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Christian Jacq
MOZART
Segundo volume
O FILHO DA LUZ
ISBN: 972-25-1483-0
Ao Barqueiro
Para criar, é preciso ser fiel à ideia.
MOZART
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ele ter permanecido afastado por demasiado tempo, ela havia-o recambiado de
forma expedita e humilhante.
Sentia-se agora de regresso ao ponto de partida, como lacaio submetido ao jugo
do príncipe-arcebispo de Salzburgo, o conde Hieronymus Colloredo, um tirano de
coração
duro a quem ele chamava o Grande Mufti.
Reduzir-se-ia doravante Wolfgang ao papel medíocre de fabricante de música
ligeira, destinada a distrair Sua Eminência e a alta sociedade?
Não, pois as viagens e as provações haviam-no amadurecido. Ele guardava plena
confiança nas suas potencialidades criadoras, depois de tantas horas passadas a
dominar
todos os estilos e, segundo a sua expressão, a "entranhar-se na música". Embora
ferido, não baixaria os braços, e haveria de conseguir provar o seu valor.
E a sua prima alucinada, a quem chamavam Bãsle, traria alegria para casa dos
Mozart, onde a ausência de Anna-Maria se fazia sentir de forma tão pesada.
Exibindo
um gosto notório por chalaças escabrosas e por brincadeiras escatológicas, gosto
aliás partilhado por Wolfgang e pela sua defunta mãe, Bãsle acompanhara-o ao
longo
da última parte do seu trajecto e contava vir a dissipar a tristeza que presidia
a este reencontro.
- Vamos lá cagar, comer e beber - preconizou ela. - E, depois, recomeçamos! O
que é que preparou Theresel, a vossa cozinheira?
- Fez-nos um capão, um dos pratos predilectos do meu filho - respondeu o pai de
família.
Miss Pimperlregalou-se com tal petisco.
- Mandei instalar no teu quarto um velho clavicórdio e um armário novinho em
folha - anunciou Leopold ao filho. - Espero que te sintas bem lá, e que possas
trabalhar
à vontade. Amanhã mesmo, o príncipe-arcebispo nomear-te-á oficialmente organista
da sua corte na catedral de Salzburgo, com um salário anual de quatrocentos e
cinquenta
florins 1.
- Juntamente com a libré de lacaio...
- Bem sabes que é essa a regra, meu filho.
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2.
Reval5, Março de 1779
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que os seus pensamentos vagueavam permanentemente, à procura de novas ideias.
Os temores de Leopold dissipavam-se. Ao fim e ao cabo, o seu filho readaptava-se
perfeitamente à existência em Salzburgo e comportava-se como fiel servidor do
príncipe-arcebispo.
Amadurecido pelas provações, Wolfgang aceitava o seu fado que, no fundo, nada
tinha de insuportável.
3.
Viena, Julho de 1779
Joseph Anton, conde de Pergen, era um fiel servidor da imperatriz Maria Teresa,
inimiga juramentada da Maçonaria. Por sua ordem, havia sido criado um serviço
secreto
para lutar contra esse polvo que, do ponto de vista da governante, atacava as
bases da sociedade, da moral e da religião, tendo como meta oculta a tomada do
Poder.
Anton tinha de agir com a maior prudência, pois a sua actividade não se
reportava ao ministro do Interior. Homem de ficheiros, o conde seguia passo a
passo a evolução
das Ordens e das Lojas graças a uma rede de informadores coordenados por
Geytrand, seu homem de confiança e antigo pedreiro-livre. Depois de ter traído o
seu juramento
e os seus Irmãos, porque não lhe haviam acordado uma promoção suficientemente
rápida, Geytrand só almejava a destruição da Maçonaria.
Detestando o Verão, a luz e o calor, Joseph Anton cerrava as janelas do seu
gabinete, fechava os cortinados e trabalhava noite e dia à luz das candeias.
Ensopado em suor, com os tornozelos inchados, Geytrand odiava, também ele, esse
período do ano, e esperava com impaciência o regresso do frio.
- Senhor conde, tenho a certeza de que o duque de Brunswick, Grão-Mestre da
Estrita Observância templária, e o seu assistente, Carlos de Hesse, conduzem uma
nova
ofensiva.
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11 Von Ecker-und-Eckoffen, expulso da Ordem da Rosa-Cruz por insubordinação.
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- É provável que uma Loja dos Irmãos da Ásia venha a ser criada em Viena.
- Todos os seus membros devem ser arrolados e vigiados. Não os deixaremos
destruir a nossa sociedade, meu bom Geytrand.
Salzburgo, 3 de Agosto de 1779
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Entretanto, graças ao seu encanto, a obra agradou à senhora Robi-nig, sua
destinatária.
Viena, 10 de Agosto de 1779
Num apartamento discreto dos arrabaldes vienenses, desconhecido pela polícia,
Thamos, conde de Tebas, recebeu dois visitantes de peso.
O primeiro era Ignaz von Born, mineralogista colocado na Universidade de Viena e
com 37 anos. De rosto comprido, testa ampla, olhos negros, Von Born era o
pedreiro-livre
com quem Thamos contava para insuflar a uma ou mais Lojas um verdadeiro espírito
iniciático, a partir da tradição que o egípcio lhe ia revelando aos poucos.
O segundo convidado era o barão Gottfried van Swieten. De 46 anos e origem
holandesa, filho do médico pessoal da imperatriz Maria Teresa, este brilhante
diplomata,
que ocupara sucessivamente postos em Paris, Londres e Berlim, fora nomeado em
1777 prefeito da Biblioteca Imperial e Real, onde detinha um alojamento inerente
às
suas funções.
Inimigo declarado da Maçonaria, Van Swieten jogava um jogo perigoso. Tendo
recebido a iniciação em Berlim, evitava escrupulosamente frequentar as Lojas
vienenses,
para poder permanecer nas confidências do poder e advertir os seus Irmãos em
caso de ameaças sérias. Partidário das reformas preconizadas por José II, Van
Swieten
acreditava que o regime se viria a liberalizar.
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Entre Ignaz von Born, austero, profundo, silencioso, e Gottfried van Swieten,
bonacheirão e volúvel, a corrente de fraternidade tinha alguma dificuldade em
passar.
No entanto, Thamos tinha de levá-los a associarem-se, para juntos erguerem o
grande templo e participarem, cada um com o seu génio próprio, na iniciação do
Supremo
Mago.
Ambos sabiam tudo um do outro. A preocupação maior dos três homens ali reunidos
consistia em saber se, escondida algures nos meandros de Viena, existia uma
cabeça
pensante encarregada de perseguir os pedreiros-livres.
- Não logrei obter nenhuma informação fidedigna - declarou Von Born. - Todas as
Lojas de Viena são vigiadas de forma mais ou
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menos apertada, mas nunca ninguém ouviu falar de qualquer outro responsável por
tal vigilância que não o ministro do Interior.
- Já tive ocasião de falar com o chefe da polícia - acrescentou Gottfried van
Swieten - e trocámos impressões com relação ao nosso comum ódio para com a
Maçonaria.
Na opinião dele, é a imperatriz Maria Teresa em pessoa quem trata deste assunto.
Põe-se pois a questão de saber se ela entregou essa tarefa a um homem de sua
confiança
pessoal; e se for assim, como poderemos encontrá-lo? Se começarmos a fazer
demasiadas perguntas, atrairemos inevitavelmente as suspeitas sobre nós.
- Não tomeis mais nenhum risco, barão.
- E vós, Thamos, como conseguis escapar à polícia de Maria Teresa?
- Viajo muito e disponho de vários domicílios. Assim que surge um movimento
maçónico que possa vir a ser útil para a iniciação, tenho de julgar a sua
importância.
Apesar dos escolhos com que esbarramos, temos de continuar a construir o templo
aqui mesmo, em Viena.
- Quando poderá o Supremo Mago passar o limiar? - perguntou o mineralogista.
- Nem o homem nem o músico estão prontos - respondeu o egípcio. - Do lado dele
como do nosso, há ainda muito trabalho por fazer.
4.
Salzburgo, 14 de Agosto de 1779
- Três bemóis, três acordes, terças encadeadas, trios vocais... Tenho dezenas de
maneiras de fazer viver esse número!
- Trata sobretudo de não o tornares numa simples convenção ou artifício.
- Por vezes, sinto que não sou eu a fazer a música, é ela que me faz. Sinto
então o fluído a correr e nada o consegue impedir.
- Possam os deuses guiar-te em direcção à luz, Wolfgang!
- A luz de Heliópolis?
- A cidade sagrada corre um grave perigo, por causa de uma revolução fomentada
pelo cruel Ramsés. Ele destronou o sábio faraó Me-nés, que todos julgam morto.
Na
verdade, este esconde-se sob o nome de Sethos, supremo sacerdote, e está
encarregado de coroar Thamos, filho de Ramsés.
- Esse jovem é puro, recto e generoso, perfeitamente oposto ao seu ignóbil pai!
Ele deseja desposar uma rapariga maravilhosa, chamada Sais, que está apaixonada
por
ele. Mas Sais não é, tão-pouco, quem todos pensam que é! Durante a revolução,
segundo a versão oficial, Tharsis, filha do faraó Menés, teria morrido no
incêndio
do palácio. Mas, na verdade, sobreviveu e tomou o nome de Sais, o que é ignorado
pelo seu pai.
- Com saudades do sábio Menés, o povo começa a resmungar contra a tirania e não
aprova a coroação de Thamos. Caso a bela Thasis ainda fosse viva, ela
tornar-se-ia
rainha. A situação é tanto mais delicada quanto Mirza, suprema sacerdotisa do
templo, revela a sua natureza perversa e maléfica. Informada acerca da
verdadeira identidade
de Sais, confidencia esse segredo ao infame Pheron, um traidor que se apresenta
como o melhor amigo de Thamos, quando na verdade só trabalha para a sua
perdição.
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Querendo evitar a todo o custo um casamento entre Thamos e Sais, que formariam
um casal régio imbuído do sentido de justiça, Mizra concebe um espaventoso
projecto:
atrair Sais para os braços do traidor, para que ele seja coroado no lugar de
Thamos.
Thamos, Rei do Egipto, segundo acto
Wolfgang descobriu a galeria da residência reservada às virgens do Sol. Ali,
contemplou a maravilhosa Sais e percebeu o amor pró-
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fundo que Thamos sentia por ela. Os sentimentos da rapariga tinham a mesma
intensidade, mas ela queria consagrar-se à iniciação, ao culto da luz e à
prática dos
mistérios.
- Tal atitude serve os interesses da suprema sacerdotisa Mirza - observou o
egípcio. - Ao permanecer junto das suas Irmãs, Sais não voltará a ver Thamos e o
casamento
não poderá realizar-se.
- Mirza ousa afirmar a Thamos que Sais ama o traidor Pheron! - indignou-se
Wolfgang. - Desesperado, o príncipe dá provas de uma rara nobreza, ao aceitar
renunciar
àquela que ele tanto queria erguer ao tálamo nupcial. Cabia a Sais, como a
qualquer mulher, o direito de escolher o seu próprio destino.
- Apesar do seu sofrimento, Thamos aceita até consagrar essa união - comentou o
egípcio. - Nada mais conta, se não a felicidade da sua bem-amada.
Thamos, Rei do Egipto, terceiro acto
Wolfgang penetrou no templo dos fiéis do Sol, onde o traidor Pheron, quebrando a
palavra dada, ousava jurar sobre a divindade, em frente ao seu "querido amigo
Thamos",
que lhe seria sempre fiel.
- Os traidores, os mentirosos e os perjuros acabam sempre por cometer um erro
fatal - considerou o egípcio. - O de Pheron consiste em vangloriar-se do seu
feito
junto do supremo sacerdote Sethos, cuja verdadeira identidade ele ignora. Desta
forma, comunica a Me-nés que a sua filha Tharsis, que o faraó julgava vítima do
incêndio,
está viva e se apresenta agora sob o nome de Sais. E Pheron, que já se antevê
como faraó, acrescenta que, aquando da sua própria coroação, revelará a verdade.
- A suprema sacerdotisa Mizra anuncia a Sais que ela reinará dentro em breve. A
rapariga reserva-se o direito de anunciar a sua escolha quando o momento chegar,
pois o poder não a atrai de modo algum. Mas o traidor Pheron não entende as
coisas desse mesmo modo. Se porventura Sais se recusasse a casar com ele, ele
ver-se-ia
obrigado a tomar o trono pela força.
- Então a violência triunfará novamente?
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- Sais invoca a alma do seu pai, que ela julga morto, para que a guie. Em
consequência das suas preces, ela decide não reinar no lugar de Thamos e
permanecer no
interior do templo, com as suas Irmãs.
Thamos, Rei do Egipto, quarto acto
Os sacerdotes e as sacerdotisas reúnem-se em plenário no templo do Sol.
- Um coro misto, muito solene, celebra a omnipotência divina - decide o músico.
- Soa então a voz mágica das flautas - indica Thamos.
- Flautas mágicas... Sim, elas anunciam a coroação do jovem faraó! Sethos-Menés
acende a chama e despeja sobre ela o incenso. Quem se poderia opor a tal
entronização?
- Mizra declara então que Sais, a filha de Menés, está viva.
- Thamos ajoelha-se diante dela e presta-lhe homenagem e obediência. Pheron
formula à futura soberana a pergunta decisiva: quem desposará ela?
- Ninguém - responde Sais. - Prestei votos ao culto do Sol. E se tivesse que me
casar, seria com Thamos.
- Pheron, o traidor, grita que se trata de uma traição! - empolga-se Wolfgang. -
E dá aos seus sequazes o sinal do assalto.
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- Nesse instante, Sethos despe o manto de supremo sacerdote e revela-se como
faraó Menés. Todos se inclinam, até mesmo os rebeldes. Mizra suicida-se com um
punhal,
Pheron é preso. O rei permite que sua filha despose Thamos.
- Raios e trovões eclodem - indica o músico. - Matam Pheron, que continuava a
proferir blasfémias. No final do drama, o solo baixo do faraó, em harmonia com o
coro,
proclama: "Filhos do pó, tremei e vibrai!" E a melodia das flautas mágicas traz
de volta a paz e a alegria.
5.
Viena, 10 de Setembro de 1779
Chovia por fim, e a manhã estava muito fresca. Com o final do Verão, Geytrand
sentia-se renascer com tanto mais vigor quanto os últimos relatórios dos seus
informadores
traziam notícias propícias ao seu regozijo.
- A Estrita Observância templária está em maus lençóis - anunciou ao seu patrão,
Joseph Anton. - Como tínheis previsto, a luta encarniçada entre o duque de
Brunswick
e o da Sudermânia acaba por ser nociva para a Ordem no seu conjunto. Os Irmãos
Cavaleiros queixam-se e acusam o Grão-Mestre de não cumprir as suas promessas. A
última
tentativa de reconciliação saldou-se por um insucesso. Nenhum dos contendores
arreda das suas posições, nenhum contacto se estabelece entre suecos e alemães.
- Fernando de Brunswick corre o risco de ser afastado?
- Não é impossível, senhor conde, mas lutará até ao fim. Agindo com prudência,
ele tem nos últimos anos congelado o número de iniciações de topo, de forma a
não
permitir a introdução de raposas na capoeira. Assim, ele permanece rodeado de
fiéis e controla todos os dignitários. Melhor ainda: ele não prevê a criação de
mais
Lojas na Alemanha, nem a consagração de Cavaleiros em Viena.
- Não baixemos a guarda. Pode tratar-se de um passo em falso ou de uma
artimanha. O Grão-Mestre e o seu cúmplice são homens obstinados. Não renunciarão
nem aos seus
poderes nem à expansão da Ordem. Os nossos informadores que permaneçam atentos.
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Veneza, onde, por causa dos seus repetidos escândalos, deixara de se sentir em
segurança. As autoridades queriam, aliás, condená-lo ao exílio "por adultério e
concubinagem
públicos", actividades que já tinham motivado a sua expulsão do seminário de
Treviso.
Nada disto, porém, impedia o bom abade de possuir uma sólida cultura literária,
de ler Dante, Petrarca e Tasso com assiduidade, e de pretender ser um literato
capaz
de alinhavar uns versos, decerto um pouco vazios, mas bem construídos. Nos altos
salões, ele conseguia recolher assinaláveis sucessos ao improvisar sonetos ou
pequenas
odes sobre quaisquer temas.
Após o que arrebatava uma das damas presentes, que houvesse ficado encantada
pelo seu talento, e vivia à custa dela durante algum tempo, antes de saltar para
outra.
Mas essa existência dourada acabava doravante. Aos 30 anos, Da Ponte não
apreciava nada o exílio forçado, que o obrigava a vaguear pelas estradas à
procura de um
emprego remunerado. Por isso pensava na corte de Viena onde, segundo os rumores
que corriam, um bom libretista tinha todas as oportunidades para triunfar. E o
abade
acreditava piamente no seu talento como autor. Ele haveria de redigir depressa,
por encomenda, os textos requisitados pelos autores de óperas. Havia
concorrência?
Ele daria cabo dela!
Decidindo esquecer Veneza, Lorenzo da Ponte seguiu firmemente em direcção à
capital do império austríaco.
16 K. 364.
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- O que é que tu compuseste, Wolfgang... Sinto-me todo mexido por dentro. És
mesmo um homem normal?
- E se fôssemos jogar ao chinquilho?
Berlim, 20 de Dezembro de 1779
Dadas as dificuldades encontradas pelo Grão-Mestre Fernando de Brunswick, os
dois rosa-cruzes mais activos, Wöllner e Bishoffswerder, decidiram vibrar um
grande
golpe.
Durante uma sessão da Loja-Mãe17 dos Estados prussianos, à qual assistiam também
Thamos, conde de Tebas, e diversos visitantes de relevo, Wöllner tomou a palavra
e falou num tom de suma gravidade.
- Honoráveis Irmãos, a Maçonaria vive horas decisivas. O nosso Rito actual, o da
Ordem do Templo, deixou de corresponder às nossas aspirações mais profundas.
Devemos
doravante reportar-nos a uma outra tradição, a da Rosa-Cruz. Estanislau II, rei
da Polónia, é um dos seus ilustres representantes, e o conde Dietrichstein
recebeu
a missão de constituir diversos capítulos Rosa-Cruzes na Áustria, na Hungria e
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na Boémia.
Tais informações surpreenderam muitos dignitários, que não faziam ideia do grau
de expansão desse movimento maçónico subterrâneo.
- Esta nossa Loja continuará a fazer parte da Estrita Observância? - perguntou
Thamos.
- Isso é impossível - respondeu Wöllner. - A nossa Loja-Mãe e todas as suas
filiais devem abandonar a Ordem do Templo e juntar-se à Rosa-Cruz de Ouro.
A defecção dos pedreiros-livres prussianos vibrava um sério golpe na Estrita
Observância. Thamos vislumbrou o ligeiro sorriso que floresceu nos lábios dos
jesuítas
dissimulados sob os seus aventais.
Viena, 31 de Dezembro de 1779
Joseph Anton ceava sozinho, contentando-se com um copo de vinho tinto e um
pedaço de peru frio. As quadras festivas exasperavam-
17 Loja dos Três Globos.
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-no. Não acreditando nem em Deus nem no Diabo, e ainda menos na bondade dos
homens, ele não suportava esse esbanjamento de religiosidade e de regozijos
forçados,
durante os quais os piores inimigos fingiam dar-se às mil maravilhas, mas só
enquanto os festejos decorressem.
Ele continuava a trabalhar para preservar o modelo austríaco, a harmonia da
sociedade e o respeito pelo poder instituído. Qualquer factor de anarquia ou de
desordem
devia ser impiedosamente perseguido, a começar pela Maçonaria, hidra de
múltiplas cabeças, cuja destruição demoraria decerto muito tempo.
A Estrita Observância templária havia sido causa de muitas noites passadas em
branco, de tal modo os seus projectos políticos pareciam perigosos. Voltar a
erguer
uma milícia de Cavaleiros ávidos de reconquista não equivaleria a pôr em causa o
trono imperial?
Ao favorecer a entrada encapotada de jesuítas nas Lojas, Anton desejava
simultaneamente recolher o máximo possível de informações, e perverter o
espírito maçónico,
orientando os Irmãos em direcção a um catolicismo tingido de misticismo e de
cerimónias ocultas, ou seja, em direcção à Rosa-Cruz que agora triunfava em
Berlim.
Uma bela vitória do conde de Pergen, cuja estratégia consistia em dividir e opor
os movimentos maçónicos uns aos outros, de forma a evitar qualquer possível
unificação,
que seria fonte de um poderio temível.
A guerra estava longe de estar ganha, pois, não obstante os seus sucessos, Anton
não podia actuar de forma aberta. Oficiosamente sustentado pela imperatriz Maria
Teresa, ele desconfiava das tendências liberais de José II. Saberia o novo
soberano reconhecer os seus méritos e compreender a importância da sua missão?
Soaram as 12 badaladas da meia-noite, iniciou-se um novo ano. Enquanto os
foliões se abraçavam e desejavam saúde e felicidade uns aos outros, Anton
arrumava os seus
ficheiros. Nenhum pedreiro-livre haveria de lhe escapar, muito menos os de
Viena.
7.
Salzburgo, 15 de Janeiro de 1780
A companhia de Böhm, que ainda passaria largos meses no principado, ensaiava o
Rei Lear, de Shakespeare.
Wolfgang interpelou o director no momento em que ele saía do teatro.
- Não deveríeis estar a ensaiar, este mês, a peça Thamos, Rei do Egipto?
- É verdade, senhor Mozart, é verdade! Mas o projecto revelou-se mais complexo
do que pensávamos e...
- Não brinqueis comigo! O texto e a música estão à vossa disposição, eu estou
pronto para dirigir, os vossos comediantes já estão habituados a peças mais
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longas
e mais difíceis.
- Decerto, mas as condições técnicas...
- Dizei-me a verdade, rogo-vos!
Böhm não ousou olhar de frente para Mozart.
- Aqui, em Salzburgo, nós somos apenas hóspedes de passagem, e carecemos da
autorização das autoridades para encenar todas as nossas peças.
- Essa autorização foi-vos recusada?
- Não a obtive, e foi-me desaconselhado que insistisse.
- Por que razão?
- Este drama teria já sido representado, pelo menos em parte, e sem nenhum
sucesso, e a vossa música desagradou ao príncipe-arcebispo. Seria pois
inconveniente perseverar.
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8.
Salzburgo, 1 de Fevereiro de 1780
Wolfgang tinha nutrido a esperança de trabalhar de novo com Thamos, mas desta
feita foi Johann Andreas Schachtner, escritor e trompetista de 49 anos, que se
apresentou
à sua frente, com um libreto debaixo do braço.
- Um comanditário rico encarregou-me da adaptação de um texto, com a expressa
condição de serdes vós a musicá-lo.
Schachtner já se debruçara sobre Bastião e Bastiana e traduzira para alemão A.
Falsa Jardineira. Ele ignorava que O Rapto do Serralho 18 derivava de um conto
da
autoria do pedreiro-livre Lessing, intitulado Nathan, o Sábio, no qual se
desenvolviam ideias abordadas durante os trabalhos em Loja.
- Tomais um copo de punch? - propôs Wolfgang.
- Certamente! Isso ajudar-me-á a esquecer o Inverno e a ser transportado para o
Oriente, para junto do sultão Solimão, tirano impiedoso. Queixando-se do seu
fado,
os seus escravos partem pedras. Entre eles, encontra-se o cristão Gomatz.
Estafado, desesperado, ele adormece sob o olhar da bela e rebelde Zaida, cristã
e futura
favorita do serralho. A rapariga deixa um retrato seu junto do dorminhoco.
- Assim que ele acorda - interveio Wolfgang - contempla o retrato e apaixona-se
por ela! Juntos, cantarão o seu desejo de se Eva-
18 Zaida ou O Rapto do Serralho, K. 344.
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direm e de viverem o seu amor em plena liberdade. Mas como poderão escapar?
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- Graças a Alazim, um criado do sultão que desaprova o comportamento do seu amo.
Emocionado com a coragem que eles demonstram, ele ajuda-os a sair da prisão e à
atingir a margem do rio. Amanhece, os dois jovens e o seu salvador despedem-se.
- Rebenta uma tempestade - indica o compositor - e os soldados do sultão
conseguem capturar os nossos heróis.
- Com efeito - reconheceu o trompetista. - Osmim, o mercador de escravos,
trá-los, de pés e mãos atados, de volta a Solimão. Este decide mandar executar o
trio de
fugitivos.
- Zaida procura enternecer o monstro, mas em vão. Diante de tamanha crueldade,
ela clama a sua sede de liberdade e o seu amor por Gomatz. Morrerão de cabeça
erguida.
- É impossível que a peça acabe com tal tragédia - determinou Schachiner. -
Alazim relembra a Solimão que, uma vez, foi responsável por lhe salvar a vida.
Em preito
de reconhecimento, o sultão concede-lhe o seu perdão.
- Mas Alazim não abandonará os dois jovens ao seu triste fim. Como poderá
salvá-los?
- Revelando que eles são ambos seus filhos. O sultão concede-lhes então a vida e
a liberdade.
- O tema agrada-me!
- Não celebra ele, afinal, a magnanimidade de um grande senhor cuja crueldade
parecia inamovível? Ao perdoar, ele dá provas da sua sabedoria.
"Seria mesmo bom que o Grande Mufti inspirasse com o exemplo de Solimão", pensou
Wolfgang.
Por fim, o professor Adam Weishaupt, aos 32 anos, via o seu sonho tornar-se
realidade! A Ordem secreta dos Iluminados da Baviera já não era uma utopia, pois
contava
agora com 70 membros da mais alta categoria, cuja autoridade intelectual haveria
de pesar sobre a evolução das mentalidades e da sociedade.
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A maior parte dos Iluminados era também Irmãos da Estrita Observância e começava
a converter uma parte dos pedreiros-livres à sua visão do mundo, contrapondo-se
ao catolicismo dominante até então.
O poderoso impulso ideológico imposto por Weishaupt parecia irresistível, mas
esbarrava com um obstáculo de peso: o conteúdo dos ritos. Os pedreiros-livres
não se
contentavam com teorias, mesmo que elas fossem inovadoras e sedutoras. Muitos
desejavam participar em cerimónias, manejar símbolos e aceder ao conhecimento
dos mistérios,
para lá da filosofia.
Nesse terreno, o jurista Adam Weishaupt revelava-se singularmente falho de
competência. Por isso recorreu a um reputado especialista em rituais maçónicos,
o barão
imperial Adolf von Knigge. Originário de Hanôver, desprovido de terras e de
fortuna não obstante o seu título sonante, este jovem de 28 anos, protestante
liberal,
era simultaneamente dramaturgo, poeta e homem de negócios.
Iniciado em Cassei19, Von Knigge pertencia à esfera superior da Estrita
Observância20, mas não tinha sido admitido na Rosa-Cruz de Berlim. Por causa
dessa experiência
humilhante, guardava uma aversão profunda pelos místicos cristãos, que
considerava incapazes de aceder a uma verdadeira iniciação.
Adam Weishaupt apresentou-se e agradeceu ao barão Adolf von Knigge ter aceite
encontrarem-se no maior sigilo.
- Porquê tanto cuidado? - perguntou Von Knigge.
- Porque eu dirijo uma Ordem maçónica, os Iluminados da Baviera, desconhecido
pelas autoridades e pela polícia.
- Perigosa iniciativa, professor!
- Se queremos mudar o mundo e servir a Humanidade, temos de estar prontos a
correr riscos.
- Mudar o mundo... Não medis as vossas palavras!
- Considerais a nossa sociedade livre, justa e harmoniosa? Von Knigge fez um ar
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desenganado.
- Isso seria estupidez.
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- E a nossa querida maçonaria parece-vos estar à altura das circunstâncias?
- Nem sempre, Irmão. Todavia, parece-me a única via digna de interesse, pois os
sistemas filosóficos comuns não me satisfazem. Em termos religiosos, eu flutuo
entre
a fé e a incredulidade, pois as diversas doutrinas são vazias de sentido. No
entanto, qualquer revolução brutal seria certamente condenável. Ela não traria
nenhum
progresso, caso os homens, por causa das suas paixões, permanecessem iguais ao
que são hoje. Só o aperfeiçoamento intelectual e moral da Humanidade poderá
modificar
a situação.
- Alguns jesuítas, infiltrados nas Lojas, procuram perverter os pedreiros-livres
e trazê-los insidiosamente de volta para a Igreja.
- É verdade - reconheceu o barão Von Knigge -, particularmente nos círculos da
Rosa-Cruz de Ouro.
- Os Iluminados da Baviera querem estancar essa derivação sem ferir a
susceptibilidade dos Irmãos, mas propondo-lhes um novo caminho.
- Como pensais proceder?
- Quero oferecer-lhes rituais mais ricos e mais profundos do que os da Estrita
Observância.
- Já os redigistes?
- Só comecei - confessou Weishaupt. - Sozinho, nunca conseguirei cumprir essa
tarefa. Peço a vossa ajuda e o vosso conselho.
- Sede claro, Irmão: estais a pedir-me que redija os rituais da Ordem dos
Iluminados da Baviera?
- Caso aceitásseis essa missão, barão, faríamos progredir a Maçonaria de forma
decisiva.
- Aceito.
9.
Salzburgo, Março de 1780
49
10.
Estrasburgo, 16 de Setembro de 1780
53
- Aqui entre nós, ele não tem nada fama de gostar de facécias!
- A quem o dizeis!
- Há muitas distracções aqui em Salzburgo?
- Vós trazeis-nos uma lufada de ar fresco, senhor Schikaneder! Aceitaríeis
jantar lá em casa?
- Com prazer! A minha mulher Leonor, que é uma excelente comediante,
contar-vos-á milhares de anedotas.
Apesar das reservas de Nannerl, Leopold apreciou imenso o casal Schikaneder.
O jovial comediante revelou-se como excelente jogador de dardos e, encantado com
a nova amizade que assim se estabelecia, ofereceu entradas gratuitas à família
Mozart
para toda a temporada em Salzburgo.
Brunswick, 19 de Setembro de 1780
Fernando de Brunswick estava abatido. Terminara a leitura de um panfleto anónimo
intitulado A Pedra do obstáculo e o Rochedo do escândalo revelados a todos os
meus
concidadãos alemães fora e dentro da sétima província.
Este texto execrável revelava a organização da Estrita Observância, apontando os
seus pontos fracos, contava a sua história secreta, expunha o conteúdo dos seus
graus e criticava os seus chefes.
Quem poderia ser o autor de tal traição, se não uma das criaturas do duque de
Sudermânia que, furioso por não ter obtido o poder absoluto, preferira afundar o
navio?
Página 22
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Depois de ter consultado Carlos de Hesse, o Grão-Mestre decidiu reunir os seus
Irmãos em capítulo, em Wilhelmsbad, para tentar salvar a Ordem, gravemente
ameaçada.
Para preparar os debates desta assembleia, ele formulou uma série de perguntas
às Lojas:
Em primeiro lugar, possuía a Ordem verdadeiros Superiores? Quem eram? Onde
residiam? A Ordem encontrava-se ligada a alguma sociedade mais antiga? Qual? As
origens
da Ordem estavam relacionadas com os templários?
Em segundo, qual seria a forma mais adequada de organizar os cerimoniais e os
rituais?
54
Em terceiro, poder-se-ia restaurar do ponto de vista económico, com toda a
segurança, a Ordem do Templo?
Em quarto, o objectivo assumido pela Ordem deveria ser público ou interno?
Poderiam a beneficência, o mútuo apoio dos Irmãos, a educação dos homens para o
Estado,
constituir objectivos exteriores que justificassem a existência da Ordem?
Em quinto, existiriam determinados conhecimentos de que a Ordem fosse a única
depositária?
Uma vez que o seu anjo-da-guarda não dava sinais de vida, Carlos de Hesse
interrogou-se acerca do bom fundamento de tão assombrosa iniciativa.
- Não estaremos nós a expor as nossas dúvidas perante o conjunto dos nossos
Irmãos?
- Ao verificarem a nossa sinceridade, os Superiores incógnitos acorrerão em
nosso auxílio - considerou Fernando de Brunswick.
11.
Salzburgo, 5 de Outubro de 1780
- Estás a brincar, Anton?
- De modo nenhum - respondeu Stadler, desafiando o compositor.
- Tu vais-te casar?
- Pois é, caso-me no dia 12 com Francisca Bichler.
- Então, vais tomar juízo?
- Claro que vou, já que sou um rapaz honesto. Nós não temos dinheiro, mas
seremos muito felizes e fundaremos uma família prolífica28.
- Eis um programa magnífico, Anton! Estou feliz por teres por fim tomado o
caminho certo.
- Eu também - suspirou Stadler. - As mulheres são tão complicadas! Esta, pelo
menos, sabe bem o que quer. E uma boa notícia nunca vem só. Os meus talentos de
clarinetista
foram reconhecidos na corte, e dentro em breve obterei um posto oficial.
57
- Falas num tom de grande mistério, Anton!
- É um assunto delicado, extremamente delicado, e eu não gostaria que...
- E se desembuchasses de vez? Anton Stadler engoliu em seco.
- Trata-se de Aloysia.
- Ela está... doente?
- Não, oh não! A não ser que se considere o casamento como uma doença.
- Aloysia, casada?
- Sim, com um comediante, Joseph Lange29.
- Um comediante... Desejo-lhes muitas felicidades e oferecer-lhes-ei um
presente.
Wolfgang compôs dois Ueder, com a peculiaridade de serem acompanhados por
mandolina. O primeiro, sobre as palavras do poeta Johann-Martin Miller,
intitulava-se A
Felicidade30 e cantava uma alegria serena, longe da vaidade dos grandes deste
mundo. O segundo, Vem, cara citará 31, era uma serenata de amor.
Com estas duas obras, Wolfgang cortava cerce o fio que ainda o ligava a Aloysia.
O seu primeiro grande amor não passava agora de uma sombra, para sempre perdida
nos limbos do esquecimento.
Munique, 31 de Outubro de 1780
Presuntivo herdeiro do trono da Baviera, Karl Theodor atingia por fim os seus
objectivos. Após um longo período de instabilidade, que ameaçara mesmo
desencadear
uma guerra sangrenta entre a Áustria e a Prússia, Karl Theodor reinava sobre
Munique e sonhava de novo com o ressurgimento da vida artística, apesar das
objecções
apresentadas pelo seu confessor, o jesuíta Frank, que preferiria ver o duque
mais entregue à devoção e à oração.
Por isso, Karl Theodor recebia uma série de pessoas que lhe vinham apresentar
alvitres. Ele aparecia como um príncipe liberal, dese-
29 Tiveram seis filhos.
30 K. 349.
31 K. 351. Esta ária prefigura a de Don Giovanni.
58
Página 24
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
joso de melhorar o quotidiano dos seus súbditos oferecendo-lhes excelentes
espectáculos.
- Conde de Tebas! Fico feliz por vos acolher aqui na Baviera.
- Sabendo quanto o vosso tempo é precioso, posso apresentar-vos desde logo um
projecto?
- Fazei o favor.
- O próximo período de Carnaval poderia acolher uma ópera de grande qualidade
que há-de seduzir a vossa magnífica cidade.
- Uma obra... séria?
- Não seria isso adequado às circunstâncias? Um belo tema, aliado a uma música
ampla e rigorosa, serviriam melhor a vossa fama do que uma comédia ou uma ópera
bufa.
"Este conde de Tebas tem uma certa razão", pensou o príncipe-eleitor.
- Falta pouco tempo para o Carnaval. Sabeis de algum compositor capaz de levar
adiante tal projecto?
- Conheço apenas um: Wolfgang Mozart. Karl Theodor amuou.
- Ele tem um feitio um bocado rebelde...
- É hoje um fiel servidor do príncipe-arcebispo Colloredo, e trabalharia
juntamente com um religioso da catedral de Salzburgo, chamado Varesco, de forma
a vos fornecer
uma obra moral e religiosamente idónea. Para mais, Mozart não deixa de proclamar
o reconhecimento e a estima que nutre a vosso respeito, considerando-vos como um
dos maiores protectores da música.
Karl Theodor não foi insensível nem às garantias dadas, nem aos elogios.
- A vossa proposta interessa-me, senhor conde, mas devo consultar os meus
conselheiros. A minha decisão não tardará.
Thamos inclinou-se.
O príncipe-eleitor convocou de imediato o seu confessor.
- Conheceis Varesco?
- Um capelão salzburguês digno da maior estima - respondeu o jesuíta.
- E Wolfgang Mozart?
- Quem é?
59
- Um músico da corte de Colloredo. Não existe a seu respeito nenhum rumor
suspeito, nenhuma informação comprometedora?
O confessor Frank era também um dos agentes de Geytrand, encarregado de elaborar
o ficheiro de pedreiros-livres e de recolher o máximo de informações a seu
respeito.
Dotado de excelente memória, podia citar de cor os seus nomes e graus.
- Não consta nenhum rumor nem informação contrária. Esse Mozart não pertence a
nenhuma associação subversiva.
12.
Salzburgo, 5 de Novembro de 1780
O conde Hieronymus Colloredo não mudara. Áspero e brusco, ele omitiu as fórmulas
de polidez, e anunciou logo a sua decisão a Mozart, seu músico-lacaio.
- O príncipe-eleitor da Baviera deseja que componhais uma ópera para o Carnaval
de Munique. O libreto é obra do meu capelão Varesco, que vos remeterá o texto.
Partis
hoje mesmo e concedo-vos seis semanas de ausência para que possais dirigir os
ensaios e oferecer ao príncipe-eleitor uma música satisfatória, no estilo da
ópera
italiana. Tratai de não nos desiludir.
Com um gesto seco, Colloredo despediu o criado.
Giovanni-Baptista Varesco esperava por Wolfgang. De espírito um pouco lerdo, o
capelão tinha tido a sorte de receber um texto praticamente pronto, que retomava
um
libreto de Antoine Danchet, já usado por um músico francês chamado Campra32.
- Qual é o tema? - inquietou-se o compositor, temendo uma inépcia.
- A história trágica de Idomeneu, rei de Creta. De regresso da guerra de Tróia,
ele tem de assegurar a sobrevivência do seu povo sacrificando o seu próprio
filho.
- Há heroínas?
Página 25
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
32 1660-1744.
61
- Duas, ambas apaixonadas pelo filho condenado à morte.
- E deuses?
- Todo o enredo repousa sobre a maldição e a clemência de Neptuno.
- Dai-me o vosso texto.
Pela primeira vez, Wolfgang partiria em viagem sozinho, já que o seu pai não
fora autorizado a acompanhá-lo.
Munique, 6 de Novembro de 1780
Com a cabeça cheia de música e a mão prestes a correr sobre o papel, Wolfgang
sentia raiva por aquele libreto de Varesco, que tinha de modificar
profundamente, suprimindo
tempos mortos e erros de dramaturgia.
Wolfgang foi acolhido de braços abertos pelos seus amigos da orquestra de
Mannheim, agora instalados em Munique. A cabeça deles, figurava Christian
Cannabich, que
o levou até um alojamento confortável, sito na Burggasse.
Nessa mesma noite, o seu quarto muniquense transformou-se na ilha de Creta e ele
cantarolou a primeira frase da heroína, ília: "Quando cessará o meu cruel
infortúnio?"
Filha de Príamo e prisioneira dos cretenses, a bela rapariga apaixonara-se por
Idamante, filho do rei Idome-neu, regente do território durante a ausência do
pai.
Este último voltava por fim, são e salvo, depois de ter participado no cerco de
Tróia! Mas só conseguia sobreviver a uma tempestade mediante a formulação de um
voto
solene dirigido a Neptuno: sacrificar a esse deus a primeira pessoa que
encontrasse ao pousar de novo o pé no solo da sua pátria.
Quis o fado cruel que essa pessoa não fosse outra se não o seu próprio filho,
Idamante. O rei ordena ao infeliz, que ignora a promessa formulada pelo pai, que
parta
para sempre de Creta, na companhia da sombria e aflita Electra, apaixonada pelo
príncipe e cheio de ciúmes de ília.
As forças sobrenaturais voltam a mostrar-se superiores aos embustes dos humanos!
Irrompendo das águas, um monstro ameaça aniquilar a ilha de Creta. Face à
população
aterrorizada, o rei Idomeneu
62
confessa toda a verdade. E todos exigem que ele mate o seu filho para apaziguar
a cólera divina.
Pronto para morrer, Idamante ataca o monstro... e abate-o! Um final feliz? Não,
pois a vitória não anula o voto. Então, a corajosa Ilia decide tomar o lugar do
homem
que ama. Desta vez, a tragédia parece inevitável.
"Um deus pode, só por ele, mudar a face do mundo", afirmava o libreto, "e o
rigor dará lugar à clemência." Admitindo o triunfo do amor, Neptuno desliga o
rei Idomeneu
do voto pronunciado, mas impõe uma condição: que ele renuncie ao trono em prol
do seu filho Idamante, que deverá casar com Ilia, para desgosto de Electra, que
fica
louca de dor.
O amor puro, o sacrifício de si próprio, o respeito pela palavra dada, o poder
divino... Todos estes aspectos entusiasmavam Wolfgang. E que estranha conclusão:
um
pai digno, que ama o seu filho, vê-se condenado a sacrificá-lo; mas a vontade
divina modifica o destino e leva ao triunfo do filho, obrigando o pai a abdicar.
Por
um instante, um brevíssimo instante, Wolfgang pensa em Leopold. Depois volta a
deitar mãos à obra, encantado por poder exprimir mil sentimentos através de uma
ópera
"séria", cujos personagens ele saberia tornar bem vivos.
Página 26
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Munique, 7 de Novembro de 1780
Wolfgang foi recebido pelo conde Seeau, que continuava a exercer o cargo de
intendente dos teatros e da música. Este consumado hipócrita, que o havia em
tempos dispensado
como um zé-ninguém desprovido de futuro, mostrava-se agora sorridente e cortês.
- Estou encantado por vos rever, Mozart. Pelo que dizem, dais plena satisfação
ao príncipe-arcebispo Colloredo, cujo excelente gosto musical é sobejamente
conhecido.
Não vos esconderei uma certa inquietação. O tempo à vossa disposição para compor
esta ópera é mínimo, pois a nossa boa cidade gostaria de ouvi-la durante o
período
carnavalesco.
- Os desejos do príncipe-eleitor são ordens para mim. O tema agrada-me,
conseguirei respeitar os prazos.
- Tomais esse compromisso solenemente?
63
- Duvidais disso? Quando um Mozart dá a sua palavra, não volta atrás.
- Perfeito, fico descansado.
Parecia evidente que o conde Seeau pensava sobretudo na sua própria reputação.
Caso se atrasasse, o príncipe-eleitor não deixaria de lho censurar.
Com um olhar galhofeiro, Wolfgang viu afastar-se esse cortesão que passaria o
dia a coligir e a disseminar boatos. Felizmente, os técnicos e os decoradores
que trabalhavam
na Ópera de Munique eram profissionais de primeira água, e dariam o seu melhor
para dar todo o seu esplendor à partitura de Idomeneu.
Longe de Salzburgo, Wolfgang sentia-se respirar. Na véspera, tinha-se encontrado
com os cantores, cujo nível lhe parecia satisfatório, com excepção do velho
tenor
Raaff, a quem cabia o papel principal. E tinha também de transformar vários
trechos do libreto, ainda um bocado coxo.
13.
Munique, 15 de Novembro de 1780
- Fico contente por vos ver aqui - disse o príncipe-eleitor Karl Theodor a
Mozart.
- O vosso trabalho avança de maneira satisfatória?
- Muito satisfatória, Alteza.
- O nosso Idomeneu ficará portanto pronto a tempo?
- Não temais. Tenho a cabeça arejada e sinto muita alegria no meu trabalho.
- É um belo tema, não é?
- Desde que o libreto seja melhorado, pois o capelão Varesco não percebe nada
das exigências da música.
- Conto com o vosso sentido diplomático, Mozart!
- Podeis contar, Alteza.
- No que se refere aos cantores, não há problemas?
- Alguns.
- Fáceis de resolver, espero?
- Tratarei deles.
- Perfeito, Mozart, perfeito! Quero um belo sucesso.
- Eu também, Alteza.
- Tendes razão em regressar a Salzburgo e servirdes um príncipe tão esclarecido
como Colloredo. Doravante, a vossa carreira está assegurada.
65
Munique, 20 de Novembro de 1780
O tenor Raaff, outrora tão simpático, não parava de importunar Wolfgang,
pedindo-lhe para alterar o seu papel, de forma a adaptá-lo às suas capacidades
vocais em
franco declínio. Quanto ao castrado Del Prato, que interpretava Idamante, filho
do rei Idomeneu, era tão inexperiente que o compositor tinha de cantar com ele,
ensinando-lhe
Página 27
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
cada nota. Totalmente desprovido de método, comportava-se como uma criança.
Felizmente, as cantoras eram excelentes!
Não obstante as suas ocupações, que não lhe deixavam um momento de descanso,
Wolfgang alinhavou para o seu amigo Schikaneder uma ária para intercalar numa
ópera
de Gozzi, intitulada O amor, porque tomas esse cruel prazer33, que enviou de
imediato para Salzburgo.
Apesar do cansaço, o jovem criador vivia momentos exaltantes. Afinal, não estava
ele a realizar o sonho de escrever uma ópera e vê-la representada? Sentia de
novo
esperança, e um certo gosto de liberdade.
Devia essa felicidade a Thamos, seu protector. Fora ele, sem dúvida, quem
conseguira convencer Karl Theodor a realizar a encomenda de Idomeneu. Decerto,
Wolfgang
teria preferido continuar com as suas explorações do tema dos sacerdotes do Sol,
mas não o punha o tema desta obra também em contacto com os deuses?
Salzburgo, 29 de Novembro de 1780
"Decididamente", pensou Emmanuel Schikaneder, "este Mozart é uma pessoa de bem.
A ária prometida chegou a tempo. Eis um homem de palavra, coisa rara nos tempos
que
correm!"
Pedreiro-livre, o homem de teatro não lamentava ter dado ouvidos ao conselho de
um Irmão, um tal conde de Tebas, que lhe recomendara que passasse por Salzburgo
onde,
nessa mesma noite, a sua popular peça Olho por olho haveria de atrair o
entusiasmo do público.
Nascida no seio das bebedeiras com os comediantes da sua companhia, esta peça
estava recheada de um sentido cómico crepitante, de
33 K. 365a, hoje perdida.
66
decisão, não escutar nenhuma opinião contrária, e levá-la a bom termo com
resolução.
A firmeza do tom e a clareza das palavras causaram surpresa. Parecia evidente
que o reinado de José II não ficaria marcado pela inacção.
- Qual será a linha de força da nossa política, Majestade? - perguntou o decano
dos dignitários.
- Ela resume-se em poucas palavras: o Estado deve assegurar o maior bem possível
ao maior número de pessoas. Confirmar a abolição da escravatura e da servidão,
melhorar
o sistema penal, assegurar a igualdade perante os impostos, limitar os poderes
da nobreza e da Igreja, suprimir os mosteiros e conventos que não desempenhem
nenhuma
função social, favorecer a tolerância e a liberdade de pensamento: eis as
medidas urgentes que serão criadas pela legislação.
- Majestade, não temeis que...
- O mundo está a mudar. Não o admitir e não empreender as reformas impreteríveis
conduziria o império para o seu descalabro. Tomemos a dianteira e provemos ao
povo
que governamos em seu favor, e não em nossa gloríola ou em nosso proveito
pessoal.
Desolado, com o estômago às voltas, Joseph Anton bebeu um grande copo de vinho
tinto. O falecimento da sua protectora, a imperatriz Maria Teresa, era uma
catástrofe.
Ela financiava pessoalmente o seu serviço secreto, cuja existência não era
conhecida nem sequer pelo chefe da polícia.
O primeiro discurso de José II não deixava qualquer margem para dúvidas: ao
afirmar o seu liberalismo, o imperador abria as portas a todas as correntes de
pensamento,
incluindo a Maçonaria!
Anton contemplou com azedume as pilhas de pastas pacientemente acumuladas. Tanto
trabalho inutilizado, tantos esforços vãos, tantas descobertas condenadas a
desaparecer...
Ele não se conformava em queimar os fólios cobertos por uma letra cerrada,
precisa e sem desníveis. Não havia nela qualquer traço de paixão ou de impulso,
antes
uma meticulosidade científica que excluía qualquer distorção ou erro.
68
No entanto, era preciso destruir as provas da sua actividade, de agora em diante
considerada ilegal.
Pensando melhor, não!
Dando um murro na mesa, ele decidiu tomar a iniciativa. Ao obedecer à defunta
imperatriz, não tinha ele servido o seu país?
Em vez de se imolar, ele advogaria a sua causa junto do imperador,
explicando-lhe por que considerava a maçonaria tão perigosa.
14.
Munique, 1 de Dezembro de 1780
No final do primeiro ensaio do primeiro acto de Idomeneu, com uma orquestra
reduzida, a satisfação foi geral. Instrumentistas e cantores apreciavam a música
de Mozart,
que entretanto ficara constipado.
- A minha constipação e a minha bronquite pioraram - confessou ao tenor Raaff -,
damos tudo por tudo quando a nossa honra e a nossa reputação estão em jogo.
Mesmo
quando guardamos o nosso sangue-frio, vamos ao fundo das coisas!
Com efeito, o maestro manifestava um entusiasmo de tal ordem que todos seguiam
Página 29
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
atrás dele, até ao extremo das suas capacidades técnicas. Só o velho Raaff pediu
ainda
algumas modificações, consciente da sua dificuldade em seguir o ritmo.
-Já sabes a grande novidade? - perguntou a Wolfgang.
- Uma guerra?
- Não, felizmente! A imperatriz Maria Teresa de Áustria acaba de falecer.
- Temos, portanto, luto oficial!
- Não temas, já estará revogado quando for altura da primeira representação de
Idomeneu. Esta perda não parece afligir-te nem um pouco.
- Um luto demasiado prolongado não traz tanto benefício ao falecido ou à
falecida, quanto prejuízo a um grande número de vivos. Dia 8, ensaiamos os dois
primeiros
actos.
70
74
principado e virem ter com ele a Munique, para assistir à estreia de Idomeneu.
A camisa-de-forças descerrava-se.
Munique, 10 de Janeiro de 1781
cantores. Quando faço intervir os trombones, é porque eles são necessários para
o bom entendimento da obra.
Vexado, o conde Seeau prometeu a si próprio que aquele insolente jamais haveria
de ocupar qualquer cargo na corte de Karl Theodor.
79
Wolfgang aquiesceu com a cabeça. Ele tinha aliás criado um kyrie em ré menor37
com vista a obter, em Munique, um lugar de compositor de música sacra.
- Sobretudo - insistiu a soprano - não desistais!
No olhar de Elizabeth Wendling, podia ler-se mais do que uma simples admiração.
- Estou-vos grato pelos vossos encorajamentos. Peço perdão por ter de
abandonar-vos, mas prometi terminar um quarteto38 destinado a um amigo, o
oboísta Ramm.
Oboé, violino, viola e violoncelo misturavam as suas vozes numa melodia ora
íntima e grave, ora alegre e quase frívola. Depois do trabalho esgotante de
Idomeneu,
Wolfgang desejava reencontrar um quadro mais íntimo e, sobretudo, arrastar o seu
pai e a sua irmã para as diversões carnavalescas de Munique, esquecendo por
momentos
as preocupações do amanhã.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
80
Colloredo aprovava as reformas do imperador. Chegara a hora de optar pelo
caminho do progresso, desde que não se cedesse nem um palmo no que se referia à
manutenção
da autoridade. Quem contestaria a que ele impunha sobre Salzburgo, a não ser
aquele jovem Mozart, sempre desejoso de deixar a cidade e de viver aventuras
inconsequentes?
Ele ultrapassava os limites, agia conforme a sua vontade e só levava a
insucessos prejudiciais à boa reputação do principado.
Segundo as últimas notícias, Idomeneu não sobreviveria ao Inverno. E Mozart
tinha perdido o seu tempo a escrever uma obra menor destinada a um rápido
esquecimento,
em vez de trabalhar para a corte do príncipe-arcebispo.
Daqui para a frente, Colloredo não toleraria mais nenhum escândalo. Ele havia
dobrado o pai, acabaria por dobrar também o filho. Nenhum músico podia esquecer
que
era, antes de mais, um criado da sua Casa, obrigado a obedecer às exigências do
seu amo. Se esse princípio fosse esquecido, entrar-se-ia numa completa anarquia.
- As minhas malas estão feitas?
- Sim, Eminência.
Ao atrair a benevolência de José II, Colloredo consolidaria a sua posição e
asseguraria longos anos de reinado que ninguém, muito menos um musicozeco de
carácter
difícil, ousaria perturbar.
17.
Viena, 1 de Março de 1781
Página 35
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Munique, 8 de Março de 1781
Depois da terceira representação de Idomeneu, dia 3, Wolfgang rendeu-se à
evidência: a sua ópera não permaneceria em cartaz.
Derradeira possibilidade de obter um cargo em Munique; agradar ao
príncipe-eleitor Karl Theodor oferecendo à sua amante ocasional, a condessa
Baumgarten, uma ária
dramática para soprano, Infeliz onde estou? Ah, não sou eu falar!39, segundo um
texto do poeta Metastaso. Ele evocava a infelicidade de Fúlvia, que passava da
ira
ao desespero por não compreender nem o seu fado, nem a indiferença dos deuses.
A opinião da condessa pesou bem pouco em comparação com o veneno instilado na
corte pelo conde Seeau, e com a intransigência moral do padre Frank, jesuíta
confessor
de Karl Theodor.
Não tendo mais nada a esperar de Munique, Wolfgang levou a pai e a irmã até
Augsburgo, onde tocaram órgão, procurando desta forma esquecer a nova desilusão
sofrida.
- Ordem de Colloredo - anunciou Leopold ao seu filho. - Deves ir ter com ele a
Viena sem passar por Salzburgo. Nannerl e eu regressamos imediatamente a casa.
Vê
lá, não te atrases. O príncipe-arcebispo está cada dia mais autoritário e não
suporta a mais pequena insubordinação.
Wolfgang não se importava de obedecer, mas queria, antes de deixar Munique,
tocar com os seus amigos da orquestra uma obra na qual
39 K. 369.
83
18.
Viena, 12 de Março de 1781
87
Desde a última entrevista que tivera com Thamos, a mente do compositor estava
obcecada com um projecto: organizar concertos para obter lucro próprio. E para
escapar
à atmosfera abafante do palácio de o Grande Mufti, Wolfgang foi ter a casa de
Mesmer. Agora instalado em Paris, o magnetizador tinha decidido não regressar a
Viena,
mas a sua família acolheu o músico de forma muito amável. Aconselharam o jovem
compositor a obter entrevistas com os nobres amantes de música, começando pelo
conde
Thun e pela sua mulher, ambos grandes apreciadores de novidades.
Página 38
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
88
Ele deseja uma verdadeira revolução. E também é venal e precisa muito de
dinheiro.
- Vigia Ignaz von Born sem que ele desconfie - preconizou o conde. - Não cometas
imprudências. Se ele topar alguma coisa, é capaz de retroceder. O imperador não
nos perdoaria termos incomodado um brilhante professor universitário vienense.
Eis precisamente o género de personagem que eu gostaria de ver longe, muito
longe
de nós! Todos são unânimes nos louvores à sua inteligência e ao seu rigor, e ele
goza de uma sólida reputação internacional. Se ele for bem sucedido, conferirá a
esta Loja um esplendor capaz de atrair outros intelectuais.
- Duvido do seu sucesso - objectou Geytrand. - Terá de se defrontar com
numerosos concorrentes, que o impedirão de concretizar os seus projectos. A
vaidade, a inveja
e a corrupção não estão, felizmente, ausentes da Maçonaria. Se não, ela
produziria grandes obras, semelhantes às das antigas confrarias iniciáticas.
19.
Viena, 23 de Março de 1781
Dotado de uma carta de recomendação redigida pela família Mes-mer, Wolfgang foi
ter a casa do conde Francisco José Thun-Hohenstein.
Com 47 anos, pedreiro-livre da Loja Para a Verdadeira União e Irmão de Thamos,
que lha havia demoradamente falado de Mozart, o conde era adepto do espiritismo,
do
magnetismo e de todas as ciências ocultas. Muito culta, antiga aluna do grande
músico Joseph Haydn, a condessa Maria Wilhelmina, sua mulher, mantinha um salão
no
palácio Ufelde, propriedade da família nas cercanias da Minoritenkirche.
- Senhor Mozart! - exclamou Francisco José - A vossa visita foi-me anunciada por
um sonho premonitório. Como poderia um verdadeiro artista escapar à minha
querida
Wilhelmina? Credes nos espíritos, decerto?
- Não estará a música cheia deles?
- Claro que sim! Vinde descobrir esta casa. Parece que a acústica é excelente,
pelo menos os intérpretes que frequentam este salão costumam dizer bem dela. Em
seguida,
apresentar-vos-ei a minha mulher e passaremos à mesa. A crença nos espíritos não
deve afectar o nosso apetite.
De imediato, a condessa discerniu em Wolfgang uma personalidade fora do comum.
Antes mesmo de ouvir as suas primeiras notas, ela soube que as obras emanadas
daquele
jovem compositor não se assemelhariam a nenhumas outras.
90
- A porta desta casa está-vos franqueada - disse-lhe ela com um sorriso franco.
- Se desejardes, vinde todos os dias.
- O príncipe-arcebispo Colloredo não me concede tal liberdade.
- Deveis dar academias42 para seduzir os vienenses - decretou a condessa. - Para
começar, poderíeis intervir por ocasião de um espectáculo de beneficência
organizado
pela Sociedade dos Músicos. Colloredo certamente não proibirá a vossa
participação numa obra caritativa.
Viena, 24 de Março de 1781
Não aguentando mais os seus companheiros de mesa, cada vez mais grosseiros,
Wolfgang não comera nada e andava para trás e para frente na antecâmara de o
Grande Mufti,
à espera da sua resposta.
Por fim, o conde d'Arco saiu do gabinete de Sua Eminência.
- O meu requerimento foi deferido? - perguntou Wolfgang.
- Foi recusado. Estais ao serviço do príncipe-arcebispo e de mais ninguém.
- Trata-se de um concerto de caridade, e serei apenas um músico entre tantos
outros.
Página 39
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- O príncipe-arcebispo conhece perfeitamente a vida artística vienense. Enquanto
criado da sua Casa, deveis submeter-vos às regras que ele impõe. Passai bem,
Mozart.
O conde d'Arco voltou para junto do seu augusto patrão.
- Transmiti a vossa decisão, Eminência.
- Esse jovem galo inclinou-se?
- Não teve escolha.
- Havemos de vergá-lo, e ele virá comer à minha mão. Sem o salário que lhe pago,
ele teria de mendigar. O pai dele não aceitará tal sorte e acabará por convencer
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Viena, 4 de Abril de 1781
- Um sucesso, dizeis? - perguntou Colloredo, furioso, ao conde d'Arco.
43 K. 373.
44 K. 354 (299a).
93
99
Viena, 25 de Abril de 1781
- Duas boas notícias - anunciou Geytrand a Joseph Anton. - Primeiro, a ruptura
definitiva entre o duque de Sudermânia e a Estrita Observância templária,
doravante
ausente de todos os Estados austríacos; depois, a extinção da Ordem dos
Arquitectos africanos, em Berlim.
- Resultante de alguma intervenção das autoridades?
- Não, antes da insuficiência dos Irmãos, incapazes de usar os meios colocados à
disposição deles.
- Essa Ordem só contava com um número muito restrito de membros, por isso era
objecto de desdém para os pedreiros-livres de outros Ritos. O aniquilamento
desses
Arquitectos africanos não provocará nenhum sismo. O capítulo de Wilhelmsbad está
a ser preparado?
- Com muita dificuldade! Se o duque de Brunswick não conseguir organizá-lo, terá
de se demitir.
- Mas ele conseguirá, pois a Estrita Observância representa a sua razão para
viver. Não subestimemos nunca os ideais de um homem, Geytrand. Por vezes, eles
tornam-no
capaz de levantar montanhas.
22.
Viena, 1 de Maio de 1781
O correio enviado pelo príncipe-arcebispo Colloredo não esteve para perder tempo
com cortesias.
- Tu és Wolfgang Mozart?
- Sim, sou eu.
- Sua Eminência ordena-te que saias imediatamente. Não te quer mais ver em casa
dele.
- Para onde devo ir?
- Tanto se me dá. O essencial é que te ponhas na alheta.
- Tenho ainda algum tempo?
- O tempo para fazeres as malas e pores-te na alheta.
Não tendo o emissário de Colloredo mencionado Salzburgo, Wolfgang decidiu
permanecer em Viena enquanto esperava pelo desenrolar dos acontecimentos.
Havia várias soluções possíveis. O músico escolheu a mais simples de todas, ou
seja, ir para a residência burguesa do Olho de Deus, junto da igreja de São
Pedro,
dirigida pela senhora Weber. Ela residia ali na companhia das três irmãs de
Aloysia, que estavam de saída quando o músico expulso chegou.
- Wolfgang! Como estás tu?
- Mais ou menos. E tu?
- Às mil maravilhas! Apresento-te o meu marido, o comediante Joseph Lange.
101
Os dois homens cumprimentaram-se.
- O que vieste fazer aqui? - perguntou Aloysia, intrigada.
- Colloredo expulsou-me do seu palácio vienense, ando à procura de alojamento.
- Vieste bater à porta certa, a minha mãe dispõe de um quarto agradável.
Perdoa-me, estamos com pressa. Voltaremos com certeza a ver-nos.
- Com certeza.
Foi Constance Weber, tímida e reservada, quem recebeu o músico. Com 19 anos, ela
tinha um rosto fino, nariz aguçado e boca pequena. Desejou as boas-vindas ao
Página 44
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
visitante
em voz suave e distinta.
- Posso falar com a vossa mãe?
- Vou chamá-la.
Boa dona de casa e prudente gestora, a matriarca gostou de receber aquele novo
locatário, cuja honestidade ela já conhecia.
Viena, 9 de Maio de 1781
102
prova durante tanto tempo! O dia de hoje foi de alegria para mim. E agora que
começa a minha felicidade, e espero que ela corresponda também à vossa.
Nessa mesma noite, Wolfgang foi tomado por uma febre violenta. A emoção havia
sido tão intensa que ele tremia até mais não poder.
Página 45
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
103
- Esta noite - considerou a voz apaziguadora de Thamos, o egípcio - vê se
consegues dormir um pouco.
- Gostaria de ter contado com a vossa ajuda nestes últimos dias!
- Safaste-te muito bem sozinho.
- Não podeis imaginar a violência da minha entrevista com o Grande Mufti! Essa
horrenda criatura é um monstro de vaidade. Já não posso hesitar mais! Já que a
porta
da prisão se entreabriu, evado-me sem olhar para trás.
- Pensaste bem nas consequências dessa tua decisão?
- Terei de lutar e voltar a lutar, mas já não será em benefício de Colloredo.
Vós não me acusais por eu romper os grilhões da minha prisão, pois não?
- Pelo contrário, Wolfgang. Mas te deixes inebriar pela liberdade.
- A minha adolescência está a findar, começa a minha vida de homem. Viena já
olvidou o menino-prodígio, e eu também. Ou sou capaz de me impor como músico
independente,
ou não mereço a sorte que o destino me oferece.
23.
Viena, 19 de Maio de 1781
Wolfgang estava aterrado.
Em vez de lhe conceder a sua concordância e de aprovar o desejo de liberdade,
Leopold admoestava-o no sentido de se submeter a Colloredo, preservando assim o
seu
lugar em Salzburgo!
Cruelmente desiludido, Wolfgang deixou falar a voz do coração: Em nenhuma das
linhas da vossa carta logro reconhecer o meu Pai! E achais mesmo que eu deva
assumir
o papel de cretino, conferindo ao arcebispo o de nobre senhor? Se é motivo de
satisfação uma pessoa desembaraçar-se de um príncipe que não lhe paga e que a
chateia
de morte, então, sim, é verdade, eu estou satisfeito. Fui forçado a dar este
passo decisivo e agora não posso recuar nem um pouco. A. minha honra deve
permanecer
acima de tudo.
Compreenderia Leopold por fim as suas verdadeiras aspirações?
De qualquer modo, Wolfgang não voltaria a curvar-se diante de Colloredo.
105
na Baixa Saxónia, na Alta e Baixa Renânia, e até mesmo em Viena. E tudo isto é
só o começo, pois muitos pedreiros-livres procuram destacar-se da Igreja e
combater
a influência insidiosa dos jesuítas. Estes nossos Irmãos acusam os católicos,
com razão, de julgar menos severamente um criminoso, um debochado ou um
impostor, desde
que estes acreditem na transubstanciação, do que um homem honesto e virtuoso que
tenha a infelicidade de não compreender como é que um pedaço de massa pode ser
simultaneamente
um pedaço de carne. O tempo dessas superstições está ultrapassado, e nós,
Iluminados e pedreiros-livres, devemos preparar o advento de uma era em que a
luz do conhecimento
substituirá as trevas da ignorância.
Adam Weishaupt rejubilava, mas desejava ir muito mais longe.
- Não crês, Irmão, que os imperadores e os reis protegem e encorajam a
existência desse obscurantismo?
- Devemos condenar os maus governantes, sejam eles reis ou plebeus - considerou
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Von Knigge -, e temos sobretudo o dever de influenciar a evolução moral da
sociedade.
Essa tarefa imensa levar-nos-á porventura milhões de anos. Repito, qualquer
revolução violenta levaria a uma catástrofe. Derrubar os regimes estabelecidos
não servirá
de nada enquanto não mudarmos o coração dos homens.
Milhões de anos, evolução moral... Weishaupt, quanto a ele, desejava uma acção
política directa, mas preferiu não revelar os seus verdadeiros desígnios, por
ter
extrema necessidade de Adolph von Knigge e da Maçonaria.
-Já construí a arquitectura da nossa Ordem - retomou o barão. - Constará de três
categorias: o Seminário, a Maçonaria e os Mistérios46.
Von Knigge ignorava que Adam Weishaupt controlava a Ordem dos Iluminados da
Baviera com punho de ferro, recorrendo às células estanques, à delação e à
espionagem.
Com a criação do Seminário, tornava-se mais difícil garantir um controlo
absoluto. Entretanto, era preciso recrutar e convencer uma série de espíritos
brilhantes
e influentes a aderir a um movimento es-
46 Primeira categoria: o Seminário (três graus: Noviciado, Minerval, Iluminado
menor). Segunda categoria: a Maçonaria (cinco graus: Aprendiz, Companheiro,
Mestre,
Iluminado maior, Iluminado dirigente ou Cavaleiro escocês). Terceira categoria:
os Mistérios, incluindo os Pequenos Mistérios (Sacerdotes e Regentes) e os
Grandes
Mistérios (Magos e Reis).
106
Wolfgang compôs duas sonatas para piano e violino51 bastante febris e agitadas,
nas quais predominava o sentimento de luta contra si próprio e contra o mundo
exterior.
50 K. 377.
51 K. 379 e 380.
114
O seu pai tinha de lhe dar tempo para instalar-se em Viena e aí criar a sua
vida. O sucesso não viria num só dia.
E, sobretudo, porquê desconfiar de ele se ter instalado em casa dos Weber,
alegando que o fizera com o intuito de seduzir uma das três filhas que moravam
com a mãe!
A mais velha, Josepha, desagradava-lhe; a mais nova, Sophia, não passava de uma
criança; e a do meio, Constance, não pensava em casar-se.
Para mais, Wolfgang não estava apaixonado por ela. Enfim, não estava bem
apaixonado. De qualquer maneira, não tinha a intenção de casar com ela. Ele só
pensava naquela
ópera, alemã por cujo libreto esperava.
Viena, 30 de Julho de 1781
muito praticado em Viena, cidade ansiosa por esquecer que os turcos quase a
haviam conquistado no não muito distante ano de 1683.
- Um milagre! - exclamou o compositor. - Este Rapto assemelha-se de tal forma à
Zaida, que já tenho vários trechos inteiramente prontos.
- Milagre não me parece o termo apropriado - corrigiu Thamos. - Para lançares a
tua carreira em Viena precisavas de uma ópera. Foi por isso que entrei em
contacto
com Stephanie, o Jovem, orientando-o para o libreto de um certo Christoph
Friedrich Bretzner, mercador de Leipzig. Stephanie apropriou-se sem grande custo
do libreto
e encarregou-te de uma tarefa quase impossível. Se falhares, ele já tem à mão
uma solução alternativa, baseada num dos seus libretos. Claro que Stephanie
ignora
que já contas com um certo avanço.
- O casal formado por Constança e Belmonte encanta-me - confessou Wolfgang. -
Juntos, eles enfrentarão provas terríveis, incluindo a morte. Nem as piores
ameaças
os amedrontarão, pois a sua fidelidade recíproca permanecerá inabalável.
- Pedrillo, o criado de Belmonte, apresentará o seu amo como "um hábil
arquitecto" - indicou Thamos, incluindo assim esta pis-
117
cadela de olhos maçónica. - E o paxá Selim, que aparece primeiro como tirano,
será um papel inteiramente falado. Simples orador, ele comportar-se-á com uma
bondade
exemplar, qual monarca capaz de perdoar aos seus inimigos e de governar com
sabedoria.
- O público pensará em José II - descortinou Wolfgang.
- Porque não? Opor-se-lhe-á Osmim, o guardião do serralho, colérico, limitado,
violento, escravo do seu próprio fanatismo, a tal ponto que se torna digno de
dó.
- Eis o começo da ária de Belmonte: O céu, satisfaz os meus desejos: deixa-me
descansar! Já padeci sofrimentos em demasia, ó Amor. Traz-me a alegria e
conduz-me
ao objectivo.
- Possa o céu atender os vossos desejos, os teus e os do teu herói - comentou
Thamos.
- A tarefa de Belmonte não é fácil. Decerto, ele consegue encontrar o rasto da
sua noiva Constance, da sua criada Blonde e do seu criado Pedrillo, que haviam
sido
Página 52
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
raptados por piratas, mas eles encontram-se agora encerrados no interior de um
serralho e reduzidos à condição de escravos. Pior ainda, o paxá Selim quer tomar
Constance
como sua amante!
- Ela faz jus ao nome que ostenta - comentou Thamos -, pois ousa resistir aos
avanços de Selim, pondo em risco a sua própria vida.
- Constance... Sim, é um belo nome e uma soberba virtude.
- Nascida em Inglaterra, pátria da liberdade, a infeliz Blonde está reservada
para o odiento Osmim, mas ela repele-o como o mesmo vigor com que Constance
repele
Selim: ou ela cede, ou morrerá logo no dia seguinte.
- Depois de ter sido apresentado ao paxá, o grande arquitecto Belmonte consegue
entrar dentro do palácio, com a ajuda de Pedrillo. Mas Osmim procura desfazer-se
deste visitante, que ele odeia. E eis o nosso primeiro acto!
118
Observância templária nas principais Lojas alemãs: entraria em contacto com os
espíritos.
No momento em que a trovoada rebentava, os dois dirigentes da Rosa-Cruz, Wòllner
e Bischoffswerder, apresentaram-se à entrada do palácio de Charlottenburg,
acompanhados
por um homenzinho anafado. Os relâmpados traçavam ziguezagues no céu negro como
breu.
- Excelente presságio, Majestade - considerou Wóllner, orgulhoso de dirigir 26
círculos que totalizavam mais de 200 membros. - As potências superiores
assinalam-nos
por esta forma que concordam com a nossa iniciativa: esta noite, podereis
interrogá-las.
Na sequência da iniciação de Frederico Guilherme II nos ritos maçónicos e
cristãos da Rosa-Cruz, Wõllner e o seu acólito forneciam-lhe uma prenda de valor
inestimável:
a intervenção de um médium autêntico.
Saudado por um trovão mais forte do que os outros, o mago lançou-se numa série
de encantamentos cujos resultados ultrapassaram mesmo as expectativas do futuro
soberano.
Os espíritos manifestaram-se e falaram com ele!
- Assim que começar o meu reinado - disse Frederico Guilherme II a Wõllner -
nomear-vos-ei ministro dos Cultos. Quanto a Bischoffswerder, será ministro da
Guerra52.
Viena, 15 de Agosto de 1781
- É impossível! - considerou Joseph Anton. - Desta vez, Geytrand, estás a
inventar!
- Infelizmente não, senhor conde. Segundo o criado que desempenha o papel de
informador, a cena desenrolou-se tal e qual como vo-la contei.
- Um médium... Frederico Guilherme II não é assim tão crédulo!
- Os dois manipuladores, astuciosos e convincentes membros da Rosa-Cruz,
souberam tocar nos seus pontos fracos.
Anton estava siderado. Como podia o futuro dirigente de uma grande potência cair
tão baixo?
52 A promessa será cumprida.
119
- Por esta via, Frederico Guilherme II entra em contacto com as vozes de
Leibnitz, pensador maçador e sem préstimo, e de Marco Aurélio, imperador romano
que acreditava
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
na sabedoria mas não alimentava ilusões com relação ao género humano. Podia ter
sido pior! Se, de futuro, Frederico Guilherme II comunicar com os espíritos de
Nero,
de Calígula ou de Átila, tornar-se-á num incendiário, num doido varrido ou num
guerreiro demoníaco!
- Enquanto os pedreiros-livres e a Rosa-Cruz se entretiverem com esse género de
sonhos, não se interferirão na política.
Viena, 22 de Agosto de 1781
120
pírito, a menina Auernhammer não correspondia de modo algum ao ideal feminino de
Wolfgang.
- Sabei, condessa, que eu não nutro sentimento nenhum a respeito dessa rapariga.
E desagradam-me profundamente as alusões que ela anda a difundir, pois
preocupo-me
muito com a minha reputação.
- Tendes razão, Mozart. Mas não seria pecado nenhum se vos apaixonásseis.
27.
Viena, 29 de Agosto de 1781
Constance Weber parecia sinceramente emocionada.
- Estais de partida, senhor Mozart?
- Preciso de um apartamento grande para poder trabalhar à vontade. Tenho de
acabar com a maior urgência a ópera que me irá consagrar como compositor.
- Ireis morar para longe daqui?
- Não, ficarei muito perto, logo ali na vizinha Praça de São Pedro53. Ela estava
tão encantadora, com os seus olhinhos negros e o seu rosto tão fino.
- Talvez nos voltemos a ver... - suspirou Constance em voz baixa.
- Claro que sim! Gosto muito de passear para desanuviar. Gostaríeis de vir
comigo explorar os arredores de Viena?
- Decerto, se a minha mãe me conceder a sua autorização.
- Até breve, Constance.
O lugar que Thamos encontrara agradou muito a Wolfgang. Vários intelectuais
pertencentes à Maçonaria moravam naquele prédio, nomeadamente um judeu chamado
Isaac
Arnstein, especialista na cabala, ciência que herdara em parte os ensinamentos
esotéricos do antigo Egipto.
53 No actual Am Graben, nº 1175.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
122
O contacto com Wolfgang foi imediato. O compositor teve ocasião de receber,
repetidamente, as palavras daquele entendido em números sagrados.
- No início - revelou o cabalista - quando a vontade do rei se manifestou, ele
gravou os sinais na esfera celeste. Esses sinais tornaram-se nas potências
criadoras.
Para vós, músico, são as notas e as melodias, que nos permitem ir até ao âmago
da chama e reencontrar a Sabedoria, o ponto primordial54.
- É a mesma sabedoria dos sacerdotes e das sacerdotisas do Sol?
- Cabe ao pesquisador de temas iniciáticos ser simultaneamente macho e fêmea.
Assim, pode garantir que a Presença divina estará sempre ao seu lado. No seio do
lar,
é a mulher que faz perdurar essa Presença.
O casamento apresentava-se, portanto, como um acto da maior gravidade, decisivo,
e a mulher desempenhava um papel essencial em todas as fases da vida. Porque lhe
conferia a religião, então, um lugar de somenos, proibindo-lhe o exercício de
funções sagradas?
- As estrelas do firmamento são as guardiãs do mundo - continuou o cabalista. -
A cada objecto é consignada uma estrela, que o protege. Ela desempenha a função
de
elixir da vida e guia-nos para a sabedoria do Oriente. Tal como o vinho deve ser
decantado para sua melhor conservação, assim também a verdade deve apresentar-se
envolta em roupagens exteriores, compostas por fábulas e contos.
Ficando a meditar nas palavras do sábio, Wolfgang foi almoçar a casa da condessa
Thun.
- Más notícias - anunciou ela sem preâmbulo. - A visita do grão-duque Paulo da
Rússia foi adiada para Novembro.
- Melhor ainda, terei tempo para modificar o libreto e aprofundar as cenas
dramáticas.
- Já se diz mal do vosso trabalho - deplorou a condessa. - Uma grande ópera, em
Viena, composta por um artista tão jovem...
- Hipócritas, invejosos, ciumentos e mesquinhos atravessam-se no meu caminho
desde que eu escrevi a minha primeira nota. Desta vez, eles não impedirão o meu
sucesso.
123
- O meu marido, os meus amigos e eu própria ajudar-vos-emos com todos as nossas
forças.
Respaldado nesses apoios, Wolfgang sentia-se mais sólido do que nunca.
127
Após a sua última serenata55, popular e vigorosa, ter sido tocada ao ar livre
por três vezes sem ofender o gosto vienense, Wolfgang ouviu a Ifigénia, de
Gluck, o
músico da moda. Nesse dia de festa do seu santo homónimo, Wolfgang foi até casa
da baronesa Martha Elisabeth von Waldstátten, mulher original, de 37 anos,
separada
de um conselheiro de Estado. Rica, ela morava num vasto apartamento no número
360 da Leopoldstadt, e desejava ajudar o jovem Mozart a conquistar Viena.
Usando por vezes uma linguagem bastante crua, que lhe fazia lembrar a da sua
priminha de Augsburgo, a baronesa mostrava-se volúvel, excêntrica e
inconformista.
- Parabéns pelo dia de hoje, Mozart! Quando estreará o vosso Rapto?
- Em meados de Novembro, espero.
- Entretanto, tenho uma surpresa para vós.
- O que é?
- Logo à noite, vereis.
No final de um dia de intenso labor, Wolfgang estava esfalfado. Enquanto
começava a despir-se, ouviu as primeiras notas da sua serenata em si bemol
maior!
Debruçando-se à janela, avistou um grupo de pobres diabos, músicos de rua que
tocavam a sua música de forma agradável, desejando-lhe assim uma boa festa do
seu santo
padroeiro.
Prenda da baronesa Waldstátten, esta primeira homenagem vienense fê-lo dormir um
sono maravilhoso.
55 K. 375.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
128
O grão-duque Paulo da Rússia chegara por fim a Viena, acompanhado pela sua
mulher!
Wolfgang conseguiu encontrar-se com Stephanie, o Jovem.
- Meu pobre Mozart, não consigo descansar nem um minuto! Uma visita desta
importância, já imaginastes?
- O Rapto do Serralho pode ser representado tal como está agora, mas eu gostaria
de introduzir-lhe uma série de alterações, porque...
- Tendes tempo para pensar no assunto. O imperador quer apresentar ao seu
ilustre hóspede umas óperas um pouco... sérias. Pensámos em Gétry e, sobretudo,
no nosso
grande Gluck, cujos numerosos sucessos conquistaram todos os espíritos. As suas
obras encantarão o grão-duque.
- E quanto... a O Rapto}
- Podeis ficar descansado, a vossa ópera irá à cena no Burgtheater, mas não de
imediato.
- Dais-me inteira liberdade para melhorar o libreto?
- Se quiserdes, Mozart, se quiserdes! Agora dai-me licença, estou cheio de
trabalho.
Longe de se desencorajar, Wolfgang decidiu aproveitar este atraso para
transformar o texto em fiel servidor da música.
No dia seguinte, a 23, ele deu um concerto com a ajuda da suada Josepha
Auernhammer, que ainda envolvia o seu professor em olhares
130
langorosos, mas que tinha aprendido a ter tento na língua. Juntos, tocaram um
concerto para dois pianos56 e uma sonata em ré maior57. Estas partituras
brilhantes
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
agradaram aos espectadores, entre os quais figuravam a condessa Thun e o barão
Van Swieten.
- Não estais abatido, pois não, senhor Mozart? - inquietou-se Constance.
- Pelo contrário! Não ousava esperar por este período de descanso que me permite
reflectir e progredir. O Rapto do Serralho já não será uma obra de Stephanie,
mas
sim minha.
- Achais que ele quer mesmo ver a vossa ópera em cena?
- Tal é a vontade do imperador.
- Mas não são assaz volúveis os grandes deste mundo?
-José II não o é. Eu percebo que ele tenha apostado num músico célebre e de
créditos reconhecidos como Gluck. A minha vez virá a seguir, e eu não o
desiludirei.
- Estou certa disso!
- A vossa amizade é-me preciosa, Constance.
- A vossa é ainda mais preciosa para mim, Wolfgang... Oh, desculpai! Não
pretendia mostrar tão familiar!
- Já que nos conhecemos melhor, sugiro que nos tratemos por tu.
- Fico muito contente! Posso dar-vos... dar-te um beijinho na face? Ela não
esperou pelo seu consentimento.
Foi um beijo furtivo e respeitável, mas muito mais ardente do que uma simples
demonstração de amizade.
Pela primeira vez, Wolfgang olhou para Constance com outros olhos. Tímida e
reservada, ela não deixava de ser uma rapariga encantadora.
- Constance...
- Sim, Wolfgang?
- Eu tenho 25 anos, tu tens 19, e...
- Será a nossa juventude um pecado?
- Certamente que não, mas...
- Se Wolfgang Mozart quisesse casar comigo, eu dar-lhe-ia o meu consentimento -
murmurou ela, de olhos baixos, -i- E se ele estivesse tão apaixonado como eu,
não
hesitaria em declarar-se.
56 K. 365.
57 K. 448.
131
- Constance, eu...
O seu delicioso sorriso exigia uma resposta.
- Falarei com o teu tutor - prometeu ele. Sorridente, resplandecente, ela fugiu.
Abalado e não conseguindo compreender o que acabara de acontecer, o músico
errava pelas ruas e quase esbarrou com Thamos.
- Pareces perdido nos teus pensamentos, Wolfgang.
- Não, quer dizer, sim...
- O Rapto está atrasado, eu bem sei, mas não temas um novo fracasso. Segundo os
meus contactos na corte, a peça será encenada, embora ainda não haja nenhuma
data
marcada.
- Aceitaríeis rever o libreto comigo?
- Antes disso, vou apresentar-te a alguns amigos meus que desempenharão um papel
importante ao longo da tua carreira.
- São intérpretes?
- Não, são editores. Temos que pensar na publicação das tuas obras, de maneira a
que elas fiquem para a posteridade. Na tua profissão, abundam os incapazes e os
ladrões. Os irmãos Artaria, eles, tratar-te-ão com o devido respeito.
Originária da região do lago de Como, a família Artaria chegara a Viena em 1769
e abrira aí uma próspera loja na Michaelerplatz, nas imediações do Burgtheater.
Pedreiros-livres,
Francesco e Carlo receberam calorosamente Mozart, e aceitaram publicar várias
das suas sonatas para piano e violino, conferindo-lhe assim o estatuto de
profissional
respeitável, digno do interesse dos vienenses.
Ainda não era a glória, mas era já uma etapa importante. Para mais, o autor
receberia algum dinheiro, esse dinheiro que agora seria indispensável para
garantir a
sua independência, fora da alçada de Colloredo e longe de Salzburgo!
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Viena, 15 de Dezembro de 1781
132
nesta peça, é certamente o segredo revelado, ou seja, a maneira como os dois
amantes, misteriosa mas publicamente, se fazem compreender mutuamente.
Então, era assim o amor. Não era um fogo devorador como o que alimentara por
Aloysia, mas uma chama tranquila, alimentada por ternura e cumplicidade.
Constance trazia-lhe
uma sensação de equilíbrio e de calma, deixava-lhe a mente aberta para compor.
Entre eles não havia competição, nem dissídios, nem tempestades, apenas uma
profunda
comunhão, enriquecida dia após dia.
Ele agora tinha percebido. O destino concedera-lhe um amor verdadeiro e
razoável, para lá das frivolidades e das paixões destruidoras.
Por isso Wolfgang encaminhava-se com passo seguro para casa dos Weber, onde foi
recebido por Constance, visivelmente tensa, pela mãe e pelo tutor da rapariga.
Um
homenzinho frio e desagradável que o músico detestava.
Ele foi direito ao assunto.
- Constance e eu amamo-nos. Eu desejo casar-me com ela, senhora Weber, e
peço-vos oficialmente a sua mão.
- O casamento é um assunto sério - interveio o tutor. - As raparigas casadoiras
correm grandes riscos e devem ser protegidas. Concordais comigo, Mozart?
- Certamente.
- Exijo a vossa assinatura num contrato que vos comprometerá irreversivelmente.
Em caso de renúncia, tereis de pagar os danos e compensações.
30.
Viena, 15 de Dezembro de 1781
136
Na noite do desafio, Wolfgang preferiu apostar noutros registos: a invenção, a
expressão e a sensibilidade. Enquanto o seu adversário se lançava numa corrida
desenfreada
que espantou a assistência, Mozart improvisou uma deslumbrante série de
variações que alternavam movimentos lentos e rápidos.
Não foi proclamado nenhum vencedor, e o imperador concedeu 50 ducados a cada um
dos pianistas. Pelo menos, enquanto esperava pela estreia de O Rapto do
Serralho,
o facto de ter enfrentado aquele mechanicus privado de alma rendera a Wolfgang
uma bela recompensa!
Viena, 25 de Dezembro de 1781
Estranho Natal, na verdade!
Feliz por estar longe de Salzburgo, infeliz por estar de más relações com o seu
pai, Wolfgang reconfortou Constance, que continuava a recusar voltar para casa,
com
medo de ficar lá fechada, sem poder rever o homem que ela amava.
- A minha mãe aterroriza-me - confessou a rapariga. - Ela presta demasiada
atenção ao meu tutor e só pensa no dinheiro. Se eles me procurarem, tereis
sarilhos!
- Não temo a senhora Weber - afirmou a baronesa Von Waldstàtten.
- Casaremos assim que pudermos - prometeu Wolfgang -, mas preciso do
consentimento do meu pai. Depois, tratarei de convencer a mãe de Constance a
deixá-la livre
para escolher.
- Depois deste drama todo - objectou a rapariga -, a minha mãe vingar-se-á,
negando o seu consentimento.
- Não sejais tão pessimista - recomendou a baronesa. - Se o vosso amor for
profundo e sincero, ela ultrapassará todos os obstáculos.
- Também partilho essa opinião - reforçou Wolfgang. Constance ficou mais
descansada.
Pensando bem, não era um Natal assim tão mau.
31.
Viena, 25 de Dezembro de 1781
32.
Viena, 1 de Janeiro de 1782
- Tendes de vos reconciliar com a vossa mãe, minha querida - recomendou a
baronesa Waldstãtten a Constance Weber. - Uma situação deste tipo não pode
prolongar-se.
- Ela espancar-me-á!
- Se ela ousar proceder dessa maneira, comunicai-mo de imediato.
- Ela encerrar-me-á!
- Mozart irá visitar-vos com regularidade. Caso a vossa mãe não lhe permitir a
entrada, eu intervirei. Estais mais descansada?
- Um pouco...
- Ele vai levar-vos de volta a casa e deitar água na fervura. Como poderia uma
mãe não ficar contente por rever a sua filha?
- Mas eu quero casar-me!
- O vosso noivo faz questão de obter o consentimento do pai, e eu concordo com
essa atitude. Juntos, deveis construir uma existência comum, e por isso mais
vale
que as vossas respectivas famílias vos aprovem e se entendam. Aliás, um pequeno
adiamento permitir-vos-á aprofundar os vossos sentimentos.
A iniciativa de Wolfgang e de Constance foi coroada de sucesso. Apesar do seu ar
zangado e das suas falas entarameladas pelo abuso do álcool, a viúva Weber
mostrou-se
contente por acolher de volta a sua filha e consentiu em abraçá-la.
- Desejamos tornar-nos marido e mulher - declarou o músico. - Assim que o meu
pai tiver formulado o seu consentimento por escrito, trataremos de preparar a
cerimónia.
143
Página 64
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Entretanto, trabalhai e ganhai dinheiro! Não concederei a mão da minha filha a
um zé-ninguém!
- Wolfgang já goza de uma reputação honrosa - protestou Constance.
- É possível, mas isso não dá dinheiro!
- Até breve - despediu-se o jovem da sua bem-amada.
Viena, 15 de Janeiro de 1782
Convidado por Thamos para jantar em casa do seu amigo judeu, Wolfgang sentiu
logo que aquele serão seria enriquecedor. O cabalista pousou uma vela no meio de
uma
mesa baixa e interrogou o músico num tom de voz tranquilo.
- Foste aliado ou inimigo do dia que acabaste de passar?
- Eu... tentei vivê-lo da melhor forma possível, sem desperdiçar o meu tempo!
- Quando um homem age rectamente, o dia toma o seu devido lugar. Caso não aja
rectamente, o dia junta-se à dispersão que vem de fora e torna-se um fardo.
Quando
o homem se revela justo, o dia é um bom companheiro. Caso contrário, o dia
torna-se seu adversário e ficará em falta na contagem final dos dias que o homem
tem de
apresentar quando comparecer diante do Todo-Poderoso. Infeliz do homem que não
conservou os dias necessários para ser coroado no Além61!
Impressionado, Wolfgang fixava a estranha chama que bruxuleava, mudando
continuamente de cor e tomando formas de uma beleza fascinante.
- Ao contemplar o aspecto deste fogo sagrado - indicou o cabalista - sentes o
momento inefável em que a Causa das causas engendra a vida. A sua fonte, a
Coroa, é
uma fonte de luz que nunca se esgota. Não teremos nós sido criados para a
servir?
61 Textos do Zohar, na versão de G. Scholem.
147
Nessa noite, Wolfgang recebeu a melhor parte dos ensinamentos dos Irmãos
iniciados da Ásia, sem suspeitar que tinha ficado a perceber muito mais do
Página 66
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
assunto do que
a maior parte dos seus adeptos.
- No dia do teu aniversário - disse Thamos - encontrar-nos-emos em casa de Van
Swieten. Ele reserva-te uma prenda excepcional.
Viena, 27 de Janeiro de 1782
O barão Gottfried van Swieten entretinha-se em voz baixa com o seu Irmão Thamos.
- O imperador concede-me toda a sua confiança e não parece decidido a tomar
medidas radicais contra a Maçonaria, desde que ela aprove as suas reformas e não
perturbe
de modo algum a ordem pública. No entanto, ele desconfia de algumas correntes,
como os Iluminados da Baviera ou a Estrita Observância templária.
- Ele confirmou a existência de um serviço secreto encarregado de vigiar os
pedreiros-livres?
- Não, mas por muito liberal e reformador que seja, o imperador é um verdadeiro
chefe de Estado, e nada escapa ao seu controlo. Ele não toleraria o
desenvolvimento
de uma Maçonaria cujos objectivos ignorasse.
- Não há nenhuma pista acerca do homem colocado à cabeça desse exército oculto?
- Nenhuma. Não se verificou a menor indiscrição, o menor rumor.
- Surpreendente e inquietante - considerou o egípcio.
- Vou continuar a procurar - assegurou Van Swieten, a quem o seu mordomo veio
anunciar a chegada de Mozart.
O músico descobriu o apartamento de função do barão, situado no coração da
Biblioteca Imperial e Real. Uma divisão inteira estava reservada aos
instrumentos musicais
e às partituras.
- Este sítio fica aberto aos meus amigos músicos todas as tardes de domingo -
indicou Gottfried van Swieten - e vós sois aqui bem-vindo, meu caro Mozart.
Poderemos
ouvir as vossas novas obras, e tocaremos as dos grandes génios que eu venero:
Haendel e Bach.
- Johann-Christian Bach, o meu protector londrino?
148
- Não, o pai dele, Johann-Sebastian.
- Nunca ouvi nenhuma nota desse Bach!
- Há mais de trinta anos que caiu num esquecimento total. Tive a sorte de
encontrar um certo número das suas obras, entre as quais O Cravo bem temperado,
A. Arte
da fuga, algumas sonatas para trios e várias outras maravilhas. Gostaríeis de
decifrar uma das suas partituras?
- Com alegria!
Intrigado, Wolfgang tocou um dos prelúdios e fugas do Cravo bem temperado.
Desde os primeiros compassos, sentiu abrir-se um novo universo. Foi como um
renascimento, uma transfusão de sangue62, uma passagem para uma outra dimensão
com cuja
existência o jovem compositor nem sequer sonhava.
Não se tratava apenas do encontro com uma arte de um rigor inédito, da qual
emanava uma sensibilidade que tocava o mais fundo da alma, mas sobretudo da
comunhão
com um génio que havia atingido a própria essência da música.
Transtornado, à beira das lágrimas, Wolfgang perguntou a si próprio se ainda era
possível compor. Não, não podia reagir desse modo! Pelo contrário, tinha de
assimilar
estas fantásticas riquezas, partilhar o ser de Johann-Sebastian Bach e
prolongá-lo sem o imitar.
- O meu mais belo dia de anos - murmurou Wolfgang.
Lyon, 31 de Janeiro de 1782
Jean-Baptiste Willermoz rejubilava. Segundo as últimas missivas de Fernando de
Brunswick e de Carlos de Hesse, os dois chefes de fila da Estrita Observância
templária
encontravam-se desamparados. Particularmente lisonjeado por receber as
confidências de tão grandes senhores, cujos títulos e reputação o
Página 67
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
impressionavam, o rico mercador
orgulhava-se todavia de os ter à sua mercê. Cabia-lhe a ele, plebeu lionês,
decidir o destino daqueles dois príncipes alemães!
A estratégia do Grão-Mestre e do seu adjunto parecia-lhe caótica. Embora
tivessem todos os trunfos na mão, eles insistiam em jogar as
34.
Viena, 8 de Fevereiro de 1782
- Olha para este documento - disse Anton Stadler a Mozart -, olha bem para ele!
- Trata-se de um alvará do imperador José II...
- Exactamente! E a quem diz respeito?
- A ti e ao teu irmão, contratados como clarinetistas da orquestra da corte.
- Fabuloso, não é? Feliz no amor e, agora, músico profissional ao serviço de Sua
Majestade! O que mais podia eu querer?
- Torna-te o melhor especialista nesse instrumento maravilhoso e pouco
conhecido.
- Então, escreverás para mim?
- Porque não?
- Como poderias resistir ao encanto do clarinete? Não existe sonoridade mais
quente e mais mágica, Entretanto, vamos festejar e beber à tripa-forra! Depois,
vou
vencer-te numa partida de chinquilho, já que hoje é o meu dia de sorte.
Viena, 13 de Fevereiro de 1782
Wolfgang comunicou à sua irmã Nannerl o seu horário quotidiano. Assim, ela
poderia intervir junto do pai deles e explicar-lhe que o seu filho trabalhava
como um
mouro em Viena, com o fito de aí triunfar.
151
Levantar às seis horas. Às sete, já todo vestido, Wolfgang escrevia até às nove,
e ensinava até às treze. Ou almoçava em casa, ou honrava algum dos numerosos
convites
que recebia. Dependendo das circunstâncias, retomava o seu trabalho entre as
14.00 e as 15.00 horas. Se não tivesse de tocar em nenhum concerto, compunha das
17.00
até às 21.00 horas, depois ia a casa dos Weber, onde se entretinha com
Constance,, voltando finalmente para casa, onde trabalhava ainda das 23.00 até à
uma.
Este ritmo infernal conferia-lhe um equilíbrio perfeito. Sentindo que agia
rectamente, esperava que estes dias lhe fossem contabilizados como convenientes
Página 68
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
pelo Altíssimo.
Nessa noite, a senhora Weber demorou a abrir a porta. Ele teve de bater com toda
a força até que por fim lá apareceu um rosto congestionado, claramente
embriagado.
- O que queres?
- Ver Constance.
- Constance, sempre Constance!
- Ela é minha noiva, senhora Weber.
- Com que então, noiva! Quanto é que ganhaste, este mês?
- O bastante.
- Com todas as despesas que temos, nunca ganhamos o bastante. Eu tenho três
filhas para criar!
- Posso ver Constance?
- Ela está doente.
- De que mal padece?
- De uma doença.
- Quem está a tratar dela?
- Cá nos arranjamos.
- Gostaria de vê-la, senhora Weber.
- Queres ficar doente, tu também?
- Estais a negar-me entrada em vossa casa? A bêbeda hesitou.
- Entra, mas não fiques cá muito tempo. Ela poderia ficar cansada. Constance
estava em lágrimas, mas Wolfgang logrou consolá-la.
- A minha existência torna-se impossível - confessou ela. - A minha mãe farta-se
de beber. Quando está ébria, apanha fúrias terrí-
152
Página 69
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Wolfgang não estava enganado.
O público do Burgtheater aplaudiu calorosamente o programa, composto de
extractos de Idomeneu, Rei de Creta, de um improviso e do dito concerto, cujo
rondó final
encantou os mais exigentes. Os vienenses descobriram um pianista surpreendente,
de uma simplicidade desarmante. Não pretendendo nenhum efeito, ele movia-se
pouco,
e não se entregava nem aos movimentos extravagantes nem às contorções usuais nos
seus colegas. O intérprete não exteriorizava os seus sentimentos, e deixava
falar
a música.
Viena, 10 de Março de 1782
- As coisas estão a mexer - anunciou Geytrand a Joseph Anton. - Em Weimar,
Goethe alcançou novo grau e figura entre os dirigentes da Loja Amália, onde
acabou de
ser iniciado o duque Carlos Augusto.
- Mais um dignitário de primeira plana! - lamuriou-se Anton. - A Maçonaria está
a ganhar terreno a cada dia que passa.
- Sim e não - tranquilizou-o Geytrand -, pois esta Loja padece de sobressaltos
que poderiam levar a uma espécie de explosão. A violência de Bode fere muitos
Irmãos,
fartos da sua grosseria e dos seus incessantes ataques contra os jesuítas. Mesmo
que esteja fadado para dirigir a mais antiga Loja66 da Alemanha, este Bode
parece
feito para semear a discórdia.
- Desejemos-lhe então boa sorte! O que mais há?
- Segundo o Irmão Angelo Solimão, sempre tão venal, o mineralogista Ignaz von
Born será Venerável da Loja Para a Verdadeira União. Como previsto, a sua
ascensão
foi muito rápida, e ele realizará o seu programa: pôr os Irmãos a trabalhar,
levá-los a redescobrir o sentido da simbólica e erguer uma iniciação autêntica.
- Infelizmente, Ignaz von Born goza de excelente reputação, e é apreciado pelo
imperador. Este mineralogista dará uma boa imagem da Maçonaria vienense e
favorecerá
a sua expansão. Que defeito lhe poderíamos apontar?
66 A Loja Absalom.
154
- Não circula nenhum rumor a seu respeito - deplorou Geytrand. - Moral
impecável, trabalhador infatigável, cientista estimado pelos seus pares... É
respeitado, admirado
e temido.
- Von Born não se contentará em dirigir uma Loja vienense - vaticinou Joseph
Anton. - Talvez se venha a tornar o nosso principal inimigo.
35.
Viena, 10 de Março de 1782
O imperador José II acabara de promulgar um decreto sobre a liberdade de
trabalho mas, como a sua vontade reformadora parecia não se esgotar, lançara-se
logo de
seguida no estudo de um assunto escaldante, que dizia respeito aos problemas dos
camponeses, enquanto se dirigia para os campos dos arredores de Viena. Todos os
vienenses conheciam a sua carruagem laçada de verde, puxada por duas parelhas.
Vestido com simplicidade, o imperador gostava de passear, de se encontrar com os
seus súbditos e de os ouvir. Já que alguns boatos anunciavam más colheitas e um
aumento dos impostos, José II sentia-se na obrigação de dissipar os temores.
Por isso a sua carruagem parou no meio de um campo, atraindo a curiosidade de
muitos.
José II desceu lestamente e avançou até um arado abandonado no meio do terreno.
Quando o imperador levantou o arado, o público aplaudiu.
E a frase singela correu de boca em boca: "O imperador é o deus dos camponeses!"
Berlim, 11 de Março de 1782
Página 70
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
A Ordem templária atravessava um inquietante período de turbulências. "Nenhuma
mão segura as rédeas", queixavam-se muitos Cava-
156
Página 71
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Deste modo, orientaremos o próximo capítulo maçónico no sentido do bom senso.
O rosto do barão Von Haugwitz tingiu-se de púrpura.
- Como ousastes? Não me submeterei a ninguém, ouvis, a ninguém! Cristo é o meu
único Senhor, só d'Ele recebo ordens. A partir deste instante, abandono a
Maçonaria
subversiva e perigosa. Doravante, combatê-la-ei sem descanso.
Von Haugwitz bateu com a porta do salão.
- Esta defecção não põe em causa a nossa estratégia - considerou Fernando de
Brunswick. - Uma aliança secreta com Willermoz é um único meio de salvar a
Estrita Observância.
68 Os Irmãos da Cruz.
158
Viena, 20 de Março de 1782
- Grandes novidades, senhor conde! - gritou Geytrand. - O capítulo maçónico
organizado pela Estrita Observância começará em meados de Julho. Todos os
dignitários
deram o seu acordo ao Grão-Mestre e anunciaram a sua vinda. Os debates durarão
vários dias, porventura semanas.
- A que é que levarão, essa é que é a questão.
- Dadas as querelas entre correntes maçónicas, podemos esperar por um belo caos.
- Fernando de Brunswick e Carlos de Hesse não são tolos. Para guardar o poder,
devem estar a preparar um golpe oculto.
- Acabou de ser impressa em Berlim uma brochura intitulada Os Rosa-Cruzes
desnudados. Nela se acusam os Rosa-Cruzes e os templários de não passarem de
títeres manipulados
pelos jesuítas.
- Se Bode não é o seu autor, deve estar a lê-la com deleite.
- O denominado Cagliostro conta fundar em Paris uma Loja-Mãe conforme à alta
Maçonaria egípcia - acrescentou Geytrand.
- Coisa séria?
- Simples adaptação dos ritos já conhecidos, com alguns acrescentos de mágica. O
cardeal de Ruão e algumas personalidades da corte estariam interessados. À força
de brincar com o fogo, este Cagliostro pode vir a queimar-se.
- Tanto melhor! Reúne a maior quantidade de elementos acerca dos participantes
no capítulo de Wilhelmsbad e aumenta as recompensas dos nossos informadores.
Quero
conhecer na íntegra as palavras trocadas e as decisões adoptadas.
36.
Viena, 22 de Março de 1782
A capital da Casa de Habsburgo estava emocionada. Durante um mês, o papa Pio VI
residiria dentro dos seus muros e enfrentaria o imperador José II.
Aos 65 anos, de fala bastante lerda, o chefe da Igreja católica julgara tal
viagem indispensável para defender pessoalmente o seu ponto de vista frente ao
senhor
do império austríaco. Ao colocar o peso da sua autoridade na balança, o papa
esperava triunfar.
Logo na primeira entrevista em privado, o papa expôs os seus temores.
- Majestade, haveis iniciado um número considerável de reformas, e gabo a vossa
coragem. No entanto, permito-me perguntar: não tereis ido longe de mais e
depressa
de mais?
- Eu procuro a paz, a justiça e a coesão social. Sem estas reformas
indispensáveis, estaremos sujeitos a graves convulsões.
- Será necessário atacar a Igreja?
- Falei em justiça, Santíssimo Padre, e ninguém foge à sua alçada, nem a Igreja,
nem o Estado.
- Mesmo assim, mandar encerrar mosteiros e colocar o clero sob a alçada do poder
temporal!
- Quaisquer que sejam as instituições religiosas, cabe-lhes cumprir uma função
social e não se sobreporem ao Governo de um país. Por isso tomei uma série de
medidas
Página 72
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
que agradaram muito à população.
160
- A população... O seu juízo não pode ser lúcido!
- O bem-estar dos meus súbditos é a primeira das minhas preocupações.
- A imperatriz Maria Teresa venerava a Igreja e...
- Paz à sua alma, Santíssimo Padre. E se fôssemos almoçar?
O papa Pio VI não esperara defrontar-se com um adversário tão temível. A
negociação começava mal.
Viena, 23 de Março de 1782
Como retomar o diálogo com o seu pai e a sua irmã? Wolfgang não se arrependia de
ter conquistado a sua independência com tamanho custo, mas deplorava a
hostilidade
manifestada pela sua família e insistia em obter o consentimento do seu pai para
casar com Constance.
- Ofereçamos-lhes prendas - sugeriu a noiva. - De que é que o teu pai gosta?
- Enviemos-lhe uma caixa de tabaco e um par de correias para relógio.
- E quanto à tua irmã?
- Nannerl apreciará de certeza dois gorros da moda vienense.
- Cosê-los-ei eu própria. Acrescentemos ainda uma pequena cruz, testemunho de
que nos casaremos na fé do Senhor, e um coraçãozinho atravessado por uma seta,
que
evocará o nosso amor.
Wolfgang abraçou a sua noiva.
- A tua alma é boa e generosa, minha querida! Graças a ti, a nossa felicidade
será também a das nossas duas famílias.
Constance acrescentou algumas palavras, humilíssimas, à carta de Wolfgang.
Tal iniciativa foi coroada de sucesso, pois a rígida Nannerl, tornada confidente
e conselheira de Leopold, dignou-se por fim responder, pondo por escrito algumas
banalidades.
Não era ainda a aprovação, mas o diálogo estava restabelecido.
Viena, 10 de Abril de 1782
Wolfgang respondeu a uma nova carta do seu pai, em que este lhe recomendava que
obtivesse a qualquer custo uma colocação na corte de
161
Viena: José II tem de me pagar, pois só a alegria de estar ao serviço não é
suficiente para mim. Se o imperador me conceder mil florins e um conde me pagar
dois
mil, saúdo o soberano e entro ao serviço do conde, com as minhas seguranças, bem
entendido. O imperador tinha mais consideração por Gluck e por Salieri do que
pelo
jovem Mozart, pianista notável e compositor agradável, mas desprovido de
notoriedade.
Tocaram à porta.
- Aloysia!
- Parto para uma longa digressão ao estrangeiro. Aceitas oferecer-me uma ária
brilhante, capaz de valorizar a minha voz?
- Claro que sim!
Aceitai os meus agradecimentos, amáveis benfeitores69 agradou sobremaneira à
cantora. Ela beijou Wolfgang nas faces e fugiu com a partitura.
Veio de seguida o carteiro, portador de más notícias.
No dia 1º de Janeiro, morrera em Londres Johann-Christian Bach. "Uma
infelicidade para todo o mundo musical", murmurou Wolfgang. Nunca esqueceria a
amizade e as
palavras de encorajamento do filho de Johann-Sebastian, cujo génio iluminava
agora os seus trabalhos.
Viena, 20 de Abril de 1782
Wolfgang já não se contentava em tocar Bach durante os seus concertos de domingo
Página 73
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
em casa de Van Swieten. Enveredara agora por uma experiência particularmente
difícil:
assimilar a ciência e o estilo de Bach e incorporá-los dentro da sua própria
linguagem.
As obras que elaborou destarte, uma adaptação de cinco fugas para quartetos de
cordas70 e quatro prelúdios para trio de cordas71, não se destinavam ao público.
Com
humildade e paciência, sabendo que precisaria de um longo período de maturação,
Mozart pôs-se ao serviço de Bach, rogando que este o formasse. Começos de fugas
inacabadas,
esquissos de temas sucederam-se como se fossem experiências de laboratório.
Do ponto de vista exterior, acumulavam-se reveses e contratempos; mas do ponto
de vista de Wolfgang, realizava-se uma aprendiza-
69 K. 383.
70 K. 405.
71 K. 404a, para acompanhar fugas de Johann-Sebastian e do seu filho mais
talentoso, Wil-lhelm-Friedman.
162
gem rigorosa que, um dia, haveria de dar os seus frutos. Graças ao seu
extraordinário sentido da polifonia e à sua exigência perpétua, Bach decapava-o,
purificava-o,
eliminava nele todo o rasto de vã sedução. Obrigava-o a ir buscar a sua vontade
criadora no mais fundo dele próprio, longe das modas e do tempo.
Ao mesmo tempo que anotava uma fuga em dó maior, Wolfgang compôs o prelúdio
complementar72, como se o seu espírito funcionasse independentemente da sua mão.
Por insistência da sua noiva, Wolfgang aceitou oferecer a partitura à sua irmã
Nannerl: Quando Constance ouviu as fugas, declarou-lhe, ficou fascinada por
elas.
Ela agora só quer ouvir as obras de Haendel e de Bach. Como ela me perguntou se
eu ainda não escrevera nada do género, e eu respondi-lhe que não, ela
admoestou-me
por não ter querido escrever o que há de mais artístico e mais belo no domínio
da música; ela não me deu tréguas enquanto não lhe compus uma fuga, e é esta que
te
envio.
Ao deixar Viena, o papa Pio VI remoía o seu fracasso total. Apesar de várias
entrevistas e de múltiplas prevenções, o imperador José II não cedera uma
polegada de
terreno. E chegou mesmo aos ouvidos de Sua Santidade que, contrariamente à
saudosa imperatriz Maria Teresa, o novo senhor do império austríaco deixava
prosperar
as Lojas maçónicas, nas quais se emitiam críticas veladas contra Roma e contra o
sucessor de Pedro. Não invocavam certos Irmãos a necessidade de restaurar a
Igreja
segundo os princípios de São João, discípulo fiel do ensinamento iniciático de
Cristo, bem afastado da doutrina oficial católica?
José II não tardaria a deparar-se, pela certa, com dificuldades que o tornariam
menos liberal e que o convenceriam a arrepiar caminho.
Entretanto, Pio VI estava de muito mau humor, e a forte homenagem prestada pelo
príncipe-arcebispo Colloredo, com quem se cruzou na Baviera no dia 25 de Abril,
não
foi de molde a aliviá-lo. Adepto de Rousseau e de Voltaire, partidário das
reformas de José II, este prelado convencido do seu próprio valor jogava em
todas as equipas.
72 Prelúdio e fuga K. 394.
37.
Viena, 29 de Abril de 1782
O drama rebentou, tão imprevisível quanto chocante.
Estavam Constance e Wolfgang a participar num baile, esquecendo as suas
Página 74
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
apoquentações, quando a rapariga, que se afastara do seu noivo, deixou que um
desconhecido
lhe enrolasse uma fita à volta do tornozelo!
O escândalo desencadeou a ira de Wolfgang. Se aquele malcriado tivesse
insistido, Wolfgang interviria.
Constance, a sua doce Constance... Como ousava ela comportar-se daquela maneira?
- Minha querida, a tua conduta parece-me inconveniente.
- Inconveniente... O que estás tu a imaginar?
- Não imagino nada, eu vi tudo!
- Mas não havia nada para ver.
- Não ajas mais dessa forma, rogo-te.
- Os teus reparos magoam-me muito, Mozart. Não te falarei mais! Constance fugiu.
Siderado, Wolfgang não se mexeu.
Que horrorosa asneira acabara de cometer! Por causa de uma estúpida suspeita,
teria ele deitado a perder a sua futura esposa?
Desamparado, ele escreveu-lhe de imediato: Vê por aqui o quanto eu te amo! Não
me arrelio logo, como tu fazes, mas penso, medito e ouço os sentimentos. Quero
poder
dizer de ti: eis a bem-amada virtuosa, briosa da sua honra, razoável e fiel, do
honesto e bondoso Mozart.
Inquieto, ele deambulou diante do Olho de Deus, casa dos Weber.
164
A porta abriu-se por duas vezes. Saíram locatários, que o cumprimentaram.
A terceira, foi Constance quem saiu.
- Perdoas-me? Ela sorriu.
- Consinto em perdoar-te, mas não podes voltar a ser tão possessivo e deves
confiar em mim.
Wolfgang apertou-a ternamente nos braços. De regresso à sua casa, compôs uma
fantasia para piano em ré menor73, trágica ao princípio, alegre no final.
Viena, 7 de Maio de 1782
168
- Ela ficará a dever a sua salvação ao amor que o paxá nutre por ela, amor ao
qual ele renuncia quando admite que Constance e Belmonte estão unidos para
sempre.
Por isso afirma: É um prazer muito maior responder com uma benfeitoria a uma
injustiça que se sofreu, em vez de pagar o vício com outro vício. E os quatro
agraciados
concluem: Nada é mais vil do que a vingança. Em contrapartida, ser humano e
bondoso, perdoar deforma desinteressada, sem rancores, eis o que caracteriza as
grandes
almas! Aquele que não concordar com tal só merece desprego.
- Bate em vós um coração puro, Mozart - sentenciou a condessa Thun. - Possa o
destino preservá-lo de ferimentos demasiado graves.
- O Rapto do Serralho está acabado - indicou Constance - e eu conheço de cor as
suas árias principais! Quando veremos por fim esta ópera em cena?
- Correm nos bastidores os piores rumores acerca do vosso noivo - revelou a
condessa. - Mas o imperador está tão satisfeito de ter por fim uma peça tanto
falada
como cantada em alemão, que os ensaios começarão em breve. Posso até
adiantar-vos uma data precisa: dia 3 de Junho, no Burgtheater.
Weimar, 21 de Junho de 1782
Elevado à dignidade de Mestre Pedreiro-livre desde o dia 2 de Março, Goethe
assistia a uma inacreditável reunião. Ele, que havia aderido a esta Ordem à
procura dos
segredos da iniciação, encontrou-se envolvido numa discussão acalorada digna dos
piores meios políticos.
Não querendo acreditar nem nos seus olhos nem nos seus ouvidos, Goethe assistia
à violenta altercação entre Bode e outro dignitário, a respeito do verdadeiro
objectivo
da Maçonaria.
- Basta de discursos ocos e de palavras inúteis! - destemperava Johann Joachim
Christoph Bode. - Quando é que percebereis que os jesuítas são a gangrena da
Maçonaria?
Felizmente, Zinnendorf morreu a 6 de Junho passado, ao abrir os trabalhos da sua
Loja76, e espero que o seu Rito cristão desapareça ao mesmo tempo que ele!
76 As Três Chaves.
169
Página 77
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Palavras indignas de um Irmão! - protestou o seu oponente.
- A indignidade - insistiu Bode - consiste em inclinarmo-nos diante dos dogmas
católicos, recusando-nos a pensarmos por nós próprios! Achais que os Irmãos são
homens
livres? Que piada!
O Mestre da Loja vibrou um golpe de maço.
- Os nossos trabalhos estão suspensos. Que os Irmãos se retirem ém paz.
Viena, 25 de Junho de 1782
- Tu, minha querida Constance, cantarás o papel de soprano; tu, meu amigo
Jacquin, o de baixo; e eu farei o de tenor.
O trio assim formado interpretou a obra burlesca de Wolfgang A Fitinha 77,
título evocativo de um pedaço de pano perdido, de que dois esposos andavam à
procura,
explanando o seu problema a um mercador amigo, que por sua vez dispunha de
infindáveis reservas desse mesmo tecido. Felizmente, o casal conseguia encontrar
o precioso
bem perdido.
77 K. 441.
170
No final da peça, os três intérpretes desmancharam-se a rir.
Thamos, o egípcio, encarregara o seu Irmão Jacquin de distrair Wolfgang, cujos
nervos estavam à flor da pele. Embora ele estivesse convencido de que escrevera
uma
ópera a um tempo prazenteira e séria, como reagiriam os melómanos e os críticos?
Tendo-se Jacquin retirado, Wolfgang abraçou a sua noiva.
- Se o teu pai me rejeitar - murmurou ela - renunciarás a casar-te comigo?
- Claro que não! Antes do fim do ano, seremos unidos perante Deus.
O belo sorriso de Constance perturbou Wolfgang.
- Dispensarás o consentimento do teu pai?
- Caso ele se obstine na negativa, dispensarei. E pronuncio um voto solene: se
Leopold nos receber em Salzburgo como marido e mulher, mandarei tocar uma missa
em
tua honra.
39.
Viena, 4 de Julho de 1782
Enquanto prosseguiam os ensaios de O Rapto do Serralho, Wolfgang foi convidado a
jantar por um dos seus admiradores, Johann Valentin Gúnther, na companhia do
tenor
Adamberger e do libretista Stephanie.
Secretário do gabinete secreto do imperador para os assuntos da guerra, Gúnther
era um dos amigos íntimos do soberano. Com a sua ajuda, Wolfgang poderia
conseguir
impor-se.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Estais satisfeito com os vossos cantores? - inquiriu.
- Na presença do futuro herói Belmonte, declaro que não poderia querer melhor! O
nosso ambiente de trabalho é óptimo, ninguém puxa o tapete a ninguém.
- Uma espécie de milagre - observou Adamberger. - Geralmente, As divas arrepelam
os cabelos umas às outras! A música de Mozart tem o condão de apaziguar as
tensões
e dá-nos vontade de comungar com ela, ultrapassando tudo quanto é mesquinho.
Violentas pancadas soaram na porta da frente. Assim que um criado foi abrir,
vários polícias irromperam pelo apartamento, e o chefe deles estacou diante de
Gúnther.
- Considerai-vos sob voz de prisão, senhor secretário.
- De que é que sou acusado?
- De espionagem em prol da Prússia.
- Isso é descabido!
- A vossa amante, Eleonora Eskeles, filha do rabi-mor da Boémia e da Morávia,
extorquiu-vos certas informações ultraconfidenciais.
172
Estando a vossa cumplicidade devidamente provada, o imperador condena-vos a
prisão domiciliar.
- Quero falar com Sua Majestade!
- Está fora de questão.
- Sou inocente e protesto vigorosamente contra tal injustiça!
Os polícias obrigaram Mozart, Adamberger e Stephanie a saírem do apartamento.
- O nosso amigo Gúnther foi imprudente - considerou Stephanie. - Aquela mulher
sedutora causou a sua desgraça!
Thamos ouviu com atenção as palavras de Adolph von Knigge, autor dos rituais dos
Iluminados, e marcou um encontro para ser iniciado neles.
- A Estrita Observância está a afundar-se - declarou Von Knigge. - A
concorrência encarniçada entre os sistemas de altos graus, a defecção do duque
da Sudermânia,
os ataques do Rito sueco, os falsos segredos, o profundo descontentamento dos
Irmãos... Que situação lamentável! Voltemos as costas ao passado e trilhemos com
resolução
) os caminhos do futuro.
- Como entendeis proceder? - interrogou o marquês de Chefdebien, coronel de
caçadores, cavaleiro da Ordem de Malta e pedreiro-livre de longa data, delegado
pela
Loja francesa dos Filaletos para recolher informações.
- Não é possível qualquer entendimento com Willermoz, com a Rosa-Cruz e com os
demais cristãos mais ou menos encapotados! É por causa deles que nos estamos a
enterrar.
- Ireis até à ruptura?
- Se for necessário.
- Não sentireis imensa falta dos ritos secretos? - questionou o marquês.
- Não passam de invólucros vazios! O único futuro para a Maçonaria - insistiu
Von Knigge - passa pelos Iluminados da Baviera.
Sob a autoridade de Fernando de Brunswick, que ainda não fora atacado
pessoalmente, retomaram-se os debates.
Página 80
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
"O que poderá a iniciação ganhar com estas guerras?", interrogou-se o egípcio.
Viena, 16 de Julho de 1782
Contra os espasmos, Wolfgang ingerira tintura de ruibardo diluída em álcool e
éter. Este remédio não evitou que ele deixasse cair a partitura do primeiro acto
de
O Rapto do Serralho numa poça de lama, quando estava a caminho do Burgtheater
para dirigir a estreia da sua ópera78.
78 K. 384.
176
O compositor não tinha em mente os preciosos cem ducados que a obra lhe
renderia, mas antes as múltiplas intrigas que procuravam transtorná-lo. O
imperador em pessoa
tivera de intervir para acalmar certos opositores.
Quando aquele homem pequeno, pálido e frágil, de olhos brilhantes e nariz
comprido, fez ressoar os primeiros andamentos de O Rapto do Serralho, imergiu
por completo
dentro da música.
Nessa noite, era a sua carreira que estava em jogo, e a sua liberdade de criação
dependia directamente do sucesso que viesse a obter.
Sentia a falta de Thamos, o egípcio. Nesse instante decisivo, a sua presença
seria reconfortante. Mas não havia o destino imposto que Wolf-gang enfrentasse
sozinho
as principais adversidades da sua existência?
Houve alguns assobios no meio do primeiro acto. Pouco distintos de início,
começaram depois a intensificar-se. Mas elevaram-se também ovações, que acabaram
por se
sobrepor.
- Demasiado belo para os nossos ouvidos, meu caro Mozart, e demasiadas notas -
comentou José II, que honrava a estreia com a sua presença.
- Apenas as necessárias, Majestade.
O imperador exibiu um ligeiro sorriso. Decididamente, aquele músico tinha
carácter!
Todos esperavam com ansiedade a opinião dos críticos, que o conde Karl
Zinzendorf, observador da vida cultural vienense, resumiu numa frase: "Esta
música consiste
num aglomerado de coisas roubadas." A ópera de Mozart não passava de uma má
imitação de composições estimadas, como as de Gluck.
Viena, 19 de Julho de 1782
41.
Viena, 20 de Julho de 1782
- O capítulo de Wilhelmsbad anuncia-se como um autêntico fracasso - declarou
Geytrand, quase alegre.
- Temos informações fiáveis? - perguntou Joseph Anton, céptico.
- Comprei dois delegados, cujas informações cruzo. Desde o primeiro dia, as
contendas revestem-se da maior violência.
- O Grão-Mestre conseguiu debelar a oposição?
- Até agora, tem conseguido. Os Iluminados da Baviera cometeram o erro de
mostrar o jogo logo de início, o que indispôs a maior parte dos Irmãos.
- O que pretendem esses subversivos?
- Querem uma revolução, senhor conde. A destruição da Igreja e da realeza é
apontada como o principal objectivo da Maçonaria.
- Como reagiu o Grão-Mestre?
- Ele desaprova formalmente tal linha de força, no que é apoiado pela maior
parte dos Irmãos.
- Ou seja, os Iluminados estão condenados ao fracasso.
- Mas os debates mal começaram.
- Conseguiste identificar os dirigentes?
- Este capítulo permitir-nos-á avançar na sua identificação. Por enquanto, posso
citar os nomes de Adolph von Knigge e de Von Dittfurth.
179
- Mesmo que este ramo da Maçonaria não atinja já os seus objectivos - considerou
Joseph Anton -, ele não se extinguira.
- Bode está pronto para deixar a Estrita Observância e contribuir para a
expansão dos Iluminados - assinalou Geytrand.
- O perigo torna-se mais nítido, mas precisamos de preencher melhor os nossos
arquivos antes de falarmos disso ao imperador. Este não deixará de exigir provas
fundamentadas
em documentos irrefutáveis, antes de atacar esses intelectuais que sonham em
transformar o mundo.
Viena, 26 de Julho de 1782
Wolfgang acabara de chegar ao Sabre Vermelho81, onde nessa noite se encenava O
Rapto do Serralho, quando Constance chegou a casa dele desfeita em lágrimas.
- Não posso permanecer em casa da minha mãe! Ela está de novo bêbeda e ameaça
bater-me.
Ele apertou-a nos braços.
- Não voltarás para tua casa. Vou levar-te para casa da baronesa Waldstàtten.
- A minha mãe mandará a polícia buscar-me e acusar-te-á de desviares uma menor.
- Não temas, os nossos amigos defender-nos-ão.
- Mas ela ficará fula!
- Havemos de resistir.
A baronesa Waldstàtten acolheu o casal com a sua gentileza habitual, e o relato
de Constance indignou-a.
- Ficai tranquila, minha querida. Nem a vossa mãe nem a polícia transporão o
limiar da minha casa. Farei saber que vos concedo hospitalidade, e ninguém
ousará importunar-vos.
Página 82
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Queria tanto estar casada!
- Não terás de esperar muito mais - prometeu Wolfgang. - Amanhã mesmo enviarei
uma nova carta ao meu pai, suplicando-lhe que nos conceda por fim a sua
aprovação.
81 Hoje sito no nº 19 da Wipplingerstrasse.
180
183
- Não, estou a saborear a sorte que temos em viver juntos. E agradecerei a Deus,
cumprindo o meu voto: oferecer-te-ei uma missa. Ela será cantada em Salzburgo,
quando
o meu pai e a minha irmã aí nos receberem.
- Achas que eles nos receberão?
- Vais encantá-los, estou certo disso!
Salzburgo, 7 de Agosto de 1782
184
- Estou a rever o meu francês, que domino mais ou menos, e a aprender inglês.
- Estás a pensar em viajar?
- Porque não? Depois do sucesso de O Rapto do Serralho e dos meus primeiros
concertos vienenses, estou a escrever uma carta para Le Gros, personagem
medíocre mas
de grande influência em Paris, propondo-lhe os meus serviços para a próxima
Quaresma. Em seguida, poderemos ir até Londres, paraíso dos músicos!
- Para já, tens de te preparar para o pequeno-almoço. Esperemos que esse convite
não seja um engodo!
Na verdade, ao ir até casa de Gluck, Wolfgang não se sentia nada entusiasmado.
Para que quereria o músico triunfante em Viena e célebre na Europa inteira
conceder-lhe
uma tal honraria?
Os temores de Mozart não tinham fundamento. Gluck desejava simplesmente
conhecê-lo, felicitá-lo e anunciar-lhe que era a favor da reposição de O Rapto
do Serralho
no Burgtheater.
Página 87
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
189
- O que temeis?
- Ser preso pela polícia de Colloredo. Não credes que o príncipe-arcebispo me
detesta tanto que não hesitaria em mandar prender-me?
A baronesa não rejeitou tal hipótese.
-Tomai as vossas precauções, arranjai garantias - aconselhou ela.
44.
Viena, 30 de Agosto de 1782
Enquanto O Rapto do Serralho subia novamente ao palco no dia 27, com o mesmo
sucesso das vezes anteriores, Wolfgang esboçou três sonatas para piano e
violino85 -
a primeira das quais era dedicada à sua "caríssima esposa" - e um adagio para os
mesmos instrumentos86.
Ele não chegou a completar nenhuma dessas três obras, meras experiências de
laboratório para dominar a técnica do contraponto, levada à perfeição por
Johann-Sebastian Bach. [ II Constance gostava desses ensaios de estilo arcaico,
quase rugoso.
- A tarefa não é fácil - confessou o seu marido. - Bach não se deixa assimilar
como se fosse um alimento qualquer! Mas eu hei-de conseguir.
O trombeteiro Leutgeb, valente compincha de espírito algo espesso, amigo de
Wolfgang, veio interromper essas pesquisas. Leutgeb precisava das partituras com
urgência.
- Claro que tas arranjo - disse Wolfgang -, mas com a condição de juntares os
nossos amigos e de organizares um excelente jantar!
Essa era uma linguagem que Leutgeb compreendia na perfeição. Abundantemente
regado, o serão foi dos mais alegres. Dele resultaram
85 K. 403,402 e 404.
86 K. 396.
191
192
acerca dos demais Ritos, cujo teor teria gostado de conhecer. Diálogo de surdos
e negócio ilusório, o capítulo de Wilhelmsbad marcava o fim de uma época.
Thamos não recolhera nada de instrutivo para a iniciação do Supremo Mago. Mesmo
assim, continuaria a vigiar o percurso dos Iluminados da Baviera, que contavam
abrir-se
ao contacto com o mundo exterior.
Mesmo antes das suas respectivas partidas, Fernando de Brunswick e Thamos
trocaram olhares.
- Voltaremos a ver-nos?
- Não sei, Sereníssimo Grão-Mestre.
- Porque não interviestes de forma mais intensa, porque não defendestes um outro
caminho para a Maçonaria?
- Porque as decisões já estavam tomadas antes da abertura do capítulo.
- Eu considerava que estava a agir no interesse da Ordem. E talvez Willermoz
seja bem sucedido!
- A iniciação repousa sobre a qualidade dos ritos e sobre o poder espiritual que
eles transmitem - afirmou o egípcio. - Sem uma boa ferramenta, que se vai
aperfeiçoando
sem cessar, cai-se na crendice, na mera decência e na presunção.
- Esse não será o nosso caso - afirmou Carlos de Hesse, acorrendo em auxílio do
Grão-Mestre -, pois Cristo guiar-nos-á.
193
90 K. 234.
91 K. 231 e 233.
195
Não estava Leopold - por fim! - orgulhoso do seu filho, que, a 8 de Outubro,
sentado ao cravo, havia dirigido O Rapto do Serralho na presença do grão-duque
Paulo
da Rússia? E Wolfgang acabara também de compor uns concertos para piano92 que se
equilibravam entre o demasiado difícil e o demasiado fácil, com o objectivo de
treinar
o ouvido do público vienense com a ajuda de uma pequena orquestra, porventura um
simples quarteto de cordas com um solista.
Na sua carta, Wolfgang folgava também com o desenlace da batalha de Gibraltar.
Tive conhecimento, para minha maior alegria - pois bem sabeis que eu me
considero
mais do que inglês -, da vitória dos ingleses sobre os espanhóis.
Infelizmente, Wolfgang teve de adiar mais uma vez a sua viagem a Salzburgo, pois
a temporada musical de Viena estava a começar. Em plena ascensão, ele não podia
dar-se ao luxo de se ausentar nesta época. Para além disso, o jovem compositor
continuava a temer ser preso pelos esbirros de Colloredo, o que poderia quebrar
a
sua carreira.
No entanto, Wolfgang tinha muita vontade de reencontrar o seu pai e a sua irmã,
de lhes apresentar a maravilhosa Constance e de acrescentar essa felicidade
familiar
a todas aquelas de que ele vinha gozando desde há alguns meses. Como ele tinha
tido razão em sair de Salzburgo e tentar a sua sorte em Viena!
Mas ele tinha de restabelecer os laços com a sua família e tinha de voltar a
afrontar a sua terra natal, assim que sentisse ter forças para tanto.
O que lhe teria aconselhado Thamos, ausente há tanto tempo? Por um instante,
Wolfgang pensou que o seu amigo talvez desaprovasse os seus últimos passos,
acusando-o
de estar a produzir música demasiado mundana, mas logo o compositor retomou o
seu labor de pró-
92 Concertos nº 11, K. 413, e nº 12, K. 414. Data da mesma época o rondó para
piano e orquestra, K. 386.
197
duzir música agradável para os ouvidos vienenses. Não podia de modo algum
abrandar, devia continuar a conquistar o seu público!
Viena, 4 de Novembro de 1782
O Venerável Mestre Ignaz von Born tomou uma decisão revolucionária: reunir todos
os meses os Mestres pedreiros-livres que desejassem verdadeiramente aceder aos
segredos
da iniciação e estivessem -prontos para deitar mãos à obra.
Página 91
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Os candidatos não foram numerosos, pois poucos nutriam o desejo de desenvolver
uma pesquisa aprofundada sobre os símbolos de que estavam rodeados e cujo
significado
não compreendiam. A maior parte dos pedreiros-livres não acorria à Loja para
praticar esforços prolongados. Contudo, a paciência de Von Born foi
recompensada, pois
um escol começava por fim a assumir os seus deveres.
Nessa noite, cada Irmão leu o seu trabalho, sendo ouvido com atenção pelos
demais Mestres. Thamos estabeleceu uma síntese de tudo quanto fora dito,
acrescentando
alguns elementos essenciais nos quais ninguém tinha pensado. Um redactor foi
encarregado de preservar as ideias que serviriam de base para a próxima Sessão.
Este método inédito conquistou certos espíritos, aptos para progredir, e
descontentou os conformistas satisfeitos com os trabalhos rotineiros das Lojas,
que se limitavam
ao estabelecimento de relações e à participação em festins.
- Contamos com um núcleo de iniciáveis - anunciou Ignaz von
Born a Thamos. - Pouco importa o seu número. O importante é o seu empenhamento,
o seu rigor e a sua solidez. O que resultou do capítulo de Wilhelmsbad?
- Um fracasso. Doravante, a nossa única hipótese de iniciar o Supremo Mago
reside no estabelecimento de uma ou mais Lojas vienenses dignas desse nome.
- Tenho esperança de atingir tal objectivo. Os próximos meses serão decisivos.
Se o imperador não mudar de atitude e continuar a defender a tolerância, nós
conseguiremos
atingir um primeiro grau de coerência. Segundo Gottfried van Swieten, o serviço
secreto que nós tanto receamos não passa de uma miragem.
198
- Desejando estar enganado, devo contudo dizer que não partilho do seu
optimismo. Seja como for, devemos permanecer cuidadosos.
- Mozart faz sucesso. Ontem à noite, ele deu um concerto na Porta da Caríntia e
continua a recolher os favores do público vienense.
- Eis a nova prova que o aguarda - indicou o egípcio. - Se ele se deixar
inebriar pela glória, esta afastá-lo-á do templo, e ele irá engrossar a legião
dos fantoches
imbuídos da sua própria vaidade.
46.
Viena, 10 de Novembro de 1782
207
Thamos consultou o barão Adolph von Knigge, autor dos rituais.
- Depois de definido o ideal - observou o egípcio -, convém conferir-lhe um
utensílio ritual capaz de o concretizar. Suponho que isso se verificará nos
Mistérios
Supremos, nos quais se revelará o esoterismo da Ordem?
- Neles revelarei a verdadeira natureza da magia e da realeza, termos
infelizmente empregues a torto e a direito.
- Já haveis acabado a redacção desses Mistérios?
- Ainda me encontro longe de tal! O mais urgente, hoje, consiste em recrutar o
maior número possível de Irmãos, seja entre os profanos que nós formaremos nos
Seminários,
seja entre os pedreiros-livres que serão directamente admitidos nos graus
superiores.
- Não será também da maior urgência estabelecer esses graus de Mago e de Rei?
Segundo a tradição iniciática, convém começar a obra por cima e pelo essencial.
O barão Von Knigge pareceu incomodado.
- Por agora, e de acordo com Weishaupt, a nossa preocupação maior consiste em
reforçar a Ordem, em conferir-lhe bases sólidas e em partir à conquista da
Maçonaria.
Quantos mais Iluminados houver, ) mais as nossas ideias se imporão.
48.
Viena, 15 de Janeiro de 1783
- Estás certo de que os convidados virão? - inquietou-se Constance.
- Certíssimo! - declarou Wolfgang. - Os vienenses apreciam as ideias originais.
- Talvez apreciem a ideia de um baile em nossa casa, das 18.00 horas até às 7.00
horas, mas gostarão menos da ideia de ter de pagar dois florins pelo direito de
admissão!
- Tal montante pagará as despesas de organização. Vais ver, eles beberão e
comerão muito.
A baronesa Waldstãtten foi a primeira a chegar e abraçou Constance.
Página 96
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- A futura mãe está esplêndida. Vai ser divertido passar uma noite louca em
vossa casa!
Chegaram de seguida Aloysia e Joseph Lange, o barão Wetzlar, proprietário do
prédio e admirador confesso do compositor, o tenor e pedreiro-livre Adamberger,
o libretista
Stephanie, o Jovem, e muitos outros conhecidos do casal Mozart, que não queriam
nem por nada perder aquela festarola.
Quando a animação começava a tomar conta do evento, Thamos teve uma aparição
discreta. Apesar de um ligeiro abuso de punch, Wolfgang guardava uma certa
lucidez.
- O serão promete ser divertido - considerou o egípcio.
209
- Presumo que não aprecieis muito este género de diversões.
- Há muito, muito tempo também eu fui jovem, e não posso recriminar-te por
gozares a vida.
- Não estou esquecido do caminho do templo!
- Os teus convidados chamam por ti.
Viena, 27 de Janeiro de 1783
No dia em que completava 27 anos, Wolfgang voltou a trabalhar nos seis quartetos
que decidira compor para ele próprio, sem saber que um dia eles seriam tocados
em
público. Isso pouco lhe importava, pois o que ele queria era explorar uma nova
dimensão, sem se preocupar com as reacções de um auditório.
Para lá da felicidade e da infelicidade, da alegria e da dor, o andante
cantabile do quarteto em sol maior99 evocava um universo que Wolfgang ainda não
conhecia
mas do qual se aproximava em passadas largas. Esta música levava-o em direcção
ao templo, permitindo-lhe ultrapassar obstáculos e abrir portas. Talvez o
quarteto
fosse, no seu conjunto, como um vasto portal de que ele começasse a poder
desenhar os contornos.
Ao tornar esse portal visível mediante recurso às notas musicais, Wolfgang
principiava a discernir a sua solenidade e importância. Mesmo no allegro do
movimento
final100, ele sentiu uma presença. Ainda longínqua, essa voz tornava-se quase
audível.
211
çónico. O combate que eles levam adiante contra a injustiça, a tirania e o
espartilho das crenças religiosas atrai a simpatia de um certo número de Irmãos.
- Tive ocasião de conhecer alguns dirigentes dos Iluminados - revelou Thamos -,
e interrogo-me sobre a sua sinceridade e sobre a natureza dos seus verdadeiros
objectivos,
tanto mais que o topo do seu edifício ritual ainda não foi concretizado.
Todavia, não me oponho a um contacto do Supremo Mago com os responsáveis por um
Seminário.
I - Para não corrermos nenhum risco - preconizou Von Born -, devemos evitar
Viena. Como o barão Van Swieten não conseguiu apurar nada acerca de um eventual
serviço
secreto de vigilância da Maçonaria, mais vale apostarmos noutra cidade. O melhor
sítio parece ser Salz-burgo, onde existe uma Loja chamada Para a Previdência103,
103 ZurFiirsicht.
49.
Viena, 15 de Fevereiro de 1783
O dia havia começado bastante mal, já que Johann Thomas Trattner,
impressor-livreiro e marido de uma das alunas de Mozart, pedia a este o
pagamento do empréstimo
que lhe havia concedido. Sofrendo de um pequeno percalço financeiro por causa do
custo das cópias dos seus três concertos para piano cuja subscrição, de preço
demasiado
alto, havia sido um fracasso, Wolfgang foi ter com a baronesa Waldstãtten, que o
ajudou de imediato.
De volta a sua casa, Wolfgang foi abordado pelo barão Wetzlar, seu senhorio.
- Preciso de recobrar o apartamento que ocupais e achei-vos um novo apartamento
num prédio chamado À Bênção do Anjo104. É mais pequeno, mas é confortável e bem
situado.
Ofereço-vos a mudança e três meses de renda.
Diante de tamanha boa vontade, Wolfgang teve de aceitar. Mudaria de casa logo na
manhã seguinte, dia em que o Burgtheater retomaria O Rapto do Serralho.
Apesar do cansaço e das preocupações inerentes à mudança de casa, Wolfgang
escreveu ao seu pai, pedindo-lhe a partitura de Thamos, Rei do Egipto, com a
qual sonhara
toda a noite: Estou muito aborrecido por não poder aproveitar a música que
escrevi para Thamos! Esta peça, não tendo tido sucesso, ficou relegada entre as
obras
desacreditadas. É mesmo pena!
A confraria dos sacerdotes e das sacerdotisas do Sol não lhe abriria em breve
novas portas? Como previra o egípcio, nenhuma das obras que compusera no passado
deixara
de ter utilidade. Pouco a pouco, o trabalho que fora acumulando começava a tomar
sentido.
Página 99
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Munique, 21 de Fevereiro de 1783
Carlos de Hesse resolveu-se a tomar o caminho de Ingolstadt ao encontro do
professor Adam Weishaupt, cujas qualidades eram louvadas por muitos
pedreiros-livres.
Segundo os seus informadores, o fundador daquele novo ramo da Maçonaria não se
opunha ao cristianismo.
Se os Iluminados, então em pleno arranque, se quisessem aliar à Estrita
Observância, Carlos de Hesse consideraria a hipótese de realizar algumas
concessões, desde
que se preservasse a via mística que conduzia até Jesus Cristo.
214
Num primeiro momento, o príncipe considerou que os rituais apontavam nesse
sentido. Depois, ao tomar conhecimento dos "Mistérios Menores", compreendeu que
o verdadeiro
objectivo de Weishaupt era a destruição da Igreja!
Furibundo, ele interpelou o fundador dos Iluminados.
- Sois um homem perverso e perigoso!
- Meu Irmão...
- Não me chameis assim, pois não temos nada em comum. Eu sou um discípulo do
Senhor e conduzo ao Seu encontro uma Ordem respeitosa. Quanto a vós, sois o
seguidor
de Satã! A Estrita Observância há-de combater os Iluminados com todas as suas
forças.
Weishaupt não ficou nada contente com este desenlace. Teria preferido que Carlos
de Hesse se transformasse num dos seus principais aliados, talvez mesmo no seu
porta-voz.
Agora, consumada a ruptura, era preciso aceitá-la e assistir à agonia da
Maçonaria templária, voltada para o passado e minada pelas crenças cristãs.
Viena, 25 de Fevereiro de 1783
Wolfgang teve por fim oportunidade de conversar demoradamente com Joseph Haydn,
que acabara de ultrapassar meio século de existência mas permanecia como
músico-lacaio
do príncipe Esterházy.
- Dou-vos os parabéns pela vossa coragem, Mozart. Ser independente pareceu-me
sempre uma tarefa impossível.
- Tendes a sorte de servir um bom amo, que vos concede inúmeras liberdades. Eu
era escravo de um tirano. Se não tivesse rompido os grilhões que me
acorrentavam,
estaria morto para a criação musical.
- Tudo quanto ouvi da vossa produção agradou-me imenso. Vindo de Haydn, este
cumprimento fez Wolfgang corar.
- Os vossos últimos quartetos tiveram em mim um efeito avassalador - confessou
Mozart -, e estou a estudá-los para me aperfeiçoar.
- Não vos subestimeis, Mozart. Não obstante a vossa idade, o profundo
conhecimento que tendes de múltiplos géneros musicais é absolutamente
surpreendente. Espero
que estejais a preparar uma nova ópera. O autor de O Rapto do Serralho não deve
de modo nenhum parar a meio de um caminho tão frutuoso.
215
Wolfgang falou dos seus projectos, com a excepção dos seis quartetos que
dedicaria a Joseph Haydn. Os dois músicos almoçaram juntos, beberam um excelente
vinho branco
que combinava na perfeição com a truta dos Alpes fumada, e divertiram-se com a
evocação dos cortesãos hipócritas e dos intérpretes limitados!
Nasceu entre eles uma amizade profunda, fundada sobre uma estima recíproca e
sobre o amor de um tipo de música capaz de elevar a alma. Eles sentiam o mesmo
desejo
de moldar obras rigorosas e cinze-) ladas, como se fossem artífices capazes de
unir o espírito e a mão.
Viena, 4 de Março de 1783
Página 100
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Na véspera, Wolfgang tinha ouvido um quarteto de cordas tocar a sua partitura
burlesca para uma pantominice de Carnaval105, durante a qual o compositor,
disfarçado
de Pantalon, dera a réplica a Aloysia Lange, vestida de Colombina e seduzida por
Arlequim. Como de costume, o baile mascarado organizado no salão da Redoute
reunia
toda a boa sociedade vienense, e a diversão era geral.
Na manhã seguinte, um decreto imperial dissipou brutalmente os ecos da festa: a
Ópera alemã de Viena era dissolvida. Por outras palavras, já não se punha a
questão
de compor um Singspiele. de tratar um tema como havia feito para O Rapto do
Serralho. Wolfgang deitou para o lixo o seu projecto, que já se encontrava
bastante adiantado.
A condessa Thun revelou ao músico desconsolado as razões da decisão imperial. O
compositor António Salieri, que só apreciava as óperas italianas, conseguira
convencer
o imperador a renunciar à ideia da ópera alemã, desprovida de futuro.
Mais uma vez, a condessa deplorou a fraqueza de carácter de José II, demasiado
influenciável. Por que dava ele ouvidos aos medíocres e aos lisonjeadores?
105 K. 446.
50.
Viena, 16 de Março de 1783
- Estás magnífico - disse Constance a Wolfgang.
- Ainda nem sequer estou penteada!
- Estamos no ponto de nos atrasarmos. -Já me despacho.
Dia 11, Wolfgang havia participado numa academia do Burgtheater juntamente com
Aloysia Lange, intérprete de uma das suas árias106. No programa figuravam também
a
Sinfonia Parisiense107 e o concerto para piano em dó108. Encantado, o público
havia obrigado o pianista a repetir o rondó em ré109, e um dos ouvintes, que era
nem
mais nem menos que o grande Gluck em pessoa, declarara ter ficado a tal ponto
entusiasmado que convidara para almoçar o compositor, a cantora e os respectivos
cônjuges.
Que honra, vinda de tão ilustre compositor!
- Agora - anunciou Wolfgang -, estamos mesmo atrasados. -Já estou pronta!
O turbilhão continuava. A academia de dia 12, em casa do conde Johann Nepomuk
Esterházy, pedreiro-livre a quem Thamos aconselhara receber e observar Mozart,
teve
um belo sucesso. E seguiam-se
106 K. 294.
107 K. 297.
108 K. 415.
109 K. 382.
217
os maravilhosos domingos em casa do barão Gottfried van Swieten, à descoberta de
Haendel e de Johann-Sebastian Bach!
- Como é que eu estou?
- Cada dia mais linda. Se não fosses já casada, gostaria de te desposar.
Ele não resistiu à vontade de a beijar.
- O meu penteado!
Por sorte, Aloysia Lange não era uma fanática da pontualidade, e Gluck estava a
par do carácter imprevisível das divas.
Frankfurt, 20 de Março de 1783
As cabeças pensadoras da Ordem dos Iluminados da Baviera queriam reunir-se com
vários Mestres das Lojas de Frankfurt, até agora respeitosos dos ritos e
regulamentos
ingleses.
Acompanhado pelo barão imperial Adolph von Knigge, pelo professor Joseph von
Página 101
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Sonnenfels e pelo tribuno Bode, Adam Weishaupt apresentou aos Irmãos um projecto
com
futuro, indispensável para o desenvolvimento da Maçonaria. Não acabara um
pensador e homem político da envergadura de Goethe de ser iniciado nos ritos dos
Iluminados,
sem os quais as Lojas começavam a se encerrar num passado revoluto?
Derradeiro bastião submetido à influência inglesa, as Lojas de Frankfurt
aceitaram fundar uma "Aliança Ecléctica" que preservava a sua autonomia,
permitindo-lhes
contudo adoptar a hierarquia secreta dos Iluminados.
Weishaupt encontrava-se agora no âmago da Maçonaria. Como fora longo o caminho
percorrido desde a fundação da Ordem, durante tanto tempo limitada a um punhado
de
membros! Hoje, nenhum Irmão ignorava a poderosa corrente de ideias encarnada por
Weishaupt. Agora, era preciso cortar os ramos mortos, de forma a fortalecer a
árvore
maçónica e conferir-lhe novo vigor.
Amanhã, os Iluminados reinariam sobre toda a Europa. Preparava-se, a partir das
Lojas, uma tomada de poder que Weishaupt esperava que pudesse decorrer sem
derramamento
de sangue. Mas saberiam os príncipes e os arcebispos, em breve escorraçados dos
seus palácios, abdicar sem recurso à violência?
218
Viena, 23 de Março de 1783
220
- Será ele capaz de reagir atempadamente?
- Fornecer-lhe-ei uma série de relatórios de tom muito moderado, para que ele
não me possa acusar de suspeitas excessivas. A pouco e pouco, o imperador
começará
a desconfiar desses intelectuais demasiado influentes e do exército que eles
pretendem recrutar.
51.
Viena, 24 de Abril de 1783
Enquanto a última produção de António Salieri, La Scuola dei Gelosi113, se
revelava como um autêntico sucesso, provando aos vienenses a superioridade da
ópera italiana,
Wolfgang e Constance mudavam-se para uma casa maior, no primeiro andar da
Burgischen Hause, Juden-platz, número 244.
A gravidez de Constance decorria sem problema de maior, e a futura mãe apreciava
sobremaneira a sua nova residência. O seu marido preocupava-se enternecidamente
com a sua saúde, e o casal passeava amiúde no Prater, onde assistia a
espectáculos de animais amestrados. Juntos, percorriam em passo estugado a
grande alameda de
castanheiros que culminava num semicírculo de onde partiam cinco outras alamedas
menores. Ao menor sinal de cansaço da futura mãe, eles sentavam-se numa taberna
e Wolfgang jogava ao chinquilho com parceiros amadores.
Constance gostava de ver o marido apanhar ar, sabendo embora que ele continuava
a compor dentro da sua cabeça, enquanto andava ou jogava.
- Teremos nós dinheiro suficiente para pagar a renda e para manter o nível de
vida que corresponde ao teu estatuto? - inquietou-se a jovem.
113 A Escola dos Ciumentos.
222
Página 103
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Seguindo os conselhos de alguns amigos, eu escrevi ao editor parisiense Sieber
e propus-lhe a publicação dos meus três últimos concertos para piano pelo preço
de 30 luíses, e da minha série de seis quartetos pela quantia mínima de 50
luíses.
- Não serão tais preços excessivos?
- Se eu não valorizar as minhas obras, acabarei por ser desconsiderado. E se
esse editor não aceitar as minhas condições, procurarei outro.
Constance aprovou o seu marido. Afinal, Mozart não era um zé-ninguém.
à ordem social. Não possui nenhum génio, mas não lhe faltam nem talento nem
sentido do drama musical.
- Supondo que chegássemos a acordo acerca de um tema, achais que o abade seria
maleável ao ponto de aceitar as minhas exigências?
- Não há ninguém mais adaptável do que o abade Da Ponte.
Viena, 7 de Maio de 1783
Judeu endinheirado e fervoroso admirador de Mozart, o barão Wetzlar estava
encantado por acolher em sua casa esse músico tão promissor e o abade Da Ponte,
novo libretista
dos teatros imperiais. Não iria este encontro favorecer, como sugerira o conde
de Tebas, uma frutuosa colaboração?
Lorenzo da Ponte tinha cara de espertalhão e de malandro. Logo de início, ficou
agradado com a vivacidade e a inteligência de Mozart.
- O vosso Rapto do Serralho foi um belo sucesso, mas a ópera em língua alemã não
tem futuro. Cabe-nos a nós, poetas e músicos, satisfazer os gostos do público
vienense!
O que tendes em mãos?
- Procuro desesperadamente um libreto e já rejeitei mais de uma centena!
- Ó Diabo! Deveis ser deveras exigente.
- Por isso estou tão contente de vos ter encontrado. Se o imperador vos nomeou
para a sua corte, sois forçosamente o melhor libretista que há.
- Na verdade - reconheceu Da Ponte -, tenho uma longa experiência e conheço a
minha arte melhor do que ninguém...
- Teríeis a bondade de me sugerir uma ideia?
O abade franziu os sobrolhos e pareceu contrariado.
- Neste momento, estou cheio de trabalho. Salieri, Martini e outros dirigem-me
incessantemente novos pedidos, e já nem sei para onde me virar. No entanto, como
Página 104
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
simpatizei
convosco, prometo pensar no assunto.
"Promessa vã", pensou Wolfgang. A colaboração com Da Ponte acabava antes mesmo
de ter começado.
224
Viena, 21 de Maio de 1783
O editor Artaria acabava de publicar duas sonatas para piano a quatro mãos114,
mas esta pequena alegria não extinguia a inquietação que Wolfgang sentia com a
ideia
de regressar a Salzburgo. Primeiro, era preciso esperar pelo parto de Constance,
agora iminente; depois, como escreveu ao seu pai, Wolfgang temia ser preso por
ordem
de o Grande Mufti Colloredo, pois "um padreco é capaz de tudo".
Foi então que o tolo Joseph Leutgeb, trompetista reputado de 51 anos e
proprietário de uma queijada em Viena, irrompeu pela casa dos Mozart.
- Ouve lá, precisava com urgência de um concerto divertido e fácil.
- Estou constipado e cheio de tosse - deplorou Wolfgang. - Hoje não tenho mesmo
capacidade para escrever.
- Vá lá, não recuses isso a um velho amigo! Estou certo de que conseguirás achar
hoje mesmo, dentro da tua cabeça, uma pequena jóia. Depois iremos beber uns
copos
à tua saúde. Quando se está doente, não se deve dar parte fraca.
Sabendo que o truculento amigalhaço não o largaria, Wolfgang deixou-o fechado no
quarto e pediu-lhe para esperar sem se mexer e sem fazer barulho.
Algumas horas mais tarde, o concerto para trompa115 estava acabado. Havia nele
alguns acentos heróicos destinados a pôr em destaque o intérprete, mas também
uma
sedutora linha melódica.
Com lápis de cor azul, vermelha e verde, Wolfgang escreveu a dedicatória:
"Mozart teve piedade de Leutgeb, burro, boi e tolo."
227
a rivalidade entre três mulheres que desejam o mesmo amante. Excitante, não é?
Esta ópera bufa encantará os vienenses. Bem, tenho pressa. Deixo-vos este
esboço,
estudai-o e voltaremos a falar do assunto. Até breve.
Wolfgang não se interessou nem pela história, nem pela maneira como estava
contada. Aqui estava então toda a inspiração de que Da Ponte era capaz!
Desiludido, escreveu
ao seu pai: Destes-me, a respeito da ópera, um conselho que eu já dera a mim
mesmo. Como eu gosto de trabalhar com lentidão, de forma a poder dominar o tema,
não
quis começar demasiado cedo. Um poeta acaba de trazer-me um libreto que eu
talvez adopte, se ele aceitar moldá-lo às minhas necessidades.
Viena, 25 de Julho de 1783
- Pareces nervoso - observou Constance.
- Estou ainda hesitante.
- Temos de partir, Wolfgang! Já confirmaste a nossa chegada junto da tua irmã,
já deixei o nosso filho com uma ama de leite, e as bagagens estão todas prontas.
O compositor não se sentia nada bem.
- Salzburgo... Tantas más recordações, tanta tristeza, e aquele
príncipe-arcebispo que me pode mandar prender!
- O teu pai não te tranquilizou já?
- Ele afirma que o Grande Mufti não intervirá de forma alguma, mas terá tal
optimismo algum fundamento?
- Estou certa de que tem.
- Então, a caminho.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Salzburgo, 31 de Julho de 1783
228
A idosa Miss Pimperl, que dormia umas 20 horas por dia, veio desbloquear a
situação. Transbordando de felicidade, a cadela fox-terrier saltou para os
braços de Wolfgang
para explorar as algibeiras do seu fato à procura de tabaco espanhol.
Houve por fim alguns sorrisos e pronunciaram-se palavras de boas-vindas.
- Pai - disse Wolfgang em voz trémula -, eis a minha mulher. Ela sonhava poder
abraçar-vos, a vós e à minha querida irmã.
A atmosfera distendeu-se um pouco. Só Nannerl permaneceu gelada.
-Não vos aborrecereis aqui em Salzburgo - prometeu Leopold. - Começaremos por
festejar a festa da minha filha bebendo um bom jarro de punch, depois jantaremos
com
os nossos amigos músicos, jogaremos aos dardos e passearemos pelos campos.
Pai e filho trocaram por fim um longo abraço, cheios de alegria de se
reencontrarem. Depois, Leopold aceitou abraçar a sua nora, embora Nannerl se
mantivesse distante,
bem decidida a nunca dirigir a palavra àquela intriguista. Não era o seu próprio
irmão responsável por aquele casamento desigual que viera manchar o bom nome da
família Mozart?
53.
Salzburgo, 10 de Agosto de 1783
Não era pouco o orgulho que Leopold tinha em organizar uma reunião de trabalho
entre o seu filho e o capelão Varesco, libretista de Idomeneu, Rei de Creta.
- Wolfgang é agora um compositor aguerrido, muito apreciado pelos vienenses.
Após o sucesso de O Rapto do Serralho, ele anda à procura de uma boa história
para pôr
em música.
- Pois eu tenho uma - afirmou o religioso salzburguês. Wolfgang temia o pior, e
não ficou desiludido.
- O título resume a minha obra - explicou Varesco. - O Ganso do Cairo.
Espantoso, não é?
Nem Leopold nem o seu filho tiveram qualquer reacção.
- Eis um drama que não poderá deixar de colher os favores de um público
alargado. O marquês Don Pippo, viúvo, fecha na torre do seu castelo a sua
magnífica filha
Celidora, muito cobiçada, mais a criada dela, chamada Lavina, com quem o
aristocrata quer vir a casar e que ele resguarda assim de outras tentações. Belo
começo,
não achais?
- Se o dizeis - condescendeu Wolfgang.
- Esperai, ainda há muitas surpresas! Don Pippo assinou um contrato com
Biondello, apaixonado pela sua filha Celidora. Ela só lhe pertencerá caso ele
consiga, no
prazo de um ano, penetrar dentro da torre. Fabuloso, não é?
Leopold mantinha o rosto fechado.
- Pensais que tal é impossível? Pois bem, estais enganado! Biondello é amigo de
Calendrino, apaixonado por Lavina, e conta com o
230
apoio do casal de criados que servem o marquês, sem esquecer também a ajuda de
uma misteriosa boémia vinda do Egipto, muito entendida em artes mágicas. Com uma
equipa deste calibre, Biondello está certo de que irá atingir o seu objectivo!
Para dificultar a história, toda a peça se desenrola na véspera do fim do prazo
concedido.
Página 107
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Deste modo, o público ficará sempre sobressaltado.
- Quantos actos há? -perguntou Wolfgang.
- Dois - respondeu Varesco. - O primeiro evoca a tentativa falhada do herói para
entrar na torre. No segundo acto, reviravolta teatral! O astuto Calendrino
fabrica
um enorme ganso dentro do qual se esconde Biondello. E a boémia apresenta-se
diante do marquês, louvando os méritos daquela obra-prima proveniente do Cairo!
Espantoso,
não é? Generoso, Don Pippo manda colocar o ganso dentro da torre para distrair
as duas prisioneiras.
- Biondello sai do interior do ganso, ganha a aposta e casa com a filha do
marquês - predisse Wolfgang.
- Como haveis adivinhado? - espantou-se Varesco.
- Foi intuição.
- Nova reviravolta: a boémia revela a sua verdadeira identidade! Na verdade, ela
é a mulher de Don Pippo, que ele considerava morta. Fabuloso, não é? E tudo
acaba
bem, pois Biondello casa com Celidora e Calendrino com Lavina.
Leopold permaneceu calado.
- Haverá que introduzir muitas modificações - opinou Wolfgang.
- Nem pensar nisso - objectou Varesco. - O meu libreto parece-me perfeito.
- Do ponto de vista musical, o vosso libreto carece de várias adaptações.
- Recuso-me!
- Sede conciliante - advogou Leopold. - Uma ópera bem sucedida depende da
colaboração entre o compositor e o libretista.
- Talvez voltemos a falar do assunto mais tarde - atalhou Varesco, vexado. - Por
agora, deixo-vos.
Consternados, pai e filho olharam um para o outro.
- Este Ganso do Cairo... Que verdadeira inépcia! Nem um só espectador engolirá
esta história.
231
Página 108
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
54.
Viena, 25 de Agosto de 1783
233
servância parece enfraquecida, mas não devemos descurar a nossa vigilância. Ela
pode ainda renascer das cinzas e retomar a ofensiva.
Muitos ouvintes, entre os quais Nannerl, ficaram chocados com o carácter pouco
religioso da obra, que se demarcava demasiado das regras estabelecidas. Por
causa
de Constance, a quem Nannerl não dirigia a palavra, Wolfgang estava a seguir por
um mau caminho.
Salzburgo, 27 de Outubro de 1783
Na véspera, Miss Pimperl gania de tristeza. Porque tinha Wolfgang, seu amo
predilecto, de partir novamente? Durante a sua curtíssima estada vienense, ele
tinha-lhe
feito muitas festas, e ela até retomara as suas brincadeiras!
Às 21.30 horas, Wolfgang e Constance despediram-se de Leopold e de Nannerl. O
músico apertou uma última vez a cadela fox-terrier nos braços, receando nunca
mais
vir a dar mimos àquela amiga tão dedicada, cuja saúde entrara em fase de
degradação.
Ele ignorava que tão-pouco teria oportunidade de rever a sua irmã, que
continuava a manter uma atitude glacial com relação a Constance.
Página 110
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Continua a trabalhar a sério - exigiu Leopold.
- Está prometido.
O jovem casal dirigiu-se para Iinz, onde era esperado pelo velho conde Thun, que
os alojou no seu palácio. A 30 de Outubro, o conde anunciou que organizaria um
concerto
para dia 4 de Novembro, cujo ensaio geral teria lugar dia 3 à noite.
- Qual será o programa? - perguntou o músico.
- Gostaria muito de uma sinfonia inédita.
- Em tão pouco tempo?
- Não sois capaz de compô-la?
- Posso tentar.
Irritado com os aduladores salzburgueses, sempre prontos a incensar o compositor
que estava na moda em Viena, Wolfgang escreveu ao seu pai, dando-lhe conta do
ódio
que sentia com relação a todas as formas de lisonja: As guloseimas e as beijocas
nem sempre são agradáveis. Só os idiotas e os asnos as aceitam sempre como tais.
Ser-me-ia mais fácil aguentar um rústico que não teria vergonha de se aliviar à
minha frente, do que deixar-me prender a semelhantes fingimentos.
236
De seguida, Wolfgang pôs-se a trabalhar dia e noite, e criou uma obra grave,
meditativa e altaneira, não desprovida de optimismo, na qual se espelhava aquele
estranho
período que aparecia aos seus olhos como uma porta entre dois mundos. Assim
nasceu a sinfonia Linz125, com a duração de aproximadamente 40 minutos.
Para grande satisfação do conde Thun, a sinfonia estava pronta e foi tocada no
dia 4 de Novembro. Como tinha Mozart conseguido, em tão pouco tempo, compor uma
obra-prima
tão comprida e bem alicerçada?
- Sois um mago - reconheceu o conde. - Podemos ouvir-vos, mas não podemos
compreender-vos. Este presente inestimável veio iluminar a minha velhice.
125 K. 425.
55.
Viena, 30 de Novembro de 1783
239
O homenzinho vestido de cinzento não devia sorrir amiúde.
- Sois Wolfgang Mozart, mestre de capela?
- Exacto.
- Eu sou o emissário do banqueiro Ochser.
- Não conheço esse senhor.
- Mas ele conhece-vos. Durante a vossa estada em Paris, no mês de Outubro de
1778, haveis contraído uma dívida no valor de 12 luíses de ouro.
- Não me lembro nada disso - confessou Wolfgang.
- Mas nós lembramo-nos. Demorei a encontrar-vos, e exijo para hoje mesmo o
reembolso da dívida em questão, sob pena de fazer transitar o assunto para o
foro penal.
- Há tanto tempo... Que memória!
- Estou à espera da vossa resposta, senhor Mozart.
- Na verdade, eu não fui responsável por essa viagem. Deveis dirigir-vos ao meu
pai, Leopold Mozart, segundo-mestre de capela do príncipe-arcebispo Colloredo,
em
Salzburgo.
- E poderá ele saldar a dívida?
- Não insulteis a nossa família!
Wolfgang escreveu de imediato ao seu pai, pedindo-lhe que resolvesse aquela
questão ridícula, e regressou ao trabalho em curso, referente a O Ganso do
Cairo. As
três primeiras partes já compostas128 não lhe desagradavam, mas ele não podia ir
além com um libreto daqueles. Por isso exigiu diversas modificações que Varesco,
apesar da sua susceptibilidade, teve de admitir.
Viena, 22 de Dezembro de 1783
Durante uma academia organizada em prol da Sociedade dos Músicos, Wolfgang tocou
um concerto diante de uma sala cheia e entusiástica. O seu amigo Adamberger
Página 112
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
cantou
por fim aquela ária que Salieri tinha conseguido censurar.
Sempre esperançoso de vir a criar uma nova ópera, Wolfgang escreveu para
Adamberger uma ária trágica129 sobre o tema do infortúnio
128 K. 422 4-6.
129 K. 431.
240
241
Juntos, Wolfgang e o seu hóspede tocaram ao piano a partitura de Idomeneu, que
Leopold acabara de enviar de volta ao seu filho. Mas a obra que mais encantou
Constance
foi uma fuga131 em que o seu marido provava dominar a arte do contraponto. Desta
vez, os ensinamentos de Johann-Sebastian Bach estavam mesmo assimilados. Sem
comprometer
a fluidez do estilo mozartiano, o contraponto conferia-lhe a solidez de um
alicerce.
- Tenho uma óptima notícia para te dar, minha querida.
- Encomendaram-te uma ópera?
- Ainda não.
- Estás a planear um grande concerto?
- Oh, vários! Antes de mais, temos de mudar de casa. Desta vez, será para um
apartamento sumptuoso, tão propício ao trabalho como à vida familiar.
Perspectivam-se
belos tempos.
Página 113
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
131 K. 426.
56.
Brunswick, 31 de Dezembro de 1783
Às sete horas, Wolfgang estava pronto. Para o seu vigésimo oitavo aniversário,
em vez de pôr pó-de-arroz nos cabelos, tinha pedido ao barbeiro que os frisasse,
os
puxasse para trás e os atasse com uma fita.
243
- Não os considera nem dignos de ser temidos, nem opostos à sua política. Nessas
condições, que razão haveria para confiar a vigilância da Maçonaria a um serviço
secreto?
- Porque José II, como bom chefe de Estado, conduz vários jogos paralelos.
- Acreditais, portanto, na existência de um homem que age na sombra, em contacto
directo com o imperador... e que não cometeu até agora nenhuma imprudência, como
se nunca tivesse saído do seu gabinete!
- Se ele já conseguiu estabelecer uma rede de informadores, basta-lhe ir
preenchendo os seus ficheiros, ficando escondido no seio das trevas, à espera do
momento
certo para agir.
- Informadores... no exterior e no interior das Lojas?
- É o que eu temo.
O conde Johann Esterházy saudou o chefe da censura e o seu Irmão, conde de
Tebas.
- Posso juntar-me às vossas reflexões?
- Estávamos à vossa espera - disse Thamos. - A partir desta noite, e tendo em
consideração o Carnaval que vem aí, unamos as nossas forças e, juntamente com o
auxílio
do príncipe Galitzin, lancemos a carreira de Mozart de forma a impô-lo
definitivamente em Viena.
Os quatro homens prepararam um programa titânico. Estaria o frágil Mozart,
apesar de toda a sua energia, apto a preenchê-lo?
57.
Viena, 22 de Março de 1784
Wolfgang perguntou-se se conseguiria aguentar por muito mais tempo o ritmo
infernal adoptado desde o início da Quaresma. Nos dias 1, 5, 8,12 e 15 de Março,
concertos
em casa do conde Esterházy; dias 4, 11,18 e 19, no palácio do príncipe
Esterházy; sem esquecer, dia 17, a sua primeira academia por subscrição na sala
Página 116
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Trattner!
Em todas as exibições, deparou-se com um público entusiástico e com
significativos ganhos monetários. "Se continuar assim", confidenciou ele a
Constance, "não corro
o risco de enferrujar."
Não obstante essa intensa actividade como intérprete, Wolfgang não podia parar
de compor, pois os auditórios pediam peças inéditas. Assim, a 15 de Março,
apresentara
um concerto138 "que fazia suar" de tanto virtuosismo que exigia. Orgulhoso e
triunfante, o solista fornecia uma réplica vigorosa a uma orquestra bem
composta.
Nessa noite, em casa do conde Esterházy, Wolfgang criou um concerto em ré
maior139 que, também ele, fazia suar em bica. Havia nele a mesma alegria
transbordante
da obra precedente, com o mesmo ardor. O compositor e o intérprete ganhavam os
corações, Wolfgang inebriava-se com o seu sucesso.
138 Concerto para piano nº 15, K. 450.
139 Nº 16,K. 451.
248
- Porque não tocais mais depressa ainda? - perguntou-lhe um daqueles críticos
insensíveis e desdenhosos que não se espantavam com nada.
- Os acrobatas crêem que a velocidade cria o fogo. Pois bem, quando não há fogo
numa composição, não é por tocá-la depressa que o vamos criar! É bem mais fácil
tocar
depressa do que devagar. Nas passagens difíceis, podem-se obliterar algumas
notas sem que o público dê por isso. Mas será boa música?
- A vossa opinião é muito vincada, Mozart!
- Não valerá ela tanto quanto a vossa?
- Eu tenho o hábito de julgar os músicos!
- E o que haveis composto até agora?
Furibundo, o crítico foi-se embora. Wolfgang tinha arranjado um novo amigo.
140 K. 361.
141 K. 451.
142 K. 452.
250
gido tal objectivo, não podia contentar-se com ele, pois não se lhe abriam as
portas do templo.
Felizmente, aquele período alucinante estava a chegar ao término. Um último
concerto em casa do conde Pálffy, dia 9 de Abril, e o compositor poderia
recobrar o seu
fôlego.
253
Viena, 22 de Abril de 1784
No seguimento de uma série de entrevistas com Irmãos altamente colocados, o
imperador proclamou o nascimento de uma Grande Loja de Áustria, cujo
Grão-Mestrado foi
entregue a um dignitário inofensivo, o conde Johann Carl von
Dietrichstein-Proskau, de 65 anos, e cujo Secretariado coube ao mineralogista
Ignaz von Born. Gozando de honrosa reputação, estas duas personagens saberiam
dirigir
de maneira pacífica a nova instituição, organizada em sete províncias. A Áustria
compreendia 17 Lojas, das quais oito se situavam em Viena; a Boémia, sete; a
Galícia,
quatro; a Lombardia austríaca, duas; a Transilvânia, três; a Hungria, 12; os
Países Baixos austríacos, 17.
Página 119
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Bela jogada - apreciou Joseph Anton -, belíssima jogada. Eis os Irmãos
enquadrados na Real Ordem da Maçonaria. Este reconhecimento oficial funcionará
como uma
verdadeira camisa-de-forças da qual ele não terá consciência de imediato. E o
imperador reserva-lhes outras surpresas.
- Deixaremos de ter qualquer utilidade - queixou-se Geytrand.
- Pelo contrário, meu amigo, pelo contrário! Quando os Irmãos mais subversivos
perceberem que perderam qualquer margem de manobra, tentarão formar Lojas
dissidentes.
Temos portanto que redobrar a nossa vigilância.
Viena, 22 de Abril de 1784
Thamos e Ignaz von Born estavam à espera das explicações do Irmão Tobias Philipp
von Gebler.
Acusando o peso dos seus 58 anos, o vice-chanceler afundou-se num sofá.
- Confesso ter desempenhado uma forte influência junto do imperador. A criação
desta Grande Loja de Áustria parecia-me indispensável.
- Por que razão? - perguntou Von Born.
- Nós dirigíamo-nos directamente para uma situação catastrófica - explicou o
autor de Thamos, Rei do Egipto. - O arcebispo de Viena, Anton Migazzi, inimigo
declarado
da Maçonaria, introduziu muitos espiões nas Lojas. Os émulos da Rosa-Cruz sonham
em trazer de volta
254
Página 121
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
O concerto que teria lugar no teatro da Porta de Caríntia, na presença de José
II, tomava a forma de um exercício particularmente perigoso. Wolfgang pretendia
exibir
uma sonata para violino e piano145, que seria acompanhada pela italiana Regina
Strinasacchi.
Único pequeno problema: a partitura de piano estava praticamente vazia, pois
Wolfgang não tivera tempo de tomar nota da música, que tinha portanto de tocar
de cor
e sem ensaio prévio.
A obra começava com um largo, movimento lento durante o qual o homem, desejo de
conquista, dialogava com a mulher, sensibilidade. Como conciliar estes extremos
aparentemente
opostos, se não graças a uma fuga de um allegro que ultrapassasse as oposições?
O andante regressava à meditação e à dúvida, quase dolorosa, dissipada pelo
rondó
final, celebração da alegria de viver.
Tendo ouvido boatos espantosos, o imperador foi certificar-se pessoalmente.
Abismado, verificou que as páginas de Mozart estavam todas em branco!
Quanto ao pianista holandês Richter, que observava os dedos do intérprete, não
pôde conter a sua amargura.
- Meu Deus, como tenho de penar e suar para obter algum sucesso! E para vós, meu
amigo, isto não passa de uma brincadeira!
- Oh! - exclamou Wolfgang. - Eu também tive de penar longamente para agora não
precisar de penar mais.
258
60.
Viena, 13 de Junho de 1784
Wolfgang não tomou nota no seu Catálogo das oito variações "Como um Cordeiro"147
que acabara de compor sobre uma ária de O Homem Bom, de Sarti, que se encontrava
pecúlio, já respeitável.
Tal sucesso financeiro tranquilizava Wolfgang e dava-lhe asas. Que felicidade
poder oferecer a Constance uma existência confortável, sem preocupações
materiais!
Ele nunca ousara imaginar que viveria em tal desafogo, sobretudo enquanto
arruinara o seu talento como músico lacaio ao serviço de o Grande Mufti
Colloredo. A audácia
fora-lhe proveitosa, e ele nunca haveria de voltar para trás, mesmo que
continuasse a sonhar com um lugar fixo na corte de Viena, o que só seria viável
caso recebesse
uma remuneração excelente e beneficiasse da maior liberdade de criação.
261
150 K. 330,331,332.
151 K. 284, 333, 454.
262
transmitido a Frederico Guilherme II, principal apoiante da Ordem. Recusando-se
a tomar a dianteira e a intervir no seu próprio território, o rei confiou essa
tarefa
suja ao príncipe-eleitor da Baviera, Karl Theodor.
Munique, 22 de Junho de 1784
264
61.
Viena, 2 de Julho de 1784
Após o seu passeio a cavalo, pelas sete horas, Wolfgang distribuía o seu tempo
entre a composição e as lições. Para descansar, gostava de jogar ao bilhar
enquanto
ia conversando com Constance. Tinha comprado uma bela mesa coberta por um
magnífico pano verde, 12 tacos e cinco bolas. A superfície de jogo era iluminada
por uma
lanterna e cinco castiçais.
Nessa noite, o casal Mozart recebeu vários cantores, entre os quais se contava
Michael O'Kelly e a jovem soprano de 19 anos Nancy Storace, acompanhada pelo seu
namorado
Stephen, um violoncelista impetuoso e ciumento. Eles mostraram-se preocupados
com a saúde de Constance, louvaram os méritos da Inglaterra e jogaram uma
partida de
bilhar durante a qual esvaziaram várias garrafas.
O pintassilgo Star saudou estas libações cantando uma bela melodia, retomada em
seguida por Nancy Storace.
- Tens uma esplêndida voz - considerou Wolfgang.
- Escolher-me-ás como intérprete da tua próxima ópera?
- Se eu conseguir encontrar um libreto que valha alguma coisa, podes contar com
isso.
- É assim tão difícil?
- Só li histórias estúpidas e desprovidas de qualquer interesse. Mas não
desisto.
266
Viena, 4 de Julho de 1784
Página 125
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Geytrand pousou sobre a secretária de Joseph Anton a pauta de duas sonatas para
piano152 e de uma sonata para violino e piano de Mozart153, editadas por
Torricella.
- Tornaste-te apreciador de música na moda?
- Olhai bem para a folha de rosto, senhor conde. O exame de Anton foi revelador.
- Vários emblemas maçónicos... O que quer isto dizer?
- Ou Mozart está a afirmar a sua condição de pedreiro-livre, ou o editor está a
tornar públicas as suas convicções e simpatias.
Joseph Anton consultou os seus ficheiros.
Mozart não fazia parte das listas. Tratava-se portanto da segunda hipótese. -
Estranho - considerou Geytrand. - Desde quando um editor pode exibir um
comportamento
tão audacioso sem o consentimento explícito do autor?
- Claro que pode, até pode modificar a partitura.
- Por outras palavras, nada prova que Mozart esteja ligado de uma forma ou de
outra à Maçonaria.
- Nada - concluiu Anton. - Mas o nome dele aparece demasiadas vezes. Hei-de
estar atento ao seu caso.
Viena, 5 de Julho de 1784
No Peru, um arqueólogo encontrava os vestígios do reino das Amazonas. Enquanto
um meteorologista prosseguia as suas pesquisas, um homem loucamente apaixonado
só
pensava no objecto da sua paixão.
Usando como base o fraco enredo deste libreto de Petrosellini, Wolfgang começou
a escrever uma ópera154.
267
269
Lastimável libreto! Como tratar aquele tema no estilo bufo e tornar divertida
uma heroína enganada e infeliz? Maltratar assim as personagens femininas
desagradava-lhe
ao mais alto nível. E nenhuma das personagens tinha carácter suficiente.
Desde que contactara com os Iluminados em Salzburgo e que passara a ler obras
esotéricas, Wolfgang sentia necessidade de profundidade, e não das historietas
irrisórias
do abade Da Ponte. Abandonou portanto aquele projecto lamentável, persuadido de
que não voltaria a contactar com aquele cortesão manhoso, demasiado próximo do
medíocre
Salieri.
A esta desilusão juntou-se uma triste notícia, vinda de Salzburgo: Miss Vimperl,
a cadela fox-terrier, acabara de morrer. Como Wolfgang teria gostado de mimá-la
até aos seus derradeiros instantes de vida, evocando mil e uma lembranças!
Wolfgang era o seu amo dilecto, percebia a mais pequena emoção de Miss Pimperl,
e a cumplicidade
Página 127
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
existente entre ambos oferecia-lhes maravilhosos momentos de felicidade.
Com o falecimento daquela cadela tão querida, esfumava-se a juventude de Mozart.
62.
Viena, 18 de Agosto de 1784
271
Felizmente, o jovem doutor Barisani, cujos méritos eram louvados por Viena
inteira, aceitou vir vê-lo e ministrar-lhe os seus cuidados. Devido à gravidade
da doença,
o médico anunciou ao paciente que se avizinhavam várias semanas difíceis, e
prescreveu-lhe descanso.
No entanto, logo no dia 10, Wolfgang começou a trabalhar num improviso sobre uma
ária de Gluck que havia sido tocada a 23 de Março de 1783 na presença do
imperador,
retirando dela dez variações para piano156. Extraído dos Peregrinos de Meca, o
texto divertia muito o convalescente: uma espécie de daroês fazia-se passar por
um
santo homem de austeridade exemplar aos olhos de uma populaça crédula, quando na
verdade levava uma existência dissoluta, saboreando os inesgotáveis prazeres da
carne!
Os alegres harpejos do passarinho Star saudaram o bom humor do seu amo, e
Constance ficou descansada ao ver o marido retomar tão depressa o seu gosto pela
vida.
Mas ele teria contudo que seguir uma dieta e não se esforçar demasiado. A conta
do horário alucinante que levara durante a temporada musical, Wolfgang fora para
lá dos seus limites e comprometera gravemente a sua saúde.
Permanecendo a boa salzburguesa liser Schwemmer sempre tão preguiçosa e
ineficiente, Constance, agora a um mês de distância do parto, contratou uma nova
criada.
Todos os dias, a dona de casa distribuía as tarefas, evitando assim os
conflitos. A jovem esposa revelou-se notável no exercício destas funções.
Viena, 29 de Setembro de 1784
Constance não queria acreditar no que os seus olhos viam.
Que apartamento sumptuoso e espaçoso! Mesmo por trás da catedral, a Casa
Camesina157 era uma das mais afamadas de Viena. Joseph, célebre decorador e pai
Página 128
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
dos proprietários
do edifício, havia ornamentado com estuques rococó uma parte da vasta
residência.
Quatro divisões principais no primeiro andar, 170 metros quadrados, conforto
total... Constance arregalou os olhos.
- Qual é a renda?
156 K. 455.
157 Nº 846, Schukrstrasse, antigo nº 5 da Domgasse.
272
- 230 florins por semestre - revelou Wolfgang.
- É elevadíssima!
- Descansa, que nós podemos pagá-la. E não merecerá esta criaturinha um bonito
enquadramento para os seus primeiros tempos?
Wolfgang segurava delicadamente nos seus braços Karl Thomas, nascido a 21 de
Setembro e baptizado na igreja de São Pedro. Tanto a mãe como o filho estavam de
perfeita
saúde.
- Possa Deus conceder-lhe uma existência longa e bela - murmurou o músico,
abraçando o bebé, que lhe sorriu abertamente.
- Teremos de comprar mobília - considerou Constance.
- O meu cravo será transportado hoje mesmo à noite - informou Wolfgang. - Aqui,
serei inundado por milhares ideias e poderei trabalhar no maior sossego.
A primeira obra terminada por Wolfgang na sua nova e prestigiosa residência foi
um concerto em si bemol para piano e orquestra158, destinado a uma virtuosa
cega,
Maria-Theresia von Paradies.
Os dois movimentos rápidos, o primeiro e o terceiro, valorizavam o intérprete,
fornecendo-lhe uma partitura alegre, volúvel e ridente, com alguns momentos de
ternura
e de sonho pelo meio; em contrapartida, o andante com variações em sol menor era
uma longa meditação de Wolfgang sobre o sentido da sua própria existência.
Tentando
dominar a impaciência e a revolta, ele manifestava uma calma aparente, sem
contudo dissimular a dúvida profunda que o assediava: estaria ele fadado a
percorrer,
um dia, o caminho conducente até à Luz?
Um grito irrompia da orquestra, formulando uma pergunta brutal: o que desejas
realmente? Ele nunca deixaria de lutar! Deste modo, Wolfgang reencontrava a
tranquilidade
ligada à certeza, mas terminava estas dolorosas variações regressando à dúvida
inicial.
Ao dirigir-se, na companhia de Constance, até casa do barão Van Swieten, como
faziam todos os domingos, Wolfgang tinha a esperança de vir a descobrir novas
peças
de Johann-Sebastian Bach.
158 Nº 18,K. 456.
273
Na véspera, o barão tinha por fim encontrado, ao que lhe parecia, uma pista
fidedigna que poderia levá-lo à identificação do vigilante de pedreiros-livres.
Mas,
depois de investigar mais minuciosamente, chegara à conclusão de que se tratava
apenas de um vulgar polícia encarregado de manter ficheiros de informações sobre
os cortesãos em contacto com o ministério da Guerra.
Perto do cravo, encontrava-se Thamos, ainda mais impressionante do que de
costume. Van Swieten foi apresentar Constance aos demais convidados, deixando o
egípcio
a sós com o músico.
- Estás satisfeito com a tua nova casa?
Página 129
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- É uma maravilha! Joseph Haydn e alguns outros colegas irão lá em breve para
tocar música de câmara. Claro que vós estais sempre convidado, nem é preciso
dizê-lo.
- Tenho um outro convite para te transmitir.
A solenidade do tom fez estremecer o compositor.
- Após todos estes anos de pesquisas, de sucessos e de insucessos, após os teus
contactos com pedreiros-livres de diversas tendências, após as tuas
significativas
leituras, desejas prosseguir sozinho o teu caminho, ou queres tentar transpor o
limiar do templo?
Por um instante, Wolfgang fechou os olhos.
- Há tanto tempo que eu esperava por esta pergunta!
- Qual é a tua resposta?
- Transpor o limiar do templo é o meu mais profundo desejo.
- Antes, porém, terás que te submeter a uma derradeira prova. Caso falhes, não
nos tornaremos a ver.
63.
Viena, 14 de Outubro de 1784
Incapaz de retomar O Ganso do Cairo, Wolfgang regressou a um género musical que
não praticava há seis anos: a sonata para piano159. Ele dedicou a nova obra à
sua
aluna Theresa von Trattner e escolheu a tonalidade trágica de dó menor para
exprimir a ansiedade de poder vir a falhar e a violência do seu desejo
espiritual. A
música era arquejante, segmentada, efervescente. Acabaria tal fogo por queimá-lo
ou por iluminá-lo?
Não o tendo Thamos prevenido com relação à natureza da prova que o aguardava,
Wolfgang não sabia como preparar-se para ela.
A espera era simultaneamente esperança e angústia. Esperança de vir a descobrir
um novo universo e de entrever por fim a Luz, angústia de poder vir a ser
rejeitado
para todo o sempre. Porque não haveria segunda hipótese.
Ficar à espera sem data marcada... Que suplício! Mas não seria isso parte da
própria prova?
Lyon, 15 de Outubro de 1784
275
msbad. Quanto aos escassos Supremos Professos que celebravam as cerimónias
místicas, esperavam pela criação dos rituais que se destinavam a toda a
Maçonaria, como
fora prometido ao Grão-Mestre Fernando de Brunswick.
Willermoz tinha todos os trunfos na mão. Bastava jogá-los para ganhar
definitivamente a partida.
Um único Irmão duvidava desse triunfo: ele próprio. Ao ler os primeiros
rascunhos dos seus próximos, aos quais confiara a tarefa de redacção daqueles
novos rituais,
Willermoz ficara profundamente desapontado. A vitória de Wilhelmsbad
afigurava-se inútil e estéril, dado que eles seriam incapazes de tirar proveito
da vantagem
que haviam alcançado. Ter ido caçar para a coutada dos alemães só traria
dissabores a Willermoz e aos seus adeptos. Mais valia confinarem-se ao seu
domínio reservado.
Willermoz decidiu esquecer a promessa feita a Fernando de Brunswick. O
Grão-Mestre que se desenvencilhasse sozinho.
- O conde Phénix deseja ver-vos - anunciou um dos seus discípulos. - Ele está
instalado no Hotel da Rainha, no cais Saint-Clair, e afirma estar na posse de
informações
essenciais.
Intrigado, Jean-Baptis te Willermoz dirigiu-se até à morada indicada. O seu
Página 130
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
interlocutor revelou-se de imediato.
- Eu, Cagliostro, irei fundar aqui uma Loja do meu Rito egípcio. Ajudai-me a
recrutar adeptos, e em troca eu comunico-vos os meus segredos.
- Quais são os vossos segredos?
- Quais são os vossos, distinto Irmão?
- Falai primeiro.
- Isso está fora de questão, já que eu sou o Supremo Copta, superior de todos os
pedreiros-livres! Se sois conhecedor dos Supremos Mistérios, falai sem receio.
- Os meus discípulos só reconhecem a minha autoridade - lembrou Willermoz. - Se
desejais implantar o vosso Rito em Lyon, tereis de vos submeter a essa
autoridade
e tereis de revelar-me os vossos rituais para que eu me pronuncie sobre a vossa
legitimidade.
- Não compreendo as vossas exigências, Irmão, mas tendes de admitir as minhas! O
nosso bom entendimento tem de repousar sobre a confiança e a entrega mútua.
276
- Tratemos, antes de mais, de saber se falamos a mesma linguagem. Acreditais na
natureza divina de Jesus Cristo?
Cagliostro meditou sobre o assunto.
- Cristo é filho de Deus, filósofo e iniciado, mas não é ele próprio Deus.
O rosto afável de Willermoz endureceu.
- Tal pensamento é herético e condenável.
- Vós sois pedreiro-livre, Irmão! Exercei o vosso sentido crítico.
- Labutais no erro, Cagliostro, e desse modo demonstrais que não passais de um
impostor. Na realidade, não possuis segredo nenhum e dispersais os espíritos,
afastando-os
de Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Errais ao desprezar o meu saber, Willermoz. Vós é que sois um impostor!
Enganais os vossos Irmãos, tornando-os escravos de uma religião limitada.
- O vosso discurso miserável põe em evidência a vossa mediocridade. Sabei,
senhor, que eu tenho a capacidade de lançar exorcismos contra os perversos como
vós. Pagareis
bem caro as vossas palavras ignóbeis, podeis estar certo disso.
Cagliostro irritou-se.
- As vossas ameaças não me atingem. Não tenteis praticar a vossa magia negra
contra mim, pois ela ser-vos-ia devolvida em cheio!
- Havemos de ver qual de nós é mais forte.
Inimigos inconciliáveis a partir daquele momento, os dois homens trocaram
olhares de desafio.
Viena, 31 de Outubro de 1784
Para celebrar o aniversário do seu professor, os alunos de Mozart tinham
organizado um pequeno concerto no grande apartamento da Domgasse. O pintassilgo
Star apreciou
o talento dos intérpretes, com excepção do de um convidado parisiense, o barão
Bagge, que se cobriu de ridículo ao tentar interpretar um concerto para violino
muito
para além das suas capacidades.
Ao mesmo tempo que se unia de bom grado à hilaridade geral, Wolfgang tinha o
espírito ausente, pois pensava na inquietante prova anunciada por Thamos. O que
iriam
exigir dele, que qualidades deveria
277
demonstrar? Wolfgang passara a dormir mal, duvidava das suas capacidades e
perguntava-se se seria realmente apto para trabalhar com seres cujos
conhecimentos eram
infinitamente superiores aos seus!
Caso falhasse, que desespero! Não se punha, no entanto, a questão de desistir.
Ele enfrentaria os seus juizes, quem quer que fossem, e não esconderia nada da
sua
personalidade, nem das suas ideias, nem dos seus sentimentos.
Os seus hóspedes acabavam de se despedir, Wolfgang estava a fechar as portadas
interiores do seu apartamento, quando vislumbrou, na rua, a silhueta de Thamos,
Página 131
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
o
egípcio.
Correu logo ao seu encontro.
-Já pensaste bem, Wolfgang?
- Não faço outra coisa, e até deixei de compor!
- Continuas decidido a tentar a aventura?
- Sempre!
- Nesse caso, tenta descansar um pouco. A prova decisiva terá lugar nesta mesma
noite.
64.
Viena, 1 de Novembro de 1784
Um homem idoso que ele não conhecia vendou os olhos de Wolfgang, tomou-lhe a
mão, introduziu-o numa sala que parecia muito vasta e ajudou-o a sentar-se numa
cadeira.
- Profano - articulou uma voz muito severa -, sois acolhido num templo. Aqui
estão reunidos Irmãos à procura da Luz e do conhecimento. Eles querem sondar o
vosso
coração e o vosso espírito para saber se desejais verdadeiramente partilhar a
Busca que eles conduzem. No término desta prova, tomaremos uma decisão unânime.
Ou
os nossos caminhos se apartarão, ou sereis admitido no seio da nossa comunidade,
e este julgamento não terá apelo. Eis a primeira pergunta: o que é a iniciação?
Wolfgang teve a impressão de responder de forma lamentavelmente atabalhoada. Não
conseguia achar os termos adequados, misturava as ideias e não conseguia
exprimir-se
como teria desejado. Graças à presença da venda, contudo, ele olhava para dentro
de si próprio e permanecia concentrado.
Apesar da intensidade daqueles momentos, apesar do medo de falhar e da
necessidade de responder às numerosas e variadas perguntas que lhe eram feitas a
respeito
dos seus pensamentos, da sua existência, dos seus gostos, da sua concepção da
música, das suas qualidades, dos seus defeitos, e de muitos outros temas,
Wolfgang
sentiu um certo distanciamento, como se nada daquilo lhe dissesse directamente
respeito.
279
Em seu redor, não sentia nenhuma energia negativa, mas antes seres que o
escutavam com atenção e que, longe de o julgarem, procuravam compreendê-lo e
saber se ele
conseguiria seguir o caminho iniciático.
- Agradecemos a vossa colaboração e a franqueza das vossas respostas - concluiu
a mesma voz grave. - Sereis reconduzidos até ao exterior. Daqui a algum tempo,
ficareis
ciente do resultado da nossa votação.
Ajudaram Wolfgang a levantar-se e a sair da sala. Em seguida, o mesmo homem
idoso retirou-lhe a venda e, sem proferir palavra, abriu-lhe a porta da casa
para a qual
fora convocado.
Chovia.
Wolfgang não voltou logo para a sua casa, pois sentia vontade de vaguear pelas
ruas de Viena.
Agora, o seu destino estava selado. Caso a Loja recusasse a sua candidatura, ele
não poderia transpor o limiar do templo e nunca mais voltaria a ver Thamos, o
egípcio.
Caso os Irmãos o acolhessem entre eles, começaria uma vida nova, uma vida capaz
de conferir sentido a todas as suas experiências passadas, capaz de abrir-lhe
novos
horizontes, de cuja presença ele tinha uma vaga consciência, sem contudo
conseguir vê-los claramente.
O seu destino estava selado, e ele por enquanto ignorava a decisão. Como
poderia, naquelas condições, conciliar o sono?
Viena, 2 de Novembro de 1784
Página 132
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Tens os olhos vermelhos, mas estás muito pálido! - observou Constance,
inquieta. - Estás doente?
- Não, dormi mal.
- Por causa do teu estranho serão?
- Não podes imaginar o peso da incerteza! É uma prova dura ser o último a saber!
Wolfgang foi improvisar para o cravo. Seduzido pela melodia, o pintassilgo Star
começou a cantar. Seria um bom sinal?
- Vou passear.
280
Não conseguindo concentrar-se nem ficar quieto num sítio, o compositor sentia
vontade de andar até ficar esgotado.
Diante da catedral de Santo Estêvão, encontrou Thamos.
- Belo dia - considerou o egípcio. - Um sol generoso, uma temperatura aceitável.
Wolfgang foi incapaz de reter a pergunta que lhe queimava os lábios. -Já
tendes... o veredicto?
- Claro que tenho, já que estou aqui.
- E aceitais... comunicar-mo?
- Aceitar não é o termo exacto.
- Qual deverei então usar?
- Na realidade, Wolfgang, os meus Irmãos encarregaram-me da tarefa de te
anunciar o resultado das suas deliberações.
Como rosto de Thamos se mantinha insondável, o compositor temeu o pior.
Não, não era possível... O seu sonho não podia desmoronar assim, num único
segundo!
Thamos pousou a mão no ombro do Supremo Mago.
- A Loja Para a Beneficência decidiu proceder à tua iniciação. Wolfgang estava
incapaz de exprimir aquilo que sentia. Tratava-se de uma alegria inédita, tão
forte
que dava a sensação de estar a voar por cima das montanhas.
- Este é o início de uma longuíssima viagem, não é um ponto de chegada -
preveniu o egípcio.
- Se soubésseis...
- Eu sei, Wolfgang. Também eu vivi um momento semelhante. Não esqueças nunca o
seu sabor. Os iniciados desiludem-nos amiúde, mas a iniciação, ela, nunca te
há-de
desiludir. Resta agora cumprir uma formalidade: a tua carta de candidatura.
- Quando serei iniciado?
- A Loja escolherá a data.
- Não demorará muito? Thamos sorriu.
- Espero que venhas a festejar o mais belo Natal da tua vida.
281
283
A pequena Loja Para a Beneficência funcionava nas instalações da sua Irmã maior,
Para a Verdadeira União, ela mesma filial da importante e influente Loja Para a
Esperança Coroada. Ignaz von Born controlava o conjunto daquelas Lojas. Thamos
tinha escolhido a Beneficência para que Mozart fosse recebido numa espécie de
casulo,
antes de vir a descobrir a complexidade do mundo maçónico.
Como mandava o costume, o músico, inscrito no registo sob o número 20, receberia
a iniciação com um "gémeo", neste caso um religioso, Wenzel Summer, capelão em
Erdberg.
Esperava-se que esta aliança simbólica viesse a afastar, tanto de um como do
outro, os malefícios do destino.
Thamos, o egípcio, acolheu Wolfgang. Conforme as exigências do abade Hermes, ele
trouxera o Supremo Mago até o limiar daquele templo no qual, mercê das pesquisas
e da formulação ritual de Ignaz von Born com base no Livro de Tot, Mozart
receberia uma autêntica iniciação.
A missão do egípcio, todavia, não findava ali. Após a sua recepção na Loja,
muitas provações aguardavam Wolfgang. Conseguiria ele manejar os instrumentos
colocados
à sua disposição, traduzir em música a tradição iniciática e criar uma linguagem
sagrada acessível para todos, para além dele próprio e da sua época?
- Eu sou o teu padrinho e vou conduzir-te até ao centro da Terra, onde ficarás a
meditar.
287
Thamos levou Wolfgang até uma pequena divisão cujas paredes cobertas de
reposteiros negros eram iluminadas por uma única vela.
O Noviço teve a sensação de se encontrar no centro de uma gruta. Sentou-se sobre
uma pedra cúbica, em frente de um altar no qual figuravam diversos símbolos.
Perto da vela havia um crânio. A luz e a morte, a luz ou a morte... O "homem
velho", qualquer que fosse a sua idade, tinha de desaparecer e dar lugar a um
novo ser.
A ampulheta e a foice passadas em aspa simbolizavam a inexorável passagem do
tempo e a acção de Saturno, que separava o essencial do supérfluo. Não se tinha
Wolfgang
perdido por centenas de caminhos ínvios, não tinha ele sucumbido à tentação da
superficialidade?
O pedaço de pão e a garrafa de água forneciam-lhe os alimentos indispensáveis
para a sua Busca. Quanto às três tigelas cheias de sal, de enxofre e de
mercúrio, elementos
Página 136
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
fundamentais do processo alquímico, elas ofereciam-lhe a possibilidade de
começar a preparação da Obra Maior, da qual ele seria em simultâneo o artesão e
a matéria-prima.
Nas paredes estavam escritas as seguintes fórmulas: "Conhece-te a ti mesmo", "Se
foi a curiosidade a trazer-te aqui, vai-te embora", e o termo alquímico
V.I.T.R.I.O.L.162
cujas letras correspondiam às iniciais de palavras latinas que formavam uma
frase, com o significado de "Visita o interior da Terra, corrige-te, e
encontrarás a
pedra escondida".
No âmago daquela matriz, ao abrigo da Terra-Mãe, Wolfgang sentia-se em perfeita
segurança. Viajava imóvel. Como poderia corrigir-se a si próprio? A introspecção
não era suficiente. Precisava de um ensinamento de ordem iniciática, que não
levava à melhoria individual, mas antes à pedra escondida.
Esta jazia no coração do Verbo, da palavra transmitida em espírito e em verdade.
Acima de um galo, cujo canto saudava o renascimento da luz vitoriosa sobre as
trevas, ondulava um listel com duas palavras inscritas: "Vigilância" e
"Perseverança".
Wolfgang atravessava o tempo e o espaço. Não vivia ele no interior da pedra
escondida, de que se tinha tornado um dos elementos consti-
Visita ao Interior da Terra. Rectificandoque Invenies Occultum iMpidem.
288
tutivos? Absorvido pela chama, ele situava-se na origem da criação, naquele
instante em que o pensamento divino tomava corpo sob a forma de um ar luminoso
capaz
de fecundar todos os materiais.
Aqui se exprimiam o eterno e o imutável. Nada os corromperia, nem mesmo a
presença de um profano.
A porta abriu-se.
Como esta meditação fora breve! Wolfgang teria gostado de passar longas horas
naquele sítio e de se impregnar daquela Terra matricial na qual se preparava o
seu
renascimento.
- Noviço - perguntou Thamos -, desejas prosseguir no caminho?
- Desejo.
- Deverás submeter-te a duras provas. Mesmo com plena consciência do perigo,
continuas a querer prosseguir?
- Continuo!
- Pensa bem na tua decisão, Noviço. Ainda podes voltar para trás.
- Aceito as provas.
-Já que assim é, iremos despir-te dos teus metais e preparar-te ritualmente para
que possas receber outras purificações.
Wolfgang compreendeu que os seus "metais" não se limitavam ao seu relógio, a sua
caixa de tabaco, as suas jóias ou outros objectos metálicos. Estavam a
retirar-lhe
tudo o que nele era rígido, os seus preconceitos e as suas barreiras, de maneira
a criar um ser novo, livre desses pesos. Mas a ausência dessa armadura tornava-o
mais frágil, expunha-o às agressões exteriores. Teria ele forças para resistir?
Despido o bonito fato, ficava abandonado o elegante traje que tão cuidadosamente
cobria o corpo e a alma, que servia de máscara e que permitia ao seu utente
pavonear-se
numa sociedade em que reinavam a hipocrisia e as convenções.
Thamos não lhe despiu a camisa, mas abriu-a de maneira a deixar à vista o lugar
do coração. Pôs-lhe também a descoberto o joelho direito, revelando assim o
ângulo
de Pitágoras, e o pé esquerdo; em seguida, ligou-lhe a perna, obrigando-o a
coxear. Por fim, passou-lhe uma corda em redor do pescoço e vendou-lhe os olhos.
Do orgulhoso Mozart restava agora apenas um indivíduo disforme e cego.
289
Thamos tomou-lhe a mão.
- Sozinho, és incapaz de avançar. Se o teu coração é puro, se desejas agir e não
Página 137
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
reagir, deposita a tua confiança no teu guia. Graças a esta venda, aprende a ver
para lá do que é visível. Podemos avançar?
Wolfgang anuiu com a cabeça.
67.
Viena, 14 de Dezembro de 1784, Loja Para a Beneficência
Três pancadas soaram numa porta que se abriu com grande barulho.
Apertando com força a mão de Thamos, Wolfgang viu-se obrigado a avançar. De
repente, a ponta de um objecto metálico tocou no seu peito.
- Retirai esse gládio! - ordenou o egípcio - Este Noviço não constitui ameaça
para a existência da nossa Loja.
- Comprometes-te a guiá-lo? - interrogou uma voz severa.
- Fico por fiador de Wolfgang Mozart.
- O que deseja ele?
- Ver a Luz, ser iniciado nos nossos mistérios e participar nos nossos
trabalhos.
- Ele é livre e de bons costumes?
- Assim sou! - afirmou Wolfgang.
Ele conquistara a sua liberdade. E, diante de Deus, podia jurar que o seu
comportamento sempre fora irrepreensível.
- Se atraiçoardes a nossa confraria - retomou a voz severa -, o gládio perfurará
o vosso peito. É mesmo em toda a liberdade e de inteira vontade que solicitais a
iniciação?
- Em toda a liberdade e de inteira vontade!
- Pensai com cuidado na gravidade da vossa iniciativa. Ela exigir-vos-á coragem
e vontade. Sereis vós capaz delas?
- Assim serei.
291
que detém os corações manda mais do que aquele que domina os corpos. Podeis
fazer uso desse poder para honrar a Humanidade, e cabe-vos propalar a principal
virtude,
o amor fraternal. Podereis assim provar que não sois escravo do título de
sacerdote, mas antes digno da missão de melhorar os homens, ensinando-lhes que o
único
e verdadeiro serviço de Deus consiste num coração puro e nobre, na bondade, na
suavidade de carácter, na tolerância e na beneficência.
Sabendo que o arcebispo Migazzi não diferia muito de o Grande Mufti Colloredo,
Wolfgang apreciou este discurso. Em contrapartida, o do Venerável Otto von
Gemmingen
deixou-o perplexo.
- O objectivo da Maçonaria consiste em melhorar o bem-estar da sociedade. Numa
única palavra, a nossa Ordem deve ser essencialmente prática. Toda a especulação
que
persegue ideias desprovidas de finalidade acaba por perder-se em abstracções
demasiado intelectuais e esgota-se no domínio de conhecimentos desprovidos de
aplicações,
o que é profundamente contrário ao espírito da Maçonaria. Esta não nos
transforma em novos homens, nem nos leva a adquirir qualquer carácter místico.
Nós desejamos
elevar-nos acima da nossa própria insuficiência e da nossa fraqueza para que
possamos melhorar enquanto seres humanos. A Maçonaria depura os sentimentos,
atiça o
amor pela Humanidade, pela beneficência e pela rectidão. Ela encoraja cada um
dos seus membros à prática da virtude, inculca neles o dever de empregar todas
as suas
forças físicas e morais para o bem da Humanidade, corre a auxiliar a inocência
oprimida, oferece assistência e consolo aos infelizes. A Maçonaria põe assim em
funcionamento
inúmeros meios e processos para agir e para mostrar-se útil para o género
humano163.
163 Para estas declarações, ver a documentação reunida por Philippe A. Autexier
(cf. Bibliografia).
69.
Viena, 15 de Dezembro de 1784
Página 141
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Já que era impossível ir dormir depois de um evento daquele género, Wolfgang
convidou Thamos para ir beber um pouco de punch e não hesitou em interrogar o
seu convidado.
- Por que é que o Venerável minimizou o papel da espiritualidade? O ritual de
iniciação parece apontar precisamente na direcção oposta!
- Estás já a aplicar a primeira directiva: vigilância. Otto von Gem-mingen
assemelha-se à maior parte dos Irmãos, que vêem na Maçonaria apenas um movimento
humanista.
Não se deve desprezar tal componente, claro, mas o objectivo da iniciação vai
muito além. Nascida no Oriente eterno, a arte real dos pedreiros-livres vê-se
amiúde
rebaixada pelos humanos ao medíocre nível deles. Somente a pedra é lisa, isenta
de qualquer defeito, ao contrário do indivíduo.
- Mas não é o Homem digno da iniciação?
- Os Antigos pediam-nos que agíssemos como agem os deuses, que calcássemos os
nossos passos pelas suas peugadas, que celebrássemos os ritos para que o poder
criador
permaneça na Terra. As crenças acabaram por submeter a consciência, impondo
verdades reveladas que nos afastam do conhecimento. Ao transpor a porta de uma
Loja,
mesmo que ela seja imperfeita e composta por humanos limitados, estás a ligar-te
à Tradição iniciática, que é a própria essência da vida, para lá das nossas
efémeras
existências temporais. O homem não passa da sombra do Homem, Ser masculino e
feminino que tem a di-
299
mensão do cosmo. Para perceber tal realidade, deves seguir a via alquímica das
transmutações, cujos primeiros elementos te foram ensinados na gruta primordial.
Os dois Irmãos conversaram a noite toda. Wolfgang sentia que tinha ainda
milhares de perguntas a formular, desejoso como estava de aprender a
linguagem dos símbolos e de se familiarizar com o templo, ao mesmo tempo aberto
sobre o cosmo e fechado como um atanor NT
301
parece-me decisiva, pois orienta a maçonaria em direcção ao conhecimento dos
Mistérios e põe em evidência a pobreza das nossas ideologias. Geytrand
partilhava o
ponto de vista do seu superior e lamentava ainda mais ter deixado uma Maçonaria
que seguia por aquele caminho. Geytrand haveria de destruir quanto não podia
possuir.
- O director deste pasquim, Blumauer - indicou -, é amigo de Mozart.
- Referes-te àquele músico cuja ficha abri no outro dia?
- Pois digo-vos que essa ficha há-de ficar bem preenchida, senhor conde, pois
Wolfgang Mozart acaba de ser recebido como Aprendiz na pequena Loja Para a
Beneficência.
70.
Viena, 24 de Dezembro de 1784
Thamos levou o seu Irmão Wolfgang para uma Sessão na importante Loja vienense
Para a Verdadeira União, onde, nessa noite, era recebido Anton Aponyi. Tão pouco
tempo
depois da sua própria iniciação, o novo Aprendiz tinha assim a sorte de poder
reviver o ritual, desta vez sem ter os olhos vendados. Em vez de ser submetido
ao ritual
na condição de Noviço, assistia agora a ele enquanto Irmão, podendo assim gozar
cada instante.
Em primeiro lugar, Wolfgang descobriu a Loja, vasta sala rectangular iluminada
por um candelabro suspenso por uma corda, por candeeiros fixos às paredes, e por
Página 143
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
palmatórias
a Oriente, onde o Sol ao norte e a Lua a sul enquadravam o Delta. O Sol
encarnava a claridade no coração das trevas, início da obra alquímica, a Lua
correspondia
à acção certa no momento certo, ao passo que o Delta representava o pensamento
ternário, instrumento usado pelo Supremo Arquitecto para moldar o Universo.
O Venerável164 Ignaz von Born causou profunda impressão sobre Wolfgang. Cara
alongada, ampla testa, olhos negros, o Mestre da Loja exalava mais imponência e
autoridade
do que o próprio imperador. Perto dele havia, sobre uma bandeja, a espada
iluminadora com a qual ele criava iniciados, e o maço de construtor no qual se
encerrava
o relâmpado.
164 Também se lhe dá o nome, na Alemanha, de Meister von Stuhl, Mestre de
Cátedra.
303
Emanações do Venerável, os outros "oficiais" da Loja organizavam-se segundo um
corpo de funções, símbolos das forças criadoras em constante actuação. Cada um
desempenhava
um papel preciso ao serviço do conjunto.
Wolfgang prestou uma atenção particular ao exame do "pavimento em mosaico",
quadrado longo formado por lajedos negros e brancos alternados. Não residiria aí
uma
alusão ao rectângulo da Génese, à metamorfose constante, ao próprio jogo da
vida?
O dia e a noite, a palavra e o silêncio, e todas as outras oposições... Não
tinha o iniciado o dever de ultrapassar a dualidade e conciliar os extremos?
Orgulhoso por vestir um avental que recordava tanto o carácter operativo da
Maçonaria como a edificação do templo enquanto uma das suas principais tarefas,
Wolfgang
recebera também o emblema da sua Loja, um pequeno esquadro suspenso por uma fita
azul.
O músico assistiu pela primeira vez a uma Abertura dos Trabalhos, que evocava o
nascimento da Luz e a criação do mundo, e em seguida presenciou a recepção de
Anton
Aponyi, contemplando, agora de olhos bem abertos, as diferentes etapas que ele
próprio havia anteriormente percorrido.
O Irmão Franz Saurau acolheu o novo Aprendiz, aconselhando-o a não conferir
importância às vantagens do berço, a não se alegrar com riquezas e honrarias,
ambas devidas
às circunstâncias e não ao mérito, e a não se deixar impressionar com as ameaças
e as intrigas dos profanos que podiam ser poderosos, mas cujo pensamento não
podia
ser elevado.
Poeta e secretário do teatro da corte, Johann Baptist Alxinger folgou de se
encontrar com o autor de O Rapto do Serralho e exprimiu-lhe o desejo de que
escrevesse
o quanto antes uma nova ópera, na qual não deixariam de participar diversos
Irmãos, fosse como cantores, fosse como músicos.
Falou em seguida Angelo Solimão, que se jactou de ter apresentado a candidatura
de Ignaz von Born àquela mesma Loja de que agora este era Venerável. Wolfgang
não
apreciou nada a maneira como este Irmão procurava destarte chamar a atenção para
a sua própria importância. Achou mais interessante, na verdade, trocar algumas
impressões
com Johann Michael Puchberg, mercador de tecidos. Membro da Loja da Palmeira,
este tinha sido nomeado tesoureiro da Verdadeira União.
304
- As minhas actividades comerciais não impedem de gostar de música - revelou o
jovial personagem de 43 anos. - Espero que aprecieis as sedas, os veludos e as
fitas!
- A minha mulher recorrerá a vós para obter conselhos sobre a decoração da nossa
casa.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
- Eu também vendo as melhores luvas de Viena - acrescentou Puchberg -, e estou
certo de que ela as achará conformes ao seu gosto. Ah! Meu caro Mozart, a
existência
nem sempre é fácil! Eu estava contentíssimo a trabalhar junto do meu antigo
patrão, que faleceu em 1777. Para salvar o seu estabelecimento comercial,
tornei-me gerente,
e o destino quis que eu viesse a casar com a sua viúva. Agora, dou por mim
proprietário e cheio de assuntos por resolver. Felizmente, aqui na Loja, tenho
encontrado
gente simpática e consigo esquecer as minhas pesadas responsabilidades. O mesmo
acontecerá convosco, vereis! A maçonaria é uma instituição maravilhosa, que
devia
existir em todo o mundo. Graças a ela, os homens tornam-se menos egoístas e
aprendem a ajudar-se uns aos outros. Em todo o caso, se algum dia tiverdes
problemas,
não hesitai em solicitar o meu auxílio. Sendo a riqueza um dom de Deus, devemos
agradecer-Lhe prestando ajuda aos nossos Irmãos.
- Espero nunca precisar de vos importunar.
- Com a ascensão da vossa glória, cedo tereis toda Viena aos vossos pés!
Wolfgang descobria Irmãos muito diferentes uns dos outros, e tal diversidade
parecia-lhe apaixonante.
Findos os Trabalhos, Thamos apresentou Wolfgang ao Venerável Ignaz von Born.
- Conto com a tua assiduidade, Irmão Mozart.
- Podeis estar certo dela, Venerável Mestre.
Thamos entregou ao músico um exemplar do Jornal para os Pedreiros-Livres no qual
estava publicado o artigo sobre os mistérios egípcios.
- Ao leres este texto, reencontrarás uma série de elementos que já usaste e que
voltará a usar.
- Thamos, Rei do Egipto... Esse esquiço de ópera continua a atormentar-me!
- Tens ainda muito para descobrir, Irmão - indicou Von Born. - Aceder aos
Supremos Mistérios é uma tarefa que exige um esforço considerável, de que bem
poucos são
capazes.
71.
Viena, 25 de Dezembro de 1784
Tanto Constance como o pintassilgo Star repararam na mudança que ocorrera em
Wolfgang. Uma nova luz iluminava o seu olhar.
- A porta do templo foi-me aberta - revelou à sua mulher -, e eu comecei a
percorrer um longuíssimo caminho.
Wolfgang escreveu ao seu pai165 para evocar o evento que acabava de modificar
tão profundamente a sua existência. Falou-lhe dos ideais da Maçonaria e das
infindáveis
riquezas fornecidas pela iniciação.
Muita gente poderosa e muitos grandes senhores eram pedreiros-livres, revelou.
Dentro da Loja, eles esqueciam títulos e privilégios, tornando-se Irmãos. E ele,
simples
músico, era assumido como um igual. Cada qual tinha o seu lugar, em função da
sua antiguidade maçónica e do seu grau simbólico.
Perceberia Leopold a importância de tais descobertas? Caso a resposta fosse
positiva, Wolfgang continuaria a abrir-lhe o seu coração.
Viena, 26 de Dezembro de 1784
Por ocasião de uma breve estada de Joseph Haydn em Viena, Wolfgang não resistiu
a falar-lhe do essencial.
165 Todas as cartas de Mozart, nas quais evocava a Maçonaria, desapareceram,
tendo provavelmente sido destruídas.
306
- Acabo de viver momentos extraordinários.
- Tendes um ar transtornado, com efeito. Não foi nada de grave?
- Pelo contrário, uma felicidade fabulosa!
- Deixai-me adivinhar: o imperador encomendou-vos uma ópera em alemão?
- Melhor ainda!
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Haydn esforçou-se em vão.
- Tornei-me Aprendiz de Pedreiro-livre - declarou Mozart. O mestre ficou
intrigado.
- Em Viena, falam muito dessa sociedade secreta. Segundo diversos ecos, o
imperador aprova a sua existência porque ela se mostra favorável à sua política
liberal
e não se coíbe de criticar uma Igreja fechada a qualquer ideia de progresso.
- A iniciação vai muito para além dessas questões temporais - afirmou Wolfgang.
- Ela leva até à Luz e ao conhecimento, abre os espíritos para realidades
insuspeitas.
- O mundo que estais a descrever parece-me demasiado maravilhoso.
- E pode mesmo tornar-se tal, caso deixemos de estar cegos para passar a
contemplar o universo dos símbolos e a falar a linguagem da fraternidade.
- A fraternidade... Não será ela uma utopia?
- Sem a iniciação, sê-lo-á certamente. Mesmo com a iniciação, continua a ser um
ideal difícil de atingir! Mas a Loja despoja-nos dos nossos artifícios e das
nossas
máscaras. Um músico não será um construtor ao serviço do Supremo Arquitecto do
Universo?
- Achais mesmo que essa iniciação vos permitirá aprofundar a vossa arte?
- Tal é a minha opinião. E ficaria feliz em poder contar convosco como um dos
meus Irmãos.
O aspecto directo do convite, característico de Mozart, não chocou JosephHaydn
que, também ele, detestava subentendidos e circunlóquios.
- Se estou a perceber correctamente, vós ireis advogar a minha causa!
- Será tarefa fácil, pois todos vos estimam e vos admiram. Bastar-vos-á
apresentar a vossa candidatura.
307
Página 146
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Apesar do conforto do seu coche, o príncipe Carlos de Hesse, alçado a cabeça
dirigente da Estrita Observância, sentia-se cansado. Tinha sofrido uma forte
desilusão
ao ver morrer nos seus braços o imortal conde de Saint-Germain. Falso
alquimista, esse aventureiro oportunista não tinha segredo nenhum em seu poder.
E a publicação de um panfleto anónimo, São Nicásio ou Colecção de Notáveis
Cartas Maçónicas para Uso dos Franco-Maçons e daqueles que o não são, tinha
vindo desferir
um rude golpe na Ordem templária. Este texto atacava os principais dignitários e
os seus aliados franceses, acusados de terem manipulado o capítulo de
Wilhelmsbad.
O barão de Hund, fundador da Ordem, era apresentado como um burlão e um
mentiroso. O que pretendiam ao certo esses pedreiros-livres tão estúpidos que
acreditavam
numa lenda cavaleiresca? Recuperar os territórios dos templários e reconstituir
o seu imenso tesouro! Na verdade, os ingénuos Irmãos tinham pago enormes somas
aos
seus dirigentes, sem nada receber em troca, e viam-se agora desamparados e
desiludidos.
Os segredos? Uma gigantesca burla! E quem era Fernando de Brunswick, o
Grão-Mestre? Não passava de um militar de segunda linha, derrotado em 1760,
durante a Guerra
dos Sete Anos, e de um déspota agarrado aos seus títulos sonoros, desprovido de
qualquer visão do futuro.
309
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
Geytrand ficou desiludido e espantado.
Ele conhecia perfeitamente o prédio oficial cuja entrada foi transposta pelo
indivíduo: era a sede da polícia.
Viena, 31 de Dezembro de 1784
73.
Viena, 1 de Janeiro de 1785
313
- Achas... que ele poderia entrar nela?
- Um filho responsável pela iniciação do seu próprio pai... Que belo sonho! Mas
não chegámos a esse ponto. Vou responder com todos os pormenores às suas
perguntas.
- Será que Nannerl lê as tuas cartas?
- Não creio.
- Desconfia, Wolfgang. Ela odeia-me e não gosta lá muito de ti.
- Ela tem um feitio um bocado mau, lá isso tenho de admitir, mas não deixa de
ser minha irmã. Juntos, percorremos a Europa inteira.
- Ela tem inveja de ti. Por causa do teu génio, o talento dela como pianista
ficou ofuscado. Mais cedo ou mais tarde, ela há-de te fazer pagar por essa
humilhação.
- Achas que ela é assim tão rancorosa?
- Mais ainda!
Um pouco triste, Wolfgang foi até uma janela para contemplar o céu.
- As nuvens estão a dissipar-se, um passeio fazia-nos bem.
Viena, 2 de janeiro de 1785
Os repastos da quadra festiva tinham feito engordar de forma visível o barão
Gottfried van Swieten, que não deveria tardar a seguir uma dieta. Ao saber da
iniciação
de Mozart, tinha felicitado o longo trabalho realizado por Thamos e por Von Born
no sentido de conduzir o Supremo Mago até ao templo onde acharia as chaves para
o seu florescimento.
O barão continuava a questionar-se sobre as verdadeiras intenções do imperador.
A hostilidade do soberano com relação ao arcebispo de Viena, à Igreja
esclerótica
e aos mosteiros inúteis era indubitável, mas a sua posição em relação à
Maçonaria permanecia ambígua. Ser-lhe-ia o monarca verdadeiramente favorável, ou
contentar-se-ia
Página 149
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
em usá-la como instrumento propício para a sua política, prestes a descartá-la
quando deixasse de ter utilidade?
No decurso de um almoço com um alto funcionário, Van Swieten beneficiou de
confidências inesperadas.
- O chefe da polícia acaba de levar nas orelhas.
- A conta de quê?
314
- Uma investigação mal conduzida, de que o imperador não gostou mesmo nada. Caía
sobre um conde a suspeita de dirigir uma espécie de serviço, mais ou menos
secreto,
encarregado de vigiar os nossos bons pedreiros-livres. Inverosímil, não achais?
- Absolutamente grotesco.
- Se fosse verdade, imaginai o escândalo! Há muitos notáveis que pertencem a
essa honrosa sociedade e que não apreciariam nada ser tratados como suspeitos de
sabe-se
lá que crimes!
- Achais que o chefe da polícia acreditou mesmo na existência de tal serviço?
- Uma investigação rotineira despertou a sua atenção?
- E sobre quem incidiram as suas suspeitas?
- Sobre o conde de Pergen, aristocrata de indiscutível probidade, que goza de
uma excelente reputação. Pós ter servido fielmente a defunta imperatriz, tem-se
mostrado
de uma lealdade exemplar em relação ao imperador, e não tem de modo algum o
perfil de um espião tortuoso!
- Não veio à baila o nome de mais ninguém? - perguntou o barão van Swieten.
- Felizmente, não! Como vos estava a dizer, o chefe da polícia foi chamado à
ordem para pôr termo a essas ridículas investigações. Os pedreiros-livres
aprovam sem
reservas a política de José II e ajudam-no a lutar contra o obscurantismo.
Persegui-los revelar-se-ia como um erro trágico!
Van Swieten teve o cuidado de passar à discussão de outros temas, como se não se
interessasse particularmente por aquele incidente.
Assim que o almoço findou, foi até à corte para recolher o maior número possível
de informações acerca daquele conde de Pergen.
Teria o barão acabado de identificar a alma danada que, escondida nas trevas,
espiava a Maçonaria, desejando a destruição desta instituição?
74.
Viena, 3 de Janeiro de 1785
Geytrand detestava o pedreiro-livre Angelo Solimão, mas pagava-lhe a peso de
ouro para obter informações em primeira mão.
Os dois homens encontravam-se numa casinha dos arredores de Viena, alugada pelo
conde de Pergen sob uma falsa identidade.
- Não fostes seguido, Solimão?
- Ficai descansado, ninguém suspeita de mim! Não serei eu um dos melhores amigos
e apoios de Ignaz von Born, nosso grande patrão? Recebo milhares de confidências
e sou considerado como um dos melhores Irmãos.
Chegado há mais de duas horas, Geytrand tivera tempo de se assegurar de que o
prédio não estava a ser vigiado por ninguém.
- A criação da Grande Loja de Áustria é aprovada pela maior parte dos
pedreiros-livres?
- Não me parece - respondeu Solimão. - Muitos consideram demasiado rígida essa
estrutura administrativa enfeudada ao poder estabelecido.
- O que pensa Von Born?
- Aparentemente, ele entrou no jogo! Mas para não levantar as suspeitas dos
espiões a soldo do arcebispo, Von Born aposta em vários cavalos.
- Exprimi-vos com maior clareza.
316
- Não considerando nenhuma Loja verdadeiramente segura, Von Born repartiu os
seus fiéis e lançou diversos temas de trabalho. Ele observa a evolução das
diversas
oficinas, à espera de eleger aquela que constituirá a ponta de lança da
Página 150
Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
investigação. A criação desta Grande Loja veio contrariar os seus planos, pois o
imperador
deverá ser permanentemente informado acerca das actividades maçónicas.
- Não há nada mais preciso?
- O Supremo Secretário é um homem frio e reservado. Se eu lhe pusesse perguntas
directas, ele estranharia e deixaria de depositar confiança em mim.
- Quero saber o que ele está a preparar.
- Já lestes o seu artigo sobre os mistérios egípcios? Um trabalho notável! Eis
certamente a directiva que ele conta tomar: esquecer as patranhas humanistas e a
apologia
da beneficência, enveredando resolutamente no caminho do esoterismo, da
simbólica e da iniciação.
- Quem o seguirá?
- Um pequeno número de fiéis decididos a sair do marasmo e do conforto mole da
Maçonaria oficial.
- Mas isso é uma subversão!
- Von Born pertence aos Iluminados, tal como muitos outros Irmãos influentes. Ao
mesmo tempo que aprovam a política de José II, contam ir muito para além dela.
- Preparam uma revolução?
- Claro que não! Essa gente tem horror do sangue e da violência. Desejam pôr um
primeiro plano o mérito individual e o valor intrínseco de cada um, esquecendo
os
privilégios conferidos pelo nascimento e pela fortuna. Não será tal programa tão
subversivo quanto uma insurreição armada? Modificar as ideias correntes e as
opiniões
vulgares equivale a mudar o mundo.
- Achais de um punhado de pedreiros-livres seria de facto capaz desse feito?
- Não consiste o vosso trabalho, precisamente, em considerar como sérias as
hipóteses deste género?
Geytrand crispou-se.
- Dispenso os vossos conselhos, Solimão! Eu pago-vos, vós informais-me.
317
- Segundo consta, vós também fostes pedreiro-livre, prometido aos mais altos
cargos. Mas, tendo alguns Irmãos desmascarado a vossa ambição galopante, haveis
atirado
com o avental para o chão do templo e apresentastes a vossa demissão, jurando
que a Maçonaria haveria de pagar por essa desconsideração.
Geytrand sentiu vontade de estrangular o seu interlocutor.
- Desprezo-vos, Solimão!
- Pois eu devolvo-vos na mesma moeda.
- Não interessa, vós precisais de dinheiro.
- É inútil insultarmo-nos mutuamente, somos como irmãos gémeos. Só a cor da pele
marca diferença entre nós. Ah, um pormenor! A partir de hoje, o meu preçário
subiu.
Viena, 3 de Janeiro de 1785
O barão Gottfried van Swieten não podia dar nenhum passo em falso. Primeiro,
tratou de examinar o conjunto de publicações submetidas à censura, na esperança
de encontrar
nelas qualquer texto antima-çónico assinado pelo conde de Pergen.
Em vão.
Depois, foi ter a casa da condessa Thun.
- Pergen? Sim, esse nome não me é estranho... Um alto funcionário sem
personalidade vincada, próximo da defunta imperatriz. Desde a morte de Maria
Teresa, deixou
de se ouvir falar dele.
- Estará ele ligado à polícia?
- Não vos sei dizer, barão.
Van Swieten estava a fazer progressos. Maria Teresa detestava os
pedreiros-livres, e empregava forçosamente homens ocultos encarregados de a
manter informada sobre
a evolução desse perigo. Sem ocupar funções oficiais, o tal conde de Pergen
tinha provavelmente continuado com o seu labor obscuro ao serviço do novo
imperador.
Ir interrogar directamente o chefe da polícia afigurava-se demasiado arriscado.
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Christian Jacq - Mozart 2 - O Filho da Luz.txt
A condessa Thun aconselhou Van Swieten a consultar um velho camareiro da corte,
que
se gabava de conhecer na perfeição os usos e costumes da aristocracia vienense.
O ancião fornecia por vezes informações preciosas.
318
O camareiro recebeu o barão com toda a amabilidade, oferecendo-lhe um excelente
café. Falaram do tempo, das dificuldades de circulação na capital, das
indispensáveis
medidas de economia, e de algumas figuras de Estado.
- Há muito tempo que não vejo aquele caro conde de Pergen - adiantou Van
Swieten. - Parece que ele já não tem qualquer função oficial.
- Desenganai-vos, barão! Após uma longuíssima travessia do deserto, ele acaba de
ser nomeado presidente do governo da Baixa Áustria. Havemos de voltar a vê-lo na
corte quando o seu pesado expediente administrativo lhe conceder tempo para tal.
Trata-se de um alto funcionário perfeito que, obedecendo sempre sem discutir a
qualquer
ordem do imperador, acabará por beneficiar de uma existência aprazível e de
vantagens materiais assinaláveis, retirando-se para as suas terras no fim da
vida, com
a sensação do dever cumprido.
A pista investigada por Van Swieten parecia não levar a lugar nenhum. Uma
personagem que ocupava um cargo tão exposto não podia ser o director de um
serviço secreto
que actuava na sombra. No fundo, talvez o imperador estivesse a manipular a
Maçonaria de forma tão hábil, que poderia contentar-se com as informações
fornecidas
pela simples polícia.
Sentindo-se aliviado, o barão pensou em tranquilizar Ignaz von Born e Thamos, o
egípcio. Não existiam demónios escondidos nas trevas, prontos para estraçalhar a
Maçonaria.
75.
Viena, 4 de Janeiro de 1785
321
BIBLIOGRAFIA
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