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Introdução
Como ensina Saussure, os fatos de uma língua podem ser estudados sob dois pontos de
vista: o do funcionamento (sincronia) e o da evolução (diacronia). O estudo diacrônico
compreende a história externa (evolução sociolingüística) e a história interna, ou seja, a
evolução estrutural da língua em seus aspectos fonológicos e morfossintáticos. No caso
do português, uma língua românica, esse estudo deve ter como ponto de partida a
distinção latim clássico/latim vulgar. A partir dessa distinção fundamental, traçar emos
uma síntese da evolução histórica do nosso sistema gramatical, remontando ao latim
vulgar da Península Ibérica e às inovações introduzidas pelo português arcaico (séculos
XII ao XVI), até chegar ao português moderno.
A língua latina era uma só, mas, como ocorre em toda língua de cultura, apresentava
diversidade de realizações, constituindo um diassistema em que se contrapunham dois
níveis: o latim escrito e o latim falado. Em termos lingüísticos, uma variante culta ( sermo
nobilis) e uma variante coloquial-popular (sermo vulgaris ou usualis), que
corresponderiam respectivamente aos dois segmentos fundamentais da sociedade
romana: os patrícios e os plebeus.
O sermo nobilis, regido pela disciplina gramatical, gozava de notável unidade em todo o
Império. Era a língua da escola, das letras, da retórica, da política e das leis. Sua versão
literária, estilizada, recebe a denominação de latim clássico (LC), cujo período de
esplendor vai do século I a.C. ao I d.C. Nessa modalidade de língua é que foram
compostos os monumentos literários da prosa e da poesia latina, representados pelas obras
de Cícero, César, Horácio, Virgílio, Ovídio, dentre outros escritores de relevo.
O sermo vulgaris, o chamado latim vulgar (LV), por sua vez, era a língua viva, falada
cotidianamente não apenas pela plebe (como sugere o inadequado adjetivo "vulgar"), mas
na verdade por todos os segmentos da sociedade romana, inclusive os usuários do sermo
nobilis, conforme deixa entrever a descrição de Quintiliano (I d.C.), a qual faz referência
a uma das modalidades desse tipo de língua: “Sermone quotidiano – quo cum amicis,
coniugibus, liberis, servis loquamur” (XII, 10, 40) “falar cotidiano, por meio do qual
falamos com os amigos, cônjuges, filhos, escravos”.
Durante esse longo e incessante devenir o LV, avesso à disciplina gramati cal, evoluiu
livremente e, embora houvesse inúmeros pontos de contato entre a língua escrita e a
falada, foi pouco a pouco se diferenciando do latim escrito, efetivando inclusive certas
tendências latentes no próprio LC. Nesse sentido, acabou por forjar um arcabouço
fonológico e morfossintático que serviu de base para o desenvolvimento das línguas
românicas e que pode ser assim sintetizado: perda da oposição de quantidade, perda do -
m final, desenvolvimento de determinantes (artigos), maior uso de prefixos e sufixos,
grande simplificação flexional, largo uso de preposições (tendência ao analitismo),
predomínio da ordem direta, léxico mais simples.
Morfossintaxe Diacrônica
Tornado caso único, o acusativo, auxiliado por preposições, passou a desempenhar todas
as funções sintáticas na frase do LV da Península Ibérica. Ao acusativo também é que se
vincularão etimologicamente, em sua maior parte, os nomes portugueses (subst. e adj.),
daí ser conhecido como o nosso caso lexicogênico, ou seja, gerador do léxico.
Embora o acusativo seja o nosso caso lexicogênico, a língua portuguesa conservou alguns
vestígios dos outros casos latinos. Do nominativo restaram os pronomes pessoais
retos: ego > eu, tu > tu, ĭlle > ele, nos > nós, vos > vós e os demonstrativos: ĭste >
este, ĭpse > esse, *accu+ĭlle > aquele, além de certos nomes próprios – Cícero, César,
Nero, Marcos, etc. – e comuns: júnior, sênior, sóror, deus. Estes nomes foram preservados
por influência eclesiástica ou erudita. Quanto ao vocativo, seu único vestígio em
português é a saudação litúrgica Ave-Maria.
Do genitivo restaram uns poucos vestígios, não mais percebidos sincronicamente, como,
por exemplo, patronímicos do tipo Fernandici > Fernandes, Antonici > Antunes e nomes
diacronicamente compostos: aquae+ductu > aqueduto, terrae+motu >
terremoto, agri+cultura > agricultura. Quanto ao dativo, seus vestígios estão
representados pelos pronomes oblíquos tônicos (objeto indireto) mihi > mi (arc.) >
mim, tibi, sibi > ti, si (por analogia a mi) e ĭlli > lhe (este é átono). As formas
átonas ti e si, do português arcaico, deram te e se, o que explica o uso dessas formas, no
português contemporâneo, como objeto indireto, a par do seu emprego como objeto
direto, herança, neste caso, do acusativo latino te e se.
Desaparecimento do neutro
Em português não existe o gênero neutro como categoria gramatical. O que restou do
neutro latino são apenas alguns vestígios, conservados em nossa língua em situações
específicas, tais como: a) pronomes demonstrativos: aquilo, isto, isso; b) pronomes
indefinidos: tudo, nada, algo; c) certas palavras de sentido pluralício: vestimenta,
ferramenta, lenha, braça, ova, fruta; d) adjetivos na forma não-marcada de masculino,
como determinantes de substantivos usados em sentido geral: É proibido entrada,
É necessário paciência, Fruta é bom para a saúde; e) adjetivos neutros (masc.) de um
infinitivo: É doce e honroso morrer pela pátria (Dulce et decorum est pro patria mori.
Horácio).
Fonologia Diacrônica
Vocalismo
Na evolução do LV para o português, o destino das vogais vai depender de sua posição
na sílaba. Em geral, as tônicas permanecem: mare > mar, secretu > segredo, vita >
vida, rota > roda, sapore > sabor, lupu > lobo. Com relação às átonas pré-tônicas, o
quadro é o seguinte: a) iniciais – conservam-se (amare > amar), sofrendo aférese em
alguns casos (acume > gume); b) mediais – sofrem síncope: honorare >
honrar, veritate > verdade. Quanto às vogais pós-tônicas, temos: a) mediais –
síncope: calidu > caldo, lepore > lebre; b) finais – conservam-se: rosa > rosa;
modificam-se: dixi > disse, amicu > amigo; o -e final sofre apócope quando precedido de
-l : male > mal, -n: bene > bem, -r: amare > amar, -s: mense > mês, -z: vice > *veze >
vez; o -e final conservou-se nos demais casos: nocte > noite, hodie > hoje, ipse >
esse, salute > saúde.
Na evolução dos ditongos latinos para o português, o quadro é o seguinte: a) -ae- tônico
> -é-: saeculu > século, caecu > cego; -ae- átono > -ê- ou -i-: aestimare >
estimar, aetate > idade; b) -oe- > -ê-: poena > pena, foedu > feo (arc.) feio; c) -au- > -ou-
(criação românica): auru > ouro, causa > cousa > coisa (-ou- > -oi-, por influência da
pronúncia judaica, segundo J. J. Nunes, 1956:75). -au- > -o- (por razões
dialetais): pauper > *popere > pobre, auricula > oricla > orelha. Como criações
românicas, surgem ainda outros ditongos: a) por vocalização: -ei-: lacte > *laite >
leite, regnu > reino; -oi- : nocte > noite; -ou-: alteru >*autru > outro; b) por síncope da
consoante medial: -ão: manu > mão; -ães/-ões: panes > pães, leones > leões; -ai-
: vanitate > vaidade; c) por epêntese de uma semivogal: -ei-: credo > creo > creio; d) por
oclusão: -éu-: velu > *velo > veo > véu; -au-: malu > *malo > mao > mau; e) por
metátese: -ai-: rapia > *rabia > raiva.
Os hiatos em português, comuns no período arcaico da língua, têm sua origem na síncope
de uma consoante medial, sobretudo o -l- e o -n-, esta a partir do século XI. A tendência
da língua, entretanto, tem sido evitar os hiatos: a) por crase: colore > coor > cor, dolore >
door > dor, sedere > seer > ser; b) por oclusão: ego > *eo > eu, caelu > *celo > céo > céu;
c) por ditongação (epêntese de um iode): avena > avẽa > avea > aveia, foedu > *fedo >
feo > feio. A nasalização da vogal anterior pelo -n- e sua posterior síncope trouxeram
repercussões para a fonologia portuguesa, representadas, por exemplo pela presença de
vogais nasais em diversas palavras, como vi(n)u > vĩo > vinho, la(n)a > lãã
>lã, matia(n)a > maçãã > maçã. No caso do -l- intervocálico, é a sua síncope que justifica
formas de plural como sóis (< soes < soles) e animais (< animaes < *animales). Na
morfologia, a queda do -n- intervocálico produziu o ditongo -ão (grã(n)u > grão), com
sua tríplice possibilidade de plural: em -ãos (gra(n)os > grãos), -ães (pa(n)es > pães) e -
ões (leo(n)es > leões).
Consonantismo
Quanto aos grupos consonantais, façamos uma síntese, apontando os casos principais. Os
grupos iniciais terminados em -r se conservam: cruce > cruz, dracone > dragão, gradu >
grau, pratu > prado; os terminados em -l sofrem palatalização, uma das inovações do
galego-português (clave > chave, flamma > chama, pluvia > chuva), ou modificam o -l-
para -r (clavu > cravo, flaccu > fraco, placere > prazer).
Alguns grupos consonantais mediais formaram-se pela síncope de uma consoante medial,
no próprio LV, outros já existiam, sofrendo diversos tipos de evolução. Por exemplo: a)
palatalização (dígrafos -lh- e -ch-): oc(u)lu > olho, teg(u)la > telha (a par de reg(u)la >
regra), rot(u)la > *rocla > rolha, inflare > inchar, ; b) conservação: membru >
membro, nigru > negro, intrare > entrar; c) alteração: lacrima > lágrima, duplare >
dobrar, lepore > *leb(o)re > lebre. Nos grupos consonantais disjuntos (em sílabas
diferentes), do tipo -ps-, -rs-, a segunda consoante assimilou a primeira (assimilação
regressiva): ipse > esse, persicu > pêssego. Trata-se de fenômeno que remonta ao próprio
LV, pois no Appendix Probi aparece persica non pessica.
Conclusão
Do exposto neste breve roteiro histórico, concluímos que a língua portuguesa guarda
íntima afinidade com suas matrizes latinas, sobretudo no que diz respeito ao vocalismo e
à morfologia nominal. Nosso sistema fonológico apresenta um quadro de 19 consoantes,
7 vogais tônicas silábicas e 2 assilábicas (semivogais /y/ e /w/), cujas raízes se encontram
na trajetória evolutiva do LV da Península Ibérica. Algumas inovações foram
introduzidas no período arcaico da língua (séc. XII ao XVI), como a palatalização dos
grupos consonantais cl-, fl- e pl- , que passaram a /š/, o dígrafo ch-, a síncope do -n-
intervocálico, que trouxe conseqüências fonológicas e morfológicas, e a grande
quantidade de hiatos, desfeitos mais tarde no português moderno. O quadro das
desinências nominais (gênero e número) e verbais (modo-temporais e número-pessoais)
também remonta à velha cepa latina, preservada em nossa língua em sua fisionomia
básica. Quanto ao léxico, em sua maior parte, provém do acusativo, por isso mesmo
conhecido como o nosso caso lexicogênico.
Bibliografia
MAURER JR., Th. Henrique. Gramática do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica,
1959.