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Variação linguística

e registro
Professora Kelly Mendes
Variação linguística
• Todas as sociedades são heterogêneas sob dois pontos de vista:

o diacrônico – elas variam ao longo do tempo;


o sincrônico – em um mesmo momento histórico, elas apresentam realidades distintas.

• Por serem a expressão da identidade das sociedades que as usam, as línguas naturais
também são heterogêneas.
• Em consequência, todas as línguas naturais apresentam algum grau de variação.
Forças que agem sobre a
língua
• Duas forças agem sobre as línguas (CUNHA; CINTRA, 2001):
• uma força inovadora, que corresponde à variação linguística e é determinada pela diversidade
dos falantes e pela própria evolução da sociedade;
• uma força conservadora, que reprime a primeira e zela pela obediência à norma padrão. É
exercida por instituições como escola, imprensa, editoras, governos e órgãos públicos.

Força Força
conservadora inovadora
(variação
(norma padrão)
linguística)
Tipos de variação linguística

Fonte: adaptado de Bagno, 2007.


Variação diacrônica (histórica)
As formas populares “chicrete” e “praca” estão presentes na fala de brasileiros que vivem em estados tão
distantes quanto Paraná e Maranhão. Certamente, eles não “aprenderam” a troca do l pelo r na mesma
cartilha. O que explicaria um fenômeno tão recorrente?

Para a filologia (ciência que estuda as línguas na perspectiva histórica), a resposta é simples: o rotacismo —
isto é, a troca de um som, especialmente o l ou o s, pelo r — é uma característica inerente à língua
portuguesa. Trata-se de uma tendência observada há muitos séculos, desde a evolução do latim ao
português:

placere (latim) → prazer (português)

Sabendo como nossa língua evoluiu ao longo do tempo,


podemos entendê-la melhor hoje!
Breve história do português
europeu
Século IV a. C. — começa a expansão do Império Romano, que no seu auge ocuparia
boa parte do mundo conhecido, inclusive a região hoje correspondente a Portugal.

Séculos III a.C. a I d.C. — as populações das regiões dominadas


aprendem o latim vulgar com escravos e soldados romanos.
Séculos III a V d.C. — o Império Romano se desfaz. O latim vulgar
passa a ser falado por comunidades cada vez mais isoladas. Livre
da força conservadora imposta pela escola e pela administração
romana, a fala de cada ex-colônia sofre intensas modificações.

Aproximadamente 1000 d.C. — a distância entre o latim culto, preservado nos


conventos, e as falas de origem latina dos ex-colonizados já é tão grande que não se
pode mais dizer que se trata do mesmo idioma. Essas falas de origem latina são
chamadas de romances.
Breve história do português europeu
1064 a 1250 — em Portugal, os cristãos do norte, que
haviam resistido à ocupação islâmica e falavam um
romance denominado galego-português, rumam na
direção sul, expulsando os árabes e retomando o
território.

Séculos XV e XVI — da mistura entre o galego-português e os


dialetos falados mais ao sul surge o português moderno. Com a
intenção de fortalecer o idioma nacional, os intelectuais
lusitanos promovem sua relatinização e esforçam-se para
estabelecer sua norma padrão.
Breve história do português europeu
Séculos XVI e XVII — embora menos poderosos, os indígenas são maioria.
Forma-se, então, a língua geral ou brasílica, com alguns elementos do
português sobre uma ampla base tupi.
1757 — o Marquês de Pombal proíbe o uso da língua
geral e torna obrigatório o ensino do português.
1808 — a vinda da Corte Portuguesa, com seus
milhares de acompanhantes, acentua o processo
de relusitanização da língua.

O “caldeirão” linguístico-cultural brasileiro recebe, ainda, muitos


ingredientes vindos de fora: primeiro, os africanos são trazidos como
escravos entre 1530 e 1855; depois, a partir de meados do século XIX,
chegam italianos, japoneses, alemães, sírios, espanhóis etc.
Comparação entre o português
brasileiro e o europeu
O português brasileiro é (TEYSSIER, 1993):

Por um lado,
conservador: mantém
traços característicos do
português falado na Por outro lado, inovador:
Europa do século XVI. passou a apresentar traços
próprios, inéditos na Europa.
Português brasileiro e norma culta
Norma padrão é o jeito de falar e escrever uma língua que se definiu como sendo o “correto”.

Geralmente, o estabelecimento da norma padrão tem como objetivos:

• uniformizar a língua, para que documentos, leis, materiais didáticos, discursos, livros e outros textos
sejam compostos de maneira padronizada;

• construir uma identidade para a língua, diferenciando-a das demais;

• valorizar a língua, sua literatura e, em última instância, o próprio povo que a usa.
Português brasileiro e norma culta
Como se estabelece a norma padrão de uma língua?

Faz-se uma seleção entre as inúmeras variantes (formas


diferentes) de falar e escrever (BAGNO, 2007).

Por exemplo: no português, entre as variantes “praca” e placa,


foi selecionada placa.

Em geral, as variantes escolhidas são as empregadas pela elite cultural da comunidade. Por isso,
a norma padrão também é chamada de norma culta.
Português brasileiro e norma culta
No Brasil, porém, a norma culta não corresponde à norma padrão. Por quê?

Porque a norma padrão consagrada no Brasil se baseia quase totalmente na norma culta portuguesa, ou
seja, nos hábitos linguísticos da elite cultural portuguesa, não de nossa elite cultural.

Por exemplo: todos os brasileiros (inclusive os mais escolarizados) falam “Me esqueci de comprar pão”. No
entanto, nossa norma padrão estabelece como correta a forma “Esqueci-me de comprar pão”, usada em
Portugal.
Português brasileiro e norma culta
Em outros países, para conhecer a norma padrão basta observar como falam e escrevem as pessoas mais
escolarizadas (ou seja, basta observar a norma culta).

No Brasil isso não é suficiente, pois nem os mais escolarizados seguem à


risca a norma padrão.

Conclusão: enquanto não temos uma norma própria, nossos estudantes


precisam de esforço redobrado para não cometer “erros de português”.
Variação diatópica (regional): usos
Os regionalismos podem ser usados, por exemplo, para:

• dar verossimilhança aos personagens de um texto ficcional;


• reforçar estereótipos em textos humorísticos;
• aproximar um texto publicitário de seu público-alvo.

Ô loco, meu! Tá mó
calorão hoje! Vâmo
tomá uns chope depois
do trampo?
Variação diatópica (regional):
exemplos
Falares urbanos X falares rurais
Regionalismos podem ou não ser estigmatizados, isto é, “vistos com maus olhos” pela população
em geral.

Com frequência, as marcas típicas da zona rural são estigmatizadas, em razão da situação de
exclusão social tradicionalmente vivida pelas populações do campo.
Veja esta comparação:
Já punhô
Bah! Tô tri água no
atrasado, fijão, fia?
guria!

Regionalismos estigmatizados
Regionalismos não (em geral rurais)
estigmatizados
(em geral urbanos)
Variação diastrática
(social)
Sob a perspectiva diastrática (dos estratos sociais), o modo de usar a língua varia conforme:

• o nível de escolaridade;

• a faixa etária;

• o sexo;

• a profissão;

• o grupo social a que a pessoa pertence (surfistas, “funkeiros”, evangélicos, fãs de música sertaneja etc.);
entre outros fatores.
Evolussaum...
Variação diamésica (oralidade e
escrita)
Principal diferença entre oralidade e escrita:

Oralidade Escrita
Os momentos de Há uma defasagem entre
produção e recepção os momentos de produção
são simultâneos: à e recepção.
medida que você fala,
seu interlocutor ouve.
Variação diamésica (oralidade e escrita)
Vantagens Vantagens
da oralidade da escrita

É possível negocia
ro É poss
ssível revisar o texto.
sentido cco
om o
interlocutor.
As falhas
as ficam ocu
leitor tem acesso a ltass:: o
penas ao
É possível corrigir-s texxtto
o final.
e na
hora.
É possível consulta
r
fontes e checar info outrasas
Tende a haavver maio rmaaççõ
ões.
r
tolerância
cia a erros. Tende a haver maio
r cobrança.
Variação diafásica
(registro formal e informal)

• As variações de registro perpassam todas as outras variações: independentemente de sermos mais ou


menos escolarizados, de morarmos nessa ou naquela região, de sermos jovens ou velhos, homens ou
mulheres, surfistas ou roqueiros, todos nós mudamos nossa maneira de falar e escrever conforme a
formalidade da situação.

• Não há uma divisão radical entre registro formal e informal: é mais correto pensar em um continuum
de formalidade. Além disso, é diferente ser formal oralmente e ser formal por escrito.
Variação diafásica (registro formal e informal)

Fonte: Bowen apud Travaglia (2002, p. 54).


Variante regional – Enem 2014

Óia eu aqui de novo


Óia eu aqui de novo xaxando
Óia eu aqui de novo para xaxar
Vou mostrar pr’esses cabras
Que eu ainda dou no couro
Isso é um desaforo
Que eu não posso levar
Que eu aqui de novo cantando
Que eu aqui de novo xaxando
Óia eu aqui de novo mostrando
Como se deve xaxar
Vem cá morena linda
Vestida de chita
Você é a mais bonita
Desse meu lugar
Vai, chama Maria, chama Luzia
Vai, chama Zabé, chama Raquel
Diz que eu tou aqui com alegria
BARROS, A. Óia eu aqui de novo. Disponível em: www. luizluagonzaga.mus.br. Acesso em: 5 maio 2013 (fragmento).

A letra da canção de Antônio de Barros manifesta aspectos do repertório linguístico e cultural do Brasil. O verso que singulariza uma forma
característica do falar popular regional é
a) “Isso é um desaforo”
D

b) “Diz que eu tou aqui com alegria”


.

c) “Vou mostrar pr’esses cabras”


V

d) “Vai, chama Maria, chama Luzia”


F

e) “Vem cá morena linda, vestida de chita”


Variante histórica – Enem 2014

Em bom português
         No Brasil, as palavras envelhecem e caem como folhas secas. Não é somente pela gíria que a gente é apanhada
(aliás, já não se usa mais a primeira pessoa, tanto do singular como do plural: tudo é “a gente”). A própria linguagem
corrente vai-se renovando e a cada dia uma parte do léxico cai em desuso. Minha amiga Lila, que vive descobrindo
essas coisas, chamou minha atenção para os que falam assim:
– Assisti a uma fita de cinema com um artista que representa muito bem.
Os que acharam natural essa frase, cuidado! Não saberão dizer que viram um filme com um ator que trabalha bem. E
irão ao banho de mar em vez de ir à praia, vestido de roupa de banho em vez de biquíni, carregando guarda-sol em vez
de barraca. Comprarão um automóvel em vez de comprar um carro, pegarão um defluxo em vez de um resfriado, vão
andar no passeio em vez de passear na calçada. Viajarão de trem de ferro e apresentarão sua esposa ou sua senhora
em vez de apresentar sua mulher.
SABINO, Fernando. Folha de S. Paulo, 13 abr. 1984 (adaptado).

A língua varia no tempo, no espaço e em diferentes classes socioculturais. O texto exemplifica essa característica da
língua, evidenciando que:

a) o uso de palavras novas deve ser incentivado em detrimento das antigas.


G

b) a utilização de inovações no léxico é percebida na comparação de gerações.


C

c) o emprego de palavras com sentidos diferentes.


D

d) a pronúncia e o vocabulário são aspectos identificadores da classe social a que pertence o falante.
e) o modo de falar específico de pessoas de diferentes faixas etárias é frequente em todas as regiões.
Variante regional – Enem 2015
Assum preto
(Baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
Tudo em vorta é só beleza
Sol de abril e a mata em frô
Mas assum preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor
Tarvez  por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do assum preto
Pra ele assim, ai, cantá mió
Assum  preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil veiz a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá.

As marcas da variedade regional registradas pelos compositores de Assum preto resultam da aplicação de um conjunto de
princípios ou regras gerais que alteram a pronúncia, a morfologia, a sintaxe ou o léxico. No texto, é resultado de uma mesma regra,
a:
a) pronúncia das palavras “vorta” e “veve”.
D

b) pronúncia das palavras “tarvez” e “sorto”.


J

c) flexão verbal encontrada em “furaro” e “cantá”.


d) redundância nas expressões “cego dos óio” e “mata em frô”.
e) pronúncia das palavras “ignorança” e “avuá”.
Variante social – Unicamp 2017

No dia 21 de setembro de 2015, Sérgio Rodrigues, crítico literário, comentou que apontar um erro de português no
título do filme Que horas ela volta? “revela visão curta sobre como a língua funciona”. E justifica:
“O título do filme, tirado da fala de um personagem, está em registro coloquial. Que ano você nasceu? Que série você
estuda? e frases do gênero são familiares a todos os brasileiros, mesmo com alto grau de escolaridade. Será preciso
reafirmar a esta altura do século 21 que obras de arte têm liberdade para transgressões muito maiores?
Pretender que uma obra de ficção tenha o mesmo grau de formalidade de um editorial de jornal ou relatório de firma
revela um jeito autoritário de compreender o funcionamento não só da língua, mas da arte também.”
(Adaptado do blog Melhor Dizendo. Post completo disponível em http:// www  melhordizendo.com/a-que-horas-ela-volta-em-que-ano-estamos-mesmo/. Acessado em 08/06/2016.)

Entre os excertos de estudiosos da linguagem reproduzidos a seguir, assinale aquele que corrobora os comentários
do post.

a) Numa sociedade estruturada de maneira complexa a linguagem de um dado grupo social reflete-o tão bem como
suas outras formas de comportamento. (Mattoso Câmara Jr., 1975, p. 10.)
b) A linguagem exigida, especialmente nas aulas de língua portuguesa, corresponde a um modelo próprio das classes
dominantes e das categorias sociais a elas vinculadas. (Camacho, 1985, p. 4.)
X

c) Não existe nenhuma justificativa ética, política, pedagógica ou científica para continuar condenando como erros os
usos linguísticos que estão firmados no português brasileiro. (Bagno, 2007, p. 161.)
C

d) Aquele que aprendeu a refletir sobre a linguagem é capaz de compreender uma gramática – que nada mais é do
que o resultado de uma (longa) reflexão sobre a língua. (Geraldi, 1996, p. 64.)
Variante social – Enem 2013
Até quando?
Não adianta olhar pro céu
Com muita fé e pouca luta
Levanta aí que você tem muito protesto pra fazer
E muita greve, você pode, você deve, pode crer
Não adianta olhar pro chão
Virar a cara pra não ver
Se liga aí que te botaram numa cruz e só porque Jesus
Sofreu não quer dizer que você tenha que sofrer!
GABRIEL, O Pensador. Seja você mesmo (mas não seja sempre o mesmo). Rio de Janeiro: Sony Music, 2001 (fragmento).

As escolhas linguísticas feitas pelo autor conferem ao texto


a) caráter atual, pelo uso de linguagem própria da internet.
b) cunho apelativo, pela predominância de imagens metafóricas.
c) tom de diálogo, pela recorrência de gírias.
D

d) espontaneidade, pelo uso da linguagem coloquial.


F

e) originalidade, pela concisão da linguagem.


Resposta comentada:
A linguagem usada por Gabriel, O Pensador é típica do rap e do funk atuais, ligada à fala e a uma coloquialidade
proposital para alcançar o público.
Alternativa D.
Variante social – Fuvest 2012

“A correção da língua é um artificialismo, continuei episcopalmente. O natural é a incorreção. Note que a gramática só
se atreve a meter o bico quando escrevemos. Quando falamos, afasta-se para longe, de orelhas murchas.”
LOBATO, Monteiro, Prefácios e entrevistas.

a) Tendo em vista a opinião do autor do texto, pode-se concluir corretamente que a língua falada é desprovida de
regras? Explique sucintamente.

A língua falada objetiva a comunicação e, por isso, se permite não utilizar a norma padrão ou culta, o que não deve ser considerado erro. A fala utiliza a
gramática descritiva, que é o uso da língua pelos seus falantes.

b) Entre a palavra “episcopalmente” e as expressões “meter o bico” e “de orelhas murchas”, dá-se um contraste de
variedades linguísticas. Substitua as expressões coloquiais, que aí aparecem, por outras equivalentes, que pertençam
à variedade padrão.
O termo “episcopalmente” segue a norma padrão. Podemos substituir “meter o bico” por “intrometer-se” e “de orelhas murchas” por “envergonhada”.
Referências
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. 3. ed. São Paulo:
Parábola, 2007.

BOWEN, J. Donald. A multiple register approach to teaching English. Estudos linguísticos, São Paulo, v. 1, n. 2,
1966, p. 35-44.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.

TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. de Celso Cunha. 5. ed. Lisboa: Liv. Sá da Costa, 1993.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2002.

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