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ISSN: 1676-4285

Desafios no trabalho do enfermeiro


na Rede de Atenção Psicossocial:
estudo exploratório-descritivo
Fabrício Soares Braga1, Agnes Olschowsky1, Mariane da Silva Xavier Botega1

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO
Objetivo: identificar fatores e obstáculos que interferem no processo de trabalho do enfermeiro na Rede de
Atenção Psicossocial. Método: estudo exploratório-descritivo realizado no período de outubro a dezembro
de 2017, nos componentes da Rede de Atenção Psicossocial de uma gerência distrital de saúde de Porto
Alegre, RS, Brasil. Participaram 12 enfermeiros mediante entrevista semiestruturada. As informações foram
transcritas e submetidas à análise de conteúdo na modalidade temática. Resultados: da análise emergiram
duas categorias temáticas: Ambiente de Trabalho e Obstáculos para a Realização do Trabalho. Discussão:
violência, pobreza, sucateamento estrutural, barreiras para mobilidade urbana, desmotivação, fila de espera e
sobrecarga de trabalho formam um sistema de saúde pobre para pobres, produzindo descontentamento nos
enfermeiros, pois necessidades de usuários e trabalhadores para realização do cuidado são desconsideradas.
Conclusão: considera-se cada problema como causa ou consequência das dificuldades identificadas. O
cuidado humanizado deve provir da desestagnação para enfrentamento da realidade hostil.

Descritores: Enfermagem Psiquiátrica; Condições de Trabalho; Enfermeiras e Enfermeiros; Cuidados de


Enfermagem; Saúde Mental; Redes Comunitárias

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INTRODUÇÃO que os usuários e familiares enfrentam na aten-


ção primária à saúde durante os planejamentos
O cuidado em saúde mental pautado na de alta do CAPS, prejudicando a resolutividade e
diretriz da integralidade, com a consolidação agilidade necessárias para um bom atendimen-
da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), se dire- to e assistência ao usuário; e da dificuldade de
ciona para o sujeito no território e em liberdade, quebra do paradigma da psiquiatria tradicional
propondo serviços que se opõem à psiquiatria nas instituições de saúde e na própria assistência
tradicional que isolou e excluiu os sujeitos tidos de enfermagem(4).
como loucos dentro dos manicômios(1). Considerando essa contextualização, são
Os trabalhadores, ao promoverem o cuida- pertinentes a reflexão e o aprofundamento das
do de saúde mental em liberdade no território, questões relativas ao trabalho do enfermeiro na
visam construir um vínculo com o usuário que RAPS, focando a atenção nas contribuições desse
possibilite realizar a prevenção do agravamento trabalho para o fortalecimento da rede, pois o
do transtorno mental; reduzindo a quantidade cuidado em liberdade na saúde mental está em
de crises agudas, diminuindo os sintomas; pro- permanente tensionamento com instituições da
movendo tanto a reabilitação quanto a promo- psiquiatria tradicional que perderam parte do
ção da saúde mental através de estímulos para poder após a RPB. Assim, delineou-se este estudo
que os usuários exerçam o seu papel como cida- a partir da seguinte questão de pesquisa: Quais os
dãos, a sua autonomia, o seu empoderamento elementos do território que interferem no proces-
e autocuidado. Assim, os usuários da saúde so de trabalho do enfermeiro na RAPS? Visando
mental conseguem uma melhor participação responder tal questionamento, objetivou-se
social, interagindo com os demais elementos identificar fatores e obstáculos que interferem
do território(2). no processo de trabalho do enfermeiro na RAPS.
Os serviços de saúde mental, substitutivos
ao modelo manicomial, têm como meta traba-
lhar em uma articulação chamada de Rede de MÉTODO
Atenção Psicossocial (RAPS), que conforma-se
por diferentes serviços de atenção primária, Trata-se de um estudo de abordagem
secundária e terciária de saúde, e assume os qualitativa, do tipo exploratório-descritivo(5). O
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como cenário desta pesquisa foi composto por pontos
articuladores estratégicos(3). de atenção da RAPS, localizados em um território
Entretanto, os trabalhadores percebem que regido por uma gerência de Distrito de Saúde
a articulação entre os serviços de saúde mental (DS) no município de Porto Alegre, RS, Brasil, nos
é um desafio complexo e sua não efetivação traz quais haviam enfermeiros na equipe: oito Uni-
consequências para usuários e trabalhadores. dades de Saúde da Atenção Básica, uma Equipe
A falta de articulação e as deficiências pre- de Saúde Mental Adulto (ESMA), um CAPS II, um
sentes na RAPS foram apontadas como causa- CAPS Álcool e Drogas (CAPSad) e uma Unidade
doras de descontentamento e de sofrimento no de Pronto Atendimento (UPA).
trabalho, em estudo realizado com enfermeiros A seleção dos participantes se deu de forma
da saúde mental. Estes revelaram o quanto existe intencional, através de convite aos enfermeiros
de ansiedade frente às expectativas não corres- alocados nos serviços de saúde que foram ce-
pondidas, em razão das dificuldades de acesso nário desta pesquisa. Participaram do estudo

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12 enfermeiros que se enquadraram no critério das informações produzida através do Nvivo 11


de inclusão de estabelecido, qual seja: trabalhar foi exportada para uma planilha do Microsoft
há, no mínimo, três meses no serviço, excluindo- Excel, possibilitando a sua interpretação à luz
-se os que estivessem afastados das atividades do referencial teórico.
laborais em razão de férias ou licença. Conforme prevê a Resolução 466/12, as
A seleção dos participantes é justificada considerações éticas foram observadas, sendo
no traço das técnicas de pesquisa qualitativa este estudo aprovado pelo Comitê de Ética em
que adota um estilo de pesquisa que prefere o Pesquisa da Secretaria Municipal de Porto Alegre
aprofundamento do detalhe à reconstrução do sob parecer nº 2.311.407, em outubro de 2017.
todo, sendo uma escolha metodológica que guia
para a complexidade do fenômeno, atribuída a
proximidade ontológica entre o pesquisador RESULTADOS
e pesquisado. Para isso, a pesquisa qualitativa
segue o caminho da redução da extensão do A partir da análise de conteúdo das infor-
fenômeno e a focalização em poucos casos, mações, emergiram duas categorias temáticas:
dos quais se propõe individuar e representar os Ambiente de Trabalho e Obstáculos para a Rea-
mínimos detalhes(6). lização do Trabalho.
As informações foram coletadas no período
de outubro a dezembro de 2017 por meio de Ambiente de trabalho
entrevista semiestruturada, em que o entrevis-
tado tem a possibilidade de discorrer sobre o Esta categoria temática aborda a relação
tema sem se prender à indagação formulada(5). dos enfermeiros com seu ambiente de trabalho:
Neste estudo exploratório-descritivo, o território onde os profissionais efetivam seu
utilizou-se a análise de conteúdo das entrevis- processo de trabalho em rede.
tas à luz do referencial do Processo de Trabalho Uma das características presentes no ter-
e Psicodinâmica do Trabalho(7-8). Optou-se por ritório que interfere no trabalho é a violência
analisar segundo a modalidade temática, cujo urbana.
intuito consiste em descobrir os núcleos de
compreensão que compõem as falas dos entre- Às vezes os usuários não vêm em
vistados. Este tipo de análise se divide em três função da violência. Porque, às vezes,
etapas: pré-análise; exploração do material; e tra- a região onde mora está fechada, teve
tamento dos dados, inferência e interpretação(5). tiroteio. [E3]
A pré-análise ocorreu com a leitura e conferência
da transcrição textual dos áudios das entrevistas. Não tem como tu estar inserido dentro
Cada transcrição foi catalogada no software Nvi- disso sem sofrer violência, imagina se
vo 11 e, a partir dele, foram selecionadas as uni- acordar no meio da noite ouvindo tiro,
dades de registro e as unidades de contexto. Na é uma violência (...) eles são vítimas
exploração do material, a categorização se deu diárias da violência. [E7]
buscando agregar cada unidade de contexto em
núcleos de compreensão, formando, assim, as E essa violência não interfere somente no
categorias temáticas. E, por fim, na fase de tra- trabalho extramuros, mas também no trabalho
tamento dos resultados obtidos, a categorização interno na unidade.

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Tinha uma usuária que o filho dela foi É a nossa área mais vulnerável, são
morto no tráfico, não só morto, ele foi casos de crianças com traumas após
esquartejado. [E3] verem homicídios, acordarem no
meio da madrugada com tiroteio. [E7]
Apareceram só duas pessoas para fazer
curativo na unidade durante aquela A gente atende uma população bem
manhã: uma que tinha tomado uma carente. Tem várias questões de violên-
bala perdida e uma moça gestante cia. Às vezes, abuso sexual. [E11]
que tinha se machucado fugindo do
tiroteio. [E12]
As demandas dos usuários estão direta-
A violência no ambiente de trabalho, por mente relacionadas com a condição vulnerável
vezes, é originada de uma interação conflituosa na qual estão inseridos.
entre enfermeiro e usuário.
A maioria dos pacientes são bem vul-
neráveis (...). Até roupa a gente tem que
A equipe já passou por alguns traumas, correr atrás para conseguir. [E1]
mas com a organização dos atendi-
mentos nunca mais aconteceu. Eu É uma zona completamente vulnerá-
tenho conversado com a equipe sobre vel. A gente tem usuários cujo proble-
não dificultar o acesso do paciente de ma é puramente social e temos muito
saúde mental. [E5] cuidado para não medicar nesses
casos. [E2]
Os usuários acham que a culpa der
tudo é nossa, se falta insumo, se falta Existe também um processo de sucatea-
tudo. Então, esse tipo de violência ver- mento da estrutura dos serviços públicos de
bal sempre ocorre. [E11] saúde disponibilizados pela gestão.

O paciente, ainda mais com paciente É um local com três mesas. Três pacien-
psiquiátrico, tem um limite muito pe- tes estão sendo atendidos ao mesmo
queno de ouvir “não” e, infelizmente, tempo. A pessoa geralmente não con-
eles chegam aqui 10 ou 11 horas da segue expor muita coisa (...). Não tem
manhã, quando todas as vagas de privacidade nenhuma. [E1]
acolhimento já foram preenchidas por
crianças com febre e outros casos mais Não tenho um corrimão em todas as
graves de saúde. [E7] escadas, não tenho um antiderrapante
na escada, é muito descaso, muito triste
A relação entre a violência e a condição a situação. [E2]
social de pobreza da população do território é
observada pelos enfermeiros dos DS estudados.

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Obstáculos para a realização do trabalho facilitar também o deslocamento do


usuário. [E3]
As barreiras para mobilidade urbana são
identificadas como obstáculos para o trabalho A desmotivação também é apontada
em rede. como obstáculo e está atrelada a um sentimento
de tristeza nos enfermeiros.
A dificuldade maior é a gente não ter
carro para fazer as coisas, então é a falta E o que me deixa mais triste é que,
de recurso mesmo. [E2] quando eu trabalhava no X, que era
uma parceria público-privada, não
A gente tem que ter carro, o carro é podia abrir a porta se estivesse faltando
uma das coisas que nos tranca bastan- alguma coisa e, aqui, a gente funciona
te, eu acho que o apoio matricial tinha faltando tudo. [E2]
que ser lá na unidade. [E3]
Eu estou cansada de trabalhar aqui, eu
Os usuários dos serviços de saúde também já pedi inclusive para sair (...). A maioria
possuem dificuldades em utilizar o transporte dos pacientes que vêm para cá não
público devido ao valor da passagem. quer melhorar. [E10]

O CAPS é aqui perto, dá para ir a pé A fila de espera para atendimento, tam-


(...). Mas o postão é um pouco mais bém identificada como obstáculo, ocorre pelo
longe, então, às vezes, eles não têm fenômeno da demanda reprimida dos casos não
passagem, né? Aí complica. [E11] discutidos no matriciamento e não acolhidos
pelos serviços de saúde mental que operam com
Para os pacientes acessarem o CAPS portas fechadas.
ou qualquer outro setor da rede é bem
complicado. Muitos não têm como se Eu acho que as crianças são um ponto
deslocar, não têm passagem ou por que a gente está precisando melhorar
diversos outros motivos acabam não (...). Mas não é nós, a rede tem que se
indo. [E4] expandir para poder conseguir com-
portar toda a demanda. [E8]
Uma das propostas que está sendo veicu-
lada entre os profissionais da rede é a divisão Eu tenho minha pastinha com 10 ca-
do território de abrangência entre as equipes sos e consigo passar quatro (no apoio
do apoio matricial. matricial). Então, a gente tem uma
demanda reprimida muito grande. [E5]
A gente pensa em dividir o território
ao meio. A gente fica com uma metade Forma-se, também, a fila de espera dos
mais próxima. [E2] usuários que já foram discutidos na interconsulta
do apoio matricial e que permanecem aguardan-
É um distrito muito grande (...). A gente do vaga na agenda do acolhimento dos serviços
começou a pegar mais esse lado para de saúde mental.

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A gente tem uma fila de espera um cutir sobre esses assuntos, coisas que
pouquinho grande, demora um mês não temos (...). A gente fica afogado
para a pessoa entrar logo que vem aqui nessa demanda espontânea de atender
(no acolhimento). [E2] paciente. [E4]

A EESCA (Equipe Especializada em A problemática da atenção primária


Saúde da Criança e Adolescente) que em saúde é que ela acabou recebendo
está com a agenda lá para a frente, a uma sobrecarga muito grande de de-
nossa agenda também está lá para a mandas (...). Então, a demanda é muito
frente. [E3] grande. [E5]

Essa fila de espera também resulta, em par- O terceiro fator é a percepção de que existe
te, da dificuldade de deslocamento no território. uma defasagem no dimensionamento da área
de abrangência das equipes de saúde da aten-
Matriciei 25 crianças no ano de 2016 ção básica.
e nove não compareceram. Eles retor-
nam para a unidade. E aí se faz a mesma O nosso território tem mais de 10 mil
coisa, se faz todo aguardo em fila de habitantes. Eu tenho vários condomí-
espera. [E12] nios sendo construídos aqui. Então, isso
também é um complicador. [E5]
A sobrecarga de trabalho a que os en-
fermeiros se sentem submetidos também é O dimensionamento da população
um obstáculo. Ela é atribuída a três fatores. O aqui está subestimado. Nós estamos
primeiro deles é o número insuficiente de re- com uma equipe que seria para aten-
cursos humanos. der no máximo oito mil pessoas, mas
temos mais de 15 mil. [E6]
O problema é a superlotação e a falta
de pessoal na equipe de enfermagem,
técnicos. [E1]
DISCUSSÃO
Acho que está faltando médico, está
faltando enfermeiro, técnico também Entende-se o território como o ambiente
está faltando, está faltando pessoal de trabalho do enfermeiro na RAPS, pois é nesse
como um todo, agente comunitário de espaço de organização da vida social que esse
saúde nós não temos. [E6] profissional pensa e age sobre o cuidado em
liberdade ao usuário de saúde mental, ainda
O segundo fator de sobrecarga de trabalho que sua relação com os fatores interferentes
é a falta de tempo para se reunir com a equipe e dificultem a condução das ações no processo
planejar os atendimentos que serão realizados. de trabalho(9).
A violência urbana interfere no processo
Se talvez a gente tivesse um tempo de trabalho dos enfermeiros, configurando uma
maior para poder organizar ações, dis- barreira de acesso territorial. O fechamento

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de algumas regiões dos territórios em virtude Esses aspectos estão diretamente relacio-
de tiroteios impede os usuários de acessar os nados ao sistema político nacional. No Brasil,
serviços e compromete algumas ações dos pro- a democracia formal é recente, a cidadania é
fissionais, como as visitas domiciliares e práticas incipiente e o sistema político partidário pouco
educativas, resultando numa descontinuidade apresenta engajamento para superação das
do cuidado em saúde mental(10). situações de vulnerabilidade. Os recursos finan-
A violência também é percebida nos con- ceiros e estruturais do Sistema Único de Saúde
flitos entre enfermeiros e usuários, uma vez que (SUS) são seletivos, se tornando uma política de
esses sentem que suas demandas de atenção compensação e de acesso limitado, direcionado
não são atendidas conforme esperado e/ou al- às classes sociais mais pobres da população.
mejado dentro do planejamento de trabalho do Assim, há uma segmentação da população em
enfermeiro. As demandas dos usuários da saúde pobres que recorrem somente ao serviço público
mental não se adaptam, por exemplo, às restri- do SUS e os que possuem planos de saúde ou
ções de horário de acolhimento. A dificuldade pagam os serviços privados diretamente, exis-
para os enfermeiros aumenta com os usuários tindo um subsídio governamental aos clientes
que transformam frustração em agressão, re- de planos de saúde através da renúncia fiscal do
produzindo as situações de violência com que imposto de renda(13).
convivem no território. Os trabalhadores dos serviços públicos de
Ao encontro disso, um estudo apontou que saúde do SUS, dessa maneira, seguem a política
o trabalho envolve questões relacionadas à co- de saúde compensatória implementada pelo Es-
municação e vivência da dinâmica interpessoal tado em resposta à vulnerabilidade presente nos
e intergrupal que, quando prejudicadas, gera territórios, ou seja, um SUS pobre para pobres.
enfraquecimento do vínculo entre usuário e Trabalhar nessa lógica produz um sentimento
profissional(11). de descontentamento nos enfermeiros, pois o
Os territórios pobres possuem uma popula- sucateamento da estrutura interfere na neces-
ção altamente exposta à violência autorrelatada sidade de privacidade e acessibilidade à estru-
e, nessas áreas, a exposição é ainda mais alta em tura física para realização do cuidado em saúde.
populações socioeconomicamente desfavorá- Este contesto leva o enfermeiro a readaptar o
veis, homens e negros, o que evidencia a ligação cuidado que haviam planejado realizar com o
entre a violência urbana e a pobreza(12). usuário, acabando por limitar a potencialidade
A violência a qual os usuários em condição do trabalho.
social de pobreza estão vulneráveis é um agra- Os profissionais do matriciamento tampou-
vante dos aspectos psíquicos, pois experenciar co têm apoio da gestão para o deslocamento
uma ou várias situações de violência desenvolve até as unidades básicas e de saúde da família
nos usuários sintomas sugestivos de trans- mais afastadas para realizar alguma atividade
tornos mentais. A partir disso, os enfermeiros compartilhada, como consulta e visita domiciliar
necessitam pensar o seu processo de trabalho conjunta. Como o tempo de duração da inter-
em uma perspectiva ampliada, considerando consulta se estende por todo o turno, se pode
as condições de vida dos usuários nos seus afirmar que os enfermeiros da atenção básica
territórios de convivência, rompendo, assim, utilizam os recursos do vale-transporte, recebi-
com o reducionismo que entende saúde como do no início do mês, para se deslocar até o local
ausência de doença(10). onde ocorre a interconsulta do apoio matricial,

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pois esse será o seu local momentâneo de traba- Assim, o foco da análise Dejouriana não
lho. No caso dos enfermeiros do matriciamento, aborda somente o prazer-sofrimento no tra-
se eles se deslocarem para as unidades básicas balho, mas na forma como o trabalhador parti-
estarão utilizando o valor do vale-transporte culariza as experiências (inclusive as de morte
oferecido pelo município somente no primeiro dos usuários) e utiliza estratégias defensivas
deslocamento, nos demais estariam utilizando individuais e coletivas para superar a situação(16).
os recursos do seu próprio salário. Assim, os A fila de espera é produto da dificuldade
enfermeiros do apoio matricial só se deslocam de acesso, seja pelas restrições no acolhimento
até as unidades que ficam a uma distância que ou pela dificuldade do usuário em se deslocar
pode ser percorrida caminhando. até a unidade de saúde. Existem limitações no
Desde a implementação do SUS, os muni- contexto do território, distrital e municipal, que
cípios foram os que mais expandiram os investi- exigem dos profissionais da Atenção Psicossocial
mentos em saúde, com redução proporcional do Especializada uma adaptação do acolhimento. O
nível federal, mas a esfera de governo municipal acolhimento dos usuários é realizado mediante
se encontra estrangulada em sua capacidade de delimitação de horário, após os casos serem
aumento de recursos financeiros, ainda mais em discutidos no matriciamento ou em até 30 dias
um contexto de crise financeira do capitalismo, após terem alta da UPA ou hospital. A dificuldade
pois o SUS não pode ser construído solitaria- do usuário em ir até a unidade de saúde, por falta
mente(14). de recursos para pagar a tarifa do transporte
As aquisições de tecnologias duras neces- público, acaba ocasionando a alta por abandono
sárias para o funcionamento dos serviços de saú- e, assim, retorna para a fila de discussão de caso
de da atenção secundária e terciária são maiores na interconsulta.
do que os investimentos na atenção primária O absenteísmo no serviço especializado
de saúde, logo, o cuidado em saúde mental no é, ao mesmo tempo, causa e consequência do
território tem um impacto menor no orçamento aumento da fila de espera: é causa porque os
dos governos. Deste modo, é possível atender às usuários do final da fila poderiam ocupar a vaga
necessidades sociais e de saúde da comunidade, dos faltosos, facilitando o acesso ao serviço
assegurando o acesso dos usuários aos serviços de saúde, e é consequência porque um longo
de saúde da RAPS, através de gestores públicos tempo de espera faz o usuário esquecer ou não
que direcionem os investimentos necessários necessitar do serviço especializado agendado.
para a promoção de um cuidado na atenção Na tentativa de amenizar as consequências
básica, onde os custos são menos onerosos, sem do absenteísmo, uma técnica testada em um
perder a qualidade no atendimento(15). ambulatório foi marcar uma quantidade maior
A desmotivação é um fator de sofrimento de usuários do que a quantidade de vagas exis-
no trabalho e um obstáculo quando o profis- tentes para atendimento naquele dia (método
sional não vislumbra possibilidades de uma conhecido como overbooking e já utilizado por
transformação na rotina que lhe perturba; entre- companhias aéreas e restaurantes no Brasil) e
tanto, segundo a abordagem Dejouriana(8), esse avisar os usuários através de um telefonema
sentimento pode ser um fator de impulso para a ou de mensagem de texto antes da data da
criatividade no trabalho, modificando elementos consulta(17).
estagnados, melhorando o produto do processo A técnica é exitosa na diminuição do nú-
de trabalho e, por fim, causando prazer. mero de vagas de atendimento não utilizadas,

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mas não é resolutivo para os usuários faltosos CONCLUSÃO


que retornarão para o fim da fila de espera.
Talvez essa possa ser uma experiência a ser A violência urbana, a condição social de
testada nos serviços de saúde e verificar se seus pobreza, o sucateamento da estrutura, as bar-
resultados repercutem na diminuição das filas reiras para mobilidade urbana, a desmotivação,
de espera. as filas de espera e a sobrecarga de trabalho são
A sobrecarga de trabalho interfere por fatores e obstáculos presentes no território dos
bloquear o enfermeiro em um ciclo de sofri- serviços de saúde que foram cenários do estudo
mento, pois o ciclo se inicia com o planeja- e que interferem nos modos de pensar e agir
mento insuficiente para as ações de cuidado, sobre o processo de trabalho do enfermeiro na
a sobrecarga de trabalho percebida aumenta saúde mental. E, consequentemente, interferem
pela desorganização para satisfazer a demanda negativamente na construção da RAPS.
e, assim, o ciclo se reinicia com a diminuição do Pode-se considerar que cada problema é
tempo para realizar o planejamento. causa ou consequência das outras dificuldades
Quando o trabalhador utilizou todas as também identificadas. Assim, fazer intervenções
formas que possuía de saber e de poder na or- direcionadas para somente um desses impasses
ganização do trabalho, quando não consegue não resulta em benefícios para a produção de
modificar de tarefa, quando existe a certeza vida e cuidado em saúde mental no território.
de que o grau de insatisfação não pode ser Igualmente, não é vantajoso para o cuidado em
reduzido, chancela-se o início do sofrimento. saúde mental tentar esconder os sofrimentos
Logo, o sofrimento inicia quando existe um causados por esses fatores, retrocedendo às po-
bloqueio na relação sujeito-organização do líticas públicas manicomiais; institucionalizando
trabalho(18). os sentimentos dos usuários e trabalhadores;
Um trabalho é considerado fatigante se produzindo atendimento somente em unidades
ele se opõe a diminuição da carga psíquica, se fechadas, como os pontos de atenção hospitalar
ele permite esta diminuição, é equilibrante. No e comunidades terapêuticas.
trabalho fragmentado, não existe espaço para O esforço criativo dos enfermeiros para
atividade fantasmática (avaliação instintiva da produzir um cuidado humanizado em saúde
realidade) e, assim, as capacidades imaginárias mental no território, e buscar o fortalecimento
não são utilizadas com o objetivo de contribuir da RAPS, deve provir da desestagnação para o
para a formação de sentimento de prazer e o enfrentamento de uma realidade hostil, caracte-
meio de descarga psíquica é bloqueado. Ocor- rizando esse movimento como uma verdadeira
re, assim, a acumulação da energia psíquica, batalha no sentido de superar os percalços e
convertendo-se em fonte de tensão e de sofri- obter uma melhoria no atendimento produzido
mento, sendo que, no trabalho fatigante, a carga em rede no território.
psíquica pode crescer até surgirem a fadiga, a Como limitação do estudo destaca-se a im-
falta de energia e a patologia(19). possibilidade de incluir os demais componentes
Os enfermeiros percebem seu trabalho da RAPS no estudo (Atenção Hospitalar, Atenção
como fatigante e apontam como causa a pre- Residencial de Caráter Transitório, Estratégias de
sença de uma população, na área de abrangên- Desinstitucionalização e Reabilitação Psicosso-
cia, maior do que a equipe tem condições de cial) em razão da ausência desses serviços no DS.
oferecer cuidado. Sugere-se a realização de pesquisas que te-
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nham como temática o processo de trabalho das 6. Cardano M. Manual de pesquisa qualitativa: a
equipes de enfermagem na saúde mental e que contribuição da teoria da argumentação. Petró-
utilizem a triangulação dos dados. A observação polis: Vozes; 2017.
7. Marx K. O capital: crítica da economia política -
participante combinada com outras técnicas
Livro 1. São Paulo: Boitempo Editorial; 2013.
de pesquisa, como a entrevista, por exemplo, 8. Dejours C, Jayet C, Abdoucheli E. Psicodinâmica
pode tornar o diálogo e o aprofundamento dos do trabalho: contribuições da escola Dejouriana
resultados sempre mais ricos, fazendo novas à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho.
descobertas sobre o fenômeno estudado. São Paulo: Atlas; 1993.
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cossocial na Estratégia Saúde da Família: com a trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo
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Porto Alegre (RS): Programa de Pós-graduação autores declaram para os devidos fins que são de suas
em Enfermagem, Universidade Federal do Rio responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os
Grande do Sul; 2013. aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que
16. Santos JL, Mulato SC, Bueno SMV, Robazzi MLCC. as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de
Feelings of nurses faced with death: pleasure and qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas
suffering from the perspective of psychodyna- e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer
mics of Dejours. Invest Educ Enferm [Internet]. participação solidária em eventuais imbróglios sobre a
2016 [cited 2018 Feb 08]; 34(3):511-517. Avai- matéria em apreço. Todos os autores declaram que não
lable from: http://doi.org/10.17533/udea.iee. possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira
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Using overbooking to manage no-shows in an digitalmente por todos os autores conforme recomendação
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