada, é melhor aceitá-lo provisoriamente
como o mal menor.
O modo de executá-lo tem, sobretudo agora, im-
portância, a “ação tática” edilícia representa o pro-
blema atual. E o início não é, na verdade, promissor.
Novas linhas de bonde muito úteis foram criadas, mas
nenhuma que possa exercitar a função de pioneira em
direção a novas zonas excêntricas36: nenhuma prepa-
ração apareceu para a aplicação edilícia daquele que
é um experimento grandioso no campo da Economia
política, ou seja, a taxa sobre as áreas, a qual pode ter
a sua base lógica apenas com uma ação ativa por parte
do Município. Questões vitais de arte e de viabilidade
como aquela da Praça Colonna foram resolvidas com
os mais mesquinhos critérios de especulação. E, ao
mesmo tempo, o Governo, ao prover as novas sedes
dos Ministérios, até agora provisoriamente colocados,
mais do que pensar em agrupá-los em um novo bairro,
como racionalmente tinha sido proposto para a Praça
de Armi 37, disseminou-os, continuando no primeiro

36. Um passo notável pode ser dado pela projetada ferrovia Roma-Ostia, idea-
lizada com critérios amplos, por mais que tenha sido estudada de maneira
superficial do ponto de vista técnico e direcionada à região menos apta
para formar subúrbios.
37. Ver Maggiorino Ferraris, op. cit.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 134 31/01/12 14:55


Velhas Cidades e Novas Construções Urbanas    •    135

erro38, em todos os pontos da periferia, de Viale del Re


até os Parioli, da Flaminia à Porta Pia. Nenhum passo,
portanto, em direção à solução do mais grave dos pro-
blemas romanos.
Mas nos planos reguladores das velhas cidades
as questões relativas aos bairros periféricos e ao modo
com o qual eles contribuem para a descentralização se
integram com mil questões que têm por objeto o coração
mesmo da cidade, no qual as condições de desenvolvi-
mento presente com aquelas do passado devem entrar em
consenso. E é esse um capítulo à parte, do qual tratará
um próximo estudo meu.

38. Os vários relatórios sobre o Plano regulador publicados pelo Município de


Roma entre 1880 e 1890 colocam em destaque essa falta de coordenação
entre o próprio plano e as iniciativas do Governo, que fixava, por conta
própria, novos centros principais, como o Palazzo di Giustizia e o Poli-
clinico, e por sua conta dava prosseguimento a obras importantes como
aquelas de sistematização do Tibre.

Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 135 31/01/12 14:55

Você também pode gostar