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Trecho do livro Exu – Um Deus Afro-Atlântico no Brasil, de Vagner Gonçalves da Silva


(São Paulo, Edusp, págs.205-219)

Padê de Exu

Exu, além de receber uma parte do sacrifício dedicado aos outros orixás, pode ser
diretamente reverenciado por meio de ritos próprios.
Na tradição nagô o padê ou ipadê é o seu rito por excelência. O termo em
português, parece ter derivado das palavras iorubas pàdé (verbo que significa o ato de
encontrar, deparar, reunir-se) e ìpàdé (substantivo que designa encontro, contato,
reunião, festa)1. O objetivo principal da cerimônia é acionar Exu para que atue no
gerenciamento do fluxo entre os mundos, pessoas, entidades, estados das coisas,
substâncias, elementos etc. Os envolvidos no ritual pretendem, com o auxílio de Exu,
estabelecer continuidades entre termos discretos – leste/oeste, norte/sul, baixo/alto,
visível (aiye)/invisível (orun), homens/orixás, antepassados/descendentes,
vivos/mortos etc. – ou descontinuidades entre termos cuja proximidade pode significar
contaminação e perigo – vida/morte, saúde/doença, cuidado/abandono,
fortuna/infortúnio. Por este motivo, o padê é realizado em momentos cruciais, após as
cerimônias de sacrifício animal (orô), antes das festas públicas quando os orixás são
invocados por meio dos toques dos atabaques, dança, cantigas, louvações etc., nos ritos
funerários e assim por diante.
O padê, conhecido também por “despacho de Exu”, adquire, com esta designação,
um duplo sentido: enviar (despachar) o orixá mensageiro para “correr o mundo” e ativar
as energias benéficas em favor dos homens, inclusive exortando os demais orixás a
comparecerem à festa, ou evitar (despachar, mandar embora) a possível insatisfação de
Exu, caso os ritos de abertura desse encontro (que é, no fundo, o objetivo de uma festa
pública de candomblé) não louvassem em primeiro lugar o próprio “Senhor dos
encontros”. No primeiro caso, Exu atua como o despachante e, no segundo, Exu (e sua

1
Abraham, 1962, p.311,540; Fonseca Jr, 1983, p.201, 341; Napoleão, 2011, p.115, 179; Beniste, 2011a,
p.381, 632.
2

potencial retaliazação) é o despachado. Este tipo de câmbio de posições, próprio da


entidade, como vimos em seu papel de sacrificador, sacrificante e sacrificado, não
deveria, entretanto, induzir-nos a uma compreensão de que Exu é despachado
simplesmente por ser ele um empecilho ao ritual.
Há dois tipos de padê. O mais “simples”, por assim dizer, é realizado do início do
toque ou xirê2, possui uma duração menor e é público. Consiste basicamente numa
oferenda alimentar ritualizada. No centro do barracão (ari-axé), são depositados:
- Dois alguidares (tijelas de barro), um com farinha de mandioca crua e outro com
farinha do mesmo tipo misturada em azeite-de-dendê (o que lhe dá uma cor
amarelada), podendo estes conter pimentas vermelhas e/ou pimenta da costa (atarê),
camarão, cebola e sal.
- Uma quartinha (vaso pequeno de barro) contendo cachaça, gim ou alguma outra
bebida alcoólica
- Uma quartinha contendo água
- Uma vela
- Oferendas diversas como obi (noz de cola), acaçá (bolinho feito de milho branco
enrolado numa folha de bananeira em forma triangular), acarajé (bolinho de feijão
fradinho triturado com sal e cebola e frito no azeite de dendê), inhame (assado inteiro
ou em lascas), moedas e búzios3.
A comida por excelência de Exu é a farofa com azeite de dendê. Seu gosto por este
azeite (epô, em ioruba) se expresssa em um de seus epítetos: Exu Elepô (“O dono do
azeite de dendê”). O azeite está presente nos seus principais pratos como o eran paterê
(feito das partes internas dos animais, como as vísceras, temperadas com sal, azeite e
mel) e o xinxim dos miúdos (cozido feito com partes picadas do animal, camarão, azeite
de dendê, cebola e sal) (Régis, 2010, p.29). Devido a preferência da entidade pela farofa,
existe uma expressão falada pelo povo-de-santo: “Não sou Exu para comer farofa”, que
significa não se deixar enrolar ou enganar pelos outros, isto é, fazer muito em troca de

2
Na Regla Ochá (Santeria) de Cuba, ritos de Exu são normalmente realizados após as festas em
homenagem aos orixás, mostrando que, seja antes ou depois da festa, sua realização é obrigatória.
3
Trata-se aqui de uma descrição genérica do padê. Certamente que existem variações em relação à
composição e quantidade destes elementos, segundo as especifidades de cada terreiro ou tradição
religiosa.
3

pouco4.
O gosto pelas comidas consideradas “quentes”, isto é, preparadas com azeite de
dendê, é extensivo à maioria dos orixás, com exceção daqueles associados à criação
(funfun), como Oxalá, que só recebem oferendas consideradas “frias”, com “azeite
doce” (azeite de oliva) 5. A importância do dendê na culinária sagrada do candomblé e
desta na mobilização de energia vital e identidade social do povo de santo explica por
que os praticantes da religião também são conhecidos por “povo do azeite” ou “gente
do dendê” (Souza Junior, 1997, p.132). Como afirma o babalorixá Francisco da Oxum de
São Paulo:

Quem não é capaz de dizer um ofó [recitário] com um pouco de dendê na mão esquerda, ou para
Exu ou para Ogum, e depois engolir aquele dendê e ir buscar e receber é porque não é do axé. Porque
epô é axé! Ele é o começo. Ele é tão o começo que até Oxalá temeu ele” (apud Souza Junior, 1997, p.132)

As pimentas também compõem os pratos típicos de Exu. Por serem espécies


vegetais que devido aos seus alcaloides provocam ardência, aumento do fluxo
sanguíneo e uma sensação de “queimadura” na boca, elas estão associadas ao sabor
picante ou “quente” que em termos simbólicos representa o dinamismo e a força da
entidade. A pimenta vermelha está presente nas oferendas devido à sua cor e à sua
forma cônica que alude ao falo da entidade. Em decorrência disso, elas são fixadas na
farofa geralmente na posição vertical denotando força e vitalidade. A pimenta-da-costa
(atarê), de origem africana, também é bastante utilizada. Suas pequenas sementes são
trituradas e o pó resultante é soprado no ambiente ou deixado no chão por onde passam
as pesssoas que se deseja causar infortúnios (Querino, 1938, p.88; Voeks, 1977, p.113).
Nesse caso, aciona-se o lado desordenador de Exu. Como o favo da pimenta-da-costa
gera grande quantidade de sementes estas também podem representar procriação e
prosperidade. Nesse sentido, elas são utilizadas para implementar conquistas e acionar
o lado ordenador e multiplicador de Exu. Quando mastigadas enquanto se reza e depois
aspergidas da boca diretamente sobre os assentamentos deste orixá, estas sementes

4
Sobre as comidas de santo (para Exu e outros orixás), veja, entre outros, Bastide, 1950; Lody, 1979;
Querino, 1938; Regis, 2010; Ribeiro, s/d; Souza Junior, 1997 e 1999 e Varela, 1972.
5
Trata-se de uma referência ao mito em que Exu, por não ter recebido o sacrifício devido de Oxalá, faz
este se embriagar com vinho e ficar impossibilitado de realizar a tarefa de criar o mundo. Com isso tem
início a proibição de Oxalá de ingerir bebidas e comidas “quentes” (álcool, pimentas e azeite de dendê),
preferidas de Exu. Veja MITOS 57 e MITO 88.
4

liberam um grande axé tornando as palavras emitidas puras (porque limpa o hálito),
fortes, convincentes e dinâmicas. “Quem mastigar os grãos desta pimenta e puder falar,
é capaz de conseguir tudo que quer” (Barros, 2011, p.80).
Da mesma forma, as folhas consagradas a Exu também são aquelas consideradas
“quentes” ou “folhas do fogo” (ewé inón), em geral urticantes, algumas ruinosas e
provenientes de plantas que possuem acúleos (estruturas pontiagudas e rígidas) ou
espinhos. Nesse caso, a forma da folha ou as substâncias que contêm indicam seu poder
de ataque e defesa, pois são folhas que causam intoxicação quando ingeridas ou
perfurações e irritações na pele (queimaduras) quando tocadas. Podem ainda estar
relacionadas a alteração do estado de consciência6.
Entre as folhas mais usuais estão: alfavaca, aroeira, arrebenta cavalo de espinho,
arrebenta cavalo ou juá vermelho (elexu), arruda, bate testa, beldroega roxa, cansanção,
carrapateira (mamona roxa), chapéu turco, comigo-ninguém-pode, corredeira
(fálákàlá), facheiro preto, fedegoso, figo do inferno, figueira, folha da fortuna roxa, folha
de fogo, guararema (pau d'alho), jamelão, jurema preta, jurubeba, maconha (diamba),
malvarisco, mamona, mangueira, mato pasto, olho de cabra, olho de gato, palmatória
do diabo, papoula roxa, papoula vermelha, pau-de-cunanã, perpétua (èkèlegbárá),
picão-preto ou carrapicho, pinhão roxo, pó de mico, roda de Exu (urtiga mansa - sem
pelo), tiririca (dandá/làbélàbé), urtiga brava (com pelo), urtiga-branca (èsísí), urtiga-
vermelha (jojòfà), urtiga-miúda (kã-kã), urtiga-graúda, vassourinha de relógio,
vassourinha preta, xique-xique (cacto)7.
Como se percebe, os nomes e as características destas folhas fazem referência aos
atributos de Exu, tais como: elemento regente (folha de fogo); poder desafiador, de
ataque e de punição (comigo-ninguém-pode, arrebenta cavalo, bate testa, palmatória);
poder benefíco (fortuna), cores preferenciais (preto, vermelho, roxo); animais sacrificiais
(cabra, gato); aspectos míticos (chapéu, olho); ação perfurante, de provocar secção ou

6
O mesmo se aplica aos diversos tipos de bebidas alcoólicas ofertadas a Exu, pois estas também derivam
de plantas destiladas ou fermentadas.
7
Esta lista reúne informações obtidas em pesquisa bibliográfica e de campo. Em ambos os casos não foi
realizada uma identificação botânica das espécies vegetais em relação aos nomes populares encontrados.
Os termos entre parênteses são de origem ioruba e usados nos terreiros desta tradição para identificar as
folhas, segundo Barros, 1993, p.104; Outras referências: Cossard, 2008, p.138; Barros, 2011; Voeks, 1977;
Serra et alii, 2002; Santos e Peixoto, 2014.
5

incômodo (espinho, cansação, picão, urtiga, cacto); alteração da consciência (diamba) e


ao imaginário cristão associado ao orixá (inferno, diabo, fedegoso).
As folhas para Exu podem ser usadas de múltiplas formas: inteiras ou maceradas
em sacudimentos ou ebós (ritos de limpeza espiritual) ou em banhos e preparos (omi-
ero, amaci, abô etc.). Em geral estes banhos destinam-se a produzir movimento,
mudanças, combater doenças e abrir caminhos. As folhas podem também compor os
pratos votivos entregues à entidade.
O obi8, também presente nas oferendas a Exu, é um fruto que se destina a este e
à maioria dos orixás. Segundo o mito foi o próprio Exu responsável por fazer do obi um
alimento votivo, como punição por sua ingratidão e egoísmo:
Obi era muito pobre e Exu, compadecido, pediu a Orunmilá que intervisse para
tornar seu amigo próspero. Assim que se tornou rico, Obi, entretanto, passou a
desprezar Exu que foi reclamar para Orunmilá. Com o objetivo de saber o que estava
acontecendo, Orunmilá se vestiu como um mendigo e bateu à porta de Obi que
imediatamente o rechaçou. Diante disso, Orunmilá decretou: “Pela tua ingratidão e
orgulho, de hoje em diante não haverá sacrifício na nossa religião, nem oferenda aos
nossos deuses sem que você [Obi] não seja incluído. Tu serás partido em quatro partes,
rolarás na lama e serás posto na cabeça do mais vil ser do Aiyê. Sem contar que, quando
Exu comer, tu terás que fazer parte do banquete dele. E ainda terás que responder se ele
está satisfeito.”9
Voltando ao padê, depositadas as oferendas, começa-se o rito tocando e cantando
para Exu com os adeptos dançando em círculo no sentido anti-horário ao redor das
oferendas. As cantigas, em geral, reverenciam os principais avatares de Exu: Ina, Agbo,
Elegbara, Onã, Tiriri, Obé.

Ina, Ina é mo jubá ê10


É mo jubá
Ina, Ina é mo jubá

Exu Agbo

8
Obi (Cola acuminata) é um fruto composto por quatro gomos que se dá como oferenda aos orixás e com
a qual se pode fazer um jogo divinatório de acordo com a queda destas partes no chão.
9
Beata de Yemonjá, 1997, p.101 (MITO 42).
10
“Mo jubá” provavel expressão de origem ioruba (mo júbà) significando: “eu te saúdo” ou “eu apresento
meus respeitos”.
6

Abgo mo jubá
Egbara Agbo
Agbo mo jubá
Elegbara Exu Lonã

Bara Obebe
Tiriri Lonã
Exu Tiriri
Bara Obebe
Tiriri Lonã

Ao final das cantigas, dois ou três membros mais graduados ou previamente


preparados levam as oferendas até a porta do terreiro de onde são lançadas à rua em
três direções. Neste ato enfatiza-se a necessidade de Exu fazer a ponte entre os
domínios de dentro e de fora, do terreiro e do mundo externo, das forças genéricas da
natureza e das forças individualizadas (orixás) que irão incorporar nos adeptos. Após
este ato, o xirê prossegue com os cantos para os demais orixás, de Ogum a Oxalá.
O outro tipo de padê11, mais longo e liturgicamente mais complexo, é realizado
em momentos solenes: iniciações ou obrigações (após os sacrifícios), antes das festas
anuais aos orixás (sobretudo quando a eles foram ofertados bichos de quatro pés) e na
abertura das cerimônias fúnebres (axexê)12.
Neste rito são invocados Exu, os espíritos ancestrais masculinos da comunidade
(ou essás13), as Iyami Oxorongá (que representam as grandes mães feiticeiras,
potencialmente perigosas se não forem cultuadas adequadamente14, e a ancestralidade
feminina em geral) e alguns orixás específicos relacionados ao contexto do terreiro e/ou
do rito que se realiza.
As oferendas alimentares são praticamente as mesmas descritas anteriormente
(farinha de mandioca crua, azeite-de-dendê, água, bebida alcoólica, sal, acaçá etc.).
Estas são preparadas geralmente no barracão do terreiro, sempre ao final da tarde

11
Há religiosos que prefererem chamar este tipo de “ipadê” para diferenciá-lo do anterior (“padê”). Adotei
aqui o segundo termo para ambas as versões por considerá-lo mais comum entre os praticantes e por
entender que a estrutura básica do rito se mantém, apesar das diferenças de complexidade litúrgica e de
entidades invocadas.
12
Não abordarei o padê no contexto das cerimônias fúnebres pois apesar de apresentar algumas
diferenças litúrgicas (é realizado à noite, os atabaques são substituídos por meias-cabaças etc.) sua
principal finalidade se mantém: invocar Exu para atuar como intermediário na condução do espírito do
morto com a ajuda de outras entidades associadas ao ciclo da vida e da morte.
13
Èsás em ioruba.
14
Sobre o culto às Iyami Oxorongá, veja Verger, 1994, p.13.
7

(crepúsculo) e com as luzes apagadas, e levadas aos assentamentos externos das


entidades. Neste sentido, este tipo de padê é realizado somente em terreiros que
possuem altares ou assentamentos com os fundamentos adequados às invocações (Exu,
Egum, Iyami Oxorongá etc.).
Em geral, o rito é dirigido pela liderança da casa (iyalorixá ou babalorixá) ou por
algum dos seus assessores imediatos, como a iyalaxe (mãe do axé), tendo duas mulheres
como principais assessoras: a iyadagã que mistura as oferendas numa cabaça e a
iyamoro (mãe dos fundamentos) que recebe a cabaça e a leva dançando para os
assentamentos. A iyatebexê (mãe guardiã dos cânticos sagrados) “puxa” as cantigas e
invocações que são respondidas pela comunidade, incluindo os alabês (tocadores) que
percutem os atabaques. Outros ebomis (tais como ajimudá, assobá, apokan, iyagbalé
etc.) que ocupam cargos e desempenham funções importantes nas casas de Exu,
Obaluaiê e Iansã (orixás relacionados ao mundo dos mortos, eguns ou ancestrais)
também participam da organização e execução da cerimônia.
Durante o rito toda a comunidade mantém uma postura compenetrada e de
respeito. Não é consensual quem pode estar presente no local onde ele se realiza. Em
algumas casas, por exemplo, é reservado aos iniciados mais velhos, em outras, é aberto
a todos os iniciados, inclusive aos eventuais visitantes. De qualquer forma, depois de
iniciado o rito, ninguém abandona o local até a sua conclusão. Com exceção das
mulheres envolvidas na preparação e entrega das oferendas, os demais participantes
permanecem imóveis no local a eles destinados. Pode-se apenas fazer pequenos
movimentos oscilatórios com o corpo indicando que estão “vivos” para afugentar a
morte. Somente ao final da cerimônia todos poderão sair de seus lugares e dançar com
alegria por saber que as oferendas foram entregues e as energias potencialmente
perigosas foram controladas.
Vejamos a descrição de um ritual de padê, tal como se prática num terreiro
específico, no sentido de analisar num caso concreto os modos pelos quais este rito de
Exu articula a comunidade em termos de memória, genealogias, hierarquias, espaços
sagrados, entre outros aspectos.
Neste terreiro15, o ritual é realizado no barracão. Os presentes trajando

15
Trata-se do Ilê Afro-Brasileiro Ode Lorecy localizado em Embu das Artes, São Paulo. Foi fundado por
Leopoldino Alves Campos Sobrinho (Pai Leo ou Baba Ogundare). Segue a tradição queto, porém com
8

obrigatoriamente roupas brancas se posicionam em círculo ao redor do centro do


barracão de acordo com a hierarquia religiosa estabelecida pela idade de iniciação. Os
menos graduados (iaôs), ajoelhados em esteiras, mantêm o rosto próximo ao chão,
apoiando a testa sobre os punhos cerrados. A cabeça e os ombros ficam encobertos por
um pano (ojá) branco. Trata-se de uma atitute de proteção por se tratar de uma
cerimônia na qual forças poderosas são invocadas. Os mais graduados (ebomis) sentam-
se em cadeiras e os alabês (tocadores) ficam em pé ao lado dos atabaques. As mulheres
ebomis enrolam o pano branco ao redor do pescoço cobrindo-lhes os ombros, costas e
peito. Esta vestimenta também é utilizada nos ritos fúnebres do candomblé, conhecidos
como axexê. Neste sentido, o rito do padê faz referência a uma estrutura geral de cultos
que lidam com a passagem entre vida e morte. O dirigente da comunidade, Baba
Ogundare, senta-se num apoti (banco baixo) ao centro do barracão, perto do ari-axé
(lugar onde foram enterrados os fundamentos da casa e o epicentro da roda de santo,
ponto de comunicação entre o orun – espaço invisível- e o aiye – espaço visível). Sentada
no chão uma ebomi tem ao seu redor quatro recipientes contendo em cada um: água,
azeite de dendê, bebida alcoólica e farinha de mandioca. Ao lado destes, foram
colocadas uma cabaça cortada ao meio, para misturar os elementos anteriores, uma
vela branca e um acaçá. Duas outras ebomis permanecem em pé. Elas são as únicas que
nesse rito terão permissão para dançar. A cerimônia começa acendendo-se a vela e o
sacerdote vertendo de uma quartinha três porções de água em três pontos paralelos no
chão. Ajoelha-se e com os dedos da mão direita toca cada uma dessas porções de água
e em seguida toca com esses dedos molhados a lateral da mão esquerda fechada, entre
o indicador e o polegar dobrados em forma de espiral16. Enquanto isso os presentes
“batem a cabeça” (levam a testa ao chão para promover o encontro entre a fonte do
axé, no solo, e o ori, a cabeça). A água vertida no chão e fogo da vela são, portanto, os
primeiros elementos presentes no rito significando fertilização e transformação. O

modificações introduzidas decorrentes de intercâmbios com sacerdotes nigerianos do culto de Ifá, no qual
Baba Ogundaré se inicou. A descrição apresentada baseia-se na observação pessoal dos rituais, nas
entrevistas com o sacerdote e sua comunidade e no material impresso das cantigas disponibilizado e
reproduzido aqui. Foi preservado a grafia ioruba e a tradução das cantigas tal como foi registrada por Baba
Ogundare.
16
Este ato é uma espécie de abertura utilizado em várias cerimônias do candomblé. Com ele se está
invocando a força dos orixás. Vale lembrar que a espiral formada pelos dedos cerrados é um elemento
representativo do dinamismo de Exu.
9

babalorixá inicia uma série de três cânticos acompanhado pelos atabaques. Cada estrofe
é respondida em coro pelos presentes em forma de canto responsorial:

E Ìnà mo jubà Fogo, eu te saúdo


Ìnà, ìnà mojubà àiyé Fogo eu apresento a saudação do mundo,
Ìnà mojubà, Ìnà, Ìnà mojubà àiyé Eu te saúdo e apresento a saudação do mundo

E Ìnà korobá Fogo, não me cause danos


Ìnà, ìnà korobà àiyé, Fogo, não cause danos ao mundo,
Ìnà korobà, Ìnà, Ìnà korobà àiyé Fogo, não cause danos a mim e nem ao mundo

E Ìnà ko wá gba Fogo, venha e proteja.


Ìnà, Ìnà ko wá gba àiyé, Ìnà ko wá gba, Ìnà, Ìnà Fogo, venha e proteja o mundo, venha e proteja,
ko wá gba àiyé Venha e proteja o mundo

Estas cantigas invocam Exu Ina (Senhor do Fogo) a quem o ritual é dirigido
inicialmente. Durante a execução, a iyamoro, sentada no chão, derrama na cabaça,
nessa ordem, um pouco de água e de azeite de dendê. Em seguida lança com a mão
direita três porções de farinha de mandioca. Gira a cabaça por três vezes em sentido
anti-horário para misturar os elementos. Enquanto isso, duas mulheres dançam a sua
frente, a iyadagã e a iyagbalé 17. A iyamoro oferece a cabaça à iyadagã que se aproxima,
dá-lhe as costas e nessa posição segura a cabaça com a mão direita posicionada atrás do
corpo. Sempre dançando e mantendo a cabaça atrás de si para não ver o seu conteúdo,
as duas mulheres se dirigem com passos rápidos e cadenciados (como se estivessem
correndo) ao altar de Iyami Oxorongá localizado no lado externo do barracão ao pé de
uma jaqueira que é cercada por um muro no qual há uma placa com uma saudação
(oriki) escrita em ioruba e português:
Iba ìyá mi Osorongá ókóró niyé Salve minha mãe feiticeira que sabe muito
Ìyá mi àbèní eléyinjú egé Mãe a quem imploro – dona de belas pupilas
Olókìkí òru ará Orífin ará odò Obà Senhora da noite vinda de Orifin e do rio Obà
A pani má hàágun Mata sem preocupar-se com herança

A mistura é depositada no chão, próximo ao tronco, e as oficiantes retornam,


ainda dançando/correndo, para o centro do barracão. De costas, entregam a cabaça
vazia para a iyamoro. As mulheres quando recebem a cabaça e passam pela porta do

17
Neste terreiro é a iyamoro que prepara as oferendas enquanto a iyadagã as leva. O mais usual é o
contrário.
10

barracão ou pelo portão do altar de Iyami Oxorongá, dão as costas e giram o corpo no
sentido anti-horário. Segundo Baba Ogundaré: “Em todo o culto, entra-se de costas,
porque você está entrando num mundo que é diferente do nosso, então nunca se entra
de frente, sempre de costas” (Entrevista, 2013). Três oferendas são entregues às mães
feiticeiras seguindo os mesmos procedimentos.
O início do padê, dedicado a Exu Iná, Senhor do fogo, indica a transformação que
se pretende com o ritual: da mesma forma que a ação do fogo transforma o estado dos
elementos submetidos a ele, é preciso que as oferendas sejam “transformadas” e
retornem em forma de proteção e não de destruição. Considera-se que a trasformação
pelo fogo apresenta um perigo imanente, pois se não for bem conduzida, por meio das
técnicas e conhecimentos rituais apropriados, pode levar ao resultado oposto do
pretendido. O fogo pode transformar um alimento cru em cozido, mas também pode
queimá-lo. Uma ação ritual que o utilize visando proteger o mundo pode acabar
destruindo-o. É preciso que Exu assim como o fogo “venha e proteja o mundo”, e “não
cause danos” a ele, como diz a cantiga.
Em seguida, outra série de cantigas é executada:

Baba Òjísé palé fun wá o Pai mensageiro, tome conta da casa para nós
Odára palé soba, Odára, seja nosso rei
Òjísé palé fun wá o, Mensageiro, tome conta da casa para nós
Odára palé soba Odára, seja nosso rei

Baisa, Baisa Pai orixá, pai orixá


Àlè masá, baisa, baisa, àlè masá Imutável, pai orixá, imutável

Neste momento, acrescenta-se à água a bebida alcoólica (em substituição ao


azeite de dendê) e sobre elas a farinha de mandioca. Novamente a mistura é levada e
depositada na jaqueira por três vezes. Nestes cânticos os louvores se dirigem à Baba
Òjísé (Exu na sua condição de Pai Mensageiro) e Exu Odara (Exu, Senhor da Beleza e da
Felicidade).
Na sequência, louva-se se Ogum, irmão de Exu, que, como este, está associado ao
fogo transformador (Ogum é ferreiro, senhor dos caminhos e das guerras). Aqui inicia-
se também a saudação aos ancestrais com uma referência à Iroko ou aos ancestrais da
11

fazenda (da terra) representados por este18.

Baisa Olópa Ògún Pai orixá, Ogum, senhor do cetro


Olópa Ògún baisa, Olópa Ògún, Olópa Ògún Senhor do cetro, pai orixá, Ogum, senhor do cetro
Baisa egigun roko Pai orixá, ancestral da fazenda
Egigun roko Baisa, Egigun roko, Egigun roko Ancestral da fazenda, pai orixá, ancestral da fazenda,
ancestral da fazenda

O conjunto seguinte de cantigas prossegue nesta invocação aos ancestrais para


que “retornem à casa”

Wálé Baba o, oní Baba ijà Venha para casa, pai; pai senhor da luta
Wálé, onijà, Wálé Baba o ae walé Venha para casa, senhor da luta; venha para casa, pai;
onijà venha para casa, senhor da luta
Ancestrais fundadores, progenitor me acompanhe
E oní esá, olomo mi simi gba Pai, senhor da casa, ancestral herdeiro do axé,
Onilé Baba esá Keran, olomo mi simi progenitor acompanha-me para aceitar a oferenda na
gba bo delé casa

Onilé Baba esá Keran onilé, Baba mi Pai, senhor da casa; ancestral fundador, meu pai,
esa Arolé oni esa Keran essá Arolé, ancestral fundador
Ènìyàn rere a nré, Onilé oní esa Keran Somos amigos de pessoas boas. Senhor da casa,
Onilé ancestral fundador, senhor da casa

Nesse momento, uma complexa genealogia ou rede religiosa que une pessoas,
terreiros, gerações, nações e continentes é rememorada por meio da invocação dos
principais ancestrais que situam aquela comunidade como parte desta rede.
A invocação inicial é feita a essá Keran porque, segundo o babalorixá, este teria
sido o fundador da nação queto na África19. Depois saudam-se os ancestrais que deram
continuidade a esta nação no Brasil, entre eles, Baba Asiká e Obitiko (tidos como
responsáveis pela fundação do terreiro baiano Casa Branca do Engenho Velho,
considerado um dos primeiros da nação queto no Brasil).
Em seguida, os ancestrais da linhagem de Baba Ogundare são reverenciados. Aqui

18
Em outras descrições de padê a palavra “ogun” é traduzida por “poderoso” e não há referência ao orixá
Ogum. (Santos, 1976, p.191; Beniste, 2012, p.299).
19
Aqui há uma referência ao orixá Oxossi como fundador da nação queto e que é saudado no padê como
Essá Akeran.
12

é preciso esclarecer que o terreiro deste sacerdote possui três raizes religiosas. A
primeira decorre da sua iniciação realizada na nação efon. Seu pai-de-santo foi Ingelewa
(Oswaldo Mariano), sacerdote iniciado por Obalewi (Claudio Monteiro) que por sua vez
era filho-de-santo de Cristovão do Pantanal, feito (iniciado) no terreiro de Maria do
Violão ou Axé Oloroké, em Salvador. Desta mesma raiz, veio Waldomiro Costa Pinto
(conhecido por Waldomiro de Xangô ou, simplesmente, Baiano), irmão de santo de
Obalewi. Entretano, nos anos de 1970, Waldomiro deu obrigação religiosa no Terreiro
do Gantois, chefiado à época por Mãe Menininha (Escolástica Maria da Conceição
Nazaré), tornando-se filho desta casa. Waldomiro fez a obrigação no seu sobrinho de
santo, Ingelewa, levando este e toda sua prole a um deslocamento da tradição efon para
a tradição queto, incluindo Ogundaré. Com o passar do tempo, Ogundaré viajou à
Nigeria e na cidade de Oxogbô se filiou ao culto de Ifá por meio de Ifayemi Eleburuibon.
Esta complexa rede é saudada no padê realizado no Ile Ode Lorecy invocando-se todos
esses ancestrais falecidos.
Após a invocação dos ancestrais masculinos, louvam-se os femininos começando
por Iya Akalá, Nasso Oká, Iya Luso Danadana, Adetá e Omonike. Estas mulheres
representam as ancestrais fundadoras e dirigentes da Casa Branca, da qual saiu a
fundadora do Terreiro do Gantois, onde Waldomiro de Xangô deu sua obrigação, como
vimos. Segue-se a louvação com os nomes das ancestrais femininas relacionadas ao
terreiro Ode Lorecy.
A cada menção destes ancestrais masculinos e femininos, os oficiantes tocam o
chão com a mão direita e levam à cabeça em sinal de respeito.
Como se vê, nesse momento o padê de Exu enfatiza o significado do encontro
entre os descendentes e seus antepassados, os vivos e os mortos, os homens e seus
orixás, dando um sentido de pertencimento e proteção às pessoas que “realizam os
ritos”.

Olowó égún e eni solóró Poderoso ancestral sustentará a pessoas que realizam os
Èsan fólòro atòro se ritos
Ògún Akoro Olòró Que os fiéis venham e continuem a celebrar os ritos
Èsan Fólòró atòro se Ogum Akoró sustentará os fiéis
Que os fiéis venham e continuem a celebrar os ritos
Saiyo bèè bèè o ni saiyo bè é
Òti ni yí sáá ko mò Fique satisfeito, ele diz que fica satisfeito
Este é o álcool que você conhece
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A invocação estende-se aos orixás, como Ogum Akoró mencionado acima. A


escolha dos orixás que serão saudados dependerá do “enredo” de cada sacerdote e de
sua comunidade. Ogundare afirma:

“Eu começo com Ogum Akoro (porque nessa casa é o Ogum que eu cuido), depois vem Logunedé,
Oxum Iyaoke (que é a mãe da casa, a dona da casa) Oya Gbalé (porque está ligada aos mortos e é um orixá
que eu tenho devoção) e Babá Oguiã. Evidentemente, no dia que eu for embora, isto mudará. A pessoa
pode decidir que os orixás louvados serão outros. Poderá manter Ogum, Oxum, pode tirar Logunede e
colocar o orixá dele. E é correto porque eu to pedindo proteção aos meus orixás hoje” (Entrevista, 2013).

A louvação prossegue para seu ponto mais “tenso” e exige grande respeito e
cuidado. Trata-se de convocar ao padê a presença das grandes mães ancestrais,
feiticeiras associadas aos pássaros noturnos. Os atabaques assumem um ritmo mais
acelerado e uma quartinha contendo bebida alcoólica (oti) é levada pelas dançantes
para o altar na jaqueira. Na volta das dançantes todos novamente batem a cabeça no
chão e cantam:

Apaki yeye Osorongá Mãe de asas magníficas, feiticeira


Ìyá mo ki o má mà pani Eu te saúdo, não me mate, minha mãe
Ìyá mo ki o mà má sorò Eu te saúdo, não me perturbe, minha mãe
Bà a bá de wá jú wá ni, bò mi ào Se vem perto de nós, nos proteja

Ajé ilé jo wa, ajé ilé jó wa Bruxa da casa, venha dançar


Bi Iku bà jé, bò jòwó ìyágba Se a morte nos ameaçar, por favor leve embora

Òfò ilé lo onan, òfò ilé lo onan Leve as coisas ruins para os caminhos
Bi Iku bà jé, bò jòwó bá si Se a morte nos ameaçar, por favor leve embora para longe

Segundo o oficiante do ritual, neste momento se está convidando as Iyami para


dançar. Baba Ogundarê faz gestos com o braço direito na direção da porta, convidando
as mães ancestrais e apontando o centro do barracão para que ocupem o seu lugar no
padê. Nas palavras do sacerdote: “Porque ela [Iyami] está assentada lá fora, cuidada lá;
então eu a chamo para participar do ipadê. Depois eu peço a ela que leve embora os
inimigos, a pobreza, coisas ruins e traga coisas boas. É um momento que estou
conversando com ela” (Entrevista, 2013). De fato, os oficiantes, após o convite, fazem
um gesto no qual estendem rapidamente a mão e fecham os dedos aprisionando na
palma da mão as energias negativas presentes de forma invisível ao redor. Em seguida,
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arremessam estas energias na direção da porta para assim manterem-nas fora de suas
vidas. Entoa-se a cantiga:

Minha mãe nos será favorável Ìyá mi là gbà wá o


Minha mãe feiticeira nos será favorável, minha mãe Ìya mi soro là gbà wá o, yeye

A água utilizada nas misturas anteriores e que sobrou na vasilha é levada


apressadamente para a porta do barracão e lançada no chão em três direções: direita,
centro e esquerda. O gesto procura acalmar, esfriar, amenizar e conter as forças
invocadas. Nesse momento também é ofertado o acaça representando o próprio ser
humano que poderia ser destruído por essas forças ou energias. Trata-se então de uma
substituição. O acaçá é ofertado juntamente com a vela acesa. Estas oferendas que
encerram o ritual demonstram que a invocação dos antepassados efetuada não deve
gerar uma proximidade perigosa entre o mundo dos vivos e dos mortos. Então se canta:

Àtakò pa gba wá o Acabe com a oposição, nos seja favorável


A ibá igi arabá Nós saudamos a àrvore do algodão

E oke o ola là nse Viva a riqueza [que] será fluente


Torí omo kó wá fun Porque os filhos procuram

Tendo as oficiantes retornado ao barracão inicia-se a parte final da cerimônia. As


mulheres retiram o ojá dos ombros e o amarram ao redor da cintura. Este ato indica que
o rito adquiriu outra direção; o padê que até então expressava um sentimento de
compenetração e gravidade (adequado ao culto dos ancestrais, dos mortos e das Iyami
Oxorongá) agora expressa alívio e júbilo, pois as oferendas, danças, cânticos e
invocações foram aceitas. Canta-se então para aqueles que contribuíram para realizar o
padê (iyamorô, iyadagã, iyabassê, ajimudá, ogãs etc.) e para os ocupantes dos cargos do
terreiro. Todos ao serem chamados pelo babalorixá vão se reunindo no centro do
barracão diante dos atabaques.

Ìyá moró dódó Iyamoro, a justa


Ìyá moró dódó, ibi si lo bi wa moró Iyamoro, a justa, o nascimento nos trouxe ao mundo

Ajimúdá mú àdá ko ire wa Ajimuda pega a espada e nos traz a benção


O bà ru je ní ìyà Ele com raiva pode castigar

E ajimúdá Salve ajimudá


Ajimúdà sa ire wa ajimúdá Ajimuda confraternize conosco
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E ogan leri Salve ogã leri


Ogan leri sa ire wa Ogã leri confraternize conosco

E ogan lejo Salve ogã lejo


Ogan lejo sa ire wa Ogá lejo confraternize conosco

A comunidade saúda e reconhece, por meio daqueles que conduziram o ritual e


que ocupam cargos importantes para o funcionamento do terreiro, a continuidade do
conhecimento herdado. Se os antepassados foram invocados no início é preciso agora
invocar os vivos sem os quais os primeiros não teriam sido celebrados. Da mesma forma
que os vivos de hoje um dia poderão ser invocados na condição de essás no padê das
próximas gerações.
Forma-se então uma roda de santo com todos os presentes. Os toques executados
pelos alabês neste momento são apenas percutidos (sem o acompanhamento das
letras) ao ritmo característico dos orixás que serão homenageados na festa da noite. Ao
final dos toques, todos batem o paó (série de palmas ritmadas).

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