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Conta Fernando Sabino numa de suas crônicas a história de dois amigos tomados de
acentuada dose de hipocondria, que disputam a primazia de saber qual deles apresenta
quadro de saúde mais grave. Ao desfiar o rosário de mazelas, hipervalorizam cada
sintoma. "Eu acordei com dor de cabeça", diz um. "Amanheceu?", retruca o outro. "Eu, há
mais de uma semana estou sofrendo com uma enxaqueca." "Tive gastrite", rebate o
primeiro; "Tirei o apêndice e o médico até levou um susto; mais parecia um salsichão de
tão grande", não sossega o segundo.
"Hipocondríaco -- sentencia o escritor -- não tem remédio."
Embora comprovado cientificamente que quem expressa a própria insatisfação e não fica
quieto diante das adversidades está menos suscetível às doenças coronarianas, o ato de
reclamar não se inclui nesta regra. "Há uma diferença entre extravasar o sentimento, não
guardar, e reclamar por reclamar. Neste último exemplo, a reação não agrega nada de
benéfico; ao contrário, faz mal."
Castanho diz que não é possível determinar quando o reclamar deixa de ser algo inerente
à personalidade para se tornar patologia. "Não faz diferença. Quem reclama uma, duas,
três ou mais vezes por dia, ou passa o tempo todo reclamando, está sujeito ao mesmo
risco e precisa de orientação. Precisa se tratar."
Da mesma forma, o perfil de quem reclama não é exatamente fácil de ser traçado.
"Reclama-se em todas as fases da vida, sejamos jovens, maduros, idosos. A reclamação
também não escolhe sexo. Então, não se pode afirmar que homens reclamam mais do que
mulheres ou vice-versa."
Ainda de acordo com o médico, o momento atual e o ritmo frenético das atividades,
poderosos aliados do estresse, potencializam o vício dos reclamões. "Não por acaso, as
pessoas sujeitas a esse processo tornam-se chatas e se distanciam das outras. São
potenciais candidatos a adquirir doenças e,também, ao sofrimento."
E o que fazer para evitar e ou escapar dos efeitos clínicos que as reclamações provocam?
Luis Castanho responde que a solução passa pela busca do equilíbrio. "É difícil, mas todos
precisam entender que é preciso reclamar no momento certo, mesmo porque não reclamar
também pode ser indicativo de anomalia."
Praticar atividade física, encontrar tempo para relaxar, buscar se divertir e se desligar
quando possível dos inconvenientes, acreditando que nem só de reclamação a vida pode
ser feita, são recomendações que, se seguidas, podem ajudar a diminuir os riscos de
alguém ficar doente ou de se sujeitar a algo até pior.
Reclamar demais ou se calar para tudo são extremos que devem ser evitados
Difícil encontrar alguém que admita ser reclamão e se disponha a falar sobre o vício de
reclamar. Foi com a condição do anonimato -- e debaixo de reclamações -- que dois
personagens, em extremos opostos da reclamação, concordaram em falar com o repórter
a respeito do assunto. O primeiro entrevistado, um aposentado de 78 anos, diz que hoje
está mais controlado. "Já estive bem pior; nem eu mesmo me aguentava", admitiu.
Entre tantas caracterísitcas comuns aos reclamões, ele confirma que encarava o mundo de
forma pessimista, discordava e parecia querer destoar dos grupos a que pertenceu.
Família, amigos, colegas de profissão, ninguém escapava do seu temperamento irascível
A reclamação, no caso, ia além dos transtornos pessoais.
Ele escolheu uma passagem para rememorar ao repórter. Foi na Bahia há quase 30 anos.
Ele excursionava com a esposa e foi conhecer uma praia festejada no litoral sul do Estado.
Instalou-se com o grupo num restaurante bem perto da praia e decidiu aguardar o pedido
na areia junto com os demais.
Diz que o tempo passou sem que o pedido viesse. "Eu comecei a ficar impaciente, e logo
já reclamava providências ao garçom, ao gerente, às pessoas ao meu lado. E nada",
afirmou. Ouviu conselhos de pessoas que buscaram fazê-lo entender que estava ali para
descansar, que a demora era natural, que o local era muito bonito, que deveria
aproveitar para relaxar, tomar um drinque, servir-se de porções. Nada funcionou, porém.
Exagero ou não, ele diz que se passaram três horas e meia sem que o prato chegasse à
mesa. O proprietário do restaurante tentou explicar o motivo da espera e usou do
argumento menos recomendado para tais casos. "Ele me pediu calma e falou para eu
olhar o mar bonito que estava à nossa frente. Depois, apontou no horizonte um barco que
mal podia ser avistado. Parecia um ponto na paisagem. Perguntou se eu estava vendo
barquinho lá longe. Respondi, nervoso, que sim. Ele, então, teve o descaramento de dizer:
pois então, ele está pescando o peixe que vamos servir para o senhor. Não pensei duas
vezes: puxei minha esposa pela mão e saí dali para comer em outro lugar. Mesmo para
quem é viciado em reclamar, aquilo foi demais."
O segundo consultado viveu situação diversa. Seu problema consistia em não ter
capacidade de reclamar. De ouvir tudo calado, sem reagir. "Fui muito questionado,
cobrado. Se comprava alguma coisa com defeito, não queria saber de discutir, de pedir
para trocar. Vivia isolado no meu mundo. Graças a Deus, nunca precisei brigar com
ninguém; caso contrário, não sei como estaria hoje."
Consultou-se, então, com um terapeuta que, avaliando suas características, constatou, sim,
anomalia, mas descartou a temida depressão. "Aliás, eu até tomei remédio para isso, mas
o efeito foi tão contrário, fez tão mal, que os médicos disseram que o diagnóstico estava
errado."
O psicólogo lhe deu dois conselhos para tentar restabelecer o equilíbrio: recomendou que
adquirisse um dicionário de palavrão. "Ele me dizia que eu era contido demais. Não
extravasava, não ousava falar, gritar. Nem mesmo durante os jogos de final de semana
isso acontecia. Não sei se existe o tal dicionário, nem procurei. Aprendi que esse é o meu
jeito. O palavrão não é algo que me faça falta."
A segunda orientação, menos ortodoxa, também não foi seguida. "Apesar de ser meu
amigo, de eu respeitá-lo como profissional e pessoa, não poderia fazer o que ele me
aconselhou: experimentar maconha. Eu, que tossia com fumaça de cigarro, não poderia
levar adiante uma ideia como aquela. E ele argumentou que seria bom, que eu ficaria
mais relaxado. Não era o que eu procurava, e nem procuro."
Situações como as que foram contadas reforçam, segundo a psicóloga Dulce Francisco,
que as pessoas precisam ter consciência das próprias limitações. Só assim terão chances
de se aceitar e de serem aceitas. Precisam, é claro, reavaliar posturas, se não estão
condenadas a viver isoladas, porque ninguém, ou quase ninguém, convive com a diferença
de comportamento."