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ETIMOLOGIA DA LÍNGUA

PORTUGUESA
FLC6241-1


Mário Eduardo Viaro

DLCV/FFLCH-USP
NEHiLP/PRP-USP

2016
CLASSIFICAÇÃO DAS
ETIMOLOGIAS

Se não podemos falar de etimologias verdadeiras, há etimologias
falsas e verossímeis. As etimologias verossímeis podem ser
classificadas segundo graus de certeza.

It is of course, impossible to say how great a proportion of the


etymologies given in dictionaries should strictly be classed under each
of the following heads: (1) certain, (2) probable, (3) possible, (4)
improbable, (5) impossible – but I am afraid the first two classes
would be the least numerous.

Jespersen (Language, 1922, p. 307, nota 1)


ETIMOLOGIA FALSA

Dizemos que uma etimologia é falsa se não for condizente com o que se
sabe sobre a história das línguas envolvidas, ou seja, se houver
anacronismos. Além disso, costumam não seguir as chamadas “leis
fonéticas” e as mudanças semânticas também costumam ser
inverossímeis.

Para ser considerada lei fonética é preciso que a mudança fonética seja
comprovada historicamente por meio de dados.

A mudança semântica também respeita questões como ampliação ou


redução de sentido, que podem ser caracterizada como metáfora,
metonímia etc. A falsidade da mudança semântica é mais difícil de ser
detectada.
LEI FONÉTICA

O termo alemão Lautgesetz, traduzido como “lei fonética” foi
objeto de ampla polêmica no final do século XIX. O termo,
contudo, pode ser usado. Há, porém, sinônimos menos precisos:
transformações fonéticas, metaplasmos etc.

Uma mudança fonética não é necessariamente uma lei fonética:


• Se inverossímil (por anacronismo), a mudança fonética é uma
mudança fonética ad hoc.
• Se verossímil, forma um paradigma, ou seja, um conjunto que
pode ser representado por um único exemplo ou por vários,
conhecido como lei fonética, com força variada.
FORÇA

A força de uma lei fonética é diretamente proporcional à quantidade
de exemplos.

Resumidamente, uma lei fonética é:


 Uma mudança fonética verossímil, isto é, não anacrônica;
 Uma regra fonética que se deduz de uma hipótese etimológica;
 Uma representante de um paradigma, cuja força é obtida pela
quantidade de exemplos desse mesmo paradigma.

Uma lei fonética forte pertence a um paradigma com muitos exemplos.


Uma lei fonética fraca pertence a um paradigma com poucos exemplos.
SONORIZAÇÃO

A sonorização das consoantes surdas intervocálicas é um caso
de lei fonética forte e abrangente (pois afeta não só um
sistema, mas muitos).

O latim tinha algumas consoantes P T C QU S que


equivalem aos sons surdos *[p], *[t], *[k], *[kw], *[s]. Esses
sons se transformaram, na posição intervocálica, muitas
vezes, em sons sonoros *[b], *[d], *[g], *[gw], *[z].

-V$[oclusiva surda]V- > -V$[oclusiva sonora]V-


-V$*[p]V- > -V$*[b]V-

Nesse caso específico de sonorização, é possível observar alguns
detalhes da simbologia:
 A passagem diacrônica de um som é indicada pelo símbolo >, ou seja, -
*[p]- se transforma em -*[b]-
 A posição do sons na unidade lexical é indicada pelo símbolo -. Assim,
*[p]- é um som no início da palavra, -*[p]- no meio da palavra e -
*[p]. O hífen significa uma quantidade indefinida porção de sons.
 O símbolo V indica uma vogal qualquer e o símbolo $ o limite da
sílaba, ou seja, após a primeira vogal há uma divisão silábica. O
início e o fim da unidade lexical podem ser marcados com #, mas
há redundância em notações como # *[p]- e -*[p]# (portanto, # não
será usado).
SOM E LETRA

A notação –p- > -b- é imprecisa e ambígua. Na verdade, como tratamos
de testemunhos escritos, o que se indica nessa transformação
etimológica é que uma palavra como LVPVS se tornou uma palavra
que em português se grafa LOBO.
No entanto, se tratamos de mudança fonética, é preciso observar que:

• O sistema fonético latino é reconstruído


• O sistema fonético do galego-português também é reconstruído.

Assim sendo, uma notação simplificada –p- > -b- necessita de


cumplicidade e de contextualização argumentativa para ser entendida
corretamente, ou seja, como -V$*[p]V- > -V$*[b]V-.
SINCRONIA PRETÉRITA

Além do detalhamento do contexto fônico, uma lei fonética diz respeito a uma
mudança entre duas sincronias estabelecidas. Imaginar que -V$*[p]V- > -
V$*[b]V- refere-se a uma mudança latim > português não é suficiente, pois são
sincronias muito amplas: de que período do latim estamos falando? De que
período do português estamos falando?
Trabalhar com sincronias muito extensas temporalmente cria alguns problemas:
• Lida-se com o conceito político de língua e não com o conceito linguístico de
sistema. Nesse sentido, a história das línguas iberorromânicas parecem ser
muito independentes, conforme a visão schleicheriana/saussuriana de língua
e não a schuchardtiana;
• Lida-se com fenômenos descontextualizados de suas sincronias. Por exemplo, a
metátese -C*[j]- > -*[j]$C- ocorreu várias vezes na transição do latim ao
português, em várias épocas. Esse detalhamento da descrição do fenômeno
também é perdido.
RECONSTRUÇÃO DAS
SINCRONIAS

Uma tentativa de reconstrução:

VIARO, Mário E. Reconstrução fonético-fonológica de seis sincronias


do latim ao português. Estudos linguísticos e literários. Salvador: UFBa,
52 (2015): 94-145.
http://
www.portalseer.ufba.br/index.php/estudos/article/view/15465

Programa Metaplasmador (Mário Eduardo Viaro & Marcelo Li


Koga/NEHiLP-USP):
http://
www.usp.br/nehilp/infos/metaplasmador-gh-pages/index.php
PROPOSTA

S0 – Do latim comum à koiné latina (séc. I a.C. - V d.C.);

S1 – Do latim arcaico ao iberorromânico geral (séc. III a. C. - V d.C.);


S2 – Do iberorromânico geral ao iberorromânico do NO (séc. VI - IX);
S3 – Do iberorromânico do NO ao galego-português (séc. X - XIII);
S4 – Do galego-português ao português antigo (séc. XIV - XVII);
S5 – Do português antigo ao português moderno (séc. XVIII - XXI).

S-1 – Do latim arcaico ao latim comum (séc. III a.C. - I. d.C.);


S-2 – Do itálico ao latim arcaico (séc. VIII a.C. - IV a.C.);
S-3 – Do indo-europeu à formação do itálico (4000 a.C. – séc. IX a.C.);
S-4 – O período indo-europeu (8000 e 4000 a. C.).
Que dizem as gramáticas
históricas?

PRÆDICĀRE > pregar
INIMĪCVM > imigo
AEQUĀLEM > igual
SAPŌNEM > sabão
CALVMNĬAM > coima
PLVVIAM > chuva
VERECVNDIAM > vergonha
RVSSĔVM > roxo
AVTVMNVM > outono
FOCVM > fogo
PRESSUPOSTO

Em cada sincronia há a lei fonética sofre o fenômeno da divergência de
seus resultados. Ou seja, dado um ponto de partida x, o seu resultado não
será necessariamente y, mas y1, y2, ..., yn.

Se entendemos que cada sincronia é uma língua (no sentido político e


normativo), essa divergência refletem os dialetos dessa língua.

Mas se entendemos que um sistema x1 difere de um sistema x2 pelos


elementos linguísticos que os compõem, concluiremos que qualquer variação
quantitativa ou qualitativa geraria um sistema distinto. No limite, a
variação entre sistemas seria algo individual e cada falante se valeria de um
sistema distinto, pelo menos e a noção de dialeto, nesse caso, é inútil.
CONSEQUÊNCIAS DESSE
RACIOCÍNIO

Ora, a variação é uma realidade. Se entendermos língua=sistema, diríamos que
cada falante fala uma língua, o que é absurdo.
Numa tentativa de conciliar os dois extremos, observa-se que o sistema é um
fenômeno sincrônico e pressupõe a possibilidade de comunicação, algo que não faz
sentido na abordagem diacrônica.
Assim sendo:
 a partir da distinção língua/ dialeto, pode-se afirmar que dois falantes de
dialetos distintos podem não conseguir se comunicar, apesar de a língua ser a
mesma;
 falantes de sistemas distintos negligenciam as diferenças de pronúncia,
vocabulário, valores semânticos e regras sintáticas, quando focam a
intercomunicabilidade.
Entender os elementos linguísticos como pertencentes a um sistema e não a uma
língua é, aparentemente, uma abordagem mais científica.
REJEIÇÃO DO TERMO
“DIALETO”

Um sistema só existe em função de uma sincronia e leva em conta a
intercomunicabilidade como elemento de coesão. Só assim, é objeto de
estudo científico. Caso contrário, o linguista se perde na realidade
chamada “fragmentação no nível individual”. A intercomunicabilidade
garante o caráter social do sistema e requer reconstrução. Isso independe
do fato de essa variação ser associada politicamente a uma língua, que
vê a variação sob a vaga denominação de dialeto, termo adotado pela
sociolinguística, mas que reflete, ainda que involuntariamente,
elementos valorativos e normativos advindos de uma visão idealista
não promovida naturalmente (como faz a intercomunicabilidade).
Além disso, o termo dialeto vincula a mudança à questão não-científica
do progresso e decadência dos elementos linguísticos, criada por
preconceitos sociais arraigados e oficializado pela gramática normativa.
S0
“latim” (algumas variantes)

Séculos I a.C. – V d. C.

*[prajdiˈka:re] ≈ *[preˈðɪgare]
*[iniˈmi:kum] ≈ *[ɪnɪˈmigʊ]
*[ajˈkʷa:lem] ≈ *[eˈgwale]
*[s̪aˈpo:nem] ≈ *[s̪aˈbone]
*[kaˈlumniam] ≈ *[kaˈlʊmnja]
*[ˈpluwiam] ≈ *[ˈpʎʊvja]
*[wereˈkundiam] ≈ *[verˈgʊndja]
*[ˈrus̪s̪eum] ≈ *[ˈrʊs̪jʊ]
*[awˈtumnum] ≈ *[awˈtʊmnʊ]
*[ˈɸokum] ≈ *[ˈfɔgʊ]
S1
”iberorromânico”

séculos III a. C. – V a. C.

*[pɾeðɪˈgare] ≈ *[pɾeðɪˈgaɾe]
*[ɪnɪˈmigʊ]
*[eˈgwale]
*[s̪aˈbone]
*[kaˈlʊmnja] ≈ *[kaˈlʊmja]
*[ˈpʎʊvja] ≈ *[ˈtʎʊvja]
*[verˈgʊndja] ≈ *[veɾˈgʊnnja]
*[ˈrʊs̪jʊ]
*[awˈtʊmnʊ] ≈ *[ɔwˈtʊnnʊ]
*[ˈfɔgʊ]
S2
”iberorromânico do Noroeste Peninsular”

séculos VI - IX

*[pɾeðɪˈgaɾe] > *[pɾeeˈgaɾ]


*[ɪnɪˈmigʊ] > *[iniˈmigo]
*[eˈgwale] > *[eˈgwal]
*[s̪aˈbone] > *[s̪aˈbon]
*[kaˈlʊmja] > *[kaˈlomja]
*[ˈtʎʊvja] > *[ˈtʃovja]
*[veɾˈgʊnnja] > *[veɾˈgoɲa]
*[ˈrʊs̪jʊ] > *[ˈroʃjo]
*[ɔwˈtʊnnʊ] > *[ɔwˈtonno]
*[ˈfɔgʊ] > *[ˈfogo]
S3
“Galego-português”

Séculos X - XIII

*[pɾeeˈgaɾ] > *[pɾɛˈgaɾ]


*[iniˈmigo] > *[ĩiˈmigo]
*[eˈgwal] > *[eˈgwal]
*[s̪aˈbon] > *[s̪aˈbon]
*[kaˈlomja] > *[kaˈojma] ≈ *[koˈojma]
*[ˈtʃovja] > *[ˈtʃojva] ≈ *[ˈtʃujva]
*[veɾˈgoɲa] > *[veɾˈgoɲa]
*[ˈroʃjo] > *[ˈroʃjo]
*[ɔwˈtonno] > *[owˈtono]
*[ˈfogo] > *[ˈfogo]
S4
Português antigo

Séculos XIV – XVII

*[pɾɛˈgaɾ] > *[pɾɛˈgaɾ]


*[ĩiˈmigo] > *[ĩˈmigo]
*[eˈgwal] > *[iˈgwal]
*[s̪aˈbon] > *[s̪ɐˈbõ]
*[koˈojma] > *[ˈkojmɐ]
*[ˈtʃujva] > *[ˈtʃujvɐ]
*[veɾˈgoɲa] > *[veɾˈgoɲɐ]
*[ˈroʃjo] > *[ˈroʃo]
*[owˈtono] > *[owˈtono]
*[ˈfogo] > *[ˈfogo]
S5
Português moderno

Séculos XVIII - XXI

*[pɾɛˈgaɾ] > [pɾɛˈɣaɾ] ≈ [pɾeˈgaɾ] ≈ [pɾeˈga]


*[ĩˈmigo] > [ĩˈmiɣu]  [ini'miɣu] ≈ [ini'migu]
*[iˈgwal] > [iˈɣwał] ≈ [iˈgwaw]
*[s̪ɐˈbõ] > [sɐˈβɐw]
̃ ≈ [saˈbɐw]̃
*[ˈkojmɐ] > [ˈkojmɐ] ≈ [ˈkojma]
*[ˈtʃujvɐ] > [ˈʃuvɐ] ≈ [ˈʃuva]
*[veɾˈgoɲɐ] > [veɾˈgoɲɐ] ≈ [vehˈgoɲa] ≈ [veɻˈgoɲa] ≈ [vɛxˈgõja]
*[ˈroʃo] > [ˈroʃu] ≈ ['ʀoʃu] ≈ ['hoʃu] ≈ ['xoʃu]
*[owˈtono] > [owˈtonu] ≈ [oˈtõnu]
*[ˈfogo] > [ˈfogu] ≈ [ˈfoɣu]

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