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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.

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Christian Jacq

MOZART
Segundo volume
O FILHO DA LUZ

Tradução de MIGUEL METELO DE SEIXAS


BERTRAND EDITORA Chiado 2006
Título original: MOZART - Le Fils de La Lumière

Autor: Christian Jacq


(c) XO Éditions, Paris, 2004
Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, excepto
Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.
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Revisão: André Cardoso


Impressão e acabamento:
Tilgráfica, S. A.
Depósito Legal nº 244216/06
Acabou de imprimir-se em Junho de 2006

ISBN: 972-25-1483-0

Ao Barqueiro
Para criar, é preciso ser fiel à ideia.
MOZART

O iniciado é revestido de vestes luminosas. Tudo o que nele era desordem


ordena-se.
Dionísio, oAreopagita
1.

Salzburgo, 16 de Janeiro de 1779


A cadela, fox-terrier Miss Pimperl saltou em direcção à porta do vasto
apartamento dos Mozart e começou a soltar uns uivos como Leopold nunca tinha
ouvido.
Acabara de parar uma carruagem diante da bela residência burguesa em que a
família de músicos se havia instalado em 1773.
- Wolfgang está de volta! - gritou a sua irmã, Nannerl, uma jovem de 27 anos,
austera e devotada ao pai.
Leopold foi abrir a porta, e Miss Pimperl correu escadas abaixo ao encontro de
Wolfgang Mozart, um homem de pequena estatura, cabelos castanhos, olhos vivos e
esbugalhados.
A cadela lambeu-lhe demoradamente as faces, feliz por reencontrar o seu dono
dilecto, que estivera ausente durante tanto tempo.
Algumas centenas de festas mais tarde, o jovem músico pôde por fim abraçar o pai
e a irmã, de lágrimas nos cantos dos olhos.
Para Wolfgang, que dentro em breve perfaria 23 anos, este regresso à sua cidade
natal, que ele detestava, representava um fracasso e um encarceramento. A sua
recente
estada em Paris, exigida pelo pai, cidade tão detestável quanto Salzburgo mas
muito mais suja, fora uma cruel desilusão, à qual se haviam juntado duas
desgraças:
a morte da mãe, sepultada longe do seu lar, e a perda do seu primeiro grande
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amor, a cantora Aloysia Weber, que ele esperara vir a desposar. Sob o pretexto
de

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ele ter permanecido afastado por demasiado tempo, ela havia-o recambiado de
forma expedita e humilhante.
Sentia-se agora de regresso ao ponto de partida, como lacaio submetido ao jugo
do príncipe-arcebispo de Salzburgo, o conde Hieronymus Colloredo, um tirano de
coração
duro a quem ele chamava o Grande Mufti.
Reduzir-se-ia doravante Wolfgang ao papel medíocre de fabricante de música
ligeira, destinada a distrair Sua Eminência e a alta sociedade?
Não, pois as viagens e as provações haviam-no amadurecido. Ele guardava plena
confiança nas suas potencialidades criadoras, depois de tantas horas passadas a
dominar
todos os estilos e, segundo a sua expressão, a "entranhar-se na música". Embora
ferido, não baixaria os braços, e haveria de conseguir provar o seu valor.
E a sua prima alucinada, a quem chamavam Bãsle, traria alegria para casa dos
Mozart, onde a ausência de Anna-Maria se fazia sentir de forma tão pesada.
Exibindo
um gosto notório por chalaças escabrosas e por brincadeiras escatológicas, gosto
aliás partilhado por Wolfgang e pela sua defunta mãe, Bãsle acompanhara-o ao
longo
da última parte do seu trajecto e contava vir a dissipar a tristeza que presidia
a este reencontro.
- Vamos lá cagar, comer e beber - preconizou ela. - E, depois, recomeçamos! O
que é que preparou Theresel, a vossa cozinheira?
- Fez-nos um capão, um dos pratos predilectos do meu filho - respondeu o pai de
família.
Miss Pimperlregalou-se com tal petisco.
- Mandei instalar no teu quarto um velho clavicórdio e um armário novinho em
folha - anunciou Leopold ao filho. - Espero que te sintas bem lá, e que possas
trabalhar
à vontade. Amanhã mesmo, o príncipe-arcebispo nomear-te-á oficialmente organista
da sua corte na catedral de Salzburgo, com um salário anual de quatrocentos e
cinquenta
florins 1.
- Juntamente com a libré de lacaio...
- Bem sabes que é essa a regra, meu filho.

1 Um florim: um pouco menos de vinte euros.


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- Tenho sede! - recordou Bãsle, decidida a evitar os assuntos maçadores -
Quereis que eu descreva esse burguês balofo de Augsburgo que peidava mais alto
do que o
seu próprio cu por ter comido demasiados enchidos?
Nem sequer Nannerl, mais para o emproado, conseguiu reter um meio sorriso.
Em redor do capão e de um poderoso vinho tinto, todos se regozijaram com o calor
de uma família novamente reunida e voltada para o futuro. Graças aos salários de
pai e filho e aos rendimentos da filha, nada faltava ao clã Mozart.
Tinham simplesmente de esquecer os sonhos de glória e prostrar-se aos pés de o
Grande Mufti sem emitir o menor protesto.
Não obstante a sua atitude desenvolta, a mente de Wolfgang tendia a evadir-se.
Ele pensava no seu estranho protector, Thamos, o egípcio, que prometera não o
abandonar,
e no seu projecto de ópera dedicado aos mistérios dos sacerdotes do Sol. Mas
faltavam-lhe informações fidedignas, e não seria em Salzburgo que as iria obter.
Mas
ele desejava intensamente dissipar as trevas e contemplar a luz entrevista de
relance durante as conversas com o doutor Mesmer, estudioso do magnetismo, ou
com o
barão Otto von Gemmingen, autor do drama iniciático Semiramis, nado-morto por
causa do conflito desencadeado pelos problemas de sucessão ao trono da Baviera.
Através de Thamos, Rei do Egipto, texto em que se evocava a confraria dos
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iniciados, Wolfgang entrevira o grande segredo. E nunca haveria de renunciar a
descobri-lo.

Salzburgo, 27 de Janeiro de 1779


No dia 20, Wolfgang havia terminado uma sonata para piano e violino2 para
comemorar musicalmente o reencontro da família. A um andantino suave e
melancólico, pudica
evocação dos sofrimentos recen-

2 K. 378. K. é a abreviatura de Kóchel. O cavaleiro Ludwig von Kóchel


(1800-1877) foi o primeiro a tentar compilar um catálogo cronológico das obras
de Mozart. A
primeira edição veio a lume em 1862. As pesquisas musicológicas permitiram
entretanto rectificar vários erros desse catálogo, sem que se tenha conseguido
datar com
precisão a totalidade das obras compostas.
14
tes, sucedia um final recheado de bom humor. E, cinco dias mais tarde, tocou com
a irmã um brilhante concerto para dois pianos3 cujo terceiro andamento, de um
extraordinário
dinamismo, raiava o trágico, sem contudo descambar para o piegas. Enquanto
trabalhava numa série de oito minuetes para piano e trios4, o jovem compositor
celebrou
alegremente o seu vigésimo terceiro aniversário na companhia do pai, da irmã, da
priminha e dos amigos salzburgueses, entre os quais Anton Stadler, que possuía
propensão
inata para as festas.
- E as raparigas? - cochichou ele ao ouvido de Wolfgang. - Não me digas que te
vais contentar com essa marota da Básle!
- Nós só estamos na brincadeira.
- Pois então, isso não chega!
- Eu estive perdidamente apaixonado, Anton.
- Conta-me! Como é que ela se chamava?
- Aloysia Weber, uma cantora maravilhosa que fará uma boa carreira. A sua voz é
capaz de exprimir todos os sentimentos.
- Pois sim, a sua voz, a sua voz... E o resto?
- É uma mulher lindíssima, séria e determinada.
- Então, porque a deixaste?
- Quando regressei de Paris, queria pedi-la em casamento. Ela rejeitou-me.
- Que idiota! Ela não sabe o que perde.
- Não fales assim de Aloysia. Considero que uma mulher deve ser livre de exercer
o direito de escolha, mesmo que este me tenha ferido profundamente.
- Por outras palavras, continuas apaixonado! Tens de retomar o assalto a essa
fortaleza.
- Não, a decisão de Aloysia é irrevogável. Há-de amar um outro homem.
- Pior para ela! Não faltam raparigas bonitas em Salzburgo! Trarei ao teu
encontro uma série de jovens muito agradáveis e nada ariscas.
- Não quero, Anton.
- Vá lá, Wolfgang, vá lá! Decerto não contas passar os teus dias a compor música
sacra e divertimentos para uso de Colloredo?
3 K. 365, uma obra que Mozart ele próprio considerava importante.
4 K. 315a.
15
- É preciso.
- Não podes deixar que Salzburgo constitua um cárcere de trabalhos forçados!
Podemos preencher as nossas obrigações e, em seguida, divertir-nos.
- Não pensas em casar, Anton?
- Nada me apressa, ainda me falta experiência. Supõe tu que eu casava com a
mulher errada, e que deixava passar a certa?
Básle fez um brinde em honra do primo, e os convivas desejaram-lhe um excelente
aniversário.

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2.
Reval5, Março de 1779

Antes da destruição do seu mosteiro pelos muçulmanos, o abade Hermes, herdeiro


da tradição iniciática, confiara a Thamos, seu discípulo, a missão de preservar
essa
tradição e de transmiti-la ao Supremo Mago, que haveria de nascer no Ocidente.
Com a morte na alma, Thamos deixara o seu país natal e partira em busca desse
ser excepcional, com o intuito de preparar um meio propício para a sua iniciação
aos
Supremos Mistérios, dos quais ele se tornaria, por sua vez, transmissor.
Wolfgang Mozart era o Supremo Mago, e só no seio da Maçonaria conseguiria
elevar-se em direcção à Luz.
No entanto, Thamos, que adoptara o nome de conde de Tebas e assegurara a sua
fortuna mediante recurso à prática da alquimia, tinha dúvidas.
Mozart era também um jovem de 23 anos, cujo génio continuava espartilhado numa
camisa-de-forças de sentimentos, ambições e desilusões. Bastariam a sua pureza,
a
sua vontade e o seu desejo de conhecimentos para quebrar tais entraves?
Quanto à Maçonaria, dividida em diversos ramos mais ou menos hostis uns aos
outros, conseguiria ela ultrapassar as convenções, o fol-
5 Actual Taline (países bálticos).
17
clore e as vaidades dos seus dirigentes para vir a formar um verdadeiro
receptáculo da iniciação?
Thamos apostava em vários cavalos e percorria a Europa a fim de examinar de
perto toda e qualquer iniciativa pessoal ou colectiva, em busca de Irmãos ou de
Lojas
aptos para procederem à formação do Supremo Mago.
Em Reval, localidade próxima do mar Báltico, o egípcio assistia à criação da
Loja Isis, sob a égide de um curioso personagem de 36 anos, o conde Alessandro
de Cagliostro,
pseudónimo de Joseph Bálsamo. Iniciado em Londres6 em 1777 numa Loja composta
por cordoeiros, pedreiros e cabeleireiros, Cagliostro afirmava que "toda a Luz
provém
do Oriente e toda a iniciação do Egipto".
Perpetuando o ensinamento do alquimista Paracelso, Cagliostro pretendia conhecer
o segredo das ervas, das pedras e das palavras mágicas, bem como possuir um
elixir
da saúde.
Não faltava presença a tal homem. Quando viu Thamos, crispou-se de imediato.
- De onde vindes, meu Irmão?
- Do mosteiro do abade Hermes.
- Onde se encontra tal mosteiro?
- No Sul do Egipto. Hoje, não passa de um monte de ruínas, mas a sua influência
perdura.
- Quanto a mim, sou nobre e viajante. Quando ajo, a paz regressa aos corações, a
saúde aos corpos, a esperança e a coragem às almas. Todos os homens são meus
irmãos,
e todos os países me são queridos. Percorro-os para que, por todo o lado, o
Espírito possa descer e abrir caminho até nós.
- Perdoai-me a indiscrição, mas como haveis recebido a iniciação?
- Tive a graça de, à semelhança de Moisés, ser admitido à presença do Eterno.
Não podendo guardar tal tesouro somente para mim, decidi partilhá-lo. Hoje, o
meu país
é aquele onde fixo momentaneamente os meus passos. Na realidade, não pertenço a
nenhuma época nem a nenhum lugar. Fora do tempo e do espaço, o meu ser
espiritual
vive a sua existência eterna.
6 Ou então em Malta, em 1766.
18
- Quais são os vossos projectos?
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-Instaurar um Rito novo ao qual aderirão todos os pedreiros-livres em busca da
verdade. Devo partir, outras cidades esperam por mim.
Thamos permaneceu na dúvida. A extravagância do personagem e o exagero das suas
palavras pareciam características de charlatão, a não ser que Cagliostro
procurasse
dissimular sob essa capa uma procura autêntica.
As suas acções falariam por si.
Salzburgo, Abril de 1779

Ao compor uma missa para a coroação da Virgem7 para a igreja de Maria-Plain,


Wolfgang voltava-se mais uma vez para a figura de Nossa Senhora e pedia-lhe que
o auxiliasse
a evadir-se um dia da prisão salzburguesa. Poderosa e conferindo à orquestra um
lugar de destaque, a obra foi tocada na catedral de Salzburgo e não atraiu a
crítica
do príncipe-arcebispo.
Quanto a Thamos, reparou no início do solo da soprano no Agnus Dei. Tal ária
anunciava uma visão futura, que o Supremo Mago haveria de levar até à
perfeição8.
A Virgem não se mostrou indiferente às preces do músico, uma vez que lhe
ofereceu um período de equilíbrio, vitalidade e alegria de viver, de que são
testemunhas
as suas Vésperas do Domingo 9, escritas na tonalidade tónica de dó maior.
Este regresso às composições religiosas não agradava nada a Anton Stadler, que
apreciou muito mais os andamentos de uma Abertura em sol maior10 destinada a uma
ópera
bufa representada por uma companhia de passagem. Apesar dos seus esforços, Anton
não conseguia convencer o amigo a comportar-se como um jovem da sua idade e a
esquecer,
nem que fosse por breves instantes, essa música à qual dedicava cada segundo da
sua existência. Mesmo quando jogavam ao chinquilho ou aos dardos, Wolfgang só
estava
presente em aparência, já

7 K. 317, Missa da Coroação.


8 A saber, a ária Dove Sono da condessa das Bodas de Fígaro, cujo aspecto
sacramental é inegável.
9 K. 321.
10 K. 318.

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que os seus pensamentos vagueavam permanentemente, à procura de novas ideias.
Os temores de Leopold dissipavam-se. Ao fim e ao cabo, o seu filho readaptava-se
perfeitamente à existência em Salzburgo e comportava-se como fiel servidor do
príncipe-arcebispo.
Amadurecido pelas provações, Wolfgang aceitava o seu fado que, no fundo, nada
tinha de insuportável.

Brunswick, Maio de 1779


- Meu Irmão - disse Carlos de Hesse ao Grão-Mestre da Estrita Observância
templária -, acolhi no palácio de Gõttorp um personagem extraordinário! Chama-se
conde
de Saint-Germain, diz ter vivido vários séculos e desconhecer a morte graças ao
uso de um elixir alquí-mico que só ele sabe produzir. Abri-lhe as portas do meu
laboratório,
onde todas as experiências anteriores foram baldadas. Talvez ele consiga atingir
o nosso objectivo.
- Esperemos que sim - respondeu Fernando de Brunswick, dirigente da Ordem
templária, sempre desejoso de reunir sob a sua égide o maior número possível de
pedreiros-livres,
mas a braços com crescentes dificuldades espirituais e materiais. - Carlos,
acreditais na mensagem esotérica do evangelista João?
- Claro que acredito! - exclamou Hesse, co-dirigente da Estrita Observância.
- Também acreditais na importância da cabala judaica?
- Quem haverá que duvide dela?
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- Contudo, cristãos e judeus permanecem apartados, e estes últimos não são
admitidos nas nossas Lojas.
- Lamentável engano!
- Talvez o possamos emendar. Há dois homens excepcionais que pedem para nos
apresentar um projecto notável.

3.
Viena, Julho de 1779

Joseph Anton, conde de Pergen, era um fiel servidor da imperatriz Maria Teresa,
inimiga juramentada da Maçonaria. Por sua ordem, havia sido criado um serviço
secreto
para lutar contra esse polvo que, do ponto de vista da governante, atacava as
bases da sociedade, da moral e da religião, tendo como meta oculta a tomada do
Poder.
Anton tinha de agir com a maior prudência, pois a sua actividade não se
reportava ao ministro do Interior. Homem de ficheiros, o conde seguia passo a
passo a evolução
das Ordens e das Lojas graças a uma rede de informadores coordenados por
Geytrand, seu homem de confiança e antigo pedreiro-livre. Depois de ter traído o
seu juramento
e os seus Irmãos, porque não lhe haviam acordado uma promoção suficientemente
rápida, Geytrand só almejava a destruição da Maçonaria.
Detestando o Verão, a luz e o calor, Joseph Anton cerrava as janelas do seu
gabinete, fechava os cortinados e trabalhava noite e dia à luz das candeias.
Ensopado em suor, com os tornozelos inchados, Geytrand odiava, também ele, esse
período do ano, e esperava com impaciência o regresso do frio.
- Senhor conde, tenho a certeza de que o duque de Brunswick, Grão-Mestre da
Estrita Observância templária, e o seu assistente, Carlos de Hesse, conduzem uma
nova
ofensiva.
21

- Contra o duque de Sudermânia, o sueco que se apoderou da sétima província


dessa Ordem maçónica?
- Não, as hostilidades parecem ter cessado. Trata-se de uma nova Ordem maçónica,
os Irmãos da Ásia, cujo pendor subversivo me parece evidente.
- Quem são os responsáveis?
- Dois protegidos de Brunswick.
- Ou seja, intocáveis - lamentou Joseph Anton, que já sofrera um penoso desaire
ao atacar abertamente alguns pedreiros-livres bem colocados.
Com efeito, a Maçonaria contava nas suas fileiras com numerosos nobres e
notáveis, capazes de cercear as actividades de Anton e de exigir o encerramento
das suas
investigações. Decerto, ele podia contar com a protecção de Maria Teresa, mas
estaria José II, actual detentor do poder imperial, disposto a nutrir a mesma
hostilidade
para com a Maçonaria?
- Um dos fundadores dos Irmãos iniciados da Ásia11, conselheiro do rei da
Polónia, está muito ligado a São João Evangelista. O outro surpreender-vos-á.
Chama-se
Hirschfeld.
- Um judeu?
- Um especialista no Talmude e de um enorme livro esotérico, o Zohar ou Livro do
Esplendor, que revela os segredos da cabala judaica.
- São informações fidedignas?
- Absolutamente, senhor conde.
- Quais são as tuas fontes?
Geytrand não gostava nada de as mencionar, mas não tinha alternativa.
- Um dos lacaios do duque de Brunswick, particularmente dotado para escutar por
trás das portas e generosamente remunerado, e um dos Irmãos dessa nova Ordem
maçónica.
Este último está em rotundo desacordo com o verdadeiro objectivo da Ordem: a
reconciliação de judeus e cristãos no seio de uma religião comum.
- Que loucura! Estes pedreiros-livres são ainda mais perniciosos do que eu
julgava.

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11 Von Ecker-und-Eckoffen, expulso da Ordem da Rosa-Cruz por insubordinação.
22
- É provável que uma Loja dos Irmãos da Ásia venha a ser criada em Viena.
- Todos os seus membros devem ser arrolados e vigiados. Não os deixaremos
destruir a nossa sociedade, meu bom Geytrand.
Salzburgo, 3 de Agosto de 1779

Baseada numa orquestra de composição reduzida, a tranquila sinfonia em si bemol


maior12 havia deixado Leopold descansado. Nenhuma tensão, nada de dramático, uma
suavidade agradável. Em contrapartida, a última serenata" surpreendeu-o por
causa de diversos pormenores insólitos, quase chocantes.
Demasiado solene, a obra começava com um movimento lento e compreendia um
andantino em ré menor, sombrio e patético, como nunca se ouvira em composição
daquele género.
Outra surpresa: no meio do segundo trio, uma buzina de caça tocava a melodia das
carruagens do correio!
- Porquê estas fantasias? - perguntou Leopold ao filho.
- Porque tenho vontade de apanhar uma dessas carruagens, deixando Salzburgo de
vez. O meu primeiro movimento constitui uma revolta contra Colloredo, e eu
pinto-o
tal como ele é, afirmando, ao longo do allegro, a minha vontade de combater.
- Meu filho, não digas a mais ninguém o que acabaste de me confidenciar. Se o
príncipe-arcebispo percebesse os teus intentos...
A situação não melhorou substancialmente com o divertimento14 escrito para uma
rica burguesa de Salzburgo, a senhora Robinig, amiga da família Mozart. No
andante
com variações, Wolfgang esgueirou alguns trechos rangentes, quase agressivos,
como expressão de revolta contra um género superficial que ele já não conseguia
aturar.
- Não aprecio nem esta burguesia, nem este tipo de música - disse ao pai. -
Enquanto estiver encarcerado aqui em Salzburgo, deixarei de compor.
12 K. 319.
13 Posthorn-Serenade, em ré maior, K. 320.
14 Divertimento Robinig, K. 334.

23
Entretanto, graças ao seu encanto, a obra agradou à senhora Robi-nig, sua
destinatária.
Viena, 10 de Agosto de 1779
Num apartamento discreto dos arrabaldes vienenses, desconhecido pela polícia,
Thamos, conde de Tebas, recebeu dois visitantes de peso.
O primeiro era Ignaz von Born, mineralogista colocado na Universidade de Viena e
com 37 anos. De rosto comprido, testa ampla, olhos negros, Von Born era o
pedreiro-livre
com quem Thamos contava para insuflar a uma ou mais Lojas um verdadeiro espírito
iniciático, a partir da tradição que o egípcio lhe ia revelando aos poucos.
O segundo convidado era o barão Gottfried van Swieten. De 46 anos e origem
holandesa, filho do médico pessoal da imperatriz Maria Teresa, este brilhante
diplomata,
que ocupara sucessivamente postos em Paris, Londres e Berlim, fora nomeado em
1777 prefeito da Biblioteca Imperial e Real, onde detinha um alojamento inerente
às
suas funções.
Inimigo declarado da Maçonaria, Van Swieten jogava um jogo perigoso. Tendo
recebido a iniciação em Berlim, evitava escrupulosamente frequentar as Lojas
vienenses,
para poder permanecer nas confidências do poder e advertir os seus Irmãos em
caso de ameaças sérias. Partidário das reformas preconizadas por José II, Van
Swieten
acreditava que o regime se viria a liberalizar.
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Entre Ignaz von Born, austero, profundo, silencioso, e Gottfried van Swieten,
bonacheirão e volúvel, a corrente de fraternidade tinha alguma dificuldade em
passar.
No entanto, Thamos tinha de levá-los a associarem-se, para juntos erguerem o
grande templo e participarem, cada um com o seu génio próprio, na iniciação do
Supremo
Mago.
Ambos sabiam tudo um do outro. A preocupação maior dos três homens ali reunidos
consistia em saber se, escondida algures nos meandros de Viena, existia uma
cabeça
pensante encarregada de perseguir os pedreiros-livres.
- Não logrei obter nenhuma informação fidedigna - declarou Von Born. - Todas as
Lojas de Viena são vigiadas de forma mais ou
24

menos apertada, mas nunca ninguém ouviu falar de qualquer outro responsável por
tal vigilância que não o ministro do Interior.
- Já tive ocasião de falar com o chefe da polícia - acrescentou Gottfried van
Swieten - e trocámos impressões com relação ao nosso comum ódio para com a
Maçonaria.
Na opinião dele, é a imperatriz Maria Teresa em pessoa quem trata deste assunto.
Põe-se pois a questão de saber se ela entregou essa tarefa a um homem de sua
confiança
pessoal; e se for assim, como poderemos encontrá-lo? Se começarmos a fazer
demasiadas perguntas, atrairemos inevitavelmente as suspeitas sobre nós.
- Não tomeis mais nenhum risco, barão.
- E vós, Thamos, como conseguis escapar à polícia de Maria Teresa?
- Viajo muito e disponho de vários domicílios. Assim que surge um movimento
maçónico que possa vir a ser útil para a iniciação, tenho de julgar a sua
importância.
Apesar dos escolhos com que esbarramos, temos de continuar a construir o templo
aqui mesmo, em Viena.
- Quando poderá o Supremo Mago passar o limiar? - perguntou o mineralogista.
- Nem o homem nem o músico estão prontos - respondeu o egípcio. - Do lado dele
como do nosso, há ainda muito trabalho por fazer.
4.
Salzburgo, 14 de Agosto de 1779

Tratados de matemática, comédias, tragédias, romances antigos e modernos,


poesia... Wolfgang lia muito e depressa, sem se esquecer de ir amiúde ao teatro
de Salzburgo,
onde companhias itinerantes apresentam peças variadas, nomeadamente as de
William Shakespeare, que o músico apreciava deveras.
Enquanto Wolfgang assistia a uma representação de Hamlet, Thamos sentou-se ao
seu lado.
- Os comediantes não são nada de especial - murmurou Wolfgang -, mas o texto é
arrebatador. Por algumas horas, consigo evadir-me de Salzburgo.
- Gostaria de apresentar-te a Bõhm, director desta companhia. Ele tem uma
surpresa reservada para ti.
Curioso, o jovem acompanhou o egípcio até ao gabinete do director, que os
acolheu calorosamente.
- Ah, senhor Mozart, que felicidade conhecer-vos! Um dos meus amigos, o barão
Tobias von Gebler, falou-me de um drama pelo qual ele já não se interessa,
intitulado
Thamos, Rei do Egipto. Deixa-vos à vontade para que o possais desenvolver e
musicar. Por mim, gostaria muito de organizar essa peça. Estais interessado?
- Vou deitar imediatamente mãos à obra.
Contactado pelo seu Irmão Thamos, que se havia encontrado com Von Gebler e que o
havia convencido, o pedreiro-livre Bòhm ficara satisfeitíssimo de inscrever no
seu
repertório um drama musical alemão.
26
Quanto a Wolfgang, sentia-se animado por uma energia formidável, e antevia a
possibilidade de realizar o seu grande projecto. Para abertura da obra,
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adoptaria a
sua sinfonia em mi bemol maior15. Depois, trataria de refundir a orquestração,
mexeria nos coros já compostos e acrescentaria um novo, no lugar do final
instrumental,
a fim de dotar a obra de maior amplitude e majestade.
- Queres examinar comigo o libreto? - perguntou Thamos.
- Quando quiserdes.
Tamos, Rei do Egipto, primeiro acto
Thamos retirou da biblioteca do seu palacete um romance escrito pelo abade Jean
Terasson, intitulado Sethos. Wolfgang devorou-o numa só noite e embebeu-se
destarte
no ambiente do Egipto Antigo.
Depois, na companhia do seu mentor, Wolfgang vogou até à cidade sagrada de
Heliópolis, onde oficiavam os sacerdotes e as sacerdotisas do Sol. Sethos, o
sacerdote
supremo, estava prestes a coroar o jovem Thamos como faraó.
- O que significa esse nome, que é também o vosso? - perguntou Wolfgang.
- Thamos é uma transposição de Tutmósis, "aquele que nasceu de Thot", deus dos
sábios e dos escribas. Redigiu um livro no qual revelava a ciência da iniciação,
da
qual o abade Hermes, último responsável pelo mosteiro onde cresci, foi o
derradeiro depositário.
- E o abade transmitiu-vos a ciência da iniciação?
- Se a transmissão fosse interrompida, poderia o Sol continuar a erguer-se?
Regressemos à tua obra, na qual deverá figurar, sob múltiplas formas, o número
três.
- Por que razão?
- A unidade, número de Deus, é incompreensível para nós. Quando nasce a
dualidade, simultaneamente união e separação, desenvolve-se a criação. A
primeira forma perceptível
é o triângulo formado pela grande deusa ísis, pelo seu esposo Osíris e pelo
filho deles, Hórus. Quando um criador age em função do número três,
assimilando-o ao
âmago do seu pensamento, ele está a prolongar a obra primordial.

15 K. 184 (nº 26), datada de 1773.


27

- Três bemóis, três acordes, terças encadeadas, trios vocais... Tenho dezenas de
maneiras de fazer viver esse número!
- Trata sobretudo de não o tornares numa simples convenção ou artifício.
- Por vezes, sinto que não sou eu a fazer a música, é ela que me faz. Sinto
então o fluído a correr e nada o consegue impedir.
- Possam os deuses guiar-te em direcção à luz, Wolfgang!
- A luz de Heliópolis?
- A cidade sagrada corre um grave perigo, por causa de uma revolução fomentada
pelo cruel Ramsés. Ele destronou o sábio faraó Me-nés, que todos julgam morto.
Na
verdade, este esconde-se sob o nome de Sethos, supremo sacerdote, e está
encarregado de coroar Thamos, filho de Ramsés.
- Esse jovem é puro, recto e generoso, perfeitamente oposto ao seu ignóbil pai!
Ele deseja desposar uma rapariga maravilhosa, chamada Sais, que está apaixonada
por
ele. Mas Sais não é, tão-pouco, quem todos pensam que é! Durante a revolução,
segundo a versão oficial, Tharsis, filha do faraó Menés, teria morrido no
incêndio
do palácio. Mas, na verdade, sobreviveu e tomou o nome de Sais, o que é ignorado
pelo seu pai.
- Com saudades do sábio Menés, o povo começa a resmungar contra a tirania e não
aprova a coroação de Thamos. Caso a bela Thasis ainda fosse viva, ela
tornar-se-ia
rainha. A situação é tanto mais delicada quanto Mirza, suprema sacerdotisa do
templo, revela a sua natureza perversa e maléfica. Informada acerca da
verdadeira identidade
de Sais, confidencia esse segredo ao infame Pheron, um traidor que se apresenta
como o melhor amigo de Thamos, quando na verdade só trabalha para a sua
perdição.
Página 9
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Querendo evitar a todo o custo um casamento entre Thamos e Sais, que formariam
um casal régio imbuído do sentido de justiça, Mizra concebe um espaventoso
projecto:
atrair Sais para os braços do traidor, para que ele seja coroado no lugar de
Thamos.
Thamos, Rei do Egipto, segundo acto
Wolfgang descobriu a galeria da residência reservada às virgens do Sol. Ali,
contemplou a maravilhosa Sais e percebeu o amor pró-

28
fundo que Thamos sentia por ela. Os sentimentos da rapariga tinham a mesma
intensidade, mas ela queria consagrar-se à iniciação, ao culto da luz e à
prática dos
mistérios.
- Tal atitude serve os interesses da suprema sacerdotisa Mirza - observou o
egípcio. - Ao permanecer junto das suas Irmãs, Sais não voltará a ver Thamos e o
casamento
não poderá realizar-se.
- Mirza ousa afirmar a Thamos que Sais ama o traidor Pheron! - indignou-se
Wolfgang. - Desesperado, o príncipe dá provas de uma rara nobreza, ao aceitar
renunciar
àquela que ele tanto queria erguer ao tálamo nupcial. Cabia a Sais, como a
qualquer mulher, o direito de escolher o seu próprio destino.
- Apesar do seu sofrimento, Thamos aceita até consagrar essa união - comentou o
egípcio. - Nada mais conta, se não a felicidade da sua bem-amada.
Thamos, Rei do Egipto, terceiro acto
Wolfgang penetrou no templo dos fiéis do Sol, onde o traidor Pheron, quebrando a
palavra dada, ousava jurar sobre a divindade, em frente ao seu "querido amigo
Thamos",
que lhe seria sempre fiel.
- Os traidores, os mentirosos e os perjuros acabam sempre por cometer um erro
fatal - considerou o egípcio. - O de Pheron consiste em vangloriar-se do seu
feito
junto do supremo sacerdote Sethos, cuja verdadeira identidade ele ignora. Desta
forma, comunica a Me-nés que a sua filha Tharsis, que o faraó julgava vítima do
incêndio,
está viva e se apresenta agora sob o nome de Sais. E Pheron, que já se antevê
como faraó, acrescenta que, aquando da sua própria coroação, revelará a verdade.
- A suprema sacerdotisa Mizra anuncia a Sais que ela reinará dentro em breve. A
rapariga reserva-se o direito de anunciar a sua escolha quando o momento chegar,
pois o poder não a atrai de modo algum. Mas o traidor Pheron não entende as
coisas desse mesmo modo. Se porventura Sais se recusasse a casar com ele, ele
ver-se-ia
obrigado a tomar o trono pela força.
- Então a violência triunfará novamente?
29
- Sais invoca a alma do seu pai, que ela julga morto, para que a guie. Em
consequência das suas preces, ela decide não reinar no lugar de Thamos e
permanecer no
interior do templo, com as suas Irmãs.
Thamos, Rei do Egipto, quarto acto
Os sacerdotes e as sacerdotisas reúnem-se em plenário no templo do Sol.
- Um coro misto, muito solene, celebra a omnipotência divina - decide o músico.
- Soa então a voz mágica das flautas - indica Thamos.
- Flautas mágicas... Sim, elas anunciam a coroação do jovem faraó! Sethos-Menés
acende a chama e despeja sobre ela o incenso. Quem se poderia opor a tal
entronização?
- Mizra declara então que Sais, a filha de Menés, está viva.
- Thamos ajoelha-se diante dela e presta-lhe homenagem e obediência. Pheron
formula à futura soberana a pergunta decisiva: quem desposará ela?
- Ninguém - responde Sais. - Prestei votos ao culto do Sol. E se tivesse que me
casar, seria com Thamos.
- Pheron, o traidor, grita que se trata de uma traição! - empolga-se Wolfgang. -
E dá aos seus sequazes o sinal do assalto.
Página 10
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Nesse instante, Sethos despe o manto de supremo sacerdote e revela-se como
faraó Menés. Todos se inclinam, até mesmo os rebeldes. Mizra suicida-se com um
punhal,
Pheron é preso. O rei permite que sua filha despose Thamos.
- Raios e trovões eclodem - indica o músico. - Matam Pheron, que continuava a
proferir blasfémias. No final do drama, o solo baixo do faraó, em harmonia com o
coro,
proclama: "Filhos do pó, tremei e vibrai!" E a melodia das flautas mágicas traz
de volta a paz e a alegria.

5.
Viena, 10 de Setembro de 1779
Chovia por fim, e a manhã estava muito fresca. Com o final do Verão, Geytrand
sentia-se renascer com tanto mais vigor quanto os últimos relatórios dos seus
informadores
traziam notícias propícias ao seu regozijo.
- A Estrita Observância templária está em maus lençóis - anunciou ao seu patrão,
Joseph Anton. - Como tínheis previsto, a luta encarniçada entre o duque de
Brunswick
e o da Sudermânia acaba por ser nociva para a Ordem no seu conjunto. Os Irmãos
Cavaleiros queixam-se e acusam o Grão-Mestre de não cumprir as suas promessas. A
última
tentativa de reconciliação saldou-se por um insucesso. Nenhum dos contendores
arreda das suas posições, nenhum contacto se estabelece entre suecos e alemães.
- Fernando de Brunswick corre o risco de ser afastado?
- Não é impossível, senhor conde, mas lutará até ao fim. Agindo com prudência,
ele tem nos últimos anos congelado o número de iniciações de topo, de forma a
não
permitir a introdução de raposas na capoeira. Assim, ele permanece rodeado de
fiéis e controla todos os dignitários. Melhor ainda: ele não prevê a criação de
mais
Lojas na Alemanha, nem a consagração de Cavaleiros em Viena.
- Não baixemos a guarda. Pode tratar-se de um passo em falso ou de uma
artimanha. O Grão-Mestre e o seu cúmplice são homens obstinados. Não renunciarão
nem aos seus
poderes nem à expansão da Ordem. Os nossos informadores que permaneçam atentos.

31

Brunswick, 11 de Setembro de 1779


O duque de Brunswick sentia o peso dos seus 58 anos, tão pesados quando
comparados com as vigorosas 35 primaveras de Carlos de Hesse, seu braço-direito
e confidente.
- Corremos o risco de uma cisão, mas eu recuso-me a abandonar a liderança da
Ordem! O nosso ideal não deve desaparecer à conta das ambições de um príncipe
sueco.
- Aprovo sem reservas a vossa decisão, Grão-Mestre, e devo dizer-vos que tenho
porventura uma pista. A cidade de Lyon, sede da nossa segunda província
templária,
parece muito activa. O Irmão Willermoz levou a cabo longas e pacientes pesquisas
que lhe teriam permitido obter a pedra filosofal, bem como o conhecimento de
certos
mistérios. Esqueçamos a Áustria e a Alemanha, e voltemo-nos para a capital das
Gálias.
"Por que é que o Superior incógnito, aquele egípcio tão clarividente, não volta
para me aconselhar?", interrogava-se Fernando de Brunswick.
Veneza, 13 de Setembro de 1779
De posse de um mandado de busca de legalidade inquestionável, os polícias
apresentaram-se no domicílio do abade Lorenzo da Ponte, que já fora proibido de
ensinar
desde Dezembro de 1776, e julgado culpado de difundir ideias revolucionárias, ao
sustentar que o Homem seria mais feliz no seu estado natural do que no seio de
constrangedoras
instituições sociais. Em resumo, o abade defendia a destruição da Igreja e da
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
sociedade.
Prudente, o pássaro havia voado para longe do ninho antes de ser capturado.
Nesse mesmo dia, com efeito, Lorenzo da Ponte, de seu verdadeiro nome Emanuele
Conegliano e de origem judaica, passava a fronteira austríaca, fugindo das
autoridades
venezianas. Consumado mentiroso diante do Padre Eterno, infatigável
rabo-de-saias, sem escrúpulos para ir abandonando a prole que ia gerando, ele
tinha resolvido
deixar

32
Veneza, onde, por causa dos seus repetidos escândalos, deixara de se sentir em
segurança. As autoridades queriam, aliás, condená-lo ao exílio "por adultério e
concubinagem
públicos", actividades que já tinham motivado a sua expulsão do seminário de
Treviso.
Nada disto, porém, impedia o bom abade de possuir uma sólida cultura literária,
de ler Dante, Petrarca e Tasso com assiduidade, e de pretender ser um literato
capaz
de alinhavar uns versos, decerto um pouco vazios, mas bem construídos. Nos altos
salões, ele conseguia recolher assinaláveis sucessos ao improvisar sonetos ou
pequenas
odes sobre quaisquer temas.
Após o que arrebatava uma das damas presentes, que houvesse ficado encantada
pelo seu talento, e vivia à custa dela durante algum tempo, antes de saltar para
outra.
Mas essa existência dourada acabava doravante. Aos 30 anos, Da Ponte não
apreciava nada o exílio forçado, que o obrigava a vaguear pelas estradas à
procura de um
emprego remunerado. Por isso pensava na corte de Viena onde, segundo os rumores
que corriam, um bom libretista tinha todas as oportunidades para triunfar. E o
abade
acreditava piamente no seu talento como autor. Ele haveria de redigir depressa,
por encomenda, os textos requisitados pelos autores de óperas. Havia
concorrência?
Ele daria cabo dela!
Decidindo esquecer Veneza, Lorenzo da Ponte seguiu firmemente em direcção à
capital do império austríaco.

Salzburgo, Outubro de 1779


- Já sabes da notícia? - perguntou Anton Stadler a Wolfgang.
- Boa ou má?
- Para a tua antiga amada, é excelente! A menina Aloysia Weber acaba de ser
contratada pela Ópera Alemã de Viena, para onde foi morar a sua família.
- Ainda bem, ela merece.
- Parece que não lhe queres mal algum!
- Aloysia é uma cantora maravilhosa. Ela é livre de escolher o rumo da sua vida,
e eu desejo-lhe muito sucesso e felicidade.
- Ainda a amas, não amas?
33
- Talvez a ame ainda durante muito tempo, quem sabe para sempre. Ela foi a
primeira mulher que me despertou para esse sentimento tão doce e poderoso, terno
e violento,
calmo e abrasador. Graças a ela, a minha alma abriu-se a essa realidade
misteriosa.
- Então, deves procurar conhecer melhor essa realidade, dando-te com outras
raparigas! A não ser que pretendas reconquistar o coração de Aloysia...
- Não, Anton, ela não me deixou nenhuma esperança.
- Nesse caso, não te penitencies mais e aprende a distrair-te. Não me digas que
o teu Thamos, Rei do Egipto te ocupa o tempo inteiro!
- Mas é verdade. Cumpro o melhor que posso as minhas obrigações de
músico-lacaio, para poder consagrar todos os meus tempos livres a essa obra, por
cujo libreto
me apaixonei. Estou ainda longe de compreender todos os seus aspectos, mas acho
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
que a música abrir-me-á muitas portas e levar-me-á até ao âmago do pensamento
dos
sacerdotes do Sol.
- E isso é assim tão importante?
- É essencial, Anton! Não te interessas pelo mistério que é a nossa vida?
- Por agora, contento-me em vivê-la e não me aborreço nem um segundo!
- Nunca te interrogas acerca do sentido da tua existência?
- A quantidade de interrogações que pões a ti próprio chega bem para mim! Quando
tiveres obtido as respostas, basta que mas comuniques. Não residirá aí o
privilégio
da amizade?
6.
Brunswick, 8 de Outubro de 1779
O Grão-Mestre da Estrita Observância templária tinha enviado um emissário para
Florença, onde, segundo alguns Irmãos, residia o Superior incógnito.
Por fim, Waether estava de regresso!
Pequeno, corpulento e volúvel, ele ostentava um ar triunfante.
- Alteza, anuncio-vos um sucesso completo! Encontrei um ser excepcional que me
iniciou numa Loja Rosa-Cruz. Ele evoca os espíritos e confere-lhes presença na
terra.
- Como se chama? Waether pareceu atrapalhado. -Jurei mantê-lo em segredo.
- O que te recomendou ele a nosso respeito?
- Deveis prosseguir o vosso caminho, mas inflectindo-o na direcção dos espíritos
e da Rosa-Cruz. A via dos templários não leva a lado nenhum.
Tal declaração foi acolhida por um demorado silêncio.
- Cumpriste a tua missão - observou o Grão-Mestre. - Parte já de seguida para a
Dinamarca, onde te tornarás ministro e camareiro.
Não estando à espera dessa promoção, Waether fez uma profunda vénia.
Fernando de Brunswick pegou numa pena.
35

- Vou enviar uma circular para todos os capítulos da Estrita Observância


templária - declarou -, a fim de lhes recordar que eu, Grão-Mestre em exercício,
sou detentor
de conhecimentos secretos. Se quiserem elevar-se até esse nível de saber, os
Irmãos deverão mostrar-se virtuosos e respeitar mais intensamente os princípios
morais.
De agora em diante, o lugar hierárquico ocupado por qualquer pedreiro-livre
dependerá directamente do seu grau de iniciação na ciência esotérica.
- E a nossa filiação templária? - inquietou-se Carlos de Hesse.
- Ouçamos os Superiores incógnitos cuja sabedoria nos dirige. Rejeitemos
portanto oficialmente qualquer filiação e laço histórico com os templários.
Renuncio à restauração
material da Ordem do Templo. Cada Irmão deverá acatar esta minha decisão e
abraçar as minhas ideias. Se não, demito-me.
Desta feita, o barão de Hund, fundador da Estrita Observância, estava mesmo
morto.
Viena, 15 de Outubro de 1779
Joseph Anton leu lentamente a "circular Brunswick" que Geytrand acabara de lhe
entregar.
- Espantoso! Porque é que o duque se está a suicidar desta maneira?
- Porque um emissário chamado Waether transmitiu-lhe directivas oriundas de um
espírito oculto.
- E o Grão-Mestre deixou-se apanhar por esse género de discurso?
- Grande parte dos pedreiros-livres não questiona a existência desses Superiores
incógnitos. O duque de Brunswick e Carlos de Hesse acreditam piamente neles.
- Outros acreditam em Cristo, em Maomé ou em deuses variados -resmungou
Anton.-Esse tal Waether seria um dos ditos Superiores?
- É apenas um burlão, em quem o Grão-Mestre ingenuamente confia! Em recompensa
pelos seus serviços, obteve um bom lugar na corte da Dinamarca.
- O ideal templário está, portanto, arrumado?
- Segundo Fernando de Brunswick, certamente. Mas consta que a circular que ele
enviou colheu bastantes reacções negativas. Muitos
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
36

Irmãos tinham esperança na ressurreição da ordem templária, da qual contavam


retirar vantagens materiais. Como o duque ameaçou demitir-se caso não lhe dessem
ouvidos,
os dignitários acabaram por apoiá-lo. Sem ele, todo o edifício desmoronar-se-ia.
Mas, face às críticas e às reacções negativas, o Grão-Mestre já começou a
recuar.
- Em suma - concluiu Joseph Anton -, ei-los lançados numa roda-viva de
discussões infindáveis!
- Com um pouco de sorte, a Ordem poderá desmoronar-se como se fosse um castelo
de cartas batido por ventos adversos.
-Não contes com isso, Geytrand. Mesmo supondo que Brunswick esteja
desestabilizado, não tardará a reencontrar o equilíbrio e retomará o comando do
barco com a sua
habitual firmeza.

Salzburgo, 30 de Outubro de 1779


Enquanto acariciava Miss Pimperl, deitada no seu regaço, Wolf-gang pensava no
desaparecimento de Fridolin Weber, falecido a 23 de Outubro. Como teria gostado
de
tê-lo como sogro, e de tornar a filha dele feliz! Não obstante o sucesso de
Aloysia, o bom homem não tinha suportado mais uma mudança para Viena.
- Estamos prontos - declarou Anton Stadler.
A contragosto, a fox-terrier teve de deixar o colo do dono e Wolf-gang juntou-se
ao grupo dos seus amigos músicos. Eles tocaram uma sinfonia concertante16 em que

o violino e os instrumentos de sopro desempenhavam os principais papéis.


Enquanto esperava pela encenação de Thamos, Rei do Egipto, esta obra impusera-se
ao seu
espírito.
O esplendor da nova composição deslumbrou os seus primeiros intérpretes.
Desnorteados por tamanha amplidão e audácia de expressão, eles sentiram-se
transportados
para outro mundo, povoado por diálogos incessantes entre solistas e orquestra,
sem ruptura da unidade do discurso. Apesar do sofrimento expresso no movimento
inicial,
os diversos temas afirmavam a esperança e a alegria de viver.
O sábio recurso aos silêncios dava valor aos impulsos melódicos, que
transtornaram Anton Stadler.

16 K. 364.
37
- O que é que tu compuseste, Wolfgang... Sinto-me todo mexido por dentro. És
mesmo um homem normal?
- E se fôssemos jogar ao chinquilho?
Berlim, 20 de Dezembro de 1779
Dadas as dificuldades encontradas pelo Grão-Mestre Fernando de Brunswick, os
dois rosa-cruzes mais activos, Wöllner e Bishoffswerder, decidiram vibrar um
grande
golpe.
Durante uma sessão da Loja-Mãe17 dos Estados prussianos, à qual assistiam também
Thamos, conde de Tebas, e diversos visitantes de relevo, Wöllner tomou a palavra
e falou num tom de suma gravidade.
- Honoráveis Irmãos, a Maçonaria vive horas decisivas. O nosso Rito actual, o da
Ordem do Templo, deixou de corresponder às nossas aspirações mais profundas.
Devemos
doravante reportar-nos a uma outra tradição, a da Rosa-Cruz. Estanislau II, rei
da Polónia, é um dos seus ilustres representantes, e o conde Dietrichstein
recebeu
a missão de constituir diversos capítulos Rosa-Cruzes na Áustria, na Hungria e
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
na Boémia.
Tais informações surpreenderam muitos dignitários, que não faziam ideia do grau
de expansão desse movimento maçónico subterrâneo.
- Esta nossa Loja continuará a fazer parte da Estrita Observância? - perguntou
Thamos.
- Isso é impossível - respondeu Wöllner. - A nossa Loja-Mãe e todas as suas
filiais devem abandonar a Ordem do Templo e juntar-se à Rosa-Cruz de Ouro.
A defecção dos pedreiros-livres prussianos vibrava um sério golpe na Estrita
Observância. Thamos vislumbrou o ligeiro sorriso que floresceu nos lábios dos
jesuítas
dissimulados sob os seus aventais.
Viena, 31 de Dezembro de 1779
Joseph Anton ceava sozinho, contentando-se com um copo de vinho tinto e um
pedaço de peru frio. As quadras festivas exasperavam-
17 Loja dos Três Globos.
38

-no. Não acreditando nem em Deus nem no Diabo, e ainda menos na bondade dos
homens, ele não suportava esse esbanjamento de religiosidade e de regozijos
forçados,
durante os quais os piores inimigos fingiam dar-se às mil maravilhas, mas só
enquanto os festejos decorressem.
Ele continuava a trabalhar para preservar o modelo austríaco, a harmonia da
sociedade e o respeito pelo poder instituído. Qualquer factor de anarquia ou de
desordem
devia ser impiedosamente perseguido, a começar pela Maçonaria, hidra de
múltiplas cabeças, cuja destruição demoraria decerto muito tempo.
A Estrita Observância templária havia sido causa de muitas noites passadas em
branco, de tal modo os seus projectos políticos pareciam perigosos. Voltar a
erguer
uma milícia de Cavaleiros ávidos de reconquista não equivaleria a pôr em causa o
trono imperial?
Ao favorecer a entrada encapotada de jesuítas nas Lojas, Anton desejava
simultaneamente recolher o máximo possível de informações, e perverter o
espírito maçónico,
orientando os Irmãos em direcção a um catolicismo tingido de misticismo e de
cerimónias ocultas, ou seja, em direcção à Rosa-Cruz que agora triunfava em
Berlim.
Uma bela vitória do conde de Pergen, cuja estratégia consistia em dividir e opor
os movimentos maçónicos uns aos outros, de forma a evitar qualquer possível
unificação,
que seria fonte de um poderio temível.
A guerra estava longe de estar ganha, pois, não obstante os seus sucessos, Anton
não podia actuar de forma aberta. Oficiosamente sustentado pela imperatriz Maria

Teresa, ele desconfiava das tendências liberais de José II. Saberia o novo
soberano reconhecer os seus méritos e compreender a importância da sua missão?
Soaram as 12 badaladas da meia-noite, iniciou-se um novo ano. Enquanto os
foliões se abraçavam e desejavam saúde e felicidade uns aos outros, Anton
arrumava os seus
ficheiros. Nenhum pedreiro-livre haveria de lhe escapar, muito menos os de
Viena.
7.
Salzburgo, 15 de Janeiro de 1780
A companhia de Böhm, que ainda passaria largos meses no principado, ensaiava o
Rei Lear, de Shakespeare.
Wolfgang interpelou o director no momento em que ele saía do teatro.
- Não deveríeis estar a ensaiar, este mês, a peça Thamos, Rei do Egipto?
- É verdade, senhor Mozart, é verdade! Mas o projecto revelou-se mais complexo
do que pensávamos e...
- Não brinqueis comigo! O texto e a música estão à vossa disposição, eu estou
pronto para dirigir, os vossos comediantes já estão habituados a peças mais
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
longas
e mais difíceis.
- Decerto, mas as condições técnicas...
- Dizei-me a verdade, rogo-vos!
Böhm não ousou olhar de frente para Mozart.
- Aqui, em Salzburgo, nós somos apenas hóspedes de passagem, e carecemos da
autorização das autoridades para encenar todas as nossas peças.
- Essa autorização foi-vos recusada?
- Não a obtive, e foi-me desaconselhado que insistisse.
- Por que razão?
- Este drama teria já sido representado, pelo menos em parte, e sem nenhum
sucesso, e a vossa música desagradou ao príncipe-arcebispo. Seria pois
inconveniente perseverar.
40

- Renunciais, portanto, a representar Thamos, Rei do Egipto?


- Não me deixam escolha - deplorou Böhm, contristado. - Teria tanto gosto era
dar-vos satisfação e em obter um enorme sucesso!
Colloredo... sempre Colloredo! O Grande Mufti decidia, julgava, proibia.
Desgostoso, cansado, Wolfgang voltou para casa em passo lento, sem sentir sequer
os picos de vento gelado. Já não lhe apetecia compor. Para que servia criar
obras
novas e originais, se elas não seriam jamais tocadas? Quanto a produzir um
sem-fim de obrinhas destinadas a divertir o príncipe-arcebispo, isso estava para
além
das suas forças. Só lhe restava cumprir as suas funções de organista da
catedral.

Lyon, 20 de Janeiro de 1780


Informado acerca dos problemas que sacudiam a Estrita Observância templária,
Jean-Baptiste Willermoz escreveu uma carta a Fernando de Brunswick e a Carlos de
Hesse,
dois grandes senhores que ele admirava por causa dos seus títulos e da sua
posição social.
O místico lionês afirmava que, mercê do seu saber oculto, um anjo protector
permanecia sempre junto dele e emitia ruídos sobrenaturais quando aprovava os
seus procedimentos.
Em seguida, definia o seguinte: "A Maçonaria não possui outro escopo que não o
conhecimento do Homem e da Natureza; sendo fundada sobre os alicerces do Templo
de
Salomão, ela não pode ser estranha à ciência do Homem, já que todos os sábios
que existiram desde a sua fundação, sustentaram que esse famoso Templo só existe
para
servir de modelo universal para o Homem, quer no passado quer no presente e no
futuro."
Declaradas estas verdades, Jean-Baptiste Willermoz abriu o seu Círculo de
Operações, no qual praticaria a magia divina por três noites consecutivas, tendo
previamente
imposto aos participantes as provações do jejum e da abstinência.
Comunicar-lhes-ia a tábua alfabética dos 24 000 nomes dos Patriarcas, dos
Apóstolos e dos Profetas,
o quadro das 28 residências lunares, o tratado dos hieróglifos que designavam os
planetas-anjos e a receita de elaboração do óleo de unção.
41
Dentro em breve, os adeptos do mercador lionês reinariam sobre a Maçonaria e
trá-la-iam de volta para o seio de Cristo Salvador.
Salzburgo, 27 de Janeiro de 1780
Anton Stadler tentou em vão alegrar o jantar comemorativo do vigésimo quarto
aniversário de Wolfgang. Nannerl estava tão sorumbática como de costume, e
Leopold ele
próprio confrangia-se com a tristeza do seu filho, incapaz de compor. Nem mesmo
Miss Pimperl conseguia distraí-lo.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Desculpai-me, apetece-me andar.
Rejeitando uma suculenta tarte de maçã, Wolfgang deu por si a vaguear pelas ruas
cobertas de neve e desertas, que formavam os corredores da prisão da qual ele
não
sairia jamais.
O perfil altaneiro de Thamos, o egípcio, barrou-lhe a passagem.
- Porquê tal desespero, Wolfgang?
- Não tendes notícia do desaire que ocorreu?
- Claro que tive.
- Nunca hei-de voltar a compor.
- Estás a inclinar-te perante o Grande Mufti?
O jovem endireitou-se.
- Nunca!
- Este nunca anula, então, o precedente?
- Thamos, Rei do Egipto contava tanto para mim!
- Essa obra não morreu. Ao aprofundá-la, transpuseste uma nova etapa na direcção
do templo que a tua música começa a evocar. Nenhuma das tuas percepções será
inútil.
- Colloredo amordaça-me!
- Admito que quebrar o seu poder não será tarefa fácil. Já que os mistérios
egípcios desagradam, mudemos momentaneamente de estratégia.
O olhar de Wolfgang recobrou um pouco de alento.
- Um outro projecto?
- Um hino à liberdade, sob a forma de uma fábula que retomará os temas da moda e
não chocará Colloredo.

42

- Mas como não se trata de uma encomenda dele, há-de proibi-la!


- É possível. Preferes renunciar?
- A liberdade... Sonho com ela todas as noites!
- Então, decide-te.
A reflexão foi breve.
- Sinto demasiada vontade de escrever! O que tendes para me propor?
- A história de uma rapariga injustamente aprisionada e que quer recuperar a sua
liberdade.
Wolfgang voltou a sorrir.

8.
Salzburgo, 1 de Fevereiro de 1780

Wolfgang tinha nutrido a esperança de trabalhar de novo com Thamos, mas desta
feita foi Johann Andreas Schachtner, escritor e trompetista de 49 anos, que se
apresentou
à sua frente, com um libreto debaixo do braço.
- Um comanditário rico encarregou-me da adaptação de um texto, com a expressa
condição de serdes vós a musicá-lo.
Schachtner já se debruçara sobre Bastião e Bastiana e traduzira para alemão A.
Falsa Jardineira. Ele ignorava que O Rapto do Serralho 18 derivava de um conto
da
autoria do pedreiro-livre Lessing, intitulado Nathan, o Sábio, no qual se
desenvolviam ideias abordadas durante os trabalhos em Loja.
- Tomais um copo de punch? - propôs Wolfgang.
- Certamente! Isso ajudar-me-á a esquecer o Inverno e a ser transportado para o
Oriente, para junto do sultão Solimão, tirano impiedoso. Queixando-se do seu
fado,
os seus escravos partem pedras. Entre eles, encontra-se o cristão Gomatz.
Estafado, desesperado, ele adormece sob o olhar da bela e rebelde Zaida, cristã
e futura
favorita do serralho. A rapariga deixa um retrato seu junto do dorminhoco.
- Assim que ele acorda - interveio Wolfgang - contempla o retrato e apaixona-se
por ela! Juntos, cantarão o seu desejo de se Eva-
18 Zaida ou O Rapto do Serralho, K. 344.
44
direm e de viverem o seu amor em plena liberdade. Mas como poderão escapar?
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- Graças a Alazim, um criado do sultão que desaprova o comportamento do seu amo.
Emocionado com a coragem que eles demonstram, ele ajuda-os a sair da prisão e à
atingir a margem do rio. Amanhece, os dois jovens e o seu salvador despedem-se.
- Rebenta uma tempestade - indica o compositor - e os soldados do sultão
conseguem capturar os nossos heróis.
- Com efeito - reconheceu o trompetista. - Osmim, o mercador de escravos,
trá-los, de pés e mãos atados, de volta a Solimão. Este decide mandar executar o
trio de
fugitivos.
- Zaida procura enternecer o monstro, mas em vão. Diante de tamanha crueldade,
ela clama a sua sede de liberdade e o seu amor por Gomatz. Morrerão de cabeça
erguida.
- É impossível que a peça acabe com tal tragédia - determinou Schachiner. -
Alazim relembra a Solimão que, uma vez, foi responsável por lhe salvar a vida.
Em preito
de reconhecimento, o sultão concede-lhe o seu perdão.
- Mas Alazim não abandonará os dois jovens ao seu triste fim. Como poderá
salvá-los?
- Revelando que eles são ambos seus filhos. O sultão concede-lhes então a vida e
a liberdade.
- O tema agrada-me!
- Não celebra ele, afinal, a magnanimidade de um grande senhor cuja crueldade
parecia inamovível? Ao perdoar, ele dá provas da sua sabedoria.
"Seria mesmo bom que o Grande Mufti inspirasse com o exemplo de Solimão", pensou
Wolfgang.

Frankfurt, 25 de Fevereiro de 1780

Por fim, o professor Adam Weishaupt, aos 32 anos, via o seu sonho tornar-se
realidade! A Ordem secreta dos Iluminados da Baviera já não era uma utopia, pois
contava
agora com 70 membros da mais alta categoria, cuja autoridade intelectual haveria
de pesar sobre a evolução das mentalidades e da sociedade.

45
A maior parte dos Iluminados era também Irmãos da Estrita Observância e começava
a converter uma parte dos pedreiros-livres à sua visão do mundo, contrapondo-se
ao catolicismo dominante até então.
O poderoso impulso ideológico imposto por Weishaupt parecia irresistível, mas
esbarrava com um obstáculo de peso: o conteúdo dos ritos. Os pedreiros-livres
não se
contentavam com teorias, mesmo que elas fossem inovadoras e sedutoras. Muitos
desejavam participar em cerimónias, manejar símbolos e aceder ao conhecimento
dos mistérios,
para lá da filosofia.
Nesse terreno, o jurista Adam Weishaupt revelava-se singularmente falho de
competência. Por isso recorreu a um reputado especialista em rituais maçónicos,
o barão
imperial Adolf von Knigge. Originário de Hanôver, desprovido de terras e de
fortuna não obstante o seu título sonante, este jovem de 28 anos, protestante
liberal,
era simultaneamente dramaturgo, poeta e homem de negócios.
Iniciado em Cassei19, Von Knigge pertencia à esfera superior da Estrita
Observância20, mas não tinha sido admitido na Rosa-Cruz de Berlim. Por causa
dessa experiência
humilhante, guardava uma aversão profunda pelos místicos cristãos, que
considerava incapazes de aceder a uma verdadeira iniciação.
Adam Weishaupt apresentou-se e agradeceu ao barão Adolf von Knigge ter aceite
encontrarem-se no maior sigilo.
- Porquê tanto cuidado? - perguntou Von Knigge.
- Porque eu dirijo uma Ordem maçónica, os Iluminados da Baviera, desconhecido
pelas autoridades e pela polícia.
- Perigosa iniciativa, professor!
- Se queremos mudar o mundo e servir a Humanidade, temos de estar prontos a
correr riscos.
- Mudar o mundo... Não medis as vossas palavras!
- Considerais a nossa sociedade livre, justa e harmoniosa? Von Knigge fez um ar
Página 18
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
desenganado.
- Isso seria estupidez.

19 Na Loja do Leão Coroado.


20 Como Cavaleiro a Cygno.

46
- E a nossa querida maçonaria parece-vos estar à altura das circunstâncias?
- Nem sempre, Irmão. Todavia, parece-me a única via digna de interesse, pois os
sistemas filosóficos comuns não me satisfazem. Em termos religiosos, eu flutuo
entre
a fé e a incredulidade, pois as diversas doutrinas são vazias de sentido. No
entanto, qualquer revolução brutal seria certamente condenável. Ela não traria
nenhum
progresso, caso os homens, por causa das suas paixões, permanecessem iguais ao
que são hoje. Só o aperfeiçoamento intelectual e moral da Humanidade poderá
modificar
a situação.
- Alguns jesuítas, infiltrados nas Lojas, procuram perverter os pedreiros-livres
e trazê-los insidiosamente de volta para a Igreja.
- É verdade - reconheceu o barão Von Knigge -, particularmente nos círculos da
Rosa-Cruz de Ouro.
- Os Iluminados da Baviera querem estancar essa derivação sem ferir a
susceptibilidade dos Irmãos, mas propondo-lhes um novo caminho.
- Como pensais proceder?
- Quero oferecer-lhes rituais mais ricos e mais profundos do que os da Estrita
Observância.
- Já os redigistes?
- Só comecei - confessou Weishaupt. - Sozinho, nunca conseguirei cumprir essa
tarefa. Peço a vossa ajuda e o vosso conselho.
- Sede claro, Irmão: estais a pedir-me que redija os rituais da Ordem dos
Iluminados da Baviera?
- Caso aceitásseis essa missão, barão, faríamos progredir a Maçonaria de forma
decisiva.
- Aceito.
9.
Salzburgo, Março de 1780

A última missa breve21 de Wolfgang respeitava escrupulosamente os limites de


tempo estabelecidos. Mas o seu Benedictus, no qual estava patente uma revolta
que tinha
muito pouco de religioso, desagradou ao príncipe-arcebispo. Felizmente, o Agnus
Dei, embora próximo do estilo da ópera22, oferecia uma suavidade tão encantadora

que logrou apaziguar a cólera do senhor de Salzburgo.


- Mesmo assim, desconfia - recomendou Anton Stadler a Wolfgang. - Colloredo não
é completamente estúpido, e acabará por perceber que a tua música manifesta
sentimentos
hostis. E alguns dos nossos queridos colegas não deixarão de lho apontar.
No início de uma Primavera luminosa, Wolfgang esqueceu o Grande Mufti e deu os
derradeiros retoques às Vésperas solenes de um confessor22, no seio das quais
brilhou
um trecho excepcional, o haudate Dominum 23 para soprano e coro.
Nunca Thamos, o egípcio, havia ouvido canto tão puro, capaz de exprimir a
aspiração da alma em direcção ao divino, ou o diálogo entre o indivíduo e a
comunidade
das estrelas.
21 K. 337.
22 Certos críticos descortinam nesta obra o esboço da ária Porgi amor da
condessa das Bodas de Figaro.
23 K. 339.
48
O Supremo Mago ia-se afirmando a cada dia que passava e, desta feita, tinha
Página 19
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
atingido o limiar do sublime. Ao ouvir este trecho, o ser inteiro era
transportado para
um outro mundo. E este louvor ao Senhor elevava-se ao nível de um ritual.
Weimar, 23 de Junho de 1780

Johann Joachim Christoph Bode, Venerável Adjunto da Loja Amália de Weimar,


felicitava-se por ter procedido à iniciação de um célebre escritor de 30 anos,
Johann
Wolfgang von Goethe. Autor das Penas do jovem Werther, ele era também
dramaturgo, poeta, jurista, químico e, desde 1775, conselheiro político e
económico do grão-duque
de Weimar.
Devido à ausência do Venerável vitalício, Von Fritsch, Bode pôde desempenhar com
brio a sua função. Goethe gostou da cerimónia e não se arrependeu de ter
enveredado
pelo caminho da Maçonaria. Ele agradeceu a Bode o interesse que havia conseguido
despertar-lhe por essa escola de pensamento, herdeira das antigas iniciações e
base
de uma filosofia nova de que o mundo bem precisava.
Tal como Bode, Goethe temia as graves convulsões políticas e sociais que
arruinariam a Europa, mergulhando-a em horríveis conflitos. Por isso, era
preciso mudar
as mentalidades e instituir as reformas necessárias para evitar tais
infortúnios.
Não seria a Maçonaria uma das forças capazes de levar adiante esse combate justo
e de fazer triunfar as luzes sobre as trevas?

Viena, 1 de Julho de 1780

- Goedie pedreiro-livre - resmungou Joseph Anton ao ler o relatório de um


informador. - Maçador, muito maçador... Se os intelectuais de renome começam a
juntar-se
a esta maldita confraria, esta tomará um peso considerável.
- Os intelectuais não agem - objectou Geytrand. - Contentam-se em remexer em
ideias e em construir utopias.
- Quando um homem de acção se apropria de uma utopia existente, esta torna-se
numa arma de guerra. E a Maçonaria poderia jun-

49

tar pensadores e activistas, tal como o próprio Goethe, simultaneamente escritor


e político. Quero a máxima informação possível sobre esta Loja de Weimar.
- Segundo os dados de que já disponho, senhor conde, ela certamente não se
tornará um foco revolucionário. Os seus membros preocupam-se antes em manter a
ordem estabelecida.
- Esperemos que assim seja, Geytrand, esperemos que assim seja.
Salzburgo, 2 de Setembro de 1780
A 29 de Agosto, a vibrante sinfonia em dó maior24, que não compreendia nada
menos do que 40 violinos, transmitia alegria e ímpeto de conquista. Tamanha
potência
sonora espantou Leopold. Significaria ela um regresso ao optimismo e uma
aceitação da condição de músico salzburguês?
Leopold desencantou-se de imediato, vendo o seu filho voltar a cair na
morosidade. Convencido de que a sua ópera O Rapto do Serralho nunca seria
representada, Wolfgang
parou de compor no quarteto vocal do segundo acto, no momento em que o corajoso
Alazim suplicava ao sultão que poupasse a sua filha Zaida e o seu filho Gomatz.
O
jovem músico já não teve forças para escrever a cena final, na qual magnificaria
a grandeza de alma do tirano, que agraciava os três heróis.
Colloredo, ele, certamente não teria procedido da mesma forma.
Desconsolado, Wolfgang transmitiu o seu mal-estar a três breves canções sobre
poemas de Johann Timotheus Hermes.
A primeira, de ar moderado, intitulada A. Esperança 25, evocava o sofrimento de
viver e a necessidade de encontrar um amigo que ajudasse a suportar essa dor.
Página 20
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Triste
e calma, a segunda, dedicada A Solidão 26, celebrava esta como único refúgio
para o indivíduo magoado, próximo da morte. A terceira, Graças Sejam Dadas ao
Esplendor
dos Grandes27, devendo ser cantada com indiferença e satisfação, recomendava aos
ouvintes que não procurassem assemelhar-se aos poderosos deste
24 K. 338.
25 K. 390.
26 K. 391.
27 K. 392.
50
mundo, que não se deixassem ludibriar pelos seus faustos, e que desconfiassem da
sua hipocrisia. Cabia à experiência o papel de ensinar cada um a não ser nem
audacioso
nem fútil, e a não se deixar reduzir à insignificância.
- Não confundas o poder dos governantes com a verdadeira grandeza - recomendou
Thamos a Wolfgang, caminhando ao seu lado. - Exprimir a solidão, o sofrimento e
a
desilusão tem sobre ti um efeito libertador, mas aprecio sobretudo a tua
conclusão: não nos devemos encerrar na nossa mediocridade. Se acarinhares a tua
magia, ela
libertar-te-á de todas as camisas-de-forças.
- O Rapto do Serralho... Um novo fracasso!
- Enganas-te. Juntamente com Thamos, Rei do Egipto e com Semiratnis são os
prelúdios de uma grande ópera.
- Terei de esperar numerosos anos para vê-la concretizada?
- Somos regidos por dois tempos: aquele que nos é imposto do exterior, e aquele
que nós moldamos. Quando eles coincidirem, conhecerás alegrias intensas, desde
que
não cedas nem um palmo à indolência. Se não, não passarás de um títere.
- Colloredo nunca me há-de encomendar uma ópera.
- É verdade.
- E impedirá que outros me façam tal encomenda!
- A solidão quebrar-se-á, e a tua esperança coroar-se-á de sucesso. Trabalha sem
descanso, pois nada do que estás a preparar será em vão.
Apesar da chuva, o Sol brilhava.

10.
Estrasburgo, 16 de Setembro de 1780

Interrogando-se sobre as qualidades iniciáticas e sobre as verdadeiras intenções


de Cagliostro, Thamos foi até à capital da Alsácia para aí assistir a um
capítulo
dirigido por este estranho personagem, que se gabava de ter seduzido um dos
altos dignitários franceses, o cardeal de Ruão. Este prelado estava convencido
de que
Cagliostro sabia produzir ouro, e que lho forneceria em caso de necessidade.
Thamos estava à espera, portanto, de um ritual alquímico inspirado no Egipto
antigo, carregado de conhecimentos fundamentais, mas acabou por assistir a um
espectáculo
completamente diferente.
No meio da sala, o mago depositou uma taça de água pura.
Em seguida, fez entrar uma rapariga e um rapaz, Colomba e Pupilo, aos quais
pediu que lessem a mensagem dos anjos e dos profetas. Eles entraram em contacto
com a
alma dos mortos queridos das pessoas presentes.
Finda a sessão, Thamos interrogou Cagliostro.
- O essencial da vossa iniciação reside no que acabámos de assistir?
- A vós, e somente a vós, posso dizer a verdade: estou a recolher fundos para
desenvolver a minha rede de Lojas. Acabo, aliás, de receber novos subsídios do
cardeal
de Ruão. No dia em que eu revelar por fim os meus verdadeiros segredos, estareis
presente e compreendereis o sentido da minha busca.
52
Página 21
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Salzburgo, 17 de Setembro de 1780

Homem de teatro até à medula, Emmanuel Schikaneder era simultaneamente director


da companhia, actor, cantor, cenógrafo, coreógrafo e mesmo um pouco compositor,
quando
as circunstâncias assim o exigiam. Com 29 anos, ar próspero, ele usava uma
abundante cabeleira negra. Os seus maxilares vigorosos e o queixo fendido
traduziam uma
força de vontade férrea.
Nesta bela tarde de fim de Verão, a companhia de Schikaneder apresentava-se no
teatro de Salzburgo, onde o comediante itinerante contava ficar instalado por
algum
tempo. No programa figuravam Calderón, Goldoni, Lessing, Shakespeare, a par com
alguns outros autores mais fáceis, e mesmo com algumas comédias da própria
autoria
de Schikaneder, tudo com um único objectivo: agradar ao público, diverti-lo,
surpreendê-lo, encantá-lo! Esfalfando-se a trabalhar, Schikaneder cuidava de
todos os
pormenores e desempenhava por vezes, numa mesma peça, os papéis de jovem rico,
de pai nobre ou de simples camponês.
Ele pretendia conquistar a cidade com uma peça burlesca, A Alegre Miséria ou os
Três Aprendizes de Mendigo, em que desempenhava o papel principal, chorando
alegremente
sobre o seu fado.
Como todos os demais espectadores, Wolfgang deu por si a sorrir. E no dia 1 de
Outubro, assistiu à representação do Navio de Ratsbona, pátria de Schikaneder,
da
qual este mofava pela boca de um criado que cantava uma ária "à maneira turca".
Doido por efeitos especiais, que iam desde o fogo-de-artifício até às variações
de
luzes, o comediante fez surgir macacos e ursos que realizavam milhares de
momices no palco.
Este deslumbramento de maravilhas encantou Wolfgang, que não tardou em
apresentar-se ao responsável pela peça.
Entre os dois homens correu de imediato uma corrente de simpatia.
- Sois comediante?
- Músico da corte. Chamo-me Wolfgang Mozart.
- Mozart... o menino-prodígio de que toda a Europa falou?
- Hoje apenas um organista ao serviço do príncipe-arcebispo Colloredo.

53
- Aqui entre nós, ele não tem nada fama de gostar de facécias!
- A quem o dizeis!
- Há muitas distracções aqui em Salzburgo?
- Vós trazeis-nos uma lufada de ar fresco, senhor Schikaneder! Aceitaríeis
jantar lá em casa?
- Com prazer! A minha mulher Leonor, que é uma excelente comediante,
contar-vos-á milhares de anedotas.
Apesar das reservas de Nannerl, Leopold apreciou imenso o casal Schikaneder.
O jovial comediante revelou-se como excelente jogador de dardos e, encantado com
a nova amizade que assim se estabelecia, ofereceu entradas gratuitas à família
Mozart
para toda a temporada em Salzburgo.
Brunswick, 19 de Setembro de 1780
Fernando de Brunswick estava abatido. Terminara a leitura de um panfleto anónimo
intitulado A Pedra do obstáculo e o Rochedo do escândalo revelados a todos os
meus
concidadãos alemães fora e dentro da sétima província.
Este texto execrável revelava a organização da Estrita Observância, apontando os
seus pontos fracos, contava a sua história secreta, expunha o conteúdo dos seus
graus e criticava os seus chefes.
Quem poderia ser o autor de tal traição, se não uma das criaturas do duque de
Sudermânia que, furioso por não ter obtido o poder absoluto, preferira afundar o
navio?
Página 22
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Depois de ter consultado Carlos de Hesse, o Grão-Mestre decidiu reunir os seus
Irmãos em capítulo, em Wilhelmsbad, para tentar salvar a Ordem, gravemente
ameaçada.
Para preparar os debates desta assembleia, ele formulou uma série de perguntas
às Lojas:
Em primeiro lugar, possuía a Ordem verdadeiros Superiores? Quem eram? Onde
residiam? A Ordem encontrava-se ligada a alguma sociedade mais antiga? Qual? As
origens
da Ordem estavam relacionadas com os templários?
Em segundo, qual seria a forma mais adequada de organizar os cerimoniais e os
rituais?
54
Em terceiro, poder-se-ia restaurar do ponto de vista económico, com toda a
segurança, a Ordem do Templo?
Em quarto, o objectivo assumido pela Ordem deveria ser público ou interno?
Poderiam a beneficência, o mútuo apoio dos Irmãos, a educação dos homens para o
Estado,
constituir objectivos exteriores que justificassem a existência da Ordem?
Em quinto, existiriam determinados conhecimentos de que a Ordem fosse a única
depositária?
Uma vez que o seu anjo-da-guarda não dava sinais de vida, Carlos de Hesse
interrogou-se acerca do bom fundamento de tão assombrosa iniciativa.
- Não estaremos nós a expor as nossas dúvidas perante o conjunto dos nossos
Irmãos?
- Ao verificarem a nossa sinceridade, os Superiores incógnitos acorrerão em
nosso auxílio - considerou Fernando de Brunswick.

11.
Salzburgo, 5 de Outubro de 1780
- Estás a brincar, Anton?
- De modo nenhum - respondeu Stadler, desafiando o compositor.
- Tu vais-te casar?
- Pois é, caso-me no dia 12 com Francisca Bichler.
- Então, vais tomar juízo?
- Claro que vou, já que sou um rapaz honesto. Nós não temos dinheiro, mas
seremos muito felizes e fundaremos uma família prolífica28.
- Eis um programa magnífico, Anton! Estou feliz por teres por fim tomado o
caminho certo.
- Eu também - suspirou Stadler. - As mulheres são tão complicadas! Esta, pelo
menos, sabe bem o que quer. E uma boa notícia nunca vem só. Os meus talentos de
clarinetista
foram reconhecidos na corte, e dentro em breve obterei um posto oficial.

Viena, 15 de Outubro de 1780


- A Estrita Observância morreu! - exclamou Geytrand, cujo rosto sinistro
exprimia uma alegria doentia. - Em resposta ao panfleto em que se expunham as
suas torpezas,
eis a inacreditável resposta
28 Entre 1781 e 1791, nascerão oito crianças deste matrimónio.
56
do Grão-Mestre: um questionário enviado às Lojas, que vem provar a completa
confusão que reina na direcção da Ordem! Joseph Anton leu cuidadosamente o
texto.
- Esta iniciativa provocará tantas reacções descontroladas que o capítulo de
Wilheknsbad não se reunirá tão cedo, se é que se reunirá de todo - acrescentou
Geytrand.
- E um novo sisma abate-se sobre a Ordem templária: a demissão do duque de
Sudermânia e de todos os Irmãos suecos, que se recusam a estarem associados a
tamanho
escândalo.
- Deste modo, Fernando de Brunswick elimina o seu rival - verificou Anton.
Página 23
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Mas a que preço! Ele não conseguirá recompor-se deste golpe.
- Sou menos optimista que tu, pois Brunswick e o seu cúmplice Carlos de Hesse
têm ambos força de vontade e lutarão até ao fim. Nunca haveriam de achar outro
exército
como o que lhes fornece a Estrita Observância. Talvez a Ordem esteja apenas a
atravessar uma fase má, talvez acabe por sair reforçada e renovada do capítulo
que
se reunirá em Wilheknsbad. Estive a reler os rituais templários, e parecem-me
claramente ameaçadores. Neles, com efeito, o Cavaleiro neófito entrega-se à
simulação
de um assassínio, entra na Loja ostentando uma "cabeça coroada", jura vingar a
memória de Jacques de Molay decapitando Fikpe, o Belo, e todos os reis tiranos,
prega
a igualdade entre os homens, e reclama a atribuição da soberania ao povo! Não
nos descuidemos pois, e os teus informadores que se mantenham atentos.
Salzburgo, 31 de Outubro de 1780
Graças ao seu novo amigo Schikaneder, Wolfgang, a pouco e pouco, esqueceu a sua
prisão salzburguesa. Evadia-se pelas fantasias teatrais e pelos alegres serões,
bem
regados, em que se entretinha com uma série de jogos de sociedade e com trocas
de palavras descaradas.
Encantado por participar nesses serões, Anton Stadler estava atrapalhado com o
facto de ter de dar a Wolfgang uma má notícia.
- Como te sentes hoje?
- Mais ou menos.
- Achas que podemos falar um pouco... do passado?

57
- Falas num tom de grande mistério, Anton!
- É um assunto delicado, extremamente delicado, e eu não gostaria que...
- E se desembuchasses de vez? Anton Stadler engoliu em seco.
- Trata-se de Aloysia.
- Ela está... doente?
- Não, oh não! A não ser que se considere o casamento como uma doença.
- Aloysia, casada?
- Sim, com um comediante, Joseph Lange29.
- Um comediante... Desejo-lhes muitas felicidades e oferecer-lhes-ei um
presente.
Wolfgang compôs dois Ueder, com a peculiaridade de serem acompanhados por
mandolina. O primeiro, sobre as palavras do poeta Johann-Martin Miller,
intitulava-se A
Felicidade30 e cantava uma alegria serena, longe da vaidade dos grandes deste
mundo. O segundo, Vem, cara citará 31, era uma serenata de amor.
Com estas duas obras, Wolfgang cortava cerce o fio que ainda o ligava a Aloysia.
O seu primeiro grande amor não passava agora de uma sombra, para sempre perdida
nos limbos do esquecimento.
Munique, 31 de Outubro de 1780

Presuntivo herdeiro do trono da Baviera, Karl Theodor atingia por fim os seus
objectivos. Após um longo período de instabilidade, que ameaçara mesmo
desencadear
uma guerra sangrenta entre a Áustria e a Prússia, Karl Theodor reinava sobre
Munique e sonhava de novo com o ressurgimento da vida artística, apesar das
objecções
apresentadas pelo seu confessor, o jesuíta Frank, que preferiria ver o duque
mais entregue à devoção e à oração.
Por isso, Karl Theodor recebia uma série de pessoas que lhe vinham apresentar
alvitres. Ele aparecia como um príncipe liberal, dese-
29 Tiveram seis filhos.
30 K. 349.
31 K. 351. Esta ária prefigura a de Don Giovanni.
58
Página 24
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
joso de melhorar o quotidiano dos seus súbditos oferecendo-lhes excelentes
espectáculos.
- Conde de Tebas! Fico feliz por vos acolher aqui na Baviera.
- Sabendo quanto o vosso tempo é precioso, posso apresentar-vos desde logo um
projecto?
- Fazei o favor.
- O próximo período de Carnaval poderia acolher uma ópera de grande qualidade
que há-de seduzir a vossa magnífica cidade.
- Uma obra... séria?
- Não seria isso adequado às circunstâncias? Um belo tema, aliado a uma música
ampla e rigorosa, serviriam melhor a vossa fama do que uma comédia ou uma ópera
bufa.
"Este conde de Tebas tem uma certa razão", pensou o príncipe-eleitor.
- Falta pouco tempo para o Carnaval. Sabeis de algum compositor capaz de levar
adiante tal projecto?
- Conheço apenas um: Wolfgang Mozart. Karl Theodor amuou.
- Ele tem um feitio um bocado rebelde...
- É hoje um fiel servidor do príncipe-arcebispo Colloredo, e trabalharia
juntamente com um religioso da catedral de Salzburgo, chamado Varesco, de forma
a vos fornecer
uma obra moral e religiosamente idónea. Para mais, Mozart não deixa de proclamar
o reconhecimento e a estima que nutre a vosso respeito, considerando-vos como um
dos maiores protectores da música.
Karl Theodor não foi insensível nem às garantias dadas, nem aos elogios.
- A vossa proposta interessa-me, senhor conde, mas devo consultar os meus
conselheiros. A minha decisão não tardará.
Thamos inclinou-se.
O príncipe-eleitor convocou de imediato o seu confessor.
- Conheceis Varesco?
- Um capelão salzburguês digno da maior estima - respondeu o jesuíta.
- E Wolfgang Mozart?
- Quem é?

59
- Um músico da corte de Colloredo. Não existe a seu respeito nenhum rumor
suspeito, nenhuma informação comprometedora?
O confessor Frank era também um dos agentes de Geytrand, encarregado de elaborar
o ficheiro de pedreiros-livres e de recolher o máximo de informações a seu
respeito.
Dotado de excelente memória, podia citar de cor os seus nomes e graus.
- Não consta nenhum rumor nem informação contrária. Esse Mozart não pertence a
nenhuma associação subversiva.

12.
Salzburgo, 5 de Novembro de 1780
O conde Hieronymus Colloredo não mudara. Áspero e brusco, ele omitiu as fórmulas
de polidez, e anunciou logo a sua decisão a Mozart, seu músico-lacaio.
- O príncipe-eleitor da Baviera deseja que componhais uma ópera para o Carnaval
de Munique. O libreto é obra do meu capelão Varesco, que vos remeterá o texto.
Partis
hoje mesmo e concedo-vos seis semanas de ausência para que possais dirigir os
ensaios e oferecer ao príncipe-eleitor uma música satisfatória, no estilo da
ópera
italiana. Tratai de não nos desiludir.
Com um gesto seco, Colloredo despediu o criado.
Giovanni-Baptista Varesco esperava por Wolfgang. De espírito um pouco lerdo, o
capelão tinha tido a sorte de receber um texto praticamente pronto, que retomava
um
libreto de Antoine Danchet, já usado por um músico francês chamado Campra32.
- Qual é o tema? - inquietou-se o compositor, temendo uma inépcia.
- A história trágica de Idomeneu, rei de Creta. De regresso da guerra de Tróia,
ele tem de assegurar a sobrevivência do seu povo sacrificando o seu próprio
filho.
- Há heroínas?
Página 25
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
32 1660-1744.

61
- Duas, ambas apaixonadas pelo filho condenado à morte.
- E deuses?
- Todo o enredo repousa sobre a maldição e a clemência de Neptuno.
- Dai-me o vosso texto.
Pela primeira vez, Wolfgang partiria em viagem sozinho, já que o seu pai não
fora autorizado a acompanhá-lo.
Munique, 6 de Novembro de 1780
Com a cabeça cheia de música e a mão prestes a correr sobre o papel, Wolfgang
sentia raiva por aquele libreto de Varesco, que tinha de modificar
profundamente, suprimindo
tempos mortos e erros de dramaturgia.
Wolfgang foi acolhido de braços abertos pelos seus amigos da orquestra de
Mannheim, agora instalados em Munique. A cabeça deles, figurava Christian
Cannabich, que
o levou até um alojamento confortável, sito na Burggasse.
Nessa mesma noite, o seu quarto muniquense transformou-se na ilha de Creta e ele
cantarolou a primeira frase da heroína, ília: "Quando cessará o meu cruel
infortúnio?"
Filha de Príamo e prisioneira dos cretenses, a bela rapariga apaixonara-se por
Idamante, filho do rei Idome-neu, regente do território durante a ausência do
pai.
Este último voltava por fim, são e salvo, depois de ter participado no cerco de
Tróia! Mas só conseguia sobreviver a uma tempestade mediante a formulação de um
voto
solene dirigido a Neptuno: sacrificar a esse deus a primeira pessoa que
encontrasse ao pousar de novo o pé no solo da sua pátria.
Quis o fado cruel que essa pessoa não fosse outra se não o seu próprio filho,
Idamante. O rei ordena ao infeliz, que ignora a promessa formulada pelo pai, que
parta
para sempre de Creta, na companhia da sombria e aflita Electra, apaixonada pelo
príncipe e cheio de ciúmes de ília.
As forças sobrenaturais voltam a mostrar-se superiores aos embustes dos humanos!
Irrompendo das águas, um monstro ameaça aniquilar a ilha de Creta. Face à
população
aterrorizada, o rei Idomeneu
62

confessa toda a verdade. E todos exigem que ele mate o seu filho para apaziguar
a cólera divina.
Pronto para morrer, Idamante ataca o monstro... e abate-o! Um final feliz? Não,
pois a vitória não anula o voto. Então, a corajosa Ilia decide tomar o lugar do
homem
que ama. Desta vez, a tragédia parece inevitável.
"Um deus pode, só por ele, mudar a face do mundo", afirmava o libreto, "e o
rigor dará lugar à clemência." Admitindo o triunfo do amor, Neptuno desliga o
rei Idomeneu
do voto pronunciado, mas impõe uma condição: que ele renuncie ao trono em prol
do seu filho Idamante, que deverá casar com Ilia, para desgosto de Electra, que
fica
louca de dor.
O amor puro, o sacrifício de si próprio, o respeito pela palavra dada, o poder
divino... Todos estes aspectos entusiasmavam Wolfgang. E que estranha conclusão:
um
pai digno, que ama o seu filho, vê-se condenado a sacrificá-lo; mas a vontade
divina modifica o destino e leva ao triunfo do filho, obrigando o pai a abdicar.
Por
um instante, um brevíssimo instante, Wolfgang pensa em Leopold. Depois volta a
deitar mãos à obra, encantado por poder exprimir mil sentimentos através de uma
ópera
"séria", cujos personagens ele saberia tornar bem vivos.
Página 26
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Munique, 7 de Novembro de 1780

Wolfgang foi recebido pelo conde Seeau, que continuava a exercer o cargo de
intendente dos teatros e da música. Este consumado hipócrita, que o havia em
tempos dispensado
como um zé-ninguém desprovido de futuro, mostrava-se agora sorridente e cortês.
- Estou encantado por vos rever, Mozart. Pelo que dizem, dais plena satisfação
ao príncipe-arcebispo Colloredo, cujo excelente gosto musical é sobejamente
conhecido.
Não vos esconderei uma certa inquietação. O tempo à vossa disposição para compor
esta ópera é mínimo, pois a nossa boa cidade gostaria de ouvi-la durante o
período
carnavalesco.
- Os desejos do príncipe-eleitor são ordens para mim. O tema agrada-me,
conseguirei respeitar os prazos.
- Tomais esse compromisso solenemente?

63
- Duvidais disso? Quando um Mozart dá a sua palavra, não volta atrás.
- Perfeito, fico descansado.
Parecia evidente que o conde Seeau pensava sobretudo na sua própria reputação.
Caso se atrasasse, o príncipe-eleitor não deixaria de lho censurar.
Com um olhar galhofeiro, Wolfgang viu afastar-se esse cortesão que passaria o
dia a coligir e a disseminar boatos. Felizmente, os técnicos e os decoradores
que trabalhavam
na Ópera de Munique eram profissionais de primeira água, e dariam o seu melhor
para dar todo o seu esplendor à partitura de Idomeneu.
Longe de Salzburgo, Wolfgang sentia-se respirar. Na véspera, tinha-se encontrado
com os cantores, cujo nível lhe parecia satisfatório, com excepção do velho
tenor
Raaff, a quem cabia o papel principal. E tinha também de transformar vários
trechos do libreto, ainda um bocado coxo.

13.
Munique, 15 de Novembro de 1780

- Fico contente por vos ver aqui - disse o príncipe-eleitor Karl Theodor a
Mozart.
- O vosso trabalho avança de maneira satisfatória?
- Muito satisfatória, Alteza.
- O nosso Idomeneu ficará portanto pronto a tempo?
- Não temais. Tenho a cabeça arejada e sinto muita alegria no meu trabalho.
- É um belo tema, não é?
- Desde que o libreto seja melhorado, pois o capelão Varesco não percebe nada
das exigências da música.
- Conto com o vosso sentido diplomático, Mozart!
- Podeis contar, Alteza.
- No que se refere aos cantores, não há problemas?
- Alguns.
- Fáceis de resolver, espero?
- Tratarei deles.
- Perfeito, Mozart, perfeito! Quero um belo sucesso.
- Eu também, Alteza.
- Tendes razão em regressar a Salzburgo e servirdes um príncipe tão esclarecido
como Colloredo. Doravante, a vossa carreira está assegurada.
65
Munique, 20 de Novembro de 1780
O tenor Raaff, outrora tão simpático, não parava de importunar Wolfgang,
pedindo-lhe para alterar o seu papel, de forma a adaptá-lo às suas capacidades
vocais em
franco declínio. Quanto ao castrado Del Prato, que interpretava Idamante, filho
do rei Idomeneu, era tão inexperiente que o compositor tinha de cantar com ele,
ensinando-lhe
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
cada nota. Totalmente desprovido de método, comportava-se como uma criança.
Felizmente, as cantoras eram excelentes!
Não obstante as suas ocupações, que não lhe deixavam um momento de descanso,
Wolfgang alinhavou para o seu amigo Schikaneder uma ária para intercalar numa
ópera
de Gozzi, intitulada O amor, porque tomas esse cruel prazer33, que enviou de
imediato para Salzburgo.
Apesar do cansaço, o jovem criador vivia momentos exaltantes. Afinal, não estava
ele a realizar o sonho de escrever uma ópera e vê-la representada? Sentia de
novo
esperança, e um certo gosto de liberdade.
Devia essa felicidade a Thamos, seu protector. Fora ele, sem dúvida, quem
conseguira convencer Karl Theodor a realizar a encomenda de Idomeneu. Decerto,
Wolfgang
teria preferido continuar com as suas explorações do tema dos sacerdotes do Sol,
mas não o punha o tema desta obra também em contacto com os deuses?
Salzburgo, 29 de Novembro de 1780
"Decididamente", pensou Emmanuel Schikaneder, "este Mozart é uma pessoa de bem.
A ária prometida chegou a tempo. Eis um homem de palavra, coisa rara nos tempos
que
correm!"
Pedreiro-livre, o homem de teatro não lamentava ter dado ouvidos ao conselho de
um Irmão, um tal conde de Tebas, que lhe recomendara que passasse por Salzburgo
onde,
nessa mesma noite, a sua popular peça Olho por olho haveria de atrair o
entusiasmo do público.
Nascida no seio das bebedeiras com os comediantes da sua companhia, esta peça
estava recheada de um sentido cómico crepitante, de
33 K. 365a, hoje perdida.

66

forma a evitar que os espectadores se pudessem queixar de estar a provar um


prato requentado ou indigesto.
Mas as momices e as piadas pesadas não lograram romper o gelo da assistência.
Para grande desilusão de Schikaneder, a nobreza e a burguesia de Salzburgo não
tinham sentido de humor. Um emissário do príncipe-arcebispo abordou o director
da
companhia.
- Como podeis verificar, este género de espectáculo não agrada ao nosso
principado.
- Mas havia nele bons motivos para rir!
- Salzburgo detesta a grosseria.
- Tenho outras peças no meu repertório.
- Depois de um insucesso deste tamanho, mais valia tentardes a vossa sorte
noutro sítio.
Schikaneder empalideceu.
- Devo depreender...
- Fazei as malas o mais depressa possível. O nosso teatro aguarda outras
companhias.
Viena, 29 de Novembro de 1780
Vestido de negro, o médico inclinou-se diante de José II.
- Majestade, Deus acabou de acolher junto d'Ele a alma da imperatriz Maria
Teresa.
Doravante único senhor do império austríaco, José II não manifestou nenhuma
emoção. Há muito tempo que a velha senhora, demasiado atenta aos assuntos
religiosos,
deixara, na verdade, de governar, embora mantivesse a capacidade de bloquear as
reformas indispensáveis.
De rosto muito comprido, faces todas vincadas por rugas, austero, parcimonioso,
vestido com simplicidade, o imperador reuniu os seus ministros.
- As grandes coisas devem cumprir-se de uma só vez - declarou. - Todas as
mudanças acabam, mais cedo ou mais tarde, por provocar controvérsias. A melhor
Página 28
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
forma de
proceder consiste em informar logo o público acerca das nossas intenções e, uma
vez tomada a
67

decisão, não escutar nenhuma opinião contrária, e levá-la a bom termo com
resolução.
A firmeza do tom e a clareza das palavras causaram surpresa. Parecia evidente
que o reinado de José II não ficaria marcado pela inacção.
- Qual será a linha de força da nossa política, Majestade? - perguntou o decano
dos dignitários.
- Ela resume-se em poucas palavras: o Estado deve assegurar o maior bem possível
ao maior número de pessoas. Confirmar a abolição da escravatura e da servidão,
melhorar
o sistema penal, assegurar a igualdade perante os impostos, limitar os poderes
da nobreza e da Igreja, suprimir os mosteiros e conventos que não desempenhem
nenhuma
função social, favorecer a tolerância e a liberdade de pensamento: eis as
medidas urgentes que serão criadas pela legislação.
- Majestade, não temeis que...
- O mundo está a mudar. Não o admitir e não empreender as reformas impreteríveis
conduziria o império para o seu descalabro. Tomemos a dianteira e provemos ao
povo
que governamos em seu favor, e não em nossa gloríola ou em nosso proveito
pessoal.

Viena, 30 de Novembro de 1780

Desolado, com o estômago às voltas, Joseph Anton bebeu um grande copo de vinho
tinto. O falecimento da sua protectora, a imperatriz Maria Teresa, era uma
catástrofe.
Ela financiava pessoalmente o seu serviço secreto, cuja existência não era
conhecida nem sequer pelo chefe da polícia.
O primeiro discurso de José II não deixava qualquer margem para dúvidas: ao
afirmar o seu liberalismo, o imperador abria as portas a todas as correntes de
pensamento,
incluindo a Maçonaria!
Anton contemplou com azedume as pilhas de pastas pacientemente acumuladas. Tanto
trabalho inutilizado, tantos esforços vãos, tantas descobertas condenadas a
desaparecer...
Ele não se conformava em queimar os fólios cobertos por uma letra cerrada,
precisa e sem desníveis. Não havia nela qualquer traço de paixão ou de impulso,
antes
uma meticulosidade científica que excluía qualquer distorção ou erro.

68
No entanto, era preciso destruir as provas da sua actividade, de agora em diante
considerada ilegal.
Pensando melhor, não!
Dando um murro na mesa, ele decidiu tomar a iniciativa. Ao obedecer à defunta
imperatriz, não tinha ele servido o seu país?
Em vez de se imolar, ele advogaria a sua causa junto do imperador,
explicando-lhe por que considerava a maçonaria tão perigosa.
14.
Munique, 1 de Dezembro de 1780
No final do primeiro ensaio do primeiro acto de Idomeneu, com uma orquestra
reduzida, a satisfação foi geral. Instrumentistas e cantores apreciavam a música
de Mozart,
que entretanto ficara constipado.
- A minha constipação e a minha bronquite pioraram - confessou ao tenor Raaff -,
damos tudo por tudo quando a nossa honra e a nossa reputação estão em jogo.
Mesmo
quando guardamos o nosso sangue-frio, vamos ao fundo das coisas!
Com efeito, o maestro manifestava um entusiasmo de tal ordem que todos seguiam
Página 29
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
atrás dele, até ao extremo das suas capacidades técnicas. Só o velho Raaff pediu
ainda
algumas modificações, consciente da sua dificuldade em seguir o ritmo.
-Já sabes a grande novidade? - perguntou a Wolfgang.
- Uma guerra?
- Não, felizmente! A imperatriz Maria Teresa de Áustria acaba de falecer.
- Temos, portanto, luto oficial!
- Não temas, já estará revogado quando for altura da primeira representação de
Idomeneu. Esta perda não parece afligir-te nem um pouco.
- Um luto demasiado prolongado não traz tanto benefício ao falecido ou à
falecida, quanto prejuízo a um grande número de vivos. Dia 8, ensaiamos os dois
primeiros
actos.
70

Munique, 16 de Dezembro de 1780


Por causa de um atraso devido a um copista demasiado lento, o segundo ensaio
teve de ser adiado. Constipação e bronquite começavam a melhorar, mas uma outra
calamidade
ameaçava Wolfgang: o Grande Mufti! As seis semanas concedidas por Colloredo
estavam a chegar ao término. Ora, a primeira representação estava marcada para
dia 20
de Janeiro do ano seguinte. Afigurava-se pois impossível regressar a Salz-burgo
na data prevista.
- O príncipe-arcebispo e aquela presunçosa nobreza parecem-me cada vez mais
insuportáveis - confidenciou Wolfgang a Raaff, que finalmente estava satisfeito
com o
seu papel.
- Evita formular tais pensamentos - recomendou o tenor. - Se queres ter uma boa
carreira, não critiques aqueles que nos governam. Sem eles, não haveria teatro,
nem
orquestra, nem cantores, nem sequer trabalho!
Todo entregue à alegria de estar longe de Salzburgo e na iminência de assistir à
estreia da sua ópera, Wolfgang esqueceu o Grande Mufti e dirigiu os músicos com
um dinamismo contagioso.

Munique, 23 de Dezembro de 1780

Durante o terceiro ensaio de Idomeneu, um espectador de peso tomou lugar na


primeira fila: o príncipe-eleitor Karl Theodor em pessoa.
Apesar das promessas de Mozart, o soberano preferia verificar ele próprio o
estado de adiantamento da obra.
Com o dinamismo de sempre, Wolfgang arrastou os músicos num redemoinho dramático
do qual nenhuma linha melódica saiu ferida.
- Magnífico! - considerou Karl Theodor - Ninguém diria que dentro de uma cabeça
tão pequena se esconde uma coisa tão grande! Sobretudo, Mozart, não esmorecei.
- Não temais, Alteza.
71
Viena, 25 de Dezembro de 1780
- Desejáveis ver-me com a maior urgência, conde de Pergen? - espantou-se o
imperador José II.
- Com efeito, Majestade - respondeu Anton, extremamente tenso.
- O que há de tão importante?
- A imperatriz Maria Teresa nomeou-me como responsável de um serviço secreto
encarregado de vigiar as Lojas maçónicas. Contando com um colaborador devotado e
com
uma eficaz rede de informadores, consegui compilar ficheiros minuciosos, que
ficam à disposição de Vossa Majestade.
- Maria Teresa era profundamente crente e detestava a Maçonaria, que, segundo as
suas suspeitas, teria como objectivo derrubar os monarcas. Já que trabalhastes
tão
afincadamente, quais são as vossas conclusões?
- A imperatriz não se enganava. Existem diversos movimentos maçónicos, de
Página 30
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
importância e influência diversas, dos quais eu estabeleci um elenco, e que
apresentam
pontos comuns: o gosto pelo secretismo, a partilha de ideais contestatários, a
vontade de formar uma nova elite, o estudo dos símbolos misteriosos, a prática
de
rituais estranhos, e ambições políticas. A Estrita Observância templária, por
exemplo, procura ressuscitar a velha Ordem de cavalaria, voltando a conferir-lhe
o
seu esplendor passado.
- Simples utopia, não achais?
- Tenho dúvidas, Majestade.
- Essa Estrita Observância está implantada em Viena?
- Felizmente não, mas há ainda outros perigos, nomeadamente o aparecimento de
uma nova Ordem que reúne pedreiros-livres e intelectuais, os Iluminados da
Baviera.
O breve relatório que Anton acabara de receber mesmo antes desta entrevista
gelara-lhe o sangue nas veias. Desta vez, o perigo tornava-se mais grave. E ele
devia
convencer José II a não o menosprezar.
- Conheceis os nomes desses intelectuais?
- Ainda não, Majestade. Este movimento permanece muito hermético. Precisaria de
tempo e de cuidado para descortinar os seus se-
72
gredos. A única certeza que tenho é que as Lojas maçónicas não param de
conspirar.
- A Maçonaria não advoga uma fraternidade que tanta falta faz aos homens?
Demasiado autoritarismo e injustiça podem conduzir à revolta e ao caos. Ouçamos
o povo
e não fechemos o nosso espírito às ideias novas.
Joseph Anton tornou-se lívido.
Era evidente que pedreiros-livres bem colocados tinham conseguido influenciar o
imperador, convencendo-o a não exercer qualquer repressão.
O enorme trabalho de Joseph Anton não servira de nada. Ele teria de se exilar na
província e daí assistir à decadência do império, minado pelo exército maçónico.
- Posto isto - retomou José II -, conto governar sem fraqueza e combater
qualquer ideologia que viesse ameaçar os valores fundamentais sobre os quais
erguemos a
nossa grandeza e a nossa prosperidade. Por isso deveis continuar com as vossas
investigações, senhor conde, e preenchereis os vossos ficheiros com a maior
discrição.
Não tolerarei o menor incidente. Dependereis directamente de mim e guardareis
sigilo absoluto.
- Não cometerei nenhum erro, Majestade, e sereis o soberano de toda a Europa com
melhor conhecimento acerca dos verdadeiros objectivos da Maçonaria.
15.
Munique, 3 de Janeiro de 1781
A minha cabeça e as minhas mãos estão de tal forma tomadas pelo terceiro acto,
que não seria milagre nenhum se eu próprio me visse de repente transformado em
terceiro
acto, escreveu Wolfgang ao seu pai. Só por ele, este acto dá-me mais trabalho do
que uma ópera inteira, pois não há praticamente nenhuma cena que não seja
extremamente
interessante. Nunca estou vestido antes do meio-dia e meia, porque tenho de
ficar a escrever, e nem saio de casa.
Esta febre criadora encantava o jovem compositor. Ele dava por fim o melhor de
si mesmo, com a certeza de que os seus esforços levariam à representação de uma
ópera!
Agora, compreendia melhor por que tinham sido necessárias tantas viagens e
tantos desaires. Essas múltiplas experiências, por vezes dolorosas, haviam-lhe
ensinado
a arte tão difícil da dramaturgia cantada, bem como a necessidade de exprimir o
carácter de cada personagem. Decerto, as de Idomeneu, "opera seria" que
correspondia
a critérios antiquados, pareciam um pouco estáticas, mas ele trataria de
Página 31
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
conferir-lhes um sopro de vida.
E Wolfgang recebeu uma excelente notícia: devido ao falecimento de Maria Teresa,
Colloredo havia acorrido a Viena para apresentar as suas condolências ao novo
imperador
e para lhe proclamar a sua absoluta fidelidade. O Grande Mufti não queria ficar
esquecido nem perder um palmo das suas prerrogativas.
Benefício formidável: Wolfgang não se via obrigado a regressar a Salzburgo!
Quanto ao seu pai e à sua irmã, eles podiam deixar o

74
principado e virem ter com ele a Munique, para assistir à estreia de Idomeneu.
A camisa-de-forças descerrava-se.
Munique, 10 de Janeiro de 1781

- Dadas as circunstâncias - anunciou o conde Seeau a Wolfgang -, a estreia da


vossa ópera será adiada pelo menos oito dias.
- A que circunstâncias vos referis? O aristocrata inchou o peito.
- Eu sou o intendente da música e dos espectáculos - lembrou - não tenho nada
que justificar perante vós as minhas decisões.
Este atraso agradava ao compositor, que ainda tinha de escrever alguns diálogos
para o último bailado. Poderia assim beneficiar de ensaios suplementares.
- Examinei atentamente a vossa partitura, Mozart. Está razoável, com excepção do
uso excessivo dos trombones.
- Excessivo?
- Foi essa a palavra que eu empreguei. Tratareis de reduzir a presença desses
instrumentos.
- Certamente que não o farei.
- Como dizeis?
- Confirmo o que vos disse: certamente que não o farei.
- Sabeis com quem estais a falar?
- Com um administrador, não com um músico. Não tendes de julgar os naipes de uma
orquestração, escolhidos em função de uma cena ou da presença de um ou de vários

cantores. Quando faço intervir os trombones, é porque eles são necessários para
o bom entendimento da obra.
Vexado, o conde Seeau prometeu a si próprio que aquele insolente jamais haveria
de ocupar qualquer cargo na corte de Karl Theodor.

Munique, 25 de Janeiro de 1781


Wolfgang abraçou o seu pai e Nannerl.
- Fizeram boa viagem?
75
- Excelente - respondeu Leopold.
- Se soubésseis como estou feliz! No dia 13, ensaiámos o terceiro acto, e no dia
18, os recitativos. Depois de amanhã, dia dos meus anos, haverá ensaio geral.
- Não houve problemas de maior?
- Um sem-fim deles! Tive de lutar contra as convenções da ópera, contra a
mediocridade de certos cantores, contra as insuficiências do libreto, contra os
defeitos
da encenação, contra a estupidez do conde Seeau, e mais centenas de outros
obstáculos! O pior de tudo foi ter de confiar o papel de Idamante, filho do rei
Idomeneu
e jovem príncipe viril, a um castrado desprovido de talento e de técnica. Ele
não passa de uma nódoa, como herói e futuro soberano de Creta! Infelizmente, não
houve
outra solução. Quando a ópera for à cena de novo, substi-tui-lo-ei por um bom
tenor.
- Não te zangaste com ninguém, espero?
- Claro que não! Por uma questão de economia, ficareis alojados no meu quarto de
hotel. É tão bom rever-vos!
Leopold estava encantado por assistir ao sucesso do seu filho. Idomeneu marcava
talvez o início da brilhante carreira com a qual ele tinha sonhado tanto. E
Salzburgo
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
constituía talvez um buraco, mas era também um abrigo seguro. Um bom posto na
corte de Munique, cuja reputação musical merecia respeito, seria uma verdadeira
felicidade.
Munique, 29 de Janeiro de 1781

Atento, o público do Residenz Theater, de Munique, assistia à estreia de


Idomeneu, Rei de Creia34, opera seria, de Mozart, sob a direcção do maestro
Cannabich.
A partitura não despertou entusiasmo em nenhuma ocasião.
- Música bonita, mas um pouco empolada - murmurou o conde Seeau ao ouvido da sua
vizinha, uma pretensiosa que se orgulhava do seu gosto infalível.
- É normal, querido amigo. Imaginai só, uma ópera no estilo antigo, baseada num
libreto aborrecido! É impossível uma pessoa inte-
34 K. 366.
76
ressar-se por estas marionetas, cujas emoções são tão convencionais que não nos
tocam nem um pouco.
- Algumas árias não são más.
- Ah sim, quais?
- Os conjuntos, por exemplo. São bastante originais, na minha opinião.
- Demasiado longos, demasiado dramáticos! Acreditai, este Idomeneu não ficará em
cena por muito tempo, e este Mozart será depressa esquecido.
Esta crítica radical espalhar-se-ia com a velocidade de um relâmpado. O medíocre
músico salzburguês levaria com os comentários de toda Munique, onde nunca
haveria
de voltar a apresentar obra nenhuma de sua autoria, isto supondo que ele
voltasse sequer a compor...
16.
Brunswick, 30 de Janeiro de 1781

- A resposta de Jean-Baptiste Willermoz acaba de chegar - disse Carlos de Hesse


ao Grão-Mestre Fernando de Brunswick. - Em troca da nossa promessa de discrição
absoluta,
ele consente em comunicar-nos a documentação referente ao grau secreto de
Professo.
- Então, as minhas informações eram exactas! Esse místico francês entretém-se a
escrever os seus próprios rituais e recruta os seus próprios adeptos fora do
circuito
da Estrita Observância.
- É verdade, mas ele parece estar a progredir no caminho certo, pois está a
afastar-se do aspecto cavaleiresco e defende um cristianismo esotérico.
Fernando de Brunswick não protestou. Há já algum tempo que, como Carlos de
Hesse, pensava que a alma da maçonaria era cristã e não templária.
- A nova Ordem de Willermoz compõe-se de Cavaleiros beneficentes da Cidade Santa
- lembrou Carlos de Hesse. - Eles não têm nada de ameaçador e não querem levar a
cabo outro combate que não seja o da conversão completa da sua alma a Cristo. É
por isso que faço questão de vos apresentar o conde Von Haugwitz, cuja profissão
de fé vos há-de interessar.
Com 29 anos, este homem político era simultaneamente crente e libertino.
Iniciado em Leipzig, membro do Rito sueco e dos altos graus templários, ele
cedia aos impulsos
de um êxtase místico.
78
- Meu Irmão - declarou Von Haugwitz -, exorto-vos a regressar a Cristo. Ele é o
caminho, a verdade e a vida. Se a nossa querida Maçonaria se perder nos
descaminhos
pestíferos do ocultismo e da magia, ela será condenada! Pelo contrário, se
entendermos a nossa Ordem como uma verdadeira Igreja cristã, conferir-lhe-emos a
sua verdadeira
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
grandeza. Suplico-vos, augusto Grão-Mestre: trazei de volta os nossos Irmãos
templários para o caminho certo.
- Com Von Haugwitz - considerou Carlos de Hesse -, poderemos criar uma Loja
secreta35, na qual moldaremos uma nova doutrina cristã conduzida pela Maçonaria.
Fernando de Brunswick não emitiu nenhuma objecção.
No entanto, no fundo dele, havia uma dúvida que não lograva esmorecer: por que é
que o conde de Tebas não voltava a aparecer? Desaprovaria ele esta opção?
- Eu ouvi a voz do meu anjo-da-guarda - afirmou Carlos de Hesse. - Nós não
estamos enganados.

Munique, 10 de Fevereiro de 1781


Elizabeth Wendling, que interpretava o papel de Electra em Idomeneu, não era
desprovida de encanto. A sua bela voz de soprano seduzira Wolfgang, que lhe
ofereceu
uma ária, Mas que importa, estrelas 36, em que predominavam a paixão e a
revolta, e em que ela podia demonstrar o seu notável virtuosismo.
- Que presente maravilhoso, senhor Mozart! Agora que já se deu a segunda
representação de Idomeneu, que teve lugar a 3 de Fevereiro, estais já mais
descansado?
- Mais ou menos. A crítica não me é muito favorável.
- Duvidais do vosso talento?
- Eu, não. Mas o conde Seeau, certamente. E é ele quem decide a programação das
óperas.
- O príncipe-eleitor não intervém nesse assunto?

35 A Loja dos Irmãos da Cruz.


36 K. 368.

79
Wolfgang aquiesceu com a cabeça. Ele tinha aliás criado um kyrie em ré menor37
com vista a obter, em Munique, um lugar de compositor de música sacra.
- Sobretudo - insistiu a soprano - não desistais!
No olhar de Elizabeth Wendling, podia ler-se mais do que uma simples admiração.
- Estou-vos grato pelos vossos encorajamentos. Peço perdão por ter de
abandonar-vos, mas prometi terminar um quarteto38 destinado a um amigo, o
oboísta Ramm.
Oboé, violino, viola e violoncelo misturavam as suas vozes numa melodia ora
íntima e grave, ora alegre e quase frívola. Depois do trabalho esgotante de
Idomeneu,
Wolfgang desejava reencontrar um quadro mais íntimo e, sobretudo, arrastar o seu
pai e a sua irmã para as diversões carnavalescas de Munique, esquecendo por
momentos
as preocupações do amanhã.

Salzburgo, 21 de Fevereiro de 1781


Enquanto se preparava para partir para Viena, o príncipe-arcebispo Hieronymus
Colloredo recebeu uma missiva de José II, a quem ele ia prestar homenagem: "O
império
sobre o qual reino deve ser governado segundo os meus princípios: os
preconceitos, os fanatismos, o arbitrário e a opressão das consciências devem
ser reprimidos,
e cada um dos meus súbditos deve ser restabelecido nas liberdades que lhe são
inerentes."
Excelente programa, concretizado por um édito de tolerância que assegurava a
liberdade de culto aos protestantes e aos ortodoxos, os quais já não teriam de
sair
da Áustria. Para mais, autorizados a saírem dos seus guetos, os judeus passariam
a morar onde quisessem. Quanto aos banqueiros, quer fossem suíços quer judeus,
poderiam
doravante instalar-se em Viena e favorecer a realização de novos negócios.
37 K. 341. Pode também tratar-se de outra obra, pois a musicóloga Monika Holl
data este kuirie de 1791.
38 K. 370.

Página 34
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
80
Colloredo aprovava as reformas do imperador. Chegara a hora de optar pelo
caminho do progresso, desde que não se cedesse nem um palmo no que se referia à
manutenção
da autoridade. Quem contestaria a que ele impunha sobre Salzburgo, a não ser
aquele jovem Mozart, sempre desejoso de deixar a cidade e de viver aventuras
inconsequentes?
Ele ultrapassava os limites, agia conforme a sua vontade e só levava a
insucessos prejudiciais à boa reputação do principado.
Segundo as últimas notícias, Idomeneu não sobreviveria ao Inverno. E Mozart
tinha perdido o seu tempo a escrever uma obra menor destinada a um rápido
esquecimento,
em vez de trabalhar para a corte do príncipe-arcebispo.
Daqui para a frente, Colloredo não toleraria mais nenhum escândalo. Ele havia
dobrado o pai, acabaria por dobrar também o filho. Nenhum músico podia esquecer
que
era, antes de mais, um criado da sua Casa, obrigado a obedecer às exigências do
seu amo. Se esse princípio fosse esquecido, entrar-se-ia numa completa anarquia.
- As minhas malas estão feitas?
- Sim, Eminência.
Ao atrair a benevolência de José II, Colloredo consolidaria a sua posição e
asseguraria longos anos de reinado que ninguém, muito menos um musicozeco de
carácter
difícil, ousaria perturbar.

17.
Viena, 1 de Março de 1781

- Podemos prosseguir com a nossa missão - anunciou Joseph Anton a Geytrand.


- O imperador encoraja-nos, ou apenas nos aprova com reticência?
- O nosso soberano exige uma discrição extrema. Ao menor indício de escândalo, o
nosso serviço será desmantelado.
- Então, a nossa tarefa tornou-se ainda mais delicada.
- Como muitos outros soberanos, José II ainda não está ciente de todos os vícios
que a Maçonaria carrega com ela. Eis um documento que ele me entregou, uma carta
de Maria Antonieta, rainha de França, à sua irmã Maria Cristina: "São excessivos
os vossos cuidados com a Maçonaria no que respeita à França; essa instituição
está
longe de gozar aqui a importância que tem noutras partes da Europa, pela simples
razão de que toda a gente faz parte dela; todos sabem, portanto, o que se passa
dentro dela; assim sendo, como poderá haver perigo? Deveríamos desconfiar dela
caso se tratasse de uma sociedade secreta com intuitos políticos; o engenho do
governo,
na presente situação, consiste em deixá-la difundir-se à vontade, para que se
mantenha como aquilo que é: uma sociedade de beneficência e de lazer, na qual se
come
muito, se fala e se canta, o que leva o rei a concluir que pessoas que passam o
tempo a cantar e a beber não estão a conspirar; não se trata de modo algum de
uma
sociedade de ateus assumidos, já que, segundo
82
me contaram, nela se fala muito de Deus; tem uma ampla obra de caridade, cuida
das crianças de pais pobres ou falecidos, trata do casamento das suas filhas; em
suma,
não tem nada de mal."
- Essa é, de facto, a cortina de fumo habitual dos pedreiros-livres - concluiu
Anton. - Eles apresentam-se como foliões inofensivos, unicamente preocupados com
as
acções de caridade, e as pessoas ingénuas acreditam nisso! Por trás da massa de
alegres despreocupados, porém, escondem-se os conspiradores, tais como esses
Iluminados
da Baviera que, segundo os últimos relatórios, não param de recrutar
intelectuais. Não podemos largar-lhes o rasto, Geytrand!

Página 35
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Munique, 8 de Março de 1781
Depois da terceira representação de Idomeneu, dia 3, Wolfgang rendeu-se à
evidência: a sua ópera não permaneceria em cartaz.
Derradeira possibilidade de obter um cargo em Munique; agradar ao
príncipe-eleitor Karl Theodor oferecendo à sua amante ocasional, a condessa
Baumgarten, uma ária
dramática para soprano, Infeliz onde estou? Ah, não sou eu falar!39, segundo um
texto do poeta Metastaso. Ele evocava a infelicidade de Fúlvia, que passava da
ira
ao desespero por não compreender nem o seu fado, nem a indiferença dos deuses.
A opinião da condessa pesou bem pouco em comparação com o veneno instilado na
corte pelo conde Seeau, e com a intransigência moral do padre Frank, jesuíta
confessor
de Karl Theodor.
Não tendo mais nada a esperar de Munique, Wolfgang levou a pai e a irmã até
Augsburgo, onde tocaram órgão, procurando desta forma esquecer a nova desilusão
sofrida.
- Ordem de Colloredo - anunciou Leopold ao seu filho. - Deves ir ter com ele a
Viena sem passar por Salzburgo. Nannerl e eu regressamos imediatamente a casa.

lá, não te atrases. O príncipe-arcebispo está cada dia mais autoritário e não
suporta a mais pequena insubordinação.
Wolfgang não se importava de obedecer, mas queria, antes de deixar Munique,
tocar com os seus amigos da orquestra uma obra na qual

39 K. 369.

83

estava a trabalhar há meses e de que gostava particularmente: uma serenata40


para dois oboés, dois clarinetes, dois fagotes, quatro trompas, duas trompas de
caça,
e um único instrumento de cordas, o contrabaixo.
Era a primeira vez que Wolfgang, seguindo os conselhos de Thamos, o egípcio, e
de Anton Stadler, usava as trompas de caça em fá. A sonoridade deste instrumento
abria-lhe
um mundo novo, que ele sentia intimamente ligado à gravidade e à serenidade dos
iniciados nos mistérios.
A partitura, interpretada pelos 13 solistas em perfeita harmonia, espantou
Thamos logo desde os primeiros andamentos. Durante quase uma hora, a música
alternava
gravidade, sorriso, maturidade, juventude da alma, impulsos controlados. Cores e
melodias abriam-se numa riqueza inédita. Começando por um movimento lento, com
um
adágio digno de figurar num ritual de iniciação, ultrapassando as formas e as
convenções com os seus sete movimentos, entre os quais um romance e um tema com
seis
variações, esta maravilha correspondia à explosão da criatividade de Wolfgang.
Quando a emoção se tornava demasiado intensa, a alegria de um tema popular e
dançante trazia o auditor de volta à terra.
Enquanto iniciador, Thamos não tinha o direito de revelar os seus sentimentos ao
seu discípulo que, ao atingir este pico de expressão, provava definitivamente a
sua condição de Supremo Mago.
- Seguimos juntos para Viena - disse a Wolfgang. - Importantes acontecimentos
terão lugar lá.
- Não no que me diz respeito - lamentou o jovem. - Eu vou integrar o cortejo de
criados de o Grande Mufti.
- Está prestes a ser travada uma batalha decisiva, Wolfgang. Não cedas em nada.
- Colloredo...
- Colloredo já não está nos seus domínios de Salzburgo, mas em Viena, capital do
império, grande metrópole onde ele não manda nada.
- Mas é ele que eu sirvo, e é na casa dele que irei morar.
- A tua obra segue à tua frente. Ela chamar-te-á e guiar-te-á.
40 Serenata (nº 10) em si bemol maior, conhecida como Gran Partita, K. 361.
84
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Weimar, 12 de Março de 1781

O Irmão Johann Joachim Christoph Bode vibrou um ruidoso golpe ao publicar um


texto destinado a esclarecer os pedreiros-livres acerca da maneira como os
jesuítas
pervertiam a iniciação.
No início do século, estes reis dos ardis e da hipocrisia tinham inventado a
Maçonaria dita "simbólica", para lutar contra o protestantismo que triunfava em
Inglaterra.
Estes famigerados símbolos eram, na realidade, de teor religioso: as três
pancadas representavam a Santíssima Trindade, as letras J e B gravadas nas
colunas do templo
maçónico reenviariam para "Jesuítas" e "Beneditinos".
Sem dar por isso, os pedreiros-livres alinhavam no jogo da Igreja e
reconstituíam a Ordem jesuíta, cujo desaparecimento não passava de aparência.
Pior ainda, a Estrita
Observância templária, dirigida por fervorosos crentes, queria devolver à fé
católica todo o seu antigo poderio!
Mas Bode, por ele, conseguia descortinar o jogo dúbio de Fernando de Brunswick e
do seu principal cúmplice, Carlos de Hesse. Bode desejava despertar todos os
Irmãos,
reunir os que fossem lúcidos e corajosos, e evitar que os jesuítas disfarçados
de pedreiros-livres minassem a Ordem por dentro.
Começava a grande batalha.

18.
Viena, 12 de Março de 1781

Filho de um régulo africano, preceptor dos príncipes Lobkowitz e Iiechtenstein,


Angelo Solimão tinha conseguido, apesar da cor da sua pele, tornar-se um membro
respeitado
da sociedade vienense.
Nessa noite, ele participava na fundação de uma nova Loja, Para a Verdadeira
União41.
Por conselho de Thamos, conde de Tebas, Angelo Solimão apresentava um neófito de
envergadura excepcional, o mineralogista Ignaz von Born.
Conforme as recomendações de Thamos, Von Born não revelou que era desde há
muitos anos responsável por uma Loja de pesquisas em Praga. Por isso, foi
recebido como
Aprendiz, sabendo de antemão que ascenderia rapidamente aos graus de Companheiro
e de Mestre, para vir a orientar os destinos da Verdadeira União, na qual
estavam
presentes escritores, cientistas e outros notáveis, uns católicos, outros
protestantes.
Acolhido com "todas as honras da nossa Ordem real", segundo as palavras de
Solimão, Ignaz von Born agradeceu aos seus Irmãos e prometeu-lhes que
participaria de
forma muito activa nas pesquisas simbólicas, a fim de erguer uma Loja que
tivesse como primeira e constante preocupação a questão da iniciação.
41 Zur wharen Eintracht. Aparece amiúde referida como Para a Verdadeira
Concórdia.
86
Tal declaração veio perturbar muitos Irmãos, pouco habituados a este género de
programa. A autoridade e as competências de Von Born tratariam de dissipar essa
falta
de entusiasmo inicial.
- Lestes o texto de Bode? - perguntou Solimão ao egípcio durante o banquete.
- A violência dos seus ataques contra a Igreja e os jesuítas custar-lhe-á muitos
inimigos.
- Sem dúvida, mas não lhe faltam nem coragem, nem lucidez. Enquanto a Maçonaria
não escapar às influências exteriores, nomeadamente ao controlo religioso, ela
nunca
poderá tomar o seu verdadeiro impulso.
- Esse género de pensamento circula pelas Lojas vienenses?
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Longe disso, Irmão! Cheias de crentes, as nossas Lojas mostram-se ainda muito
conformistas. Espero que Ignaz von Born nos ajude a ultrapassar estas
limitações.
Viena, 16 de Março de 1781, nove horas

Wolfgang penetrou no palácio de Colloredo, chamado de Casa Alemã, sito no nº 7


da Singstrasse, antiga sede dos cavaleiros teutónicos, onde ficou hospedado
junto
com os demais músicos, lacaios e cozinheiros que, todos juntos, formavam a
criadagem do príncipe-arcebispo.
Primeiros deveres: um concerto na Casa Alemã nesse mesmo dia, às 16.00 horas, e
no dia seguinte em casa do príncipe Galitzin, diplomata riquíssimo com cuja
ajuda
o Grande Mufti esperava contar para forjar uma excelente reputação.
Os almoços, servidos ao meio-dia em ponto, constituíam rudes provações. Wolfgang
tinha de tomar as suas refeições na companhia de dois cozinheiros e de um
pasteleiro
que passavam o tempo todo a proferir grosserias. Enquanto criado da Casa,
Wolfgang estava submetido às ordens de um aristocrata brutal, o conde d'Arco,
"supervisor
das cozinhas". Não eram, com efeito, as produções musicais assimiladas às
refeições?
Wolfgang comia em silêncio. A humilhação que sofria tornava-se insuportável. O
senhor arcebispo tem a bondade de glorificar-se pelos seus criados, escrevia ao
seu
pai. Rouba destarte os seus proveitos.

87

Desde a última entrevista que tivera com Thamos, a mente do compositor estava
obcecada com um projecto: organizar concertos para obter lucro próprio. E para
escapar
à atmosfera abafante do palácio de o Grande Mufti, Wolfgang foi ter a casa de
Mesmer. Agora instalado em Paris, o magnetizador tinha decidido não regressar a
Viena,
mas a sua família acolheu o músico de forma muito amável. Aconselharam o jovem
compositor a obter entrevistas com os nobres amantes de música, começando pelo
conde
Thun e pela sua mulher, ambos grandes apreciadores de novidades.

Viena, 16 de Março de 1781


- Eis a lista dos membros da nova Loja vienense Para a Verdadeira União, senhor
conde.
Geytrand entregou a lista a Joseph Anton, que a consultou de imediato.
A sua atenção foi atraída por um nome.
- Ignaz von Bom... o mineralogista da universidade?
- Esse mesmo.
- Um protegido da defunta imperatriz Maria Teresa! Não há dúvida de que ele
escondia bem o seu jogo. Eis como os pedreiros-livres se estão a infiltrar no
nosso país!
- Segundo o meu informador, Von Bom tornar-se-á rapidamente numa das figuras
principais dessa Loja, que ele pretende pôr a trabalhar. O seu discurso e a sua
atitude
chocaram muitos Irmãos, pouco habituados a estudar os símbolos e os rituais.
- Pareces ainda mais bem informado do que de costume, Geytrand. Haverá um Irmão
que trai a Loja desde a sua fundação?
- É verdade.
- Como se chama?
- Solimão, o preceptor de diversos príncipes.
- Porque se comporta ele dessa maneira?
- É um mulato que foi submetido a muitas humilhações e só pensa em vingar-se da
Humanidade inteira.
- Mas a Maçonaria acolheu-o no seu seio!
- Decerto, mas sem contudo conceder-lhe um lugar preponderante. Do seu ponto de
vista, as Lojas não são suficientemente activas.

Página 38
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
88
Ele deseja uma verdadeira revolução. E também é venal e precisa muito de
dinheiro.
- Vigia Ignaz von Born sem que ele desconfie - preconizou o conde. - Não cometas
imprudências. Se ele topar alguma coisa, é capaz de retroceder. O imperador não
nos perdoaria termos incomodado um brilhante professor universitário vienense.
Eis precisamente o género de personagem que eu gostaria de ver longe, muito
longe
de nós! Todos são unânimes nos louvores à sua inteligência e ao seu rigor, e ele
goza de uma sólida reputação internacional. Se ele for bem sucedido, conferirá a
esta Loja um esplendor capaz de atrair outros intelectuais.
- Duvido do seu sucesso - objectou Geytrand. - Terá de se defrontar com
numerosos concorrentes, que o impedirão de concretizar os seus projectos. A
vaidade, a inveja
e a corrupção não estão, felizmente, ausentes da Maçonaria. Se não, ela
produziria grandes obras, semelhantes às das antigas confrarias iniciáticas.
19.
Viena, 23 de Março de 1781
Dotado de uma carta de recomendação redigida pela família Mes-mer, Wolfgang foi
ter a casa do conde Francisco José Thun-Hohenstein.
Com 47 anos, pedreiro-livre da Loja Para a Verdadeira União e Irmão de Thamos,
que lha havia demoradamente falado de Mozart, o conde era adepto do espiritismo,
do
magnetismo e de todas as ciências ocultas. Muito culta, antiga aluna do grande
músico Joseph Haydn, a condessa Maria Wilhelmina, sua mulher, mantinha um salão
no
palácio Ufelde, propriedade da família nas cercanias da Minoritenkirche.
- Senhor Mozart! - exclamou Francisco José - A vossa visita foi-me anunciada por
um sonho premonitório. Como poderia um verdadeiro artista escapar à minha
querida
Wilhelmina? Credes nos espíritos, decerto?
- Não estará a música cheia deles?
- Claro que sim! Vinde descobrir esta casa. Parece que a acústica é excelente,
pelo menos os intérpretes que frequentam este salão costumam dizer bem dela. Em
seguida,
apresentar-vos-ei a minha mulher e passaremos à mesa. A crença nos espíritos não
deve afectar o nosso apetite.
De imediato, a condessa discerniu em Wolfgang uma personalidade fora do comum.
Antes mesmo de ouvir as suas primeiras notas, ela soube que as obras emanadas
daquele
jovem compositor não se assemelhariam a nenhumas outras.

90
- A porta desta casa está-vos franqueada - disse-lhe ela com um sorriso franco.
- Se desejardes, vinde todos os dias.
- O príncipe-arcebispo Colloredo não me concede tal liberdade.
- Deveis dar academias42 para seduzir os vienenses - decretou a condessa. - Para
começar, poderíeis intervir por ocasião de um espectáculo de beneficência
organizado
pela Sociedade dos Músicos. Colloredo certamente não proibirá a vossa
participação numa obra caritativa.
Viena, 24 de Março de 1781
Não aguentando mais os seus companheiros de mesa, cada vez mais grosseiros,
Wolfgang não comera nada e andava para trás e para frente na antecâmara de o
Grande Mufti,
à espera da sua resposta.
Por fim, o conde d'Arco saiu do gabinete de Sua Eminência.
- O meu requerimento foi deferido? - perguntou Wolfgang.
- Foi recusado. Estais ao serviço do príncipe-arcebispo e de mais ninguém.
- Trata-se de um concerto de caridade, e serei apenas um músico entre tantos
outros.
Página 39
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- O príncipe-arcebispo conhece perfeitamente a vida artística vienense. Enquanto
criado da sua Casa, deveis submeter-vos às regras que ele impõe. Passai bem,
Mozart.
O conde d'Arco voltou para junto do seu augusto patrão.
- Transmiti a vossa decisão, Eminência.
- Esse jovem galo inclinou-se?
- Não teve escolha.
- Havemos de vergá-lo, e ele virá comer à minha mão. Sem o salário que lhe pago,
ele teria de mendigar. O pai dele não aceitará tal sorte e acabará por convencer

o filho a mostrar-se dócil.


- Embora partilhe o vosso ponto de vista, Eminência, tenho de vos informar
acerca de diversos rumores que correm na nobreza vienense.
Colloredo franziu o sobrolho.
- Rumores que correm a meu respeito?

42 Designação dos concertos.


91
- Temo que sim.
- Fala, então!
- Muitos melómanos desejariam que tivésseis uma atitude menos dura e que
deixásseis os vossos músicos exibirem-se em academias, permitindo assim aos
apreciadores
a descoberta da riqueza artística da corte de Salzburgo.
- A descoberta de Mozart, por exemplo?
- Dele e de outros. O prestígio de Vossa Eminência não sairia realçado dessa
experiência?
- Não devemos ceder na questão do concerto de amanhã. Mozart poderia pensar que
eu estava a recuar. Qual será a próxima dessas ocasiões?
- A academia do dia 3 de Abril.
- Vou pensar no assunto.

Viena, 24 de Março de 1781


Lendo o alvará de José II, Joseph Anton não acreditava nos seus próprios olhos:
o imperador proibia que qualquer associação, religiosa ou civil, reconhecesse a
autoridade
de superiores estrangeiros e lhes pagasse impostos.
Eram abrangidas as Ordens monásticas, mas também as Lojas da Estrita Observância
templária e do Rito sueco que ainda subsistiam em Viena.
Quem transgredisse a nova lei incorreria em sanções penais.
O liberalismo ostentado por José II era acompanhado pelo exercício de um poder
central forte, decidido a controlar tudo.
20.
Viena, 3 de Abril de 1781

Na véspera, Wolfgang, na previsão de qualquer concerto futuro, havia terminado


um rondó para violino e orquestra43. E nessa noite, no teatro da Porta da
Caríntia,
ele faria a sua primeira exibição para o público de Viena, fora do alcance de o
Grande Mufti. Ele conhecera, em criança, um certo sucesso, mas que se havia
esvaído
qual sonho rapidamente dissipado. Desta vez, ele estava consciente das
dificuldades e do desafio que lançava a Colloredo.
Durante essa academia dada em proveito da caixa das viúvas e dos órfãos dos
médicos vienenses, na presença de 124 espectadores, Wolfgang dirigiu uma
sinfonia, tocou
variações para piano44 e improvisou longamente.
Maravilhado, o público não queria deixar ir embora aquele jovem músico que se
revelava tão dinâmico e ao mesmo tempo tão ponderado. Encantado com esta
experiência,
que ele contava renovar, Wolfgang escreveu ao seu pai: Asseguro-vos que este é
um lugar magnífico, o melhor que existe no mundo para o exercício do meu
trabalho.

Página 40
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Viena, 4 de Abril de 1781
- Um sucesso, dizeis? - perguntou Colloredo, furioso, ao conde d'Arco.
43 K. 373.
44 K. 354 (299a).
93

- A exibição de Mozart agradou deveras - confirmou o supervisor das cozinhas. -


Mas tratava-se apenas de um concerto de caridade, e a assistência teria
aplaudido
qualquer um.
- Talvez, talvez... Mas não concedo autorização para que um meu criado se exiba
dessa maneira!
O conde d'Arco pigarreou.
- Não havíeis formulado qualquer proibição formal, Eminência. Cheio de raiva,
Colloredo partiu o bico da sua pena de ganso.
- Esse jovem revoltoso já se gaba do seu feito! Se ele acha que triunfará, vai
desiludir-se rapidamente. Dar-lhe-ás ordem para que vá tocar a casa do meu pai,
dia
8 de Abril. Se ele se comportar como deve ser, permanecerá como meu criado.
Naquele mesmo instante, Wolfgang afirmava a Leopold: Imaginai o que eu poderia
fazer, agora que o público me conhece, se desse um concerto por minha conta? Só
mesmo
o nosso imbecil me pode impedir.

Viena, 5 de Abril de 1781

Wolfgang estava felicíssimo com a ideia de participar na academia que a condessa


Thun organizava em casa dela no dia 8 de Abril. O imperador José II estaria
presente,
e o jovem compositor contava mostrar-lhe o seu talento, com a esperança de vir a
ganhar um lugar na corte.
No momento em que Wolfgang saía da mesa, sem ter proferido uma palavra sequer, o
conde d'Arco barrou-lhe o caminho.
- O príncipe-arcebispo ordena-vos que deis um concerto em casa do seu pai.
- Certamente.
- Esse concerto terá lugar no dia 8.
- Dia 8? Impossível!
- Como assim, impossível?
-Já estou convidado para casa da condessa Thun.
- Não importa, Mozart. Estais ao serviço exclusivo do príncipe-arcebispo
Colloredo e deveis-lhe obediência absoluta. Esquecei as vossas obrigações
mundanas e fazei
o vosso trabalho.
Consternado e furibundo, Wolfgang hesitava.
94

Ir a casa da condessa Thun equivalia a insultar Colloredo. Se o imperador


tomasse o partido do príncipe-arcebispo, o compositor ver-se-ia obrigado a
deixar Viena.
Sem emprego, não ficaria condenado à miséria?
Mais uma vez, Wolfgang cedeu. E no dia 7 de Abril, entre as 23.00 horas e a
meia-noite, compôs uma sonata para violino e piano45, sem ter tempo para passar
por escrito
a parte do piano, que ele tocaria de memória.
Viena, 9 de Abril de 1781
- Tivemos muita pena - disse a condessa Thun a Wolfgang. - Como prometido, o
imperador honrou-nos com a sua presença e deu 50 ducados a cada músico.
"Cinquenta ducados, metade do meu salário de Salzburgo", pensou o compositor,
tristíssimo por ter perdido aquela ocasião.
- Um gesto generoso da parte de José II - retomou a condessa -, dado que o
imperador conduz uma política de austeridade, mesmo no domínio artístico.
Poupar, eis
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
a sua palavra predilecta! Na sua opinião, Maria Teresa concedia demasiadas
tenças a uma série de pessoas desprovidas de talento. Até alguns cavalos velhos
recebiam
uma pensão! Doravante, todos os florins serão contados, e ninguém dilapidará o
erário público.
- Então, é inútil pensar em qualquer cargo de músico na corte.
- Pois é, meu jovem amigo. Os detentores desses cargos agarrar-se-ão às suas
prerrogativas e não deixarão que ninguém quebre o seu círculo restrito. Se
desejais
permanecer em Viena, deveis impor-vos pelos vossos dons.
- O príncipe-arcebispo impedir-me-á.
- Perdereis então o vosso tempo ao serviço desse tirano?
- Sou um criado, condessa, e devo vergar as costas. Ela sorriu.
- O vosso olhar afirma o contrário.
45 K. 380.
95
Brunswick, 10 de Abril de 1781
O duque Carlos da Sudermânia tinha confirmado a sua demissão. Deixara de ser o
Grão-Mestre da sétima província da Ordem templária, que já não considerava como
legítima,
e cujo aniquilamento ele passara a desejar abertamente. Agora, ele passaria a
consagrar-se ao Rito sueco e aos assuntos do seu próprio país.
- Até que enfim, livrámo-nos deste arrivista! - exclamou Carlos de Hesse.
- Vitória amarga - assinalou Fernando de Brunswick. - A Polónia, a Prússià,
Hanôver e os Estados austríacos retiraram-se da Estrita Observância.
- As respostas à vossa convocação do capítulo de Wilhelmsbad tardam a chegar,
mas aquelas que já recebemos são bem fundamentadas e pormenorizadas. Todos os
pedreiros-livres
de renome e valor trarão o seu contributo, e ajudar-nos-ão a definir linhas de
força. A Estrita Observância não morreu, Grão-Mestre, bem pelo contrário! Ela
recolhe-se
para melhor juntar forças e para partir à conquista de novos territórios.
Por vezes, o duque de Brunswick sentia-se cansado. O balanço da sua liderança
não era, decerto, negativo, mas ele tinha nutrido esperanças muito maiores!
Muito mais
jovem do que ele, Carlos de Hesse dava-lhe alento. A inquebrantável determinação
que movia esse seu colaborador incitava o duque a não esmorecer.
Mas porque não se manifestava aquele Superior incógnito, proveniente do Egipto?
21.
Viena, 16 de Abril de 1781
Graças à hospitalidade da condessa Thun, Wolfgang evadia-se amiúde do palácio de
Colloredo onde, de vez em quando, o prelado dava a comunhão aos seus súbditos.
Este
gesto, vindo da parte de um admirador confesso dos filósofos franceses ateus,
constituía uma hipocrisia que divertia Wolfgang, cujo julgamento se mantinha:
"Um príncipe
mal pensante que todos os dias me avilta."
E nesse dia, ao almoçar em casa dos seus amigos Auernhammer, cuja filha, bem
feia, era sua aluna, o músico encontrou Gottlieb Ste-phanie, inspector-geral do
teatro
alemão de Viena, que se gabava de gozar da intimidade de José II.
-Já compusestes ópera, Mozart?
- Um pouco.
- Sem grande sucesso, ao que parece. Se não, já teria ouvido falar de vós.
- O príncipe-eleitor de Baviera encomendou-me a peça Idomeneu, Rei de Creta, que
foi à cena em Munique no último Carnaval.
- Ah!... Sois, portanto, conhecedor dessa arte.
- Ando à procura de um bom texto.
- Em italiano ou em alemão?
- De preferência em alemão.
- O imperador gostaria de dispor de uma bela obra na nossa língua nativa. Até
agora, só tivemos peças cómicas francesas e óperas
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97

bufas italianas. Decerto, o nosso talentoso Salieri compôs O Umpa-Chaminés, que


será encenado no dia 30 de Abril no Burgtheater, mas trata-se de uma farsa
grosseira.
Sua Majestade deseja uma coisa mais séria, sem excessos de austeridade.
- Teríeis alguma ideia... concreta?
- Não é impossível.
"Palavras mundanas", pensou Wolfgang. "Tal como a maior parte dos meus
interlocutores, este Stephanie esquecer-me-á assim que se levantar da mesa."
Viena, 17 de Abril de 1781
Com os seus 40 anos triunfadores, o príncipe-arcebispo Colloredo reinava no
vasto gabinete do seu palácio vienense, onde recebia grande quantidade de gente
influente
na corte. O prelado nunca deixava de marcar a sua aprovação da política do
imperador e dos seus projectos de reforma.
Mas, nessa manhã, o visitante recebido no seu gabinete não pertencia à elite.
- Não estou satisfeito convosco, Mozart.
- Terei eu desobedecido às vossas ordens, Eminência?
- Obedecestes com uma má-fé evidente!
- Ninguém me pode apontar o dedo. Na ocasião do concerto dado para glória da
vossa Casa, improvisei durante mais de uma hora sobre um tema que Vossa
Eminência me
impôs. A minha boa vontade, creio, não pode ser questionada.
- Não é uma mera questão de técnica, Mozart! Aos meus olhos, o estado de
espírito dos meus criados tem também a maior importância.
- Terá algum homem o direito de reinar sobre o espírito de outro?
- Chega! Não vos pago para fazerdes filosofia de pacotilha. Aprestai-vos para
deixar Viena.
- Deixar Viena, mas...
- Ousais questionar as minhas ordens? Wolfgang preferiu calar-se.
- Ainda não fixei a data - declarou Colloredo. - Assim que tiver tomado a minha
decisão, ela ser-vos-á comunicada.
98

Deixar Viena, voltar para Salzburgo, regressar ao ergástulo e aí apodrecer para


sempre, enquanto um libretista talvez lhe fosse fornecer a ocasião de compor uma
nova ópera, e enquanto os seus novos amigos, como a condessa Thun, o ajudavam a
construir uma reputação crescente!
Era evidente que o seu futuro seria aqui e em mais nenhum sítio. Mas desobedecer
a Colloredo não o colocaria em situação precária? Infelizmente, Thamos não se
encontrava
junto dele para lhe fornecer os seus conselhos!
Única solução: ganhar tempo, implantar-se melhor em Viena, tentar concretizar os
seus projectos.
Berlim, 20 de Abril de 1781
Ao contemplar o belo prédio que o imperador Frederico II havia oferecido à Ordem
dos Arquitectos africanos, o oficial prussiano Friedrich von Köppen, fundador
dessa
Ordem, não pôde reprimir as suas lágrimas.
- Um desastre total - confessou a Thamos, o egípcio. - O prédio reverte para a
administração, a Ordem está dissolvida. No entanto, eu achava que o nosso
panfleto
sobre as iniciações aos mistérios dos sacerdotes do antigo Egipto iria modificar
profundamente a Maçonaria.
- As ideias disseminaram-se, e a aventura não acabou.
- Para mim, acabou. Nenhuma das minhas iniciativas obteve qualquer sucesso. A
biblioteca, o gabinete de história natural e o laboratório alquímico
permaneceram desesperadamente
vazios. No entanto, nós tínhamos aqui todas as condições: a protecção do
imperador, instalações magníficas, livros abundantes... E eis o resultado! A
Página 43
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
nossa sociedade
é incapaz de se interessar pelo essencial e de colocar a iniciação no centro das
suas preocupações.
- Não será a renúncia o pior dos insucessos?
- Se quereis persistir, conde de Tebas, desejo-vos boa sorte. Mas não tereis
sucesso. Eu, por mim, retiro-me para o silêncio e a solidão.
Thamos sentiu que não conseguiria modificar a decisão de Friedrich von Köppen. O
desaparecimento daquela Ordem privava a Maçonaria de um centro de pesquisas que
poderia ter acolhido o Supremo Mago.

99
Viena, 25 de Abril de 1781
- Duas boas notícias - anunciou Geytrand a Joseph Anton. - Primeiro, a ruptura
definitiva entre o duque de Sudermânia e a Estrita Observância templária,
doravante
ausente de todos os Estados austríacos; depois, a extinção da Ordem dos
Arquitectos africanos, em Berlim.
- Resultante de alguma intervenção das autoridades?
- Não, antes da insuficiência dos Irmãos, incapazes de usar os meios colocados à
disposição deles.
- Essa Ordem só contava com um número muito restrito de membros, por isso era
objecto de desdém para os pedreiros-livres de outros Ritos. O aniquilamento
desses
Arquitectos africanos não provocará nenhum sismo. O capítulo de Wilhelmsbad está
a ser preparado?
- Com muita dificuldade! Se o duque de Brunswick não conseguir organizá-lo, terá
de se demitir.
- Mas ele conseguirá, pois a Estrita Observância representa a sua razão para
viver. Não subestimemos nunca os ideais de um homem, Geytrand. Por vezes, eles
tornam-no
capaz de levantar montanhas.

22.
Viena, 1 de Maio de 1781
O correio enviado pelo príncipe-arcebispo Colloredo não esteve para perder tempo
com cortesias.
- Tu és Wolfgang Mozart?
- Sim, sou eu.
- Sua Eminência ordena-te que saias imediatamente. Não te quer mais ver em casa
dele.
- Para onde devo ir?
- Tanto se me dá. O essencial é que te ponhas na alheta.
- Tenho ainda algum tempo?
- O tempo para fazeres as malas e pores-te na alheta.
Não tendo o emissário de Colloredo mencionado Salzburgo, Wolfgang decidiu
permanecer em Viena enquanto esperava pelo desenrolar dos acontecimentos.
Havia várias soluções possíveis. O músico escolheu a mais simples de todas, ou
seja, ir para a residência burguesa do Olho de Deus, junto da igreja de São
Pedro,
dirigida pela senhora Weber. Ela residia ali na companhia das três irmãs de
Aloysia, que estavam de saída quando o músico expulso chegou.
- Wolfgang! Como estás tu?
- Mais ou menos. E tu?
- Às mil maravilhas! Apresento-te o meu marido, o comediante Joseph Lange.
101
Os dois homens cumprimentaram-se.
- O que vieste fazer aqui? - perguntou Aloysia, intrigada.
- Colloredo expulsou-me do seu palácio vienense, ando à procura de alojamento.
- Vieste bater à porta certa, a minha mãe dispõe de um quarto agradável.
Perdoa-me, estamos com pressa. Voltaremos com certeza a ver-nos.
- Com certeza.
Foi Constance Weber, tímida e reservada, quem recebeu o músico. Com 19 anos, ela
tinha um rosto fino, nariz aguçado e boca pequena. Desejou as boas-vindas ao
Página 44
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
visitante
em voz suave e distinta.
- Posso falar com a vossa mãe?
- Vou chamá-la.
Boa dona de casa e prudente gestora, a matriarca gostou de receber aquele novo
locatário, cuja honestidade ela já conhecia.
Viena, 9 de Maio de 1781

- Esta situação já se prolongou muito para lá dos limites aceitáveis, Mozart -


considerou o príncipe-arcebispo Colloredo. - Aqui está uma encomenda que ireis
levar
de imediato a Salzburgo, onde permanecereis. A vossa estada em Viena terminou.
- Eminência, eu não sou vosso carteiro.
- Basta de insolências, Mozart! Calai-vos e obedecei.
- Eu sou músico, não sou moço de fretes. Não me rebaixarei a esse género de
tarefa e recuso ser aviltado dessa forma!
- Basta, fedelho insolente, desnorteado, descarado, maltrapilho, velhaco e
cretino!
- Já que me tratais de maneira indigna, deixarei de trabalhar ao vosso serviço.
- Então, rua!
- Amanhã, recebereis a minha demissão.
A tremer, Wolfgang correu até ao seu novo alojamento e redigiu um relatório do
drama, destinado ao seu pai.
Foi impossível argumentar, explicou Wolfgang, a discussão aqueceu e alastrou
como um fogo. Ainda me encontro cheio de ira, puseram a minha paciência à

102

prova durante tanto tempo! O dia de hoje foi de alegria para mim. E agora que
começa a minha felicidade, e espero que ela corresponda também à vossa.
Nessa mesma noite, Wolfgang foi tomado por uma febre violenta. A emoção havia
sido tão intensa que ele tremia até mais não poder.

Viena, 10 de Maio de 1781


Milagrosamente recomposto, foi um Mozart elegantemente vestido quem se
apresentou no palácio de Colloredo e se dirigiu ao seu superior directo, o conde
d'Arco, supervisor
das cozinhas.
- Acabo de apresentar a minha demissão - declarou com gravidade. - A partir
deste momento, deixo de ser um criado ao serviço de Colloredo, e passo a ser um
homem
livre.
- Vá lá, Mozart, vá lá, não vos precipiteis! Fazeis mal em comportar-vos de
forma agressiva com relação a Sua Eminência, cuja bondade tão cristã acabará por
perdoar
a vossa deplorável impertinência. Para o futuro, mantende a calma.
- Não estais a compreender, senhor conde. A minha decisão foi longamente
amadurecida. Aceitai a minha demissão.
- Não posso.
- Por que razão?
- Porque preciso do consentimento formal do vosso pai. Não passais de uma
criança irresponsável, pronta a arruinar a vossa existência por causa de uma
teimosia estúpida.
Quando tiverdes esse documento, vinde falar comigo novamente; talvez na altura a
vossa opinião tenha mudado.
Wolfgang almoçou em casa da condessa Thun, que o encorajou no sentido de não
voltar a submeter-se às exigências de Colloredo. Entusiasmado, o músico exagerou
um
pouco ao escrever ao seu pai: Toda a cidade de Viena ficou a par das minhas
aventuras. Toda a nobreza declara que não devo continuar a deixar-me enganar.
Incapaz de compor, esperando com impaciência a aprovação paterna que o livraria
de vez do príncipe-arcebispo, Wolfgang passeava pelas ruas da cidade.
Leopold não podia deixar de compreender a sua atitude e conceder-lhe-ia a
autorização indispensável. O seu filho poderia, por fim, tomar impulso para
voar!

Página 45
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
103
- Esta noite - considerou a voz apaziguadora de Thamos, o egípcio - vê se
consegues dormir um pouco.
- Gostaria de ter contado com a vossa ajuda nestes últimos dias!
- Safaste-te muito bem sozinho.
- Não podeis imaginar a violência da minha entrevista com o Grande Mufti! Essa
horrenda criatura é um monstro de vaidade. Já não posso hesitar mais! Já que a
porta
da prisão se entreabriu, evado-me sem olhar para trás.
- Pensaste bem nas consequências dessa tua decisão?
- Terei de lutar e voltar a lutar, mas já não será em benefício de Colloredo.
Vós não me acusais por eu romper os grilhões da minha prisão, pois não?
- Pelo contrário, Wolfgang. Mas te deixes inebriar pela liberdade.
- A minha adolescência está a findar, começa a minha vida de homem. Viena já
olvidou o menino-prodígio, e eu também. Ou sou capaz de me impor como músico
independente,
ou não mereço a sorte que o destino me oferece.
23.
Viena, 19 de Maio de 1781
Wolfgang estava aterrado.
Em vez de lhe conceder a sua concordância e de aprovar o desejo de liberdade,
Leopold admoestava-o no sentido de se submeter a Colloredo, preservando assim o
seu
lugar em Salzburgo!
Cruelmente desiludido, Wolfgang deixou falar a voz do coração: Em nenhuma das
linhas da vossa carta logro reconhecer o meu Pai! E achais mesmo que eu deva
assumir
o papel de cretino, conferindo ao arcebispo o de nobre senhor? Se é motivo de
satisfação uma pessoa desembaraçar-se de um príncipe que não lhe paga e que a
chateia
de morte, então, sim, é verdade, eu estou satisfeito. Fui forçado a dar este
passo decisivo e agora não posso recuar nem um pouco. A. minha honra deve
permanecer
acima de tudo.
Compreenderia Leopold por fim as suas verdadeiras aspirações?
De qualquer modo, Wolfgang não voltaria a curvar-se diante de Colloredo.

Munique, 20 de Maio de 1781


O professor Adam Weishaupt congratulava-se por ter recrutado o barão Adolph von
Knigge, que se dedicava com um ardor constante ao desenvolvimento da Ordem
secreta
dos Iluminados da Baviera.
- Contamos hoje - declarou o barão - com mais de 300 membros e, para além da
Baviera, estamos também implantados na Suábia,

105
na Baixa Saxónia, na Alta e Baixa Renânia, e até mesmo em Viena. E tudo isto é
só o começo, pois muitos pedreiros-livres procuram destacar-se da Igreja e
combater
a influência insidiosa dos jesuítas. Estes nossos Irmãos acusam os católicos,
com razão, de julgar menos severamente um criminoso, um debochado ou um
impostor, desde
que estes acreditem na transubstanciação, do que um homem honesto e virtuoso que
tenha a infelicidade de não compreender como é que um pedaço de massa pode ser
simultaneamente
um pedaço de carne. O tempo dessas superstições está ultrapassado, e nós,
Iluminados e pedreiros-livres, devemos preparar o advento de uma era em que a
luz do conhecimento
substituirá as trevas da ignorância.
Adam Weishaupt rejubilava, mas desejava ir muito mais longe.
- Não crês, Irmão, que os imperadores e os reis protegem e encorajam a
existência desse obscurantismo?
- Devemos condenar os maus governantes, sejam eles reis ou plebeus - considerou
Página 46
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Von Knigge -, e temos sobretudo o dever de influenciar a evolução moral da
sociedade.
Essa tarefa imensa levar-nos-á porventura milhões de anos. Repito, qualquer
revolução violenta levaria a uma catástrofe. Derrubar os regimes estabelecidos
não servirá
de nada enquanto não mudarmos o coração dos homens.
Milhões de anos, evolução moral... Weishaupt, quanto a ele, desejava uma acção
política directa, mas preferiu não revelar os seus verdadeiros desígnios, por
ter
extrema necessidade de Adolph von Knigge e da Maçonaria.
-Já construí a arquitectura da nossa Ordem - retomou o barão. - Constará de três
categorias: o Seminário, a Maçonaria e os Mistérios46.
Von Knigge ignorava que Adam Weishaupt controlava a Ordem dos Iluminados da
Baviera com punho de ferro, recorrendo às células estanques, à delação e à
espionagem.
Com a criação do Seminário, tornava-se mais difícil garantir um controlo
absoluto. Entretanto, era preciso recrutar e convencer uma série de espíritos
brilhantes
e influentes a aderir a um movimento es-
46 Primeira categoria: o Seminário (três graus: Noviciado, Minerval, Iluminado
menor). Segunda categoria: a Maçonaria (cinco graus: Aprendiz, Companheiro,
Mestre,
Iluminado maior, Iluminado dirigente ou Cavaleiro escocês). Terceira categoria:
os Mistérios, incluindo os Pequenos Mistérios (Sacerdotes e Regentes) e os
Grandes
Mistérios (Magos e Reis).

106

piritual, intelectual e social cujo objectivo residia na felicidade do género


humano.
Na realidade, Weishaupt desejava levar a bom porto o seu projecto
revolucionário, cuja amplitude os pedreiros-livres, ingénuos e manipuláveis,
ignoravam. Eles tornar-se-iam,
mesmo sem saberem, nos propagadores de um incêndio capaz de pôr fogo a toda a
Europa. Talvez viessem a ser eles próprios vítimas dessa calamidade, mas isso
pouco
importava. Aniquilar a Igreja e a realeza, fazer surgir um novo poder político:
isso era o que importava.
- O Grão-Mestre da Estrita Observância templária respondeu aos vossos
comentários sobre a sua circular? - perguntou Weishaupt ao barão.
- Os seus próximos não os apreciaram muito. Os nossos Irmãos templários labutam
no erro ao pensarem que são aptos para ressuscitar um passado revoluto, em vez
de
se interessarem pelo presente. Por ocasião do capítulo de Wilhelmsbad, nós
interviremos de forma vigorosa e orientaremos a Maçonaria na direcção certa.
Viena, 25 de Maio de 1781

- Espártaco, Bruto, Fílon, Luciano, Abaris... Estamos perante uma nova


alucinação maçónica? - perguntou Joseph Anton a Geytrand, que acabara de lhe
entregar uma
curiosa lista de Irmãos.
- Trata-se dos nomes de guerra de vários Iluminados da Baviera, sob os quais se
escondem altas personalidades. Eles reúnem-se em várias cidades da Alemanha e
mesmo
da Áustria, que conhecem sob os nomes de guerra de Atenas, Elêusis, Heliópolis
ou Egipto. Tudo isto permanece bastante envolvido em mistério, e só consegui
apanhar
umas migalhas de informação. Estes Iluminados formam uma sociedade secreta quase
totalmente hermética. Ao espraiar-se, esta sociedade acabará por incluir
tagarelas
e traidores.
-Esses Iluminados aliaram-se aos pedreiros-livres e aos templários?
- A maior parte deles pertence de facto à Maçonaria, e muitas Lojas começam a
falar desse movimento que consegue arrancar os pedreiros-livres ao torpor em que
haviam
Página 47
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
caído.
- Ora, isso é precisamente aquilo que queremos evitar! Eles têm alguma doutrina
precisa?
107

- Tenho uma certa dificuldade em defini-la, pois os Iluminados avançam


disfarçadamente. Eles criticam a Igreja mas reconhecem a existência de um
cristianismo esotérico.
- Eles aprovam as reformas do imperador?
- Aparentemente.
- Isso não me convém nada! Se eles conseguirem agradar a José II, o imperador
impedir-me-á de atacá-los. Não temos nenhuma declaração francamente subversiva a
que
possamos deitar a mão?
- Ainda não, senhor conde.
- Sigamos este assunto de muito perto, Geytrand. Estes Iluminados parecem-me
muito mais perigosos do que os adeptos da Estrita Observância templária. Talvez
alguns
deles não se contentem com nebulosas teorias intelectuais e crenças
disparatadas.
24.
Viena, 28 de Maio de 1781
Ainda sob o choque da sua violenta altercação com Colloredo, Wolfgang
refugiou-se em casa da condessa Thun, que não deixava de lhe prodigalizar
reconforto e encorajamentos.
- O meu pai abandonou-me - deplorou o jovem.
- Não vos preocupeis tanto - recomendou o conde Francisco José. - Consultei os
espíritos a vosso respeito, e eles mostraram-se extremamente favoráveis. O vosso
pai
não se oporá à vossa vontade, já que ela é justa e recta. Sobretudo, não volteis
para trás, pois isso ser-vos-ia fatal! Caro Wolfgang, é em Viena que a vossa
carreira
desabrochará. Vou apresentar-vos dois bons amigos que vos ajudarão.
Apanhado no turbilhão, o músico encontrou-se com Joseph von Sonnenfels e com o
barão Gottfried van Swieten, bem diferentes um do outro.
Professor de ciência política na Universidade de Viena, primeiro jurista
austríaco a defender as teses da filosofia das Luzes, director do periódico O
Homem sem
Preconceitos, Joseph von Sonnenfels tinha obtido a abolição da tortura em 1776.
Por ordem do imperador, tratara de promover o Burgtheater, o teatro nacional
alemão.
Pedreiro-livre, o eminente universitário pertencia também à Ordem dos Iluminados
da Baviera sob o nome de código de Fábio.
- O meu amigo Francisco José Thun falou-me muito de vós, senhor Mozart. Parece
que já não aguentais a tutela do príncipe-arcebispo Colloredo...
109
- Digamos antes a sua tirania.
- Os grandes prelados soem ser pretensiosos e, quando se entregam à política,
tornam-se perfeitamente odiosos. Partilho os vossos sentimentos e aprovo a vossa
iniciativa.
O autor de Idomeneu não deve permanecer fechado em Salzburgo.
- Vós... vós conheceis a minha ópera?
- Uma obra recheada de promessas. Não deixeis de avançar. O conde Thun
manter-me-á informado.
Joseph von Sonnenfels deixou Mozart a sós com o barão Gottfried van Swieten.
Encorpado, o prefeito da Biblioteca Imperial era uma curiosa mistura de bonomia
com
severidade.
- Fico feliz por vos rever. Com que então, partis à conquista de Viena?
- Não tenho assim tanta ambição, barão, apenas pretendo viver da minha produção
musical.
- Isso não será fácil.
- Tenho consciência disso, mas a perspectiva desse destino incerto não me
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
assusta, quando o comparo com a morte lenta que me esperava na prisão de
Salzburgo.
- O destino... O destino envereda por vezes por caminhos bem surpreendentes.
Gosto muito de música, e interesso-me por autores pouco conhecidos pelo público
vienense.
Se vos instalardes na capital, talvez possais vir tocar a minha casa.
- De boa vontade, barão.
Gottfried van Swieten permanecia céptico, pois o Supremo Mago não tinha um
aspecto extraordinário. Esse homenzinho nervoso, de olhar sempre alerta, seria
verdadeiramente
o ser excepcional, capaz de dar novo alento à iniciação maçónica? Talvez Thamos
o egípcio se enganasse redondamente.
Uma surpreendente promoção tinha vindo regozijar Van Swieten: devido aos seus
bons e leais serviços, o imperador acabara de encarregá-lo de uma nova função,
que
já atraía sobre si a inveja de muita gente: a de presidente da Comissão de
Estudos para a Educação e a Cultura, ou seja, a de responsável pela censura de
todas as
publicações.
Van Swieten afastaria os panfletos antimaçónicos e permitiria a impressão de
textos difusores das ideias das Lojas, desde que respeitassem o Estado e as suas
leis.
110
Permitir-lhe-ia este novo cargo descobrir, por fim, o responsável pela caça aos
pedreiros-livres, colocado à cabeça de um serviço tão secreto que nada se sabia
dele?
E existiria mesmo tal serviço?
A defunta imperatriz Maria Teresa sonhava fechar todas as Lojas e certamente
dera ordens a determinados polícias para que coligissem toda a informação
possível,
que agora devia ter ido parar às mãos de José II, cujas tendências liberais se
opunham a esse género de manobras. Mas o imperador continuava a ser o imperador,
e
provavelmente não desdenharia um tão precioso espólio de informações.
Passo a passo, com uma prudência extrema, o Irmão Van Swieten prosseguiria nas
suas investigações.

Viena, 2 de Junho de 1781

O arcebispo fulmina-me diante do mundo inteiro, escrevia Wolfgang ao seu pai, e


nem sequer tem julgamento suficiente para se aperceber que ele próprio não fica
nada
bem visto na história. Pois aqui, sou mais bem visto do que ele, sacerdote
arrogante e presunçoso, que desprega tudo quanto seja vienense, enquanto eu sou
tido como
um homem amável. E verdade que me torno orgulhoso quando percebo que sou tratado
com menosprezo, tal como acontece com o arcebispo. Se ele tivesse falado comigo
como deve ser, teria obtido o que quisesse. Podeis ter a certeza de que eu não
aprecio a ociosidade, mas sim o trabalho. Mas não quero mais servir em troca de
um
salário tão medíocre.
Depois de palavras tão fortes, Wolfgang esperava a concordância explícita de
Leopold, que lhe permitiria por fim romper os seus grilhões. Por isso foi até ao
palácio
de Colloredo, onde estava o conde d'Arco.
-Já haveis reconsiderado a vossa decisão, Mozart?
- Claro que não.
- Recebi uma carta do vosso pai.
- Até que enfim! Aceitais, portanto, a minha demissão?
- Não é esse o sentido da missiva que recebi. Pelo contrário, ele pede-me que eu
mude de opinião. Por conseguinte, indefiro o vosso requerimento.
- Ficarei em Viena e aqui granjearei sucesso.
- Conheço bem os vienenses, Mozart, são versáteis e só gostam da novidade e do
gosto da moda. Os seus favores não durarão. Conhe-
111
Página 49
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
cereis porventura um sucesso falacioso, que vos iludirá. Depressa vos esquecerão
e acabareis na miséria. Em Salzburgo, tal como o vosso pai, levareis uma
existência
honesta e tranquila. Apresentai o vosso pedido de desculpa a Sua Eminência, e
tudo entrará nos eixos.
- Isso está fora de questão! O meu pai acabará por aprovar a minha atitude e
então ver-vos-eis obrigado a aceitar a minha demissão.

Viena, 8 de Junho de 1781


Wolfgang voltou ao assalto do conde d'Arco.
Desta vez, a entrevista foi tão breve quanto violenta. Farto, o supervisor das
cozinhas despediu-o definitivamente "com um pontapé no rabo, por ordem do nosso
querido
príncipe-arcebispo", como escreveu de imediato Wolfgang ao seu pai, com a
esperança de devolver o pontapé ao fidalgote caso se cruzasse com ele na rua.
Wolfgang nunca mais trabalharia para Colloredo, mesmo se este não lhe concedesse
um despedimento oficial.
Para poder compor constantemente, concluiu Wolfgang, preciso de guardar a cabeça
serena e o espírito tranquilo.
25.
Viena, 20 de Junho de 1781
- Estais certo de ter vários alunos? - perguntou, cheia de dúvida, a senhora
Weber.
- Graças à condessa Thun e a outros amigos bem colocados - respondeu Wolfgang -,
darei lições correctamente remuneradas.
A matrona pareceu satisfeita. Um músico independente, sem emprego fixo,
arriscava tornar-se num locatário indesejável. Mas ela já ouvira dizer bem
daquele homenzinho
sério.
Enquanto se dirigia para o seu novo quarto, bastante agradável, Wolfgang foi
saudado pela bonita Constance.
- Estou feliz por estardes entre nós.
- Também eu, menina.
- Sois muito corajoso, senhor Mozart. Fazer frente a um nobre como fizestes...
- Só o coração enobrece o homem. Se não sou conde, sou porventura mais honrado
do que muitos condes que andam por aí. Lacaio ou nobre, quem me insultar não
passa
de um canalha.
Feliz por saborear por fim a liberdade, Wolfgang estava disposto a ignorar para
sempre Colloredo e o conde d'Arco. Num estilo galante, escreveu sedutoras
variações
sobre árias francesas, A pastora Celimena47, Ao pé de uma fonte48, e uma marcha
das Bodas samnitas, de Grétry49.
47 Doze variações para piano e violino, K. 359.
48 Seis variações para piano e violino, K. 360.
49 Oito variações para piano, K. 352.
113
Certamente Thamos criticaria este regresso aos temas ligeiros, mas Wolfgang
tinha, antes de mais, de agradar aos vienenses para assegurar a sua
independência financeira.
- Recupera o fôlego como achares melhor - recomendou-lhe o egípcio, numa ocasião
em que saíam de um almoço em casa da condessa Thun.
- Achais que tenho mesmo hipóteses de ser bem sucedido?
- A grande aventura está a começar, Wolfgang. Cabe-te criar o teu próprio
caminho em direcção ao templo, moldar o teu destino de homem e de músico.
Coblenz, 13 de Julho de 1781
Ao terminar uma sonata para piano e violino50 de abertura tumultuosa mas
desenvolvimento tranquilo, Wolfgang gozava de um período feliz e calmo em casa
do conde
Página 50
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Coblenz, primo de um dos seus alunos, que o havia convidado para ir desfrutar os
encantos do campo junto ao monte Reisenberg, a uma hora de distância de Viena.
Durante as suas numerosas viagens, Wolfgang tivera poucas ocasiões para apreciar
a natureza, Desta vez, ele demorou-se na sua contemplação, percorrendo o vasto
jardim,
sentando-se à beira do açude e meditando no interior da gruta artificial,
revendo o delicioso rosto de Constance Weber, animado por uns olhos negros
fulgurantes.
Ela não tinha nem a beleza nem o porte de Aloysia, sua irmã mais velha, mas
exalava uma delicadeza encantadora.
Por várias vezes, nesse mês de Julho, Wolfgang voltou a esse sítio, "sumptuoso e
muito agradável", como o descreveu ao seu pai. Durante uns quantos dias de sol,
Wolfgang distendeu-se e deixou de sentir a angústia do futuro.
Viena, 25 de Julho de 1781

Wolfgang compôs duas sonatas para piano e violino51 bastante febris e agitadas,
nas quais predominava o sentimento de luta contra si próprio e contra o mundo
exterior.
50 K. 377.
51 K. 379 e 380.

114
O seu pai tinha de lhe dar tempo para instalar-se em Viena e aí criar a sua
vida. O sucesso não viria num só dia.
E, sobretudo, porquê desconfiar de ele se ter instalado em casa dos Weber,
alegando que o fizera com o intuito de seduzir uma das três filhas que moravam
com a mãe!
A mais velha, Josepha, desagradava-lhe; a mais nova, Sophia, não passava de uma
criança; e a do meio, Constance, não pensava em casar-se.
Para mais, Wolfgang não estava apaixonado por ela. Enfim, não estava bem
apaixonado. De qualquer maneira, não tinha a intenção de casar com ela. Ele só
pensava naquela
ópera, alemã por cujo libreto esperava.
Viena, 30 de Julho de 1781

- Eis o texto prometido - declarou Gottlieb Stephanie, o Jovem, compenetrado da


sua função de inspector do teatro alemão de Viena. - Falei dele a Sua Majestade,
que aprovou o tema: Belmonte e Constança, ou o Rapto do Serralho. Em poucas
palavras, Constança, uma jovem nobre, está prisioneira de um sultão, tal como
Blonde,
sua criada inglesa, e Pedrillo, lacaio de Belmonte, amado de Constance. Este
último tenta libertá-los, mas o tirano e o guardião do serralho estão de vigia!
Não
vos conto as peripécias do enredo, descobri-las-eis sozinho.
Wolfgang permaneceu em silêncio.
Constança... Tal como Constance Weber e como a alta virtude do Sonho de Cipião,
Constança, superior à Fortuna!
- Pareceis espantado! A história não vos agrada?
- Oh não, pelo contrário! Eis um belo hino à liberdade.
- Tratai de escrever uma música a meio caminho entre o sério e o bufo. O
imperador não quer uma farsa soez, mas não gostaria de se aborrecer por ter de
ouvir um
drama sombrio.
- Para que data está prevista a estreia?
Stephanie pigarreou.
- Teremos a alegria de receber em Viena a visita do grão-duque Paulo da Rússia,
filho de Catarina II e futuro czar. Nessa ocasião, o imperador deseja dar-lhe a
ouvir
algumas novidades, entre as quais se contará o Rapto do Serralho.
115
- Qual é a data da visita? - insistiu Wolfgang.
Página 51
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Meados de Setembro.
- Um mês e meio...
- É pouco, admito, mas dizem que escreveis -muito depressa.
- E quanto aos cantores?
- A prima donna Caterina Cavalieri cantará o papel da heroína, Constança. Não
obstante a sua obesidade, ela possui, com os seus 26 anos, a plenitude de meios
para
interpretar com brio as árias mais difíceis. Apesar de ter já 41 anos, Valentin
Adamberger dará um esplêndido Belmonte, apaixonado e valente. O célebre Ludwig
Fischer
tornará o horrendo Osmim simultaneamente odioso e cómico. A bonita e vivaz
Theresa Teyber encarnará Blonde, e Johann-Ernst Dauer interpretará um divertido
Pedrillo.
Não poderíeis encontrar melhor escolha.
Stephanie não estava a exagerar.
- 15 de Setembro... Estarei pronto.
De libreto debaixo do braço, o compositor correu a procurar um piano. Não podia
perder um segundo.
- Ponho à tua disposição um salão e um instrumento - indicou a voz pausada de
Thamos o egípcio.
26.
Viena, 30 de Julho de 1781
Wolfgang tocou ao piano a abertura do Rapto do Serralho, o coro do primeiro acto
e algumas árias, sem esquecer um bocado da música "à turca", estilo convencional

muito praticado em Viena, cidade ansiosa por esquecer que os turcos quase a
haviam conquistado no não muito distante ano de 1683.
- Um milagre! - exclamou o compositor. - Este Rapto assemelha-se de tal forma à
Zaida, que já tenho vários trechos inteiramente prontos.
- Milagre não me parece o termo apropriado - corrigiu Thamos. - Para lançares a
tua carreira em Viena precisavas de uma ópera. Foi por isso que entrei em
contacto
com Stephanie, o Jovem, orientando-o para o libreto de um certo Christoph
Friedrich Bretzner, mercador de Leipzig. Stephanie apropriou-se sem grande custo
do libreto
e encarregou-te de uma tarefa quase impossível. Se falhares, ele já tem à mão
uma solução alternativa, baseada num dos seus libretos. Claro que Stephanie
ignora
que já contas com um certo avanço.
- O casal formado por Constança e Belmonte encanta-me - confessou Wolfgang. -
Juntos, eles enfrentarão provas terríveis, incluindo a morte. Nem as piores
ameaças
os amedrontarão, pois a sua fidelidade recíproca permanecerá inabalável.
- Pedrillo, o criado de Belmonte, apresentará o seu amo como "um hábil
arquitecto" - indicou Thamos, incluindo assim esta pis-
117
cadela de olhos maçónica. - E o paxá Selim, que aparece primeiro como tirano,
será um papel inteiramente falado. Simples orador, ele comportar-se-á com uma
bondade
exemplar, qual monarca capaz de perdoar aos seus inimigos e de governar com
sabedoria.
- O público pensará em José II - descortinou Wolfgang.
- Porque não? Opor-se-lhe-á Osmim, o guardião do serralho, colérico, limitado,
violento, escravo do seu próprio fanatismo, a tal ponto que se torna digno de
dó.
- Eis o começo da ária de Belmonte: O céu, satisfaz os meus desejos: deixa-me
descansar! Já padeci sofrimentos em demasia, ó Amor. Traz-me a alegria e
conduz-me
ao objectivo.
- Possa o céu atender os vossos desejos, os teus e os do teu herói - comentou
Thamos.
- A tarefa de Belmonte não é fácil. Decerto, ele consegue encontrar o rasto da
sua noiva Constance, da sua criada Blonde e do seu criado Pedrillo, que haviam
sido
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
raptados por piratas, mas eles encontram-se agora encerrados no interior de um
serralho e reduzidos à condição de escravos. Pior ainda, o paxá Selim quer tomar
Constance
como sua amante!
- Ela faz jus ao nome que ostenta - comentou Thamos -, pois ousa resistir aos
avanços de Selim, pondo em risco a sua própria vida.
- Constance... Sim, é um belo nome e uma soberba virtude.
- Nascida em Inglaterra, pátria da liberdade, a infeliz Blonde está reservada
para o odiento Osmim, mas ela repele-o como o mesmo vigor com que Constance
repele
Selim: ou ela cede, ou morrerá logo no dia seguinte.
- Depois de ter sido apresentado ao paxá, o grande arquitecto Belmonte consegue
entrar dentro do palácio, com a ajuda de Pedrillo. Mas Osmim procura desfazer-se
deste visitante, que ele odeia. E eis o nosso primeiro acto!

Berlim, 8 de Agosto de 1781


Para Frederico Guilherme II, que viria a tornar-se rei da Prússia, esta era uma
grande noite. Ele iria finalmente obter a tão almejada recompensa por ter
deixado
a Rosa-Cruz de Ouro substituir a Estrita

118
Observância templária nas principais Lojas alemãs: entraria em contacto com os
espíritos.
No momento em que a trovoada rebentava, os dois dirigentes da Rosa-Cruz, Wòllner
e Bischoffswerder, apresentaram-se à entrada do palácio de Charlottenburg,
acompanhados
por um homenzinho anafado. Os relâmpados traçavam ziguezagues no céu negro como
breu.
- Excelente presságio, Majestade - considerou Wóllner, orgulhoso de dirigir 26
círculos que totalizavam mais de 200 membros. - As potências superiores
assinalam-nos
por esta forma que concordam com a nossa iniciativa: esta noite, podereis
interrogá-las.
Na sequência da iniciação de Frederico Guilherme II nos ritos maçónicos e
cristãos da Rosa-Cruz, Wõllner e o seu acólito forneciam-lhe uma prenda de valor
inestimável:
a intervenção de um médium autêntico.
Saudado por um trovão mais forte do que os outros, o mago lançou-se numa série
de encantamentos cujos resultados ultrapassaram mesmo as expectativas do futuro
soberano.
Os espíritos manifestaram-se e falaram com ele!
- Assim que começar o meu reinado - disse Frederico Guilherme II a Wõllner -
nomear-vos-ei ministro dos Cultos. Quanto a Bischoffswerder, será ministro da
Guerra52.
Viena, 15 de Agosto de 1781
- É impossível! - considerou Joseph Anton. - Desta vez, Geytrand, estás a
inventar!
- Infelizmente não, senhor conde. Segundo o criado que desempenha o papel de
informador, a cena desenrolou-se tal e qual como vo-la contei.
- Um médium... Frederico Guilherme II não é assim tão crédulo!
- Os dois manipuladores, astuciosos e convincentes membros da Rosa-Cruz,
souberam tocar nos seus pontos fracos.
Anton estava siderado. Como podia o futuro dirigente de uma grande potência cair
tão baixo?
52 A promessa será cumprida.
119
- Por esta via, Frederico Guilherme II entra em contacto com as vozes de
Leibnitz, pensador maçador e sem préstimo, e de Marco Aurélio, imperador romano
que acreditava
Página 53
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
na sabedoria mas não alimentava ilusões com relação ao género humano. Podia ter
sido pior! Se, de futuro, Frederico Guilherme II comunicar com os espíritos de
Nero,
de Calígula ou de Átila, tornar-se-á num incendiário, num doido varrido ou num
guerreiro demoníaco!
- Enquanto os pedreiros-livres e a Rosa-Cruz se entretiverem com esse género de
sonhos, não se interferirão na política.
Viena, 22 de Agosto de 1781

Desde dia 7, Wolfgang dera a conhecer à condessa Thun as primeiras árias do


Rapto do Serralho. Neste dia, ela teve o privilégio de saborear a totalidade do
primeiro
acto.
- Soberbo, Mozart! A vossa música é simultaneamente arrebatadora, alegre e
dramática. Conquistareis o coração dos vienenses.
- A data de 15 de Setembro aproxima-se, e ainda tenho de compor dois actos, não
estando nada satisfeito com o libreto. Mas não tenho tempo para alterá-lo.
- Conseguireis, desde que não vos disperseis e que vos concentreis na vossa
obra.
- Esse é o meu intento, condessa!
- Mesmo estando submetido às investidas de uma apaixonada a quem, ao que consta,
retribuís perdidamente o sentimento?
- Eu... eu não estou a perceber.
- Podeis abrir-vos comigo.
- Quem é que ousa espalhar tais coscuvilhices?
- Uma tal menina Auernhammer.
O compositor bateu com a mão na testa.
- Oh não, ela não!
- Não se trata de uma- boa pessoa? - inquietou-se a condessa.
- Trata-se de uma aluna minha, e não ouso descrevê-la à vossa frente por medo de
vir a ser cruel.
Anafada, apertada nos seus trajes luxuosos, libertando eflúvios de suor assim
que começava a tocar a um ritmo mais rápido, lerda de es-

120
pírito, a menina Auernhammer não correspondia de modo algum ao ideal feminino de
Wolfgang.
- Sabei, condessa, que eu não nutro sentimento nenhum a respeito dessa rapariga.
E desagradam-me profundamente as alusões que ela anda a difundir, pois
preocupo-me
muito com a minha reputação.
- Tendes razão, Mozart. Mas não seria pecado nenhum se vos apaixonásseis.
27.
Viena, 29 de Agosto de 1781
Constance Weber parecia sinceramente emocionada.
- Estais de partida, senhor Mozart?
- Preciso de um apartamento grande para poder trabalhar à vontade. Tenho de
acabar com a maior urgência a ópera que me irá consagrar como compositor.
- Ireis morar para longe daqui?
- Não, ficarei muito perto, logo ali na vizinha Praça de São Pedro53. Ela estava
tão encantadora, com os seus olhinhos negros e o seu rosto tão fino.
- Talvez nos voltemos a ver... - suspirou Constance em voz baixa.
- Claro que sim! Gosto muito de passear para desanuviar. Gostaríeis de vir
comigo explorar os arredores de Viena?
- Decerto, se a minha mãe me conceder a sua autorização.
- Até breve, Constance.
O lugar que Thamos encontrara agradou muito a Wolfgang. Vários intelectuais
pertencentes à Maçonaria moravam naquele prédio, nomeadamente um judeu chamado
Isaac
Arnstein, especialista na cabala, ciência que herdara em parte os ensinamentos
esotéricos do antigo Egipto.
53 No actual Am Graben, nº 1175.

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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
122
O contacto com Wolfgang foi imediato. O compositor teve ocasião de receber,
repetidamente, as palavras daquele entendido em números sagrados.
- No início - revelou o cabalista - quando a vontade do rei se manifestou, ele
gravou os sinais na esfera celeste. Esses sinais tornaram-se nas potências
criadoras.
Para vós, músico, são as notas e as melodias, que nos permitem ir até ao âmago
da chama e reencontrar a Sabedoria, o ponto primordial54.
- É a mesma sabedoria dos sacerdotes e das sacerdotisas do Sol?
- Cabe ao pesquisador de temas iniciáticos ser simultaneamente macho e fêmea.
Assim, pode garantir que a Presença divina estará sempre ao seu lado. No seio do
lar,
é a mulher que faz perdurar essa Presença.
O casamento apresentava-se, portanto, como um acto da maior gravidade, decisivo,
e a mulher desempenhava um papel essencial em todas as fases da vida. Porque lhe
conferia a religião, então, um lugar de somenos, proibindo-lhe o exercício de
funções sagradas?
- As estrelas do firmamento são as guardiãs do mundo - continuou o cabalista. -
A cada objecto é consignada uma estrela, que o protege. Ela desempenha a função
de
elixir da vida e guia-nos para a sabedoria do Oriente. Tal como o vinho deve ser
decantado para sua melhor conservação, assim também a verdade deve apresentar-se
envolta em roupagens exteriores, compostas por fábulas e contos.
Ficando a meditar nas palavras do sábio, Wolfgang foi almoçar a casa da condessa
Thun.
- Más notícias - anunciou ela sem preâmbulo. - A visita do grão-duque Paulo da
Rússia foi adiada para Novembro.
- Melhor ainda, terei tempo para modificar o libreto e aprofundar as cenas
dramáticas.
- Já se diz mal do vosso trabalho - deplorou a condessa. - Uma grande ópera, em
Viena, composta por um artista tão jovem...
- Hipócritas, invejosos, ciumentos e mesquinhos atravessam-se no meu caminho
desde que eu escrevi a minha primeira nota. Desta vez, eles não impedirão o meu
sucesso.

54 Citamos excertos do Xohar segundo G. Scholem, Paris, 1980.

123
- O meu marido, os meus amigos e eu própria ajudar-vos-emos com todos as nossas
forças.
Respaldado nesses apoios, Wolfgang sentia-se mais sólido do que nunca.

Viena, 5 de Setembro de 1781


Apesar de não contar com uma saúde de ferro, Wolfgang dispunha de uma boa
energia, que lhe permitiu vencer a varíola, um início de pneumonia, gripes e
bronquites,
e lutar contra o reumatismo. Ao contrário de tantos outros artistas de costumes
dissolutos, que ele condenava fortemente, Wolfgang nunca contraíra nenhuma
doença
venérea, e levava uma existência sã, tendo embora de suportar as insinuações do
seu pai, sempre tão lesto a aceitar os boatos que corriam acerca dos poderes de
sedução
do seu filho!
Por isso chamou-o à realidade: As pessoas bem podem escrever até ficarem com os
olhos esbugalhados, e vós podeis ouvir os seus boatos à vontade. Não mudarei a
minha
atitude nem um pouco, e permanecerei, como sempre fui, o mais honesto dos
rapazes.
Uma vez que conquistara a sua independência, Wolfgang era acusado de ir para a
cama com todas as cantoras, arruinando assim a sua reputação. Um músico livre só
podia
ser um libertino! Ele que sonhava com um casamento marcado pelo selo de uma
fidelidade absoluta, ele que só conhecera um único infeliz amor, ele que
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
colocava a mulher
em cima de um pedestal e que a respeitava mais do que qualquer um, via-se
classificado como um miserável rabo-de-saias.
Como era difícil suportar tanta maledicência e tanta injustiça! Felizmente,
havia os passeios com a sua querida Constance.
Constance, a heroína do Rapto do Serralho. Constance, a mais bela das virtudes.
Constance, que consagrava a Belmonte um amor eterno.
- O meu pai não me compreende - queixou-se Wolfgang. - No fundo, ele não aprova
a minha luta e deseja que eu regresse o quanto antes a Salzburgo, onde deverei
implorar
o perdão do príncipe-arcebispo.
- E é isso que pretendeis fazer?
- Nunca voltarei para trás, Constance, pois jurei a mim mesmo que haveria de
triunfar aqui em Viena e que não me trairia a mim próprio.
124
- Sois deveras corajoso.
- Quero viver da minha arte e não me arrepender de nada, mesmo que tenha que
desagradar ao meu pai.
- O meu pai era um homem bom, de quem tenho muitas saudades. Tanto ele como eu
ficámos transtornados com a atitude que Aloy-sia tomou para convosco.
- O passado não interessa, Constance.
- Não guardais rancor contra a minha irmã?
- Desejo que ela seja feliz. Aloysia tem muito talento.
- Quando eu treinava a minha voz ao lado dela, sentia-me ridícula.
- Sede vós própria! Cada voz é única, cabe ao compositor valorizá-la.
- Pensais mesmo assim?
- Não sei mentir.
-Esse é um defeito grave nos tempos que correm! Mas peço-vos que não mudeis a
vossa maneira de ser.
Saverne (Alsácia), 22 de Setembro de 1781

Conforme prometido, Cagliostro havia convidado Thamos, conde de Tebas, para a


experiência do novo Rito egípcio que iria revolucionar a Maçonaria.
Desta vez, não havia nem Colomba nem Pupilo para decifrar a mensagem dos
espíritos na água pura, mas antes uma cópia dos rituais dos Cavaleiros
beneficentes da Cidade
Santa e das invocações do místico lionês Jean-Baptiste Willermoz com quem
Cagliostro trocava correspondência.
Originalmente obra perfeita de Deus, o Homem tinha abusado do seu poder sobre os
anjos e sobre o conjunto de seres vivos. Por isso o Senhor castigara-o,
tornando-o
mortal. Como escapar a esse destino sinistro, a não ser pela iniciação que lhe
restituiria a antiga dignidade perdida?
O Rito de Cagliostro pretendia regenerar os iniciados dando-lhes a ingerir um
elixir e algumas gotas brancas, às quais ele juntava um bálsamo. Em seguida,
eles aprendiam
a ciência dos números, herdada de Pitágoras.
125
- Satisfeito? - perguntou o mago a Thamos.
- Não aprendi coisa nenhuma.
- A minha revelação tem de ser progressiva, pois a maior parte dos seres é
escrava do materialismo.
- Fico então à espera da próxima etapa.
- Ficareis espantado.
28.
Viena, 13 de Outubro de 1781
Antes de retomar o seu trabalho sobre o libreto do Rapto do Serralho e de tentar
convencer Stephanie a introduzir-lhe uma série de alterações, Wolfgang acertou
as
coisas com o seu pai. Se "a estreia da ópera se arrastava", isso não era da
responsabilidade do compositor. Motivado por circunstâncias políticas e
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
mundanas, este
atraso permitia-lhe aperfeiçoar o texto "com o maior rigor", tratando como devia
ser, por exemplo, os acessos de ira do violento Osmim, guardião do serralho,
pois
o homem que embarca em violentos acessos de ira excede toda a regra, toda a
medida, todo o limite. Deixa de ser senhor de si. E épreciso que a música, por
seu turno,
deixe de ser senhora de si. No entanto, as paixões, quer sejam violentas quer
não, nunca devem exprimir-se ao ponto de fartar. E a música, mesmo nas mais
terríveis
situações, nunca deve ofender o ouvido, mas antes encantá-lo e permanecer sempre
musical.
Para mais, o compositor tinha de afirmar claramente a sua supremacia,
livrando-se do jugo de autores pretensiosos. Numa ópera, afirmava Wolfgang, a
poesia não pode
deixar de ser filha obediente da música. Por que é que as óperas bufas
italianas, apesar de tudo o que os respectivos libretos contêm de miserável,
agradam universalmente?
Porque nelas reina incontestavelmente a música! Sim, uma ópera agradará tanto
mais quanto a trama da peça tiver sido bem definida, quanto as palavras tiverem
sido
escritas para a música, quanto não se encontrar, aqui e ali, rimas infelizes ou
estrofes inteiras que estragam a ideia do compositor. Não há nada pior do que
rimar
por rimar! Os pedantes que escrevem

127

desse modo desaparecerão, eles e a música que produzirem. O melhor é quando um


bom compositor, que compreende o teatro e que é ele próprio capaz de sugerir
algumas
ideias, encontra um poeta judicioso, uma verdadeira Fénix! Então, não devemos
cuidar da opinião dos ignorantes! Com os seus truques profissionais, creio que
os poetas
se assemelham ao efeito das trombetas. Se nós, compositores, quiséssemos seguir
sempre as suas regras, produziríamos música de tão má qualidade quanto eles
produzem
libretos medíocres.

Viena, 31 de Outubro de 1781

Após a sua última serenata55, popular e vigorosa, ter sido tocada ao ar livre
por três vezes sem ofender o gosto vienense, Wolfgang ouviu a Ifigénia, de
Gluck, o
músico da moda. Nesse dia de festa do seu santo homónimo, Wolfgang foi até casa
da baronesa Martha Elisabeth von Waldstátten, mulher original, de 37 anos,
separada
de um conselheiro de Estado. Rica, ela morava num vasto apartamento no número
360 da Leopoldstadt, e desejava ajudar o jovem Mozart a conquistar Viena.
Usando por vezes uma linguagem bastante crua, que lhe fazia lembrar a da sua
priminha de Augsburgo, a baronesa mostrava-se volúvel, excêntrica e
inconformista.
- Parabéns pelo dia de hoje, Mozart! Quando estreará o vosso Rapto?
- Em meados de Novembro, espero.
- Entretanto, tenho uma surpresa para vós.
- O que é?
- Logo à noite, vereis.
No final de um dia de intenso labor, Wolfgang estava esfalfado. Enquanto
começava a despir-se, ouviu as primeiras notas da sua serenata em si bemol
maior!
Debruçando-se à janela, avistou um grupo de pobres diabos, músicos de rua que
tocavam a sua música de forma agradável, desejando-lhe assim uma boa festa do
seu santo
padroeiro.
Prenda da baronesa Waldstátten, esta primeira homenagem vienense fê-lo dormir um
sono maravilhoso.
55 K. 375.
Página 57
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
128

Viena, 18 de Novembro de 1781


- As coisas não se compõem para o duque de Brusnwick - anunciou Geytrand a
Joseph Anton. - Ele agora é detestado nas suas próprias terras.
- Trata-se de uma revolta séria?
- Tão séria que ele já transferiu o governo da sua província templária para
Weimar, onde conta com apoios sólidos. O Grão-Mestre vacila, e com ele toda a
Ordem.
- O capítulo convocado poderia voltar a conferir-lhe força e vigor. Geytrand
lançou um olhar espantado.
- Salvo o devido respeito, senhor conde, acabais de usar uma expressão maçónica.
- A força de ler os seus rituais... Há notícias precisas desse capítulo?
- As respostas das Lojas tardam a chegar ao Grão-Mestre, e não foi ainda
decidido nada.
- A tua rede de informadores em Weimar está a postos?
- Claro que sim, mas não estou inteiramente satisfeito com ela. As informações
chegam-me a conta-gotas e parecem-me duvidosas. Tenho de reforçar essa rede para
torná-la
de inteira confiança.
- Brunswick é como uma grande fera ferida, logo muito perigosa. Quero conhecer
em pormenor os seus verdadeiros projectos. Não esqueçamos o seu cúmplice, Carlos
de
Hesse. Por agora, ele mantém-se na sombra, à espera da sua hora. Se o seu
querido Fernando viesse a desaparecer do mapa, Hesse retomaria o testemunho.
- Segundo informações coincidentes - adiantou Geytrand - Carlos de Hesse é um
verdadeiro místico, nutrindo o objectivo de transformar a Estrita Observância
templária
numa nova Igreja, fiel à mensagem de Cristo.
- Nesse caso, ainda lhe falta muito caminho a percorrer, e nós arriscamo-nos a
ter pela frente um temível fanático! A única Igreja boa é a dos crentes
costumeiros,
que não andam a levantar questões, que respeitam a ordem instituída e que só se
preocupam com a sua salvação.
29.
Viena, 22 de Novembro de 1781

O grão-duque Paulo da Rússia chegara por fim a Viena, acompanhado pela sua
mulher!
Wolfgang conseguiu encontrar-se com Stephanie, o Jovem.
- Meu pobre Mozart, não consigo descansar nem um minuto! Uma visita desta
importância, já imaginastes?
- O Rapto do Serralho pode ser representado tal como está agora, mas eu gostaria
de introduzir-lhe uma série de alterações, porque...
- Tendes tempo para pensar no assunto. O imperador quer apresentar ao seu
ilustre hóspede umas óperas um pouco... sérias. Pensámos em Gétry e, sobretudo,
no nosso
grande Gluck, cujos numerosos sucessos conquistaram todos os espíritos. As suas
obras encantarão o grão-duque.
- E quanto... a O Rapto}
- Podeis ficar descansado, a vossa ópera irá à cena no Burgtheater, mas não de
imediato.
- Dais-me inteira liberdade para melhorar o libreto?
- Se quiserdes, Mozart, se quiserdes! Agora dai-me licença, estou cheio de
trabalho.
Longe de se desencorajar, Wolfgang decidiu aproveitar este atraso para
transformar o texto em fiel servidor da música.
No dia seguinte, a 23, ele deu um concerto com a ajuda da suada Josepha
Auernhammer, que ainda envolvia o seu professor em olhares
130
langorosos, mas que tinha aprendido a ter tento na língua. Juntos, tocaram um
concerto para dois pianos56 e uma sonata em ré maior57. Estas partituras
brilhantes
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
agradaram aos espectadores, entre os quais figuravam a condessa Thun e o barão
Van Swieten.
- Não estais abatido, pois não, senhor Mozart? - inquietou-se Constance.
- Pelo contrário! Não ousava esperar por este período de descanso que me permite
reflectir e progredir. O Rapto do Serralho já não será uma obra de Stephanie,
mas
sim minha.
- Achais que ele quer mesmo ver a vossa ópera em cena?
- Tal é a vontade do imperador.
- Mas não são assaz volúveis os grandes deste mundo?
-José II não o é. Eu percebo que ele tenha apostado num músico célebre e de
créditos reconhecidos como Gluck. A minha vez virá a seguir, e eu não o
desiludirei.
- Estou certa disso!
- A vossa amizade é-me preciosa, Constance.
- A vossa é ainda mais preciosa para mim, Wolfgang... Oh, desculpai! Não
pretendia mostrar tão familiar!
- Já que nos conhecemos melhor, sugiro que nos tratemos por tu.
- Fico muito contente! Posso dar-vos... dar-te um beijinho na face? Ela não
esperou pelo seu consentimento.
Foi um beijo furtivo e respeitável, mas muito mais ardente do que uma simples
demonstração de amizade.
Pela primeira vez, Wolfgang olhou para Constance com outros olhos. Tímida e
reservada, ela não deixava de ser uma rapariga encantadora.
- Constance...
- Sim, Wolfgang?
- Eu tenho 25 anos, tu tens 19, e...
- Será a nossa juventude um pecado?
- Certamente que não, mas...
- Se Wolfgang Mozart quisesse casar comigo, eu dar-lhe-ia o meu consentimento -
murmurou ela, de olhos baixos, -i- E se ele estivesse tão apaixonado como eu,
não
hesitaria em declarar-se.

56 K. 365.
57 K. 448.
131

- Constance, eu...
O seu delicioso sorriso exigia uma resposta.
- Falarei com o teu tutor - prometeu ele. Sorridente, resplandecente, ela fugiu.
Abalado e não conseguindo compreender o que acabara de acontecer, o músico
errava pelas ruas e quase esbarrou com Thamos.
- Pareces perdido nos teus pensamentos, Wolfgang.
- Não, quer dizer, sim...
- O Rapto está atrasado, eu bem sei, mas não temas um novo fracasso. Segundo os
meus contactos na corte, a peça será encenada, embora ainda não haja nenhuma
data
marcada.
- Aceitaríeis rever o libreto comigo?
- Antes disso, vou apresentar-te a alguns amigos meus que desempenharão um papel
importante ao longo da tua carreira.
- São intérpretes?
- Não, são editores. Temos que pensar na publicação das tuas obras, de maneira a
que elas fiquem para a posteridade. Na tua profissão, abundam os incapazes e os
ladrões. Os irmãos Artaria, eles, tratar-te-ão com o devido respeito.
Originária da região do lago de Como, a família Artaria chegara a Viena em 1769
e abrira aí uma próspera loja na Michaelerplatz, nas imediações do Burgtheater.
Pedreiros-livres,
Francesco e Carlo receberam calorosamente Mozart, e aceitaram publicar várias
das suas sonatas para piano e violino, conferindo-lhe assim o estatuto de
profissional
respeitável, digno do interesse dos vienenses.
Ainda não era a glória, mas era já uma etapa importante. Para mais, o autor
receberia algum dinheiro, esse dinheiro que agora seria indispensável para
garantir a
sua independência, fora da alçada de Colloredo e longe de Salzburgo!
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Viena, 15 de Dezembro de 1781

Compreenderia Nannerl as intenções de Wolfgang, reveladas por meias palavras na


sua carta: "O Segredo revelado" só é aceitável quando se considera como uma peça

italiana, pois a condescendência da princesa para com o seu lacaio é


absolutamente inconveniente e contrária a tudo o que é natural. O melhor,

132
nesta peça, é certamente o segredo revelado, ou seja, a maneira como os dois
amantes, misteriosa mas publicamente, se fazem compreender mutuamente.
Então, era assim o amor. Não era um fogo devorador como o que alimentara por
Aloysia, mas uma chama tranquila, alimentada por ternura e cumplicidade.
Constance trazia-lhe
uma sensação de equilíbrio e de calma, deixava-lhe a mente aberta para compor.
Entre eles não havia competição, nem dissídios, nem tempestades, apenas uma
profunda
comunhão, enriquecida dia após dia.
Ele agora tinha percebido. O destino concedera-lhe um amor verdadeiro e
razoável, para lá das frivolidades e das paixões destruidoras.
Por isso Wolfgang encaminhava-se com passo seguro para casa dos Weber, onde foi
recebido por Constance, visivelmente tensa, pela mãe e pelo tutor da rapariga.
Um
homenzinho frio e desagradável que o músico detestava.
Ele foi direito ao assunto.
- Constance e eu amamo-nos. Eu desejo casar-me com ela, senhora Weber, e
peço-vos oficialmente a sua mão.
- O casamento é um assunto sério - interveio o tutor. - As raparigas casadoiras
correm grandes riscos e devem ser protegidas. Concordais comigo, Mozart?
- Certamente.
- Exijo a vossa assinatura num contrato que vos comprometerá irreversivelmente.
Em caso de renúncia, tereis de pagar os danos e compensações.

30.
Viena, 15 de Dezembro de 1781

O tutor de Constance apresentou a Wolfgang o texto que havia redigido com a


ajuda da mãe da rapariga: "Comprometo-me a desposar a menina Constance Weber no
lapso
de três anos; no caso em que tal se revele impossível ou em que eu mude de
ideias, ela ficará no direito de me exigir o pagamento da soma de 300 florins
por ano".
O músico leu o documento em voz alta.
A tremer, Constance estava à beira das lágrimas.
- Concordais com o texto? - perguntou a senhora Weber num tom rouco.
- Aceito e assino.
- Aqui tendes uma pena para assinar.
Constance arrancou o papel das mãos da sua mãe e rasgou-o em milhares de
pedaços.
- Querido Wolfgang - exclamou -, não preciso deste compromisso escrito! Acredito
na tua palavra.
- Cala-te, tontinha! - gritou-lhe a mãe. - As promessas orais não passam de
vento. Este músico pode contentar-se em seduzir-te e, quando tiver obtido o que
deseja,
poderá abandonar-te. Com um contrato devidamente assinado, ficarás protegida.
Wolfgang nunca esbofetearia uma mulher, embora aquela abominável senhora Weber
talvez tivesse perdido o direito de ser classificada dentro de tal género.
134
- Não tolero que duvideis da minha palavra! - declarou, indignado.
- Não faço caso da vossa palavra! Só me interessa a vossa assinatura.
- Mãe - gritou Constance -, sois odiosa e grotesca. Não ficarei nem mais um
minuto nesta casa.
A rapariga saiu porta fora, Wolfgang foi atrás dela e apanhou-a.
- Onde poderei encontrar abrigo? - perguntou ela, angustiada.
Página 60
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- A baronesa Waldstãtten acolher-te-á.
- A mim, que não passo de uma pobre rapariga?
- A baronesa é uma pessoa caridosa e não deixará de nos prestar auxílio.
- Estou certa de que não será assim!
Mas Constance estava enganada. Martha Elisabeth von Waldstàtten abraçou a
rapariga em pranto e ofereceu-lhe um quarto onde ela pôde recobrar a compostura.
- Permanecereis aqui pelo tempo que for preciso, e Wolfgang poderá vir
consolar-vos.
- Mas eu não tenho com que vos pagar, baronesa!
- Não se põe essa questão, querida. Em contrapartida, quero que me conteis todas
as vossas desgraças.
Sabendo que a sua amada estava em segurança, Wolfgang apressou-se a escrever ao
pai, sopesando bem cada termo para não o contrariar demasiado. Ele devia
apresentar-lhe
a notícia do seu casamento sem valorizar excessivamente a sua noiva, pois corria
o risco de ser tratado e criticado como sonhador.
Confessei-vos o meu desejo, permiti que vos confesse também as minhas razões,
que são bem fundamentadas. A natureza fala em mim tão alto ou talvez mais alto
do que
em grandes e vigorosos homens anafados. É-me impossível viver como vive a maior
parte dos jovens de hoje. Antes de mais, sou demasiado religioso, nutro
demasiado
amor pelo meu próximo e tenho sentimentos demasiado honestos, para ir seduzir
uma inocente rapariguinha; tenho também demasiado horror e desgosto, repulsa e
temor
das doenças, e demasiado amor pela minha saúde, para ir para a cama com
meretrizes. Posso aliás jurar que nunca frequentei mulheres desse género! Para a
minha natureza,
mais atraída pela vida sossegada e pelo lar do que pelo barulho, para mim, que
desde a infância nunca tive o hábito de cuidar das tarefas
135

do dia-a-dia, como a lavagem e passagem de roupa, e todas as matérias afins, não


consigo imaginar coisa melhor do que o casamento. Asseguro-vos que já tive
imensas
despesas porque não consigo tomar conta de nada. Estou inteiramente persuadido
de que com uma mulher- e mesmo com o rendimento de que agora gozo só para mim -
desembaraçar-me-ia
muito melhor. E quantas despesas inúteis ficariam assim aniquiladas! É verdade
que o casamento cria outras, mas são conhecidas, podem ser controladas e
consegue-se
manter uma vida regrada. Na minha opinião, um celibatário vive só a meio tempo.
Qual é o objecto do meu amor? Constance Weber. Josepha, a mais velha das irmãs
Weber, é preguiçosa, grosseira, falsa e matreira. Aloysia é falsa, maldosa e
namoradeira.
Sofia, a mais nova, é demasiado jovem para ser considerada. É uma boa criatura,
mas um bocado tonta!Que Deus aguarde de ser seduzida. A irmã do meio, em
contrapartida,
a minha boa, a minha querida Constance, é uma mártir, e talvez por isso seja a
mais generosa, a mais ponderada, numa palavra, a melhor de todas. Ela não é
feia,
mas um pouco menos que bela. Toda a sua beleza consiste num par de olhinhos
negros e num bonito porte. Ela não tem muito espírito, mas possui suficiente bom
senso
para cumprir os seus deveres de esposa e de mãe. Ela sabe cuidar da lida da casa
e tem o melhor coração do mundo. Eu amo-a e ela ama-me cordialmente.
Viena, 24 de Dezembro de 1781
A resposta do seu pai foi uma cruel desilusão para Wolfgang. A carta só continha
censuras e suspeitas, nomeadamente a respeito de uma suposta promessa de
casamento
cifrada. Quem teria falado a Leo-pold de tal horror?
Wolfgang cuidou de lhe explicar a verdade, descrevendo o magnífico comportamento
de Constance, e evocou também o seu trabalho como compositor e como professor,
como
forma de tranquilizar o pai. Esta carta pareceu-lhe de tal forma importante que
Página 61
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
ele não a enviou de imediato, deixando-a pelo contrário amadurecer.
Em seguida, ele preparou-se para um estranho duelo, imposto pelo imperador para
diversão do grão-duque Paulo da Rússia: enfrentar ao piano o virtuoso Muzio
Clementi.
Com 20 anos, este exibia uma inacreditável velocidade.

136
Na noite do desafio, Wolfgang preferiu apostar noutros registos: a invenção, a
expressão e a sensibilidade. Enquanto o seu adversário se lançava numa corrida
desenfreada
que espantou a assistência, Mozart improvisou uma deslumbrante série de
variações que alternavam movimentos lentos e rápidos.
Não foi proclamado nenhum vencedor, e o imperador concedeu 50 ducados a cada um
dos pianistas. Pelo menos, enquanto esperava pela estreia de O Rapto do
Serralho,
o facto de ter enfrentado aquele mechanicus privado de alma rendera a Wolfgang
uma bela recompensa!
Viena, 25 de Dezembro de 1781
Estranho Natal, na verdade!
Feliz por estar longe de Salzburgo, infeliz por estar de más relações com o seu
pai, Wolfgang reconfortou Constance, que continuava a recusar voltar para casa,
com
medo de ficar lá fechada, sem poder rever o homem que ela amava.
- A minha mãe aterroriza-me - confessou a rapariga. - Ela presta demasiada
atenção ao meu tutor e só pensa no dinheiro. Se eles me procurarem, tereis
sarilhos!
- Não temo a senhora Weber - afirmou a baronesa Von Waldstàtten.
- Casaremos assim que pudermos - prometeu Wolfgang -, mas preciso do
consentimento do meu pai. Depois, tratarei de convencer a mãe de Constance a
deixá-la livre
para escolher.
- Depois deste drama todo - objectou a rapariga -, a minha mãe vingar-se-á,
negando o seu consentimento.
- Não sejais tão pessimista - recomendou a baronesa. - Se o vosso amor for
profundo e sincero, ela ultrapassará todos os obstáculos.
- Também partilho essa opinião - reforçou Wolfgang. Constance ficou mais
descansada.
Pensando bem, não era um Natal assim tão mau.
31.
Viena, 25 de Dezembro de 1781

Nos aposentos da grã-duquesa, mulher de Paulo da Rússia, Joseph Haydn58


apresentou os seus últimos quartetos de cordas. Entre os espectadores, figuravam
Thamos e
Mozart, de ar admirativo. Já próximo dos 50 anos, Haydn dominava plenamente a
sua arte.
Nessa noite, Wolfgang não ousou dirigir-se-lhe. Deixou que aquela música se
entranhasse nele, de forma a poder vir a ser incorporada nas suas próprias
criações.
O egípcio mostrou-lhe um documento muito estranho.
- Chegou a hora de te conheceres pela via de uma ciência muito antiga, a
astrologia. Eis a tua carta astral.
Em redor de uma garrafa de tokay, Thamos revelou ao músico as forças e as
fraquezas determinadas pelos deuses.
- Três pontos essenciais que importa sublinhar: o teu signo zodiacal dominante,
o teu ascendente e o mestre do teu tema.
- De onde provém o vosso saber?
- Transmitiu-mo o abade Hermes, que o adquirira dos antigos egípcios. Este saber
permite que cada ser se descubra a si próprio, não nos estreitos limites da sua
personalidade, mas em função das suas relações com as potências celestes. O
Arquitecto Supremo do Universo
58 Joseph Haydn (1732-1809) trabalhava em Esterháza, residência dos Esterházy,
rica família húngara. Ele dispunha de uma orquestra e de um teatro de 500
Página 62
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
lugares.
138
compõe-se de 12 signos zodiacais, que simbolizam a harmonia perfeita. Nós,
humanos, somos apenas uma expressão parcial dessa harmonia, mais ou menos
discordante.
- A minha própria expressão poderá então ser negativa? - inquietou-se Wolfgang.
- Os conceitos de positivo e negativo nada significam. O céu oferece-te uma
matéria cuja natureza tens de compreender para poderes usá-la da melhor maneira.
O Sol,
Mercúrio, Vénus e Saturno habitam em Aquário, ou seja, quatro planetas! Um
verdadeiro amontoado que te torna um espectacular representante deste signo.
- O que quer isso dizer? - O sentido dos ritmos, das ressonâncias e do fluido
criador escoa-se dos dois vasos do deus Hapy, génio da cheia do Nilo. Ele traz
abundância
e prosperidade. Nunca te faltará a fonte da vida, nunca carecerás de inspiração,
desde que cumpras a unidade do teu ser, sem concessões, e que permaneças na via
em redor de cujo eixo te constróis.
- A música! - exclamou Wolfgang. - Eis a minha unidade e o meu eixo.
- A tua existência organiza-se a partir da música, a multiplicidade das tuas
obras, da mais divertida até à mais profunda, manifesta-se a partir da unidade
da tua
criação. Pensas o mundo e a tua própria vida através da arquitectura da tua
música. Nela e para ela, discernes uma energia subtil que só tu podes tornar
audível.
Aí reside o teu supremo dever. Cabe-te desenvolver uma inteligência sensível
para te abrires às vibrações do universo. Este percurso levar-te-á para longe da
realidade
comum. Então, a tua obra deixará de pertencer a uma época específica. Mas serás
tu capaz de ir para além das palavras deste ideal, serás tu capaz de não
confundir
pureza com rigidez? A tua integração na sociedade actual apresenta numerosas
dificuldades, pois preferes a autenticidade à duplicidade e à mentira. No
entanto, sentes
uma necessidade visceral de outras pessoas e sonhas vir a pertencer a uma
comunidade cujos membros seriam sempre fiéis aos seus compromissos.
- A comunidade dos sacerdotes do Sol? Thamos sorriu.
- Mas precisas de ir até ao fim da tua busca e de saber adaptar-te aos
constrangimentos sem perderes a tua espontaneidade.

Carta Astral de Wolfgang Amadeus Mozart, Nascido a 27-01-1756, às 20.00 horas,


em Salzburgo.
Ascendente
Dois planetas que ainda não tinham sido descobertos: Neptuno, a 9° 39' de Leão,
e Plutão, a 17° 34' de Sagitário, em junção com a Lua.
140
- Ou seja, tenho de andar no fio da navalha!
- A insolência, a ira e as paixões condenar-te-iam ao abismo, caso a tua energia
fosse mal controlada. Mas o signo do teu ascendente, Virgem, ponto do zodíaco
que
se encontrava no zénite do horizonte na hora do teu nascimento, traz-te uma
ajuda notável, tendo embora de pagar o preço de um labor encarniçado. Não
conhecerás
um minuto de repouso até ao teu último suspiro, e não te perderás por caminhos
ínvios. A precisão e o sentido do trabalho bem feito tornam-te o oposto de um
sonhador.
Nada é desfocado, todas as partituras são cuidadosamente elaboradas, com cada
nota colocada no seu sítio certo. Nutres um tal sentimento contra a imperfeição
que
podes até vir a magoar-te a ti próprio. Cuida de não te tornares susceptível,
mesmo quando a crítica, amiúde estúpida e cega, fere a tua sensibilidade. Os
invejosos
e os estéreis não deixarão de te atacar, esquece-os e segue o teu caminho.
- Não é assim tão simples - objectou Wolfgang. - A minha carreira depende deles!
- Só em parte, pois o teu planeta dominante permitir-te-á escapar: é um planeta
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
cuja existência o astrónomo Herschel acabou de descobrir, e que baptizou de
Urano.
Certos povos da Antiguidade já tinham identificado este planeta, e o seu campo
de influência não nos é desconhecido.
- Em que é que consiste?
- Trata-se de uma energia formidável que passa por fases de extrema intensidade.
Por isso o teu destino não será nem linear nem tranquilo. Tensão, exaltação,
emoções
intensas serão o teu quinhão de cada dia. Simultaneamente vantagem e
desvantagem, a tua lucidez permitir-te-á ver o mundo e os homens tais como são
na realidade,
e por vezes isso conduzir-te-á ao desespero. Não conhecerás nem a frouxidão nem
a indiferença, mas antes um sentido do absoluto que te há-de causar muitos
dissabores,
pois não possuis nenhuma noção da diplomacia. Não imitarás ninguém, não te
assemelharás a ninguém, lutarás tenazmente para preservar a tua independência.
Ninguém
conseguirá submeter-te. E trarás à Humanidade tantas inovações que ela levará
vários séculos para assimilá-las. Entretanto, sofrerás rupturas profundas, pois
141
a potência deste planeta entra em contradição com o sentido do comedimento
imposto pelo signo Virgem.
- Mais uma vez, o fio da navalha!
- O teu quadrante lunar promete-te importantes criações cujos benéficos
resultados perdurarão muito para além da tua existência. Apesar do sucesso,
guardarás uma
verdadeira distância com relação a ti próprio e não sobreavaliarás os teus dons.
Mas não poderás atingir osféus objectivos sozinho. Ser-te-ão indispensáveis
outras
pessoas para lograres concretizar as tuas aspirações.
- Amo Constance Weber - confessou Wolfgang.
- Tendo em conta a presença de Vénus em Aquário e a sua ligação harmoniosa com
Marte, esse amor será duradouro.
- Mas não será suficiente, sinto-o. Essas outras pessoas de que falastes têm de
ser os iniciados nos mistérios!
- O mais difícil, para um uraniano, é aprender a ser paciente.

32.
Viena, 1 de Janeiro de 1782
- Tendes de vos reconciliar com a vossa mãe, minha querida - recomendou a
baronesa Waldstãtten a Constance Weber. - Uma situação deste tipo não pode
prolongar-se.
- Ela espancar-me-á!
- Se ela ousar proceder dessa maneira, comunicai-mo de imediato.
- Ela encerrar-me-á!
- Mozart irá visitar-vos com regularidade. Caso a vossa mãe não lhe permitir a
entrada, eu intervirei. Estais mais descansada?
- Um pouco...
- Ele vai levar-vos de volta a casa e deitar água na fervura. Como poderia uma
mãe não ficar contente por rever a sua filha?
- Mas eu quero casar-me!
- O vosso noivo faz questão de obter o consentimento do pai, e eu concordo com
essa atitude. Juntos, deveis construir uma existência comum, e por isso mais
vale
que as vossas respectivas famílias vos aprovem e se entendam. Aliás, um pequeno
adiamento permitir-vos-á aprofundar os vossos sentimentos.
A iniciativa de Wolfgang e de Constance foi coroada de sucesso. Apesar do seu ar
zangado e das suas falas entarameladas pelo abuso do álcool, a viúva Weber
mostrou-se
contente por acolher de volta a sua filha e consentiu em abraçá-la.
- Desejamos tornar-nos marido e mulher - declarou o músico. - Assim que o meu
pai tiver formulado o seu consentimento por escrito, trataremos de preparar a
cerimónia.
143
Página 64
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Entretanto, trabalhai e ganhai dinheiro! Não concederei a mão da minha filha a
um zé-ninguém!
- Wolfgang já goza de uma reputação honrosa - protestou Constance.
- É possível, mas isso não dá dinheiro!
- Até breve - despediu-se o jovem da sua bem-amada.
Viena, 15 de Janeiro de 1782

Apanhado pela tormenta, Wolfgang havia-se esquecido de dirigir ao seu pai os


tradicionais votos de ano novo. A sua carta de 9 de Janeiro era explícita: Sem a
minha
querida Constance, não posso ser feliz nem satisfeito. E sem a vossa própria
satisfação, só o posso ser pela metade. Cabe-vos, portanto, tornar-me plenamente
feliz.
A resposta tão esperada de Leopold foi terrível e magoou profundamente o seu
filho. A viúva Weber e o seu sinistro "homem de leis" deviam ser condenados a
varrer
as ruas com um cartaz de "sedutores de jovens" pendurado ao pescoço. Estava fora
de questão casar com uma menina Weber, arruinando a reputação dos Mozart e
arruinando
também, sem mais, o próprio Wolfgang.
Frente a uma oposição tão encarniçada e resoluta, como reagir? Wolfgang amava
Constance, Constance amava-o, e ele não renunciaria a este casamento. Mas não
queria
zangar-se com Leopold, que sempre desejara o seu bem, ainda que de forma
desastrada.
Conciliar o inconciliável... A tarefa anunciava-se árdua, tanto mais que a
conquista de Viena estava longe de ser um facto consumado! Quando lhe tinha dito
que ele
não conheceria repouso, Thamos o egípcio não se enganara.
Viena, 16 de Janeiro de 1782

O fundador59 dos Irmãos iniciados da Ásia estava orgulhoso de receber no seu


grau supremo60 dois adeptos ilustres, Fernando de Brunswick e Carlos de Hesse,
dirigentes
da Estrita Observância templária.

59 Hans Heinrich von Ecker-und-Eckoffen.


60 A Ordem incluía cinco graus: Pesquisador, Sofredor, Cavaleiro, Mestre dos
Sábios e Sacerdote Real ou Melquisedeque.
144

A Ordem acolhia os judeus que rejeitassem o formalismo do Talmude e desejassem


descobrir uma interpretação esotérica para a Bíblia graças ao estudo da Cabala.
O sucesso deste novo sistema ritual era, decerto, limitado, e o número de Irmãos
permanecia reduzido. Mas a vinda de dois grandes senhores favoreceria porventura
a expansão da Ordem.
O Grão-Mestre da Estrita Observância templária ficou estupefacto ao descobrir a
identidade do seu iniciador: Thamos o egípcio!
- Aqui estais, por fim! Porque ficastes ausente por tanto tempo?
- A minha prioridade consiste em ocupar-me do Supremo Mago.
- A nossa Ordem corre perigo. Os ataques chovem de todos os lados, e vejo-me
obrigado a recorrer a auxílios, como o dos Irmãos iniciados da Ásia.
- O capítulo de Wilhelmsbad marcará uma etapa decisiva.
O duque de Brunswick entrevia por fim uma saída, graças ao caminho traçado pelo
Superior incógnito.
O Grão-Mestre e o seu adjunto beberam o elixir da regeneração, foram
considerados dignos de receber os textos essenciais da Cabala e de trabalhar na
reconciliação
das religiões cristã e judaica.
Thamos não nutria ilusões acerca do futuro daquela Ordem insólita. Havia nela
demasiados judeus, que preferiam seguir a sua própria tradição, sem se
misturarem com
os cristãos; e a grande maioria deste últimos continuava a contemplar os judeus
Página 65
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
com desconfiança. Esta tentativa maçónica serviria pelo menos para abrir alguns
espíritos,
entre os quais os dos dois dirigentes da Estrita Observância templária. Seriam
estes capazes de puxar a Ordem templária para fora do pântano em que se atolava?
Thamos
esperava pela resposta a esta pergunta antes de tomar uma opção com relação à
orientação do Supremo Mago que, no imediato, tinha de resolver os seus problemas
sentimentais
e dar os seus primeiros passos como músico independente.

Viena, 23 de Janeiro de 1782


Por 18 ducados por mês, Wolfgang dava lições a três alunos, tarefa que ele
considerava particularmente penosa, mas que lhe dava dinheiro
145
para subsistir. Tratava-se de uma solução insatisfatória, visto que ele
detestava ensinar!
A senhora Weber não lhe fechara a porta da sua casa, ele via regularmente
Constance e podia assim verificar a solidez dos sentimentos que os uniam. Porque
se mostrava
Leopold tão intransigente? Wolf-gang não se queria casar com a família Weber,
mas sim com Constance, tão diferente da sua mãe e das suas irmãs!
Bersuadido de que acabaria por obter o consentimento do pai, Wolfgang
aproveitava entretanto para prosseguir diversas pistas que poderiam levá-lo ao
sucesso: preparar
concertos públicos, dar vazão a encomendas, tocar em salões onde o quisessem
ouvir e, sobretudo, entrar ao serviço de um patrão liberal capaz de atribuir um
lugar
conveniente aos seus músicos.
A prioridade de Wolfgang centrava na corte de José II. Mas ele considerava
também as hipóteses das cortes do príncipe de Iiechtenstein e do arquiduque
Maximiliano
Francisco, futuro príncipe-eleitor de Colónia.
Dotado de uma forte energia, Wolfgang só tinha medo de um entrave: a doença.
33.
Viena, 25 de Janeiro de 1782

Convidado por Thamos para jantar em casa do seu amigo judeu, Wolfgang sentiu
logo que aquele serão seria enriquecedor. O cabalista pousou uma vela no meio de
uma
mesa baixa e interrogou o músico num tom de voz tranquilo.
- Foste aliado ou inimigo do dia que acabaste de passar?
- Eu... tentei vivê-lo da melhor forma possível, sem desperdiçar o meu tempo!
- Quando um homem age rectamente, o dia toma o seu devido lugar. Caso não aja
rectamente, o dia junta-se à dispersão que vem de fora e torna-se um fardo.
Quando
o homem se revela justo, o dia é um bom companheiro. Caso contrário, o dia
torna-se seu adversário e ficará em falta na contagem final dos dias que o homem
tem de
apresentar quando comparecer diante do Todo-Poderoso. Infeliz do homem que não
conservou os dias necessários para ser coroado no Além61!
Impressionado, Wolfgang fixava a estranha chama que bruxuleava, mudando
continuamente de cor e tomando formas de uma beleza fascinante.
- Ao contemplar o aspecto deste fogo sagrado - indicou o cabalista - sentes o
momento inefável em que a Causa das causas engendra a vida. A sua fonte, a
Coroa, é
uma fonte de luz que nunca se esgota. Não teremos nós sido criados para a
servir?
61 Textos do Zohar, na versão de G. Scholem.
147
Nessa noite, Wolfgang recebeu a melhor parte dos ensinamentos dos Irmãos
iniciados da Ásia, sem suspeitar que tinha ficado a perceber muito mais do
Página 66
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
assunto do que
a maior parte dos seus adeptos.
- No dia do teu aniversário - disse Thamos - encontrar-nos-emos em casa de Van
Swieten. Ele reserva-te uma prenda excepcional.
Viena, 27 de Janeiro de 1782
O barão Gottfried van Swieten entretinha-se em voz baixa com o seu Irmão Thamos.
- O imperador concede-me toda a sua confiança e não parece decidido a tomar
medidas radicais contra a Maçonaria, desde que ela aprove as suas reformas e não
perturbe
de modo algum a ordem pública. No entanto, ele desconfia de algumas correntes,
como os Iluminados da Baviera ou a Estrita Observância templária.
- Ele confirmou a existência de um serviço secreto encarregado de vigiar os
pedreiros-livres?
- Não, mas por muito liberal e reformador que seja, o imperador é um verdadeiro
chefe de Estado, e nada escapa ao seu controlo. Ele não toleraria o
desenvolvimento
de uma Maçonaria cujos objectivos ignorasse.
- Não há nenhuma pista acerca do homem colocado à cabeça desse exército oculto?
- Nenhuma. Não se verificou a menor indiscrição, o menor rumor.
- Surpreendente e inquietante - considerou o egípcio.
- Vou continuar a procurar - assegurou Van Swieten, a quem o seu mordomo veio
anunciar a chegada de Mozart.
O músico descobriu o apartamento de função do barão, situado no coração da
Biblioteca Imperial e Real. Uma divisão inteira estava reservada aos
instrumentos musicais
e às partituras.
- Este sítio fica aberto aos meus amigos músicos todas as tardes de domingo -
indicou Gottfried van Swieten - e vós sois aqui bem-vindo, meu caro Mozart.
Poderemos
ouvir as vossas novas obras, e tocaremos as dos grandes génios que eu venero:
Haendel e Bach.
- Johann-Christian Bach, o meu protector londrino?

148
- Não, o pai dele, Johann-Sebastian.
- Nunca ouvi nenhuma nota desse Bach!
- Há mais de trinta anos que caiu num esquecimento total. Tive a sorte de
encontrar um certo número das suas obras, entre as quais O Cravo bem temperado,
A. Arte
da fuga, algumas sonatas para trios e várias outras maravilhas. Gostaríeis de
decifrar uma das suas partituras?
- Com alegria!
Intrigado, Wolfgang tocou um dos prelúdios e fugas do Cravo bem temperado.
Desde os primeiros compassos, sentiu abrir-se um novo universo. Foi como um
renascimento, uma transfusão de sangue62, uma passagem para uma outra dimensão
com cuja
existência o jovem compositor nem sequer sonhava.
Não se tratava apenas do encontro com uma arte de um rigor inédito, da qual
emanava uma sensibilidade que tocava o mais fundo da alma, mas sobretudo da
comunhão
com um génio que havia atingido a própria essência da música.
Transtornado, à beira das lágrimas, Wolfgang perguntou a si próprio se ainda era
possível compor. Não, não podia reagir desse modo! Pelo contrário, tinha de
assimilar
estas fantásticas riquezas, partilhar o ser de Johann-Sebastian Bach e
prolongá-lo sem o imitar.
- O meu mais belo dia de anos - murmurou Wolfgang.
Lyon, 31 de Janeiro de 1782
Jean-Baptiste Willermoz rejubilava. Segundo as últimas missivas de Fernando de
Brunswick e de Carlos de Hesse, os dois chefes de fila da Estrita Observância
templária
encontravam-se desamparados. Particularmente lisonjeado por receber as
confidências de tão grandes senhores, cujos títulos e reputação o
Página 67
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
impressionavam, o rico mercador
orgulhava-se todavia de os ter à sua mercê. Cabia-lhe a ele, plebeu lionês,
decidir o destino daqueles dois príncipes alemães!
A estratégia do Grão-Mestre e do seu adjunto parecia-lhe caótica. Embora
tivessem todos os trunfos na mão, eles insistiam em jogar as

62 A expressão é de Georges de Saint-Foix.


149

cartas perdedoras. Para quê desestabilizar os Irmãos Cavaleiros, negando


qualquer filiação com a Ordem do Templo, base original da sua confraria, e
mandar-lhes um
questionário que provava que o próprio Grão-Mestre se encontrava em pleno
desalento?
Única solução: impor um novo sistema maçónico capaz de motivar a adesão do maior
número de Irmãos. E a chave do sucesso, era Jean-baptiste Willermoz quem a
detinha.
Se Fernando de Brunswick e Carlos de Hesse queriam manter-se à cabeça de uma
Ordem maçónica poderosa e respeitada, tinham de se juntar às teses da escola
mística
de Lyon e reconhecer os Cavaleiros beneficentes da Cidade Santa e os Professos
como únicos detentores dos altos graus.
Assim, Willermoz enviou aos dirigentes da Estrita Observância um relatório que
indicava claramente qual o caminho a seguir: o regresso ao cristianismo
esotérico
do qual os templários haviam cometido o erro de se afastar.
A sua conclusão resumia longos anos de pesquisa: "O único homem que conheceu e
praticou a verdadeira ciência maçónica foi Jesus Cristo."

34.
Viena, 8 de Fevereiro de 1782

- Olha para este documento - disse Anton Stadler a Mozart -, olha bem para ele!
- Trata-se de um alvará do imperador José II...
- Exactamente! E a quem diz respeito?
- A ti e ao teu irmão, contratados como clarinetistas da orquestra da corte.
- Fabuloso, não é? Feliz no amor e, agora, músico profissional ao serviço de Sua
Majestade! O que mais podia eu querer?
- Torna-te o melhor especialista nesse instrumento maravilhoso e pouco
conhecido.
- Então, escreverás para mim?
- Porque não?
- Como poderias resistir ao encanto do clarinete? Não existe sonoridade mais
quente e mais mágica, Entretanto, vamos festejar e beber à tripa-forra! Depois,
vou
vencer-te numa partida de chinquilho, já que hoje é o meu dia de sorte.
Viena, 13 de Fevereiro de 1782

Wolfgang comunicou à sua irmã Nannerl o seu horário quotidiano. Assim, ela
poderia intervir junto do pai deles e explicar-lhe que o seu filho trabalhava
como um
mouro em Viena, com o fito de aí triunfar.
151
Levantar às seis horas. Às sete, já todo vestido, Wolfgang escrevia até às nove,
e ensinava até às treze. Ou almoçava em casa, ou honrava algum dos numerosos
convites
que recebia. Dependendo das circunstâncias, retomava o seu trabalho entre as
14.00 e as 15.00 horas. Se não tivesse de tocar em nenhum concerto, compunha das
17.00
até às 21.00 horas, depois ia a casa dos Weber, onde se entretinha com
Constance,, voltando finalmente para casa, onde trabalhava ainda das 23.00 até à
uma.
Este ritmo infernal conferia-lhe um equilíbrio perfeito. Sentindo que agia
rectamente, esperava que estes dias lhe fossem contabilizados como convenientes
Página 68
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
pelo Altíssimo.
Nessa noite, a senhora Weber demorou a abrir a porta. Ele teve de bater com toda
a força até que por fim lá apareceu um rosto congestionado, claramente
embriagado.
- O que queres?
- Ver Constance.
- Constance, sempre Constance!
- Ela é minha noiva, senhora Weber.
- Com que então, noiva! Quanto é que ganhaste, este mês?
- O bastante.
- Com todas as despesas que temos, nunca ganhamos o bastante. Eu tenho três
filhas para criar!
- Posso ver Constance?
- Ela está doente.
- De que mal padece?
- De uma doença.
- Quem está a tratar dela?
- Cá nos arranjamos.
- Gostaria de vê-la, senhora Weber.
- Queres ficar doente, tu também?
- Estais a negar-me entrada em vossa casa? A bêbeda hesitou.
- Entra, mas não fiques cá muito tempo. Ela poderia ficar cansada. Constance
estava em lágrimas, mas Wolfgang logrou consolá-la.
- A minha existência torna-se impossível - confessou ela. - A minha mãe farta-se
de beber. Quando está ébria, apanha fúrias terrí-

152

veis e diz disparates. Quando regressa ao estado sóbrio, torna-se novamente


gentil, quase doce. Amo-a e detesto-a ao mesmo tempo. O estado dela não pára de
piorar
desde a morte do meu pai.
- Sê corajosa, meu amor. Tirar-te-ei daqui.
- Obtiveste o consentimento do teu pai?
- Ainda não, infelizmente!
- A minha mãe não gosta nada de ti, Wolfgang. Ela quer que eu case com outro.
- Os seus projectos não irão para a frente, juro-te!
- Quanto tempo ainda terei de aturá-la?
- Sê paciente, suplico-te. Hei-de conseguir convencer o meu pai. Caso a situação
se complique, poderás sempre refugiar-te em casa da baronesa Waldstàtten.

Viena, 3 de Março de 1782


Após ter composto uma ária para soprano, O Celeste Sentimento de Amor63,
Wolfgang passou por casa da baronesa Waldstàtten que, fiel à sua reputação de
boa alma,
havia recolhido a jovem Auernhammer, cujo pai acabara de falecer. Desamparada, a
aluna de Mozart, sempre tão apaixonada pelo seu professor, estava carente de
afecto.
- Como é que ela está? - inquietou-se Wolfgang.
- Dei-lhe um bom soporífero, está a dormir. A pobre pequena não recuperará tão
depressa. E a vossa Constance?
- Ela aguenta firme, mas o clima na casa dos Weber deteriora-se a olhos vistos.
- Em caso de necessidade, a minha porta está aberta.
- Não sei como vos agradecer, baronesa.
- Tendo sucesso no concerto desta noite e seduzindo Viena inteira! O que
tocareis?
- Um concerto para piano em ré maior escrito em 1773 64 e do qual conservei os
dois primeiros andamentos. O terceiro pareceu-me demasiado complexo e
substituí-o
por um rondó65 muito vivo no qual procurei aliar humor e virtuosismo.
63 K. 119.
64 K. 175.
65 K. 382.
153

Página 69
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Wolfgang não estava enganado.
O público do Burgtheater aplaudiu calorosamente o programa, composto de
extractos de Idomeneu, Rei de Creta, de um improviso e do dito concerto, cujo
rondó final
encantou os mais exigentes. Os vienenses descobriram um pianista surpreendente,
de uma simplicidade desarmante. Não pretendendo nenhum efeito, ele movia-se
pouco,
e não se entregava nem aos movimentos extravagantes nem às contorções usuais nos
seus colegas. O intérprete não exteriorizava os seus sentimentos, e deixava
falar
a música.
Viena, 10 de Março de 1782
- As coisas estão a mexer - anunciou Geytrand a Joseph Anton. - Em Weimar,
Goethe alcançou novo grau e figura entre os dirigentes da Loja Amália, onde
acabou de
ser iniciado o duque Carlos Augusto.
- Mais um dignitário de primeira plana! - lamuriou-se Anton. - A Maçonaria está
a ganhar terreno a cada dia que passa.
- Sim e não - tranquilizou-o Geytrand -, pois esta Loja padece de sobressaltos
que poderiam levar a uma espécie de explosão. A violência de Bode fere muitos
Irmãos,
fartos da sua grosseria e dos seus incessantes ataques contra os jesuítas. Mesmo
que esteja fadado para dirigir a mais antiga Loja66 da Alemanha, este Bode
parece
feito para semear a discórdia.
- Desejemos-lhe então boa sorte! O que mais há?
- Segundo o Irmão Angelo Solimão, sempre tão venal, o mineralogista Ignaz von
Born será Venerável da Loja Para a Verdadeira União. Como previsto, a sua
ascensão
foi muito rápida, e ele realizará o seu programa: pôr os Irmãos a trabalhar,
levá-los a redescobrir o sentido da simbólica e erguer uma iniciação autêntica.
- Infelizmente, Ignaz von Born goza de excelente reputação, e é apreciado pelo
imperador. Este mineralogista dará uma boa imagem da Maçonaria vienense e
favorecerá
a sua expansão. Que defeito lhe poderíamos apontar?

66 A Loja Absalom.

154
- Não circula nenhum rumor a seu respeito - deplorou Geytrand. - Moral
impecável, trabalhador infatigável, cientista estimado pelos seus pares... É
respeitado, admirado
e temido.
- Von Born não se contentará em dirigir uma Loja vienense - vaticinou Joseph
Anton. - Talvez se venha a tornar o nosso principal inimigo.
35.
Viena, 10 de Março de 1782
O imperador José II acabara de promulgar um decreto sobre a liberdade de
trabalho mas, como a sua vontade reformadora parecia não se esgotar, lançara-se
logo de
seguida no estudo de um assunto escaldante, que dizia respeito aos problemas dos
camponeses, enquanto se dirigia para os campos dos arredores de Viena. Todos os
vienenses conheciam a sua carruagem laçada de verde, puxada por duas parelhas.
Vestido com simplicidade, o imperador gostava de passear, de se encontrar com os
seus súbditos e de os ouvir. Já que alguns boatos anunciavam más colheitas e um
aumento dos impostos, José II sentia-se na obrigação de dissipar os temores.
Por isso a sua carruagem parou no meio de um campo, atraindo a curiosidade de
muitos.
José II desceu lestamente e avançou até um arado abandonado no meio do terreno.
Quando o imperador levantou o arado, o público aplaudiu.
E a frase singela correu de boca em boca: "O imperador é o deus dos camponeses!"
Berlim, 11 de Março de 1782
Página 70
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
A Ordem templária atravessava um inquietante período de turbulências. "Nenhuma
mão segura as rédeas", queixavam-se muitos Cava-
156

leiros. A cada mês que passava, verificavam-se novas sedições, e o Sereníssimo


Irmão Fernando de Brunswick em pessoa era alvo de críticas!
Antes de responder a Jean-Baptiste Willermoz, cujas exigências não paravam de
crescer, Carlos de Hesse queria consultar Dom Per-nety, antigo esmoler de
Bougainville,
autor das Fábulas egípcias desveladas e do Dicionário mito-hermético.
Conservador da Biblioteca de Berlim, Dom Pernety dirigia o seu Rito hermético67
e professava
um ensinamento baseado nas revelações do místico sueco Swedenborg, que o
príncipe alemão venerava.
Numerosas malas juncavam o limiar da residência de Dom Pernety. Contando com 60
anos e feições endurecidas, o mago empilhava livros arrumados em sacos de couro.
- Perdoai se vos incomodo, Irmão. Chamo-me Carlos de Hesse e gostaria de falar
convosco de assuntos da maior gravidade.
- Estou de partida, deixo definitivamente Berlim, de regresso a Avinhão com os
meus fiéis Iluminados - revelou Dom Pernety. - A Sagrada Palavra ordena-me que
aja
deste modo, e eu sempre Lhe obedeci.
- Seja louvada - aprovou Carlos de Hesse.
- Prepara-se uma terrível revolução - predisse o mago - causada pelas baixezas
das Igrejas, culpadas de terem deturpado a mensagem de Cristo. O terror e a
desolação
abater-se-ão sobre o nosso mundo corrompido.
- A Nova Jerusalém sucederá ao Juízo Final?
- Aqueles que acreditam na imortalidade das suas almas, que prestam culto à
Virgem e que obedecem à Sagrada Palavra não têm nada a temer.
- Poderemos nós confiar em Jean-Baptiste Willermoz e, dessa forma, salvar a
Estrita Observância templária?
Dom Pernety hesitou.
- Ele tem-se mostrado muito activo e não há dúvida de que esconde uma ambição
desmedida.
- Não teremos nós de regressar ao caminho de Cristo e fundar uma nova Igreja que
respeitará por fim o seu ensinamento?

67 O qual compreendia dois altos graus: os de Noviço e de Iluminado.


157

- Decerto, desde que não esqueçais a alquimia. Como poderemos transformar os


indivíduos mortais em seres celestes, se não detivermos o ouro filosofal? O
grande Swedenborg
insistiu muito neste ponto. Organizai o capítulo, agarrai-vos ao essencial, e
tereis sucesso. Apressai-vos, pois a revolução está em gestação.

Brunswick, 13 de Março de 1782


Ao sair da cama de uma beldade, Von Haugwitz passara por um confessionário para
honrar a convocação dos dois dirigentes da Estrita Observância. Depois de ter
obtido
a absolvição, ele poderia voltar a entregar-se aos prazeres da carne, ao mesmo
tempo que louvava o Senhor.
- Acabámos de responder a Willermoz - declarou Carlos de Hesse - clarificando a
nossa linha de acção: conduzir definitivamente a Ordem templária no caminho do
cristianismo.
- Perfeito - aprovou Von Haugwitz.
- No entanto, não desejamos renunciar às experiências alquímicas, pois Cristo
simboliza ele próprio o outro supremo.
- Os meus discípulos68 são hostis a essas práticas ocultas - indignou-se Von
Haugwitz. - Somente a devoção permite aceder às benesses do Todo-Poderoso.
- Para estarmos reunidos no seio de uma mesma Ordem - prosseguiu Carlos de Hesse
-, propus a Willermoz um acordo secreto entre ele e nós os três, aqui presentes.

Página 71
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Deste modo, orientaremos o próximo capítulo maçónico no sentido do bom senso.
O rosto do barão Von Haugwitz tingiu-se de púrpura.
- Como ousastes? Não me submeterei a ninguém, ouvis, a ninguém! Cristo é o meu
único Senhor, só d'Ele recebo ordens. A partir deste instante, abandono a
Maçonaria
subversiva e perigosa. Doravante, combatê-la-ei sem descanso.
Von Haugwitz bateu com a porta do salão.
- Esta defecção não põe em causa a nossa estratégia - considerou Fernando de
Brunswick. - Uma aliança secreta com Willermoz é um único meio de salvar a
Estrita Observância.
68 Os Irmãos da Cruz.

158
Viena, 20 de Março de 1782
- Grandes novidades, senhor conde! - gritou Geytrand. - O capítulo maçónico
organizado pela Estrita Observância começará em meados de Julho. Todos os
dignitários
deram o seu acordo ao Grão-Mestre e anunciaram a sua vinda. Os debates durarão
vários dias, porventura semanas.
- A que é que levarão, essa é que é a questão.
- Dadas as querelas entre correntes maçónicas, podemos esperar por um belo caos.
- Fernando de Brunswick e Carlos de Hesse não são tolos. Para guardar o poder,
devem estar a preparar um golpe oculto.
- Acabou de ser impressa em Berlim uma brochura intitulada Os Rosa-Cruzes
desnudados. Nela se acusam os Rosa-Cruzes e os templários de não passarem de
títeres manipulados
pelos jesuítas.
- Se Bode não é o seu autor, deve estar a lê-la com deleite.
- O denominado Cagliostro conta fundar em Paris uma Loja-Mãe conforme à alta
Maçonaria egípcia - acrescentou Geytrand.
- Coisa séria?
- Simples adaptação dos ritos já conhecidos, com alguns acrescentos de mágica. O
cardeal de Ruão e algumas personalidades da corte estariam interessados. À força
de brincar com o fogo, este Cagliostro pode vir a queimar-se.
- Tanto melhor! Reúne a maior quantidade de elementos acerca dos participantes
no capítulo de Wilhelmsbad e aumenta as recompensas dos nossos informadores.
Quero
conhecer na íntegra as palavras trocadas e as decisões adoptadas.
36.
Viena, 22 de Março de 1782
A capital da Casa de Habsburgo estava emocionada. Durante um mês, o papa Pio VI
residiria dentro dos seus muros e enfrentaria o imperador José II.
Aos 65 anos, de fala bastante lerda, o chefe da Igreja católica julgara tal
viagem indispensável para defender pessoalmente o seu ponto de vista frente ao
senhor
do império austríaco. Ao colocar o peso da sua autoridade na balança, o papa
esperava triunfar.
Logo na primeira entrevista em privado, o papa expôs os seus temores.
- Majestade, haveis iniciado um número considerável de reformas, e gabo a vossa
coragem. No entanto, permito-me perguntar: não tereis ido longe de mais e
depressa
de mais?
- Eu procuro a paz, a justiça e a coesão social. Sem estas reformas
indispensáveis, estaremos sujeitos a graves convulsões.
- Será necessário atacar a Igreja?
- Falei em justiça, Santíssimo Padre, e ninguém foge à sua alçada, nem a Igreja,
nem o Estado.
- Mesmo assim, mandar encerrar mosteiros e colocar o clero sob a alçada do poder
temporal!
- Quaisquer que sejam as instituições religiosas, cabe-lhes cumprir uma função
social e não se sobreporem ao Governo de um país. Por isso tomei uma série de
medidas
Página 72
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
que agradaram muito à população.
160
- A população... O seu juízo não pode ser lúcido!
- O bem-estar dos meus súbditos é a primeira das minhas preocupações.
- A imperatriz Maria Teresa venerava a Igreja e...
- Paz à sua alma, Santíssimo Padre. E se fôssemos almoçar?
O papa Pio VI não esperara defrontar-se com um adversário tão temível. A
negociação começava mal.
Viena, 23 de Março de 1782

Como retomar o diálogo com o seu pai e a sua irmã? Wolfgang não se arrependia de
ter conquistado a sua independência com tamanho custo, mas deplorava a
hostilidade
manifestada pela sua família e insistia em obter o consentimento do seu pai para
casar com Constance.
- Ofereçamos-lhes prendas - sugeriu a noiva. - De que é que o teu pai gosta?
- Enviemos-lhe uma caixa de tabaco e um par de correias para relógio.
- E quanto à tua irmã?
- Nannerl apreciará de certeza dois gorros da moda vienense.
- Cosê-los-ei eu própria. Acrescentemos ainda uma pequena cruz, testemunho de
que nos casaremos na fé do Senhor, e um coraçãozinho atravessado por uma seta,
que
evocará o nosso amor.
Wolfgang abraçou a sua noiva.
- A tua alma é boa e generosa, minha querida! Graças a ti, a nossa felicidade
será também a das nossas duas famílias.
Constance acrescentou algumas palavras, humilíssimas, à carta de Wolfgang.
Tal iniciativa foi coroada de sucesso, pois a rígida Nannerl, tornada confidente
e conselheira de Leopold, dignou-se por fim responder, pondo por escrito algumas

banalidades.
Não era ainda a aprovação, mas o diálogo estava restabelecido.
Viena, 10 de Abril de 1782

Wolfgang respondeu a uma nova carta do seu pai, em que este lhe recomendava que
obtivesse a qualquer custo uma colocação na corte de

161
Viena: José II tem de me pagar, pois só a alegria de estar ao serviço não é
suficiente para mim. Se o imperador me conceder mil florins e um conde me pagar
dois
mil, saúdo o soberano e entro ao serviço do conde, com as minhas seguranças, bem
entendido. O imperador tinha mais consideração por Gluck e por Salieri do que
pelo
jovem Mozart, pianista notável e compositor agradável, mas desprovido de
notoriedade.
Tocaram à porta.
- Aloysia!
- Parto para uma longa digressão ao estrangeiro. Aceitas oferecer-me uma ária
brilhante, capaz de valorizar a minha voz?
- Claro que sim!
Aceitai os meus agradecimentos, amáveis benfeitores69 agradou sobremaneira à
cantora. Ela beijou Wolfgang nas faces e fugiu com a partitura.
Veio de seguida o carteiro, portador de más notícias.
No dia 1º de Janeiro, morrera em Londres Johann-Christian Bach. "Uma
infelicidade para todo o mundo musical", murmurou Wolfgang. Nunca esqueceria a
amizade e as
palavras de encorajamento do filho de Johann-Sebastian, cujo génio iluminava
agora os seus trabalhos.
Viena, 20 de Abril de 1782
Wolfgang já não se contentava em tocar Bach durante os seus concertos de domingo
Página 73
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
em casa de Van Swieten. Enveredara agora por uma experiência particularmente
difícil:
assimilar a ciência e o estilo de Bach e incorporá-los dentro da sua própria
linguagem.
As obras que elaborou destarte, uma adaptação de cinco fugas para quartetos de
cordas70 e quatro prelúdios para trio de cordas71, não se destinavam ao público.
Com
humildade e paciência, sabendo que precisaria de um longo período de maturação,
Mozart pôs-se ao serviço de Bach, rogando que este o formasse. Começos de fugas
inacabadas,
esquissos de temas sucederam-se como se fossem experiências de laboratório.
Do ponto de vista exterior, acumulavam-se reveses e contratempos; mas do ponto
de vista de Wolfgang, realizava-se uma aprendiza-
69 K. 383.
70 K. 405.
71 K. 404a, para acompanhar fugas de Johann-Sebastian e do seu filho mais
talentoso, Wil-lhelm-Friedman.
162
gem rigorosa que, um dia, haveria de dar os seus frutos. Graças ao seu
extraordinário sentido da polifonia e à sua exigência perpétua, Bach decapava-o,
purificava-o,
eliminava nele todo o rasto de vã sedução. Obrigava-o a ir buscar a sua vontade
criadora no mais fundo dele próprio, longe das modas e do tempo.
Ao mesmo tempo que anotava uma fuga em dó maior, Wolfgang compôs o prelúdio
complementar72, como se o seu espírito funcionasse independentemente da sua mão.
Por insistência da sua noiva, Wolfgang aceitou oferecer a partitura à sua irmã
Nannerl: Quando Constance ouviu as fugas, declarou-lhe, ficou fascinada por
elas.
Ela agora só quer ouvir as obras de Haendel e de Bach. Como ela me perguntou se
eu ainda não escrevera nada do género, e eu respondi-lhe que não, ela
admoestou-me
por não ter querido escrever o que há de mais artístico e mais belo no domínio
da música; ela não me deu tréguas enquanto não lhe compus uma fuga, e é esta que
te
envio.

Viena, 22 de Abril de 1782

Ao deixar Viena, o papa Pio VI remoía o seu fracasso total. Apesar de várias
entrevistas e de múltiplas prevenções, o imperador José II não cedera uma
polegada de
terreno. E chegou mesmo aos ouvidos de Sua Santidade que, contrariamente à
saudosa imperatriz Maria Teresa, o novo senhor do império austríaco deixava
prosperar
as Lojas maçónicas, nas quais se emitiam críticas veladas contra Roma e contra o
sucessor de Pedro. Não invocavam certos Irmãos a necessidade de restaurar a
Igreja
segundo os princípios de São João, discípulo fiel do ensinamento iniciático de
Cristo, bem afastado da doutrina oficial católica?
José II não tardaria a deparar-se, pela certa, com dificuldades que o tornariam
menos liberal e que o convenceriam a arrepiar caminho.
Entretanto, Pio VI estava de muito mau humor, e a forte homenagem prestada pelo
príncipe-arcebispo Colloredo, com quem se cruzou na Baviera no dia 25 de Abril,
não
foi de molde a aliviá-lo. Adepto de Rousseau e de Voltaire, partidário das
reformas de José II, este prelado convencido do seu próprio valor jogava em
todas as equipas.
72 Prelúdio e fuga K. 394.
37.
Viena, 29 de Abril de 1782
O drama rebentou, tão imprevisível quanto chocante.
Estavam Constance e Wolfgang a participar num baile, esquecendo as suas
Página 74
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
apoquentações, quando a rapariga, que se afastara do seu noivo, deixou que um
desconhecido
lhe enrolasse uma fita à volta do tornozelo!
O escândalo desencadeou a ira de Wolfgang. Se aquele malcriado tivesse
insistido, Wolfgang interviria.
Constance, a sua doce Constance... Como ousava ela comportar-se daquela maneira?
- Minha querida, a tua conduta parece-me inconveniente.
- Inconveniente... O que estás tu a imaginar?
- Não imagino nada, eu vi tudo!
- Mas não havia nada para ver.
- Não ajas mais dessa forma, rogo-te.
- Os teus reparos magoam-me muito, Mozart. Não te falarei mais! Constance fugiu.
Siderado, Wolfgang não se mexeu.
Que horrorosa asneira acabara de cometer! Por causa de uma estúpida suspeita,
teria ele deitado a perder a sua futura esposa?
Desamparado, ele escreveu-lhe de imediato: Vê por aqui o quanto eu te amo! Não
me arrelio logo, como tu fazes, mas penso, medito e ouço os sentimentos. Quero
poder
dizer de ti: eis a bem-amada virtuosa, briosa da sua honra, razoável e fiel, do
honesto e bondoso Mozart.
Inquieto, ele deambulou diante do Olho de Deus, casa dos Weber.
164
A porta abriu-se por duas vezes. Saíram locatários, que o cumprimentaram.
A terceira, foi Constance quem saiu.
- Perdoas-me? Ela sorriu.
- Consinto em perdoar-te, mas não podes voltar a ser tão possessivo e deves
confiar em mim.
Wolfgang apertou-a ternamente nos braços. De regresso à sua casa, compôs uma
fantasia para piano em ré menor73, trágica ao princípio, alegre no final.
Viena, 7 de Maio de 1782

Após ter trabalhado intensamente o libreto, com a ajuda de Thamos, Wolfgang


tocou o segundo acto do Rapto do Serralho em casa da condessa Thun, que o
escutou com
atenção.
Blonde, a criada inglesa de Constance, heroína prisioneira no serralho do paxá
Selim, repelia os avanços do odiento Osmim, guardião do harém. Temerária, ela
recordava-lhe
que não se deviam seduzir as mulheres pela força. E Wolfgang punha nos lábios
desta bela inglesa a sua regra de vida: Um coração nascido para a liberdade
nunca se
deixa tratar como escravo e, mesmo que tenha perdido a sua liberdade, conserva
ainda o orgulho dela e ri-se do universo.
Não contente em se revoltar assim contra a infelicidade e a servidão, Blonde
ria-se na cara de Osmim e prometia até intervir para que o paxá o castigasse. E
se fosse
necessário, ela cegaria o algoz!
Impressionada, a condessa Thun partilhou a angústia de Constance, cujo devir se
afigurava bem sombrio. Bem me podem suplicar quanto quiserem, afirmava a
heroína,
eu rio-me das torturas e dos sofrimentos, nada me pode demover. Só a morte, por
fim, me libertará.
Ópera alemã meio cantada, meio falada, este Singspiel tomava uma feição
peculiar! Felizmente, o paxá apreciava a firmeza de carácter de Constance e
ignorava ao projecto
de evasão de Belmonte, decidido a salvar a sua amada, a criada Blonde e o criado
Pedrillo, o qual conse-
73 K. 397.
165
guia, certa noite, embebedar Osmim. O muçulmano descobria o gosto maravilhoso do
vinho, sem se aperceber que se tratava de um narcótico.
Os dois casais juntavam-se por fim! Mas Belmonte e Pedrillo ficavam tomados de
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
angústia: teriam Constance e Blonde sucumbido aos avanços dos seus carcereiros?
As duas mulheres exprimiam a sua indignação: É insuportável que os homens
alimentem dúvidas a respeito da nossa honra e olhem para nós com suspeição!
Envergonhados,
os dois suspirantes demonstravam o seu arrependimento e pediam às suas amadas um
perdão que estas logo outorgavam.
- Muito comovente, Mozart - considerou a condessa Thun. - Parece uma situação
realmente vivida!
Wolfgang absteve-se de comentar.
- Os vossos heróis conseguirão escapar?
- Sabereis quando eu representar o terceiro acto, condessa.
Viena, 25 de Maio de 1782
Já que o tempo assim o permitia, Wolfgang e os demais convidados almoçaram no
jardim da condessa Thun. À noite, teve lugar o ensaio para o grande concerto do
dia
seguinte que, graças à intervenção de Thamos e do pedreiro-livre Adamberger,
futuro intérprete de Belmonte, seria organizado por Martin, um bom profissional.
Colocado sob a égide do Concerto dos Diletantes, associação de músicos em que
predominavam os pedreiros-livres, esta academia ao ar livre permitiria a
Wolfgang ser
ouvido por um vasto público, simultaneamente culto e popular.
- Os espíritos são-vos deveras favoráveis - revelou o conde Francisco José. -
Estará bom tempo, o público será numeroso e vós estareis em excelente forma.
- Há várias semanas que me estou a preparar! Um fracasso seria para mim uma
condenação.
- Acreditai nos espíritos, Mozart. A mim, eles nunca desiludiram. Vereis que
tudo correrá pelo melhor.
- Está tudo a postos - confirmou Adamberger. - Os músicos têm qualidade, os
instrumentos foram verificados.
166

Wolfgang pensou nos momentos felizes vividos em Mannheim, na companhia dos


membros de uma orquestra excepcional. Em Viena, o nível era também notável; só
que desta
vez, enormes responsabilidades pesavam sobre os ombros do compositor.
- Será um passo decisivo - considerou Adamberger. - Em seguida, pensaremos na
estreia do Rapto do Serralho.
- Será que tal estreia se vai mesmo verificar? - questionou Wolfgang- Sem
dúvida, pois o imperador continua a querê-lo. Não deixai de trabalhar nessa
ópera!
Mozart já ouvira esse conselho repetidas vezes.
Viena, 26 de Maio de 1782
Na porta de acesso ao parque de Augarten, aberto ao público desde 1775, José II
mandara gravar uma epígrafe: "A todos os homens, pelos seus protectores." No
parque,
havia um coreto no qual se davam concertos.
- Até que enfim - confidenciou Wolfgang a Thamos - consigo sair dos salões e ir
ao encontro do povo!
No programa figuravam uma sinfonia do barão Van Swieten, a elegante e fácil
Sinfonia parisiense 74, e um concerto para dois pianos75, alegre e brilhante,
que Wolfgang
tocaria acompanhado por Josepha Auernhammer, aluna apaixonada por ele.
A presença de Constance dissipava as esperanças da infeliz, que respeitou
escrupulosamente as indicações do seu professor.
Organização perfeita, músicos excelentes, público maravilhado: esta academia ao
ar livre foi um nítido sucesso, e o nome de Mozart começou a circular de boca em
boca.
74 K. 297.
75 K. 365.
38.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Viena, 30 de Maio de 1782
- Por fim, o terceiro acto do Rapto do Serralho! - exclamou a condessa Thun,
encantada por acolher Wolfgang e Constance, sempre tão apaixonados. - Estou
ansiosa
por saber como é que a história acaba. Conseguirão os dois casais, Constance e
Belmonte, Blonde e Pedrillo, escapar à morte?
- Eles quase conseguem fugir, mas Osmim, o guardião do serralho, acaba por
apanhá-los e trazê-los de volta ao paxá Selim.
- Que castigo os espera?
- O enforcamento. É então que Pedrillo revela que o seu pai, um grande de
Espanha chamado Lostados, pagará um vultuoso resgate para libertá-los.
- O paxá aceita o negócio?
- Infelizmente, esse Lostados é o pior inimigo de Selim. Lostados perseguiu-o
com um ódio injusto, raptou-lhe a mulher e obrigou-o a tornar-se um fugitivo e
um renegado.
- Que magnífica ocasião para Selim se vingar, matando o filho de Lostados e a
sua amada! - comentou a condessa.
- Constance não tem medo da morte - declarou Wolfgang -, pois Belmonte está ao
seu lado. O que é a morte? - pergunta ela. - É o caminho do repouso. Ao teu
lado,
meu bem-amado, ela não passa de um ante-gosto da felicidade.
- A vossa Constance é uma mulher maravilhosa, Mozart. Ela enternecerá muitos
corações. Rogo-vos que a salveis!

168

- Ela ficará a dever a sua salvação ao amor que o paxá nutre por ela, amor ao
qual ele renuncia quando admite que Constance e Belmonte estão unidos para
sempre.
Por isso afirma: É um prazer muito maior responder com uma benfeitoria a uma
injustiça que se sofreu, em vez de pagar o vício com outro vício. E os quatro
agraciados
concluem: Nada é mais vil do que a vingança. Em contrapartida, ser humano e
bondoso, perdoar deforma desinteressada, sem rancores, eis o que caracteriza as
grandes
almas! Aquele que não concordar com tal só merece desprego.
- Bate em vós um coração puro, Mozart - sentenciou a condessa Thun. - Possa o
destino preservá-lo de ferimentos demasiado graves.
- O Rapto do Serralho está acabado - indicou Constance - e eu conheço de cor as
suas árias principais! Quando veremos por fim esta ópera em cena?
- Correm nos bastidores os piores rumores acerca do vosso noivo - revelou a
condessa. - Mas o imperador está tão satisfeito de ter por fim uma peça tanto
falada
como cantada em alemão, que os ensaios começarão em breve. Posso até
adiantar-vos uma data precisa: dia 3 de Junho, no Burgtheater.
Weimar, 21 de Junho de 1782
Elevado à dignidade de Mestre Pedreiro-livre desde o dia 2 de Março, Goethe
assistia a uma inacreditável reunião. Ele, que havia aderido a esta Ordem à
procura dos
segredos da iniciação, encontrou-se envolvido numa discussão acalorada digna dos
piores meios políticos.
Não querendo acreditar nem nos seus olhos nem nos seus ouvidos, Goethe assistia
à violenta altercação entre Bode e outro dignitário, a respeito do verdadeiro
objectivo
da Maçonaria.
- Basta de discursos ocos e de palavras inúteis! - destemperava Johann Joachim
Christoph Bode. - Quando é que percebereis que os jesuítas são a gangrena da
Maçonaria?
Felizmente, Zinnendorf morreu a 6 de Junho passado, ao abrir os trabalhos da sua
Loja76, e espero que o seu Rito cristão desapareça ao mesmo tempo que ele!
76 As Três Chaves.
169

Página 77
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Palavras indignas de um Irmão! - protestou o seu oponente.
- A indignidade - insistiu Bode - consiste em inclinarmo-nos diante dos dogmas
católicos, recusando-nos a pensarmos por nós próprios! Achais que os Irmãos são
homens
livres? Que piada!
O Mestre da Loja vibrou um golpe de maço.
- Os nossos trabalhos estão suspensos. Que os Irmãos se retirem ém paz.
Viena, 25 de Junho de 1782

-A Loja Amália de Weimar acaba de fechar-anunciou Geytrand a Joseph Anton. - Não


foi estabelecida nenhuma data para a reabertura. • - O que esteve na origem
dessa
decisão?
- Foram as declarações incendiárias de Bode.
- Esse exaltado é um verdadeiro Átila! Esperemos que ele visite o maior número
possível de Lojas. Depois da sua passagem, só restarão montes de ruínas.
- Todos os pedreiros-livres aguardam com impaciência o capítulo de Wilhelmsbad -
indicou Geytrand. - Os participantes terão de definir a natureza e os objectivos
da sua Ordem.
- Fernando de Brunswick quer restaurar o Templo que abre rachas um pouco por
todo o lado. A meu ver, esta não será uma reunião vulgar, mas antes um
verdadeiro ponto
de viragem.
Viena, 1 de Julho de 1782

- Tu, minha querida Constance, cantarás o papel de soprano; tu, meu amigo
Jacquin, o de baixo; e eu farei o de tenor.
O trio assim formado interpretou a obra burlesca de Wolfgang A Fitinha 77,
título evocativo de um pedaço de pano perdido, de que dois esposos andavam à
procura,
explanando o seu problema a um mercador amigo, que por sua vez dispunha de
infindáveis reservas desse mesmo tecido. Felizmente, o casal conseguia encontrar
o precioso
bem perdido.

77 K. 441.

170
No final da peça, os três intérpretes desmancharam-se a rir.
Thamos, o egípcio, encarregara o seu Irmão Jacquin de distrair Wolfgang, cujos
nervos estavam à flor da pele. Embora ele estivesse convencido de que escrevera
uma
ópera a um tempo prazenteira e séria, como reagiriam os melómanos e os críticos?
Tendo-se Jacquin retirado, Wolfgang abraçou a sua noiva.
- Se o teu pai me rejeitar - murmurou ela - renunciarás a casar-te comigo?
- Claro que não! Antes do fim do ano, seremos unidos perante Deus.
O belo sorriso de Constance perturbou Wolfgang.
- Dispensarás o consentimento do teu pai?
- Caso ele se obstine na negativa, dispensarei. E pronuncio um voto solene: se
Leopold nos receber em Salzburgo como marido e mulher, mandarei tocar uma missa
em
tua honra.
39.
Viena, 4 de Julho de 1782
Enquanto prosseguiam os ensaios de O Rapto do Serralho, Wolfgang foi convidado a
jantar por um dos seus admiradores, Johann Valentin Gúnther, na companhia do
tenor
Adamberger e do libretista Stephanie.
Secretário do gabinete secreto do imperador para os assuntos da guerra, Gúnther
era um dos amigos íntimos do soberano. Com a sua ajuda, Wolfgang poderia
conseguir
impor-se.
Página 78
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Estais satisfeito com os vossos cantores? - inquiriu.
- Na presença do futuro herói Belmonte, declaro que não poderia querer melhor! O
nosso ambiente de trabalho é óptimo, ninguém puxa o tapete a ninguém.
- Uma espécie de milagre - observou Adamberger. - Geralmente, As divas arrepelam
os cabelos umas às outras! A música de Mozart tem o condão de apaziguar as
tensões
e dá-nos vontade de comungar com ela, ultrapassando tudo quanto é mesquinho.
Violentas pancadas soaram na porta da frente. Assim que um criado foi abrir,
vários polícias irromperam pelo apartamento, e o chefe deles estacou diante de
Gúnther.
- Considerai-vos sob voz de prisão, senhor secretário.
- De que é que sou acusado?
- De espionagem em prol da Prússia.
- Isso é descabido!
- A vossa amante, Eleonora Eskeles, filha do rabi-mor da Boémia e da Morávia,
extorquiu-vos certas informações ultraconfidenciais.
172
Estando a vossa cumplicidade devidamente provada, o imperador condena-vos a
prisão domiciliar.
- Quero falar com Sua Majestade!
- Está fora de questão.
- Sou inocente e protesto vigorosamente contra tal injustiça!
Os polícias obrigaram Mozart, Adamberger e Stephanie a saírem do apartamento.
- O nosso amigo Gúnther foi imprudente - considerou Stephanie. - Aquela mulher
sedutora causou a sua desgraça!

Viena, 5 de Julho de 1782

- Um dos validos do imperador foi preso ontem à noite - comunicou Geytrand a


Joseph Anton.
- Porque é que tal incidente reteve a tua atenção?
- Porque o pedreiro-livre Gúnther estava a jantar na companhia de dois outros
Irmãos, o cantor Adamberger e o libretista Stephanie, o Jovem.
- Havia mais convivas?
- O jovem compositor Mozart.
- Também ele pertencente à Maçonaria?
- Não.
- Mozart... Esse nome não me é estranho, já deve constar dos meus ficheiros.
- Ele está a trabalhar numa ópera com Stephanie.
Pelo sim, pelo não, Joseph Anton abriu uma nova pasta sob o rótulo de Mozart.
Wilhelmsbad, 11 de Julho de 1782
O lionês Jean-Baptiste Willermoz chegou a Wilhelmsbad, pequena estância balnear
da província de Hesse, quatro dias antes da abertura do capítulo, a fim de se
encontrar
em segredo com Fernando de Brunswick, Grão-Mestre da Estrita Observância
templária, e com o seu adjunto Carlos de Hesse.
Que honra, para um vulgar mercador, ser assim recebido por dois ilustres
titulares! O verdadeiro salvador da Maçonaria era ele, Willer-
173
moz, e por isso saberia vergar os dois aristocratas: prometeria que lhes
entregaria os seus rituais secretos, sem ter contudo intenção de o fazer.
Para sua grande alegria, os dois titulares receberam-no com deferência.
- Arriscamo-nos a que os debates sejam tempestuosos - considerou o Grão-Mestre -
e devemos adoptar uma linha de força comum que nos permitirá salvar a Estrita
Observância.
- - Decidimos aderir à vossa noção de espiritualidade - especificou Carlos de
Hesse - e rejeitar as referências templárias, o racionalismo, o cientismo e a
tradição
esotérica.
- Estais deveras conscientes, venerados Irmãos, de que só os Cavaleiros
Beneficentes da Cidade Sagrada podem regenerar a Maçonaria?
- Estamos - declarou Fernando de Brunswick.
Página 79
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Deparar-vos-eis com fortes resistências.
- Já que estamos a concluir uma aliança, saberei impor a minha autoridade e
reduzir os contestatários ao silêncio.
- Será necessário abandonar toda a prática alquímica? - indagou Carlos de Hesse.
- Cristo é o ouro filosofal. Depois do capítulo, oferecer-vos-ei esta revelação
ao iniciar-vos no grau supremo do meu Rito.
O duque e o príncipe bebiam as palavras de Willermoz. Apesar de os Irmãos
acreditarem que Brunswick ainda se mantinha nas suas funções de Grão-Mestre, era
o místico
lionês quem passava a deter de facto o poder e quem dirigiria os trabalhos do
capítulo prestes a reunir.
Daí a alguns dias, ou daí a algumas semanas na pior das hipóteses, o seu triunfo
seria total.
40.
Wilhelmsbad, 15 de julho de 1782
Desde a abertura do capítulo, dois Iluminados da Baviera haviam desencadeado as
hostilidades. Em frente aos delegados vindos de toda a Europa e representativos
de
múltiplas tendências, Adolph von Knigge afirmou: "Este mundo não é feito para
filosofar, mas para agir", e Von Dittfurth atacou com violência inaudita os
místicos
cristãos, culpados de descaracterizar a Estrita Observância. Tornava-se
imperativo, nas suas palavras, que a Maçonaria se opusesse aos poderes
instituídos e aos
privilégios dos aristocratas, que abanasse pela base uma sociedade parada, que
promovesse um humanitarismo igualitário e que se desfizesse das superstições
religiosas.
Estes discursos foram muito mal acolhidos, a não ser por Bode. Mais uma vez,
este acusou os jesuítas de se terem apoderado da Maçonaria.
No final desta primeira troca de galhardetes, e já com um ambiente péssimo
instalado, Bode aproximou-se dos Iluminados e decidiu aderir a este movimento
que correspondia
por inteiro aos seus ideais. A revolução estava em curso.
- Vede - disse Bode a Thamos -, estamos a progredir!
- Parece-me que o Grão-Mestre não apreciou mesmo nada as declarações dos
contestatários.
- Pois ele engana-se redondamente! A Estrita Observância está perdida, só os
Iluminados podem conferir à Maçonaria um verdadeiro impulso e levá-la a
conquistar o
lugar que ela merece. Juntai-vos a nós.
175

Thamos ouviu com atenção as palavras de Adolph von Knigge, autor dos rituais dos
Iluminados, e marcou um encontro para ser iniciado neles.
- A Estrita Observância está a afundar-se - declarou Von Knigge. - A
concorrência encarniçada entre os sistemas de altos graus, a defecção do duque
da Sudermânia,
os ataques do Rito sueco, os falsos segredos, o profundo descontentamento dos
Irmãos... Que situação lamentável! Voltemos as costas ao passado e trilhemos com
resolução
) os caminhos do futuro.
- Como entendeis proceder? - interrogou o marquês de Chefdebien, coronel de
caçadores, cavaleiro da Ordem de Malta e pedreiro-livre de longa data, delegado
pela
Loja francesa dos Filaletos para recolher informações.
- Não é possível qualquer entendimento com Willermoz, com a Rosa-Cruz e com os
demais cristãos mais ou menos encapotados! É por causa deles que nos estamos a
enterrar.
- Ireis até à ruptura?
- Se for necessário.
- Não sentireis imensa falta dos ritos secretos? - questionou o marquês.
- Não passam de invólucros vazios! O único futuro para a Maçonaria - insistiu
Von Knigge - passa pelos Iluminados da Baviera.
Sob a autoridade de Fernando de Brunswick, que ainda não fora atacado
pessoalmente, retomaram-se os debates.
Página 80
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
"O que poderá a iniciação ganhar com estas guerras?", interrogou-se o egípcio.
Viena, 16 de Julho de 1782
Contra os espasmos, Wolfgang ingerira tintura de ruibardo diluída em álcool e
éter. Este remédio não evitou que ele deixasse cair a partitura do primeiro acto
de
O Rapto do Serralho numa poça de lama, quando estava a caminho do Burgtheater
para dirigir a estreia da sua ópera78.

78 K. 384.
176
O compositor não tinha em mente os preciosos cem ducados que a obra lhe
renderia, mas antes as múltiplas intrigas que procuravam transtorná-lo. O
imperador em pessoa
tivera de intervir para acalmar certos opositores.
Quando aquele homem pequeno, pálido e frágil, de olhos brilhantes e nariz
comprido, fez ressoar os primeiros andamentos de O Rapto do Serralho, imergiu
por completo
dentro da música.
Nessa noite, era a sua carreira que estava em jogo, e a sua liberdade de criação
dependia directamente do sucesso que viesse a obter.
Sentia a falta de Thamos, o egípcio. Nesse instante decisivo, a sua presença
seria reconfortante. Mas não havia o destino imposto que Wolf-gang enfrentasse
sozinho
as principais adversidades da sua existência?
Houve alguns assobios no meio do primeiro acto. Pouco distintos de início,
começaram depois a intensificar-se. Mas elevaram-se também ovações, que acabaram
por se
sobrepor.
- Demasiado belo para os nossos ouvidos, meu caro Mozart, e demasiadas notas -
comentou José II, que honrava a estreia com a sua presença.
- Apenas as necessárias, Majestade.
O imperador exibiu um ligeiro sorriso. Decididamente, aquele músico tinha
carácter!
Todos esperavam com ansiedade a opinião dos críticos, que o conde Karl
Zinzendorf, observador da vida cultural vienense, resumiu numa frase: "Esta
música consiste
num aglomerado de coisas roubadas." A ópera de Mozart não passava de uma má
imitação de composições estimadas, como as de Gluck.
Viena, 19 de Julho de 1782

A segunda representação de O Rapto do Serralho roçou o desastre. Na ausência do


imperador, a pandilha anti-Mozart reforçou-se e as pateadas desencadearam-se com
um vigor acrescido pelo facto de Fischer, intérprete de Osmim, guardião do
serralho, cantar de forma lamentável. Com a aprovação do tenor e pedreiro-livre
Adamberger,
que partilhava a sua fúria, Wolfgang exigiu um novo ensaio geral antes da
terceira representação, anunciada como sendo a última.
177
- Certamente que não será! - predisse Adamberger. - Só a crítica é negativa. O
público, quanto a ele, aprecia esta ópera, e a sua opinião é transmitida de boca
em
boca. Se cantarmos como deve ser, as pateadas acabarão por se extinguir.
Por iniciativa de Wolfgang, a equipa voltou a deitar mãos a obra. A partida
ainda não estava perdida.
Apesar do cansaço e da angústia, Wolfgang compôs uma estranha serenata79 para
octeto de sopro, que apresentava a particularidade, única neste género de obras,
de
ser no tom grave de dó menor. A peça exibia o rigor de Bach, antes de explodir
numa alegria final.
E o jovem compositor não podia ignorar o pedido premente do seu pai para que lhe
Página 81
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
entregasse uma sinfonia destinada aos festejos comemorativos do enobrecimento do
burgomestre Sigmund Haffner.
Este regresso a Salzburgo, mesmo decorrendo no plano meramente musical,
aborrecia Wolfgang, mas ele continuava a nutrir a esperança de obter o
consentimento de Leopold
para o seu casamento com Constance, e apressou-se pois a satisfazer-lhe o
pedido.
Vencendo a sua lassidão, Wolfgang encurtou as suas horas de sono e começou a
escrever a sinfonia Haffner 80.
Quando compreenderia Leopold que tinha um filho que o amava e respeitava ao
ponto de não querer casar sem o consentimento paterno?
79 K. 388.
80 K. 385.

41.
Viena, 20 de Julho de 1782
- O capítulo de Wilhelmsbad anuncia-se como um autêntico fracasso - declarou
Geytrand, quase alegre.
- Temos informações fiáveis? - perguntou Joseph Anton, céptico.
- Comprei dois delegados, cujas informações cruzo. Desde o primeiro dia, as
contendas revestem-se da maior violência.
- O Grão-Mestre conseguiu debelar a oposição?
- Até agora, tem conseguido. Os Iluminados da Baviera cometeram o erro de
mostrar o jogo logo de início, o que indispôs a maior parte dos Irmãos.
- O que pretendem esses subversivos?
- Querem uma revolução, senhor conde. A destruição da Igreja e da realeza é
apontada como o principal objectivo da Maçonaria.
- Como reagiu o Grão-Mestre?
- Ele desaprova formalmente tal linha de força, no que é apoiado pela maior
parte dos Irmãos.
- Ou seja, os Iluminados estão condenados ao fracasso.
- Mas os debates mal começaram.
- Conseguiste identificar os dirigentes?
- Este capítulo permitir-nos-á avançar na sua identificação. Por enquanto, posso
citar os nomes de Adolph von Knigge e de Von Dittfurth.

179

- Mesmo que este ramo da Maçonaria não atinja já os seus objectivos - considerou
Joseph Anton -, ele não se extinguira.
- Bode está pronto para deixar a Estrita Observância e contribuir para a
expansão dos Iluminados - assinalou Geytrand.
- O perigo torna-se mais nítido, mas precisamos de preencher melhor os nossos
arquivos antes de falarmos disso ao imperador. Este não deixará de exigir provas
fundamentadas
em documentos irrefutáveis, antes de atacar esses intelectuais que sonham em
transformar o mundo.
Viena, 26 de Julho de 1782
Wolfgang acabara de chegar ao Sabre Vermelho81, onde nessa noite se encenava O
Rapto do Serralho, quando Constance chegou a casa dele desfeita em lágrimas.
- Não posso permanecer em casa da minha mãe! Ela está de novo bêbeda e ameaça
bater-me.
Ele apertou-a nos braços.
- Não voltarás para tua casa. Vou levar-te para casa da baronesa Waldstàtten.
- A minha mãe mandará a polícia buscar-me e acusar-te-á de desviares uma menor.
- Não temas, os nossos amigos defender-nos-ão.
- Mas ela ficará fula!
- Havemos de resistir.
A baronesa Waldstàtten acolheu o casal com a sua gentileza habitual, e o relato
de Constance indignou-a.
- Ficai tranquila, minha querida. Nem a vossa mãe nem a polícia transporão o
limiar da minha casa. Farei saber que vos concedo hospitalidade, e ninguém
ousará importunar-vos.
Página 82
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Queria tanto estar casada!
- Não terás de esperar muito mais - prometeu Wolfgang. - Amanhã mesmo enviarei
uma nova carta ao meu pai, suplicando-lhe que nos conceda por fim a sua
aprovação.
81 Hoje sito no nº 19 da Wipplingerstrasse.
180

Viena, 31 de Julho de 1782


As representações dos dias 26 e 30 não haviam sido perturbadas pela pandilha dos
opositores de Mozart. O Rapto do Serralho ia-se tornando um sucesso, e o seu
autor
ascendia ao título de compositor respeitado.
Em contrapartida, a última carta de Leopold feriu profundamente o seu filho. Por
um lado, o pai continuava a negar o seu consentimento; por outro, mal reconhecia
o sucesso obtido pelo filho.
Retomando a sua pena, Wolfgang acusou Leopold de indiferença e de frieza.
Depois, pela última vez, implorou a sua bênção para a união com Constance Weber,
declarando que, fosse como fosse, aquele casamento teria lugar.
Wolfgang não podia continuar a deixar a sua noiva à espera, sobretudo por causa
da situação insustentável em que esta se encontrava. Porque teimava Leopold em
impedir
a sua felicidade, e porque não regozijava com o sucesso de O Rapto do Serralho?
O jovem músico não ousava pensar que o seu pai fosse movido pela inveja
profissional. Afastando esse pensamento atroz, Wolfgang foi até casa da baronesa
Waldstátten
para anunciar a Constance que dentro em breve viveriam juntos como marido e
mulher.
Viena, 4 de Agosto de 1782

Dia 2, deu-se nova representação de O Rapto, que foi vivamente aplaudido.


Wolfgang e a sua noiva confessaram-se e comungaram nos teatinos82. Dia 3,
Wolfgang enviou
ao seu pai o final da sinfonia Haffner e assinou o seu contrato de casamento. E
no dia 4, o casal penetrou na catedral de Santo Estêvão para aí celebrar perante

Deus a sua união.


- Recebeste o consentimento do teu pai! - inquietou-se Constance.
- Infelizmente, não.

82 Congregação de clérigos regulares fundada em Roma no século XVI.


181
- Não corres o risco de entrar em conflito com ele?
- Pensa só na nossa alegria, minha querida. Somos feitos um para o outro, e
Deus, que tudo ordena, ordena também esta nossa união, e, por conseguinte, não
nos abandonará.
Constance Weber e as testemunhas não lograram reter as suas lágrimas. Os dois
noivos tinham a consciência de estar a comprometer-se a constituir uma nova
família.
- Ofereço-vos o copo-d'água - declarou a baronesa Waldstàtten.
Os ágapes foram acompanhados por uma prenda inesperada: a sublime serenata em si
bemol83 de Mozart para 12 instrumentos de sopro e um contrabaixo, obra que tanto
havia emocionado Thamos.
Onde estaria ele, aliás, nesses momentos tão decisivos? Wolfgang tê-lo-ia de bom
grado escolhido como padrinho, mas o egípcio devia ter uma tarefa mais
importante
para cumprir. Estaria ele a conversar com os sacerdotes do Sol, estaria a
contribuir para moldar uma sabedoria sem a qual o mundo se tornaria inabitável?
Constance estava feliz. Os seus lindos olhos negros exprimiam uma confiança que
Wolfgang nunca trairia. Graças a ela, ele levaria uma existência tranquila e
harmoniosa,
Página 83
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
longe dos tumultos da paixão, " tão nocivos para a verdadeira actividade
criadora. Era indispensável entregar-se a um trabalho sistemático, pois os
excessos e os
tormentos não levavam a lado nenhum.
Saberia Wolfgang reunir o seu canto interior ao rigor de Johann-Sebastian Bach,
unir o impulso em direcção à luz com o domínio sobre cada nota? Constance
compreendia
e partilhava o seu ideal. Ponderada, razoável, ela conferia-lhe um presente
inestimável: a paz da alma e do coração, indispensável para o equilíbrio graças
ao qual
ele edificaria a sua obra.
83 K. 361.
42.
Viena, 6 de Agosto de 1782
"Deposito em ti a minha esperança, esposa bem amada", cantava Wolfgang a
Constance ao compor uma ária de soprano na luminosa tonalidade de dó maior84.
Ele vivia a manhã mais feliz de toda a sua existência, e essa felicidade não era
perturbada por nenhuma nuvem, pois na véspera recebera finalmente o
consentimento
do seu pai, impressionado pela ajuda e pela protecção dadas ao jovem casal pela
"alta e bondosa dama Waldstàtten", de quem Leopold ouvira dizer muito bem. Já
que
uma baronesa vienense aprovava assim aquele matrimónio, Leopold rendia-se.
O sucesso confirmado de O Rapto do Serralho, o amor de Constance, a
reconciliação com o seu pai, uma carreira promissora... O céu atendia todos os
desejos de Wolfgang
que, entretanto, esperava ansiosamente pelo regresso de Thamos.
O Rapto não representava um ponto de chegada, mas antes de partida. Tendo
consciência de dominar uma arte tão complexa como a composição de óperas,
Wolfgang desejava
reencontrar o caminho do templo dos sacerdotes e das sacerdotisas do Sol. Mas
como poderia fazê-lo sem o auxílio do egípcio?
- Pareces preocupado - observou Constance.
84 K. 440.

183

- Não, estou a saborear a sorte que temos em viver juntos. E agradecerei a Deus,
cumprindo o meu voto: oferecer-te-ei uma missa. Ela será cantada em Salzburgo,
quando
o meu pai e a minha irmã aí nos receberem.
- Achas que eles nos receberão?
- Vais encantá-los, estou certo disso!
Salzburgo, 7 de Agosto de 1782

A sinfonia Haffner surpreendeu Leopold, que estava à espera de uma obra no


estilo galante e divertido. Esta obra rompia de várias maneiras com as
convenções estabelecidas.
Aqui e ali, assomavam ímpetos de revolta contra essa Salzburgo detestada e
contra as mentes que dominavam tal cidade, sempre acorrentadas às suas rotinas!
O andante
parecia mais ou menos tranquilo, mas o presto retomava o canto de vitória de
Osmim, guardião do serralho, perfeita encarnação de o Grande Mufti Colloredo. Só
que
a sua vitória era falaciosa, pois ele acabava ridicularizado e dominado.
- O teu irmão já não é a mesma pessoa - confidenciou Leopold a Nannerl. - Espero
que ele consiga controlar-se e inserir-se na boa sociedade.
- Aquela Constance exerce uma má influência sobre ele. Não devíeis ter dado o
vosso consentimento. Wolfgang teria acabado por renunciar a essa desastrosa
união.
- Não, ele estava firmemente decidido, e a vigilância da baronesa Waldstátten
tranquiliza-me.
- Pois a mim não - retorquiu Nannerl. - O meu irmão é um ser fantasioso,
Página 84
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
desprovido do sentido da realidade. Esta união não durará muito, a sua carreira
vienense
fracassará e ele regressará a Salzburgo, de cabeça baixa.
Viena, 8 de Agosto de 1782

Os dicionários de línguas estrangeiras acumulavam-se sobre a secretária de


Wolfgang.
- O que estás a preparar? - perguntou-lhe Constance.

184
- Estou a rever o meu francês, que domino mais ou menos, e a aprender inglês.
- Estás a pensar em viajar?
- Porque não? Depois do sucesso de O Rapto do Serralho e dos meus primeiros
concertos vienenses, estou a escrever uma carta para Le Gros, personagem
medíocre mas
de grande influência em Paris, propondo-lhe os meus serviços para a próxima
Quaresma. Em seguida, poderemos ir até Londres, paraíso dos músicos!
- Para já, tens de te preparar para o pequeno-almoço. Esperemos que esse convite
não seja um engodo!
Na verdade, ao ir até casa de Gluck, Wolfgang não se sentia nada entusiasmado.
Para que quereria o músico triunfante em Viena e célebre na Europa inteira
conceder-lhe
uma tal honraria?
Os temores de Mozart não tinham fundamento. Gluck desejava simplesmente
conhecê-lo, felicitá-lo e anunciar-lhe que era a favor da reposição de O Rapto
do Serralho
no Burgtheater.

Viena, 9 de Agosto de 1782


Wolfgang levantou-se sem fazer barulho e redigiu uma breve nota que colocou
junto da cama:
Bom dia, mulher queridinha! Espero que tenhas dormido bem, que nada te tenha
perturbado, que acordes bem disposta, que não te constipes e que não te zangues
com
os criados. Deixa os aborrecimentos para o meu regresso.
Como era agradável passear a cavalo às cinco da manhã, indo até aos arredores de
Viena! Wolfgang aproveitava aquele Verão encantador e a imensa sensação de
espaço
que se abria perante ele. O reconhecimento de Gluck firmava os seus créditos
como autêntico compositor, e os seus detractores deixavam de erguer as vozes,
com excepção
da crítica "autorizada". Wolfgang teria de aprender a lidar com a inveja, a
maldade e a estupidez de indivíduos estéreis cuja única ocupação consistia em
denegrir
a obra alheia.
Pôr em música as harmonias celestes evocadas pela cabala e conhecidas pelos
iniciados nos Supremos Mistérios: aí residia o importante.
185
Viena, 17 de Agosto de 1782
O barão Gottfried van Swieten estava atolado. Decerto, ele tinha contribuído
para a formação do Supremo Mago ao oferecer a Mozart a revelação das obras de
Johann-Sebastian
Bach. E a posição de chefe da censura conferia-lhe acesso a uma série de
ficheiros e de documentos. Em caso de perigo, não deixaria de alertar os seus
Irmãos. Mas
o barão continuava sem descortinar o menor rasto do serviço secreto cuja missão
consistia em vigiar a Maçonaria. Nem o chefe da polícia, nem o ministro do
Interior
pareciam ter conhecimento da existência de tal serviço. Claro que poderiam estar
a mentir, com aquela presteza dos políticos que se enredam de tal forma nas suas
manhas que deixam de saber onde está ao certo a verdade.
Página 85
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Nada parecia ameaçar a existência das Lojas vienenses, salvaguardadas das
convulsões que o capítulo de Wilhelmsbad, do qual Van Swieten esperava decisões
positivas,
procurava apaziguar.
Talvez esse serviço secreto fosse invisível e só existisse nos seus pesadelos?
A condessa Maria Wilhelmina Thun aproximou-se do barão.
- Belo serão mundano, não achais? Só nos falta a música de Mozart.
- O sucesso de O Rapto do Serralho deixa-me deveras contente. Eis Mozart
reconhecido como um dos nossos músicos mais brilhantes.
- Sim e não - considerou a condessa. - Apesar das vossas e das minhas
intervenções, o imperador José II não lhe concede um lugar oficial na corte de
Viena, que o
libertaria de qualquer preocupação material e o deixaria à vontade para compor
com toda a serenidade.
- José II pratica uma política de contenção e recusa-se a aumentar as despesas
públicas - lembrou Van Swieten.
- Quando temos a sorte de encontrar um ser excepcional, não teremos também
obrigação de cuidar dele da melhor maneira possível? Falta lucidez ao imperador,
que se
rodeia de gente medíocre e deixa escapar as pessoas talentosas. Essa cegueira
conduzi-lo-á a resultados catastróficos. Quem negligencia um Mozart, não pode
governar
adequadamente um império!
43.
Wilhelmsbad, 20 de Agosto de 1782

A partir da quarta sessão do capítulo, colocou-se uma questão fundamental,


submetida à reflexão dos delegados: quem somos nós e há quanto tempo existimos?
Convictos de que a Estrita Observância tinha realmente possibilidades de
subsistir, vários Cavaleiros propuseram soluções. O primeiro defendeu a
ressurreição material
da Ordem do Templo e do seu desejo de acumular fortunas. O segundo considerou a
hipótese de erguer um exército de vinte mil soldados para salvar as ilhas de
Lampedusa
e de Iinosa das garras dos turcos. O terceiro incitou os seus Irmãos a deixar a
Europa e instalarem-se na Austrália, continente imenso e vazio, onde a Maçonaria

templária se poderia desenvolver a céu aberto. O quarto evocou os verdadeiros


dirigentes da Ordem, os Superiores incógnitos, sem os quais os iniciados nunca
poderiam
descobrir a pedra filosofal.
Todos aguardavam a intervenção de Fernando de Brunswick, eleito a 15 de Agosto
como Grão-Mestre e chefe do novo sistema maçónico que se iria erguer.
- Meus Irmãos, Carlos de Hund, fundador da Estrita Observância, mentiu-nos. Ele
não possuía documento nenhum que pudesse provar a nossa filiação templária. Por
conseguinte,
devemos renunciar a tal ilusão e à ideia da restauração de uma ordem militar
morta e enterrada, sem qualquer elo de ligação com a Maçonaria à qual perten-
187

cemos. O Templo permanecerá como mera referência de ordem moral e mística.


O capítulo foi tomado de espavento.
- Eu aprovo o sereníssimo Grão-Mestre! - rugiu Bode.
- Eu também - apoiou Willermoz, encantado com o rumo que os eventos estavam a
tomar.
- Qual é a vossa proposta concreta? - perguntou Bode.
- A denominação de Estrita Observância templária não significa mais nada -
declarou Fernando de Brunswick. - Temos, portanto, de seguir por outro caminho,
traçado
pelo Irmão Jean-Baptiste Willermoz e pela sua instituição dos Cavaleiros
Beneficentes da Cidade Sagrada.
- Um regresso ao cristianismo arcaico! - exclamou Bode, furibundo.
- Nós já escutámos os discursos dos Iluminados da Baviera - lembrou o
Grão-Mestre. - Os seus objectivos não coincidem com os nossos, e as suas ideias
não colheram
aceitação.
Página 86
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Viena, 20 de Agosto de 1782

- Não estás chocado? - perguntou Constance a Wolfgang. Dia 18, no jardim de


Augarten, tinha sido tocada uma transcrição de
O Rapto do Serralho para instrumentos de sopro, que não era da autoria de
Mozart. Deveria ele indignar-se ou, pelo contrário, regozijar com a popular
difusão das
suas obras?
- Esta noite, voltam a dar a minha ópera no Burgtheater. Anteontem, os
passeantes do Augarten pararam para ouvi-la. Benesses caídas do céu! Outrora, eu
era prisioneiro
nas garras de um tirano, e condenado a estagnar em Salzburgo. Hoje, desde o
vadio até ao aristocrata, toda Viena ouve a minha música! De que me posso
queixar?
- Possuis o sentido da felicidade, Wolfgang.
- Isso é certo, já que sou amado por ti.

Wilhelmsbad, 21 de Agosto de 1782


Na abertura da nova sessão do capítulo, todos perceberam de imediato que a
decisão já fora tomada: a partir daquele momento, a reforma dos místicos
lioneses passaria
a ser a referência imposta a todos.
188

Não tendo o Superior incógnito, ou seja, o egípcio Thamos, emitido qualquer


objecção, Fernando de Brunswick levou a sua adiante. Encarregou quatro Irmãos de
redigir
um projecto de "Código geral da Ordem" no prazo de um ano. E caberia a Willermoz
a redacção dos textos para as novas cerimónias a celebrar nas Lojas da Estrita
Observância.
- Já não tenho nada em comum com esta amálgama de crentes cujas mentes foram
deformadas pelas historietas dos jesuítas - confidenciou Bode a Thamos. - O que
eles
estão a preparar não são rituais maçónicos, mas antes paródias de missas!
Acredita em mim, Irmão, só os Iluminados podem fazer-nos avançar.
Jean-Baptiste Willermoz triunfava. Mesmo assim, por prudência, ele aguardava o
final do capítulo para estar certo da sua vitória total.

Viena, 24 de Agosto de 1782


A baronesa Waldstátten não falou a Mozart da carta que acabara de receber de
Leopold, que descrevia o seu filho como "demasiado passivo, demasiado
dorminhoco, demasiado
indolente, por vezes talvez demasiado orgulhoso e impaciente, incapaz de saber
esperar. Muito ou muito pouco, nunca a mediania. E, infelizmente, é para as
pessoas
mais inteligentes, para os génios mais extraordinários, que os caminhos
apresentam mais obstáculos".
Conheceria verdadeiramente tal pai o seu filho, amá-lo-ia deveras com toda a
ternura desejável, prestar-lhe-ia ajuda eficaz para que triunfasse numa cidade
tão exigente
e numa profissão tão difícil?
- Constance e eu desejamos ir a Salzburgo - disse Wolfgang à baronesa. -
Gostaria tanto de apresentar a minha mulher ao meu pai e à minha irmã! Nós
formamos uma
pequena família, que seria bom reunir de vez em quando.
-Já fostes convidados?
- Ainda não, mas não deve tardar.
- Não vos aconselho a partir antes da nova vinda do futuro czar a Viena. Tal
visita será certamente ocasião para uma grande actividade musical. Desta vez, o
grão-duque
Paulo ouvirá O Rapto do Serralho.
- Ou seja, é impossível sair de Viena por enquanto... De resto, sinto uma certa
apreensão que me impede de ir até Salzburgo.

Página 87
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
189
- O que temeis?
- Ser preso pela polícia de Colloredo. Não credes que o príncipe-arcebispo me
detesta tanto que não hesitaria em mandar prender-me?
A baronesa não rejeitou tal hipótese.
-Tomai as vossas precauções, arranjai garantias - aconselhou ela.
44.
Viena, 30 de Agosto de 1782
Enquanto O Rapto do Serralho subia novamente ao palco no dia 27, com o mesmo
sucesso das vezes anteriores, Wolfgang esboçou três sonatas para piano e
violino85 -
a primeira das quais era dedicada à sua "caríssima esposa" - e um adagio para os
mesmos instrumentos86.
Ele não chegou a completar nenhuma dessas três obras, meras experiências de
laboratório para dominar a técnica do contraponto, levada à perfeição por
Johann-Sebastian Bach. [ II Constance gostava desses ensaios de estilo arcaico,
quase rugoso.
- A tarefa não é fácil - confessou o seu marido. - Bach não se deixa assimilar
como se fosse um alimento qualquer! Mas eu hei-de conseguir.
O trombeteiro Leutgeb, valente compincha de espírito algo espesso, amigo de
Wolfgang, veio interromper essas pesquisas. Leutgeb precisava das partituras com
urgência.
- Claro que tas arranjo - disse Wolfgang -, mas com a condição de juntares os
nossos amigos e de organizares um excelente jantar!
Essa era uma linguagem que Leutgeb compreendia na perfeição. Abundantemente
regado, o serão foi dos mais alegres. Dele resultaram

85 K. 403,402 e 404.
86 K. 396.

191

um quinteto de cordas87 e um concerto88 que o instrumentista não teria


dificuldade em interpretar.
Constance gostava de ver Wolfgang divertir-se e espalhar em seu redor uma franca
alegria, ao mesmo tempo que ia pensando numa obra rigorosa inspirada em
Johann-Sebastian
Bach. Wolfgang estava em simultâneo num sítio e no outro, terreno e celeste.
Wilhelmsbad, 1 de Setembro de 1782

No último dia do capítulo, todos os participantes tinham o sentimento de um


terrível malogro.
- Acaba de se criar uma conjura contra a ordem social estabelecida - declarou a
Thamos o marquês de Chefdebien, representante dos Filatetos. - E a França será a

primeira vítima dessa conspiração.


- Mas as teses dos Iluminados da Baviera não foram escorraçadas?
- Só na aparência. De resto, eles apenas exprimem uma corrente de ideias cuja
força aumenta de dia para dia. A Estrita Observância, por seu turno, não soube
levar
a Maçonaria para lá das suas fraquezas e das suas contradições.
O Grão-Mestre exibia o rosto de uma pessoa vencida. Há 20 anos que Fernando de
Brunswick tentava erguer um sistema internacional que poderia ter dominado a
totalidade
das Lojas europeias. Mas, naquele dia, a montanha parira um rato: um novo Rito
cristão89 em gestação, garantido por Willermoz, místico francês.
Para surpresa de todos, o grande vencedor do capítulo apresentava um ar
derrotado. De repente, o conjunto das responsabilidades parecia-lhe demasiado
pesado. Conseguiriam
ele e os seus discípulos construir o edifício ritualístico que todos esperavam
deles, e impô-lo aos países outrora fiéis à Estrita Observância?
Quanto a Jean-Baptiste Willermoz, tão orgulhoso de não ter comunicado aos Irmãos
alemães o conteúdo verdadeiro das suas cerimónias secretas, não tinha tão-pouco
recebido qualquer informação
Página 88
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
87 K. 407.
88 K. 412.
89 Este Rito sobreviveu sob a designação de Rito Escocês Rectificado, e é
profundamente diferente do Rito Escocês Antigo e Aceite.

192
acerca dos demais Ritos, cujo teor teria gostado de conhecer. Diálogo de surdos
e negócio ilusório, o capítulo de Wilhelmsbad marcava o fim de uma época.
Thamos não recolhera nada de instrutivo para a iniciação do Supremo Mago. Mesmo
assim, continuaria a vigiar o percurso dos Iluminados da Baviera, que contavam
abrir-se
ao contacto com o mundo exterior.
Mesmo antes das suas respectivas partidas, Fernando de Brunswick e Thamos
trocaram olhares.
- Voltaremos a ver-nos?
- Não sei, Sereníssimo Grão-Mestre.
- Porque não interviestes de forma mais intensa, porque não defendestes um outro
caminho para a Maçonaria?
- Porque as decisões já estavam tomadas antes da abertura do capítulo.
- Eu considerava que estava a agir no interesse da Ordem. E talvez Willermoz
seja bem sucedido!
- A iniciação repousa sobre a qualidade dos ritos e sobre o poder espiritual que
eles transmitem - afirmou o egípcio. - Sem uma boa ferramenta, que se vai
aperfeiçoando
sem cessar, cai-se na crendice, na mera decência e na presunção.
- Esse não será o nosso caso - afirmou Carlos de Hesse, acorrendo em auxílio do
Grão-Mestre -, pois Cristo guiar-nos-á.

Viena, 12 de Setembro de 1782


- Uma verdadeira explosão! - felicitou-se Geytrand, remetendo a Joseph Anton os
relatórios dos seus informadores acerca do capítulo de Wilhelmsbad. - A Estrita
Observância
templária está moribunda. Mesmo que a sua agonia se estenda por dilatados anos,
mesmo que Fernando de Brunswick e Carlos de Hesse se agarrem às suas
prerrogativas,
a Ordem não passa de uma concha vazia, onde se agitam fantoches. Eles próprios
causaram o naufrágio do navio em que seguiam, ao cortar todos os laços com a
tradição
templária e ao confiarem ao francês Willermoz o cuidado de preparar um novo Rito
fortemente impregnado de cristianismo.

193

- Esse Willermoz não será perigoso?


- Trata-se de um rico mercador, um místico que faz gala nas suas acções de
caridade mas que não deixa de se dedicar às mulheres, imbuído da superioridade
que lhe
conferem os seus contactos privilegiados com Deus, orgulhoso de frequentar gente
nobre e um bocado embaraçado com a dimensão da sua aparente vitória!
- Fernando de Brunswick não apresentará a sua demissão?
- Não acho que apresente, pois está demasiado agarrado ao seu título de
Sereníssimo Grão-Mestre. Mas ele parece quebrado e deve entregar a direcção do
que sobra
da Ordem a Carlos de Hesse, homem mais jovem e mais dinâmico. Este último crê
que a maçonaria constitui um caminho privilegiado para atingir Cristo.
- Pode-se dizer que essas notícias são boas - reconheceu Anton. - E quanto às
más?
- Os Iluminados da Baviera não seguirão nem Willermoz nem o Grão-Mestre, que
eles consideram como agentes dos interesses da Igreja. Eles querem uma revolução
e usam
as Lojas como instrumentos de conquista.
- Então, temos muito trabalho pela frente - previu Joseph Anton. - Erradicar a
Maçonaria não se anuncia como tarefa fácil, pois os elementos mais temíveis
acham-se
encobertos, como era o caso daquele Johann Valentin Gúnther, que o imperador
Página 89
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
enviou para o exílio, ao passo que a amante dele, a judia Eskeles, foi
extraditada para
Berlim.
- Mas Gúnther e a sua amante não continuam a clamar a sua inocência?
-José II gostava muito do secretário do seu gabinete secreto. Por isso, está a
conduzir um inquérito minucioso. Mas sinto-me intrigado, Geytrand. No dia da sua
detenção,
o pedreiro-livre Gúnther tinha convidado para jantar os seus Irmãos Adamberger,
cantor, e Stephanie, libretista. O quarto conviva era o compositor Mozart, que
nós
sabemos que não pertence a nenhuma confraria. Contudo, a sua presença naquele
curioso jantar parece-me suspeita.
- Eu já verifiquei de novo, senhor conde. Esse jovem não tem um perfil
subversivo. O seu único desejo é o de se impor em Viena graças à ajuda de
aristocratas influentes.
- Esperemos que sim.
45.
Viena, 28 de Setembro de 1782
- Queria ter tudo o que fosse bom, puro e belo! - exclamou Wolfgang, abraçando
apaixonadamente Constance.
Nos dias 6 e 20 de Setembro, haviam sido dadas duas novas representações de O
Rapto do Serralho, no Burgtheater. Dia 24, o imperador José II ouvira a ópera em
privado,
demonstrando assim a sua admiração. E dia 25, a corte de Praga oferecera a
Mozart cem ducados por uma cópia da obra.
- O teu Rapto será representado na Europa inteira! - predisse a sua mulher - Nós
ganharemos rios de dinheiro e instalar-nos-emos num apartamento maior.
- Hoje, receberemos uma data de amigos e festejaremos com eles a nossa
felicidade. Haverá truta fumada dos Alpes na ementa?
- Eu bem conheço os teus pratos predilectos, meu querido.
O jantar foi pantagruélico, o vinho correu a jorros. Como não era possível haver
regozijos sem acompanhamento musical, Wolfgang compôs vários cânones, começando
por "Beber e comer são coisas que nos sustentam"90 e acabando com um dos textos
na moda em Viena, "Lambe-me o eu como deve ser, não há nada mais delicioso"91,
que
os convivas cantaram em coro e aos berros.

90 K. 234.
91 K. 231 e 233.
195

Viena, 1 de Outubro de 1782

Depois de almoçar em casa da baronesa Waldstâtten, Wolfgang e Constance


interrogaram-se.
- Não podemos esconder-lhe a verdade - considerou Wolfgang.
- Mas eu não consigo dizer-lhe.
- Estarás tu envergonhada, minha queridinha?
- Não há nada para estar envergonhada, antes pelo contrário! Esta nova
felicidade vem coroar todas as outras.
- Vá, vamos escrever-lhe, mas no teu estilo. A nossa boa baronesa, que tanto
aprecia as brincadeiras puxadas, não gostaria de uma carta convencional. Eis
como deves
informá-la da tua gravidez: Caríssima, bondosíssima, belíssima, em ouro, em
prata, em açúcar... A minha mulher está com desejos - e só lhe apetece uma
cerveja à
moda inglesa! Se Vossa Graça pudesse mandar-lhe um jarro dela, ficaríamos muito
agradecidos.
O jarro não tardou a chegar, e a futura mãe pôde satisfazer o seu desejo.
Viena, 5 de Outubro de 1782
Ao examinar as suas contas, o casal Mozart verificou, não sem azedume, que o
criador de um sucesso musical não obtinha daí rendimentos substanciais. Em
catorze dias,
Página 90
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
o teatro ganhava quatro vezes mais do que o compositor de uma ópera aplaudida
por um público numeroso!
- Não devo proceder de forma manhosa - considerou Wolfgang -, mas também não
posso comportar-me como um idiota que deixa os outros auferirem todos os
proveitos,
quando o meu trabalho me custou tanto esforço e tanto cansaço, e que renuncia a
todos os lucros futuros.
- Como poderás melhorar a situação?
- Tenho de negociar melhor os contratos, obter remunerações mais justas da parte
dos editores, e assegurar a posteridade da minha obra! O combate será renhido,
mas
hei-de vencer.
Wolfgang estava deveras desiludido com a última decisão de José II: nomear o
medíocre Summer como professor de piano da princesa Eli-
196
sabeth, um cargo que Wolfgang ambicionara para si. Aos olhos do imperador,
aquele desconhecido tinha uma vantagem substancial: o fraco salário que ele
pedia!
Viena, 19 de Outubro de 1782

Não estava Leopold - por fim! - orgulhoso do seu filho, que, a 8 de Outubro,
sentado ao cravo, havia dirigido O Rapto do Serralho na presença do grão-duque
Paulo
da Rússia? E Wolfgang acabara também de compor uns concertos para piano92 que se
equilibravam entre o demasiado difícil e o demasiado fácil, com o objectivo de
treinar
o ouvido do público vienense com a ajuda de uma pequena orquestra, porventura um
simples quarteto de cordas com um solista.
Na sua carta, Wolfgang folgava também com o desenlace da batalha de Gibraltar.
Tive conhecimento, para minha maior alegria - pois bem sabeis que eu me
considero
mais do que inglês -, da vitória dos ingleses sobre os espanhóis.
Infelizmente, Wolfgang teve de adiar mais uma vez a sua viagem a Salzburgo, pois
a temporada musical de Viena estava a começar. Em plena ascensão, ele não podia
dar-se ao luxo de se ausentar nesta época. Para além disso, o jovem compositor
continuava a temer ser preso pelos esbirros de Colloredo, o que poderia quebrar
a
sua carreira.
No entanto, Wolfgang tinha muita vontade de reencontrar o seu pai e a sua irmã,
de lhes apresentar a maravilhosa Constance e de acrescentar essa felicidade
familiar
a todas aquelas de que ele vinha gozando desde há alguns meses. Como ele tinha
tido razão em sair de Salzburgo e tentar a sua sorte em Viena!
Mas ele tinha de restabelecer os laços com a sua família e tinha de voltar a
afrontar a sua terra natal, assim que sentisse ter forças para tanto.
O que lhe teria aconselhado Thamos, ausente há tanto tempo? Por um instante,
Wolfgang pensou que o seu amigo talvez desaprovasse os seus últimos passos,
acusando-o
de estar a produzir música demasiado mundana, mas logo o compositor retomou o
seu labor de pró-
92 Concertos nº 11, K. 413, e nº 12, K. 414. Data da mesma época o rondó para
piano e orquestra, K. 386.
197
duzir música agradável para os ouvidos vienenses. Não podia de modo algum
abrandar, devia continuar a conquistar o seu público!
Viena, 4 de Novembro de 1782
O Venerável Mestre Ignaz von Born tomou uma decisão revolucionária: reunir todos
os meses os Mestres pedreiros-livres que desejassem verdadeiramente aceder aos
segredos
da iniciação e estivessem -prontos para deitar mãos à obra.
Página 91
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Os candidatos não foram numerosos, pois poucos nutriam o desejo de desenvolver
uma pesquisa aprofundada sobre os símbolos de que estavam rodeados e cujo
significado
não compreendiam. A maior parte dos pedreiros-livres não acorria à Loja para
praticar esforços prolongados. Contudo, a paciência de Von Born foi
recompensada, pois
um escol começava por fim a assumir os seus deveres.
Nessa noite, cada Irmão leu o seu trabalho, sendo ouvido com atenção pelos
demais Mestres. Thamos estabeleceu uma síntese de tudo quanto fora dito,
acrescentando
alguns elementos essenciais nos quais ninguém tinha pensado. Um redactor foi
encarregado de preservar as ideias que serviriam de base para a próxima Sessão.
Este método inédito conquistou certos espíritos, aptos para progredir, e
descontentou os conformistas satisfeitos com os trabalhos rotineiros das Lojas,
que se limitavam
ao estabelecimento de relações e à participação em festins.
- Contamos com um núcleo de iniciáveis - anunciou Ignaz von
Born a Thamos. - Pouco importa o seu número. O importante é o seu empenhamento,
o seu rigor e a sua solidez. O que resultou do capítulo de Wilhelmsbad?
- Um fracasso. Doravante, a nossa única hipótese de iniciar o Supremo Mago
reside no estabelecimento de uma ou mais Lojas vienenses dignas desse nome.
- Tenho esperança de atingir tal objectivo. Os próximos meses serão decisivos.
Se o imperador não mudar de atitude e continuar a defender a tolerância, nós
conseguiremos
atingir um primeiro grau de coerência. Segundo Gottfried van Swieten, o serviço
secreto que nós tanto receamos não passa de uma miragem.

198

- Desejando estar enganado, devo contudo dizer que não partilho do seu
optimismo. Seja como for, devemos permanecer cuidadosos.
- Mozart faz sucesso. Ontem à noite, ele deu um concerto na Porta da Caríntia e
continua a recolher os favores do público vienense.
- Eis a nova prova que o aguarda - indicou o egípcio. - Se ele se deixar
inebriar pela glória, esta afastá-lo-á do templo, e ele irá engrossar a legião
dos fantoches
imbuídos da sua própria vaidade.

46.
Viena, 10 de Novembro de 1782

- Ignaz von Born está a tomar iniciativas inquietantes - revelou Geytrand a


Joseph Anton. - Segundo o Irmão Angelo Solimão, meu informador, Von Born está a
reunir
um pequeno grupo de Mestres que ele incita a descobrir a linguagem dos símbolos.
- Essa cortina de fumo não se destinará a ocultar determinados objectivos
políticos?
- De modo algum, senhor conde! Von Born é um idealista que acredita piamente na
dimensão espiritual da Maçonaria, para lá das ideologias e das doutrinas.
- Se esse grupinho se consagra à pesquisa esotérica, em que é que ele poderá
ameaçar o poder instituído? Ignaz von Born não me perturba, e eu desejo que ele
tenha
um sucesso perfeito e completo. Parece-me óptima ideia que ele confine os
pedreiros-livres às suas Lojas e que os ate aos seus símbolos!
- Mas a iniciativa de Von Born não me parece inofensiva. Ela poderá formar
espíritos fortes, rebeldes a qualquer tipo de autoridade.
Joseph Anton não subestimou o comentário de Geytrand, o qual não podia
confessar-lhe como desejava ele próprio poder participar naquela aventura. A
atitude de Geytrand
era ditada pela amargura que ele sentia: almejava destruir as Lojas desejosas de
viver os Mistérios Supremos.
200
- Segue o rasto desse Ignaz von Born - ordenou Anton. - Se ele der um passo em
falso, prevenirei de imediato o imperador.
Viena, 4 de Dezembro de 1782
Página 92
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
A azáfama prosseguia: na véspera, Wolfgang e Constance tinham-se mudado para um
novo apartamento, no terceiro andar de um prédio pertencente ao barão Wetzlar,
e,
nessa noite, o músico tocava em casa de um dos aristocratas mais considerados de
toda Viena, o príncipe Galitzin. O seu palácio na Krugerstrasse acolhia amiúde
músicos,
que aí se cruzavam com eminentes personagens do mundo cultural.
- Estou feliz por vos receber em minha casa! - disse o príncipe a Mozart, com um
largo sorriso. - O vosso Rapto do Serralho é uma maravilha, e estou certo de que
haveis de nos oferecer mais obras magníficas! Agora vamo-nos todos calar para
vos poder ouvir.
Tantas melodias cruzavam sem cessar a mente do compositor, que ele não teve
nenhuma dificuldade em desenvolver variações de uma tal riqueza que o auditório
ficou
subjugado. O apoio incondicional do príncipe Galitzin vinha consagrar Mozart
como um dos compositores predilectos dos vienenses.
Num canto de um dos 11 salões de aparato do palácio, Wolfgang vislumbrou dois
homens envolvidos num aceso diálogo: o influente intendente-geral dos
espectáculos
e... Thamos!
Tendo hesitado primeiro, Wolfgang acabou por se aproximar de ambos.
- Juntai-vos a nós, meu caro Mozart - atalhou o egípcio. - O conde Franz Xaver
Rosenberg-Orsini deseja falar-vos de um projecto.
- Não gostaríeis de escrever uma ópera italiana? - perguntou o intendente-geral.
- Depois do sucesso da vossa ópera alemã, uma obra desse tipo projectar-vos-ia
junto
de um público ainda mais lato.
- A ideia é sedutora - confessou Wolfgang -, mas precisaria de um excelente
libreto.
- Não faltam poetas talentosos na corte.
Ao cabo de algumas trivialidades trocadas a propósito da vida mundana, o conde
Rosenberg-Orsini foi conversar com alguns notáveis. Mozart permaneceu a sós com
o
egípcio.
201

- Desaprovais o meu casamento e a minha tentativa de conquistar Viena?


- Porque te condenaria eu, a não ser que te afastasses do que é essencial?
- As vossas ausências perturbam-me. Não duvideis de que eu continuo à procura do
caminho conducente ao templo dos sacerdotes do Sol.
, - O teu destino decide-se aqui em Viena. Até agora, não te tens saído mal.
Fundar uma família e tornar-se um músico apreciado são tarefas difíceis que
requerem
muita energia.
- Só a música me guia, como vós bem sabeis, e eu não me deixarei apanhar na
armadilha de uma glória fugaz!
- Essa é uma armadilha mortal, não duvides.
- Mesmo se é verdade que as minhas últimas composições têm ( um certo brilho
mundano, eu não renunciei nem à minha verdadeira busca, nem aos ensinamentos de
Johann-Sebastian
Bach. Mas levarei ainda um certo tempo até conseguir integrá-lo dentro do meu
próprio pensamento.
- Sê em simultâneo paciente e impaciente, e não te perderás.
- Mais uma vez, o fio da navalha!
- Um dia, espero, viverás por inteiro esse símbolo.
Weimar, 10 de Dezembro de 1782
Após o encerramento da célebre Loja Amália, como reagiriam os seus ilustres
membros, entre os quais se contavam Goethe, tão orgulhoso de ter sido enobrecido
a 10
de Abril e de frequentar a aristocracia, e Bode, uma das figuras de proa da
Estrita Observância templária, moribunda na sequência do capítulo de
Wilhelmsbad?
Thamos tinha a esperança de que alguns Irmãos aproveitassem essa peripécia para
Página 93
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
reerguer o templo, libertando-se dos escolhos do passado.
, Mas depressa se desencantou.
Longe de optar pela pesquisa simbólica, os pedreiros-livres de Weimar acederam
ao que restava da "Ordem interna" da Estrita Obser-
202
vância e passaram o tempo a celebrar cerimónias tão pomposas quão vazias. Só
contavam o aparato, o cenário, as vestes sumptuosas e os títulos retumbantes.
Fernando de Brunswick e Carlos de Hesse não tinham nem a coragem nem o desejo de
inverter tal tendência. Conservadores impregnados das suas prerrogativas
antiquadas,
os pedreiros-livres de observância templária contentavam-se com um sonho
desfeito.
Viena, 31 de Dezembro de 1782
Para alcançar o sucesso, afirmava Wolfgang ao seu pai, épreciso escrever coisas
compreensíveis que poderiam ser cantadas logo de seguida por um condutor de
tipóia,
ou então de tal modo incompreensíveis que agradem a toda agente, precisamente
porque nenhuma criatura razoável as poderá compreender. Wolfgang manteve a linha
de
conduta que já havia enunciado: não se preocupar com os elogios ou as críticas,
viessem de onde viessem, e confiar apenas nos seus sentimentos. Ele gostaria de
escrever,
mas sob pseudónimo, um pequeno livro de crítica musical, com alguns exemplos.
Mas não, tinha uma ideia melhor!
Após terminar um novo concerto para piano93, Wolfgang meditou no seu último
encontro com Thamos. Bastante brilho, bastante sedução. Tal como fizera nove
anos antes,
Wolfgang entregou as suas exigências a um quarteto de cordas94, escolhendo a
tonalidade de sol maior, o que tornou a obra muito sombria. Em Salzburgo, ele
rejeitara
este género musical. A audição recente de obras de Haydn incitara-o a regressar
aos quartetos de cordas, já com a sua linguagem num ponto de maturidade.
Desde o início, Wolfgang entreviu um longo e laborioso esforço. Pormenor
invulgar, ele rasurou muito, corrigiu-se, voltou atrás e alimentou a sua música
com as suas
próprias interrogações.
De que lhe serviriam sucesso e fortuna, se Thamos lhe não abrisse a porta do
templo? Conseguiria ele conferir uma verdadeira unidade à sua obra, à sua vida e
à sua
busca espiritual?

93 Nº 13, em dó maior, K. 415.


94 K. 387.
203
Apesar das dificuldades imprevisíveis, o compositor decidiu trabalhar numa série
de seis quartetos dedicados a Joseph Haydn. Como não se tratava de uma
encomenda,
e como queria experimentar uma grande diversidade de caminhos, Wolfgang levou
todo o tempo necessário. Ao longo dos meses seguintes, a arte do quarteto
guiá-lo-ia
em direcção a um novo horizonte, desprovido de concessões.
47.
Viena, 8 de Janeiro de 1783
A gravidez de Constance decorria sem percalços. Feliz por estar prestes a dar à
luz, a jovem mulher regozijava com os sucessos do marido, que dava agora aulas a
quatro alunos ricos.
Na véspera, tinha-se dado uma nova representação de O Rapto do Serralho, que
passara a ser peça comum do repertório. E Wolfgang estava a preparar a
subscrição dos
Página 94
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
seus três últimos concertos para piano, na esperança de conseguir amealhar um
bom dinheiro.
Ele estava a atingir todos os seus objectivos: notoriedade crescente,
independência financeira, liberdade de criação. No entanto, ele parecia
atormentado.
- O que é que te preocupa?
- Salzburgo, sempre Salzburgo! Não me sinto ainda pronto para lá voltar. Eis o
que escrevi ao meu pai para tranquilizá-lo acerca da minha determinação e do meu
compromisso
de te oferecer uma obra que será tocada quando estivermos lá: Fiz tal promessa
verdadeiramente do fundo do meu coração e espero mesmo vir a cumpri-la. Quando a
fiz
a minha mulher ainda estava doente, mas como eu tinha afirme resolução de a
desposar assim que ela melhorasse, podia facilmente fazer aquela promessa. Como
prova
da realização do meu voto, tenho já escrita metade da partitura de uma missa.
Em seguida, Wolfgang voltou ao trabalho e compôs a ária dramática95 Minha
esperança adorada... Ah, não imaginas quanta pena tenho!
95 K. 416.
205

- A quem é destinada esta ária?


- À tua irmã Aloysia, que está de regresso a Viena. Ela cantá-la-á dia 11 no
Mehgrube, o casino da fábrica de moagem.
- O texto não será um bocado... ambíguo?
- Oh não! - exclamou Wolfgang. - Só te amo a ti e a mais ninguém. Sofri muito
por Aloysia, e já não nutro por ela nenhum sentimento, nem afeição, nem ódio,
somente
estima com relação a uma excelente cantora capaz de interpretar correctamente as
árias difíceis.
- Felizmente - considerou Constance -, tu não sabes mentir.

Munique, 11 de Janeiro de 1783


Em Atenas, nome de código de Munique, na presença de Adam Weishaupt, de Adolph
von Knigge, do filósofo Franz Xaver von Baader, Grão-Mestre da Loja local, e de
Thamos,
conde de Tebas, Bode foi iniciado na Ordem dos Iluminados da Baviera, única
organização maçónica onde não entrara nenhum jesuíta.
Todavia, os textos96 louvavam o exemplo de Jesus, corajoso ao ponto de
sacrificar a sua vida em prol de um ideal. E a cerimónia encerrava com uma
imitação da Última
Ceia, em que os Irmãos comungavam comendo pão e bebendo vinho.
Já inquieto com esses factores, Bode ficou-o ainda mais ao descobrir a
designação do grau reservado aos verdadeiros Iluminados: o de Sacerdote97!
O ensinamento ministrado durante os Mistérios Menores sossegou Bode, pois
rejeitava a religião cristã, o dogmatismo e a tirania de todas as Igrejas,
denunciava as
superstições impostas pela crendice, e pregava o livre exercício da razão. O
homem podia redimir-se da sua queda e erguer na terra um reino celeste do qual
seriam
excluídos os déspotas, destinados a desaparecer sem recurso à violência.
Toda a revolução política era vã e destrutiva, afirmava Von Knigge. Só as
escolas secretas da Sabedoria permitiriam que os homens viessem a atingir a
maioridade
e que se tornassem realmente senhores dos
96 Grau de Cavaleiro escocês ou Iluminado dirigente.
97 Primeiro grau da terceira categoria.
206
seus destinos. Então, o mundo passaria a ser povoado por seres sensatos e
conheceria por fim a felicidade universal.
Em seguida, Bode foi acorrentado e introduzido na Loja como se fosse um escravo
fugitivo, pedindo para ser libertado do Estado, da religião e da sociedade. A
Página 95
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sua
única exigência era a liberdade. Graças à iniciação, ele tornar-se-ia finalmente
um homem e deixaria de estabelecer distinção entre reis, nobres e gente comum. O
verdadeiro "Príncipe"98 abolia as castas.
Bode ficou encantado.
Ele subscrevia na íntegra tais ideias, e planeava difundi-las com a sua habitual
facúndia, com o objectivo de atrair o maior número possível de Irmãos para os
Iluminados,
único ramo da maçonaria capaz de modificar a realidade.
No decurso do banquete oferecido aos iniciados, Adam Weishaupt revelou os seus
projectos.
- Desejo organizar um sistema de Lojas confederadas, pois temos todo o interesse
em estabelecer no seio da Maçonaria uma arquitectura ecléctica. Então, poderemos
ter tudo o que quisermos.
- Desconfiemos dos aristocratas - interveio Bode - e mantenhamo-los nos graus
inferiores.
Weishaupt fez de conta que aprovava essa linha dura, sabendo que mais valia
adaptar-se às circunstâncias e ganhar a confiança de alguns grandes senhores.
- Sejamos Aufklaerer, ou seja, batedores, propagadores da luz - estimou o
filósofo cristão Von Baader -, e não revolucionários violentos. A nossa
prioridade será
estabelecer um equilíbrio entre uma religião razoável e a exigência de lógica. A
Igreja de Pedro e o catolicismo temporal corromperam a nossa sociedade, que tem
de aprender a pensar por si própria e a libertar-se de todo o tipo de opressão.
Estava-se a milhares de léguas de distância do capítulo de Wilhelmsbad e da sua
atmosfera de deliquescência. Sob o impulso de Weishaupt e de Von Knigge, os
Iluminados
da Baviera formavam uma falange coerente, formada em ordem de marcha, dotada de
objectivos precisos.
98 Grau de Príncipe ou de Regente, o segundo dos Mistérios Menores.

207
Thamos consultou o barão Adolph von Knigge, autor dos rituais.
- Depois de definido o ideal - observou o egípcio -, convém conferir-lhe um
utensílio ritual capaz de o concretizar. Suponho que isso se verificará nos
Mistérios
Supremos, nos quais se revelará o esoterismo da Ordem?
- Neles revelarei a verdadeira natureza da magia e da realeza, termos
infelizmente empregues a torto e a direito.
- Já haveis acabado a redacção desses Mistérios?
- Ainda me encontro longe de tal! O mais urgente, hoje, consiste em recrutar o
maior número possível de Irmãos, seja entre os profanos que nós formaremos nos
Seminários,
seja entre os pedreiros-livres que serão directamente admitidos nos graus
superiores.
- Não será também da maior urgência estabelecer esses graus de Mago e de Rei?
Segundo a tradição iniciática, convém começar a obra por cima e pelo essencial.
O barão Von Knigge pareceu incomodado.
- Por agora, e de acordo com Weishaupt, a nossa preocupação maior consiste em
reforçar a Ordem, em conferir-lhe bases sólidas e em partir à conquista da
Maçonaria.
Quantos mais Iluminados houver, ) mais as nossas ideias se imporão.
48.
Viena, 15 de Janeiro de 1783
- Estás certo de que os convidados virão? - inquietou-se Constance.
- Certíssimo! - declarou Wolfgang. - Os vienenses apreciam as ideias originais.
- Talvez apreciem a ideia de um baile em nossa casa, das 18.00 horas até às 7.00
horas, mas gostarão menos da ideia de ter de pagar dois florins pelo direito de
admissão!
- Tal montante pagará as despesas de organização. Vais ver, eles beberão e
comerão muito.
A baronesa Waldstãtten foi a primeira a chegar e abraçou Constance.
Página 96
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- A futura mãe está esplêndida. Vai ser divertido passar uma noite louca em
vossa casa!
Chegaram de seguida Aloysia e Joseph Lange, o barão Wetzlar, proprietário do
prédio e admirador confesso do compositor, o tenor e pedreiro-livre Adamberger,
o libretista
Stephanie, o Jovem, e muitos outros conhecidos do casal Mozart, que não queriam
nem por nada perder aquela festarola.
Quando a animação começava a tomar conta do evento, Thamos teve uma aparição
discreta. Apesar de um ligeiro abuso de punch, Wolfgang guardava uma certa
lucidez.
- O serão promete ser divertido - considerou o egípcio.
209
- Presumo que não aprecieis muito este género de diversões.
- Há muito, muito tempo também eu fui jovem, e não posso recriminar-te por
gozares a vida.
- Não estou esquecido do caminho do templo!
- Os teus convidados chamam por ti.
Viena, 27 de Janeiro de 1783

No dia em que completava 27 anos, Wolfgang voltou a trabalhar nos seis quartetos
que decidira compor para ele próprio, sem saber que um dia eles seriam tocados
em
público. Isso pouco lhe importava, pois o que ele queria era explorar uma nova
dimensão, sem se preocupar com as reacções de um auditório.
Para lá da felicidade e da infelicidade, da alegria e da dor, o andante
cantabile do quarteto em sol maior99 evocava um universo que Wolfgang ainda não
conhecia
mas do qual se aproximava em passadas largas. Esta música levava-o em direcção
ao templo, permitindo-lhe ultrapassar obstáculos e abrir portas. Talvez o
quarteto
fosse, no seu conjunto, como um vasto portal de que ele começasse a poder
desenhar os contornos.
Ao tornar esse portal visível mediante recurso às notas musicais, Wolfgang
principiava a discernir a sua solenidade e importância. Mesmo no allegro do
movimento
final100, ele sentiu uma presença. Ainda longínqua, essa voz tornava-se quase
audível.

Viena, 5 de Fevereiro de 1783


Na véspera, houvera reposição de O Rapto do Serralho, no Burgtheater,
confirmando-se o sucesso da ópera. Em contrapartida, não viera nenhuma resposta
de Paris, cidade
que, definitivamente, parecia não querer nada com Mozart, mesmo depois de ele
ter sido reconhecido como um compositor brilhante. Ele nunca voltaria a pôr os
pés
naquele país de malcriados, tão imbuídos deles próprios que desdenhavam o resto
do mundo e só pensavam em dar-lhe lições!
99 K. 387.
100 O final deste movimento prefigura o tema do trio "Wie? Wie? Wie?"àt A Flauta
Mágica.
210
Wolfgang continuava a sentir-se atraído pela Inglaterra, mas não estava a
encarar a hipótese de viajar em breve, pois precisava de consolidar a sua
posição em Viena.
Não lhe tendo ninguém entregue um bom libreto em italiano e não tendo as suas
próprias pesquisas levado a resultado nenhum, Wolfgang começou a escrever uma
nova
ópera em alemão101, segundo uma comédia de Goldoni, cujo primeiro acto já se
encontrava traduzido. Um novo sucesso consagrá-lo-ia como especialista em
Singspiel,
drama alemão simultaneamente cantado e falado, género cujaprodução o imperador
Página 97
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
José II havia durante tanto tempo estimulado.
Um projecto para o grande público, a sua série de quartetos, outros concertos já
presentes na sua mente, as encomendas, as pequenas obras de circunstância...
Wolfgang
não pensava em descansar. Felizmente, algumas horas de sono conseguiam repor a
energia necessária para o desempenho dos seus múltiplos trabalhos.
Viena, 11 de Fevereiro de 1783

Camareiro palatino, conselheiro privado, embaixador do príncipe-eleitor junto da


corte imperial, o barão Otto von Gemmingen, natural de Mannheim, fundou em Viena
a sua própria Loja maçónica, chamada Para a Beneficência102, com a ajuda de
Ignaz von Born e de Thamos, conde de Tebas. Reunindo apenas um número limitado
de Irmãos,
tal Loja permitia a experimentação dos rituais que o mineralogista e o egípcio
preparavam há longos anos.
- O Supremo Mago está a aproximar-se da porta do templo - indicou Thamos -, e
nós devemos continuar a trabalhar sem esmorecer. Mas eu gostaria que ele
passasse primeiro
por uma fase preparatória.
-Porque não recorrer para esse efeito ao Seminário dos Iluminados da Baviera? -
sugeriu Otto von Gemmingen que, em Mannheim, havia proposto a Mozart musicar
Semiramis,
drama com alusões iniciáticas.
- Por iniciativa do professor de ciências políticas Joseph von Son-nenfels -
esclareceu Von Born -, os Iluminados têm vindo a adquirir uma influência
crescente nas
nossas Lojas, mas continuam a temer a intervenção da polícia e, por isso,
refugiam-se atrás do segredo ma-
101 K. 416a, obra perdida.
102 Zur Wohltätikgeit.

211
çónico. O combate que eles levam adiante contra a injustiça, a tirania e o
espartilho das crenças religiosas atrai a simpatia de um certo número de Irmãos.
- Tive ocasião de conhecer alguns dirigentes dos Iluminados - revelou Thamos -,
e interrogo-me sobre a sua sinceridade e sobre a natureza dos seus verdadeiros
objectivos,
tanto mais que o topo do seu edifício ritual ainda não foi concretizado.
Todavia, não me oponho a um contacto do Supremo Mago com os responsáveis por um
Seminário.
I - Para não corrermos nenhum risco - preconizou Von Born -, devemos evitar
Viena. Como o barão Van Swieten não conseguiu apurar nada acerca de um eventual
serviço
secreto de vigilância da Maçonaria, mais vale apostarmos noutra cidade. O melhor
sítio parece ser Salz-burgo, onde existe uma Loja chamada Para a Previdência103,

fundada por um grupo de Iluminados e ainda desconhecida das autoridades.


- Salzburgo não é propriamente a cidade preferida do Supremo Mago - relembrou
Thamos -, mas ele deverá ir até lá em breve para rever o seu pai e a sua irmã.
- Assim que soubermos a data da viagem - prometeu Otto von Gemmingen -,
tomaremos as providências adequadas.
- Sobretudo - recomendou Von Born -, tomemos as maiores precauções. Todo o erro
poderá ter consequências catastróficas.
- O Supremo Mago é menos frágil do que parece - indicou Thamos. - Muitos
consideram-no como um músico ligeiro e mundano, sem perceber a sua verdadeira
natureza.
O Seminário será para ele um local propício à reflexão e à leitura de muitas
obras. Ele regalar-se-á nesse ambiente, e esta experiência constituirá um
primeiro passo
no sentido da sua verdadeira iniciação.
- Se os Iluminados enveredarem pelo caminho da política - considerou Otto von
Gemmingen -, arriscam-se a atrair inúmeros aborrecimentos, para eles e para a
toda
a Maçonaria.
Página 98
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- O fundador dos Iluminados, Weishaupt, parece puxar numa determinada direcção,
ao passo que o redactor dos rituais, Von Knigge, puxa para outro lado. Dentro em

breve saberemos se esta divergência, até agora surda, desembocará numa


reconciliação ou, pelo contrário, numa ruptura.

103 ZurFiirsicht.
49.
Viena, 15 de Fevereiro de 1783
O dia havia começado bastante mal, já que Johann Thomas Trattner,
impressor-livreiro e marido de uma das alunas de Mozart, pedia a este o
pagamento do empréstimo
que lhe havia concedido. Sofrendo de um pequeno percalço financeiro por causa do
custo das cópias dos seus três concertos para piano cuja subscrição, de preço
demasiado
alto, havia sido um fracasso, Wolfgang foi ter com a baronesa Waldstãtten, que o
ajudou de imediato.
De volta a sua casa, Wolfgang foi abordado pelo barão Wetzlar, seu senhorio.
- Preciso de recobrar o apartamento que ocupais e achei-vos um novo apartamento
num prédio chamado À Bênção do Anjo104. É mais pequeno, mas é confortável e bem
situado.
Ofereço-vos a mudança e três meses de renda.
Diante de tamanha boa vontade, Wolfgang teve de aceitar. Mudaria de casa logo na
manhã seguinte, dia em que o Burgtheater retomaria O Rapto do Serralho.
Apesar do cansaço e das preocupações inerentes à mudança de casa, Wolfgang
escreveu ao seu pai, pedindo-lhe a partitura de Thamos, Rei do Egipto, com a
qual sonhara
toda a noite: Estou muito aborrecido por não poder aproveitar a música que
escrevi para Thamos! Esta peça, não tendo tido sucesso, ficou relegada entre as
obras
desacreditadas. É mesmo pena!

104 Nº 1179 auf dem Kohlmarkt (hoje nº 7).


213

A confraria dos sacerdotes e das sacerdotisas do Sol não lhe abriria em breve
novas portas? Como previra o egípcio, nenhuma das obras que compusera no passado
deixara
de ter utilidade. Pouco a pouco, o trabalho que fora acumulando começava a tomar
sentido.

Weimar, 20 de Fevereiro de 1783


Johann Joachim Christoph Bode triunfava. Não só implantara em Weimar uma pequena
"colónia" de Iluminados, como conseguira recrutar dois adeptos ilustres, o duque

Carlos-Augusto em pessoa e o seu ministro e escritor Goethe. O primeiro tomara o


nome de Esquilo e o segundo o de Ábaris. Claro que Bode lhes prometera que
acederiam
rapidamente aos graus superiores, e lançou-se num inflamado discurso acerca da
grandeza do homem livre e da necessidade de modificar as mentalidades, apagando
as
escleroses do passado.
Goethe e o duque Carlos-Augusto estavam dispostos a aceitar as críticas
dirigidas contra uma certa Igreja e uma certa aristocracia decadente. Lutar
contra a ignorância,
combater a corrupção e a incompetência pareciam-lhes opções necessárias, desde
que tal combate tivesse lugar no terreno das ideias e não recorresse à
violência.
Bode não desejava nada mais. Fascinado pela personalidade dos seus augustos
interlocutores, assegurou-lhes que o pensamento de Adam Weishaupt, fundador da
Ordem
dos Iluminados e homem destinado a um futuro brilhante, coincidia perfeitamente
com as ideias que eles defendiam.

Página 99
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Munique, 21 de Fevereiro de 1783
Carlos de Hesse resolveu-se a tomar o caminho de Ingolstadt ao encontro do
professor Adam Weishaupt, cujas qualidades eram louvadas por muitos
pedreiros-livres.
Segundo os seus informadores, o fundador daquele novo ramo da Maçonaria não se
opunha ao cristianismo.
Se os Iluminados, então em pleno arranque, se quisessem aliar à Estrita
Observância, Carlos de Hesse consideraria a hipótese de realizar algumas
concessões, desde
que se preservasse a via mística que conduzia até Jesus Cristo.
214
Num primeiro momento, o príncipe considerou que os rituais apontavam nesse
sentido. Depois, ao tomar conhecimento dos "Mistérios Menores", compreendeu que
o verdadeiro
objectivo de Weishaupt era a destruição da Igreja!
Furibundo, ele interpelou o fundador dos Iluminados.
- Sois um homem perverso e perigoso!
- Meu Irmão...
- Não me chameis assim, pois não temos nada em comum. Eu sou um discípulo do
Senhor e conduzo ao Seu encontro uma Ordem respeitosa. Quanto a vós, sois o
seguidor
de Satã! A Estrita Observância há-de combater os Iluminados com todas as suas
forças.
Weishaupt não ficou nada contente com este desenlace. Teria preferido que Carlos
de Hesse se transformasse num dos seus principais aliados, talvez mesmo no seu
porta-voz.
Agora, consumada a ruptura, era preciso aceitá-la e assistir à agonia da
Maçonaria templária, voltada para o passado e minada pelas crenças cristãs.
Viena, 25 de Fevereiro de 1783

Wolfgang teve por fim oportunidade de conversar demoradamente com Joseph Haydn,
que acabara de ultrapassar meio século de existência mas permanecia como
músico-lacaio
do príncipe Esterházy.
- Dou-vos os parabéns pela vossa coragem, Mozart. Ser independente pareceu-me
sempre uma tarefa impossível.
- Tendes a sorte de servir um bom amo, que vos concede inúmeras liberdades. Eu
era escravo de um tirano. Se não tivesse rompido os grilhões que me
acorrentavam,
estaria morto para a criação musical.
- Tudo quanto ouvi da vossa produção agradou-me imenso. Vindo de Haydn, este
cumprimento fez Wolfgang corar.
- Os vossos últimos quartetos tiveram em mim um efeito avassalador - confessou
Mozart -, e estou a estudá-los para me aperfeiçoar.
- Não vos subestimeis, Mozart. Não obstante a vossa idade, o profundo
conhecimento que tendes de múltiplos géneros musicais é absolutamente
surpreendente. Espero
que estejais a preparar uma nova ópera. O autor de O Rapto do Serralho não deve
de modo nenhum parar a meio de um caminho tão frutuoso.
215
Wolfgang falou dos seus projectos, com a excepção dos seis quartetos que
dedicaria a Joseph Haydn. Os dois músicos almoçaram juntos, beberam um excelente
vinho branco
que combinava na perfeição com a truta dos Alpes fumada, e divertiram-se com a
evocação dos cortesãos hipócritas e dos intérpretes limitados!
Nasceu entre eles uma amizade profunda, fundada sobre uma estima recíproca e
sobre o amor de um tipo de música capaz de elevar a alma. Eles sentiam o mesmo
desejo
de moldar obras rigorosas e cinze-) ladas, como se fossem artífices capazes de
unir o espírito e a mão.
Viena, 4 de Março de 1783
Página 100
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Na véspera, Wolfgang tinha ouvido um quarteto de cordas tocar a sua partitura
burlesca para uma pantominice de Carnaval105, durante a qual o compositor,
disfarçado
de Pantalon, dera a réplica a Aloysia Lange, vestida de Colombina e seduzida por
Arlequim. Como de costume, o baile mascarado organizado no salão da Redoute
reunia
toda a boa sociedade vienense, e a diversão era geral.
Na manhã seguinte, um decreto imperial dissipou brutalmente os ecos da festa: a
Ópera alemã de Viena era dissolvida. Por outras palavras, já não se punha a
questão
de compor um Singspiele. de tratar um tema como havia feito para O Rapto do
Serralho. Wolfgang deitou para o lixo o seu projecto, que já se encontrava
bastante adiantado.
A condessa Thun revelou ao músico desconsolado as razões da decisão imperial. O
compositor António Salieri, que só apreciava as óperas italianas, conseguira
convencer
o imperador a renunciar à ideia da ópera alemã, desprovida de futuro.
Mais uma vez, a condessa deplorou a fraqueza de carácter de José II, demasiado
influenciável. Por que dava ele ouvidos aos medíocres e aos lisonjeadores?
105 K. 446.
50.
Viena, 16 de Março de 1783
- Estás magnífico - disse Constance a Wolfgang.
- Ainda nem sequer estou penteada!
- Estamos no ponto de nos atrasarmos. -Já me despacho.
Dia 11, Wolfgang havia participado numa academia do Burgtheater juntamente com
Aloysia Lange, intérprete de uma das suas árias106. No programa figuravam também
a
Sinfonia Parisiense107 e o concerto para piano em dó108. Encantado, o público
havia obrigado o pianista a repetir o rondó em ré109, e um dos ouvintes, que era
nem
mais nem menos que o grande Gluck em pessoa, declarara ter ficado a tal ponto
entusiasmado que convidara para almoçar o compositor, a cantora e os respectivos
cônjuges.
Que honra, vinda de tão ilustre compositor!
- Agora - anunciou Wolfgang -, estamos mesmo atrasados. -Já estou pronta!
O turbilhão continuava. A academia de dia 12, em casa do conde Johann Nepomuk
Esterházy, pedreiro-livre a quem Thamos aconselhara receber e observar Mozart,
teve
um belo sucesso. E seguiam-se

106 K. 294.
107 K. 297.
108 K. 415.
109 K. 382.
217
os maravilhosos domingos em casa do barão Gottfried van Swieten, à descoberta de
Haendel e de Johann-Sebastian Bach!
- Como é que eu estou?
- Cada dia mais linda. Se não fosses já casada, gostaria de te desposar.
Ele não resistiu à vontade de a beijar.
- O meu penteado!
Por sorte, Aloysia Lange não era uma fanática da pontualidade, e Gluck estava a
par do carácter imprevisível das divas.
Frankfurt, 20 de Março de 1783
As cabeças pensadoras da Ordem dos Iluminados da Baviera queriam reunir-se com
vários Mestres das Lojas de Frankfurt, até agora respeitosos dos ritos e
regulamentos
ingleses.
Acompanhado pelo barão imperial Adolph von Knigge, pelo professor Joseph von
Página 101
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Sonnenfels e pelo tribuno Bode, Adam Weishaupt apresentou aos Irmãos um projecto
com
futuro, indispensável para o desenvolvimento da Maçonaria. Não acabara um
pensador e homem político da envergadura de Goethe de ser iniciado nos ritos dos
Iluminados,
sem os quais as Lojas começavam a se encerrar num passado revoluto?
Derradeiro bastião submetido à influência inglesa, as Lojas de Frankfurt
aceitaram fundar uma "Aliança Ecléctica" que preservava a sua autonomia,
permitindo-lhes
contudo adoptar a hierarquia secreta dos Iluminados.
Weishaupt encontrava-se agora no âmago da Maçonaria. Como fora longo o caminho
percorrido desde a fundação da Ordem, durante tanto tempo limitada a um punhado
de
membros! Hoje, nenhum Irmão ignorava a poderosa corrente de ideias encarnada por
Weishaupt. Agora, era preciso cortar os ramos mortos, de forma a fortalecer a
árvore
maçónica e conferir-lhe novo vigor.
Amanhã, os Iluminados reinariam sobre toda a Europa. Preparava-se, a partir das
Lojas, uma tomada de poder que Weishaupt esperava que pudesse decorrer sem
derramamento
de sangue. Mas saberiam os príncipes e os arcebispos, em breve escorraçados dos
seus palácios, abdicar sem recurso à violência?
218
Viena, 23 de Março de 1783

Na presença do imperador José II e de Gluck, que se tornara fervoroso adepto de


Mozart, Wolfgang ofereceu no Burgtheater um "concerto de beneficência" durante o

qual dirigiu a sinfonia Haffner e tocou dois concertos para piano110,


improvisando de seguida umas variações sobre uma ária de Gluck, o que teve o
condão de agradar
ao célebre compositor.
Não havia dúvida: a sociedade vienense adoptara Mozart.
Wolfgang ousara esperar por uma contratação para a corte de Viena, mas o
imperador contentou-se em lhe enviar 25 ducados. José II, contudo, esteve
novamente presente
durante a academia da cantora Theresa Teyber, no dia 30 de Março, e pediu a
Mozart que tocasse outra vez o seu concerto em dó111.
Não deixava um interesse tão manifesto prever um futuro brilhante? A 2 de Abril,
o editor Artaria publicou seis sonatas para piano e violino112 que seriam
tocadas
nos salões.
Viena, 20 de Abril de 1783

- As hostilidades estão abertas! - declarou Geytrand a Joseph Anton. - Eu


perguntava a mim próprio quanto tempo mais os pedreiros-livres ficariam parados
perante
os avanços dos Iluminados da Baviera. Foi a Rosa-Cruz de Berlim a lançar a
ofensiva, com o apoio de um dos seus membros, Frederico Guilherme II em pessoa.
- Trata-se de uma simples espadeirada na água ou de um verdadeiro ataque?
- A Rosa-Cruz denuncia a duplicidade dos Iluminados e pretende revelar os seus
verdadeiros objectivos, publicando circulares que os acusam de aderir às teorias
de
Voltaire e de Helvécio, de exigir uma ilusória liberdade para todos, de minar os
fundamentos da religião cristã e de pregar o advento de uma Maçonaria universal
cujo epicentro se si-
110 K. 415 e 175.
111 K. 415.
112 K. 296 e K. 376-380.
219
tuaria na Áustria. Ao cabo deste processo, os Iluminados proclamarão a
unificação da nação alemã, que passarão a governar a seu bel-prazer. Os piores
temores de
Página 102
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Joseph Anton viam-se assim confirmados. Os Iluminados estavam a transformar a
Maçonaria numa máquina de guerra, destinada a abalar os tronos.
- Um pormenor interessante - acrescentou Geytrand. - O chefe destes Iluminados
residiria em Viena.
- Como se chama?
- Joseph von Sonnenfels.
- - O professor de ciência política na universidade?
- Ele mesmo.
Anton consultou o respectivo ficheiro.
- Pedreiro-livre e jurista de primeira água, muito considerado pelo imperador.
Intocável, portanto. Ele obteve a abolição da tortura em 1776, devolveu alento
ao
Burgtheater, banindo dele as comédias grosseiras, e defendeu nas suas
publicações, as teses da filosofia das Luzes. Intocável e temível.
- Ele pode não gozar para sempre dessas altas protecções - sugeriu Geytrand.
- Vigia-o, mas com a maior discrição. Se ele promovesse qualquer escândalo, o
nosso serviço correria o risco de ser desmantelado.
- Estes Iluminados estão a ir longe de mais. Obrigados a avançar em terreno
descoberto, acabarão por cometer erros fatais.
- Mas era preciso conseguir decifrar os seus pseudónimos! Geytrand esboçou um
ligeiro sorriso.
- Graças ao nosso amigo Solimão, dispomos de quatro identificações primordiais:
Espártaco é Adam Weishaupt, o fundador da Ordem; Fílon, o barão Von Knigge;
Fábio,
Von Sonnenfels; e Ábaris, Goethe.
- Espártaco... Bem, pelo menos, o chefe dos Iluminados não esconde as suas
intenções belicosas! E eis que ele sai da sombra ao afirmar o seu intento de
derrubar
Roma, ou seja, o poder instituído. Tens razão, Geytrand, os adeptos desta seita
sentir-se-ão menos à vontade em terreno descoberto. Não podendo desempenhar para
sempre o papel de eminências pardas, eles terão de revelar as suas verdadeiras
intenções, que não deixarão de chocar o imperador.

220
- Será ele capaz de reagir atempadamente?
- Fornecer-lhe-ei uma série de relatórios de tom muito moderado, para que ele
não me possa acusar de suspeitas excessivas. A pouco e pouco, o imperador
começará
a desconfiar desses intelectuais demasiado influentes e do exército que eles
pretendem recrutar.
51.
Viena, 24 de Abril de 1783
Enquanto a última produção de António Salieri, La Scuola dei Gelosi113, se
revelava como um autêntico sucesso, provando aos vienenses a superioridade da
ópera italiana,
Wolfgang e Constance mudavam-se para uma casa maior, no primeiro andar da
Burgischen Hause, Juden-platz, número 244.
A gravidez de Constance decorria sem problema de maior, e a futura mãe apreciava
sobremaneira a sua nova residência. O seu marido preocupava-se enternecidamente
com a sua saúde, e o casal passeava amiúde no Prater, onde assistia a
espectáculos de animais amestrados. Juntos, percorriam em passo estugado a
grande alameda de
castanheiros que culminava num semicírculo de onde partiam cinco outras alamedas
menores. Ao menor sinal de cansaço da futura mãe, eles sentavam-se numa taberna
e Wolfgang jogava ao chinquilho com parceiros amadores.
Constance gostava de ver o marido apanhar ar, sabendo embora que ele continuava
a compor dentro da sua cabeça, enquanto andava ou jogava.
- Teremos nós dinheiro suficiente para pagar a renda e para manter o nível de
vida que corresponde ao teu estatuto? - inquietou-se a jovem.
113 A Escola dos Ciumentos.
222

Página 103
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Seguindo os conselhos de alguns amigos, eu escrevi ao editor parisiense Sieber
e propus-lhe a publicação dos meus três últimos concertos para piano pelo preço
de 30 luíses, e da minha série de seis quartetos pela quantia mínima de 50
luíses.
- Não serão tais preços excessivos?
- Se eu não valorizar as minhas obras, acabarei por ser desconsiderado. E se
esse editor não aceitar as minhas condições, procurarei outro.
Constance aprovou o seu marido. Afinal, Mozart não era um zé-ninguém.

Viena, 6 de Maio de 1783


- Já folheei mais de uma centena de libretos - confessou Wolf-gang a Thamos -, e
não encontrei um único digno de interesse. Estou tão desesperado que pedi ao meu
pai que recorresse ao medíocre Varesco. Pode ser que se produza um milagre e ele
tenha uma boa ideia.
- Pois nós trataremos de organizar esse milagre - decretou o egípcio.
- Recordo-vos que o imperador não quer mais nenhum Singspiel, mas antes uma
ópera italiana! Ele caiu por completo sob a influência de António Salieri,
perfeito cortesão
e compositor banal.
- Eu tive notícia de um poeta hábil.
- Quem é?
- O abade Lorenzo da Ponte será nomeado libretista dos teatros imperiais. "Nobre
figura, bom ar, voz doce e suave, pouco faustoso, simples" é como o descreve o
imperador,
completamente fascinado, tal como no caso de Salieri.
-Nesse caso, Da Ponte recusará pela certa fornecer-me um libreto.
- Temos de tentar a nossa sorte. Amanhã à noite terá lugar uma recepção em casa
do barão Wetzlar. Encontrarás lá esse curioso abade, capaz de exercer tal
fascínio
sobre os grandes deste mundo. Tanto o imperador como Salieri ignoram a
verdadeira personalidade de Da Ponte. Não obstante o seu título e as suas boas
maneiras, trata-se
de um aventureiro, um mentiroso e um mulherengo, que quase foi preso em Veneza
por causa dos seus escândalos e das suas críticas em relação
223

à ordem social. Não possui nenhum génio, mas não lhe faltam nem talento nem
sentido do drama musical.
- Supondo que chegássemos a acordo acerca de um tema, achais que o abade seria
maleável ao ponto de aceitar as minhas exigências?
- Não há ninguém mais adaptável do que o abade Da Ponte.
Viena, 7 de Maio de 1783
Judeu endinheirado e fervoroso admirador de Mozart, o barão Wetzlar estava
encantado por acolher em sua casa esse músico tão promissor e o abade Da Ponte,
novo libretista
dos teatros imperiais. Não iria este encontro favorecer, como sugerira o conde
de Tebas, uma frutuosa colaboração?
Lorenzo da Ponte tinha cara de espertalhão e de malandro. Logo de início, ficou
agradado com a vivacidade e a inteligência de Mozart.
- O vosso Rapto do Serralho foi um belo sucesso, mas a ópera em língua alemã não
tem futuro. Cabe-nos a nós, poetas e músicos, satisfazer os gostos do público
vienense!
O que tendes em mãos?
- Procuro desesperadamente um libreto e já rejeitei mais de uma centena!
- Ó Diabo! Deveis ser deveras exigente.
- Por isso estou tão contente de vos ter encontrado. Se o imperador vos nomeou
para a sua corte, sois forçosamente o melhor libretista que há.
- Na verdade - reconheceu Da Ponte -, tenho uma longa experiência e conheço a
minha arte melhor do que ninguém...
- Teríeis a bondade de me sugerir uma ideia?
O abade franziu os sobrolhos e pareceu contrariado.
- Neste momento, estou cheio de trabalho. Salieri, Martini e outros dirigem-me
incessantemente novos pedidos, e já nem sei para onde me virar. No entanto, como
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
simpatizei
convosco, prometo pensar no assunto.
"Promessa vã", pensou Wolfgang. A colaboração com Da Ponte acabava antes mesmo
de ter começado.
224
Viena, 21 de Maio de 1783

O editor Artaria acabava de publicar duas sonatas para piano a quatro mãos114,
mas esta pequena alegria não extinguia a inquietação que Wolfgang sentia com a
ideia
de regressar a Salzburgo. Primeiro, era preciso esperar pelo parto de Constance,
agora iminente; depois, como escreveu ao seu pai, Wolfgang temia ser preso por
ordem
de o Grande Mufti Colloredo, pois "um padreco é capaz de tudo".
Foi então que o tolo Joseph Leutgeb, trompetista reputado de 51 anos e
proprietário de uma queijada em Viena, irrompeu pela casa dos Mozart.
- Ouve lá, precisava com urgência de um concerto divertido e fácil.
- Estou constipado e cheio de tosse - deplorou Wolfgang. - Hoje não tenho mesmo
capacidade para escrever.
- Vá lá, não recuses isso a um velho amigo! Estou certo de que conseguirás achar
hoje mesmo, dentro da tua cabeça, uma pequena jóia. Depois iremos beber uns
copos
à tua saúde. Quando se está doente, não se deve dar parte fraca.
Sabendo que o truculento amigalhaço não o largaria, Wolfgang deixou-o fechado no
quarto e pediu-lhe para esperar sem se mexer e sem fazer barulho.
Algumas horas mais tarde, o concerto para trompa115 estava acabado. Havia nele
alguns acentos heróicos destinados a pôr em destaque o intérprete, mas também
uma
sedutora linha melódica.
Com lápis de cor azul, vermelha e verde, Wolfgang escreveu a dedicatória:
"Mozart teve piedade de Leutgeb, burro, boi e tolo."

114 K. 358 e 381.


115 K. 417.
52.
Viena, 17 de Junho de 1783

Às duas da manhã, Constance sentiu as primeiras contracções. Às quatro, Wolfgang


mandou chamar a sua cunhada e uma parteira.
Durante o parto, Wolfgang compôs o minuete do quarteto em ré menor116, o segundo
da série de seis que pretendia dedicar a Joseph Haydn, na esperança de que a
magia
da música permitisse que a mãe e a criança atravessassem sem perigo esta hora
difícil.
A obra inteira habitava nele: sombria, violenta, por vezes febril, exprimindo
uma luta encarniçada contra a ansiedade e as trevas, ela revelava um desejo de
liberdade
que não estava certo de ser bem sucedido.
Wolfgang não falara a ninguém, nem mesmo ao seu pai, destes dois primeiros
quartetos de um conjunto que talvez o conduzisse na direcção do templo. Só
Thamos conhecia
a existência deles e o encorajava a continuar o seu trabalho criador.
- É um rapaz! - anunciou a parteira às 6.30 horas. - É bem rechonchudo, e a mãe
está bem.
Comovida, a senhora Weber abraçou o genro, que foi ter à cabeceira da sua esposa
feliz e descansada.
- Que nome lhe daremos? - perguntou ela.
-Proponho homenagear o nosso antepassado Raimund, a que juntaremos o nome de
Leopold, já que o meu pai aceita ser seu padrinho.
116 K. 421.
226
Nesse mesmo dia, Raimund Leopold foi levado à igreja para ser baptizado, e o
Página 105
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
jovem casal agradeceu a Deus a bênção concedida.
Viena, 5 de Julho de 1783
Wolfgang tinha respondido com dureza ao seu pai, que, no dia 21 de Junho, havia
contactado Varesco, o qual se revelara convencido do insucesso que teria uma
nova
obra cantada: Acho deveras ofensivo que o senhor Varesco duvide do sucesso da
minha ópera. Posso assegurá-lo de que o seu libreto certamente não resultará se
não
for acompanhado por uma boa música. Porque é a música que é o elemento essencial
de uma ópera. Por isso, ele terá de modificar e refundir as coisas tantas vezes
quantas eu quiser. Quanto ao pequeno Raimund Leopold, está fresco e bem
disposto. Faz tudo em abundância: bebe, dorme, berra, baba, mija e tudo o resto.
Um incidente recente irritara o compositor. Embora Aloysia Lange tivesse cantado
duas árias117 compostas para ela e intercaladas com uma ópera de Anfossi118, o
seu
amigo Adamberger não pudera interpretar a sua ária119 por causa de uma
intervenção aleivosa de António Salieri. Por que é que este cortesão zeloso,
rico e célebre
perseguia Wolfgang, mostrando-se tão mesquinho quanto ciumento?
Wolfgang sonhava em compor uma nova ópera, de tal maneira que não se importava
de moldar as suas árias para as inserir nas obras de um colega. A quem poderia
dirigir-se
para obter finalmente um libreto apaixonante, pelo qual lograria exprimir-se de
forma plena?
- O abade Da Ponte gostaria de falar convosco - informou a criada.
Wolfgang estava surpreendido, pois não esperara rever o libretista oficial da
corte.
Untuoso, enfatuado, Da Ponte parecia sempre contente consigo.
- Haveis-me pedido uma ideia, meu caro Mozart, aqui está ela! Tive de subtrair
um pouco do meu tempo tão precioso, mas encontrei um tema divertido: Lo Sposo
Deluso,
O Marido Desiludido. Nele evoco

117 K. 418 e 419.


118II Curioso Indiscreto.
119 K. 420.

227

a rivalidade entre três mulheres que desejam o mesmo amante. Excitante, não é?
Esta ópera bufa encantará os vienenses. Bem, tenho pressa. Deixo-vos este
esboço,
estudai-o e voltaremos a falar do assunto. Até breve.
Wolfgang não se interessou nem pela história, nem pela maneira como estava
contada. Aqui estava então toda a inspiração de que Da Ponte era capaz!
Desiludido, escreveu
ao seu pai: Destes-me, a respeito da ópera, um conselho que eu já dera a mim
mesmo. Como eu gosto de trabalhar com lentidão, de forma a poder dominar o tema,
não
quis começar demasiado cedo. Um poeta acaba de trazer-me um libreto que eu
talvez adopte, se ele aceitar moldá-lo às minhas necessidades.
Viena, 25 de Julho de 1783
- Pareces nervoso - observou Constance.
- Estou ainda hesitante.
- Temos de partir, Wolfgang! Já confirmaste a nossa chegada junto da tua irmã,
já deixei o nosso filho com uma ama de leite, e as bagagens estão todas prontas.
O compositor não se sentia nada bem.
- Salzburgo... Tantas más recordações, tanta tristeza, e aquele
príncipe-arcebispo que me pode mandar prender!
- O teu pai não te tranquilizou já?
- Ele afirma que o Grande Mufti não intervirá de forma alguma, mas terá tal
optimismo algum fundamento?
- Estou certa de que tem.
- Então, a caminho.
Página 106
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Salzburgo, 31 de Julho de 1783

De um lado, Wolfgang e Constance. Do outro, Leopold e Nannerl. O gelo era tão


espesso que ninguém se aventurava a quebrá-lo. O ódio e o desprezo de Nannerl
impediam
que Constance pronunciasse a menor palavra. As recriminações mudas de Leopold
obrigavam o seu filho a manter-se calado.

228
A idosa Miss Pimperl, que dormia umas 20 horas por dia, veio desbloquear a
situação. Transbordando de felicidade, a cadela fox-terrier saltou para os
braços de Wolfgang
para explorar as algibeiras do seu fato à procura de tabaco espanhol.
Houve por fim alguns sorrisos e pronunciaram-se palavras de boas-vindas.
- Pai - disse Wolfgang em voz trémula -, eis a minha mulher. Ela sonhava poder
abraçar-vos, a vós e à minha querida irmã.
A atmosfera distendeu-se um pouco. Só Nannerl permaneceu gelada.
-Não vos aborrecereis aqui em Salzburgo - prometeu Leopold. - Começaremos por
festejar a festa da minha filha bebendo um bom jarro de punch, depois jantaremos
com
os nossos amigos músicos, jogaremos aos dardos e passearemos pelos campos.
Pai e filho trocaram por fim um longo abraço, cheios de alegria de se
reencontrarem. Depois, Leopold aceitou abraçar a sua nora, embora Nannerl se
mantivesse distante,
bem decidida a nunca dirigir a palavra àquela intriguista. Não era o seu próprio
irmão responsável por aquele casamento desigual que viera manchar o bom nome da
família Mozart?

53.
Salzburgo, 10 de Agosto de 1783

Não era pouco o orgulho que Leopold tinha em organizar uma reunião de trabalho
entre o seu filho e o capelão Varesco, libretista de Idomeneu, Rei de Creta.
- Wolfgang é agora um compositor aguerrido, muito apreciado pelos vienenses.
Após o sucesso de O Rapto do Serralho, ele anda à procura de uma boa história
para pôr
em música.
- Pois eu tenho uma - afirmou o religioso salzburguês. Wolfgang temia o pior, e
não ficou desiludido.
- O título resume a minha obra - explicou Varesco. - O Ganso do Cairo.
Espantoso, não é?
Nem Leopold nem o seu filho tiveram qualquer reacção.
- Eis um drama que não poderá deixar de colher os favores de um público
alargado. O marquês Don Pippo, viúvo, fecha na torre do seu castelo a sua
magnífica filha
Celidora, muito cobiçada, mais a criada dela, chamada Lavina, com quem o
aristocrata quer vir a casar e que ele resguarda assim de outras tentações. Belo
começo,
não achais?
- Se o dizeis - condescendeu Wolfgang.
- Esperai, ainda há muitas surpresas! Don Pippo assinou um contrato com
Biondello, apaixonado pela sua filha Celidora. Ela só lhe pertencerá caso ele
consiga, no
prazo de um ano, penetrar dentro da torre. Fabuloso, não é?
Leopold mantinha o rosto fechado.
- Pensais que tal é impossível? Pois bem, estais enganado! Biondello é amigo de
Calendrino, apaixonado por Lavina, e conta com o
230
apoio do casal de criados que servem o marquês, sem esquecer também a ajuda de
uma misteriosa boémia vinda do Egipto, muito entendida em artes mágicas. Com uma
equipa deste calibre, Biondello está certo de que irá atingir o seu objectivo!
Para dificultar a história, toda a peça se desenrola na véspera do fim do prazo
concedido.
Página 107
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Deste modo, o público ficará sempre sobressaltado.
- Quantos actos há? -perguntou Wolfgang.
- Dois - respondeu Varesco. - O primeiro evoca a tentativa falhada do herói para
entrar na torre. No segundo acto, reviravolta teatral! O astuto Calendrino
fabrica
um enorme ganso dentro do qual se esconde Biondello. E a boémia apresenta-se
diante do marquês, louvando os méritos daquela obra-prima proveniente do Cairo!
Espantoso,
não é? Generoso, Don Pippo manda colocar o ganso dentro da torre para distrair
as duas prisioneiras.
- Biondello sai do interior do ganso, ganha a aposta e casa com a filha do
marquês - predisse Wolfgang.
- Como haveis adivinhado? - espantou-se Varesco.
- Foi intuição.
- Nova reviravolta: a boémia revela a sua verdadeira identidade! Na verdade, ela
é a mulher de Don Pippo, que ele considerava morta. Fabuloso, não é? E tudo
acaba
bem, pois Biondello casa com Celidora e Calendrino com Lavina.
Leopold permaneceu calado.
- Haverá que introduzir muitas modificações - opinou Wolfgang.
- Nem pensar nisso - objectou Varesco. - O meu libreto parece-me perfeito.
- Do ponto de vista musical, o vosso libreto carece de várias adaptações.
- Recuso-me!
- Sede conciliante - advogou Leopold. - Uma ópera bem sucedida depende da
colaboração entre o compositor e o libretista.
- Talvez voltemos a falar do assunto mais tarde - atalhou Varesco, vexado. - Por
agora, deixo-vos.
Consternados, pai e filho olharam um para o outro.
- Este Ganso do Cairo... Que verdadeira inépcia! Nem um só espectador engolirá
esta história.
231

- Não te mostres demasiado intransigente, Wolfgang. Se melhorares o enredo,


poderás certamente retirar alguma coisa da obra.
- É impossível trabalhar com aquele tonto!
- Fá-lo-ei ter tento.

Salzburgo, 15 de Agosto de 1783

O compositor Michael Haydn, um dos bons amigos salzburgueses de Mozart, estava


com muito mau ar. Lívido, encurvado, febril, ele tinha perdido toda a alegria de
viver.
- O que se passa contigo? - inquietou-se Wolfgang.
- Eu tinha de entregar ao príncipe-arcebispo seis duos para violino e viola.
Tinha já acabado quatro deles, quando fiquei doente. Apresentei-lhe de imediato
as minhas
desculpas, rogando-lhe que me concedesse um adiamento.
- O tirano ousou recusar?
- Exigiu a entrega imediata dos dois que faltavam, mas eu não sou capaz de lhos
fornecer. Ele então decidiu suspender a minha tença, e eu fiquei sem um tostão.
Decididamente, o Grande Mufti não mudara! Cruel, despótico, impiedoso,
continuava a martirizar os músicos que não tinham nem a coragem nem os meios
para deixar Salzburgo.
- Estou perdido, Wolfgang. O príncipe-arcebispo vai demitir-me.
- Claro que não vai, pois tu enviar-lhe-ás hoje mesmo as obras prometidas.
- Mas eu asseguro-te que não tenho forças para as compor!
- Eu trato disso.
- Tu... tu farias isso por mim?
- Não suporto ver um amigo em apuros.
Usando uma linguagem de fuga em que aflorava a ciência de Johann-Sebastian Bach,
ao mesmo tempo que respeitava o estilo ligeiro apreciado por Colloredo, Wolfgang
escreveu os dois duos para violino e viola120 que Michael Haydn levou logo a
seguir ao palácio do príncipe-arcebispo.
120 K. 423 e 424.

Página 108
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
54.
Viena, 25 de Agosto de 1783

- Desta vez, senhor conde, é a debandada! - regozijou-se Geytrand. - A Estrita


Observância templária está à beira do abismo. As quotas deixaram de entrar, as
Lojas
passaram a desviar-se ou tornaram-se francamente hostis, e já nem sequer existem
altos dignitários para simular a existência de uma hierarquia!
- Fernando de Brunswick ainda não se demitiu?
- Ainda não, mas entrou em profunda depressão. A obra da sua vida inteira está a
soçobrar diante dos seus olhos.
- E Carlos de Hesse?
- Esse recusa baixar os braços e crê na intervenção de Jean-Bap-tiste Willermoz
e dos seus Cavaleiros beneficentes da Cidade Santa.
- O místico lionês manifestou-se?
- Não que eu saiba. Ele deve estar a trabalhar na redacção dos novos rituais
que, se chegarem a ver a luz do dia, acabarão por chegar tarde de mais.
- Não festejemos antes de tempo - preconizou Joseph Anton. - O duque de
Brunswick talvez tenha sido gravemente atingido, mas nem Carlos de Hesse nem
Willermoz renunciarão
às suas ambições.
- Tendo em conta a orientação cristã de ambos, proclamada de forma tão nítida, a
hostilidade que demonstraram com relação aos Iluminados da Baviera,
representarão
eles um verdadeiro perigo?
- Quaisquer que sejam as suas tendências filosóficas, todos os pedreiros-livres
são perigosos. Concordo contigo em como a Estrita Ob-

233

servância parece enfraquecida, mas não devemos descurar a nossa vigilância. Ela
pode ainda renascer das cinzas e retomar a ofensiva.

Salzburgo, 30 de Agosto de 1783

Wolfgang ficou encantado em travar conhecimento com o professor Joseph von


Sonnenfels, com quem conversou demoradamente. Eles evocaram primeiro o
Burgtheater, que
se tornara um bela sala de espectáculos onde eram apresentadas obras de
qualidade, abordando depois a política liberal do imperador José II, que ambos
aprovavam
sem reservas.
Já que Mozart iria permanecer por mais uns tempos em Salzburgo, o professor de
ciência política apresentou-lhe uma série de amigos, sem explicar que pertenciam
todos
a uma Loja de Iluminados121.
- No maior sigilo - revelou Von Sonnenfels -, nós reflectimos juntos sobre o
conjunto de problemas da nossa época e assinalamos uns aos outros os livros que
consideramos
importantes, tais como os de Herder, de Wieland ou de Lessing.
- Também vos interessais pelos mistérios egípcios?
- Claro que sim. Entre as nossas obras de referência conta-se o Sethos, do abade
Terrasson, e o opúsculo consagrado aos sacerdotes do Antigo Egipto, Crata Repoa,
sem esquecer O Burro de Ouro, de Apuleio, que evoca a iniciação aos mistérios de
ísis. Chamamos Seminário a esta nossa assembleia. Tendo em conta os vossos
conhecimentos,
vós já não sois um Noviço, Mozart, mas sim um Minerval, grau cujo símbolo é um
pássaro com cabeça de homem122. Aos nossos olhos, o importante consiste em sair
das
trevas da ignorância e em propagar a luz do saber, mesmo que tal procedimento
seja chocante para o poder instituído, para a aristocracia imbuída dos seus
privilégios
e para a Igreja agarrada aos seus dogmas.
Wolfgang estava a avançar em terreno desconhecido, e não lamentava ter vindo a
Salzburgo. Assim que ele tivesse um momento livre e que pudesse ausentar-se com
discrição,
viria conversar com estes pensadores.
Página 109
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
121 A Loja Previdência.
122 Pensa-se de imediato no pássaro bá do Antigo Egipto e no Papageno de A
Flauta Mágica.
234
Embora não desse a cara, Thamos tinha de estar na origem desta nova etapa da sua
Busca. Indirectamente, o egípcio estava a proporcionar-lhe os alimentos
espirituais
de que Wolfgang precisava para descobrir o caminho do templo.
Salzburgo, 26 de Outubro de 1783
Nesse dia, a multidão acorrera à igreja de São Pedro, onde seria tocada a Missa
Solene em dó menor123, de Mozart. Tal missa não se assemelhava a nenhuma peça
conhecida,
e nunca poderia ter sido tocada na catedral, onde Colloredo pontificava.
Wolfgang havia eliminado certas partes da missa tradicional, nomeadamente o
Credo, cujas palavras já não correspondiam às suas opções espirituais124.
Antes de entrar na igreja, Wolfgang pensou na sua última entrevista com os seus
novos amigos do Minerval, os quais teriam que deixar Salzburgo em breve, por
causa
da vigilância policial. Tal como Wolfgang, eles regozijavam com as decisões de
José II: abolição da corveia nos domínios agrícolas, estabelecimento de um
casamento
civil que facilitava os divórcios e os segundos casamentos. Para mais, a 3 de
Setembro, o tratado de Versalhes pusera fim à guerra de independência americana.
Ao
reconhecer a existência dos Estados Unidos da América, a Inglaterra consagrava
um impulso em direcção à liberdade, do qual comungavam diversos idealistas
próximos
do Minerval.
- Tenho medo - confessou Constance ao seu marido.
- Não temas, tudo correrá pelo melhor. Bem vês, eu cumpri a minha promessa: nós
estamos casados, e escrevi em tua honra esta missa, cuja voz de soprano tu
encarnarás
aqui, nesta cidade de Salzburgo que já foi meu ergástulo.
Quando Constance interpretou o EtIncarnatus Est com todo o seu coração, Wolfgang
estremeceu. O que se estava a encarnar, naquele instante, era um frágil momento
de felicidade, tão frágil que era preciso sentir todas as suas vibrações e
procurar não esquecê-las nunca.
123 K. 427.
124 Desde 1780, Mozart tinha deixado de pôr o Credo em música. Ele ainda compôs
o início do Credo desta missa, mas depois abandonou a escrita.
235

Muitos ouvintes, entre os quais Nannerl, ficaram chocados com o carácter pouco
religioso da obra, que se demarcava demasiado das regras estabelecidas. Por
causa
de Constance, a quem Nannerl não dirigia a palavra, Wolfgang estava a seguir por
um mau caminho.
Salzburgo, 27 de Outubro de 1783
Na véspera, Miss Pimperl gania de tristeza. Porque tinha Wolfgang, seu amo
predilecto, de partir novamente? Durante a sua curtíssima estada vienense, ele
tinha-lhe
feito muitas festas, e ela até retomara as suas brincadeiras!
Às 21.30 horas, Wolfgang e Constance despediram-se de Leopold e de Nannerl. O
músico apertou uma última vez a cadela fox-terrier nos braços, receando nunca
mais
vir a dar mimos àquela amiga tão dedicada, cuja saúde entrara em fase de
degradação.
Ele ignorava que tão-pouco teria oportunidade de rever a sua irmã, que
continuava a manter uma atitude glacial com relação a Constance.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Continua a trabalhar a sério - exigiu Leopold.
- Está prometido.
O jovem casal dirigiu-se para Iinz, onde era esperado pelo velho conde Thun, que
os alojou no seu palácio. A 30 de Outubro, o conde anunciou que organizaria um
concerto
para dia 4 de Novembro, cujo ensaio geral teria lugar dia 3 à noite.
- Qual será o programa? - perguntou o músico.
- Gostaria muito de uma sinfonia inédita.
- Em tão pouco tempo?
- Não sois capaz de compô-la?
- Posso tentar.
Irritado com os aduladores salzburgueses, sempre prontos a incensar o compositor
que estava na moda em Viena, Wolfgang escreveu ao seu pai, dando-lhe conta do
ódio
que sentia com relação a todas as formas de lisonja: As guloseimas e as beijocas
nem sempre são agradáveis. Só os idiotas e os asnos as aceitam sempre como tais.
Ser-me-ia mais fácil aguentar um rústico que não teria vergonha de se aliviar à
minha frente, do que deixar-me prender a semelhantes fingimentos.
236
De seguida, Wolfgang pôs-se a trabalhar dia e noite, e criou uma obra grave,
meditativa e altaneira, não desprovida de optimismo, na qual se espelhava aquele
estranho
período que aparecia aos seus olhos como uma porta entre dois mundos. Assim
nasceu a sinfonia Linz125, com a duração de aproximadamente 40 minutos.
Para grande satisfação do conde Thun, a sinfonia estava pronta e foi tocada no
dia 4 de Novembro. Como tinha Mozart conseguido, em tão pouco tempo, compor uma
obra-prima
tão comprida e bem alicerçada?
- Sois um mago - reconheceu o conde. - Podemos ouvir-vos, mas não podemos
compreender-vos. Este presente inestimável veio iluminar a minha velhice.

125 K. 425.
55.
Viena, 30 de Novembro de 1783

Constance e Wolfgang deixaram primeiro as bagagens no seu apartamento e só


depois foram buscar o filho a casa da ama de leite. Ela estava na soleira da
porta.
- Vimos buscar o Raimund - disse Constance, impaciente para segurá-lo de novo
nos seus braços.
- Senhora e senhor Mozart... Tenho uma tristíssima notícia para vos dar.
- Será possível que ele esteja...
- Morto... Mas quando aconteceu?
- Dia 19 de Agosto. O bebé teve convulsões de uma violência inédita. O médico
viu-se impotente. Eu preferi não vos avisar para não perturbar a viagem.
Constance ficou à beira de desfalecer. Wolfgang apertou-a muito de encontro a
ele. Juntos, largaram a chorar e deram uma longa caminhada em silêncio,
incapazes de
ver o que se passava em seu redor.
Apesar da violência daquele choque, Wolfgang mantinha uma estranha serenidade,
pois sabia que a morte não equivalia ao vazio. Raimund Leopold não tivera tempo
para
conhecer as alegrias e as tristezas da existência terrena; ele regressara aos
mistérios de onde eram oriundos todos os seres.
Nessa mesma noite, Wolfgang escreveu uma pudica carta ao seu pai: No que se
refere ao pobre querido homenzinho, tão rechonchudo e anafado, sentimos ambos um
fortíssimo
desgosto.
238
Praga, 30 de Novembro de 1783
Ignaz von Born, autor de uma sátira ferosz126 contra a religião oficial, na qual
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
definia os monges obtusos como uma espécie a meio caminho entre o macaco e o
homem,
foi até Praga para aí se encontrar, no maior sigilo, com alguns Irmãos desejosos
de fundar uma nova Loja de pesquisa.
As entrevistas decorreram numa das pequenas casas construídas para os
alquimistas nas traseiras do palácio de Hradschin, a mando do imperador Rodolfo
II.
Embora o barão Van Swieten não tivesse conseguido obter qualquer prova da
existência de um serviço secreto encarregado de vigiar as actividades da
Maçonaria, Von
Born mantinha-se muito desconfiado. E não deixava de colocar a si próprio a
horrível pergunta: existiriam informadores no seio das Lojas?
De qualquer maneira, Viena não escaparia ao controlo da polícia imperial. Caso
José II persistisse na sua política liberal, Von Born continuaria entretanto a
preparar
a recepção do Supremo Mago nessa cidade. Mas, por segurança, mais valia
assegurar que Praga pudesse funcionar como alternativa.
A Loja Para a Verdade e a União127 beneficiou de um ritual de criação extraído
do Livro de Tot. Thamos conduziu a cerimónia de instalação, e depois entregou o
maço
de Venerável a Ignaz von Born. Os Irmãos consagrar-se-iam ao estudo dos símbolos
e da tradição iniciática oriunda do Antigo Egipto.
Desta forma, quaisquer que fossem os eventos e a evolução da situação, Thamos e
Von Born disporiam de um templo seguro.

Viena, 4 de Dezembro de 1783

- Há um homem estranho à tua procura - anunciou Constance a Wolfgang. - E parece


que é urgente.
- Vou ver quem é.
126 Speàmen monachologiae methodo Unneaeno.
127 Zur Wahrbeit und Eintracht, cujo nome deve comparar-se com o da Loja
vienense Zur wahren Eintracht, Para a Verdadeira União.

239
O homenzinho vestido de cinzento não devia sorrir amiúde.
- Sois Wolfgang Mozart, mestre de capela?
- Exacto.
- Eu sou o emissário do banqueiro Ochser.
- Não conheço esse senhor.
- Mas ele conhece-vos. Durante a vossa estada em Paris, no mês de Outubro de
1778, haveis contraído uma dívida no valor de 12 luíses de ouro.
- Não me lembro nada disso - confessou Wolfgang.
- Mas nós lembramo-nos. Demorei a encontrar-vos, e exijo para hoje mesmo o
reembolso da dívida em questão, sob pena de fazer transitar o assunto para o
foro penal.
- Há tanto tempo... Que memória!
- Estou à espera da vossa resposta, senhor Mozart.
- Na verdade, eu não fui responsável por essa viagem. Deveis dirigir-vos ao meu
pai, Leopold Mozart, segundo-mestre de capela do príncipe-arcebispo Colloredo,
em
Salzburgo.
- E poderá ele saldar a dívida?
- Não insulteis a nossa família!
Wolfgang escreveu de imediato ao seu pai, pedindo-lhe que resolvesse aquela
questão ridícula, e regressou ao trabalho em curso, referente a O Ganso do
Cairo. As
três primeiras partes já compostas128 não lhe desagradavam, mas ele não podia ir
além com um libreto daqueles. Por isso exigiu diversas modificações que Varesco,
apesar da sua susceptibilidade, teve de admitir.
Viena, 22 de Dezembro de 1783
Durante uma academia organizada em prol da Sociedade dos Músicos, Wolfgang tocou
um concerto diante de uma sala cheia e entusiástica. O seu amigo Adamberger
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
cantou
por fim aquela ária que Salieri tinha conseguido censurar.
Sempre esperançoso de vir a criar uma nova ópera, Wolfgang escreveu para
Adamberger uma ária trágica129 sobre o tema do infortúnio
128 K. 422 4-6.
129 K. 431.
240

de Temístocles, só e abandonado no fundo de uma masmorra. Revoltado, este


maldizia o seu destino e só encontrava um pouco de esperança ao pensar na mulher
amada.
Havia uma segunda ária130, esta para voz de baixo, ainda mais sombria: Sebasto
era devastado pelo remorso de ter traído o rei Xerxes. Mesmo depois de ter sido
libertado
e ilibado de qualquer suspeita, o faltoso não conseguia jamais perdoar-se a si
próprio.
Nenhuma tolerância com relação às suas próprias fraquezas, um desejo permanente
de romper as grades de todos os cárceres a que procuravam confiná-lo, a vontade
de
ver a verdadeira luz: tais sentimentos animavam Wolfgang e não lhe davam
descanso.
- Porque estás tão tenso? - espantou-se Adamberger. - Devias estar satisfeito
com o teu sucesso.
- E se ele for efémero?
- Tu não tens bem noção da dimensão da tua notoriedade! O público só te quer ver
e ouvir a ti.
- Isso parece-me duvidoso.
- Façamos a experiência: amanhã à noite, mesmo local, mesmo concerto, mas sem a
tua presença.
Na ausência de Mozart, a sala estava quase vazia.

Viena, 24 de Dezembro de 1783

O jovem casal procurava recompor-se do falecimento do seu primeiro filho, e


Constance considerava a hipótese de voltar a engravidar. Deus dava e tomava a
vida, ninguém
se espantava com a extrema fragilidade dos bebés. Só os mais resistentes
ultrapassavam a difícil prova dos primeiros meses de vida.
Um eco do passado veio alegrar as festividades natalícias. De passagem em Viena,
o conde Von Sickingen foi visitar Mozart e felicitou-o calorosamente. Ministro
do
Palatinado destacado para Paris, Irmão e amigo do barão Otto von Gemmingen, Von
Sickingen ajudara o jovem Wolfgang a suportar a sua penosa estada na capital
francesa,
durante a qual morrera a sua mãe.
130 K. 432.

241
Juntos, Wolfgang e o seu hóspede tocaram ao piano a partitura de Idomeneu, que
Leopold acabara de enviar de volta ao seu filho. Mas a obra que mais encantou
Constance
foi uma fuga131 em que o seu marido provava dominar a arte do contraponto. Desta
vez, os ensinamentos de Johann-Sebastian Bach estavam mesmo assimilados. Sem
comprometer
a fluidez do estilo mozartiano, o contraponto conferia-lhe a solidez de um
alicerce.
- Tenho uma óptima notícia para te dar, minha querida.
- Encomendaram-te uma ópera?
- Ainda não.
- Estás a planear um grande concerto?
- Oh, vários! Antes de mais, temos de mudar de casa. Desta vez, será para um
apartamento sumptuoso, tão propício ao trabalho como à vida familiar.
Perspectivam-se
belos tempos.
Página 113
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
131 K. 426.

56.
Brunswick, 31 de Dezembro de 1783

Frente a frente, diante de uma enorme lareira de onde emanava um calor


agradável, o Grão-Mestre Fernando de Brunswick e o seu adjunto Carlos de Hesse
viviam os últimos
momentos de um ano horrível.
- As notícias continuam tão más quanto antes? - perguntou o Grão-Mestre,
envelhecido e cansado.
- As Lojas continuam a desligar-se da Estrita Observância - reconheceu Carlos de
Hesse, cujo anjo protector deixara de produzir qualquer som -, e escasseiam as
quotas
que ainda nos chegam às mãos.
- Dentro em breve estaremos arruinados, Irmão. Tanto eu como vós consagrámos boa
parte das nossas fortunas ao desenvolvimento da Ordem, e falhámos.
- A tradição templária está morta, admito-o, mas o contributo de Willermoz pode
ainda permitir-nos salvar a Estrita Observância.
- Tenho a impressão de que ele não se revela capaz de digerir a sua própria
vitória, e que os seus Cavaleiros beneficentes da Cidade Santa formam um triste
exército.
Porque demorará ele tanto tempo para nos enviar rituais convincentes?
- Tal tarefa é demorada e complexa. Guardemos a esperança.

Viena, 27 de Janeiro de 1784

Às sete horas, Wolfgang estava pronto. Para o seu vigésimo oitavo aniversário,
em vez de pôr pó-de-arroz nos cabelos, tinha pedido ao barbeiro que os frisasse,
os
puxasse para trás e os atasse com uma fita.

243

De uma das janelas do seu novo apartamento, Wolfgang observava o Graben,


principal praça de Viena, sempre cheia de animação. Quatro mil carroças e
carruagens de
tamanhos diversos passavam por ali todos os dias.
Morar no terceiro andar daquele grande prédio132 constituía mo- tivo de
satisfação, tanto mais que o senhorio, Thomas von Trattner, livreiro-editor,
tinha concordado
em baixar a renda semestral de 75 para 65 florins. Questão importante, o prédio
compreendia uma sala na qual Wolfgang podia dar concertos privados, cujo
rendimento
lhe permitiria prover aos seus encargos sem dificuldades de maior. E, com o
piano construído por Anton Walter, Wolfgang poderia dedicar-se a compor durante
as tardes
e noites, depois de ter dado as suas lições e as exibições públicas requeridas
pela sua condição de músico independente.
Constance encostou docemente a cabeça sobre o ombro do marido.
- Feliz aniversário, querido. Não vais descansar um pouco, hoje?
- Infelizmente, prevejo que este dia se revele tão sobrecarregado quanto os
demais.
- Eu, por mim, vejo-me obrigada a dormir a sesta e a evitar fazer esforços.
- Queres dizer que...
- Estou grávida. Beijaram-se com paixão.
-Será um rapaz, e há-de viver longos anos!-prometeu Constance.
Inteiramente entregue à alegria que lhe proporcionava esta maravilhosa notícia,
completada pela reposição de O Rapto do Serralho no Burgtheater, Wolfgang
deixava
que a sua energia criadora se encaminhasse em duas direcções diferentes.
Uma delas tomou a forma de um concerto para trompa133, cujo movimento lento era
uma aprazível romança; a outra consistiu no terceiro quarteto134 da série de
seis
que ele queria dedicar a Joseph Haydn.
132 Números 591 a 596 (hoje 29) em Graben.
Página 114
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
133 K. 447.
134 Quarteto para cordas nº 16 em mi bemol, K. 428. Quando o conjunto dos seis
quartetos foi publicado por Artaria em 1785, Mozart colocou este quarteto em
quarto
lugar, logo depois do quarteto em si bemol K. 458, acabado em 9 de Novembro de
1784, o qual ficou, portanto, em terceiro lugar.
244

Apesar de compreender meditações profundas, quase ansiosas, a obra afirmava uma


certa esperança, como se a alma, depois de ter duvidado por longo tempo,
passasse
o limiar de um mundo novo. Ao contrário dos dois primeiros quartetos, este
possuía um verdadeiro final, com acordes bem marcados.
Por um lado, um concerto agradável, por outro, a sua música interior, à procura
da Luz... O compositor, todavia, não se sentia dividido. Esta diversidade
vibrava
dentro dele, e Wolfgang sentia-se capaz de conciliar os contrários, desde que
não atraiçoasse o seu sentido de autenticidade.

Viena, 9 de Fevereiro de 1784

Decididamente, O Ganso do Cairo, esta gigantesca figura de madeira ou de pasta


de cartão pousada no meio do palco com o herói enfiado no interior dela, não lhe
trazia
nenhuma inspiração. Não era um tema digno de suceder a O Rapto do Serralho,
sobretudo considerando a compleição insuportável do libreto de Varesco.
Wolfgang voltou-se para outras leituras, fornecidas por Thamos e pelo Minerval.
Acabou de ler a obra de Oetinger, A. Metafísica nas suas Relações com a Química,
cujo título escondia o verdadeiro conteúdo, a saber, a filosofia hermética da
Rosa-Cruz, na qual se evocava designadamente a acção da música sobre a alma.
Wolfgang
descobria agora, cheio de paixão, as pesquisas de Giovenale Sacchi, Do Número e
das Medidas das Cordas Musicais assim como das Suas Correspondências, e,
sobretudo,
as de Pierre-Joseph Roussier, Paralelo entre os Sistema dos Egípcios e o dos
Modernos. Este autor estabelecia equivalências entre as notas, as tonalidades,
os planetas
e os signos zodiacais.
Nesse dia, Wolfgang deu os últimos retoques num brilhante concerto para piano em
mi bemol maior135, no qual a sua inspiração rebentava sem perder nada da sua
elegância
costumeira. Escrita para uma pequena orquestra, a obra incluía incessantes
modulações, alternando períodos de inquietação e melodias calmas. Quanto ao
rondó final,
rápido como de costume, aliava o canto do solista ao contraponto, lembrando
assim a influência benéfica de Bach.

135 K. 449, nº 14.


245
E, mais ainda, Wolfgang tentava um certo número de experiências a partir de
cálculos cabalísticos anotados à margem do manuscrito136, recorrendo,
nomeadamente, à
figura geométrica do "quadrado longo", geradora de múltiplas harmonias.
Foi então que Wolfgang tomou uma decisão própria de um autor respeitável e
marido dedicado: a de manter dois cadernos de escrita, um deles consagrado à
vida do lar,
o outro para as suas obras.
No primeiro caderno, ele tomaria nota dos rendimentos provenientes das lições,
dos concertos e das vendas de partituras, bem como das despesas da família. O
segundo,
encadernado a cor-de-rosa137, serviria de catálogo das suas composições. A
primeira a ser aí inscrita foi a sua derradeira produção, o concerto para piano
em mi
Página 115
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
bemol.
Como ele tinha pressa de voltar, chegada a noite, para o seu tinteiro, a sua
pena e o seu papel pautado! Para sossegar Leopold, que continuava inquieto
quanto ao
futuro profissional do seu filho e quanto ao que se devia seguir a O Rapto do
Serralho, Wolfgang não hesitou em lhe revelar as suas convicções: A música que
eu compus
dorme e repousa em paz. Em todas as óperas que, na nossa época, poderão vir a
ser encenadas antes de a minha próxima obra estar completa, não haverá nenhuma
ideia
semelhante às minhas, disso estou certo.
Viena, 11 de Fevereiro de 1784
Durante uma recepção oferecida pelo príncipe Dimitri Galitzin, Thamos teve
ocasião de conversar com Gottfried van Swieten.
- Desdobrei as investigações - revelou o barão. - Nenhuma delas levou a nada. É
certo que a polícia vigia discretamente alguns pedreiros-livres, mas age da
mesma
forma com relação aos agitadores de ideias que não pertencem à Ordem. Segundo
informações recentes, o imperador considera a Maçonaria de forma bastante
favorável,
uma vez que as Lojas vienenses se têm mostrado favoráveis às suas reformas.
- Ele não desconfia dos Iluminados da Baviera?
136 Ver P. A. Autexier, Lm Lyre maçonne, p. 153 e seguintes.
137 Este documento representa uma verdadeira mina de informações, mas Mozart não
tomou nele nota de todas as suas criações e, por várias vezes, registava no
mesmo
dia obras cuja composição se tinha espraiado no tempo; daí resulta a necessidade
de um estudo crítico.
246

- Não os considera nem dignos de ser temidos, nem opostos à sua política. Nessas
condições, que razão haveria para confiar a vigilância da Maçonaria a um serviço
secreto?
- Porque José II, como bom chefe de Estado, conduz vários jogos paralelos.
- Acreditais, portanto, na existência de um homem que age na sombra, em contacto
directo com o imperador... e que não cometeu até agora nenhuma imprudência, como
se nunca tivesse saído do seu gabinete!
- Se ele já conseguiu estabelecer uma rede de informadores, basta-lhe ir
preenchendo os seus ficheiros, ficando escondido no seio das trevas, à espera do
momento
certo para agir.
- Informadores... no exterior e no interior das Lojas?
- É o que eu temo.
O conde Johann Esterházy saudou o chefe da censura e o seu Irmão, conde de
Tebas.
- Posso juntar-me às vossas reflexões?
- Estávamos à vossa espera - disse Thamos. - A partir desta noite, e tendo em
consideração o Carnaval que vem aí, unamos as nossas forças e, juntamente com o
auxílio
do príncipe Galitzin, lancemos a carreira de Mozart de forma a impô-lo
definitivamente em Viena.
Os quatro homens prepararam um programa titânico. Estaria o frágil Mozart,
apesar de toda a sua energia, apto a preenchê-lo?
57.
Viena, 22 de Março de 1784
Wolfgang perguntou-se se conseguiria aguentar por muito mais tempo o ritmo
infernal adoptado desde o início da Quaresma. Nos dias 1, 5, 8,12 e 15 de Março,
concertos
em casa do conde Esterházy; dias 4, 11,18 e 19, no palácio do príncipe
Esterházy; sem esquecer, dia 17, a sua primeira academia por subscrição na sala
Página 116
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Trattner!
Em todas as exibições, deparou-se com um público entusiástico e com
significativos ganhos monetários. "Se continuar assim", confidenciou ele a
Constance, "não corro
o risco de enferrujar."
Não obstante essa intensa actividade como intérprete, Wolfgang não podia parar
de compor, pois os auditórios pediam peças inéditas. Assim, a 15 de Março,
apresentara
um concerto138 "que fazia suar" de tanto virtuosismo que exigia. Orgulhoso e
triunfante, o solista fornecia uma réplica vigorosa a uma orquestra bem
composta.
Nessa noite, em casa do conde Esterházy, Wolfgang criou um concerto em ré
maior139 que, também ele, fazia suar em bica. Havia nele a mesma alegria
transbordante
da obra precedente, com o mesmo ardor. O compositor e o intérprete ganhavam os
corações, Wolfgang inebriava-se com o seu sucesso.
138 Concerto para piano nº 15, K. 450.
139 Nº 16,K. 451.
248
- Porque não tocais mais depressa ainda? - perguntou-lhe um daqueles críticos
insensíveis e desdenhosos que não se espantavam com nada.
- Os acrobatas crêem que a velocidade cria o fogo. Pois bem, quando não há fogo
numa composição, não é por tocá-la depressa que o vamos criar! É bem mais fácil
tocar
depressa do que devagar. Nas passagens difíceis, podem-se obliterar algumas
notas sem que o público dê por isso. Mas será boa música?
- A vossa opinião é muito vincada, Mozart!
- Não valerá ela tanto quanto a vossa?
- Eu tenho o hábito de julgar os músicos!
- E o que haveis composto até agora?
Furibundo, o crítico foi-se embora. Wolfgang tinha arranjado um novo amigo.

Viena, 23 de Março de 1784


Não se previa nenhum repouso, antes pelo contrário! Wolfgang não tinha um único
serão livre até ao início do mês de Abril. Nessa noite, no Burgtheater, uma nova

alegria devolveu energia ao compositor: o reencontro com o seu amigo íntimo


Anton Stadler, clarinetista a tempo inteiro na corte de Viena.
- Poderei ainda dirigir-te a palavra, ilustre Mozart?
- Pára de gozar comigo!
- Tu e eu tivemos razão em deixar Salzburgo. Como eu nunca nutri qualquer dúvida
acerca do teu génio, o teu sucesso não me espanta. Mesmo assim, dou por mim a
duvidar
que saias vivo deste Carnaval!
- Sinceramente, eu também nutro a mesma dúvida! Mas como posso recusar os
convites de Esterházy e de Galitzin? O barão Van Swieten também me encoraja, e
recebi numerosas
respostas para a minha proposta de concertos por subscrição.
- Ou seja, encaminhas-te para um esgotamento completo!
- Bem sabes que a música tem poderes regeneradores.
- A tua música tem tais poderes, isso é certo! Não posso exprimir o meu grau de
contentamento por tocar a tua serenata em si be-
249
mol maior140. Os vienenses ronronarão de felicidade. Quando dispuseres de um
momento livre, gostaria de voltar a falar contigo acerca do clarinete.
- Desejas trocar de instrumento?
- De modo algum, mas era preciso melhorar as capacidades de expressão do meu
instrumento. Só tu poderás perceber as suas imensas possibilidades, até agora
praticamente
inexploradas. Tão próximo da voz humana, o clarinete consegue tocar no mais
fundo do nosso ser. Infelizmente, tenho de alimentar várias crianças e careço
dos meios
Página 117
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
pecuniários para me lançar numa pesquisa aturada. Podes ajudar-me?
- Conta comigo.

Viena, 1 de Abril de 1784


A 24 de Março, Wolfgang apresentara o seu segundo concerto por subscrição, que
tivera como peça forte o concerto em ré141; a 27, na sala Trattner, participara
na
academia do pianista Richter; a 29, concerto em casa de Esterházy; a 31,
terceiro e último concerto por subscrição; e, na noite de 1º de Abril,
esperava-o um interminável
programa no Burgtheater, onde dirigiria as sinfonias Haffner e Linz e tocaria o
concerto em ré maior, para além de algumas árias e de um quinteto para piano,
oboé,
clarinete, trompa e fagote142, que criara na véspera.
- Considero este quinteto como a melhor coisa que já produzi em toda a minha
vida - confidenciou ele a Constance.
A ciência dos naipes e das combinações instrumentais atingia a perfeição.
Wolfgang não voltaria a compor nunca mais para aquele naipe de instrumentos,
pois aquele milagre não poderia voltar a ocorrer. Tratar-se-ia de um ponto de
chegada
ou de um falso limite, que ele tinha de ultrapassar?
O músico sonhara com o sucesso e com a glória, sobretudo tendo em vista
estabelecer a sua independência financeira. Todavia, tendo atin-

140 K. 361.
141 K. 451.
142 K. 452.

250
gido tal objectivo, não podia contentar-se com ele, pois não se lhe abriam as
portas do templo.
Felizmente, aquele período alucinante estava a chegar ao término. Um último
concerto em casa do conde Pálffy, dia 9 de Abril, e o compositor poderia
recobrar o seu
fôlego.

Viena, 12 de Abril de 1784

Os dois primeiros movimentos do concerto em sol maior143 estavam concluídos


quando Wolfgang passou diante da loja de um vendedor de pássaros e ouviu um
pintassilgo144
cantar uma melodia que ele memorizou de imediato, exclamando: "Como é bela!"
Assim que chegou a casa, anotou os cinco primeiros compassos de um rondó com
variações, muito envolvente, que veio coroar a sua obra com uma alegria que
alternava
com passagens quase melancólicas.
No entanto, como dizia a sabedoria popular, não tinha ele tudo o que podia
querer para ser feliz? Até um passarinho lhe vinha servir de fonte de
inspiração, a ele,
o músico mais na moda, do qual Viena não podia prescindir!
Pois a sabedoria popular estava enganada, porque faltava a Wolfgang o essencial:
o conhecimento dos mistérios aos quais eram iniciados os sacerdotes do Sol.
143 Concerto para piano nº 17, K. 453.
144 Algumas fontes dizem que se tratava de um estorninho.
58.
Viena, 15 de Abril de 1784
O encontro não teve lugar nem em Schönbrunn nem no prédio onde funcionava o
serviço secreto de Joseph Anton, mas sim num quartel frequentado pelos membros
da nobreza
vienense que queriam seguir a carreira das armas. O imperador gostava de vir
conversar com um ou outro destes aspirantes.
O conde de Pergen estava inquieto. Porque quereria José II falar com ele?
Segundo os últimos boatos, o imperador tinha vindo a mostrar-se cada vez mais
Página 118
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
favorável à Maçonaria, considerada como sustentáculo seguro da sua política. A
bula
pontifícia que havia condenado oficialmente a Maçonaria não fora publicada na
Áustria. E nas suas Constituições datadas de 1717, o pastor Anderson tinha
escrito:
"Se o pedreiro-livre compreender bem a Arte, não será nem um estúpido ateu, nem
um libertino descrente."
- A Igreja mostra-se hoje incapaz de defender os valores espirituais e morais de
que a nossa sociedade necessita - declarou o imperador. - Por isso, a Maçonaria
ser-nos-á útil, desde que a mantenhamos estritamente sob controlo. O vosso
paciente labor merece, portanto, a minha gratidão.
Se não estivesse na presença de José II, Anton teria soltado um suspiro de
alívio.
- O que será da Maçonaria mística e templária aqui em Viena?
252
- Majestade, podemos considerá-la erradicada. A Rosa-Cruz mantém-se confinada a
Berlim e a Paris, onde se instalou há pouco tempo. Quanto à Estrita Observância,
está moribunda e não tem mais nenhum representante.
- Excelentes notícias. Só a Maçonaria adepta da razão e do humanismo permanece,
portanto, no interior das nossas fronteiras.
- Rogo a Vossa Majestade que me autorize a vos pôr de sobreaviso com relação à
expansão dos Iluminados da Baviera, que contam hoje com quase 2500 membros.
- Esse movimento não conta com a participação de algumas personagens ilustres
como Herder, Goethe ou Von Sonnenfels?
- Com efeito, Majestade. Fornecer-vos-ei em breve uma listagem completa dos
intelectuais escondidos sob intrigantes pseudónimos. Descobri que, na linguagem
críptica
dessa seita, a Grécia corresponde à Baviera, Atenas a Munique, Elêusis a
Ingolstadt, cidade do seu fundador, Adam Weishaupt. Quanto ao Egipto, trata-se
do nome de
código da Áustria.
- O que temeis?
- Temo que esses intelectuais estejam a urdir uma revolução sob a capa da
Maçonaria.
- Tenho sérias dúvidas a esse respeito, conde de Pergen. Mas se isso for
verdade, impedi-los-emos de levar a deles adiante. Exijo relatórios minuciosos
sobre a actividade
das Lojas vienenses e sobre o teor dos discursos que se pronunciam nelas.
- Sereis servido, Majestade.
- Deduzo que tendes à vossa disposição uma rede de informadores zelosos
infiltrados nas Lojas?
- Tendo em consideração a dificuldade da minha missão, Majestade, todos os meios
são bons.
- Aprecio deveras a vossa discrição e a vossa eficácia. Continuai com o vosso
bom trabalho.
Joseph Anton fez uma vénia.
Ele não tinha perdido a esperança de convencer o imperador do carácter nocivo da
maçonaria em geral e dos Iluminados da Baviera em particular.

253
Viena, 22 de Abril de 1784
No seguimento de uma série de entrevistas com Irmãos altamente colocados, o
imperador proclamou o nascimento de uma Grande Loja de Áustria, cujo
Grão-Mestrado foi
entregue a um dignitário inofensivo, o conde Johann Carl von
Dietrichstein-Proskau, de 65 anos, e cujo Secretariado coube ao mineralogista
Ignaz von Born. Gozando de honrosa reputação, estas duas personagens saberiam
dirigir
de maneira pacífica a nova instituição, organizada em sete províncias. A Áustria
compreendia 17 Lojas, das quais oito se situavam em Viena; a Boémia, sete; a
Galícia,
quatro; a Lombardia austríaca, duas; a Transilvânia, três; a Hungria, 12; os
Países Baixos austríacos, 17.
Página 119
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Bela jogada - apreciou Joseph Anton -, belíssima jogada. Eis os Irmãos
enquadrados na Real Ordem da Maçonaria. Este reconhecimento oficial funcionará
como uma
verdadeira camisa-de-forças da qual ele não terá consciência de imediato. E o
imperador reserva-lhes outras surpresas.
- Deixaremos de ter qualquer utilidade - queixou-se Geytrand.
- Pelo contrário, meu amigo, pelo contrário! Quando os Irmãos mais subversivos
perceberem que perderam qualquer margem de manobra, tentarão formar Lojas
dissidentes.
Temos portanto que redobrar a nossa vigilância.
Viena, 22 de Abril de 1784

Thamos e Ignaz von Born estavam à espera das explicações do Irmão Tobias Philipp
von Gebler.
Acusando o peso dos seus 58 anos, o vice-chanceler afundou-se num sofá.
- Confesso ter desempenhado uma forte influência junto do imperador. A criação
desta Grande Loja de Áustria parecia-me indispensável.
- Por que razão? - perguntou Von Born.
- Nós dirigíamo-nos directamente para uma situação catastrófica - explicou o
autor de Thamos, Rei do Egipto. - O arcebispo de Viena, Anton Migazzi, inimigo
declarado
da Maçonaria, introduziu muitos espiões nas Lojas. Os émulos da Rosa-Cruz sonham
em trazer de volta
254

a Maçonaria para o seio do cristianismo, e os nostálgicos da Estrita Observância


gostariam de despertar de novo o espírito templário. Em suma, uma completa
confusão!
Graças a esta nova instituição, tudo se torna mais nítido. O Grão-Mestre é um
fantoche que se contentará em ostentar o seu título imponente. Aos olhos de
todos,
o verdadeiro chefe da nossa Ordem será o Irmão Von Born, que eu consegui impor
sem dificuldade.
- O que exige o imperador? - perguntou Thamos.
- Exige o estrito cumprimento das cláusulas constantes no alvará de fundação da
Grande Loja de Áustria, bem como a elaboração de um regulamento interno
aplicável
a todas as Lojas. Tudo isto, está claro, deve subir ao seu conhecimento.
- Nesse caso - corrigiu Von Born -, o verdadeiro Grão-Mestre será José II.
- Pelo menos, agora, a nossa situação melhorará, e poderemos avançar com
segurança, longe das tendências místicas e ocultistas. Hoje à noite, durante a
reunião dos
Veneráveis, teremos ocasião de examinar a carta de fundação.
Ignaz von Born não escondeu o seu cepticismo.
- O imperador quer ter mão sobre a Maçonaria - considerou. - Não nos há-de
deixar em paz, e tomará outras medidas que irão cerceando a nossa liberdade até
aniquilá-la
por completo.
- Continuemos a preparar a iniciação do Supremo Mago - advogou Thamos. -
Felizmente, tal momento está próximo.
59.
Viena, 22 de Abril de 1784
O alvará do imperador reconhecia a soberania da Grande Loja de Áustria e a de
cada Loja pertencente à nova estrutura criada.
Cada uma podia celebrar os seus próprios rituais, constituídos por sinais,
hieróglifos e símbolos da Ordem, desde que não tivesse outro objectivo nem outra
actividade
para além da beneficência, no seu sentido mais lato.
Por trás das fórmulas oficiais escondia-se a vontade que José II tinha de
controlar os dirigentes, até mesmo de afastar os candidatos ou de revogar os
eleitos, substituindo-os
por homens fiéis ao poder instituído.
A discussão acerca dos princípios gerais, que cada Loja tinha de incluir no seu
regulamento específico, foi objecto de muitas controvérsias.
Página 120
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Antes de mais - lembrou Von Gebler -, proclamemos o carácter obrigatório da
beneficência, virtude tão apreciada pelo imperador. Só ela nos oferecerá a
capacidade
de lutar contra os males que oprimem a Humanidade.
- Isso implica que nos libertemos de todas as formas de crença e de tirania -
acrescentou Von Born. - A beneficência consiste também em fazer o bem, em agir
bem,
e portanto em celebrar rituais precisos e correctamente ajustados.
- Quais seriam os nossos critérios de admissão? - perguntou um dignitário.
- Todos os Irmãos devem participar nos trabalhos de forma activa - respondeu Von
Gebler -, e portanto devem possuir uma das
256
seguintes qualidades: gozar no mundo profano, por via do nascimento ou do cargo
ocupado, de uma consideração suficiente para assegurar ] a protecção da virtude
oprimida
e das boas causas em geral; ou então, dispor de bens materiais de tal forma
enquadrados na ordem social e na vida familiar, que permitam acorrer em auxílio
dos necessitados,
caso seja preciso; ou, ainda, deter os conhecimentos e os talentos
indispensáveis para corrigir as ideias erróneas, para combater os preconceitos
nocivos e para
difundir as verdadeiras luzes.
- Chegaremos nós ao ponto de admitir um operário? - inquietou-se um conde.
- Outrora, as Lojas de construtores de catedrais eram formadas por artífices -
lembrou Von Born. - Portanto, não há razão nenhuma para recusar a entrada no
templo
a quem quer que seja, desde que o postulante possa prover às suas necessidades,
que ele não constitua um peso morto para os seus Irmãos, e que sinta um desejo
autêntico
de ver a Luz.
Ninguém protestou.
- Em contrapartida - prosseguiu o Grão-Secretário -, desconfiemos dos nobres
demasiado imbuídos da sua própria importância e dos seus privilégios. Devemos
submetê-los
a longas e lúcidas provações, e recusá-los caso demonstrem uma sobranceria e uma
vaidade tamanhas que os impeçam de participar na nossa irmandade. Aqueles que
desprezam
um honesto e simples burguês só porque não tem antepassados titulares não
merecem transpor o limiar do nosso templo. Tão-pouco o merecem os fidalgos que
tratem mal
os seus criados ou os seus súbditos, que se mostrem duros ou cruéis com eles, ou
que enriqueçam de forma ignóbil e que se comportem de maneira vil. Para um
pedreiro-livre,
a virtude e a rectidão não devem ser palavras vãs.
- Todos esses preceitos estavam contidos na Regra dos templos do Antigo Egipto -
lembrou Thamos. - Pô-los em prática corresponde a uma necessidade quotidiana sem
a qual a iniciação não passaria de uma miragem.
- Regressamos deste modo à verdadeira beneficência - insistiu Von Born. - Não se
trata apenas de ajuda pecuniária, mas de outro género de auxílio, uma ajuda de
ordem
espiritual, um dom de conhecimento que permite transpor as portas sucessivas ao
longo do caminho iniciático.
257
- Continuaremos nós a admitir eclesiásticos? - perguntou um Irmão.
- Desde que sejam profundamente tolerantes - respondeu Von Born -, e que não
tentem difundir as suas crenças no interior das nossas Lojas.
Ninguém contestou as opções do Grão-Secretário, que não desagradavam a Von
Gebler. O vice-chanceler podia, assim, tranquilizar o imperador e garantir-lhe a
adesão
das Lojas à sua política.
Viena, 29 de Abril de 1784

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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
O concerto que teria lugar no teatro da Porta de Caríntia, na presença de José
II, tomava a forma de um exercício particularmente perigoso. Wolfgang pretendia
exibir
uma sonata para violino e piano145, que seria acompanhada pela italiana Regina
Strinasacchi.
Único pequeno problema: a partitura de piano estava praticamente vazia, pois
Wolfgang não tivera tempo de tomar nota da música, que tinha portanto de tocar
de cor
e sem ensaio prévio.
A obra começava com um largo, movimento lento durante o qual o homem, desejo de
conquista, dialogava com a mulher, sensibilidade. Como conciliar estes extremos
aparentemente
opostos, se não graças a uma fuga de um allegro que ultrapassasse as oposições?
O andante regressava à meditação e à dúvida, quase dolorosa, dissipada pelo
rondó
final, celebração da alegria de viver.
Tendo ouvido boatos espantosos, o imperador foi certificar-se pessoalmente.
Abismado, verificou que as páginas de Mozart estavam todas em branco!
Quanto ao pianista holandês Richter, que observava os dedos do intérprete, não
pôde conter a sua amargura.
- Meu Deus, como tenho de penar e suar para obter algum sucesso! E para vós, meu
amigo, isto não passa de uma brincadeira!
- Oh! - exclamou Wolfgang. - Eu também tive de penar longamente para agora não
precisar de penar mais.

145 K. 454, em si bemol maior.

258

Viena, 26 de Maio de 1784


Depois da academia que ele próprio organizara em casa dos Trat-tner, seus
senhorios, Wolfgang retomou por fim o seu fôlego. Mesmo assim, ele continuava a
levantar-se
entre as cinco e as seis horas, e mantinha o mesmo ritmo de trabalho, embora se
concedesse, todas as manhãs, um delicioso passeio com Constance no jardim de
Augarten.
A gravidez decorria sem percalços, e o amor entre ambos, nutrido de ternura e de
cumplicidade, desabrochava ao longo dos dias.
- Uma séria dificuldade envenena a nossa existência - declarou Constance.
- Aposto que estás a referir-te a Iiser Schwemmer, nossa criada salzburguesa.
- Ela não sabe nem acender um fogo, nem fazer café. As suas únicas competências
consistem em pousar os pratos em cima da mesa da casa de jantar. Quando
porventura
me ajuda a vestir ou a despir um vestido, queixa-se logo de estar
sobrecarregada! Gasta todo o seu salário a comprar vinho e cerveja. Ontem, dei
com ela esparramada
na sua cama, perdida de bêbeda. Ela tinha vomitado tanto que tive que substituir
os lençóis e o colchão. Isto não pode continuar! Temos de despedi-la e
substitui-la.
- Tens razão, querida, mas...
- Mas?
- Se eu fosse homem para causar o infelicidade alheia, despedi-la-ia de
imediato. Mas tenhamos dó e mantenhamo-la ao nosso serviço tanto tempo quanto
possível.
Viena, 27 de Maio de 1784
Ao pensar no assunto, Wolfgang considerava que tinha agido com ingratidão, e
sentia-se arrependido. Por isso, foi até à loja do vendedor de pássaros, na
esperança
de que o criador dos primeiros compassos do concerto em sol maior146 não tivesse
ainda arranjado comprador.
O pintassilgo ainda lá estava!
146 K. 453.
259
Página 122
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Assim que avistou Mozart, o passarinho entoou a sua melodia favorita.
- Quanto pedis por ele? - perguntou o músico ao passarinheiro.
- Trinta e quatro kreutzers. Wolfgang não regateou.
- Tornar-nos-emos bons amigos - prometeu ao seu novo companheiro. - Que nome te
darei?... Ah! Já sei: Star. Não serás tu, afinal, uma estrela que ilumina os
nossos
dias mercê do teu notável talento?
Star celebrou o seu baptismo cantando um forte e allegro.

60.
Viena, 13 de Junho de 1784
Wolfgang não tomou nota no seu Catálogo das oito variações "Como um Cordeiro"147
que acabara de compor sobre uma ária de O Homem Bom, de Sarti, que se encontrava

de passagem em Viena, e foi até Dóbling, nos arredores rústicos da capital


austríaca. Durante uma academia que aí decorreu, Wolfgang exibiu o seu quinteto
para piano
e instrumentos de sopro148, enquanto a sua anfitriã, a brilhante Barbara Ployer,
interpretava o concerto em sol149. Bem remunerada, esta exibição aumentava o seu

pecúlio, já respeitável.
Tal sucesso financeiro tranquilizava Wolfgang e dava-lhe asas. Que felicidade
poder oferecer a Constance uma existência confortável, sem preocupações
materiais!
Ele nunca ousara imaginar que viveria em tal desafogo, sobretudo enquanto
arruinara o seu talento como músico lacaio ao serviço de o Grande Mufti
Colloredo. A audácia
fora-lhe proveitosa, e ele nunca haveria de voltar para trás, mesmo que
continuasse a sonhar com um lugar fixo na corte de Viena, o que só seria viável
caso recebesse
uma remuneração excelente e beneficiasse da maior liberdade de criação.

147 K. 460. Mozart, no entanto, aproveitará esta composição para tema do


banquete oferecido por Don Juan ao Comendador.
148 K. 452.
149 K. 453.

261

A casa Artaria publicou três sonatas para piano150 e um outro editor,


Toreicella, trouxe a lume três outras obras151 que vinham reforçar a reputação
de Wolfgang
como consagrado compositor vienense.
No fim do concerto, o músico entreteve-se a conversar com o velho conde Thun.
Amigo e Irmão de Ignaz von Born, o pedreiro-livre falou a Wolfgang acerca da
língua dos símbolos, da importância da tradição iniciática e da presença dos
espíritos
que animavam todas as formas de vida, desde as estrelas até aos minerais.
Tais perspectivas impediam que Mozart se inebriasse com o seu sucesso. Para lá
das satisfações materiais, não existia a porta do templo, simultaneamente
próxima
e longínqua?
Só Thamos, o egípcio, lograria abrir-lha. Quando se resolveria ele a fazer esse
gesto?
Berlim, 15 de Junho de 1784
- Porquê tanta ira, Irmão? - perguntou Bischoffswerder, um dos chefes da
Rosa-Cruz de Ouro, tão bem colocado na corte que já detinha influência sobre as
mais elevadas
autoridades.
- Os Iluminados da Baviera, aos quais eu pertenço, querem destruir os poderes
estabelecidos e a sociedade - respondeu Utzschnei-der. - Temos de impedi-los.
O traidor não especificou que o seu desejo de vingança radicava numa recente
recusa de promoção.
- Possuis alguma prova daquilo que acabaste de me dizer?
Página 123
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Tenho tomado notas na maior discrição - revelou Utzschnei-der. - Entrego-vos
este relatório explosivo, que contém as declarações de vários dirigentes e que
revela
os verdadeiros desígnios dos Iluminados. Cabe-vos agora agir depressa e em
força.
- Conta comigo, caríssimo Irmão.
Os membros da Rosa-Cruz de Ouro de Berlim não queriam acreditar no presente que
lhes caíra do céu! O documento foi de imediato

150 K. 330,331,332.
151 K. 284, 333, 454.
262
transmitido a Frederico Guilherme II, principal apoiante da Ordem. Recusando-se
a tomar a dianteira e a intervir no seu próprio território, o rei confiou essa
tarefa
suja ao príncipe-eleitor da Baviera, Karl Theodor.
Munique, 22 de Junho de 1784

Conselheiro político e confessor de Karl Theodor, o jesuíta Frank esfregava as


mãos de contente. Graças às informações de Utzschnei-der e aos complementos
fornecidos
pela Rosa-Cruz de Ouro de Berlim, ele tinha convencido o seu ilustre patrão a
tomar uma decisão tão radical quanto explosiva.
O édito de Karl Theodor proibia formalmente, nos Estados submetidos à sua
jurisdição, todas as sociedades secretas. Investindo-se de uma missão sagrada
que consistia
em salvar a Igreja, o príncipe-eleitor punha fim às actividades das seitas
subversivas e temíveis, entre as quais figuravam, na primeira fila, os
Iluminados da Baviera
e as Lojas maçónicas, embora não fossem expressamente nomeadas.
Frank estava à espera de uma reacção violenta, principalmente por parte dos
Iluminados. Tal reacção levaria Karl Theodor a recorrer à força e incitaria os
tribunais
a pronunciar penas de prisão.
Fosse como fosse, este decreto quebrava o ímpeto e travava o crescimento
daquelas seitas. A Igreja podia regozijar com este sucesso, que poderia ser
seguido por
muitos outros, caso o imperador José II, por seu turno, se apercebesse do perigo
e tomasse as providências adequadas.
Munique, 23 de Junho de 1784
Adam Weishaupt, chefe dos Iluminados da Baviera, e o barão Adolph von Knigge,
seu braço-direito, releram o decreto palavra por palavra.
- Embora não sejamos claramente designados - observou Weishaupt -, somos o
principal alvo de Karl Theodor e do seu maldito confessor!
- Tendo em consideração a falta de nitidez do texto - considerou Von Knigge -,
nenhum tribunal nos condenará.
263
- Mais vale não corrermos riscos! Poderíamos ser acusados de subversão
sorrateira e de conspiração contra o príncipe-eleitor, que ficaria encantado por
nos castigar
de forma exemplar.
- Nesse caso, qual é a vossa proposta?
- Precisamos de saber até onde Karl Theodor e os seus aliados pretendem ir.
Fingiremos obedecer-lhe, pronunciando a dissolução aparente da nossa Ordem e
pedindo
aos nossos membros que mantenham sigilo. Talvez tal atitude mostre ao
príncipe-eleitor que acabou de alcançar uma tremenda vitória.
- Talvez isto não passe de um mau momento pelo qual é preciso passar, é assim
que considerais a situação... Pois eu não acho! - objectou Von Knigge - Esta
declaração
de guerra não deve permanecer sem resposta. O obscurantismo religioso quer
Página 124
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
destruir o nosso movimento, recorrendo à estupidez e à covardia dos príncipes
desejosos
de conservar os seus tronos a qualquer preço. Por mim, recuso-me a baixar os
braços. Concordo com uma relativa hibernação, caso as Lojas possam continuar a
trabalhar
sub-repticiamente. Ao mesmo tempo, fundaremos sociedades de leitura, abertas a
todos, através das quais difundiremos as nossas ideias. Nem mesmo Karl Theodor
poderá
acusá-las de secretismo.
- Interessante - reconheceu Weishaupt.
Viena, 30 de Junho de 1784

- O meu amigo Frank procedeu maravilhosamente - considerou Geytrand. - Os


Iluminados foram atingidos no âmago do seu poder, na própria Baviera!
- Infelizmente - deplorou Joseph Anton -, o decreto do príncipe-eleitor Karl
Theodor é demasiado vago. Não estão nele explicitamente nomeados nem os
Iluminados,
nem os pedreiros-livres.
- Mas ninguém terá qualquer dúvida a esse respeito!
- As altas personalidades, incluindo alguns magistrados que pertencem à Ordem,
retardarão ou bloquearão a aplicação desta lei, e sustentarão que a Maçonaria
não
desempenha nenhuma acção ilegal nem ameaça nenhum trono.
- Mas os tribunais têm de proibir a sua existência, uma vez que se trata de uma
sociedade secreta!

264

- Esse raciocínio é demasiado simplista, meu bom Geytrand. Os pedreiros-livres


encontrarão mil e uma maneiras de escapar à sanção.
- Frank está disposto a abatê-los, e Karl Theodor seguirá cegamente as suas
directivas.
- Estando em plena ascensão, os Iluminados não se deixarão abater tão
facilmente. Não duvido que eles fingirão que se submetem, para depois lançar uma
contra-ofensiva.
A guerra está só a começar.

61.
Viena, 2 de Julho de 1784

Após o seu passeio a cavalo, pelas sete horas, Wolfgang distribuía o seu tempo
entre a composição e as lições. Para descansar, gostava de jogar ao bilhar
enquanto
ia conversando com Constance. Tinha comprado uma bela mesa coberta por um
magnífico pano verde, 12 tacos e cinco bolas. A superfície de jogo era iluminada
por uma
lanterna e cinco castiçais.
Nessa noite, o casal Mozart recebeu vários cantores, entre os quais se contava
Michael O'Kelly e a jovem soprano de 19 anos Nancy Storace, acompanhada pelo seu
namorado
Stephen, um violoncelista impetuoso e ciumento. Eles mostraram-se preocupados
com a saúde de Constance, louvaram os méritos da Inglaterra e jogaram uma
partida de
bilhar durante a qual esvaziaram várias garrafas.
O pintassilgo Star saudou estas libações cantando uma bela melodia, retomada em
seguida por Nancy Storace.
- Tens uma esplêndida voz - considerou Wolfgang.
- Escolher-me-ás como intérprete da tua próxima ópera?
- Se eu conseguir encontrar um libreto que valha alguma coisa, podes contar com
isso.
- É assim tão difícil?
- Só li histórias estúpidas e desprovidas de qualquer interesse. Mas não
desisto.
266
Viena, 4 de Julho de 1784
Página 125
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Geytrand pousou sobre a secretária de Joseph Anton a pauta de duas sonatas para
piano152 e de uma sonata para violino e piano de Mozart153, editadas por
Torricella.
- Tornaste-te apreciador de música na moda?
- Olhai bem para a folha de rosto, senhor conde. O exame de Anton foi revelador.
- Vários emblemas maçónicos... O que quer isto dizer?
- Ou Mozart está a afirmar a sua condição de pedreiro-livre, ou o editor está a
tornar públicas as suas convicções e simpatias.
Joseph Anton consultou os seus ficheiros.
Mozart não fazia parte das listas. Tratava-se portanto da segunda hipótese. -
Estranho - considerou Geytrand. - Desde quando um editor pode exibir um
comportamento
tão audacioso sem o consentimento explícito do autor?
- Claro que pode, até pode modificar a partitura.
- Por outras palavras, nada prova que Mozart esteja ligado de uma forma ou de
outra à Maçonaria.
- Nada - concluiu Anton. - Mas o nome dele aparece demasiadas vezes. Hei-de
estar atento ao seu caso.
Viena, 5 de Julho de 1784
No Peru, um arqueólogo encontrava os vestígios do reino das Amazonas. Enquanto
um meteorologista prosseguia as suas pesquisas, um homem loucamente apaixonado

pensava no objecto da sua paixão.
Usando como base o fraco enredo deste libreto de Petrosellini, Wolfgang começou
a escrever uma ópera154.

152 K. 284 e 333.


153 K. 454.
154 K. 434 (fragmentos do Reino das Amazonas).

267

Aborrecendo-se de imediato com a escrita de uma música oca de conteúdo, pousou a


pena.
- O abade Da Ponte veio visitar-te - preveniu Constance. Wolfgang não estava à
espera desta visita. Nomeado poeta oficial da corte com um salário de 600
florins,
graças à intervenção do seu protector Salieri, o libretista vinha provavelmente
explicar a Mozart que estava cheio de trabalho.
- Caro Mozart, tenho aprofundado o meu tema! E este Marido Desiludido agrada-me
sobremaneira! Emília, jovem e nobre romana, ama Aníbal. Sabendo da morte do seu
amado,
ela dá ouvidos ao seu tutor, que a aconselha a casar-se com um velho jarreta.
Reviravolta: Aníbal reaparece, bem vivo, mas desejado por duas outras mulheres
loucas
de paixão, uma das quais é cantora! Um único homem, exposto à rivalidade de três
apaixonadas: bem podeis imaginar as complicações e as voltas do enredo. Tudo
acaba
em bem, Aníbal casa com Emília. Trabalhai sobre este libreto, Mozart.
Cheio de pressa, Da Ponte foi-se embora.
Wolfgang percorreu o libreto e não sentiu nenhum entusiasmo. Aceitar a proposta
de Da Ponte equivalia a saber que a sua ópera seria representada. Mas
custava-lhe
aceitar aquela história tal como estava contada... Ele tinha que meditar sobre o
assunto.
Ingolstadt, 15 de Julho de 1784
O barão Adolph von Knigge explodiu.
- Não estou habituado a ser convocado como um lacaio - disse a Adam Weishaupt -,
e já não aguento o vosso comportamento. Deverei lembrar-vos de que sou o
redactor
dos rituais da Ordem dos Iluminados?
- Eu é que vos encarreguei de tal tarefa, e cabe-me só a mim a apreciação dos
resultados.
Página 126
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Pois estais sempre a minar o meu trabalho - protestou Von Knigge. - O vosso
carácter sectário e a vossa crítica cega da religião são produto de um espírito
limitado,
incapaz de compreender a importância dos ritos e do esoterismo. Só os mistérios
egípcios nos podem levar ao verdadeiro conhecimento, e vós não lhes atribuis
qualquer
valor.
268

- Não passais de um místico retrógrado, barão, e eu não tolero tal género de


indivíduos no seio da minha organização.
- Por isso tendes vindo a espalhar calúnias acerca da minha vida privada?
- Achais que ela é impoluta?
- Isso não vos diz respeito!
- Todas as acções dos Iluminados me dizem respeito. Criticar o chefe do nosso
movimento, opor-se-lhe, insultar o seu carácter soberano, ousar denegri-lo junto
dos
outros Irmãos, tudo isso constitui uma série de erros imperdoáveis. Vós
cometestes tais erros, barão, e deixastes de ser digno de pertencer à Ordem.
- Teríeis intenção de me escorraçar?
-Já redigi uma acta de acusação, assinada por mim e por diversos dignitários,
que vos acusa de oportunismo. Se contestardes esta acta, iremos mais longe.
Muito mais
longe. Aconselho portanto que apresenteis a vossa demissão, assumindo três
compromissos solenes: guardar segredo absoluto, abandonar as vossas funções e
retirar
todas as queixas a meu respeito.
A violência do olhar de Adam Weishaupt aterrorizou o barão Von Knigge. O tirano
não estava a brincar e ameaçava-o de morte.
- Não passais de um traste e de um temível manipulador. Rogo ao Céu que a vossa
aventura finde da pior forma possível.
- Aceitais as minhas condições, barão?
- Não voltareis a ouvir falar de mim, Weishaupt. Mas o vosso edifício de
mentiras não tardará desmoronar-se.
O chefe dos Iluminados livrava-se assim daquele espiritualista cuja presença se
tornara embaraçosa. É certo que continuavam a faltar-lhe os rituais dos Supremos

Mistérios. Mas o resultado dos seus esforços, a revolução política e social


far-lhe-ia esquecer tais dissabores.

Viena, 2 de Agosto de 1784


O marido não era o único a estar desiludido! Depois de ter composto uma
abertura, dois conjuntos e duas árias para Lo Sposo Deluso155, Wolfgang,
irritado, interrompeu
o trabalho.
155 K. 430.

269
Lastimável libreto! Como tratar aquele tema no estilo bufo e tornar divertida
uma heroína enganada e infeliz? Maltratar assim as personagens femininas
desagradava-lhe
ao mais alto nível. E nenhuma das personagens tinha carácter suficiente.
Desde que contactara com os Iluminados em Salzburgo e que passara a ler obras
esotéricas, Wolfgang sentia necessidade de profundidade, e não das historietas
irrisórias
do abade Da Ponte. Abandonou portanto aquele projecto lamentável, persuadido de
que não voltaria a contactar com aquele cortesão manhoso, demasiado próximo do
medíocre
Salieri.
A esta desilusão juntou-se uma triste notícia, vinda de Salzburgo: Miss Vimperl,
a cadela fox-terrier, acabara de morrer. Como Wolfgang teria gostado de mimá-la
até aos seus derradeiros instantes de vida, evocando mil e uma lembranças!
Wolfgang era o seu amo dilecto, percebia a mais pequena emoção de Miss Pimperl,
e a cumplicidade
Página 127
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
existente entre ambos oferecia-lhes maravilhosos momentos de felicidade.
Com o falecimento daquela cadela tão querida, esfumava-se a juventude de Mozart.

62.
Viena, 18 de Agosto de 1784

Wolfgang escreveu à sua irmã Nannerl, felicitando-a pelo seu casamento,


programado para dia 23. O feliz contemplado chamava-se Johann Baptist von
Berchtold zu Sonnenburg.
Magistrado, administrador judiciário da cidade, o noivo não era um rapazote, mas
sim um viúvo de 50 anos, pai de cinco filhos. Aos 33 anos, Nannerl
instalar-se-ia
com aquele velho marido na casa natal da sua mãe, em São Gilgen.
Não tendo vontade alguma de assistir àquela cerimónia sinistra, Wolfgang
contentou-se em escrever uma carta convencional. Entre os dois irmãos, cavara-se
um fosso
intransponível. Nenhum dos dois parecia disposto a anulá-lo.
Wolfgang pensou no seu pai, agora sozinho no grande apartamento de Salzburgo.
Tendo decidido não voltar a casar, Leopold tinha visto ir embora primeiro o
filho e,
agora, a sua confidente Nannerl. Felizmente, ele conservava o seu lugar de
segundo-mestre de capela e mantinha uma série de alunos aos quais se consagrava
com um
reconhecido sentido da pedagogia. Iria Deus conceder-lhe a graça de poder mimar
um ou vários netinhos?

Viena, 23 de Agosto de 1784

Ao assistir, no Burgtheater, à representação do Rei Teodoro em Veneza, ópera de


Paisiello, Wolfgang deu por si a suar às estopinhas. De regresso à sua casa,
começou
a sentir calafrios. Tomado de violentas cólicas, vomitou e pensou que estava
perdido.

271
Felizmente, o jovem doutor Barisani, cujos méritos eram louvados por Viena
inteira, aceitou vir vê-lo e ministrar-lhe os seus cuidados. Devido à gravidade
da doença,
o médico anunciou ao paciente que se avizinhavam várias semanas difíceis, e
prescreveu-lhe descanso.
No entanto, logo no dia 10, Wolfgang começou a trabalhar num improviso sobre uma
ária de Gluck que havia sido tocada a 23 de Março de 1783 na presença do
imperador,
retirando dela dez variações para piano156. Extraído dos Peregrinos de Meca, o
texto divertia muito o convalescente: uma espécie de daroês fazia-se passar por
um
santo homem de austeridade exemplar aos olhos de uma populaça crédula, quando na
verdade levava uma existência dissoluta, saboreando os inesgotáveis prazeres da
carne!
Os alegres harpejos do passarinho Star saudaram o bom humor do seu amo, e
Constance ficou descansada ao ver o marido retomar tão depressa o seu gosto pela
vida.
Mas ele teria contudo que seguir uma dieta e não se esforçar demasiado. A conta
do horário alucinante que levara durante a temporada musical, Wolfgang fora para
lá dos seus limites e comprometera gravemente a sua saúde.
Permanecendo a boa salzburguesa liser Schwemmer sempre tão preguiçosa e
ineficiente, Constance, agora a um mês de distância do parto, contratou uma nova
criada.
Todos os dias, a dona de casa distribuía as tarefas, evitando assim os
conflitos. A jovem esposa revelou-se notável no exercício destas funções.
Viena, 29 de Setembro de 1784
Constance não queria acreditar no que os seus olhos viam.
Que apartamento sumptuoso e espaçoso! Mesmo por trás da catedral, a Casa
Camesina157 era uma das mais afamadas de Viena. Joseph, célebre decorador e pai
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dos proprietários
do edifício, havia ornamentado com estuques rococó uma parte da vasta
residência.
Quatro divisões principais no primeiro andar, 170 metros quadrados, conforto
total... Constance arregalou os olhos.
- Qual é a renda?
156 K. 455.
157 Nº 846, Schukrstrasse, antigo nº 5 da Domgasse.

272
- 230 florins por semestre - revelou Wolfgang.
- É elevadíssima!
- Descansa, que nós podemos pagá-la. E não merecerá esta criaturinha um bonito
enquadramento para os seus primeiros tempos?
Wolfgang segurava delicadamente nos seus braços Karl Thomas, nascido a 21 de
Setembro e baptizado na igreja de São Pedro. Tanto a mãe como o filho estavam de
perfeita
saúde.
- Possa Deus conceder-lhe uma existência longa e bela - murmurou o músico,
abraçando o bebé, que lhe sorriu abertamente.
- Teremos de comprar mobília - considerou Constance.
- O meu cravo será transportado hoje mesmo à noite - informou Wolfgang. - Aqui,
serei inundado por milhares ideias e poderei trabalhar no maior sossego.

Viena, 30 de Setembro de 1784

A primeira obra terminada por Wolfgang na sua nova e prestigiosa residência foi
um concerto em si bemol para piano e orquestra158, destinado a uma virtuosa
cega,
Maria-Theresia von Paradies.
Os dois movimentos rápidos, o primeiro e o terceiro, valorizavam o intérprete,
fornecendo-lhe uma partitura alegre, volúvel e ridente, com alguns momentos de
ternura
e de sonho pelo meio; em contrapartida, o andante com variações em sol menor era
uma longa meditação de Wolfgang sobre o sentido da sua própria existência.
Tentando
dominar a impaciência e a revolta, ele manifestava uma calma aparente, sem
contudo dissimular a dúvida profunda que o assediava: estaria ele fadado a
percorrer,
um dia, o caminho conducente até à Luz?
Um grito irrompia da orquestra, formulando uma pergunta brutal: o que desejas
realmente? Ele nunca deixaria de lutar! Deste modo, Wolfgang reencontrava a
tranquilidade
ligada à certeza, mas terminava estas dolorosas variações regressando à dúvida
inicial.
Ao dirigir-se, na companhia de Constance, até casa do barão Van Swieten, como
faziam todos os domingos, Wolfgang tinha a esperança de vir a descobrir novas
peças
de Johann-Sebastian Bach.
158 Nº 18,K. 456.
273
Na véspera, o barão tinha por fim encontrado, ao que lhe parecia, uma pista
fidedigna que poderia levá-lo à identificação do vigilante de pedreiros-livres.
Mas,
depois de investigar mais minuciosamente, chegara à conclusão de que se tratava
apenas de um vulgar polícia encarregado de manter ficheiros de informações sobre
os cortesãos em contacto com o ministério da Guerra.
Perto do cravo, encontrava-se Thamos, ainda mais impressionante do que de
costume. Van Swieten foi apresentar Constance aos demais convidados, deixando o
egípcio
a sós com o músico.
- Estás satisfeito com a tua nova casa?
Página 129
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- É uma maravilha! Joseph Haydn e alguns outros colegas irão lá em breve para
tocar música de câmara. Claro que vós estais sempre convidado, nem é preciso
dizê-lo.
- Tenho um outro convite para te transmitir.
A solenidade do tom fez estremecer o compositor.
- Após todos estes anos de pesquisas, de sucessos e de insucessos, após os teus
contactos com pedreiros-livres de diversas tendências, após as tuas
significativas
leituras, desejas prosseguir sozinho o teu caminho, ou queres tentar transpor o
limiar do templo?
Por um instante, Wolfgang fechou os olhos.
- Há tanto tempo que eu esperava por esta pergunta!
- Qual é a tua resposta?
- Transpor o limiar do templo é o meu mais profundo desejo.
- Antes, porém, terás que te submeter a uma derradeira prova. Caso falhes, não
nos tornaremos a ver.
63.
Viena, 14 de Outubro de 1784
Incapaz de retomar O Ganso do Cairo, Wolfgang regressou a um género musical que
não praticava há seis anos: a sonata para piano159. Ele dedicou a nova obra à
sua
aluna Theresa von Trattner e escolheu a tonalidade trágica de dó menor para
exprimir a ansiedade de poder vir a falhar e a violência do seu desejo
espiritual. A
música era arquejante, segmentada, efervescente. Acabaria tal fogo por queimá-lo
ou por iluminá-lo?
Não o tendo Thamos prevenido com relação à natureza da prova que o aguardava,
Wolfgang não sabia como preparar-se para ela.
A espera era simultaneamente esperança e angústia. Esperança de vir a descobrir
um novo universo e de entrever por fim a Luz, angústia de poder vir a ser
rejeitado
para todo o sempre. Porque não haveria segunda hipótese.
Ficar à espera sem data marcada... Que suplício! Mas não seria isso parte da
própria prova?
Lyon, 15 de Outubro de 1784

Os Cavaleiros beneficentes da Cidade Santa bajulavam o seu mentor, Jean-Baptiste


Willermoz, grande vencedor do capítulo de Wilhel-
159 K. 457.

275
msbad. Quanto aos escassos Supremos Professos que celebravam as cerimónias
místicas, esperavam pela criação dos rituais que se destinavam a toda a
Maçonaria, como
fora prometido ao Grão-Mestre Fernando de Brunswick.
Willermoz tinha todos os trunfos na mão. Bastava jogá-los para ganhar
definitivamente a partida.
Um único Irmão duvidava desse triunfo: ele próprio. Ao ler os primeiros
rascunhos dos seus próximos, aos quais confiara a tarefa de redacção daqueles
novos rituais,
Willermoz ficara profundamente desapontado. A vitória de Wilhelmsbad
afigurava-se inútil e estéril, dado que eles seriam incapazes de tirar proveito
da vantagem
que haviam alcançado. Ter ido caçar para a coutada dos alemães só traria
dissabores a Willermoz e aos seus adeptos. Mais valia confinarem-se ao seu
domínio reservado.
Willermoz decidiu esquecer a promessa feita a Fernando de Brunswick. O
Grão-Mestre que se desenvencilhasse sozinho.
- O conde Phénix deseja ver-vos - anunciou um dos seus discípulos. - Ele está
instalado no Hotel da Rainha, no cais Saint-Clair, e afirma estar na posse de
informações
essenciais.
Intrigado, Jean-Baptis te Willermoz dirigiu-se até à morada indicada. O seu
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
interlocutor revelou-se de imediato.
- Eu, Cagliostro, irei fundar aqui uma Loja do meu Rito egípcio. Ajudai-me a
recrutar adeptos, e em troca eu comunico-vos os meus segredos.
- Quais são os vossos segredos?
- Quais são os vossos, distinto Irmão?
- Falai primeiro.
- Isso está fora de questão, já que eu sou o Supremo Copta, superior de todos os
pedreiros-livres! Se sois conhecedor dos Supremos Mistérios, falai sem receio.
- Os meus discípulos só reconhecem a minha autoridade - lembrou Willermoz. - Se
desejais implantar o vosso Rito em Lyon, tereis de vos submeter a essa
autoridade
e tereis de revelar-me os vossos rituais para que eu me pronuncie sobre a vossa
legitimidade.
- Não compreendo as vossas exigências, Irmão, mas tendes de admitir as minhas! O
nosso bom entendimento tem de repousar sobre a confiança e a entrega mútua.
276
- Tratemos, antes de mais, de saber se falamos a mesma linguagem. Acreditais na
natureza divina de Jesus Cristo?
Cagliostro meditou sobre o assunto.
- Cristo é filho de Deus, filósofo e iniciado, mas não é ele próprio Deus.
O rosto afável de Willermoz endureceu.
- Tal pensamento é herético e condenável.
- Vós sois pedreiro-livre, Irmão! Exercei o vosso sentido crítico.
- Labutais no erro, Cagliostro, e desse modo demonstrais que não passais de um
impostor. Na realidade, não possuis segredo nenhum e dispersais os espíritos,
afastando-os
de Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Errais ao desprezar o meu saber, Willermoz. Vós é que sois um impostor!
Enganais os vossos Irmãos, tornando-os escravos de uma religião limitada.
- O vosso discurso miserável põe em evidência a vossa mediocridade. Sabei,
senhor, que eu tenho a capacidade de lançar exorcismos contra os perversos como
vós. Pagareis
bem caro as vossas palavras ignóbeis, podeis estar certo disso.
Cagliostro irritou-se.
- As vossas ameaças não me atingem. Não tenteis praticar a vossa magia negra
contra mim, pois ela ser-vos-ia devolvida em cheio!
- Havemos de ver qual de nós é mais forte.
Inimigos inconciliáveis a partir daquele momento, os dois homens trocaram
olhares de desafio.
Viena, 31 de Outubro de 1784
Para celebrar o aniversário do seu professor, os alunos de Mozart tinham
organizado um pequeno concerto no grande apartamento da Domgasse. O pintassilgo
Star apreciou
o talento dos intérpretes, com excepção do de um convidado parisiense, o barão
Bagge, que se cobriu de ridículo ao tentar interpretar um concerto para violino
muito
para além das suas capacidades.
Ao mesmo tempo que se unia de bom grado à hilaridade geral, Wolfgang tinha o
espírito ausente, pois pensava na inquietante prova anunciada por Thamos. O que
iriam
exigir dele, que qualidades deveria
277
demonstrar? Wolfgang passara a dormir mal, duvidava das suas capacidades e
perguntava-se se seria realmente apto para trabalhar com seres cujos
conhecimentos eram
infinitamente superiores aos seus!
Caso falhasse, que desespero! Não se punha, no entanto, a questão de desistir.
Ele enfrentaria os seus juizes, quem quer que fossem, e não esconderia nada da
sua
personalidade, nem das suas ideias, nem dos seus sentimentos.
Os seus hóspedes acabavam de se despedir, Wolfgang estava a fechar as portadas
interiores do seu apartamento, quando vislumbrou, na rua, a silhueta de Thamos,
Página 131
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
o
egípcio.
Correu logo ao seu encontro.
-Já pensaste bem, Wolfgang?
- Não faço outra coisa, e até deixei de compor!
- Continuas decidido a tentar a aventura?
- Sempre!
- Nesse caso, tenta descansar um pouco. A prova decisiva terá lugar nesta mesma
noite.

64.
Viena, 1 de Novembro de 1784
Um homem idoso que ele não conhecia vendou os olhos de Wolfgang, tomou-lhe a
mão, introduziu-o numa sala que parecia muito vasta e ajudou-o a sentar-se numa
cadeira.
- Profano - articulou uma voz muito severa -, sois acolhido num templo. Aqui
estão reunidos Irmãos à procura da Luz e do conhecimento. Eles querem sondar o
vosso
coração e o vosso espírito para saber se desejais verdadeiramente partilhar a
Busca que eles conduzem. No término desta prova, tomaremos uma decisão unânime.
Ou
os nossos caminhos se apartarão, ou sereis admitido no seio da nossa comunidade,
e este julgamento não terá apelo. Eis a primeira pergunta: o que é a iniciação?
Wolfgang teve a impressão de responder de forma lamentavelmente atabalhoada. Não
conseguia achar os termos adequados, misturava as ideias e não conseguia
exprimir-se
como teria desejado. Graças à presença da venda, contudo, ele olhava para dentro
de si próprio e permanecia concentrado.
Apesar da intensidade daqueles momentos, apesar do medo de falhar e da
necessidade de responder às numerosas e variadas perguntas que lhe eram feitas a
respeito
dos seus pensamentos, da sua existência, dos seus gostos, da sua concepção da
música, das suas qualidades, dos seus defeitos, e de muitos outros temas,
Wolfgang
sentiu um certo distanciamento, como se nada daquilo lhe dissesse directamente
respeito.

279

Em seu redor, não sentia nenhuma energia negativa, mas antes seres que o
escutavam com atenção e que, longe de o julgarem, procuravam compreendê-lo e
saber se ele
conseguiria seguir o caminho iniciático.
- Agradecemos a vossa colaboração e a franqueza das vossas respostas - concluiu
a mesma voz grave. - Sereis reconduzidos até ao exterior. Daqui a algum tempo,
ficareis
ciente do resultado da nossa votação.
Ajudaram Wolfgang a levantar-se e a sair da sala. Em seguida, o mesmo homem
idoso retirou-lhe a venda e, sem proferir palavra, abriu-lhe a porta da casa
para a qual
fora convocado.
Chovia.
Wolfgang não voltou logo para a sua casa, pois sentia vontade de vaguear pelas
ruas de Viena.
Agora, o seu destino estava selado. Caso a Loja recusasse a sua candidatura, ele
não poderia transpor o limiar do templo e nunca mais voltaria a ver Thamos, o
egípcio.
Caso os Irmãos o acolhessem entre eles, começaria uma vida nova, uma vida capaz
de conferir sentido a todas as suas experiências passadas, capaz de abrir-lhe
novos
horizontes, de cuja presença ele tinha uma vaga consciência, sem contudo
conseguir vê-los claramente.
O seu destino estava selado, e ele por enquanto ignorava a decisão. Como
poderia, naquelas condições, conciliar o sono?
Viena, 2 de Novembro de 1784

Página 132
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Tens os olhos vermelhos, mas estás muito pálido! - observou Constance,
inquieta. - Estás doente?
- Não, dormi mal.
- Por causa do teu estranho serão?
- Não podes imaginar o peso da incerteza! É uma prova dura ser o último a saber!
Wolfgang foi improvisar para o cravo. Seduzido pela melodia, o pintassilgo Star
começou a cantar. Seria um bom sinal?
- Vou passear.

280
Não conseguindo concentrar-se nem ficar quieto num sítio, o compositor sentia
vontade de andar até ficar esgotado.
Diante da catedral de Santo Estêvão, encontrou Thamos.
- Belo dia - considerou o egípcio. - Um sol generoso, uma temperatura aceitável.
Wolfgang foi incapaz de reter a pergunta que lhe queimava os lábios. -Já
tendes... o veredicto?
- Claro que tenho, já que estou aqui.
- E aceitais... comunicar-mo?
- Aceitar não é o termo exacto.
- Qual deverei então usar?
- Na realidade, Wolfgang, os meus Irmãos encarregaram-me da tarefa de te
anunciar o resultado das suas deliberações.
Como rosto de Thamos se mantinha insondável, o compositor temeu o pior.
Não, não era possível... O seu sonho não podia desmoronar assim, num único
segundo!
Thamos pousou a mão no ombro do Supremo Mago.
- A Loja Para a Beneficência decidiu proceder à tua iniciação. Wolfgang estava
incapaz de exprimir aquilo que sentia. Tratava-se de uma alegria inédita, tão
forte
que dava a sensação de estar a voar por cima das montanhas.
- Este é o início de uma longuíssima viagem, não é um ponto de chegada -
preveniu o egípcio.
- Se soubésseis...
- Eu sei, Wolfgang. Também eu vivi um momento semelhante. Não esqueças nunca o
seu sabor. Os iniciados desiludem-nos amiúde, mas a iniciação, ela, nunca te
há-de
desiludir. Resta agora cumprir uma formalidade: a tua carta de candidatura.
- Quando serei iniciado?
- A Loja escolherá a data.
- Não demorará muito? Thamos sorriu.
- Espero que venhas a festejar o mais belo Natal da tua vida.
281

Viena, 3 de Novembro de 1784


Leopold-Aloys Hoffmann, professor de língua e de literatura alemã, pertencia aos
Iluminados, sob o nome de código de Sulpicius, e desempenhava a função de
secretário
da Loja Para a Beneficência. Nessa categoria, cabia-lhe enviar as convocatórias
para os Irmãos, registar a cada reunião os nomes dos presentes e dos ausentes,
redigir
os relatórios administrativos destinados à Grande Loja de Áustria e receber as
cartas de candidatura.
Nessa manhã, ele leu a de Mozart, músico de profissão. Hoffmann já ouvira falar
do autor de O Rapto do Serralho, que não possuía costados de nobreza nem
figurava
no número das pessoas dotadas de influência na corte. Enfim, tratava-se de um
recruta sem grande interesse para a pequena Loja Para a Beneficência, cuja
orientação
desagradava a Hoffmann.
Por iniciativa do Venerável, influenciado por Ignaz von Born, a Loja
interessava-se demasiado pelo estudo dos símbolos.
Hoffmann, quanto a ele, procurava granjear amigos bem colocados. Para mais,
tinha cada vez mais dificuldade em aceitar as críticas dirigidas contra as
instituições,
bem como a subversão de uma série de valores adquiridos. Esta Maçonaria ia por
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
um mau caminho, que ele denunciava periodicamente a um antigo Irmão, chamado
Geytrand.
É certo que Hoffmann traía o seu voto de nunca revelar nada do que via e ouvia
na Loja. Mas palavras não passavam de palavras e, já que ele desaprovava as
ideias
da Beneficência, a sua consciência estava tranquila.
Segundo o costume, cabia a Hoffmann transmitir a candidatura de Mozart às
restantes Lojas de Viena, com o fito de obter a sua aprovação. Acontecia por
vezes que
um Irmão manifestasse a sua oposição a uma candidatura. Era-lhe então pedido que
se justificasse e provasse os seus argumentos, cuja solidez era avaliada.
Mas esse trabalho aborrecia-o. O seu sucessor, que não tardaria a ser nomeado,
que se ocupasse da candidatura desse Mozart.
65.
Viena, 9 de Novembro de 1784
Enquanto estava à espera da data da sua iniciação, Wolfgang compôs o quarto160
dos seis quartetos que contava dedicar ajoseph Haydn. Afirmando a sua vontade de
triunfo
e de descoberta no movimento inicial, Wolfgang consagrou o adagio a uma
meditação sobre a profunda transformação da sua existência. Tratar-se-ia de uma
espécie de
morte benéfica, de passagem de um mundo tenebroso para um universo cuja luz era
inacessível aos olhares profanos? Com um ritmo de dança, o final exprimia a
alegria
intensa de quem estava prestes a transpor o limiar do templo, depois de ter
temido, por momentos, que tal porta se fechasse para sempre.
Dia 17 de Novembro, O Rapto do Serralho seria representado em Salzburgo pela
primeira vez. Wolfgang sentia tal evento como um exorcismo, uma vitória
definitiva sobre
Colloredo e sobre a tirania cujos grilhões ele soubera romper. Não acreditando
em coincidência, mas antes na organização da realidade por um arquitecto divino,
o
compositor ligava este pequeno prazer suplementar à imensa alegria que iria
conhecer dentro em breve.
160 K. 458, que, na publicação de 1785, ficará em terceiro lugar.

283

Paris, 13 de Novembro de 1784


Apesar do insucesso do capítulo de Wilhelmsbad, o marquês de Chefdebien e os
demais Irmãos da Loja dos Filaletos decidiram não desistir. Se os
pedreiros-livres se
revelassem incapazes de sair daquele impasse, a Ordem corria o risco de
desaparecer.
Tendo várias questões essenciais ficado por resolver, os Filaletos abriam o seu
próprio capítulo até dia 26 de Maio, esperando recolher nele o maior número
possível
de delegados de todas as Lojas europeias.
Eles definiram nitidamente os problemas: qual é a natureza fundamental da
Maçonaria? Que origem se lhe pode atribuir, com um mínimo de credibilidade?
Dever-se-á
privilegiar a tradição oral ou a escrita? Quem será, hoje em dia, o fiel
depositário de tal tradição? A que ciências ocultas se liga a Maçonaria? Qual
dos Ritos
actualmente existentes será propício para fazer progredir a Ordem?
Infelizmente, o número de participantes no capítulo manteve-se extremamente
baixo, sendo particularmente diminuta a colaboração dos Irmãos.
Para maior desespero dos promotores do evento, houve pouquíssimas respostas
claras. Interessando-se por alquimia, por magia e por teosofia, os Filaletos
teriam gostado
de se colocar à cabeça de um movimento filosófico e de erguer uma Ordem
iniciática capaz de modificar profundamente as mentalidades.
Como verificava esta Loja considerada excêntrica, a sociedade francesa era
atravessada por muitas outras correntes de ideias sem relação com a pesquisa
Página 134
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
esotérica.
As críticas com relação ao poder instituído, à nobreza, à Igreja e aos seus
privilégios iam aumentando, e a maior parte dos pedreiros-livres interessava-se
mais
por essas questões do que pelo mundo dos símbolos.
Não obstante o fracasso evidente do capítulo de Paris, muitos Irmãos continuavam
a exigir novos debates.
Viena, 20 de Novembro de 1784

- A situação dos Iluminados vai de mal a pior - estimou Geytrand. - Segundo as


últimas informações que me foram facultadas,
284

Berlim enfileirou com Munique e declarou-lhes guerra. A Rosa-Cruz de Ouro


acusa-os de desafiar os príncipes e de atacar a religião. Por causa das opções
extremistas
dos Iluminados, toda a Maçonaria corre o risco de ser considerada como uma seita
revolucionária particularmente perigosa.
- Como têm reagido os seus dirigentes? - perguntou Joseph Anton.
- Têm-se remetido para um silêncio absoluto.
- Isso é muito inquietante! Teria preferido uma luta aberta e querelas
vibrantes, que levariam à existência de vencidos dos dois lados.
- A seita da Rosa-Cruz de Ouro é menos nociva que a dos Iluminados - declarou
Geytrand. - O misticismo cristão da primeira está a minar os fundamentos da
Maçonaria.
- Esperemos bem que sim! De qualquer modo, os Iluminados estão a regressar aos
seus refúgios. Os mais fanáticos deles não abandonarão nem as suas opiniões nem
os
seus projectos. Apenas agirão de forma mais perniciosa.
Viena, 1 de Dezembro de 1784

No final de uma sessão da Loja Para a Beneficência, Thamos interrogou o novo


Secretário, Schwanckhardt.
- O teu predecessor, Hoffmann, regularizou a candidatura do compositor Wolfgang
Mozart?
Schwanckhardt examinou o expediente que herdara.
- Ele parece ter-se esquecido desse assunto - deplorou o novo responsável. -
Como já deves ter percebido, Irmão, o meu antecessor não se interessava muito
pelo cumprimento
dos deveres inerentes ao seu cargo. A carta de Mozart não foi transmitida às
demais Lojas vienenses. Vou tratar imediatamente do assunto.
Irritado, Schwanckhardt não dissimulou a sua irritação ao redigir a respectiva
circular: "Proposta relativa ao mestre de capela Mozart. O nosso antigo
Secretário,
Hoffmann, esqueceu-se de registar este profano e de informar as Lojas Irmãs
acerca desta proposta. Mas a respectiva notificação já foi dirigida à Loja de
distrito
há quatro semanas.
285
Dada esta situação, desejamos proceder à admissão do candidato, se não houver
objecções por parte de nenhuma Loja Irmã."
Viena, 11 de Dezembro de 1784
Wolfgang estava a trabalhar num concerto para piano161 cujo primeiro andamento
agradava muito ao pintassilgo Star. Cheia de determinação, a música era ao mesmo
tempo
alegre e supremamente elegante. Dava vontade de redescobrir o mundo, de
acreditar no Homem, de esquecer as baixezas e de pensar que o amanhã seria
melhor.
Durante o seu passeio matinal, Wolfgang encontrou Thamos.
- O procedimento administrativo está concluído - revelou-lhe o egípcio. -
Nenhuma Loja vienense se opõe à tua admissão.
Página 135
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
-Já conheceis a data da minha iniciação?
- Dia 14 de Dezembro, às 18.30 horas. Não deixes de ser pontual.
- Como deverei preparar-me?
- Não te preocupes com nada. Até breve, Wolfgang.
O homem que agora se afastava num passo tranquilo tinha mudado a sua vida. Sem
ele, Wolfgang teria permanecido como um vulgar músico, mergulhado nas querelas
de
um meio medíocre em que o ideal não tinha lugar.
Wolfgang correu até à sua secretária para compor o final do seu concerto. Em vez
do movimento lento habitual entre os dois movimentos rápidos, escreveu um
alkgretto
simultaneamente poético e profundo, no qual se exprimia a intensidade da sua
emoção.
Constance, o bebé, o passarinho Star e as criadas escutaram aquele canto de
inacreditável pureza.
O allegro final voltava a uma realidade bem concreta, alicerçada num dinamismo
que arrastava tudo à sua passagem.
Nesse instante, Constance percebeu que não se tinha casado apenas com um homem
talentoso, mas com um génio capaz de descortinar o mistério da vida. Saberia ela
compreendê-lo
e amá-lo na justa medida?
161 Nº 19, K. 459.
66.
Viena, 14 de Dezembro de 1784, 18.30 horas

A pequena Loja Para a Beneficência funcionava nas instalações da sua Irmã maior,
Para a Verdadeira União, ela mesma filial da importante e influente Loja Para a
Esperança Coroada. Ignaz von Born controlava o conjunto daquelas Lojas. Thamos
tinha escolhido a Beneficência para que Mozart fosse recebido numa espécie de
casulo,
antes de vir a descobrir a complexidade do mundo maçónico.
Como mandava o costume, o músico, inscrito no registo sob o número 20, receberia
a iniciação com um "gémeo", neste caso um religioso, Wenzel Summer, capelão em
Erdberg.
Esperava-se que esta aliança simbólica viesse a afastar, tanto de um como do
outro, os malefícios do destino.
Thamos, o egípcio, acolheu Wolfgang. Conforme as exigências do abade Hermes, ele
trouxera o Supremo Mago até o limiar daquele templo no qual, mercê das pesquisas

e da formulação ritual de Ignaz von Born com base no Livro de Tot, Mozart
receberia uma autêntica iniciação.
A missão do egípcio, todavia, não findava ali. Após a sua recepção na Loja,
muitas provações aguardavam Wolfgang. Conseguiria ele manejar os instrumentos
colocados
à sua disposição, traduzir em música a tradição iniciática e criar uma linguagem
sagrada acessível para todos, para além dele próprio e da sua época?
- Eu sou o teu padrinho e vou conduzir-te até ao centro da Terra, onde ficarás a
meditar.
287
Thamos levou Wolfgang até uma pequena divisão cujas paredes cobertas de
reposteiros negros eram iluminadas por uma única vela.
O Noviço teve a sensação de se encontrar no centro de uma gruta. Sentou-se sobre
uma pedra cúbica, em frente de um altar no qual figuravam diversos símbolos.
Perto da vela havia um crânio. A luz e a morte, a luz ou a morte... O "homem
velho", qualquer que fosse a sua idade, tinha de desaparecer e dar lugar a um
novo ser.
A ampulheta e a foice passadas em aspa simbolizavam a inexorável passagem do
tempo e a acção de Saturno, que separava o essencial do supérfluo. Não se tinha
Wolfgang
perdido por centenas de caminhos ínvios, não tinha ele sucumbido à tentação da
superficialidade?
O pedaço de pão e a garrafa de água forneciam-lhe os alimentos indispensáveis
para a sua Busca. Quanto às três tigelas cheias de sal, de enxofre e de
mercúrio, elementos
Página 136
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
fundamentais do processo alquímico, elas ofereciam-lhe a possibilidade de
começar a preparação da Obra Maior, da qual ele seria em simultâneo o artesão e
a matéria-prima.
Nas paredes estavam escritas as seguintes fórmulas: "Conhece-te a ti mesmo", "Se
foi a curiosidade a trazer-te aqui, vai-te embora", e o termo alquímico
V.I.T.R.I.O.L.162
cujas letras correspondiam às iniciais de palavras latinas que formavam uma
frase, com o significado de "Visita o interior da Terra, corrige-te, e
encontrarás a
pedra escondida".
No âmago daquela matriz, ao abrigo da Terra-Mãe, Wolfgang sentia-se em perfeita
segurança. Viajava imóvel. Como poderia corrigir-se a si próprio? A introspecção
não era suficiente. Precisava de um ensinamento de ordem iniciática, que não
levava à melhoria individual, mas antes à pedra escondida.
Esta jazia no coração do Verbo, da palavra transmitida em espírito e em verdade.
Acima de um galo, cujo canto saudava o renascimento da luz vitoriosa sobre as
trevas, ondulava um listel com duas palavras inscritas: "Vigilância" e
"Perseverança".
Wolfgang atravessava o tempo e o espaço. Não vivia ele no interior da pedra
escondida, de que se tinha tornado um dos elementos consti-
Visita ao Interior da Terra. Rectificandoque Invenies Occultum iMpidem.
288
tutivos? Absorvido pela chama, ele situava-se na origem da criação, naquele
instante em que o pensamento divino tomava corpo sob a forma de um ar luminoso
capaz
de fecundar todos os materiais.
Aqui se exprimiam o eterno e o imutável. Nada os corromperia, nem mesmo a
presença de um profano.
A porta abriu-se.
Como esta meditação fora breve! Wolfgang teria gostado de passar longas horas
naquele sítio e de se impregnar daquela Terra matricial na qual se preparava o
seu
renascimento.
- Noviço - perguntou Thamos -, desejas prosseguir no caminho?
- Desejo.
- Deverás submeter-te a duras provas. Mesmo com plena consciência do perigo,
continuas a querer prosseguir?
- Continuo!
- Pensa bem na tua decisão, Noviço. Ainda podes voltar para trás.
- Aceito as provas.
-Já que assim é, iremos despir-te dos teus metais e preparar-te ritualmente para
que possas receber outras purificações.
Wolfgang compreendeu que os seus "metais" não se limitavam ao seu relógio, a sua
caixa de tabaco, as suas jóias ou outros objectos metálicos. Estavam a
retirar-lhe
tudo o que nele era rígido, os seus preconceitos e as suas barreiras, de maneira
a criar um ser novo, livre desses pesos. Mas a ausência dessa armadura tornava-o
mais frágil, expunha-o às agressões exteriores. Teria ele forças para resistir?
Despido o bonito fato, ficava abandonado o elegante traje que tão cuidadosamente
cobria o corpo e a alma, que servia de máscara e que permitia ao seu utente
pavonear-se
numa sociedade em que reinavam a hipocrisia e as convenções.
Thamos não lhe despiu a camisa, mas abriu-a de maneira a deixar à vista o lugar
do coração. Pôs-lhe também a descoberto o joelho direito, revelando assim o
ângulo
de Pitágoras, e o pé esquerdo; em seguida, ligou-lhe a perna, obrigando-o a
coxear. Por fim, passou-lhe uma corda em redor do pescoço e vendou-lhe os olhos.
Do orgulhoso Mozart restava agora apenas um indivíduo disforme e cego.
289
Thamos tomou-lhe a mão.
- Sozinho, és incapaz de avançar. Se o teu coração é puro, se desejas agir e não
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
reagir, deposita a tua confiança no teu guia. Graças a esta venda, aprende a ver
para lá do que é visível. Podemos avançar?
Wolfgang anuiu com a cabeça.
67.
Viena, 14 de Dezembro de 1784, Loja Para a Beneficência
Três pancadas soaram numa porta que se abriu com grande barulho.
Apertando com força a mão de Thamos, Wolfgang viu-se obrigado a avançar. De
repente, a ponta de um objecto metálico tocou no seu peito.
- Retirai esse gládio! - ordenou o egípcio - Este Noviço não constitui ameaça
para a existência da nossa Loja.
- Comprometes-te a guiá-lo? - interrogou uma voz severa.
- Fico por fiador de Wolfgang Mozart.
- O que deseja ele?
- Ver a Luz, ser iniciado nos nossos mistérios e participar nos nossos
trabalhos.
- Ele é livre e de bons costumes?
- Assim sou! - afirmou Wolfgang.
Ele conquistara a sua liberdade. E, diante de Deus, podia jurar que o seu
comportamento sempre fora irrepreensível.
- Se atraiçoardes a nossa confraria - retomou a voz severa -, o gládio perfurará
o vosso peito. É mesmo em toda a liberdade e de inteira vontade que solicitais a
iniciação?
- Em toda a liberdade e de inteira vontade!
- Pensai com cuidado na gravidade da vossa iniciativa. Ela exigir-vos-á coragem
e vontade. Sereis vós capaz delas?
- Assim serei.
291

- Possa o Supremo Arquitecto destes mundos amparar-vos e auxiliar-vos no decurso


das vossas viagens. Ele é Uno, mas revela-se em todas as coisas. Que Ele se
digne
proteger os Irmãos reunidos aqui neste templo e que abra o caminho a este Noviço
desejoso de conhecer os Mistérios. Aqui, nós só temos deveres: trabalhar
constantemente
na procura da sabedoria, lutar contra a ignorância e contra os preconceitos,
praticar a fraternidade e guardar o sigilo acerca dos nossos trabalhos. Noviço,
comprometei-vos
a cumprir tais obrigações?
- Comprometo-me.
- Ainda sois livre para vos retirardes. Mas daqui a pouco já não tereis tal
opção. Persistis?
- Persisto.
- Nesse caso, que seja realizada a primeira viagem, durante a qual o Noviço será
submetido à prova do ar.
Desencadeou-se um grande alarido. Para os ouvidos do músico, tratava-se de uma
abominável cacofonia na qual acabava por sobressair a potência do vento. Não
evocaria
tal tempestade os tumultos interiores que todos temos de vencer quotidianamente?
Rasgou-se um véu, abriram-se portas celestes. Um sopro carregou o pensamento de
Wolfgang em direcção aos quatro Orientes, e ele respirou um ar novo, princípio
das
mutações vividas por um iniciado. Graças a tal princípio, a energia criadora
adquiria consciência.
O caminho foi longo e penoso. Com a ajuda do seu guia, o neófito contornou
muitos obstáculos. E quando a tempestade amainou, ele teve a sensação de dispor
de uma
força nova.
Seguiu-se uma segunda viagem, correspondente à prova da água. Maior tempestade,
maior violência, mais barulhos estranhos que vogavam nas ondas e libertavam a
alma
dos seus pesos profanos. O avanço foi, todavia, menos difícil, apesar das
armadilhas a que o viajante logrou escapar graças à vigilância do seu guia.
O Noviço deixara de ser o escravo de um mundo estático. Passara a mover-se no
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
seio de profundos redemoinhos, nadava num oceano sem limites, na origem de toda
a vida.
Wolfgang sentiu o momento em que a luz nascia no âmago da água primordial e
vinha animar as várias formas de vida.
292
Restava uma derradeira viagem, correspondente à prova do fogo. Embora o percurso
parecesse desprovido de obstáculos, Wolfgang sentiu que corria perigo. Dançando
nos caminhos do vento, uma chama consumia o ar e a água, enchendo o espaço com o
seu pensamento. Esta chama levava o Noviço em direcção às portas da região das
luzes,
onde os iniciados que haviam passado para o Oriente eterno moravam na companhia
dos deuses.
A chama devorava aquele que se revelasse curioso ou indigno, mas fazia aumentar
o desejo de ser iniciado. Wolfgang soube que iria passar por uma etapa decisiva.
Ou ele se consumiria, ou então tentaria transpor um rio de fogo para nele
descobrir a fonte da criação.
Apertando ainda com mais força a mão de Thamos, ele passou pelas chamas
purificadoras.
A porta do Oriente escancarou-se.
- Em breve, exigiremos de vós o juramento que vos unirá à Ordem sagrada da
Maçonaria - anunciou uma voz firme. - A partir desse momento, deixareis de
pertencer a
vós próprio. Talvez chegue um dia em que tenhais que verter a última gota do
vosso sangue em defesa desta Ordem. Teríeis tal coragem, se o sacrifício vos
fosse pedido?
Wolfgang não podia dar a sua palavra de forma ligeira. Caso ele aceitasse,
penetraria numa família de espíritos, numa confraria iniciática para cuja
perenidade ele
deveria contribuir na medida das suas capacidades.
- Terei essa coragem - afirmou, consciente do alcance dessa promessa.
-Já que assim é, pronunciai as palavras do juramento.
Thamos conduziu o Supremo Mago até ao altar do Oriente. Fê-lo ajoelhar sobre a
perna esquerda e colocou-lhe a mão direita sobre as Três Supremas Luzes da
Maçonaria
iniciática: a Régua, o Esquadro e o Compasso.
Em seguida, o egípcio colocou na mão esquerda do Noviço um compasso aberto,
apoiando uma das suas pontas sobre o coração. E Wolfgang, frase após frase,
pronunciou
o juramento solene: "Eu, Mozart, de minha livre vontade, na presença do Supremo
Arquitecto do Universo e desta respeitável Loja de Pedreiros-livres, juro nunca
revelar
os Mistérios que me forem transmitidos. Prometo amar os meus
293
Irmãos e socorrê-los quando for preciso. Preferiria que me cortassem a cabeça a
ter de trair este juramento. Que o Supremo Arquitecto do Universo me ajude e me
guarde
do perjúrio."
- Uma vez que o Noviço foi considerado digno de ser admitido entre nós - ordenou
a voz firme -, que lhe seja retirada a venda, para que ele possa ver e meditar.
68.
Viena, 14 de Dezembro de 1784, Loja Para a Beneficência
Thamos retirou a venda.
Não reinava uma luz ofuscante, mas antes uma penumbra. Não se viam Irmãos
benevolentes, mas sim armas ameaçadoras.
E o angustiante espectáculo da morte.
Então, o longo e difícil caminho da iniciação levava somente àquela desolação?
- Sê capaz de discernir a Luz nas trevas - recomendou Thamos. - Fica doravante
ciente de que a traição é parte integrante da Tradição. Tendo consciência das
provas
impostas ao iniciado em busca de conhecimento, confirmas o teu juramento?
- Eu... eu confirmo-o.
Página 139
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Transtornado por aquela visão que permaneceria gravada no mais fundo do seu ser,
Wolfgang ouviu as palavras do Venerável que lhe revelou o significado daquele
momento
extraordinário. Ele deu-lhe as chaves para a prossecução da Obra Maior
alquímica, da irrupção da vida para lá do vazio.
Então, o templo iluminou-se e Thamos começou a vestir o novo pedreiro-livre com
os trajes rituais, cujo elemento principal era um avental que sublinhava a sua
qualidade
e as suas obrigações de construtor.
Wolfgang reconheceu o Venerável Mestre que estava prestes a consagrá-lo como
Irmão: o barão Otto von Gemmingen, que ele já encontrara em Mannheim.
295
Wolfgang recebeu a Luz pela qual ficava consagrado como Aprendiz, digno de
participar na cadeia de elos que uniam os iniciados passados, presentes e
futuros.
Em seguida, Wolfgang foi entregue ao Segundo Vigilante, encarregado de lhe
revelar os segredos do seu grau, os quais consistiam num sinal, num passo e numa
palavra
sagrada que ele nunca poderia pronunciar sozinho. Graças à intervenção de um
Irmão, ele pôde juntar a palavra quebrada e "fazer um símbolo".
Ao longo de todo o Ritual e da instrução oferecida ao Aprendiz, Wolfgang notou a
presença constante do Três, do pensamento ternário que ultrapassava as
contradições
e as oposições para produzir a união do espírito, da alma e do corpo.
Naquele ano de verdadeira luz de 5784, datado desta forma em alusão à origem
antiquíssima da maçonaria, a iniciação de Wolfgang Mozart foi registada no livro
de
Arquitectura da Loja.
Antes do banquete, o novo Aprendiz, impante de emoção, recebeu o abraço
fraternal de Thamos.
- Como poderei agradecer-vos pelo tesouro que me oferecestes?
- Este é apenas o início do caminho, Irmão Wolfgang. A partir de agora,
poderemos trabalhar melhor em conjunto.
O músico descobriu os membros da beneficência e os visitantes vindos de outras
Lojas. Não faltaram surpresas: o conde Johann Baptist Esterházy, alcunhado de
João,
o Ruivo, camareiro imperial, tocador de oboé e grande protector de Mozart, em
cujo favor já havia organizado muitos concertos; o seu conselheiro musical, o
maestro
e violinista Paul Wranisky; o príncipe Karl Iichnowsky, amigo da condessa Thun;
o conde Thun, que felicitou calorosamente o compositor.
- Bem vedes, Wolfgang, que os espíritos vos são favoráveis! As nossas Lojas não
são reservadas aos grandes senhores. Nelas encontrareis altos funcionários,
cientistas,
militares, eclesiásticos, escritores, mercadores, criados, e muito mais gente!
Sem a Maçonaria, essas pessoas tão diferentes nunca se teriam encontrado. Ao
conviverem
umas com as outras, no respeito das suas personalidades, não se tornarão elas
mais tolerantes, e portanto mais inteligentes?
Divertidos pela franqueza do discurso do conde Thun, Adamber-ger, intérprete do
papel de Belmonte, herói de O Rapto do Serralho, e
296
Fischer, que desempenhava o de Osmim, felicitaram Mozart, que se sentiu apanhado
no meio de um turbilhão. Seguiram-se o libretista Ste-phanie, o Jovem, membro da
Loja As Três Águias, e os editores de música, Torricella e os irmãos Artaria!
- Também tu, Joseph! - exclamou Mozart ao descobrir o seu cunhado Lange, marido
de Aloysia.
- Tal como nos é imposto pelo nosso juramento, permaneci calado. E não queria de
modo algum influenciar-te. Em contrapartida, fui desde logo favorável à tua
candidatura!
- Eu também - indicou Karl Thomas von Trattner, marido de uma das alunas de
Mozart e padrinho do filho do compositor.
Membro da Loja A Palmeira, livreiro-impressor, Von Trattner fora um dos
Página 140
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
senhorios do músico.
Desta forma, todos aqueles homens com quem ele estivera tantas vezes, e que
acreditara conhecer, pertenciam à Maçonaria!
Uma dúvida atravessou-lhe o espírito.
- Há quanto tempo preparais a minha admissão? - perguntou a Thamos.
- Desde sempre, Irmão, pois tu és um predestinado.
Não obstante o seu comportamento lamentável, o antigo Secretário da Beneficência
fez questão de vir ele também felicitar Mozart. Grande amigo do Venerável Von
Gemmingen,
Leopold-Aloys Hoffmann considerava-se intocável.
O seu olhar não agradou a Mozart, mas o compositor fez por esquecer aquela
primeira impressão, que podia ter sido causada pela emoção e pelo cansaço.
Afinal, não
eram todos os Irmãos, por definição, gente de valor?
Durante os ágapes, o Irmão Friedrich Hegrad dirigiu-se ao "gémeo" de Mozart, o
vigário Wenzel Summer, e relembrou a posição da Loja com relação à Igreja:
- Temos tanto a esperar de vós, meu Irmão, como educador do povo e apóstolo da
verdade. Com que zelo ardente, que rara modéstia, que prudência e que
inteligência
vos vejo trabalhar pela felicidade dos homens, vossos irmãos! E também vos vejo
resgatar todos aqueles que maltratam a missão de que estão incumbidos, tais como
o arcebispo Migazzi e os maus monges, que desonram as suas respectivas
297
Ordens e só se preocupam com os seus interesses pessoais. São os sacerdotes que
exercem maior poder sobre os homens, maior mesmo que o dos monarcas, pois aquele

que detém os corações manda mais do que aquele que domina os corpos. Podeis
fazer uso desse poder para honrar a Humanidade, e cabe-vos propalar a principal
virtude,
o amor fraternal. Podereis assim provar que não sois escravo do título de
sacerdote, mas antes digno da missão de melhorar os homens, ensinando-lhes que o
único
e verdadeiro serviço de Deus consiste num coração puro e nobre, na bondade, na
suavidade de carácter, na tolerância e na beneficência.
Sabendo que o arcebispo Migazzi não diferia muito de o Grande Mufti Colloredo,
Wolfgang apreciou este discurso. Em contrapartida, o do Venerável Otto von
Gemmingen
deixou-o perplexo.
- O objectivo da Maçonaria consiste em melhorar o bem-estar da sociedade. Numa
única palavra, a nossa Ordem deve ser essencialmente prática. Toda a especulação
que
persegue ideias desprovidas de finalidade acaba por perder-se em abstracções
demasiado intelectuais e esgota-se no domínio de conhecimentos desprovidos de
aplicações,
o que é profundamente contrário ao espírito da Maçonaria. Esta não nos
transforma em novos homens, nem nos leva a adquirir qualquer carácter místico.
Nós desejamos
elevar-nos acima da nossa própria insuficiência e da nossa fraqueza para que
possamos melhorar enquanto seres humanos. A Maçonaria depura os sentimentos,
atiça o
amor pela Humanidade, pela beneficência e pela rectidão. Ela encoraja cada um
dos seus membros à prática da virtude, inculca neles o dever de empregar todas
as suas
forças físicas e morais para o bem da Humanidade, corre a auxiliar a inocência
oprimida, oferece assistência e consolo aos infelizes. A Maçonaria põe assim em
funcionamento
inúmeros meios e processos para agir e para mostrar-se útil para o género
humano163.
163 Para estas declarações, ver a documentação reunida por Philippe A. Autexier
(cf. Bibliografia).
69.
Viena, 15 de Dezembro de 1784

Página 141
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Já que era impossível ir dormir depois de um evento daquele género, Wolfgang
convidou Thamos para ir beber um pouco de punch e não hesitou em interrogar o
seu convidado.
- Por que é que o Venerável minimizou o papel da espiritualidade? O ritual de
iniciação parece apontar precisamente na direcção oposta!
- Estás já a aplicar a primeira directiva: vigilância. Otto von Gem-mingen
assemelha-se à maior parte dos Irmãos, que vêem na Maçonaria apenas um movimento
humanista.
Não se deve desprezar tal componente, claro, mas o objectivo da iniciação vai
muito além. Nascida no Oriente eterno, a arte real dos pedreiros-livres vê-se
amiúde
rebaixada pelos humanos ao medíocre nível deles. Somente a pedra é lisa, isenta
de qualquer defeito, ao contrário do indivíduo.
- Mas não é o Homem digno da iniciação?
- Os Antigos pediam-nos que agíssemos como agem os deuses, que calcássemos os
nossos passos pelas suas peugadas, que celebrássemos os ritos para que o poder
criador
permaneça na Terra. As crenças acabaram por submeter a consciência, impondo
verdades reveladas que nos afastam do conhecimento. Ao transpor a porta de uma
Loja,
mesmo que ela seja imperfeita e composta por humanos limitados, estás a ligar-te
à Tradição iniciática, que é a própria essência da vida, para lá das nossas
efémeras
existências temporais. O homem não passa da sombra do Homem, Ser masculino e
feminino que tem a di-

299

mensão do cosmo. Para perceber tal realidade, deves seguir a via alquímica das
transmutações, cujos primeiros elementos te foram ensinados na gruta primordial.
Os dois Irmãos conversaram a noite toda. Wolfgang sentia que tinha ainda
milhares de perguntas a formular, desejoso como estava de aprender a
linguagem dos símbolos e de se familiarizar com o templo, ao mesmo tempo aberto
sobre o cosmo e fechado como um atanor NT

Viena, 16 de Dezembro de 1784


Joseph Anton estava desassossegado. No entanto, a vigorosa cruzada contra a
Maçonaria conduzida pelo arcebispo de Viena, Anton Migazzi, deveria regozijá-lo.
A Igreja
tomava por fim consciência do perigo! Os espiões que o prelado lograra
introduzir nas Lojas transmitiam-lhe as violentas críticas que os
pedreiros-livres formulavam
não só a seu respeito mas também contra os sacerdotes em geral, contra os monges
limitados e contra as crendices cegas.
Infelizmente, Migazzi esbarrava contra a política liberal e progressista do
imperador. E José II não perdoava ao arcebispo o gesto de ter trazido o papa a
Viena
para tentar levar o soberano a nutrir melhores sentimentos com relação à Igreja
Católica.
O imperador e o sumo pontífice não tinham chegado a nenhum acordo, tinham ficado
a odiar-se cordialmente, e José II continuara com a sua política de encerramento
de conventos, que transformava em instituições de caridade.
Furioso, o arcebispo Migazzi não hesitava em inspirar e financiar brochuras nas
quais se condenava a atitude do soberano, a quem tais críticas descontentavam
profundamente.
Deste modo, o prelado acabava por provocar uma reacção que Joseph Anton temia: o
imperador apoiava-se na Maçonaria para fazer frente à Igreja, para contrariar os
preconceitos reaccionários desta instituição, a sua recusa em educar a
população, e a sua obstinação em propagar a ignorância.
Ao combater abertamente contra José II e contra os pedreiros-livres, o arcebispo
acabava por fomentar uma aliança entre ambos. O
NT Designação do forno alquímico.
300
Página 142
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
imperador servia-se da Maçonaria, ao passo que esta se desenvolvia e tomava
foros oficiais.
Uma verdadeira catástrofe.
Não estaria o imperador a criar um monstro que cedo se revelaria incontrolável,
não obstante a fundação da Grande Loja de Áustria, aparentemente fiel e
obediente?
Sentindo-se encorajados, não investiriam os Irmãos cada vez mais no campo
político, semeando as suas ideias subversivas?
Geytrand tinha um ar ainda mais sinistro que de costume.
- Más notícias, senhor conde. Eis a publicação que eu consegui adquirir.
Joseph Anton descobriu um periódico intitulado Jornal para os Pedreiros-livres,
cuja leitura era inicialmente reservada aos Irmãos, mas cuja influência se
espalhava
já muito para além das Lojas.
- Quem é o responsável por esta iniciativa?
- Ignaz von Born, ajudado pelo professor Joseph von Sonnenfels. A direcção do
jornal foi entregue a um poeta, Blumauer. Tiragem: mil exemplares. Os temas
tratados
provêm dos trabalhos efectuados na Loja dos Mestres, dirigida pelo
mineralogista.
- Von Born, sempre Von Born!
- Intocável - deplorou Geytrand.
- Ninguém o é para sempre - resmungou Anton, folheando a publicação, em que se
abordava a questão do juramento, da fé e do fanatismo, da necessidade de
rituais.
Anton demorou-se na leitura de um longo estudo da autoria de Ignaz von Born,
dedicado ao tema dos mistérios egípcios. O autor defendia a origem egípcia da
Maçonaria
e, retomando os elementos do Livro de Tot emprestado por Thamos, tratava do
saber e das obrigações do antigos iniciados, que haviam inscrito a sua sabedoria
em monumentos
como as pirâmides.
- Eis-nos bem afastados dos temas da política e do humanismo - observou
Geytrand.
- Pelo contrário, meu amigo, pelo contrário! O verdadeiro mestre espiritual da
Maçonaria vienense envereda pelo terreno das ideias essenciais, com o objectivo
de
fazer despertar os seus Irmãos, arrancando-os ao torpor em que vegetam. Esta
referência ao Antigo Egipto

301
parece-me decisiva, pois orienta a maçonaria em direcção ao conhecimento dos
Mistérios e põe em evidência a pobreza das nossas ideologias. Geytrand
partilhava o
ponto de vista do seu superior e lamentava ainda mais ter deixado uma Maçonaria
que seguia por aquele caminho. Geytrand haveria de destruir quanto não podia
possuir.
- O director deste pasquim, Blumauer - indicou -, é amigo de Mozart.
- Referes-te àquele músico cuja ficha abri no outro dia?
- Pois digo-vos que essa ficha há-de ficar bem preenchida, senhor conde, pois
Wolfgang Mozart acaba de ser recebido como Aprendiz na pequena Loja Para a
Beneficência.
70.
Viena, 24 de Dezembro de 1784
Thamos levou o seu Irmão Wolfgang para uma Sessão na importante Loja vienense
Para a Verdadeira União, onde, nessa noite, era recebido Anton Aponyi. Tão pouco
tempo
depois da sua própria iniciação, o novo Aprendiz tinha assim a sorte de poder
reviver o ritual, desta vez sem ter os olhos vendados. Em vez de ser submetido
ao ritual
na condição de Noviço, assistia agora a ele enquanto Irmão, podendo assim gozar
cada instante.
Em primeiro lugar, Wolfgang descobriu a Loja, vasta sala rectangular iluminada
por um candelabro suspenso por uma corda, por candeeiros fixos às paredes, e por
Página 143
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
palmatórias
a Oriente, onde o Sol ao norte e a Lua a sul enquadravam o Delta. O Sol
encarnava a claridade no coração das trevas, início da obra alquímica, a Lua
correspondia
à acção certa no momento certo, ao passo que o Delta representava o pensamento
ternário, instrumento usado pelo Supremo Arquitecto para moldar o Universo.
O Venerável164 Ignaz von Born causou profunda impressão sobre Wolfgang. Cara
alongada, ampla testa, olhos negros, o Mestre da Loja exalava mais imponência e
autoridade
do que o próprio imperador. Perto dele havia, sobre uma bandeja, a espada
iluminadora com a qual ele criava iniciados, e o maço de construtor no qual se
encerrava
o relâmpado.
164 Também se lhe dá o nome, na Alemanha, de Meister von Stuhl, Mestre de
Cátedra.
303
Emanações do Venerável, os outros "oficiais" da Loja organizavam-se segundo um
corpo de funções, símbolos das forças criadoras em constante actuação. Cada um
desempenhava
um papel preciso ao serviço do conjunto.
Wolfgang prestou uma atenção particular ao exame do "pavimento em mosaico",
quadrado longo formado por lajedos negros e brancos alternados. Não residiria aí
uma
alusão ao rectângulo da Génese, à metamorfose constante, ao próprio jogo da
vida?
O dia e a noite, a palavra e o silêncio, e todas as outras oposições... Não
tinha o iniciado o dever de ultrapassar a dualidade e conciliar os extremos?
Orgulhoso por vestir um avental que recordava tanto o carácter operativo da
Maçonaria como a edificação do templo enquanto uma das suas principais tarefas,
Wolfgang
recebera também o emblema da sua Loja, um pequeno esquadro suspenso por uma fita
azul.
O músico assistiu pela primeira vez a uma Abertura dos Trabalhos, que evocava o
nascimento da Luz e a criação do mundo, e em seguida presenciou a recepção de
Anton
Aponyi, contemplando, agora de olhos bem abertos, as diferentes etapas que ele
próprio havia anteriormente percorrido.
O Irmão Franz Saurau acolheu o novo Aprendiz, aconselhando-o a não conferir
importância às vantagens do berço, a não se alegrar com riquezas e honrarias,
ambas devidas
às circunstâncias e não ao mérito, e a não se deixar impressionar com as ameaças
e as intrigas dos profanos que podiam ser poderosos, mas cujo pensamento não
podia
ser elevado.
Poeta e secretário do teatro da corte, Johann Baptist Alxinger folgou de se
encontrar com o autor de O Rapto do Serralho e exprimiu-lhe o desejo de que
escrevesse
o quanto antes uma nova ópera, na qual não deixariam de participar diversos
Irmãos, fosse como cantores, fosse como músicos.
Falou em seguida Angelo Solimão, que se jactou de ter apresentado a candidatura
de Ignaz von Born àquela mesma Loja de que agora este era Venerável. Wolfgang
não
apreciou nada a maneira como este Irmão procurava destarte chamar a atenção para
a sua própria importância. Achou mais interessante, na verdade, trocar algumas
impressões
com Johann Michael Puchberg, mercador de tecidos. Membro da Loja da Palmeira,
este tinha sido nomeado tesoureiro da Verdadeira União.
304
- As minhas actividades comerciais não impedem de gostar de música - revelou o
jovial personagem de 43 anos. - Espero que aprecieis as sedas, os veludos e as
fitas!
- A minha mulher recorrerá a vós para obter conselhos sobre a decoração da nossa
casa.
Página 144
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Eu também vendo as melhores luvas de Viena - acrescentou Puchberg -, e estou
certo de que ela as achará conformes ao seu gosto. Ah! Meu caro Mozart, a
existência
nem sempre é fácil! Eu estava contentíssimo a trabalhar junto do meu antigo
patrão, que faleceu em 1777. Para salvar o seu estabelecimento comercial,
tornei-me gerente,
e o destino quis que eu viesse a casar com a sua viúva. Agora, dou por mim
proprietário e cheio de assuntos por resolver. Felizmente, aqui na Loja, tenho
encontrado
gente simpática e consigo esquecer as minhas pesadas responsabilidades. O mesmo
acontecerá convosco, vereis! A maçonaria é uma instituição maravilhosa, que
devia
existir em todo o mundo. Graças a ela, os homens tornam-se menos egoístas e
aprendem a ajudar-se uns aos outros. Em todo o caso, se algum dia tiverdes
problemas,
não hesitai em solicitar o meu auxílio. Sendo a riqueza um dom de Deus, devemos
agradecer-Lhe prestando ajuda aos nossos Irmãos.
- Espero nunca precisar de vos importunar.
- Com a ascensão da vossa glória, cedo tereis toda Viena aos vossos pés!
Wolfgang descobria Irmãos muito diferentes uns dos outros, e tal diversidade
parecia-lhe apaixonante.
Findos os Trabalhos, Thamos apresentou Wolfgang ao Venerável Ignaz von Born.
- Conto com a tua assiduidade, Irmão Mozart.
- Podeis estar certo dela, Venerável Mestre.
Thamos entregou ao músico um exemplar do Jornal para os Pedreiros-Livres no qual
estava publicado o artigo sobre os mistérios egípcios.
- Ao leres este texto, reencontrarás uma série de elementos que já usaste e que
voltará a usar.
- Thamos, Rei do Egipto... Esse esquiço de ópera continua a atormentar-me!
- Tens ainda muito para descobrir, Irmão - indicou Von Born. - Aceder aos
Supremos Mistérios é uma tarefa que exige um esforço considerável, de que bem
poucos são
capazes.

71.
Viena, 25 de Dezembro de 1784
Tanto Constance como o pintassilgo Star repararam na mudança que ocorrera em
Wolfgang. Uma nova luz iluminava o seu olhar.
- A porta do templo foi-me aberta - revelou à sua mulher -, e eu comecei a
percorrer um longuíssimo caminho.
Wolfgang escreveu ao seu pai165 para evocar o evento que acabava de modificar
tão profundamente a sua existência. Falou-lhe dos ideais da Maçonaria e das
infindáveis
riquezas fornecidas pela iniciação.
Muita gente poderosa e muitos grandes senhores eram pedreiros-livres, revelou.
Dentro da Loja, eles esqueciam títulos e privilégios, tornando-se Irmãos. E ele,
simples
músico, era assumido como um igual. Cada qual tinha o seu lugar, em função da
sua antiguidade maçónica e do seu grau simbólico.
Perceberia Leopold a importância de tais descobertas? Caso a resposta fosse
positiva, Wolfgang continuaria a abrir-lhe o seu coração.
Viena, 26 de Dezembro de 1784
Por ocasião de uma breve estada de Joseph Haydn em Viena, Wolfgang não resistiu
a falar-lhe do essencial.
165 Todas as cartas de Mozart, nas quais evocava a Maçonaria, desapareceram,
tendo provavelmente sido destruídas.
306
- Acabo de viver momentos extraordinários.
- Tendes um ar transtornado, com efeito. Não foi nada de grave?
- Pelo contrário, uma felicidade fabulosa!
- Deixai-me adivinhar: o imperador encomendou-vos uma ópera em alemão?
- Melhor ainda!
Página 145
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Haydn esforçou-se em vão.
- Tornei-me Aprendiz de Pedreiro-livre - declarou Mozart. O mestre ficou
intrigado.
- Em Viena, falam muito dessa sociedade secreta. Segundo diversos ecos, o
imperador aprova a sua existência porque ela se mostra favorável à sua política
liberal
e não se coíbe de criticar uma Igreja fechada a qualquer ideia de progresso.
- A iniciação vai muito para além dessas questões temporais - afirmou Wolfgang.
- Ela leva até à Luz e ao conhecimento, abre os espíritos para realidades
insuspeitas.
- O mundo que estais a descrever parece-me demasiado maravilhoso.
- E pode mesmo tornar-se tal, caso deixemos de estar cegos para passar a
contemplar o universo dos símbolos e a falar a linguagem da fraternidade.
- A fraternidade... Não será ela uma utopia?
- Sem a iniciação, sê-lo-á certamente. Mesmo com a iniciação, continua a ser um
ideal difícil de atingir! Mas a Loja despoja-nos dos nossos artifícios e das
nossas
máscaras. Um músico não será um construtor ao serviço do Supremo Arquitecto do
Universo?
- Achais mesmo que essa iniciação vos permitirá aprofundar a vossa arte?
- Tal é a minha opinião. E ficaria feliz em poder contar convosco como um dos
meus Irmãos.
O aspecto directo do convite, característico de Mozart, não chocou JosephHaydn
que, também ele, detestava subentendidos e circunlóquios.
- Se estou a perceber correctamente, vós ireis advogar a minha causa!
- Será tarefa fácil, pois todos vos estimam e vos admiram. Bastar-vos-á
apresentar a vossa candidatura.

307

- E terei de me submeter a certos ritos?


- Não se tratará de uma submissão, mas antes de uma elevação. Em vez de nos
agrilhoar como fazem os preconceitos, as crendices e as religiões, os ritos
libertam-nos.
- Para um músico-lacaio como eu fui toda a vida, que satisfação! E encontrastes
alguns grandes deste mundo como Irmãos?
- Nobres de todos os tamanhos! - exclamou Wolfgang.
- Permanecem tão pretensiosos dentro da Loja?
- Príncipes, barões e condes aprendem a tornar-se Irmãos.
- E os eclesiásticos?
- São pouco numerosos e procuram uma abordagem do divino que lhes alargue a
alma.
- Então uma Loja é composta apenas por indivíduos perfeitos?
- Pelo contrário, pois todos têm consciência das suas imperfeições e reúnem-se
precisamente para combatê-las juntos. Mas nada disso é importante quando
comparado
com a iniciação e com as imensas perspectivas que ela nos abre.
- Mozart, estais a intrigar-me.
- Tive a sorte de encontrar seres excepcionais e de poder, agora, trabalhar com
eles em perfeita fraternidade. Este ano trouxe-me tantas coisas boas! Quase
sinto
vertigens ao pensar nisso.
- Vós mereceis todas essas coisas boas, e o destino reservar-vos-á muitas mais.
De repente, Joseph Haydn tornou-se sombrio.
- O meu posto de trabalho situa-se longe de Viena... Os encontros são
frequentes?
- Cabe a cada Loja determinar o calendário das Sessões.
- Que Loja me aconselhais?
- Para a Verdadeira União. Há lá uma boa quantidade de músicos, e estareis à
vontade.
- Tenho de pensar no assunto! Obrigado pela vossa confiança e pela vossa
amizade, Mozart. Elas tocaram-me no fundo do coração.
O seu pai e Joseph Haydn: Wolfgang não se arrependia de ter desabafado com esses
dois seres de quem gostava tanto.
72.
Estrasburgo, 30 de Dezembro de 1784

Página 146
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Apesar do conforto do seu coche, o príncipe Carlos de Hesse, alçado a cabeça
dirigente da Estrita Observância, sentia-se cansado. Tinha sofrido uma forte
desilusão
ao ver morrer nos seus braços o imortal conde de Saint-Germain. Falso
alquimista, esse aventureiro oportunista não tinha segredo nenhum em seu poder.
E a publicação de um panfleto anónimo, São Nicásio ou Colecção de Notáveis
Cartas Maçónicas para Uso dos Franco-Maçons e daqueles que o não são, tinha
vindo desferir
um rude golpe na Ordem templária. Este texto atacava os principais dignitários e
os seus aliados franceses, acusados de terem manipulado o capítulo de
Wilhelmsbad.
O barão de Hund, fundador da Ordem, era apresentado como um burlão e um
mentiroso. O que pretendiam ao certo esses pedreiros-livres tão estúpidos que
acreditavam
numa lenda cavaleiresca? Recuperar os territórios dos templários e reconstituir
o seu imenso tesouro! Na verdade, os ingénuos Irmãos tinham pago enormes somas
aos
seus dirigentes, sem nada receber em troca, e viam-se agora desamparados e
desiludidos.
Os segredos? Uma gigantesca burla! E quem era Fernando de Brunswick, o
Grão-Mestre? Não passava de um militar de segunda linha, derrotado em 1760,
durante a Guerra
dos Sete Anos, e de um déspota agarrado aos seus títulos sonoros, desprovido de
qualquer visão do futuro.

309

Face a esta tempestade, o anjo-da-guarda de Carlos de Hesse recomendara-lhe que


fosse até Estrasburgo para aí solicitar o auxílio dos discípulos de Willermoz,
iniciados
nos ritos do místico lionês, procurando uni-los à sua causa.
O príncipe alemão foi bem recebido, mas ficou estupefacto com as declarações de
um dignitário local.
- O nosso Mestre Willermoz revelou-nos que uma rapariga chamada Marion Blanchet,
observada de perto ao longo de dez dias e dez noites, lhe descreveu a existência
póstuma da sua mãe, das suas três irmãs e dos seus tios. Todos se encontram a
expiar os seus pecados no Purgatório! Ela referiu-se ao número de missas e de
preces
necessárias para suavizar os tormentos por que estão a passar os seus
familiares. Por conseguinte, em obediência às directivas de Willermoz, estamos à
procura de
sonâmbulos capazes de nos pôr em contacto com os espíritos.
Carlos de Hesse ficou atónito. Não era de certeza naquele meio que poderia obter
auxílio para a Estrita Observância.

Viena, 31 de Dezembro de 1784


Na altura em que Geytrand estava prestes a entrar no prédio em que funcionava o
serviço dirigido por Joseph Anton, reparou, pela segunda vez, num homem de
meia-idade
que guardava os olhos fixos na entrada. Geytrand não acreditava em
coincidências. Estavam a espiá-los.
De mandíbulas cerradas, indiferente à neve e ao frio, ele escondeu-se por detrás
de uma carroça e ficou a vigiar o observador.
Meia hora mais tarde, este deixou o seu posto e afastou-se em passadas largas.
Geytrand seguiu-o.
Graças aos flocos de neve cada vez mais espessos que caíam do céu, não corria o
risco de ser detectado. Seria aquele curioso um pedreiro-livre mandado por
alguma
Loja para identificar os responsáveis pela vigilância da sua Ordem? Nesse caso,
o indivíduo devia ir apresentar o seu relatório a algum alto dignitário, talvez
Ignaz
von Born em pessoa, que o conde de Pergen poderia, em consequência, acusar de À
atentar contra a segurança do Estado.
310

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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Geytrand ficou desiludido e espantado.
Ele conhecia perfeitamente o prédio oficial cuja entrada foi transposta pelo
indivíduo: era a sede da polícia.
Viena, 31 de Dezembro de 1784

Joseph Anton não festejava. Detestando as festividades obrigatórias e os abraços


forçados, preferia ficar a pôr ordem nos seus ficheiros e a actualizar as suas
pastas.
Só um trabalho sistemático lhe permitiria explorar a fundo as informações
acumuladas acerca da Maçonaria.
Pouco antes da meia-noite, foi surpreendido pela visita de Geytrand.
- Tu também não estás a festejar?
- Senhor conde, acho que o nosso serviço está a ser ameaçado.
- Pela Maçonaria?
- Não, pelo imperador.
- Como podes ter a certeza disso?
- Apanhei um indivíduo a vigiar o nosso prédio. Segui-o até à sede da polícia,
onde deve ter ido apresentar o seu relatório. Não deveríamos mudar de endereço
imediatamente?
Se o fizermos ainda esta noite, ninguém nos seguirá.
Os dois homens transportaram os arquivos até um dos palacetes do conde de
Pergen, que este deixava desocupado precisamente na previsão de qualquer
incidente daquele
género.
Só se cruzaram com dois bêbedos, que lhes desejaram bom ano novo. De madrugada,
após várias idas e vindas, os elementos essenciais já estavam em segurança.
- Prepara-nos um café bem forte - ordenou Anton ao seu braço-direito. -
deitaremos nele algumas gotas desta óptima aguardente de ameixa para nos
aquecermos.
- Significará isto o fim da nossa missão?
- Não sei.
- O imperador parece ter-nos deixado cair em desgraça!
-Talvez se trate de uma coincidência ou de uma vigilância rotineira.
- Nenhum de nós poderá crer verdadeiramente nisso! O poder está a curvar-se
diante dos pedreiros-livres, que querem a nossa pele.
- Hoje mesmo, saberei ao certo.

73.
Viena, 1 de Janeiro de 1785

Ao contrário da maior parte dos vienenses, o imperador José II não bebera na


véspera até ficar embriagado, e já retomara o expediente logo de manhã. A
Áustria devia
afirmar-se como exemplo de uma economia sã e bem gerida, na qual nenhum florim
era desperdiçado.
O secretário particular do monarca veio anunciar-lhe a visita do conde de
Pergen.
"Um dignitário tão madrugador é digno de respeito", pensou José II.
- O que há de urgente, conde?
- A minha missão parece-me fortemente comprometida,Majestade.
- Por que razão?
- Temo ser preso pela polícia.
- Pela polícia? Mas fazeis parte dela!
- Tal não parece ser a opinião do meu superior.
Joseph Anton expôs calmamente os factos, para maior espanto do imperador.
- Há alguém a agir sem a minha autorização - declarou o soberano, irritado. -
Esperai um pouco, vou esclarecer o assunto.
O caso foi rapidamente tratado.
- Trata-se de um simples equívoco administrativo - concluiu o monarca. - Tal
zelo intempestivo não voltará a ter lugar. Continuai a fornecer-me os vossos
relatórios
tão pormenorizados.
312
- Para evitar percalços mais graves, Majestade, mudei de sítio os meus
ficheiros.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Excelente iniciativa.
- Mas se o meu nome foi pronunciado, ou até mesmo escrito, deixei de estar em
segurança. Aqueles que me rodeiam ou com quem contacto esporadicamente começam a
interrogar-se
acerca das minhas verdadeiras actividades. Conviria sossegá-los a esse respeito,
o que também vale para a polícia.
- De que maneira?
- Concedei-me um título e uma função suficientemente vistosos. Os espíritos
suspeitosos deixar-se-ão enganar, e qualquer curiosidade malsã será afastada.

Viena, 2 de Janeiro de 1785


Constance, Wolfgang e o pintassilgo Star tinham dormido até tarde. Todas as
noites, o músico revivia a sua cerimónia de iniciação e identificava-se com os
quatro
elementos. Ele percorria o cosmo da Loja e metamorfoseava-se ao contemplar
esplêndidas paisagens.
O passarinho gorjeou uma suave melodia para acordar a casa toda. Constance
abraçou o adorável Karl Thomas, que sorria como um anjinho.
O farto pequeno-almoço foi acompanhado pela chegada da resposta de Leopold à
surpreendente carta que o seu filho lhe havia escrito. Wolfgang abriu a missiva
com
certa ansiedade.
- Ele está zangado com a tua entrada na Maçonaria? - inquietou-se Constance.
- Pelo contrário, dá-me os parabéns! O convívio com grandes senhores parece-lhe
excelente, na medida em que eles poderão ajudar a consolidar a minha reputação
em
Viena.
- Mas esse não é o teu objectivo - objectou a mulher.
- Tens de compreender o meu pai: ele só se preocupa com a minha realização
profissional. Ah, não... Não só! A filosofia maçónica não lhe desagrada.
Detestando a
devoção excessiva e interessando-se a todas as formas de progresso, ele declara
que gostaria de saber mais um pouco acerca da minha Loja.

313
- Achas... que ele poderia entrar nela?
- Um filho responsável pela iniciação do seu próprio pai... Que belo sonho! Mas
não chegámos a esse ponto. Vou responder com todos os pormenores às suas
perguntas.
- Será que Nannerl lê as tuas cartas?
- Não creio.
- Desconfia, Wolfgang. Ela odeia-me e não gosta lá muito de ti.
- Ela tem um feitio um bocado mau, lá isso tenho de admitir, mas não deixa de
ser minha irmã. Juntos, percorremos a Europa inteira.
- Ela tem inveja de ti. Por causa do teu génio, o talento dela como pianista
ficou ofuscado. Mais cedo ou mais tarde, ela há-de te fazer pagar por essa
humilhação.
- Achas que ela é assim tão rancorosa?
- Mais ainda!
Um pouco triste, Wolfgang foi até uma janela para contemplar o céu.
- As nuvens estão a dissipar-se, um passeio fazia-nos bem.
Viena, 2 de janeiro de 1785
Os repastos da quadra festiva tinham feito engordar de forma visível o barão
Gottfried van Swieten, que não deveria tardar a seguir uma dieta. Ao saber da
iniciação
de Mozart, tinha felicitado o longo trabalho realizado por Thamos e por Von Born
no sentido de conduzir o Supremo Mago até ao templo onde acharia as chaves para
o seu florescimento.
O barão continuava a questionar-se sobre as verdadeiras intenções do imperador.
A hostilidade do soberano com relação ao arcebispo de Viena, à Igreja
esclerótica
e aos mosteiros inúteis era indubitável, mas a sua posição em relação à
Maçonaria permanecia ambígua. Ser-lhe-ia o monarca verdadeiramente favorável, ou
contentar-se-ia
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
em usá-la como instrumento propício para a sua política, prestes a descartá-la
quando deixasse de ter utilidade?
No decurso de um almoço com um alto funcionário, Van Swieten beneficiou de
confidências inesperadas.
- O chefe da polícia acaba de levar nas orelhas.
- A conta de quê?
314

- Uma investigação mal conduzida, de que o imperador não gostou mesmo nada. Caía
sobre um conde a suspeita de dirigir uma espécie de serviço, mais ou menos
secreto,
encarregado de vigiar os nossos bons pedreiros-livres. Inverosímil, não achais?
- Absolutamente grotesco.
- Se fosse verdade, imaginai o escândalo! Há muitos notáveis que pertencem a
essa honrosa sociedade e que não apreciariam nada ser tratados como suspeitos de
sabe-se
lá que crimes!
- Achais que o chefe da polícia acreditou mesmo na existência de tal serviço?
- Uma investigação rotineira despertou a sua atenção?
- E sobre quem incidiram as suas suspeitas?
- Sobre o conde de Pergen, aristocrata de indiscutível probidade, que goza de
uma excelente reputação. Pós ter servido fielmente a defunta imperatriz, tem-se
mostrado
de uma lealdade exemplar em relação ao imperador, e não tem de modo algum o
perfil de um espião tortuoso!
- Não veio à baila o nome de mais ninguém? - perguntou o barão van Swieten.
- Felizmente, não! Como vos estava a dizer, o chefe da polícia foi chamado à
ordem para pôr termo a essas ridículas investigações. Os pedreiros-livres
aprovam sem
reservas a política de José II e ajudam-no a lutar contra o obscurantismo.
Persegui-los revelar-se-ia como um erro trágico!
Van Swieten teve o cuidado de passar à discussão de outros temas, como se não se
interessasse particularmente por aquele incidente.
Assim que o almoço findou, foi até à corte para recolher o maior número possível
de informações acerca daquele conde de Pergen.
Teria o barão acabado de identificar a alma danada que, escondida nas trevas,
espiava a Maçonaria, desejando a destruição desta instituição?

74.
Viena, 3 de Janeiro de 1785
Geytrand detestava o pedreiro-livre Angelo Solimão, mas pagava-lhe a peso de
ouro para obter informações em primeira mão.
Os dois homens encontravam-se numa casinha dos arredores de Viena, alugada pelo
conde de Pergen sob uma falsa identidade.
- Não fostes seguido, Solimão?
- Ficai descansado, ninguém suspeita de mim! Não serei eu um dos melhores amigos
e apoios de Ignaz von Born, nosso grande patrão? Recebo milhares de confidências
e sou considerado como um dos melhores Irmãos.
Chegado há mais de duas horas, Geytrand tivera tempo de se assegurar de que o
prédio não estava a ser vigiado por ninguém.
- A criação da Grande Loja de Áustria é aprovada pela maior parte dos
pedreiros-livres?
- Não me parece - respondeu Solimão. - Muitos consideram demasiado rígida essa
estrutura administrativa enfeudada ao poder estabelecido.
- O que pensa Von Born?
- Aparentemente, ele entrou no jogo! Mas para não levantar as suspeitas dos
espiões a soldo do arcebispo, Von Born aposta em vários cavalos.
- Exprimi-vos com maior clareza.
316
- Não considerando nenhuma Loja verdadeiramente segura, Von Born repartiu os
seus fiéis e lançou diversos temas de trabalho. Ele observa a evolução das
diversas
oficinas, à espera de eleger aquela que constituirá a ponta de lança da
Página 150
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
investigação. A criação desta Grande Loja veio contrariar os seus planos, pois o
imperador
deverá ser permanentemente informado acerca das actividades maçónicas.
- Não há nada mais preciso?
- O Supremo Secretário é um homem frio e reservado. Se eu lhe pusesse perguntas
directas, ele estranharia e deixaria de depositar confiança em mim.
- Quero saber o que ele está a preparar.
- Já lestes o seu artigo sobre os mistérios egípcios? Um trabalho notável! Eis
certamente a directiva que ele conta tomar: esquecer as patranhas humanistas e a
apologia
da beneficência, enveredando resolutamente no caminho do esoterismo, da
simbólica e da iniciação.
- Quem o seguirá?
- Um pequeno número de fiéis decididos a sair do marasmo e do conforto mole da
Maçonaria oficial.
- Mas isso é uma subversão!
- Von Born pertence aos Iluminados, tal como muitos outros Irmãos influentes. Ao
mesmo tempo que aprovam a política de José II, contam ir muito para além dela.
- Preparam uma revolução?
- Claro que não! Essa gente tem horror do sangue e da violência. Desejam pôr um
primeiro plano o mérito individual e o valor intrínseco de cada um, esquecendo
os
privilégios conferidos pelo nascimento e pela fortuna. Não será tal programa tão
subversivo quanto uma insurreição armada? Modificar as ideias correntes e as
opiniões
vulgares equivale a mudar o mundo.
- Achais de um punhado de pedreiros-livres seria de facto capaz desse feito?
- Não consiste o vosso trabalho, precisamente, em considerar como sérias as
hipóteses deste género?
Geytrand crispou-se.
- Dispenso os vossos conselhos, Solimão! Eu pago-vos, vós informais-me.
317

- Segundo consta, vós também fostes pedreiro-livre, prometido aos mais altos
cargos. Mas, tendo alguns Irmãos desmascarado a vossa ambição galopante, haveis
atirado
com o avental para o chão do templo e apresentastes a vossa demissão, jurando
que a Maçonaria haveria de pagar por essa desconsideração.
Geytrand sentiu vontade de estrangular o seu interlocutor.
- Desprezo-vos, Solimão!
- Pois eu devolvo-vos na mesma moeda.
- Não interessa, vós precisais de dinheiro.
- É inútil insultarmo-nos mutuamente, somos como irmãos gémeos. Só a cor da pele
marca diferença entre nós. Ah, um pormenor! A partir de hoje, o meu preçário
subiu.
Viena, 3 de Janeiro de 1785
O barão Gottfried van Swieten não podia dar nenhum passo em falso. Primeiro,
tratou de examinar o conjunto de publicações submetidas à censura, na esperança
de encontrar
nelas qualquer texto antima-çónico assinado pelo conde de Pergen.
Em vão.
Depois, foi ter a casa da condessa Thun.
- Pergen? Sim, esse nome não me é estranho... Um alto funcionário sem
personalidade vincada, próximo da defunta imperatriz. Desde a morte de Maria
Teresa, deixou
de se ouvir falar dele.
- Estará ele ligado à polícia?
- Não vos sei dizer, barão.
Van Swieten estava a fazer progressos. Maria Teresa detestava os
pedreiros-livres, e empregava forçosamente homens ocultos encarregados de a
manter informada sobre
a evolução desse perigo. Sem ocupar funções oficiais, o tal conde de Pergen
tinha provavelmente continuado com o seu labor obscuro ao serviço do novo
imperador.
Ir interrogar directamente o chefe da polícia afigurava-se demasiado arriscado.
Página 151
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
A condessa Thun aconselhou Van Swieten a consultar um velho camareiro da corte,
que
se gabava de conhecer na perfeição os usos e costumes da aristocracia vienense.
O ancião fornecia por vezes informações preciosas.
318
O camareiro recebeu o barão com toda a amabilidade, oferecendo-lhe um excelente
café. Falaram do tempo, das dificuldades de circulação na capital, das
indispensáveis
medidas de economia, e de algumas figuras de Estado.
- Há muito tempo que não vejo aquele caro conde de Pergen - adiantou Van
Swieten. - Parece que ele já não tem qualquer função oficial.
- Desenganai-vos, barão! Após uma longuíssima travessia do deserto, ele acaba de
ser nomeado presidente do governo da Baixa Áustria. Havemos de voltar a vê-lo na
corte quando o seu pesado expediente administrativo lhe conceder tempo para tal.
Trata-se de um alto funcionário perfeito que, obedecendo sempre sem discutir a
qualquer
ordem do imperador, acabará por beneficiar de uma existência aprazível e de
vantagens materiais assinaláveis, retirando-se para as suas terras no fim da
vida, com
a sensação do dever cumprido.
A pista investigada por Van Swieten parecia não levar a lugar nenhum. Uma
personagem que ocupava um cargo tão exposto não podia ser o director de um
serviço secreto
que actuava na sombra. No fundo, talvez o imperador estivesse a manipular a
Maçonaria de forma tão hábil, que poderia contentar-se com as informações
fornecidas
pela simples polícia.
Sentindo-se aliviado, o barão pensou em tranquilizar Ignaz von Born e Thamos, o
egípcio. Não existiam demónios escondidos nas trevas, prontos para estraçalhar a

Maçonaria.

75.
Viena, 4 de Janeiro de 1785

Durante uma modesta e barata recepção oferecida no palácio de Schónbrunn, o


imperador felicitou vários altos funcionários, entre os quais o conde de Pergen,
pela
sua dedicação à causa pública, e recomendou-lhes que mantivessem uma política
financeira apertada, de forma a evitar qualquer despesa inútil. Desse modo, o
Estado
poderia fortalecer-se e servir de forma mais eficaz a população.
Na sombra, Joseph Anton trocou algumas palavras de circunstância com os
restantes cortesãos, sendo em seguida abordado pelo professor Leopold-Aloys
Hoffmann, antigo
Secretário da Loja Para a Beneficência, que acabara de acolher Mozart.
- Espero que o ano vindouro não seja desfavorável para o nosso país.
- O que temeis? - espantou-se o conde.
- Apesar da firmeza do nosso bem-amado imperador, as virtudes morais esmorecem e
a hipocrisia progride.
- O vosso pessimismo é inquietante. Tendes exemplos concretos?
- Pensai na Maçonaria - murmurou Hoffmann. - Parece uma sociedade respeitosa das
leis e da religião, mas tal não passa de uma aparência enganosa.
- Estais certo disso?
- Tendes conhecimento dessa sociedade secreta?
- Nem um pouco - afirmou o conde.
320
- Pois eu, conheço-a bem! Ela publica um jornal oficialmente destinado aos seus
membros, mas que espalha as suas ideias no exterior da organização. Ora,
Blumauer,
director desse periódico, é ateu! Por trás da palavra "Deus", os
pedreiros-livres não põem se não um vazio. O mesmo vazio em que a nossa
sociedade cairá caso tolerarmos
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
atitudes desse género.
Conhecendo a obediência maçónica de Hoffmann, Joseph Anton divertia-se com esta
tomada de posição contra os seus próprios Irmãos.
- Terríveis revelações, senhor professor! Não serão elas um pouco... exageradas?
- Eu estou bem informado.
- Nunca imaginaria tais torpezas. Mas... espero que não estejais a cometer
nenhuma imprudência ao revelar-me esses dados!
- Tento em vão alertar as autoridades, ninguém me dá ouvidos! Mais cedo ou mais
tarde, serão forçados a reconhecer que eu tenho razão.
Hoffmann afastou-se e dirigiu-se a um outro cortesão, junto de quem retomou a
sua ladainha. Traidor e tagarela, ele desejava demonstrar a sua própria
importância,
sem contudo conseguir convencer ninguém. Consciencioso, Joseph Anton iria tomar
nota das suas declarações, juntando-lhes a indicação de "verificar".
Viena, 4 de Janeiro de 1785
- Quaisquer que sejam os inconvenientes da oficialíssima Grande Loja de Áustria
- declarou o barão Gottfried van Swieten a Thamos e a Von Born -, impõe-se uma
certeza:
não existe nenhum serviço secreto encarregado de vigiar a Maçonaria.
- A polícia não permanece inactiva - lembrou Thamos.
- Mas as investigações que conduz permanecem limitadas, já que o imperador não
vê com maus olhos a evolução das Lojas vienenses. Não se apartaram elas das
correntes
místicas e templárias?
- Não partilho desse optimismo - interveio Ignaz von Born. - Os nossos laços com
os Iluminados são sobejamente conhecidos, e eles acabam de ser condenados pelo
príncipe-eleitor
Karl Theodor.
- Condenação meramente teórica - considerou Van Swieten. - Eles continuam a
poder reunir-se e chegaram a formar sociedades de

321

leitura abertas a todos os frequentadores. Ninguém conseguirá parar um movimento


com tal projecção.
- Desde a ruptura entre Weishaupt e Von Knigge, o movimento abre brechas no seu
interior - recordou Thamos. - O dirigente dos Iluminados é um intelectual e um
político,
não um iniciado. Ao cortar os laços que o uniam a qualquer tipo de
espiritualidade, o movimento acabará por secar e por sucumbir sob os ataques do
poder.
Tal predição abalou o barão van Swieten.
- Acaso temeis uma reviravolta de José II com relação à Maçonaria?
- Como o imperador não a conhece do interior - adiantou Von Born -, não pode ter
uma ideia exacta do que ela é. Temo a intervenção de Irmãos oportunistas, cujo
único
objectivo consiste em subir de grau e exercer uma miserável autoridade.
- Não esqueçamos os tagarelas e os traidores - recomendou Thamos. - Em todas as
épocas e em todos os lugares, os ambiciosos, os insatisfeitos e os desiludidos
tentam
destruir aquilo que em tempos adoraram. Os perigos internos não são menos
temíveis que os ataques provenientes do exterior. Entretanto, não se põe a
questão de interrompermos
o processo referente ao Supremo Mago.
- Como viveu ele a sua iniciação? - perguntou o barão.
- Com uma introspecção e uma intensidade extraordinárias. As suas capacidades de
percepção são de tal ordem que ele já percorreu um caminho de cuja extensão
ainda
nem se apercebeu ao certo.
- Só os nossos Irmãos nos reconhecem como tais - lembrou Von Born. - Dada a
situação e a personalidade de Mozart, recomendo que passemos sem demora à fase
seguinte.
Viena, 4 de Janeiro de 1785
Joseph Anton sentia-se tranquilo.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Dotado de um título prestigioso e de uma missão oficial, passara a gozar de uma
cobertura perfeita. Os seus colaboradores devotados desempenhavam as funções
administrativas,
que ele supervisionava ao mesmo tempo que ia tomando conta da sua cruzada
antimaçónica.
O principal inconveniente residia na multiplicação das horas de trabalho. Mas a
luta contra uma sociedade secreta que pretendia levar
322

o mundo até ao estado caótico, bem como a missão de salvaguarda do império,


davam a Joseph Anton forças para esquecer o cansaço.
No silêncio da noite coberta de neve, ele retomou os seus principais ficheiros e
parou num deles.
Ignaz von Born, Supremo Secretário da Grande Loja de Áustria, Venerável da Loja
da Verdadeira União. Mineralogista, favorável aos Iluminados da Baviera, Von
Born
era um verdadeiro chefe e o mais perigoso dos pedreiros-livres. Reputação
impoluta, existência exemplar, moral a toda a prova... Sombrio quadro!
Von Born tinha de ter uma fraqueza qualquer. E Joseph Anton encarregava-se de a
descobrir, ou então de a inventar.
Não obstante os seus títulos de camareiro palatino e de conselheiro áulico, Otto
von Gemmingen não tinha envergadura. Imbuído de humanismo, crente na bondade
universal
e na evolução da sociedade, ele encarnava o pedreiro-livre ingénuo, mero
filósofo de pacotilha.
O barão Tobias von Gebler parecia mais complexo. Apaixonado pelos mistérios
egípcios, tinha de início apostado na Maçonaria, que tinha abandonado
entretanto, para
finalmente regressar a ela para a submeter à autoridade de José II, procurando
assim assegurar a sua perenidade desta instituição. Um tal indivíduo, gasto e
céptico,
acreditaria ele próprio na utilidade da sua iniciativa? Não havia nada a temer
daquele reincidente.
Wolfgang Mozart, músico independente, um dos compositores na moda, simples
Aprendiz... Porque haveria Anton de se atardar num ficheiro tão insignificante?
Tratava-se
de um pedreiro-livre comum, à procura de bons contactos que o pudessem ajudar na
sua carreira.
Joseph Anton esteve quase para classificar aquela pasta na categoria dos
desinteressantes, mas foi retido pelo seu faro.
Porque estaria ele a hesitar, se aquele não passava de um artista menor, que não
figurava sequer entre as cabeças pensantes da Maçonaria?
O nome de Mozart já aparecera repetidas vezes, e Anton não subestimava nunca as
suas intuições.
Mozart foi, portanto, ocupar um lugar entre os agitadores que era preciso vigiar
de perto.
76.
Viena, 5 de Janeiro de 1785
De olhos esbugalhados e orelhas bem atentas, o Aprendiz Mozart saboreava a
Sessão solene. Sentado entre Ignaz de Luca, futuro biógrafo de Joseph Haydn, e o
escritor
Caspar Riesbeck, grande crítico da miséria que reinava na Hungria, Wolfgang
sentiu a experiência da Abertura dos Trabalhos da Loja como se fosse um novo
nascimento.
Sobre as cabeças dos Irmãos erguia-se a abóbada celeste, com a sua geometria de
constelações onde tocava a música das esferas. Mas os Irmãos trabalhavam "a
coberto",
pois o templo era hermeticamente fechado após a depuração e purificação dos
metais. Tendo deixar de se encontrar no mundo profano, os iniciados
transformavam-se
na tripulação de um navio comunitário que vogava para lá do visível.
No topo das paredes corria um cordame que, a intervalos regulares, formava nós,
aos quais se chamava "laços de amor". Atraindo a energia celeste, tais laços
evocavam
a medição de uma terra tornada sagrada pela prática dos ritos, bem como a eterna
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
união das palavras de luz. Esta corda não prendia, antes libertava.
Ao contemplar os símbolos, Wolfgang compreendeu que a riqueza deles era
inesgotável.
Tal como os demais Aprendizes, Wolfgang encontrava-se junto da coluna norte. O
Norte, região menos clara do espaço sagrado. Não se deveria procurar em tal
região
a luz secreta, base e matéria-prima para a Suprema Obra alquímica?
324

A Oriente, o Delta animava a Loja, irradiando o pensamento do Supremo Arquitecto


do Universo.
Para o músico, havia aí uma descoberta essencial. Erguer uma obra não consistia
em divulgar as suas paixões, mas em tentar prolongar a criação do construtor dos
mundos, agindo a cada instante. Explorar-se a si mesmo, pôr-se sempre em
primeiro plano e procurar antes de mais o seu aperfeiçoamento pessoal não
passavam de opções
que traíam a iniciação e desembocavam num impasse.
Vestido segundo o rito, Wolfgang deixara de ser apenas um homem e um indivíduo,
e passara a ser também um Irmão, ser único e insubstituível assimilado a uma das
pedras vivas do templo em constante construção.
Durante a Sessão, cada Irmão devia manter-se de forma impecável. O avental
lembrava-lhe a sua função de participante, o cinto mantinha-o na rectidão, os
sinais distintivos
da Loja ligavam-no a um grande organismo no qual ele desempenhava a sua função
específica.
A Oriente, sobre a bandeja do Venerável, brilhava uma estrela eterna.
- Irmão Primeiro-Vigilante - interrogou o Venerável -, qual é o primeiro dever
de um Vigilante na Loja?
- Venerável Mestre, é o de assegurar que a Loja está protegida, tanto exterior
como interiormente.
O Guardião externo tomava conta da porta do templo para impedir, com sacrifício
da sua vida, a entrada de profanos. Cabia-lhe a tarefa de prevenir os Irmãos em
caso
de perigo. Quanto ao Guardião interno, verificava a qualidade de cada um dos
iniciados e a capacidade que tinham para participar nos trabalhos.
Tais precauções não satisfaziam ainda o Venerável.
- Irmão Segundo-Vigilante, qual é o segundo dever de um Vigilante na Loja?
- Venerável Irmão, é o de assegurar que todos aqueles que compõem a assembleia
sejam pedreiros-livres.
- Fiscalizai o que vos compete, Irmãos Primeiro-Vigilante e Segundo-Vigilante,
cada um na sua coluna, e prestai-me contas. De pé e por ordem, frente ao
Oriente!
Ao bater do maço do Venerável, os Irmãos levantaram-se e, à passagem dos
Vigilantes, adoptaram a postura correcta. Deixara de haver ali condes, barões e
plebeu,
deixara de haver idade profana, fortuna e títulos, todos tinham passado a ser
apenas Irmãos.
325
Estando cada qual no seu lugar, foi possível iluminar os três pilares e depois
traçar o "quadro da Loja", no qual figuravam os elementos necessários para uma
construção
iniciática.
Thamos insistira para que, conforme a tradição egípcia, os símbolos fossem
traçados num solo puro e branco. Na maior parte das Lojas, contentavam-se em
desenrolar
um tapete coberto de símbolos fixos, o que retirava todo o significado àquele
momento maior da Abertura dos Trabalhos.
Participar num ritual conferia uma energia tão poderosa que afastava qualquer
cansaço ou preocupações. Depois do banquete, Thamos e Wolfgang foram passear um
pouco.
O céu estava limpo, a temperatura gelada.
- Por que é que eu demorei tanto para ser iniciado?
- Porque as coisas tinham de estar prontas, tanto do teu lado como do nosso. A
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
tua precocidade musical era em simultâneo uma vantagem e uma desvantagem. Tu
avanças
tão depressa que era preciso formar-te lentamente. Quanto à Maçonaria europeia,
trata-se de uma construção frágil. Já foram cometidos muitos erros.
- Poderá um dia a iniciação vir a desaparecer?
- Vida luminosa e transfigurada, a iniciação engendra-se a si própria a cada
momento. O homem propício à iniciação, por seu turno, é uma espécie em vias de
extinção.
Comparando com o que foi criado pelos antigos egípcios, o nosso mundo, tanto o
Oriente como o Ocidente, parece-me bem mesquinho. Mas devemos agora concentrar
os
nossos esforços na próxima fase do teu percurso.
Wolfgang estacou. Não conseguia compreender.
- Após o grau de Aprendiz, vêm os de Companheiro e de Mestre. Um dos pecados
maiores da Maçonaria consiste em apressar a passagem de um grau para o seguinte.
Numa
Loja de outrora, terias permanecido como Aprendiz por sete anos. Mas o teu
caminho é único. Por isso, não tardarás a tornar-te Companheiro. O ensinamento
ministrado
nesse grau desempenhará um papel de primeira ordem na tua maneira de conceber a
música e de exprimi-la.
- Continuareis a auxiliar-me? - inquietou-se Wolfgang.
- Tens a minha palavra - prometeu o egípcio, dando um abraço ao seu jovem Irmão.

BIBLIOGRAFIA

Parcialmente conservadas, as cartas de Wolfgang e de Leopold Mozart representam


um manancial de informações ao qual recorremos largamente, sobretudo ao colocar
na
boca do músico palavras que constam dos seus escritos.
Existem várias edições parciais dessa correspondência, e uma edição completa:
Mozart: Briefe und A.ufzeichnungen (edição de W A. Bauer e O. E, Deutsch), cuja
maior
parte foi traduzida em francês por G. Geffray, em sete volumes para as Ed.
Flammarion. Para este segundo tomo, veja-se Correspondance III, 1777-1778;
Correspondance
IV, 1782-1785.
Consultámos também as seguintes obras:

Abert, Hermann, Mozart (2 volumes), Leipzig, 1919.


Angermuller, Rudolph, Les Operas de Mozart, Milão, 1991.
Autexier, Philippe A., La Colonne d'harmonie, Paris, 1995.
Autexier, Philippe A., La Lyre maçonne. Mozart, Hajdn, Spohr, Uszt, Paris, 1997.
Autexier, Philippe A., Mozart et Liszt sub rosa, Poitiers, 1984.
Autexier, Philippe A., Mozart, Paris, 1987.
Dictionnaire Mozart, sob a direcção de H. C. Robbins Landon, Paris, 1990.
Einstein, Alfred, Mozart, son caractere, son ceuvre, Paris, 1954.
Encyclopédie de la Franc-Maçonnerie, Paris, 2000
Faivre, Antoine, L'Esotérisme au XVIIIème siècle, Paris, 1973.
Galtier, Gérard, Maçonnerie égyptíenne, Rose-Croix et Néo-chevalerie, Mónaco,
1989.
328
Guy, Roland, Goethe Franc-Maçon, Paris, 1794.
Haven, Marc, Rituel de la Maçonnerie égyptienne, Paris, 1948.
Henry, Jacques, Mozart, Frère Maçon, Mónaco, 1997.
Hildesheimer, Wolfgatig, Mozart, Paris, 1979.
Hocquard, Jean-Victor, Mozart, Paris, 1994.
Hocquard, Jean-Victor, Mozart, L'amour, la mort, Paris, 1987.
Le Forestier, René, La Franc-Maçonnerie templière et occultiste aux XVIIIème et
XIXème siècles, Paris, 1970.
Massin, Jean e Brigitte, Mozart, Paris, 1970.
Mozart, col. Génies et Réalités, Paris, 1985.
Nettl, R, Mozart and Masonry, Nova Iorque, 1970.
Pahlen, Kurt, Das Motçart Bucb, Zurique, 1985.
Robbins Landon, H. C, Mozart, L'age d'or de La musique à Vienne, 1781- 1791,
Página 156
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Paris, 1989.
Robbins Landon, H. C, Mozart et les Francs-Maçons, Londres e Paris,
1991.
Sadie, Stanley, Mozart, Londres, 1980.
Wyzewa, Théodore de, e Saint-Foix, Georges de, W. A. Mozart. Sa vie musicale et
son ceuvre, Paris, 1986.
Nas obras de referência, encontrar-se-ão bibliografias pormenorizadas sobre a
vida e obra do compositor.
No que se refere à Maçonaria, consultar-se-á a colecção Les Simboles maçonniques
(Maison de Vie Editeur), da qual já vieram a lume os seguintes volumes:
1. Le GrandArchitecte de L'Univers.
2. Le Pavé mosaique.
3. Le Delta et la Pensée ternaire.
4. La Règle des Francs-Maçons de la Pierre franche.
5. Le Soleil et la Lune, les deux Luminaires de la Loge.
6. L'Equerre et le chemin de rectitude.
7. L'Etoile flamboyante.
8. Les Trois Grands Piliers.
9. La Pierre brute.
10. La Pierre cubique.
11. Les Trois Penetres du Tableau de Loge.
329
12. Les Deux Colonnes et la Porte du Temple.
13. L'Epée flamboyante.
14. Loge maçonnique, Loge initiatique?
15. Comment nait une Loge maçonnique? L'Ouverture des travaux et la créa-ion du
monde.

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