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ANDARILHOS DAS FRONTEIRAS:

A RESISTÊNCIA E A NORMATIVIDADE NOS DISCURSOS LGBT+

“Sempre, e sempre de
modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou
apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles
possam alcançar outras margens... A ponte reúne enquanto
passagem que atravessa...”
(Heidegger)

Resumo: A pesquisa de que trata este artigo aborda enunciados LGBT+ acerca da
discriminação que assume a forma de LGBT+fobia. Realizada no ano de 2016, ela contou
com a colaboração de dezesseis participantes com idade entre 19 e 36 anos e residentes em
Porto Alegre, Gravataí, Canoas ou Alvorada, no Estado do Rio Grande do Sul. Ela intenta
compreender os discursos, evidenciando efeitos de sentidos relacionados à LGBT+fobia e
os modos como tais sentidos se vinculam, ou não, a movimentos de resistência à
heteronorma. Na etapa de produção de dados, utilizamos questionários virtuais, através da
plataforma gratuita Survey Monkey, constituindo um trabalho qualitativo a partir das
perspectivas de Menga Lüdke, Marli André e Maria Cecília de Souza Minayo. A
investigação justifica-se pela busca de entendimento das possibilidades do dizer de pessoas
LGBT+, apreendendo como o silenciamento, a interdição do dizer e a transgressão se
materializam de modo tenso nos discursos. Jonathan Ned Katz, Júlio Assis Simões, Regina
Facchini e João Silvério Trevisan convocam a pensar sobre a história da hetero e da
homossexualidade. Michel Pêcheux e Eni Orlandi são as referências centrais para
problematizar jogos de poder presentes nos jogos de linguagem, possibilitando uma
aproximação menos ingênua dos discursos. Dois efeitos de sentidos foram identificados –
ES de luta e ES de violência, inscrevendo-se em duas formações discursivas antagônicas -
FD da Transgressão e FD da Normatividade, que, por sua vez, materializam a Formação
Ideológica da Heteronormatividade. Tais descobertas demonstram que sujeitos e sentidos
se constituem na errância, no deslizamento, no intervalo. Mesmo que por vezes
silenciados, LGBTs+ se constituem no intervalo entre o silêncio decorrente de palavras e
gestos LGBT+fóbicos de outros e a transgressão disruptiva.
Palavras-chave: Sexualidade; LGBT+; Análise de Discurso; Michel Pêcheux.

GESTO NOVO, NOVO OLHAR

A Análise de Discurso (doravante AD) fundada por Michel Pêcheux se coloca


como um convite constante ao desafio. É preciso retomar, revisar, repensar, reorganizar
entendimentos e conceitos, movimentando-se continuamente entre a Linguística, o
Materialismo Histórico e a Psicanálise – tomados desde o olhar inquieto e provocador de
Pêcheux. A preocupação do filosofo francês era o desenvolvimento de uma teoria
materialista do discurso comprometida com a compreensão do discurso na sua relação
dialética com as materialidades históricas. As aproximações-transformações propostas por
Pêcheux revelam a natureza caleidoscópica dessa disciplina de interpretação, que demanda
movimento, deslocamento, multiplicidade, para manter-se viva e significativa. Neste
sentido, Ernst-Pereira e Mutti (2011, p. 824), ao tratarem da questão do analista de discurso
em formação, apontam que:
[...] a obra e seu autor, fundador de um campo do saber, mantém-se viva à
medida que pode ser alvo de apropriação em novas enunciações de
pesquisadores, suportando inclusive retomadas de sentido contestatório, assim
como o próprio autor demonstrou em sua metarreflexão.

A movência parece estar na essência da AD, crescendo na medida em que se


permite repensares, retrabalhos, reolhares. Aos analistas de discurso cabe o compromisso
de contribuírem com o crescimento desta disciplina de interpretação, retomando o escopo
da teoria de Pêcheux e agregando contribuições à sua história (ERNEST-PEREIRA;
MUTTI, 2011). Movidos por esta provocação, retomamos um corpus analítico
anteriormente analisado, propondo-nos o desafio de nos reaproximarmos dele com olhar
outro. Tal corpus foi produzido e analisado discursivamente pela primeira vez como parte
de atividades de pesquisa desenvolvidas no ano de 2016.
O objetivo da pesquisa, naquele momento, era o de compreender de que forma
sujeitos LGBT+ produzem sentidos acerca da LGBT+fobia e da militância dessa
comunidade. Contamos com dezesseis interlocutores, que residiam em Porto Alegre e
Região Metropolitana (Canoas, Gravataí e Alvorada), no Estado do Rio Grande do Sul, e
apresentavam faixa etária de 19 a 36 anos. Todos os participantes eram sujeitos LGBT+ 1.
Para este escrito, focamos nosso olhar sobre a questão da LGBT+fobia. No trabalho com o
corpus, composto por 105 enunciados, fomos surpreendidos por duas formações
discursivas – FD da Normatividade e FD da Transgressão, inscritas em uma Formação
Ideológica da Heteronormatividade. Na primeira FD, o efeito de sentido encontrado
demonstrou a consequência subjugadora da heteronormatividade, que censura o dizer
LGBT+. Por outro lado, na segunda FD, o efeito de sentido encontrado demonstrou o
movimento de resistência e ruptura com o controle da norma. Percebemos, neste trabalho,
que, apesar dos avanços e da história de luta da comunidade LGBT+ no Brasil e no mundo,
os discursos dessa comunidade ainda sofrem a ação da censura, do controle da norma, do
apagamento. Contudo, mesmo que o sujeito LGBT+ insista em enunciar do lugar da
heteronormatividade, ele também resiste, criando rupturas através dela, para poder dizer de

1
Diversos são os termos que se tem atribuído à comunidade LGBT, recentemente outras letras têm surgido a
fim de representar adequadamente todos e todas que compõem este grupo. Aqui, utilizarei o LGBT+ como
forma de referir pessoas não-heterossexuais.
si mesmo, sob um viés de valorização e respeito de formas não normativas de viver a
sexualidade.

O TRABALHO DO FILÓSOFO PÊCHEUX

Desde o objetivo de desenvolver uma teoria materialista do discurso ou dos


sentidos2, Michel Pêcheux enveredou por uma jornada de reviramentos e desacomodações
conceituais. Jornada essa encarada com tamanho comprometimento que levou o
pesquisador a criticar a própria teoria de forma sistemática, fazendo-a passar por diferentes
etapas, na medida em que enxergava a necessidade de mudança teórica do que havia
postulado3. A AD surge em forte momento do pensamento estruturalista nas práticas
científicas. Ferdinand de Saussure, ao realizar o corte epistemológico que separou língua e
fala, estrutura a Linguística, reservando à primeira o lugar de destaque como objeto de
análise. A língua, desde o viés saussuriano, é apartada de todas as dimensões externas a
ela, retirando sua relação com o social e o sujeito, sendo entendida como “um sistema
abstrato de regras” (INDURSKY, 1998).
Passando por Chomsky e por Labov, a Linguística permanece trabalhando com a
língua assepsiada, apesar da provocação de Labov acerca da homogeneidade da língua e do
falante/ouvinte ideais. Com Benveniste um elemento de maior impacto será aproximado da
Linguística: ele resgata a subjetividade, apontando que o locutor se apropria da língua,
fundando a subjetividade ao dizer “Eu”, o que instaura um “Tu” para o qual se dirige. A
posição e a apropriação da língua variam entre interlocutores, que trocam de posições entre
Eu-Tu. A partir dessa intervenção de Benveniste, a língua passa a fazer menção ao externo
a ela. Nos anos 60, ocorre a superação do limite da frase, o interesse científico passa a ser
sobre o texto, movimento que abre a possibilidade de entendimento do texto desde uma
perspectiva mais complexa do que um agregado de frases, como postulava a Linguística.
Enquanto a Linguística Textual e a Semiótica focam o texto como objeto de análise, a AD
volta seus olhares para o discurso, atribuindo conceito específico para o texto, tomado
2
Cf. LAGAZZI, Suzy. Em torno da prática discursiva materialista. Organon, Porto Alegre, v. 30, n. 59, p.
85-100, jul/dez. 2015. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/57217/35601; LAGAZZI,
Suzy. Linha de Passe: a materialidade significante em análise. RUA [online] – Revista do Laboratório de
Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade, n. 16, v. 2, 2010. Disponível em:
http://www.labeurb.unicamp.br/rua.
3
A este respeito, cf. MALDIDIER, Denise. A inquietação do Discurso – (Re)ler Michel Pêcheux hoje.
Campinas: Pontes, 2003; ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas:
Pontes, 2012; OLIVEIRA, G.A.; NOGUEIRA, L. Encontros na Análise de Discurso: Efeitos de Sentidos
Entre Continentes. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2019.
como unidade aberta e pragmática, assumindo o papel de materialidade através da qual se
atinge a discursividade. Tal mudança fez do discurso um objeto conceitual a ser constituído
no escopo teórico da AD.
As provocações da Análise do Discurso à Linguística são mais disruptivas do que
aquelas feitas pela Linguística Textual e a Semiótica, já que propõem reviramentos ao
conceito de língua e ao binômio língua/fala. Se para a Linguística a língua é fechada em si
mesmo e deve se apartar do exterior para ser objeto de estudo, para a teoria de Pêcheux,
essa divisão é inconcebível. A língua é uma materialidade não transparente, opaca, que não
contém em si mesma os sentidos – é na relação com a história que os sentidos se
produzem. Corporifica-se, então, para a Análise de Discurso uma série de conceitos
chaves, ou, como diria Ferreira (2003), a caixa de ferramentas da AD, indispensáveis para
a produção de conhecimento a partir dessa teoria-metodologia de Michel Pêcheux. Sujeito,
discurso, história, ideologia e sentido são elementos nodais do trabalho pecheuxtiano.
O sujeito de Pêcheux, ao contrário do sujeito cônscio e pleno de Benveniste, é
fragmentado, assujeitado e afetado pela ideologia, mesmo que acredite ser senhor dos
sentidos e origem do dizer (crenças essas que, efeitos da ideologia, são indispensáveis para
a possibilidade do dizer). Na AAD69, Pêcheux coloca o sujeito como não-empírico, não se
tratando apenas de um organismo humano individual. Em 1975, Pêcheux enuncia a
proposta da AD como uma teoria não-subjetiva da subjetividade, o que significa dizer que
a subjetividade da análise de discurso não se centra no sujeito consciente – ela reconhece
na contradição e na incompletude o lugar de existência dele. O sujeito pecheuxtiano
[...] não está na origem do dizer, pois é duplamente afetado. Pessoalmente e
socialmente. Na constituição de sua psique, este sujeito é dotado de inconsciente.
E, em sua constituição social, ele é interpelado pela ideologia. É a partir desse
laço entre inconsciente e ideologia que o sujeito da Análise de Discurso se
constitui. É sob efeito dessa articulação que o sujeito da AD produz seu discurso.
(INDURSKY, 2008, p. 10-11)

Dito de outra forma, apesar da consciência do sujeito, afetações internas (psíquicas,


inconscientes) e externas (ideologia) afetam a forma com que produz o seu dizer. Estas
afetações não controladas por ele demonstram a sua impossibilidade de domínio absoluto
sobre os sentidos que acredita produzir.
A natureza dividida deste sujeito aponta também para a não homogeneidade do
discurso. O discurso, como conceituou Pêcheux (1993, p. 82), “é efeito de sentido entre
interlocutores”, interlocutores não-empíricos, sujeitos historicamente determinados. O
discurso é um processo social que tem na língua a sua materialidade. É nele que podemos
observar “[...] as relações entre ideologia e língua, bem como os efeitos do jogo da língua
na história e os efeitos desta na língua” (FERREIRA, 2003, p. 193). Não existindo de
forma isolada, o discurso é margeado por outros domínios de saber chamados de
Formações Discursivas (FD). Este conceito Pêcheux toma de Foucault, que diz se
identificar uma FD no momento em que
[...] se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação,
os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma
ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) [...]
(FOUCAULT, 2008, p. 43).

Será o complexo das formações discursivas que caracterizam o interdiscurso, que


funciona, para o discurso, como memória do dizer (INDURSKY, 1998). É do interior da
formação discursiva que os sentidos serão atribuídos. O sujeito submete-se ao que pode e
deve ser dito na FD a que se filia e a partir disso significa. É a especificidade deste
funcionamento que permite afirmar que os sentidos sempre podem ser outros. É o lugar de
inscrição dos sujeitos que define as possibilidades de sentido, é através da filiação a esta ou
àquela formação discursiva, inscrição nesta ou naquela posição ideológica, que se faz
sujeito do discurso.
Compreender a discursividade requer reconhecer este jogo entre ideologia-língua-
história, o que leva à necessidade de conhecer as condições de produção em que
determinado discurso é produzido. “Onde?”, “quando?” e “por quem?” são questão sócio-
históricas que afetam diretamente a possibilidade de apreensão dos sentidos de um discurso
– não é possível fazer esta análise apenas limitando-se aos dados linguísticos do
intradiscurso, é preciso recorrer ao seu contexto de produção para que se possa vislumbrar
suas possibilidades de significar. A importância das condições de produção é ressaltada
pelo próprio Pêcheux (1993, p. 78) quando adverte que:

[...] os fenômenos linguísticos de dimensão superior à frase podem


efetivamente ser concebidos como um funcionamento, mas com a condição de
acrescentar imediatamente que este funcionamento não é integralmente
linguístico [...] e que não podemos defini-lo senão em referência ao mecanismo
de colocação dos protagonistas e dos objetos de discurso, mecanismos que
chamamos de “condições de produção” do discurso.

A importância das condições de produção se vincula ao status da história para a


AD. Teoria vinculada ao materialismo histórico, reconhece um real da história, produzido
pelo sujeito sem que seja para ele transparente. A história, pois, não é considerada como
fator externo à língua. Ela é constituinte, a envolve e interpenetra, é significada por ela e a
significa. Não se faz o movimento analítico da história para o texto, mas se considera o
texto como materialidade linguístico-histórica. Sem dúvida, ocorrem relações entre a
história “lá fora” e historicidade do texto (a trama dos sentidos nele), contudo, ela não é
automática, literal, transparente, biunívoca. A história é história porque reclama sentidos.
Nesses termos, falar em determinação histórica dos sujeitos e dos sentidos não corresponde
a qualquer tipo de condenação a condicionamentos dos quais eles se tornariam reféns ad
eternum, mas aponta para um contínuo processo de atualização de memórias: “Os sentidos
e os sujeitos poderiam ser sujeitos e sentidos quaisquer, mas não são. Entre o possível e o
historicamente determinado é que trabalha a análise de discurso” (ORLANDI, 2001, p.
103).
Na Análise de Discurso, também a ideologia sofre uma transformação conceitual.
Trata-se da resultante da interação da língua com a história, no processo de constituição
dos sujeitos e dos sentidos. Isso se atesta no fato de que não há sentido sem interpretação, o
homem é provocado a buscar significados diante de qualquer objeto simbólico, a buscar
entender aquilo que significa. Pelo funcionamento do processo ideológico, este sentido
apreendido parece estar sempre lá, sendo acessado/compreendido por aquele que dele se
aproxima da mesma forma que o será por todos que dele se aproximarem. O
funcionamento da ideologia gera a sensação de evidência de sentidos (sempre óbvios) e de
que os sujeitos são sempre origem do que dizem. Ilusões advindas de dois esquecimentos
fundantes. O esquecimento número 1 provoca a ilusão de que somos a origem daquilo que
dissemos, enquanto o esquecimento número 2 nos faz acreditar que aquilo que dissemos é
enunciado a partir de uma relação direta entre palavra e mundo, gerando a impressão de
que não poderia ter sido dito de outra forma (PÊCHEUX, 2014). Em Semântica e
Discurso, Pêcheux afirma que “[...] a instância ideológica existe sob a forma de formações
ideológicas [...]” (2014, p. 132). São a estas formações ideológicas que as formações
discursivas se vinculam, permitindo assim o assujeitamento à determinada ideologia.
No batimento destes conceitos com o corpus de análise, em uma relação de
provocação e transformação mútua, o analista de discurso desenvolve seu fazer. O corpus
analisado provoca diretamente nossa abordagem teórica, da mesma forma que a teoria
serve de diapasão analítico. No caso deste trabalho, o corpus provocou a necessidade de
buscar a questão do silêncio assim como é trabalhado por Orlandi (1993). Orlandi aponta
que o silêncio é uma das formas possíveis de estar no sentido, de significar:
A linguagem, por seu lado, já é categorização do silêncio. É movimento
periférico, ruído. [...] A linguagem é conjugação significante da existência e é
produzida pelo homem, para domesticar a significação. A fala divide o silêncio.
Organiza-o. O silêncio é disperso, e a fala é voltada para a unicidade e as
entidades discretas. Formas. Segmentos visíveis e funcionais que tornam a
significação calculável. (ORLANDI, 1993, p. 34).

Mais ainda, o silêncio é “horizonte e iminência do sentido” (ORLANDI, 1993, p.


13). Difere ainda o silêncio – como lugar de possibilidades dos sentidos e respiração das
palavras – e o silenciamento – a política do silêncio – que age no sentido de coibir a
possibilidade do dizer, censurando o sujeito. É esta dimensão do silêncio que ressoa neste
trabalho. O silenciamento de pessoas LGBT+ pela heteronormatividade, efetivado de tal
forma que cala a experiência vivida destes sujeitos no momento em que são convidados a
falar de sua realidade. Apesar deste efeito da heteronormatividade, é preciso considerar que
“[...] o silêncio pode ser considerado tanto como parte da retórica da dominação (a da
opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência)”
(ORLANDI, 1993, p. 31). O que aponta para a natureza dividida e contraditória do sujeito,
que se constitui na relação de forças entre sedimentação e renovação do dizer, ou ainda,
entre a paráfrase e a polissemia. A partir desta concepção, é possível entender as relações
entre o silenciamento e o silêncio de resistência dos sujeitos LGBT+ que participaram
desta pesquisa.

O QUE JÁ FOI ECOA SEMPRE

Apesar de afirmações do senso-comum de que a homossexualidade eclodiu nos


últimos anos, os trabalhos de Júlio Assis Simões e Regina Facchini (2009), Jonathan Ned
Katz (1996) e João Silvério Trevisan (2000) comprovam que crenças deste tipo são
falaciosas. Poder-se-ia afirmar, ainda, que parte do próprio trabalho ideológico da
heteronormatividade inclui o apagamento da história de pessoas LGBT+, realizando,
assim, a manutenção da compulsoriedade da heterossexualidade. Essa normatividade é
conceituada por Britzman (1995, p. 79) como “a obsessão com a sexualidade normalizante,
através de discursos que descrevem a situação homossexual como desviante”. O
movimento de apagamento das histórias e vivencias de pessoas não-heterossexuais na
história do Brasil e do mundo aponta para o movimento de silenciamento apresentado por
Orlandi, que aqui se manifesta na coibição do deslizar dos sujeitos pelas formações
discursivas – há uma interrupção na história da possibilidade do dizer. Através da
dominação dos sentidos, a censura interdita a inscrição do sujeito a determinadas
formações discursivas, a identidade do sujeito é imediatamente afetada enquanto sujeito-
do-discurso, pois, “[...] a identidade resulta de processos de identificação segundo os quais
o sujeito deve-se inscrever em uma (e não em outra) formação discursiva para que suas
palavras tenham sentido” (ORLANDI, 1993, p. 78).
Katz, de uma forma provocante, afirma que a heterossexualidade foi inventada,
resgatando, em seu livro, o momento histórico em que o termo heterossexual começa a ser
utilizado. Evidencia-se um acontecimento discursivo, pois até o momento não havia uma
forma especifica nem tampouco um conceito delimitado para aqueles e aquelas que se
envolviam afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo. Katz aponta que o primeiro
uso da palavra heterossexual, nos Estados Unidos, é em 1892, em um artigo de James G.
Kiernan, publicado no jornal de medicina de Chicago (KATZ, 1993). Neste momento, o
uso do termo não se referia ao conceito atual dicionarizado de heterossexual – era uma
perversão sexual em que os sujeitos podiam periodicamente apresentar desejos por ambos
os sexos, como também eram acusados de “desvio reprodutivo”, ou seja, buscavam prazer
sexual sem o intento de ter filhos. Neste artigo de Kiernan, aparece também o termo
homossexual, aqui descrito como um sujeito em plena inversão mental, fazendo-o
organizar-se psiquicamente de forma oposta ao seu sexo biológico. A perspectiva de
Kiernan trazia a tradição cultural do ideal reprodutivo da saúde sexual.
Entretanto, a alcunha dos termos hetero e homossexual é do escritor austro-húngaro
Karl M. Kertbeny (1824-1882), que tinha contato com Karl H. Ulrichs, jurista e escritor
alemão, que pode ser considerado como um dos primeiros militantes pelos direitos da livre
sexualidade. Ulrichs desenvolveu um longo trabalho neste campo, a partir de 1864,
preocupando-se em descrever os homens que tinham impulso amoroso feminino (ou seja,
amavam outros homens), a quem chamava de Uranier, como também as mulheres que
tinham impulso amoroso masculino (que amavam outras mulheres) a quem chamava de
Urnide. Uranier e urnide se contrapunham ao Dionäe ou Dioning, os “homens de
verdade”. Apesar dessa contraposição de “homens de verdade”, Ulrichs identificava-se
como Uranier ou uraniano, e desenvolvia seu trabalho defendendo a naturalidade e
legitimidade do amor de um Uranier ou de uma Urnide. Ele defendia o fim das leis que
criminalizam a homossexualidade e viajou pela Alemanha com esta pauta, encontrando
muita resistência. Tanto ele quando Kertbeny defendiam direitos dos homossexuais.
Kertbeny publicou, em 1869, um folheto anônimo contra a adoção da lei da “fornicação
antinatural” em toda a Alemanha, onde utilizou pela primeira vez o termo homosexuality
(23 anos antes da aparição do termo nos Estados Unidos). O termo cunhado por Ulrichs
acaba caindo em desuso, permanecendo a alcunha de Kertbeny.
A sexologia nascente do século XIX se apodera dos termos de Ulrichs para tratar da
questão da orientação sexual. O psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing (1840-1902)
passa a conceituar o homossexual e o heterossexual em sua obra Psychopathia Sexualis
(1886). É a partir da perspectiva de Krafft-Ebing de considerar a única sexualidade sadia
aquela que se volta para a reprodução, que Kiernan se fundamenta, inclusive apontando
erroneamente ter sido o psiquiatra alemão o cunhador dos termos homo e heterossexual.
Desta forma, para ele, ambas as manifestações sexuais são consideradas patologias, pois
regidas apenas pela lascívia. Será apenas no trabalho de Freud (1856-1939) que o
heterossexual se constituirá como uma pulsão positiva, natural e boa. O psicanalista rompe
com a ideia que atrelava a saúde da sexualidade ao instinto reprodutor e a vincula à busca
pelo prazer, causando uma reviravolta conceitual profunda nas perspectivas de
sexualidade. Katz afirma, de forma provocativa e contundente, que o trabalho de Freud
resulta na construção de uma identidade heterossexual, pois sua perspectiva psicanalítica
não está focada no ato sexual – que era o foco de análise até então – e sim no pensamento e
no desejo.

Freud usa heterossexual para referir-se a uma emoção, a vários impulsos,


instintos ou desejos eróticos e a um tipo de amor. Seu heterossexual também se
refere a um tipo de atividade e pessoa. Esses usos tendem a fazer o sentimento,
não o ato, definir o heterossexual. Isso contrasta com o antigo modelo
reprodutivo que se concentrava nos atos. No uso moderno de Freud, o
sentimento heteros define ser hetero, se a pessoa praticar ou não atos
heterossexuais. Freud promove a criação de uma identidade heterossexual. Esse
médico também ajudou a formar a nossa crença na existência de algo unitário e
monolítico com uma vida e um poder determinante próprios: a
heterossexualidade. (KATZ, 1996, p. 75) [grifos do autor]

Até 1920 a heterossexualidade sadia e natural de Freud seria disseminada como


ideia corrente, tornando-se uma marca invisível na cultura ocidental, na medida em que o
padrão reprodutivo de sexualidade do século XIX é derrubado. O trabalho de Havelock
Ellis também é destacado por Katz como importante para essa derrubada e pela
normatização. Apesar de reconhecer o efeito freudiano na questão, Simões e Facchini
(2009, p. 39) apontam que:

Seria talvez um exagero afirmar que a sexologia do século XIX tenha “criado” os
homossexuais. Afinal, os médicos estavam tentando compreender um fenômeno
que se descortinava diante de seus olhos, não só nos consultórios e tribunais, mas
também nas ruas, teatros e cafés, e cuja existência era bem anterior aos seus
esforços de classificação e intervenção.

Concordamos parcialmente com a afirmação dos autores. É coerente apontar que


não foi a preocupação da medicina com as formas de experenciar o prazer que levou ao
envolvimento entre pessoas do mesmo sexo. Entretanto, é preciso reconhecer, desde os
pressupostos da Análise de Discurso, que a criação dos termos heterossexual e
homossexual, e a sua delimitação conceitual, resulta em um acontecimento discursivo – ou
seja, gera uma ruptura na memória discursiva, no repetível (INDURSKY, 1998, p. 18). A
língua materializou um escopo de sentidos e de possibilidades do dizer a partir da
historicidade desses conceitos. Outro momento que se destaca na história LGBT+ como
um acontecimento discursivo, que rompe e abre outra fonte de possibilidades de dizer, é a
revolta de Stonewall Inn, em 28 de junho de 1969.
Na década de 40, núcleos de ativismo homossexual começam a surgir nos Estados
Unidos, dando continuidade ao movimento encetado na Europa de luta por direitos. Estes
grupos de gays e lésbicas desejavam construir uma imagem respeitável para os
homossexuais, buscavam a integração social plena. Este estilo de ativismo começa a se
transformar em 1950-1960, incorporando abordagens mais radicais, impulsionadas pela
“geração beat” e pelo movimento de contracultura hippie. Tais movimentos são uma
resposta à repressão cultural da sociedade norte americana da época, profundamente
conservadora em termos de Guerra Fria e do macarthismo (SIMÕES; FACCHINI, 2006).
A incorporação de todas as formas de expressão cultural capazes de trincar a ordem
dominante acaba gerando rachaduras nos paradigmas de sexualidade. É neste contexto de
efervescente contestação que acontece a Revolta de Stonewall Inn.
Stonewall Inn era um bar localizado na Christopher Street, em Greenwich Village
em Nova York. Nele se reuniam gays, lésbicas, travestis, brancos, negros e latinos. O bar
não possuía licença para comercializar álcool, era motivo de suspeitas de ligação com a
máfia e realizava shows de go-go boys com poucas roupas (SIMÕES; FACCHINI, 2009),
tornando-se alvo interessante para a ação policial que estava sob o regime de “limpeza da
cidade”. Nessa época, nos EUA, diversas propagandas e documentários atentavam a
população para os riscos da homossexualidade, advertindo e ameaçando a todos e a todas
que pudessem se deixar cair neste estilo de vida anormal e destrutivo. Importante destacar
que os frequentadores do bar eram pessoas que, de uma forma ou de outra, já haviam
atingido a marginalidade: eram jovens que haviam sido expulsos de casa por sua
homossexualidade, garotos e garotas de rua e travestis latinas e negras. A polícia
sistematicamente invadia e fechava o estabelecimento, revistando homens e mulheres,
prendendo travestis e drag queens. Por lei, era preciso estar vestido com, no mínimo, três
peças de roupas de seu gênero. Logo, travestis e drag queens sempre corriam o risco de
serem presas.
No dia 28 de junho de 1969, a polícia invade o Stonewall Inn, revistando e
prendendo pessoas presentes. Há, contudo, uma explosiva resposta contra a ação policial.
No dia seguinte, pichações com o escrito “gay power” marcavam os muros da Christopher
Street. Esta data passa a ser considerada o “Dia do Orgulho Gay e Lésbico”, nome que
depois será repaginado no desejo de ampliar a sua representatividade. É importante
considerar que

[...] não foi um acontecimento espetacular isolado, mas sinalizava uma mudança
mais geral nas vivências de boa parte das populações de homens e mulheres
homossexuais, no sentido de tornar visível e motivo de orgulho que até então
tinha sido fonte de vergonha e perturbação e deveria ser mantido na
clandestinidade. “O amor que não ousava dizer seu nome” tinha saído às ruas,
criara sua própria rede de trocas, encontros e solidariedade nas novas identidades
de gays e lésbicas, referidas à singularidade de seus desejos sexuais. Palavras de
ordem como “assumir-se” ou “sair do armário” foram postas em prática, com a
intenção de recriar um novo modo de existência em função da especificidade do
desejo sexual vilipendiado, como abrigo, resistência e combate à hostilidade e à
opressão. (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 45).

A Revolta de Stonewall gerou um espírito de empoderamento das identidades


homossexuais. Passa a existir uma possibilidade de ser e estar na sociedade: a luta. Surge
uma nova perspectiva de militância: a do enfrentamento de toda a lógica e estruturação
cultural acerca das sexualidades e da vivência erótica que “não dizia respeito a uma
preferência ou orientação sexual determinada, mas equivalia, antes, a um modo de vida
eroticamente subversivo” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 45). O ativismo LGBT, a partir
deste ponto, não enseja mais ser integrado à sociedade da forma como ela se apresenta, ele
deseja romper com a cultura vigente, afrontar as tradições. Com o passar dos anos, este
espírito contestador arrefece – muito em razão da institucionalização dos movimentos –,
permanecendo a lógica de luta pelos direitos.

OS ECOS NO AGORA
Os participantes desta pesquisa são brasileiros e habitam neste país, estando
afetados pela nossa cultura e pelos nossos traços identitários. Como pessoas LGBT+, se
encontram provocados a uma ruptura, pois a não-heterossexualidade ainda não é
considerada bem-vinda por uma parcela expressiva de brasileiros. No contexto atual do
país, de uma forte crise política e uma intensa onda conservadora, são sujeitos que
produzem sentidos a partir de uma posição de risco e de incerteza do amanhã. Uma tal
posição, todavia, pode não ser percebida. Se, por um lado, houve nos últimos anos maior
celebração da cultura LGBT+, desenvolvendo-se todo um nicho de mercado 4 – cultural e
financeiro – para gays, lésbicas, transexuais e bissexuais, por outro lado, devido à política
preconceituosa que se constituiu nos últimos anos, pautas legítimas dos direitos humanos
foram vilipendiadas5.
Ser LGBT+, na realidade brasileira, é ser e estar em uma realidade fluida, instável e
perigosa. Apesar da aprovação da LGBTfobia como crime 6, a subnotificação dos casos de
crime contra LGBT+ demonstra resistência das instituições governamentais de tomar
responsabilidade acerca da violência contra este grupo social 7. A importância de considerar
as condições de produção é que são elas que dão margem ao que é possível ser dito, que
mobilizam as possibilidades do dizer a partir do que já foi dito, a partir da memória
discursiva ou, em outras palavras, do interdiscurso. Como sublinha Orlandi (2012, p. 32):
“O fato de que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, é
fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua relação com os
sujeitos e com a ideologia”. Portanto, a consideração fundamental do interdiscurso
possibilita remeter o dizer dos respondentes a uma filiação de dizeres, a uma memória,
identificando-o em sua historicidade e, por extensão, a compromissos políticos e
ideológicos.
A análise das relações entre interdiscurso e intradiscurso autoriza dizer que, nos
enunciados praticados pelas pessoas LGBT+ que colaboraram com essa investigação, com
muita dificuldade ecoavam sentidos de libertação sobre ser LGBT+ no Brasil: afinal, o

4
Em 2016 o potencial de compra LGBT no Brasil foi estimado em R$ 419 bilhões, equivalente a 10% do
PIB. Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/potencial-de-compras-lgbt-estimado-em-419-
bilhoes-no-brasil-15785227. Acesso: 20/09/2017.
5
Cf. https://exame.com/brasil/sem-diretrizes-claras-no-governo-bolsonaro-lgbt-temem-violencia-e-descaso/.
Acesso: 20/09/2017.
6
Crimes por LGBTQIfobia estão definidos pela Lei do Racismo (Lei 7.716/1989). Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010. Acesso: 20/09/2017.
7
CF https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/09/19/levantamento-mostra-subnotificacao-de-casos-
de-homofobia-e-transfobia.ghtml. Acesso: 20/09/2017.
contexto é hostil a esse grupo social. Ressoam já-ditos acerca de gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transexuais, e os discursos dos participantes estão vinculados a esses dizeres, a
essa memória já enunciada, que estruturou sentidos à forma de ser e estar homossexual na
sociedade brasileira. Tais discursos agem sobre os sujeitos, provocando sedimentações ou
rupturas de sentido, podendo os dizeres serem compreendidos como
[...] efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que
estão de alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o
analista de discurso tem de apreender. São pistas que ele aprende a seguir para
compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua
exterioridade, suas condições de produção. Esses sentidos têm a ver com o que é
dito ali, mas também em outros lugares, assim como com o que não é dito, e com
o que poderia ser dito e não foi. Dessa forma, as margens do dizer [...] também
fazem parte dele. (ORLANDI, 2012, p. 30).

Dessa forma, o contexto histórico é um fator que não pode ser ignorado, dada a
importância de sua influência sobre a produção dos enunciados em função mesmo de os
dizeres não corresponderem apenas a mensagens decodificáveis.

ANDANDO NAS FRONTEIRAS

O trabalho do analista de discurso, desde os modos de fazer propostos por Pêcheux,


é artesanal. Para chegar ao fio do discurso, é preciso delicado trabalho de observação,
indagação e trato do material coletado. A AD se traduz como “[...] um tipo de análise que
mostra a relação entre as marcas linguísticas, indicadas no intradiscurso pelo analista, e os
sentidos interdiscursivos que são imateriais, da ordem da memória” (ERNST-PEREIRA;
MUTTI, 2011, p. 819). Cabe ao analista, portanto, mostrar, na materialidade da
linguagem, de natureza verbal ou não verbal, o funcionamento do discurso e, ademais,
evidenciar na análise o modo como as materialidades registram as imbricações do social na
linguagem. Uma das dificuldades que enfrenta diz respeito, especificamente, à constituição
do corpus discursivo a partir do recorte operado no corpus empírico e, por conseguinte, a
organização e aplicação dos procedimentos descritivos e interpretativos sem esquecer de
noções indispensáveis ao trabalho com e a partir da AD – “[...] o sujeito submetido à
ordem da ideologia e do inconsciente, a memória estruturante do dizer e o sentido
opacificante” (ERNST-PEREIRA; MUTTI, 2011, p. 826).
A fim de “decapar a palavra” (ERNST-PEREIRA, 2012), transformando o corpus
empírico em corpus discursivo, é preciso realizar o que Eni Orlandi chama de
“dessuperficialização” (2012). É preciso considerar as formações imaginárias dos
participantes da pesquisa, lembrando de também levar em conta as suas relações de
sentido, de forças e de antecipação por meio das pistas deixadas no fio do discurso.
A relação dos sujeitos da pesquisa com o tema que lhes foi proposto e suas
projeções acerca dele influem sobre as análises feitas. Também influem as formações
imaginárias que fazem acerca de si mesmos enquanto sujeitos sociais, enquanto LGBT+s,
enquanto brasileiros, como também as suas representações sobre esta pesquisa e sobre nós,
enquanto sujeitos-pesquisadores. Perguntas como: “Quem sou eu para participar desta
pesquisa? Quem sou eu para dizer o que estou dizendo? Quem são eles para me fazer estas
perguntas? Quem irá ler e de que forma irá interpretar o que digo?” são questões que
povoam os enunciados dos sujeitos. Compreender tal atravessamento é trincar a ilusão de
transparência da linguagem, revelando que o dito não é única e exclusivamente “aquilo que
parece ser”. O “mecanismo imaginário” (ORLANDI, 2012, p. 40) também é um fator das
condições de produção: não estamos falando aqui do sujeito LGBT+ empírico e sim
enquanto posição discursiva, matizado pelas formações imaginárias. Dito de outra forma, o
sujeito LGBT+, apesar de sua situação social de opressão, pode enunciar do lugar da
heteronorma e isso é um fator importante a ser considerado.
A coleta dos dados utilizados nesta pesquisa foi feita através da plataforma de
questionários virtuais Survey Monkey8 e contou com dez questões. Para este artigo
realizamos um recorte, destacando as questões que convidavam os colaboradores da
pesquisa a tratar da LGBTfobia e de experiências de vida. As quatro questões utilizadas
aqui apresentavam os seguintes enunciados:
Questão 7 Você considera que existe LGBT+fobia? Você sofre com isso?
Questão 8 Você acha que a homofobia pode ser combatida? Como?
Se você acredita que é possível combater a homofobia, o que você faz para
Questão 9
combatê-la?
Questão 10 Consideramos as vivências algo muito especial. Por isso, gostaríamos que
compartilhasse uma história da sua trajetória pessoal que tenha relação
com a sua experiência como sujeito LGBT+. Aqui qualquer relato é bem-
vindo: afetivo, profissional, familiar, positivo ou negativo. A Vida é feita de
diversas experiências e valorizamos todas elas. Obrigado por participar
desta pesquisa, respondendo às questões propostas e por compartilhar

8
Disponível em: https://pt.surveymonkey.com/
conosco a sua história!

No primeiro trabalho realizado com as respostas para estas questões, a décima


provocou a reformulação do olhar com que nos aproximamos dos enunciados: o silêncio
pulsava ali. Diversos foram os colaboradores que não responderam à pergunta, deixando-a
em branco, enquanto outros responderam que preferiam não compartilhar nenhuma
experiência. É preciso que se faça, aqui, uma reflexão acerca das formações imaginárias
que, possivelmente, afetaram os sujeitos participantes da pesquisa. Reconhecendo a
especificidade deste trabalho, voltado para as questões da LGBT+fobia, os sujeitos que
dele participaram foram convidados especificamente por pertencerem e se identificarem
como membros deste grupo social. Desta forma, respondendo ao questionário proposto,
indubitavelmente são afetados pelas questões que fazem a si mesmos – quem sou eu: para
participar desta pesquisa; para dar esta resposta; para falar deste jeito, etc. As respostas
dadas por cada um dos colaboradores desta pesquisa estão permeadas por tais indagações
que colocam em evidência um dos muitos traços das suas personalidades – o fato de que
não são heterossexuais.
Isso significa dizer que, em outras palavras, este trabalho enfoca aquilo que os
“torna desviantes” ante o olhar da heteronormatividade e, em decorrência disso, evoca as
consequências que enfrentam pelo seu desvio. Quando metade dos participantes não
responde à questão dez, preferindo não compartilhar suas experiências pessoais, este
silêncio demonstra uma formação imaginária que afeta o sujeito LGBT+: ele/ela sabe que
seu sofrimento, seu incômodo, suas experiências de dor em razão da discriminação, são
menoscabadas na nossa cultura. Ainda mais, não apenas menoscabadas, como em muitos
casos, este sofrimento é visto como uma forma de “regeneração” da sexualidade desviada,
de corrigenda, e a morte, “justificada” diante da não recuperação do sujeito. Perspectiva
cultural comprovada em casos chocantes noticiados na mídia: em julho de 2020, dois
adolescentes apedrejaram e queimaram vivo um jovem homossexual na Bahia 9; o caso do
pai que estuprou a filha que se assumira lésbica, no ensejo de provar-lhe que o sexo com
homens era melhor;10 do pai que espancava o filho de oito anos para “ensiná-lo a virar

9
Notícia disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/adolescente-de-14-anos-confessa-que-
apedrejou-queimou-jovem-gay-na-bahia-porque-nao-gostava-de-homossexuais-1-24538448. Acesso
02/11/2020.
10
Notícia disponível em: https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/pai-e-condenado-por-estuprar-
filha-que-se-assumiu-lesbica/. Acesso 02/11/2020.
homem”, resultando na morte da criança11; da mãe que matou o filho a facadas e com ajuda
do padrasto ateou fogo ao corpo do adolescente de 17 anos 12. Então, quando se perguntam
“quem sou eu para participar desta pesquisa/dar estas respostas?”, uma das respostas
possíveis é “sou alguém que, por ser LGBT, poderia/pode ter sido/ser apedrejado/a
espancado/a, estuprado/a, assassinado/a”. Estas formações imaginárias parecem se
condensar na sequência discursiva de Phelan13 ao responder à décima questão: “Minha
história é feita de resistência, dor, afirmação, preconceito e superação”. Tal enunciado é
tão representativo que encontra ressonância nas respostas de outros participantes para as
questões 7, 8, 9 e 10. Surpreenderam-nos, assim, dois efeitos de sentido antagônicos: efeito
de sentido de luta e efeito de sentido de violência.
Buscamos, então, os sentidos dicionarizados 14 para as palavras que Phelan utilizou
para descrever sua história como pessoa LGBT+: resistência, dor, afirmação, preconceito e
superação. Propusemos alguns deslizamentos a partir da sequência discursiva (SD) do
participante da pesquisa, onde substituímos os itens lexicais por seus sentidos
estabilizados. Essas transformações dão maior materialidade para a SD, auxiliando na
compreensão mais clara sobre a situação que Phelan enuncia. Pequenas mudanças, o uso
de itálico e de parênteses foram propostas apenas para ajustar o sentido das frases.

Minha ...da capacidade de suportar;


Resistência
história é ...da luta sustentada contra um ataque.
feita... ...de sofrimento moral ou psicológico causado por
amargura, agonia, perda; Dor
...de arrependimento, remorso.
... do sentimento de quem se afirma, se impõe, se realiza. Afirmação
...da opinião preconcebida por alguém (sobre mim) sem Preconceito
conhecimento ou reflexão;
...da discriminação ou rejeição de pessoas, grupos, ideias,
etc... em relação à (minha) sexualidade.

11
Notícia disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/12/homem-que-matou-filho-no-rio-
por-ser-afeminado-vai-juri-popular.html. Acesso 02/11/2020.
12
Notícia disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,mae-confessa-ter-matado-filho-de-
17-anos-a-facadas-parentes-falam-em-homofobia,10000099650
13
Os nomes aqui apresentados foram escolhidos para proteger a identidade dos colaboradores da pesquisa.
14
Foi utilizado o dicionário virtual Aulete. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/>
... de dominar, vencer, livrar-me, afastar, remover (as
Superação
dificuldades, a dor, o preconceito...)

A partir destes deslizamentos, colocando-os em relação ao corpus, pudemos


observar como dois efeitos de sentido se produziram. O primeiro aproxima “resistência”,
“afirmação” e “superação”, enquanto o segundo condensa “dor” e “preconceito”. Um
efeito enuncia a contrariedade à heteronormatividade, enquanto o outro enuncia o peso e a
dor advindos da sua ação e do seu controle.

EFEITO DE SENTIDO DE LUTA

Neste efeito de sentido, o sujeito manifesta a tomada de uma ação que gera uma
ruptura no funcionamento da heteronormatividade. O objetivo da norma é condicionar
aqueles que buscam afastar-se dela, demarcando muito claramente os limites que não
devem ser atravessados. Para tanto, utilizam-se diversas ferramentas socioculturais que
constantemente chamam a atenção dos sujeitos para que se mantenham na normatividade.
As piadas são uma manifestação muito clara deste efeito. Quando um homem cisgênero 15,
supostamente heterossexual, manifesta comportamentos que fogem ao normativo, aqueles
ao seu redor não partem para a agressão física de imediato – eles usam da ironia, do
deboche para “chamar a atenção” do sujeito. Será no caso da “transgressão recorrente” que
entram em vigor mecanismos de repressão mais intensos, que superam a intervenção
verbal adentrando o campo da agressão física – e em alguns casos resultando em
assassinato.
Os sujeitos enunciam seus movimentos de resistência à heteronormatividade,
destacando o peso que o ato de “assumir-se” tem no tecido social e o consequente papel de
“esclarecer” os que estão ao seu redor sobre a vida das pessoas LGBT+. Observa-se,
através das formulações destes sujeitos, a quebra do efeito da censura: empoderam-se de
sua identidade, construindo valores e significados outros a partir do reconhecimento da
não-heterossexualidade. Essa assunção de uma forma de ser e estar na sociedade, de uma
possibilidade outra de viver as experiências afetivas/sexuais, bota em cheque o efeito de
silenciamento da heteronormatividade que tenta, a todo custo, coibir o acesso a esta forma

15
Cisgênero são os indivíduos que se identificam com a identidade de gênero atribuída ao sexo biológico
com que nasceram, enquanto transgêneros são aqueles que não se identificam com a identidade atribuída ao
seu sexo biológico.
de ser/estar no discurso e na sociedade. Phelan, ao descrever sua história como marcada
pela “resistência”, pela “superação” e pela “afirmação”, pareceu condensar, em um só
enunciado, as diversas formas de luta e resistência apresentadas pelos outros participantes.
Como podemos observar nas seguintes SDs, respostas à questão 9:

Eu tento combater a homofobia sendo eu mesmo e mostrando que ser gay é apenas
Garwin
um rótulo e não define minha totalidade como pessoa.
Não tendo vergonha de mostrar quem eu sou, e mostrando para essas pessoas
que as armas que elas usavam contra os homossexuais já não funcionam mais, que
Vougan
estamos muito mais seguros em sair as ruas e mostrar quem somos com todos os
traços de nossa personalidade sem medo de viver quem somos.
Eu faço questão de me inserir como gay em todos os ambientes que preciso estar, e
Nolan
faço questão que todos entendam que sou gay, e isto não faz a mínima diferença.
Eu vivo! Eu existo, eu trabalho, eu estudo, eu produzo, eu “arrazo”, eu sou linda, eu
Jarvis
me manifesto, eu tenho fãs!
Amadeus Esclareço as pessoas que conheço.
Tristan Tento levar informação para quem demonstra alguma forma de preconceito.

Os sujeitos enunciam acerca da capacidade de suportar os efeitos da


heteronormatividade, da luta sustentada contra os seus ataques, através da afirmação, da
imposição da sua identidade. Eles dominam, vencem, livram-se, afastam, removem a
mortalha, não do preconceito, mas da norma, que os silencia. Percebemos aqui uma
retomada dos momentos de luta em que a possibilidade de dizer-se gay rasga o domínio da
heteronormatividade absoluta e uma nova forma de existir é possível: a luta, a resistência, a
transgressão. Mesmo que não tenham ciência disso, os entrevistados resgatam o “espírito”
desse passado no momento em que assumem suas personalidades socialmente. Cada um e
cada uma que se coloca como não-heterossexual, “assumindo seu desvio”, faz uso
discursivo do “gay power”, provocando mudanças no interdiscurso acerca das
homossexualidades. Invocam também a história do movimento homossexual brasileiro,
que trouxe para nossas terras esta possibilidade de dizer-se não-heterossexual.
A marca desta resistência, dessa luta, se manifestou sob a forma de respostas à
questão 10, em sequências discursivas de participantes que aceitaram respondê-la.
Alden Eu acho que sofri bastante com a influência das pessoas que tem preconceito contra
homossexuais [...] Comecei me assumindo aos poucos, primeiro para meu irmão e
depois para minha mãe, que não aceitou tão facilmente (me proibiu de contar ao meu
pai) e durante esse período comecei a me abrir mais comigo mesmo, me aceitar e
deixar de impor tantas barreiras sobre como eu devo me vestir, falar, agir, como
eu devo me portar perante a sociedade.
[...] fui me tornando mais seguro de meus atos e minha personalidade no exato
Vougan momento em que contei para minha família (que não ficou nada surpresa) e que me
deram e dão todo o apoio possível para ser quem sou.
Acredito que a história de quando me assumi lésbica (explicar a assexualidade e a
Arela polirromanticidade pode ser complicado para quem não é do meio) à minha mãe foi,
até hoje, a mais marcante.

Estas SDs parecem indicar exatamente a ruptura e o afastamento da norma, como


um feito que libera os sentidos para os sujeitos, permitindo novamente seu fluir pelos
sentidos disponíveis. As formações discursivas determinam o que pode e deve ser dito em
seu fluxo histórico, entretanto, Orlandi (1993, p. 79) aponta que:
A censura estabelece um jogo de relações de força pelo qual ela configura, de
forma localizada, o que, do dizível, não deve (não pode) ser dito quando o
sujeito fala. A relação com o “dizível” é, pois, modificada quando a censura
intervém: não se trata mais do dizível sócio-historicamente definido pelas
formações discursivas (o dizer possível): não se pode dizer o que foi proibido (o
dizer devido). Ou seja: não se pode dizer o que se pode dizer.

Está disponível no interdiscurso a possibilidade de dizer-se homossexual – a


história do movimento LGBT+ mostra todas as rupturas e provocações que demarcaram
este novo lugar. A heteronormatividade, entretanto, persiste interditando a memória do
discurso, buscando impedir seu acesso. Nesta correlação de forças, a arma de controle da
norma é a não assunção do desvio. Ela mantém o controle no momento em que os sujeitos
não forçam as barreiras do silenciamento a fim de acessar o dizer possível que está
censurado. Não se manifestando fora das possibilidades por ela estabelecidas, o sujeito não
é alvo de reprimendas. Podemos observar este funcionamento nos ditos populares de que
“pode ser gay, mas não precisa ser viado/bixa”. O viado é aquele que escancara o trabalho
da política do silêncio. Na medida em que ele se torna “gritante”, “chamativo”,
“incômodo” por ser afeminado, por ser “escandaloso”, ele descortina a norma: ele só é
incômodo porque existe uma norma, que ele descumpre. Da mesma forma, as travestis e
transexuais ou as lésbicas masculinizadas. Estes sujeitos revelam claramente os padrões e
são visíveis justamente porque os quebram. Trevisan (2000, p. 20) fala sobre este efeito da
normatividade, ao tratar da mídia que abre concessões a sexualidades desviantes da norma,
dando-lhes um ar glamoroso e exótico: “um ato de condescendência que tolera apenas sob
rigorosas circunstancias, aceitando uma homossexualidade “limpa”, da qual esteja
depurado todo e qualquer resquício de “rebeldia”.
O ato de assumir tem efeito semelhante: ele distende e tenciona as margens da
censura ao mesmo tempo que as faz visíveis. E de tal forma o faz, que é “natural”
identificar os gestos, as palavras, as roupas, a maneira de andar, que escapam da norma. Os
sujeitos dominam inconscientemente as regras da heteronormatividade. Jarvis enuncia o
peso da assunção da sexualidade para a política do silêncio: “Eu vivo! Eu existo, eu
trabalho, eu estudo, eu produzo, eu arrazo, eu sou linda, eu me manifesto, eu tenho fãs!”
(sic). O mero fato de “manter-se vivo, durar, existir, passar à posteridade, aproveitar a
vida”, como indica o dicionário para o verbete viver, desde a posição de sujeito LGBT+, é
uma afronta e um embate contínuo aos domínios da norma.

EFEITO DE SENTIDO DE VIOLÊNCIA

A resistência e a luta manifestas nos dizeres de LGBTs+ veem-se sempre ladeadas


pela tentativa da heteronormatividade de apoderar-se novamente do dizer, realizando
novos cortes de censura. Ao que parece, o sujeito LGBT+ ainda não consegue enunciar
desvinculando-se da possibilidade da opressão – que a cada dia reforça sua realidade. O
medo de ser alvo do “preconceito” e da “dor”, que Phelan demarcou em sua história,
transparece nos discursos dos interlocutores da pesquisa de forma mais ou menos direta. A
violência é um sentido pulsante nos dizeres dos colaboradores. Podemos observar estes
funcionamentos nas respostas dadas às questões 7 e 10:
Questão 7
Sim. Existe e podemos observar em diversos veículos midiáticos. Eu não sofro com
Alden
isso diretamente, porém influencia nas minhas atitudes sociais.
Sofro com a lgbtfobia mais no sentido de me assumir na relação com os familiares, já
Arela
que sei que eles jamais aceitariam quem eu realmente sou.
Morgan Sei que existe, pois já sofri na infância. Agora não mais. Mas temo sofrer.
Kendall Sim. Sofro no quesito cotidiano, mas nenhuma violência física me atingiu. Ainda.

Questão 10
Alden Eu acho que sofri bastante com a influência das pessoas que têm preconceito contra
homossexuais [...] só fui “acordar” para a vida com 21 anos, pois me dei conta que
a vida de todos andava normalmente e eu estava deixando a minha de lado por conta
de opiniões de pessoas que não importavam.
Durante a escola o ensino fundamental foi de fato difícil não porque os outros
estudantes não me aceitavam mas porque eu não me aceitava, a partir do
Vougan momento em que passei a entender quem eu era e como faria para o ser, as coisas
pareceram ficar mais fáceis e mais leves não me importando mais tanto com
comentários e risadas [...].
Albion Não gosto de compartilhar.
Cresci no meio LGBT, então ser gay sempre foi normal pra mim. [...] A única vez
em que quis ser outra pessoa foi quando fui agredido quando estava chegando em
Owyn
casa. Pode parecer absurdo, mas chegar em casa sangrando por ser quem você é faz
com que alguns conceitos e posturas sejam questionados.
A história mais relevante que tenho para contar não é sobre o sofrimento da
rejeição por ser gay na infância e na adolescência; ela tem ligação com o
sofrimento da cobrança interna que isso me provocou. Eu não consegui nem sequer
Morgan
tocar em outro menino antes de ter condições emocionais fortes o suficiente para
contar para alguém da família que sou gay. [...] Consegui me relacionar com um
menino pela primeira vez aos 25 anos (2016).

Juntam-se a estas sequências discursivas as diversas respostas não dadas para a


questão 10, única em que alguns participantes não responderam. Parece pulsar, neste não
enunciar, o efeito de sentido de violência, que prefere não se dizer, não se materializar. O
dizer LGBT+ está marcado pela violência de todas as formas – seja no passado, em
experiências vividas; seja no presente, sofrendo as ações das imposições culturais; seja no
devir, com o medo de ser alvo dela. Observando as marcas da violência nos discursos
LGBT+, chega-se aos efeitos que a heteronormatividade e seus mecanismos de controle
condensam nos sujeitos. A violência não é uma realidade distante ou impossível, muito
pelo contrário – ela é uma certeza, um fato concreto, que há de acontecer em algum
momento da história dos LGBT+. Seja na infância, no trabalho, na família, etc. Se não o
foi no passado, acontecerá seja no presente ou no futuro. Ser LGBT+ é reconhecer a
eminência da discriminação e do preconceito que a qualquer momento pode se manifestar.
A aceitação social é sempre tênue, colocando a comunidade LGBT+ em um
constante sinal de alerta – não há certezas sobre o respeito no amanhã. Soma-se a isso os
efeitos emocionais que afetam os sujeitos. Como Morgan, Alden e Vougan enunciaram,
não foi o sofrimento causado por colegas de escola o maior peso que carregaram – foi a
tortura íntima da dúvida, da vergonha, da incerteza, do medo paralisante de “ser aquilo”
que de fato eram acusados de ser. A violência subjetiva que coíbe o sujeito ao não-ser é
uma constante nos discursos LGBT+. Percebemos aqui um novo reviramento histórico,
que retoma as formas de entender a sexualidade e a pressão social pelo controle dela,
remetendo ao Brasil colônia e aos tempos de inquisição. A história da sexualidade em
terras brasileiras é pulsante e transgressora. Ela transformou-se em motivo de preocupação
e desgosto do clero europeu, que reconhecia no Brasil uma terra onde as regras se
dissolviam.
A inquisição esteve em vigor na Terra do Cruzeiro até 1821 e possuía uma
mecânica específica de funcionamento. Começando com os Autos-de-fé, cerimônias de
abertura do processo, sendo sucedidas pelo Tempo de Graça. Este período de algumas
semanas dava espaço para que os pecadores confessassem suas faltas, recebendo punições
atenuadas. Ademais, era obrigação e direito de qualquer cidadão denunciar os pecados de
outrem, estabelecendo um clima de controle e vigilância constante – qualquer um poderia
denunciar um pecador que seria chamado diante da inquisição e responderia a processo
público. As punições inquisitoriais eram das mais diversas: multas, prisões, confisco de
bens, banimento da cidade ou do país, trabalho forçado (nas galés ou não), passando por
marca com ferro em brasa, execração e açoite público até a castração, amputação das
orelhas, morte por forca, morte por fogueira, empalamento e afogamento. A sodomia, por
[...] implicar o máximo de desordem possível na procriação, [...] era considerada
como um pecado gravíssimo, que não prescrevia jamais, continuando digno de
punição por muito tempo. Como se tratava de um desvio ditado diretamente pelo
demônio, a Igreja e a Inquisição associavam a prática da sodomia com a bruxaria
e as heresias dos cátaros e templários. (TREVISAN, 2000, p. 110)

A relação que se estabelece no dizeres dos participantes desta pesquisa é justamente


acerca do medo instaurado pelos processos inquisitoriais. A violência – ou, dito de outra
forma, a “corrigenda da norma” – sobre os sujeitos LGBT+ advém de diversos pontos,
retomando os medos do século XVIII-XIX da danação espiritual, da expulsão física e da
morte. A heteronormatividade, repaginando-se ao longo dos tempos, faz uso de diversas
forças de inquisição, sustentando o medo premente da violência. O controle religioso mais
conservador ainda atormenta as sexualidades com discursos acerca do inferno e das
possessões demoníacas. O risco de morte e violência física é constantemente retratado nas
mídias, mesmo que deliberadamente ignorado pelas autoridades. Precisamos, ainda,
adicionar outra marca da história da sexualidade no Brasil, remontando a década de 1920.
A medicina transforma em questão psiquiátrico-policial a prática homossexual,
demandando tratamento constante e intervenção em prol da saúde social (TREVISAN,
2000).
É desde este conjunto de memórias discursivas que o sujeito LGBT+ é
discursivizado. Digladiando-se na busca de sentidos outros, que remetam a libertação e a
valorização de uma forma outra de ser e de amar, estes sujeitos enfrentam a política do
silêncio da norma, enfrentando séculos de discriminação e retomando as vozes daqueles
que, antes de nós, lutaram por direitos de existir.

A HISTÓRIA QUE AINDA SE ESCREVE...

É no embate e na movência que o sujeito LGBT+ se constitui. Vendo-se


constantemente ameaçado pela normatividade, este sujeito precisa romper com a força da
censura para poder dizer aquilo que, pelo fio do discurso, poderia ser dito, mas que está
enclausurado. Neste trabalho, os sujeitos mostraram toda sua descontinuidade, sua
movência, seu caráter intervalar. Confrontados por sentidos de controle, em alguns
momentos não conseguem escapar dele, mas em outros rompem com as amarras
discursivas e retomam sentidos que ecoam do passado, sentidos de embate e
empoderamento. Destacam-se assim duas Formações Discursivas que disputam a
dominância dos sentidos: uma FD de Transgressão, em que o efeito de sentido de luta se
inscreve, onde ressoam as vozes de Stonewall Inn, do grupo brasileiro Dzi Croquettes, do
jornal O Lampião16. A outra, a Formação Discursiva da Normatividade, busca a todo custo
fazer valer o controle da sexualidade e das formas de viver em sociedade. Remontando a
inquisição, a medicina patologizante e policialesca, busca mecanismos diversos no tecido
social para coibir os sujeitos de acessarem plenamente as possibilidades do dizer,
enclausurando-os em sentidos únicos.

16
O Lampião tem sua primeira publicação em maio de 1978, com tiragem de 10 mil exemplares, sendo o
primeiro jornal brasileiro a tratar da homossexualidade numa perspectiva política e com a intenção de
renovar a imagem do homossexual. “O jornal procurava oferecer um tratamento que combatesse a imagem
dos homossexuais como criaturas destroçadas por causa de seu desejo, incapazes de realização pessoal e com
tendências a rejeitar a própria sexualidade” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 85). Esse movimento era mais
complexo, pois buscava dar conta de outras minorias que também eram oprimidas além de denunciar a
discriminação e violência policial que atingiam a comunidade LGBT.
Apesar da história de militância, de luta, de resistência da comunidade LGBT+, ela
ainda é afetada profundamente pela heteronormatividade. Ambas as formações discursivas
veem-se vinculadas à Formação Ideológica da Heteronormatividade. Ainda é a partir da
norma que os sujeitos LGBT+ enunciam sobre a forma com que sentem desejos e amores,
pois a marca do “desvio”, da “ruptura” ainda é dominante. O efeito de controle da
normatividade ainda assoma poderoso, afetando LGBTs+ e heterossexuais que se veem
limitados nas suas possibilidades de experenciar, de vivenciar e de sentir.
No entanto, especulamos que os sentidos de resistência, superação e afirmação que
ressoam no discurso de Phelan ainda vão reverberar em outros dizeres LGBT+. E, assim
sendo, é cabível intuir que Phelan, representando outras tantas vozes da comunidade
LGBT+, habita uma fronteira, ou seja, um “lugar a partir do qual algo começa a se fazer
presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do
além” (BHABHA, 1998, p. 24) que marca um progresso, que promete um futuro, mas não
se afasta do presente o qual termina por dar visibilidade às descontinuidades, às
desigualdades e às rupturas que constituem os sujeitos. Mas que algo é esse que começa a
se fazer presente? Um sujeito que visualiza mais de um lugar de dizer, mais de uma
posição, desnaturalizando o sentido das palavras.
Mesmo existindo mecanismos de controle da fundação de sentidos outros onde já
existem sentidos estabilizados, os sentidos deslizam, os discursos não possuem limites
traçados de forma fixa. Como lembra Orlandi (2001, p. 134), “[...] suas fronteiras são
móveis, uma vez que, em função da existência dos processos discursivos, o que se têm são
estados desses processos, que estão sempre em movimento e em inter-relação constante”.
Dessa forma, o que se liga a um discurso enquanto parte constituinte só se define assim
devido à sua relação com o que se liga a outros discursos que o delimitam. Há que se
considerar, sempre, esta relação entre discursos na análise dos enunciados e, então, a
presença de vozes que terminam por deixar marcada no discurso a presença de outras
enunciações feitas em outro tempo e espaço. Isto significa que a análise, por se dar para
além da superfície linguística, torna possível a identificação de sentidos contraditórios que
travam uma luta permanente nas relações que estabelecem. Sentidos contraditórios como
os evidenciados em nossas análises, sentidos em litígio como o de luta e o de violência.
Parece-nos que os sujeitos LGBTs+ se constituem exatamente nas fronteiras entre
diferentes formações discursivas ou redes de sentidos, buscando modos singulares de viver
processos de identificação com sua comunidade e com a sociedade de que fazem parte.
Como diz Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 347), “a subjectividade emergente
compraz-se em viver na fronteira”. Ou seja, é aí que ela se forma, num processo contínuo
de tomada de decisões e, igualmente, de avanços e recuos em relação às decisões tomadas.
Afinal, “as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São
resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação” (SANTOS, 2000, p.
135). Quer dizer, mesmo a identidade LGBT+, aparentemente sólida por força do modo
como certas concepções cristalizaram nela seus referentes, esconde negociações de sentido,
choques de temporalidades em constante processo de transformação. Sentidos e saberes
aparentemente rivais passam a co-existir em espaços de negociação entre as diferenças,
criando abertura para a resistência e retomando vozes que lutaram antes de nós, para
construir um mundo mais justo e seguro para todos nós.

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