Centro de Educação - CEDUC Departamento de Letras e Artes - DLA Componente Curricular: Português Histórico Prof. Rinaldo Brandão
Fonética Histórica
Dá-se o nome de FONÉTICA HISTÓRICA ao estudo da
transformação dos fonemas que constituem a estrutura sonora dos vocábulos. De regra, os vocábulos portugueses continuam vocábulos do latim vulgar através de uma série mais ou menos complexa de transformações. Desse modo, se tomamos um vocábulo como pé, notamos que ele evolveu para o português da seguinte maneira: pede > pee > pé; um segundo, de estrutura parecida, como cru, mostrará a seguinte evolução: crudu > cruu > cru; e, finalmente, um terceiro, ainda semelhante, a exemplo de como, terá passado pelas seguintes transformações: quomodo > comoo > como. Já daqui podemos concluir que o fonema consonântico /d/, posto entre vogais na palavra latina, desapareceu no correspondente vocábulo português. Observando, em seguida, um novo vocábulo como ler, cuja evolução foi legere > leer > ler, podemos deduzir que outro fonema consonântico, desta vez /g/, guardada a mesma situação medial intervocálica, teve idêntico destino. Isso, porém, não ocorre, por exemplo, com o verbo saber, que sofreu a evolução sapere > saber: nesse caso, o fonema consonântico /p/, na aludida situação intervocálica, em lugar de desaparecer, transformou-se noutro fonema /b/. A exceção é, porém, aparente, pois no caso do fonema latino /p/, sua evolução para o português é sempre a mesma: lupu > lobo; capere > caber; capillu > cabelo, sapore > sabor; etc. Por outro lado, temos o caso da palavra toda, assim evolvida: tota > toda. De onde se vê que também o fonema /t/, ainda em situação intervocálica, não desaparece na palavra portuguesa, mas simplesmente se transforma em /d/, e isso no geral dos casos: mutu > mudo; potere > poder; rota > roda; etc. Que razão, pois, teria determinado a diferença de tratamento? Analisando os fatos, observamos: a) os fonemas considerados são fonemas consonânticos mediais em posição intervocálica dentro do vocábulo; b) as consoantes /d/ e /g/ têm de comum a circunstância de serem SONORAS, quanto ao papel das cordas vocálicas em sua articulação, ao passo que /p/ e /t/ são SURDAS. Logo, na transformação do latim para o português, as consoantes 2
sonoras intervocálicas desaparecem e as surdas se
transformam; c) as consoantes /p/ e /t/ transformam-se, respectivamente, em /b/ e /d/, e não em quaisquer outros fonemas, e isso faz lembrar que o /p/ de origem e o /b/ dele decorrente são BILABIAIS o primeiro surdo, o segundo sonoro , enquanto o /t/ latino e o /d/ português são LINGUODENTAIS o primeiro surdo, o segundo sonoro. Logo, na transformação do latim para o português, as consoantes intervocálicas surdas transformam-se em sonoras, respeitados os limites de serem produzidas no mesmo ponto de articulação. Isso é o que se denomina PARES HOMORGÂNICOS. Assim se processa a evolução fonética: através de alterações regulares, resguardadas a natureza dos fonemas numa mesma posição dentro do vocábulo, e de acordo com o seu tratamento numa dada época ou região. A regularidade das alterações históricas dos fonemas comprova-se através de fatos evolutivos que são, a um tempo, constantes e correlatos. Segundo Bourciez1, as palavras que, em latim, contêm um determinado fonema mostram que esse fonema se modifica de uma mesma maneira nas palavras francesas correspondentes (isto é, a alteração é constante) e é simétrico com as alterações de outros fonemas considerados separadamente (isto é, a alteração é correlata). Exemplificando com o português, podemos afirmar: 1º se sapere produziu saber (isto é, se, em português, /p/ > /b/, em posição intervocálica), a mesma evolução se observa em outros vocábulos, onde aparece o mesmo fonema em circunstância idêntica: ripa > riba; napu > nabo; lupu > lobo, sapore > sabor; etc.; 2º se sapere > saber (isto é, se, na posição intervocálica, a bilabial surda se transformou na bilabial sonora), a mesma evolução ocorre com os demais fonemas em circunstância idêntica (OCLUSIVOS OU CONSTRITIVOS: BILABIAIS, LINGUODENTAIS, ALVEOLARES OU VELARES): metu > medo; dico> digo; profectu > proveito; dicere > dizer; causa > cousa; etc. Impressionados com a regularidade das alterações fonéticas, houve linguistas que pretenderam enxergar nas fases de evolução dos fonemas irrecorríveis determinantes de um sistema, as chamadas LEIS FONÉTICAS. Cumpre, todavia, esclarecer que, embora assumam o aspecto de princípios gerais, as CORRESPONDÊNCIAS FONÉTICAS, como hoje se prefere dizer, não chegam a valer como leis, pois apenas se referem ao passado, como laços que prendem fases de uma língua, e não têm o caráter universal das leis da Física ou da Química. De acordo com Eugenio Coseriu2:
1BOURCIEZ, Édouard. Précis Historique de Phonetique Française, Paris, 1945, p. 40.
2COSERIU, Eugenio. La Geografia Lingüística, Montevideo, 1956, p. 31. 3
A normalidade e uniformidade de uma alteração fonética é
um fato, mas um fato de caráter histórico, uma comprovação a posteriori. Com efeito, os mapas lingüísticos apresentam zonas onde se deu uma alteração e outras onde ela não ocorreu: não revelam apenas que a alteração não é uniforme, mas também que em certas zonas é uniforme. Não se trata, pois de negar ou afirmar uma lei, senão de explicar dois fatos históricos: a uniformidade da alteração em umas zonas e a não uniformidade em outras... Em outros termos, o princípio neogramático é útil se considerado histórica e não fisicamente, e a geografia linguística não contribui para destruí-lo, com às vezes se crê, mas, justamente, para transformá-lo de físico em histórico.
Por isso, com se há de ver, ao lado das
CORRESPONDÊNCIAS FONÉTICAS, que são constantes e se denunciam com rigorosa observância, é preciso admitir os ACIDENTES FONÉTICOS, que são fenômenos verificáveis sem a mesma regularidade no curso da evolução da língua.