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PERES, João Andrade, e MÓIA, Telmo (1995), Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Ed. Caminho,
Lisboa (pp.34-41).
Em relação ao primeiro tópico, importa clarificar as diferenças entre o que – seguindo a literatura
mais comum sobre a matéria – poderemos chamar uma variante de uma língua e um registo
linguístico. Uma variante (ou, na terminologia que temos usado, um subsistema) de uma língua
distingue-se pela associação do núcleo de características centrais dessa língua – lexicais,
sintácticas e fonológicas – a um conjunto de características particulares envolvendo um ou mais
destes níveis. Naturalmente, estas características têm de apresentar alguma estabilidade ao longo
de um período razoável de tempo e, acima de tudo, têm de ser sustentadas por uma comunidade
linguística minimamente representativa(1). Quanto aos factores que determinam a diferenciação
de variantes de uma língua, entre eles contam-se pelo menos factores de ordem geográfica,
factores de ordem sociocultural (obviamente associados a factores mais primários como o grau de
instrução ou o estatuto económico) e ainda o cada vez mais relevante contacto entre línguas.
Como seria de esperar, dada a complexidade da organização social, os diversos factores não
actuam isoladamente, determinando variantes de origem exclusivamente geográfica (normalmente
chamadas dialectos), social (normalmente chamadas sociolectos) ou outra, antes actuam em
confluência, gerando, por exemplo, diferentes variantes de motivação socio-cultural adentro de
urna variante cuja uniformidade é resultante de factores geográficos.
Sobre o tópico respeitante ao estatuto absoluto e relativo das variantes de uma língua, são duas as
ideias que nos interessa por em relevo. Em primeiro lugar, a ideia de que, conforme já referimos,
um conjunto de características lexicais ou gramaticais adquire o estatuto de variante linguística
pelo simples facto de subsistir numa comunidade linguística. Em segundo lugar, a ideia de que, de
um ponto de vista estritamente linguístico, todas as variantes têm idêntico interesse e dignidade
enquanto objectos de estudo, uma vez que todas elas são sistemas organizados por uma gramática.
Assim, tanto é uma variante do português com interesse científico, por exemplo, aquela em que
sistematicamente se flexionam as formas de segunda pessoa do singular do pretérito perfeito
simples por analogia com as do presente do indicativo – tu fostes, estivesses, dançasses – como
aquela em que essa analogia não intervém; ou aquela variante, tão frequente em muitas regiões do
país e grupos populacionais, em que a conjugação pronominal recíproca da primeira pessoa do
plural se faz à imagem da da terceira pessoa – quando se encontrámos, ainda não se conhecíamos,
quando se abraçámos... – e aquela que distingue as duas pessoas – quando nos encontrámos,
ainda não nos conhecíamos, quando nos abraçámos ... ; ou aquela variante em que não é feita a
distinção fónica entre os grafemas «b» e «v» e aquela em que o é; ou, para darmos ainda mais um
exemplo, aquela em que se usam os termos almareado, marafado ou marfado, griséus e
arvelhanas e aquela em que os termos correspondentes são, respectivamente, agoniado ou tonto,
zangado ou furioso, ervilhas e amendoins. E é claro que também integram uma variante do
português os termos ou as construções que um grupo de falantes adopta por imitação – nem
sempre necessária e por vezes servil – de línguas estrangeiras.
A questão da opção por uma variante linguística – que enunciámos como terceiro tópico a discutir
– pode colocar-se, particularmente em espaços linguísticos muito diversificados, quando se têm
em consideração certos objectivos específicos. Entre estes, contam-se, por exemplo, o ensino da
língua – quer enquanto língua materna quer enquanto segunda língua ou língua estrangeira –, a
redacção de textos oficiais, a difusão de informação através de meios de comunicação social que
atinjam comunidades que sustentam variantes linguísticas diversas e também o tratamento
computacional da língua. Consideraremos, em primeiro lugar, a dimensão dialectal das opções em
análise e, em segundo, a sua dimensão sociolectal.
Espalhada pelos vários continentes, é natural que a macro-entidade linguística a que se chama
língua portuguesa apresente grande variação dialectal, não só nos planos fonético (que, como
dissemos acima, inclui a pronúncia das palavras e a entoação das frases) e lexical, mas também no
da sintaxe. A estes tipos de divergências, há ainda que acrescentar a diferenciação ortográfica -
nomeadamente entre o espaço brasileiro e o espaço português -, a qual, sendo muito importante
em vários domínios práticos - como a edição de textos, a comunicação computadorizada ou a
intervenção em organismos internacionais -, é seguramente, de todos os modos de variação, o que
menos pesa na diferenciação entre as variantes.
Assim sendo, os portugueses vêem-se confrontados, no plano da variação dialectal, sobretudo com
opções lexicais e fonéticas. Para melhor se apreender esta questão, imagine-se, por exemplo, que
um locutor micaelense (ou de qualquer outra região do país com forte personalidade fonética) é
contratado para um canal televisivo de cobertura nacional. É previsível e natural que esse locutor,
mesmo sem que qualquer pressão seja sobre ele explicitamente exercida, tenda a moldar a sua
dicção pela fonética de uma outra variante (que é, grosso modo, e como se sabe, a que é sustentada
pelos grupos mais escolarizados de uma zona central do país que vai, aproximadamente – e com
todo o excesso que este tipo de generalizações envolve –, de Lisboa a Coimbra), a que
chamaremos, para facilidade de referência, variante central (do português europeu). Haveria,
pois, nesse caso – e em muitos outros similares que poderíamos imaginar, desde o ensino de
português a estrangeiros ao desenvolvimento de um projecto de síntese ou reconhecimento
computacionais de fala – uma opção por uma variante (fonética) regional do português, em
detrimento de outra.
A primeira destas razões tem a ver com a facilidade da comunicação, urna vez que se verifica, na
prática, que a variante central – a da maior parte da faixa do litoral-centro entre Lisboa e Coimbra
– se tornou a menos problemática em ternos de inteligibilidade, ao longo de todo o território,
passando, assim, a funcionar como uma espécie de língua franca, factor de unificação nacional,
por razões geográficas e históricas que facilitaram a sua difusão e reconhecimento generalizados e
que aqui não vamos explicitar. Feita esta verificação, parece razoável que, sem tentar anular ou
sequer menosprezar a riqueza patrimonial que constitui a diversidade linguística do país, se opte
pela fonética e pelo léxico – adiante falaremos da sintaxe, mais relevante numa perspectiva
sociolectal – da sua variante linguística que mais facilmente é captada por toda a população,
quando, por exemplo, se escreve para os meios de comunicação social de âmbito nacional ou se
ensina a língua portuguesa a estrangeiros. Já no ensino da língua materna, nos parece que também
podem e devem ser explorados quer o vocabulário quer a fonética próprios das variantes locais,
obtendo-se seguramente como resultado um maior desenvolvimento intelectual dos estudantes,
através do aprofundamento da sua sensibilidade e agilidade linguísticas.
A segunda razão decorre da primeira e tem a ver com a economia que, em determinadas
circunstâncias, resulta de se pôr em foco aquilo que une uma comunidade linguística e não aquilo
que a separa, em qualquer dos planos já referidos. Nesta perspectiva, pense-se, por exemplo, nos
seguintes domínios, alguns dos quais já referidos, onde o léxico, a fonética ou ambos os planos são
de grande importância: elaboração de dicionários básicos ou de manuais de ensino da língua, de
difusão nacional ou destinados a estrangeiros; redacção de textos legislativos ou outros de
interesse nacional; produção de correctores informáticos; simulação e reconhecimento da fala
humana em computador. É indiscutível que em todas estas áreas de acção linguística é de crucial
importância que se trabalhe sobre uma variante reconhecida pela diversidade das comunidades de
falantes.
Passemos agora às opções por variantes linguísticas de índole sociolectal, onde são relevantes
todos os planos acima referidos: o lexical, o sintáctico e o fonético. Logicamente, se as opções se
fizerem em função de objectivos de carácter nacional, a opção sociolectal só faz sentido no quadro
de uma prévia opção dialectal. A questão pode, portanto, formular-se nos seguintes termos: dos
diferentes subsistemas linguísticos que convivem na variante central, por qual deles se opta
quando se têm em vista os fins específicos já por mais de uma vez enunciados? A resposta é, sem
rodeios, perfeitamente linear: opta-se – uma vez mais, muito grosso modo – pelo subsistema
sustentado pelo grupo que atingiu níveis de escolaridade razoavelmente – uma vez mais,
contentemo-nos com a vagueza da expressão – elevados.
Dar razões linguisticamente pertinentes para uma escolha – para além das óbvias razões da
tradição – é talvez mais difícil no domínio sociolectal que no domínio dialectal. Na verdade, se
tivermos em conta que as línguas não são nem têm de ser conservadoras e que todos os sociolectos
tal como, aliás, os dialectos – resultam de processos de transformação e diferenciação, nada há, do
ponto de vista da estrutura linguística, que recomende uma variante em detrimento de outra.
Haveria, sim, se urnas variantes se caracterizassem por urna forte coerência estrutural, por
regularidades evidentes, por uma economia e elegância do sistema, enquanto outras se
distinguissem pela sua tendência para o caos linguístico. Tal não acontece, já que todas as
variantes de uma língua são fortemente sistemáticas e todas por igual apresentam fenómenos de
desestabilização do sistema, por meio dos diversos tipos de inovação linguística. Portanto, do
ponto de vista da ciência linguística, não existem – digamo-lo uma vez mais – boas e más
variantes. Há apenas organizações diferentes no quadro de um sistema linguístico amplo e
flexível. No entanto, opta-se e a pergunta permanece: como e porquê optar?
Cremos que, para além da tradição histórica de opção pela variante linguística sustentada pelos
grupos mais letrados de um espaço linguisticamente diversificado segundo parâmetros geográficos
e socio-culturais, emerge como aceitável uma razão de grande peso que tem a ver com o
património cultural escrito. É, de facto, inegável que os monumentos escritos que a história vai
acumulando – da poesia à prosa ficcional, da oratória ao ensaio, do texto jurídico ao científico –
são por norma produzidos no quadro de uma variante que, não obstante a imensa margem de
variação e inovação que integra, tem contornos precisos, adquiridos ao longo do processo
histórico. Mas se assim é, se o acesso ao património escrito de uma comunidade depende do
domínio, da variante em que ele predominantemente se produziu – e que ao mesmo tempo moldou
–, então tal variante (por alguns, como Cunha e Cintra (1 984), chamada «norma culta», mas que,
na verdade, é apenas a variante dos grupos mais escolarizados do litoral centro) tem de, no
interesse da comunidade linguística em geral, ser privilegiada em tudo o que respeite à
preservação e ao desenvolvimento da cultura escrita: no ensino, na comunicação social, na
redacção oficial, no tratamento informático da língua. Aos linguistas compete acompanhar o seu
desenvolvimento, registar as suas variações, sugerir nos casos de dúvida as soluções que a língua
melhor pode incorporar – tudo para que seja possível manter e incrementar uma filão de riqueza
cultural que, por meio da língua, atravessa o espaço, o tempo e os grupos sociais.
(...)
Do que ficou dito nas subsecções anteriores, decorre cristalinamente que o nosso conceito de
desvio linguístico – ou erro, ou anomalia, ou irregularidade, se quisermos – nada tem a ver com
alternativas fonéticas, lexicais ou sintácticas com uma justificação interna num subsistema
linguístico e adaptadas de modo (razoavelmente) permanente por uma comunidade linguística
(isto é, que contribuem para a definição de uma variante). Assim, as construções – ou usos
lexicais, ou realizações fonéticas – que para nós configuram um desvio linguístico têm de
obedecer a pelo menos duas condições: (i) constituírem rupturas com o subsistema ou variante de
que é suposto fazerem parte; e (ii) não serem integradas – pelo menos, plenamente – pela
comunidade linguística de suporte. Quando a segunda condição se verifica, o que inicialmente
constituía um desvio torna-se uma de duas coisas: um factor de ressistematização ou um caso
excepcional (de que qualquer língua ou variante tem exemplos). Quando, pelo contrário, ela não
chega a verificar-se, o que temos diante de nós é o puro desvio, o desajustamento à variante
supostamente adoptada, a quebra gratuita de uma harmonia que é um bem colectivo.
No que diz respeito à variante que aqui nos vai interessar – a dita variante culta –, o desvio
linguístico é normalmente fruto da falta de familiaridade com os monumentos escritos da língua
ou da ausência de um distanciamento em relação a ela que permita a compreensão da sua orgânica
e das imensas possibilidades que oferece. O nosso objectivo neste texto é contribuir para despertar
em alguns uma consciência mais aguda da língua que falam e escrevem, para que, de um patamar
mais esclarecido, possam gerir a sua capacidade de exploração de possibilidades, de livre e
criativa inovação e de detecção e eliminação do puro desvio.
Como já dissemos, são seis as áreas (críticas) da língua portuguesa em que encontramos ora
desvios que nos parece que a comunidade rejeitará, ora sintomas de evolução que possivelmente
vingarão, de acordo com o evidente princípio linguístico de que o normal de hoje foi ruptura de
ontem. São as que aqui enumeramos de novo, convidando o leitor a percorrê-las connosco:
estruturas argumentais, construções passivas, construções de elevação, orações relativas,
construções de coordenação e concordâncias.
____________
(1) - É claro que deixamos aos especialistas a tarefa de se pronunciarem sobre o que podem
significar, neste contexto, os termos «razoável» e «minimamente».