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O DESPERTAR DA PRIMAVERA

de Frank Wedekind

PERSONAGENS

Melchior Gabor

Moritz Stiefel

Wendla Bergman

Hanschen Rilow

Ernst Robel

Martha Bessel

Thea

Ilse

Sra. Bergmann

Sra. Gabor

Reitor Sonnenstich

Sr. Schimidt

Senhor Dirfarçado
Prólogo
(Melchior enrolado em um cobertor)

Melchior: Frio, muito frio. Queria abrir um buraco e me enterrar, mas


não dá. Eu passei por tantas mortes e quase não chorei. Mas, às
vezes, dependendo de como o sol se põe por trás da ponte ou de como
as nuvens se debatem formando espirais de chumbo no céu, aí eu
choro... Um choro que me sacode, que vem em soluços. Eu me
entrego sem resistência, em espasmos de tristeza. Eu choro pelo fim
da inocência, pela escuridão do coração humano e pela falta que me
fazem o meu amigo (sempre os sonhos entre nós) e o meu amor -
agora eu sei que era amor...

PRIMEIRO ATO

Cena 1

(Sala de Estar)

Wendla: Oh mãe, por que a senhora me fez um vestido tão comprido?

Sra. Bergmann: Você faz hoje catorze anos!

Wendla: Se soubesse que a senhora fosse me fazer um vestido tão


comprido, eu preferia ficar com treze anos.

Sra. Bergmann: O vestido não está comprido demais, Wendla. Afinal,


que culpa tenho eu que a minha filha tenha mais duas polegadas em
cada primavera? Você não pode andar por aí de vestidinho curto, se já
está crescida.

Wendla: Mas esse vestido fica bem melhor do que esse camisolão.Ó
mãe, deixa eu pôr ele outra vez.Só esse verão.Estou sempre a tempo
de usar este com catorze ou mesmo com quinze anos. Vamos guarda-
lo até o ano que vem. Se o vestisse agora, andava sempre a pisando a
bainha.

Sra. Bergmann: Ó filha, eu bem gostaria de te guardar tal e qual


como está agora. Há raparigas da tua idade que são desajeitadas e
pesadas. Você é o contrário.Quem sabe como virá a ser quando as
outras se desenvolverem?
Wendla: Quem sabe?! Talvez eu já nem exista.

Sra. Bergmann: Ó, filha, como pode pensar numa coisa dessas?

Wendla: Não, mãezinha! Não fique triste!

Sra. Bergmann: (beijando-a) Minha querida! Meu único bem!

Wendla: Penso nisso de noite quando não consigo dormir. Eu não fico
nada triste com isso e durmo até melhor. Ó mãe, será pecado pensar
nessas coisas?

Sra. Bergmann: Vá lá então pôr no cabide esse vestido. Pois sim:


veste lá outra vez o teu vestidinho curto! Um dia desses vou
acrescentar um barrado embaixo para ficar mais comprido.O vestido
estava bem de comprimento; mas...

Wendla: Agora que vem aí o verão? Por que tem tanto medo? As
pessoas da minha idade não têm frio e muito menos nas pernas. Seria
melhor que eu andasse a arder, mãe? Dá graças a Deus se um dia de
manhã a sua filha não cortar as mangas e não te aparecer assim ao
anoitecer e sem sapatos e sem meias. Nada de xingos, mãezinha!
Além do mais quem vai olhar as minhas pernas? Ninguém!

Cena 2

(Rua)

Melchior: Estou cansado disso. Não quero mais jogar.

Hanschen Rillow: Nesse caso nós temos que parar também.

Ernest: Você já fez os trabalhos, Melchior?

Moritz: Onde você vai?

Melchior: Dar uma volta.

Hanschen Rillow: Está escurecendo.

Melchior: Será que eu não posso sair no escuro?


Ernest: Já fez os trabalhos, Melchior?

Melchior: Qual o problema?Será que eu não posso dar uma volta,


droga?

Hanschen Rillow: Meu Deus, ainda temos a América Central, Luís


XV! Mais sessenta versos de Homero e ainda sete equações!

Melchior: Droga de trabalhos!

Ernest: Se pelo menos a composição de latim não fosse para amanhã!

Moritz: É só pensar em fazer outra coisa que a gente logo lembra


desses malditos trabalhos!

Hanschen Rillow: Vou pra casa. É melhor começar os trabalhos.

Ernest: Vou junto com você. Tchau, Melchior!

Hanschen Rillow: Tchau, Moritz.

Melchior: Durmam bem.

(os dois saem)

Melchior: Eu gostaria de saber por que nós viemos ao mundo.

Moritz: Eu preferia ser cavalo de corrida do que ter que agüentar a


escola. Mas por que vamos à escola? Pra fazermos provas.E por que
fazemos provas? Pra levarmos ferro. Eles vão ter que reprovar sete,
porque na sala de aula do próximo ano só cabem sessenta alunos.
Ando esquisito desde o Natal. Que saco. Se não fosse o meu pai, hoje
mesmo pegava as minhas coisas e sumia daqui. Melchior, você não
acha que o sentimento de vergonha no homem é apenas o produto da
educação que ele recebe?

Melchior: Sabe que anteontem eu estava pensando nisso? De


qualquer maneira parece que isto está enraizado na natureza humana.
Imagine que você tenha que se despir na frente do seu melhor amigo.
Você só será capaz de fazer isso, se lê fizer o mesmo.

Moritz: Eu já pensei que, se um dia eu tiver filhos, meninos e


meninas, eu vou deixar eles dormirem na mesma cama e deixar que
um ajude o outro a se vestir e se despir. Acho que se eles crescerem
assim, no futuro serão mais calmos do que nós somos em geral.
Melchior: Disso eu não tenho a menor dúvida. Mas será um problema
se as meninas ficarem esperando bebê. E daí?

Moritz: Como assim?Ficar esperando bebê?

Melchior: É que nesse caso eu acredito num certo instinto. Por


exemplo: se um gato e uma gata ficarem trancados desde pequenos,
sem nenhum contato com o mundo externo e entregues totalmente
aos seus próprios instintos, acho que a gata acaba ficando prenha,
embora nem ela nem o gato tivessem alguém para dar exemplo do
que deveria ser feito.

Moritz: Com bicho é assim mesmo!

Melchior: Acredito que com gente é a mesma coisa. Imagina se os


seus filhos dormem com suas filhas e de repente ficam excitados.

Moritz: Talvez você tenha razão. Melchior, queria te perguntar uma


coisa.

Melchior: Fala

Moritz: Você responde?

Melchior: Claro, Moritz. O que é?

Moritz: Já teve?

Melchior: O quê?

Moritz: O primeiro sinal?

Melchior: Já.

Moritz: Eu também.

Melchior: Eu já sei o que é isso há muito tempo. Já faz quase um ano.

Moritz: Eu fiquei como se tivesse sido atingido por um raio.

Melchior: Você tinha sonhado?

Moritz: Ah, muito pouco. Com pernas, com meias azul-celeste que
subiam pela mesa da professora. Mas eu só vi as pernas de raspão!
Melchior: O Ernest sonhou com a própria mãe.

Moritz: Ele te contou?

Melchior: No caminho da igreja. Só pra mim, escondido.

Moritz: Se você soubesse o que eu passei naquela noite.

Melchior: Remorsos?

Moritz: Um medo da morte! Era um calor que não passava. Parecia


febre. Ah, Melchior, isso ta sendo tão estranho pra mim.

Melchior: Quando aconteceu comigo eu já estava mais ou menos


preparado. Fiquei com um pouco de vergonha, mas só.

Moritz: E você é quase um ano mais novo que eu.

Melchior: Eu não me preocupo muito com isso. Pelo que eu sei,


Moritz, não tem uma idade certa pra isso acontecer. Sabe o
Lammermeir, aquele baixinho zarolho? É mais velho que nós dois. O
Rillow me disse que ele continua sonhando só com tortas e geléias de
pêssego.

Moritz: Como é que que o Rillow sabe?

Melchior: Ele perguntou pra ele.

Moritz: Que coragem! Eu não perguntaria isso pra ninguém.

Melchior: Mas você perguntou pra mim.

Moritz: É verdade! Vai ver que o Rillow não sabe também o que fazer.
As pessoas nos enganam, Melchior! A gente finge que acredita. Eu não
me lembro como isso de tesão começou. Por que isso acontece antes
da gente saber das coisas? Meus pais não mereciam ter um filho como
eu. Estou crescendo e não sei o que fazer. Melchior, me explica direito
como a gente nasce?

Melchior: Você não sabe Moritz?

Moritz: Como eu iria saber? As galinhas põem ovos, a minha mãe diz
que me trouxe no coração. Eu sei que é mentira. Mas, qual é a
verdade? Eu lembro que eu ficava vermelho quando via aquele decote
da dama de copas do baralho. Isso passou, mas sempre que converso
com uma garota, não consigo parar de pensar naquela figura,
Melchior!

Melchior: Vou te contar tudo. Eu sei de algumas coisas por livros,


ilustrações e parte por observações na natureza. Você vai ficar
surpreso. Eu parei de acreditar em Deus! Essa história de Adão e Eva,
é pura invenção.

Moritz: Eu já li enciclopédias inteiras, palavras e mais palavras! Nada


que me fizesse entender. De que serve uma enciclopédia, se não
responde a questão mais importante da vida?

Melchior: Você nunca viu um bando de cães correndo atrás de uma


cadela no cio?

Moritz: Chega, Melchior, melhor parar.

Melchior: Vamos lá em casa! Em quarenta minutos fazemos os


trabalhos. Minha mãe faz uma limonada e podemos conversar à
vontade sobre reprodução.

Moritz: Não posso! Eu não posso conversar à vontade sobre isso! Você
não quer me fazer uma favor? Me dá suas explicações por escrito.
Escreve o que sabe. Coloca no meio do meu caderno. Eu levo pra casa
sem saber.

Melchior: Moritz.

Moritz: Hum?!

Melchior: Você já viu alguma menina pelada?

Moritz: Já.

Melchior: Mas interirinha?

Moritz: Completamente.

Melchior: Eu também vi. Então não é preciso fazer ilustrações.

Moritz: No Museu de Anatomia de Leilich, durante a competição de


tiro ao alvo. Se me pegassem, me expulsavam da escola. Tudo ali, à
luz do dia. Parecia de verdade.
Melchior: Ei, você já vai embora?

Moritz: Vou fazer os trabalhos.Tchau, Melchior.

Melchior: Tchau, Moritz.

Cena 3

As três olham para trás, vendo Melchior passar.

Thea: Ele é tão bonito! (Melchior cumprimenta enquanto


passa).

Martha: Quando falam de Alexandre, o Grande, na aula de História -


é assim que eu imagino...

Wendla: Parece que ele é o terceiro melhor aluno da classe.

Thea: Alguns professores dizem que ele podia ser o primeiro, se


quisesse.

Martha: Que rosto ele tem! Mas eu acho que o amigo dele é mais
sensível, tem um olhar mais profundo.

Wendla: Quem? O Moritz Stiefel?

Martha: Ahan

Thea: O Moritz?! (Wendla e Thea riem)

Martha: Eu sempre gostei dele.

Thea: Ele sempre põe as pessoas numas situações... Toda vez que eu
dou com ele é um embaraço. Na festa do Hanschen Rilow ele me
ofereceu bombons. Imagina, Wendla, estavam todos moles e quentes.
Ele disse que ficaram muito tempo dentro do bolso da calça.

Wendla: Sabe o que o Melchior me disse nessa festa? Ele me disse


que não acredita em absolutamente nada. Não acredita em Deus. Não
acredita em outra vida. Não acredita em nada.

Thea: Sua trança está solta, Martha. Está desmanchando.


Martha: Deixe, pode deixar. Que idiotice! É sempre isso, dia e noite.
Fico furiosa! Não posso ter o cabelo curto como o seu, nem solto
como o da Wendla. Também não posso ter franja. Até dentro de casa
ele tem que estar arrumado - por causa das minhas tias.

Wendla: Amanhã vou levar uma tesoura na aula de Religião.


Enquanto você estiver recitando "Bem-aventurados os limpos de
coração...", eu corto a sua trança de uma vez só.

Martha: Pelo amor de Deus, Wendla. Papai já me dá surras demais!

Wendla: É mesmo?

Martha: Não. (disfarçando) É claro que não! Bobagem... (saindo)

Wendla: Martha!

Thea: Martha! Nós somos suas amigas.

Martha: Quando eu não faço o que ele quer...

Thea: O que?

Martha: Algumas noites o papai pega o cinto.

Thea: Mas onde esta sua mãe?

Martha: (imitanto a mãe) “Martha, nós temos regras nesta casa. Seu
pai não pode ser desobedecido!”

Thea: Meu Deus!

Wendla: Ele te bate com um cinto?

Martha: Com qualquer coisa.

Wendla: Cinto com fivela?

Martha: Bem aqui (mostrando o braço)

Wendla: Meu Deus!

Thea: Martha, as marcas são horríveis! A gente precisa contar isso pra
alguém!
Martha: Não! Não!

Wendla: É preciso!

Martha: Pra ele me expulsar de vez?

Thea: Você quer dizer, como aconteceu com a Ilse?

Martha: (pausa) Olha só o que aconteceu com a Ilse. Ela tá vivendo


sabe-se lá onde. Sei lá com quem.

Wendla: Se eu pudesse eu ficava no seu lugar.

Thea: Martha, não fique assim. O meu tio Klauss diz que se você não
dá disciplina a um filho, é porque não gosta dele.

Martha: Deve ser.

Thea: Quando eu tiver filhos, se forem meninos, eles vão poder usar
cor de rosa se quiserem. (Wendla ri) E as meninas vão poder usar
vestidos azuis.

Martha: Eu gosto de azul. Uma noite, coloquei uma fita azul na minha
camisola, ficou tão bonito! Mas a mamãe puxou o cobertor, me
agarrou pela trança e eu caí no chão, de joelhos.

Wendla: Se eu fosse você, já tinha fugido há muito tempo.

Martha: "Então é isso o que você quer?", ela gritou. "Eu estou vendo
no que isso vai dar. Mas você vai aprender. Ah, você vai aprender. E aí
você vai entender que a sua mãe estava certa". Eu fiquei estendida no
chão, chorando e gritando. Aí o papai entrou. Um rasgo e pronto -
minha camisola se foi. Eu me enrolei no chão, sem roupa, tremendo.
E ele gritava: "Olha ali, a porta da rua! Por que não vai embora, assim
como está?"

Wendla: Eu não consigo acreditar!

Martha: Eu tremia de frio. Não conseguia levantar a cabeça. De


repente minha mãe saiu e ele fechou a porta do quarto... (pausa) Será
que ela não sabia?

Wendla: Não sabia o que Martha?

Martha: Se eu dissesse não... Se eu pudesse dizer não... Então meu


pai se aproximou, me pediu um beijo de boa noite... Me abraçou e
susurrou nos meus ouvidos “somos só nós dois... Nós e um segredo”

Ilse (à parte): Eu sei que é errado. Mas não gritei... Deitada ali... não
gritei... Eu quero ser forte, eu vou pra rua espalhar, o que você me
ensinou! Como eu sou linda! Eu sou linda!

Martha: Lá no fundo de mim é um escuro sem fim...

Cena 4

Melchior: Algum de vocês sabe onde está o Moritz?

Hanschen Rillow: É bem capaz de estar encrencado. É bem capaz


mesmo.

Ernest: Deixa ele ir aprontando. Um dia ele vai ver o que acontece.

Hanschen Rillow: Eu é que não queria estar na pele dele neste


momento.

Melchior: Espera aí. O que vocês sabem que eu não sei?

Hanschen Rillow: O que nós sabemos? Ora, eu já te digo.

Ernest: Eu prefiro não dizer nada.

Melchior: Se vocês não me contarem...

Hanschen Rillow: Tá bom! O Moritz entrou na sala de conselhos.

Melchior: Como é que é? Na sala de conselhos?

Ernest: É, na sala de conselhos!Entrou logo que acabou a aula de


latim.

Hanschen Rillow: Ele foi o último a sair, ficou atrás de propósito.Eu


ainda estava no corredor quando olhei para trás e vi o Moritz abrindo
a porta.A reitoria pelo visto não tirou a chave da porta.

Ernest: Ou então ele tem a chave falsa.


Hanschen Rillow: Ele é bem capaz disso.

Ernest: Se tudo der certo para ele, no mínimo ele vai levar um castigo
no domingo à tarde.

Hanschen Rillow: E vai ter o nome anotado na caderneta do Reitor.

Ernest: Isso se ele não for reprovado direto.

Hanschen Rillow: Aí vem ele.

Melchior: Branco como a cal.

Hanschen Rillow: Ai, ai, ai, Moritz.O que foi que você foi fazer?

Moritz: Nada...nadinha!

Hanschen Rillow: Você está com febre!

Moritz: De felicidade.De alegria…

Ernest: Pegaram você?

Moritz:(feliz) Passei! Passei,Melchior! Agora pode acontecer o pior que


eu não ligo. Passei! Eu não tô acreditando. Li meu nome vinte vezes!
Não posso acreditar ainda-ai meu Deus! E era verdade, era verdade!
Eu me sinto tão esquisito. O chão está rodando!...Melchior, Melchior,
você sabe bem o que eu sofri.

Ernest: Parabéns, Moritz.Você teve sorte!

Hanschen Rillow: Escapou dessa, hein?

Moritz: Você não sabe, Hanschen, você nem imagina o que estava em
jogo. Há três semanas que eu passava por ali como se aquele lugar
fosse a boca do inferno. Hoje vejo que a porta está encostada. Entro
na sala, abro o livro das atas, folheio, encontro-e o tempo todo...estou
cheio de arrepios...

Melchior : E o tempo todo o quê?

Moritz: O tempo todo a porta escancarada atrás de mim.Como saí,


como desci as escadas eu não sei.

Hanschen Rillow: O Lammermeier também passou?


Moritz: Com certeza, Hanschen .O Lammermeier também passou.

Hanschen Rillow: Então você não deve ter lido direito. Tirando os
burros e somando você e o Lammermeier dá sessenta e um e a sala
de aula do ano que vem só vai poder ter sessenta alunos…

Moritz: Li perfeitamente. O Lammermeier passou, assim como eu


também passei…mas ambos sob condição. Durante o primeiro
semestre vamos ver quem vai dar lugar para o outro. Coitado do
Lammermeier. Juro que eu já não tenho medo nenhum…

Hanschen Rillow: Aposto cinco marcos que você é quem vai dar o
lugar para ele.

Moritz: Não quero tirar dinheiro de um mendigo, Hanschen. Meu


Deus, o que serei capaz de enfiar na cabeça de hoje em diante! Agora
já posso contar, quer acreditem ou não, agora nada mais me interessa.
Eu, eu sei a que ponto isso é verdade. Se não tivesse passado eu dava
um tiro nos miolos.

Hanschen Rillow: Isso é papo furado! Você é medroso.

Melchior: Cale a boca!

Hanschen Rillow: Não compreendo, como pode o melhor aluno


sentir-se tão atraído pelo mais idiota de todos.

(Melchior bate em Hanschen Rillow)

Melchior: O que você tem com isso?

Moritz: Desencana, Melchior. Anda, vamos pra casa.

Ernest: Você esta bem? Não fique chateado.

Hanschen Rillow: Que pena, os minutos. Mal empregados


minutos.

Cena 5
(sala de estar)
Sra Bergmann: Wendla! Wendla!

Wendla: O que é mãe?

Sra.Bergmann: Se arrume depressa.Você tem que ir a casa da sua


irmã.

Wendla: A senhora esteve na casa de Ina? Como é que ela está?


Ainda não melhorou?

Sra. Bergamann: Olha só, Wendla, a cegonha foi lá esta noite e lhe
deixou um menino.

Wendla: Um menino? Um menino?! Oh! É estupendo... Ah, então era


isso a gripe que nunca passava. Estava lá quando a cegonha trouxe o
menino?

Sra.Bergamann: Ela tinha acabado de levantar vôo.

Wendla: Que pena!Eu gostaria tanto de saber se a cegonha entrou


pela janela ou pela chaminé.

Sra.Bergmann: Pergunta à Ina. Ela esteve bem uma meia hora


conversando com a cegonha.

Wendla: Não será melhor eu perguntar ao homem que limpa a


chaminé? Esse é que deve saber se a cegonha entra ou não pela
chaminé.

Sra.Bergmann: Ao limpa-chaminés, não, filha. O que ele sabe sobre


cegonha? Vai lá, põe o chapéu. Gostaria de saber quando é que terá
juízo. Já perdi as esperanças.

Wendla: Eu também, mãezinha. Eu também já perdi a esperança. Eu


tenho uma irmã que está casada há dois anos, eu mesma sou tia pela
terceira vez e não faço a menor idéia de como as coisas
acontecem...Não fique brava, mãe. Pra quem eu posso perguntar, se
não for pra você? Me responda, mãe, me responda. Como é que
acontece? Eu tenho quatorze anos. Com quatorze anos ninguém mais
acredita nessa história de cegonha.

Sra.Bergmann: Meu Deus! Que filha eu tenho. Você tem cada idéia.
Eu não posso, Wendla.

Wendla: Por que não, mãe? Por que não? Não pode ser tão horrível
assim, se o resultado alegra todo mundo!

Sra.Bergmann: Meu Deus, eu não mereço isso. Vá, pegue o


casaco. Vamos.

Wendla: Eu estou indo. Sua filhinha vai direto perguntar pro homem
da chaminé como é que as coisas acontecem.

Sra.Bergmann: Você quer me enlouquecer? É isso? Venha aqui,


filha. Venha. Eu vou te contar tudo. Mas, por Deus, não hoje.
Amanhã. Ou depois de amanhã. Na semana que vem. Quando você
quiser, meu anjo.

Wendla: Hoje. Agora. Agora que eu vejo como fica horrorizada, agora
eu não durmo sem saber o que acontece.

Sra.Bergmann: Eu não posso.

Wendla: Mãe, olha. Você senta aqui. Eu ponho a cabeça no seu colo
e a senhora coloca o avental por cima da minha cabeça e,
simplesmente começa a falar. Como se estivesse falando sozinha. Eu
não me mexo, não choro nem nada. Seja o que for, eu fico bem aqui.

Sra.Bergmann: Deus sabe que eu não tenho culpa, Wendla. O céu é


testemunha. Venha, pelo amor de Deus. Venha aqui. Eu vou te contar
como a gente vem parar neste mundo. Escute.

Wendla:(debaixo da saia da mãe) Estou escutando.

Sra.Bergmann: Mas é impossíel, filha. Eu não posso tomar essa


responsabilidade. Mereço que me metam na prisão, que me separem
de você..

Wendla: Coragem, mãe!

Sra.Bergamann: Então escuta...

Wendla:(debaixo do avental, tremendo) Meu Deus, meu Deus!

Sra.Bergmann: Para se ter um bebê - você está escutando?

Wendla: Mãe, eu não consigo agüentar isso mais tempo. Por favor.

Sra.Bergmann: Se você quer ter um bebê, você tem que amar o


homem - o homem que é seu marido - você tem que amar esse
homem, amar de verdade, só como uma mulher pode amar um
homem. Você tem que amar tanto - com todo o seu coração e todo,
tanto, que... Nem se pode dizer com palavras. Você tem que amar
esse homem de um jeito que uma menina da sua idade ainda não sabe
amar. É isso. Pronto.

Wendla: E isso é tudo?

Sra.Bergmann: Agora já sabe as provas porque terá que passar...Vai


levar os cestos à Ina... Anda, deixa eu te ver... Você está com a saia
curta demais, Wendla! Vou mesmo pôr uma barra embaixo.

Cena 6
(casa de Melchior)

Melchior: A vida é de uma baixaria incrível. Às vezes tenho vontade


de me enforcar numa árvore.

(A Sra. Gabor entra e traz o chá fumegante, que põe em cima da


mesa, em frente de Moritz e de Melchior)

Sra.Gabor: SRA. GABOR Aqui está o chá. Tem leite e açúcar, se vocês
quiserem. Como vai o senhor, Sr. Stiefel?

Moritz: Bem, obrigado, Sra. Gabor. Eu estava olhando coisas muito


estranhas que acontecem no jardim, lá embaixo.

Sra.Gabor: Você está pálido. Está se sentindo bem?

Moritz: Eu tenho dormido pouco esses dias.

Melchior: Imagina que ele passou a noite em claro, estudando.

Sra.Gabor: Você acha isso correto, Sr. Stiefel? É sempre bom lembrar
que existem prioridades. E a saúde vem antes de tudo. Estudos nunca
vêm antes da saúde. Passear ao ar livre. Abrir os pulmões. É muito
mais importante na sua idade do que se enterrar nas lições de
Alemão.

Moritz: A senhora tem razão, Sra. Gabor. Passeios. Também pode se


estudar enquanto se passeia. Como eu não pensei nisso antes? O que
precisar escrever eu faço em casa.
Melchior: Esses você faz aqui comigo:torna-se mais fácil para os dois.

Sra.Gabor: Que livro é este, Melchior?

Melchior: Fausto.

Sra.Gabor: Terminou?

Melchior: Falta um pouco.

Sra.Gabor: Se eu fosse você, teria esperado um ano ou dois para


ler o Fausto. Talvez dois anos.

Melchior: Eu nunca vi, em nenhum livro, passagens de beleza


assim, tão intensa. Por que esperar?

Sra. Gabor: Muito dele ainda está fora do alcance do seu


entendimento.

Melchior: Mãe, como é que você pode saber uma coisa dessas? Eu sei
que não consigo compreender muitas coisas nele.

Moritz: Nós lemos os dois juntos, ajuda a entender.

Sra. Gabor: Melchior, eu sei que você já tem idade para saber o que é
bom para você e o que não é. Você tem consciência de que só se faz
uma coisa quando se pode assumir a responsabilidade por essa coisa.
Eu vou ser sempre grata a você por não me colocar na posição de te
privar de nada. Só queria te lembrar que mesmo o melhor livro pode
ser prejudicial, se for lido na hora errada. O melhor precisa sempre de
maturidade. Experiência. Mas eu confio em você, Melchior, mais do
que em qualquer norma pedagógica. Se vocês precisarem de mais
alguma coisa, eu estou no meu quarto. (Sai).

Moritz: Sua mãe estava se referindo a história da Gretchen. O próprio


Fausto não poderia ter se afastado com mais sangue frio.

Melchior: Fausto poderia ter prometido se casar com a moça e depois


abandona-la. A Gretchen poderia morrer de amor.Se a preocupação
das pessoas com esse aspecto for obssessiva, dá pra pensar que o
mundo todo gira em torno do pênis e da vagina. (acende um cigarro e
entrega outro para Moritz)

Moritz: (acendendo um cigarro) Desde que eu li o manual que você


me escreveu, eu tenho essa sensação. Pênis e vagina. Talvez o meu
mundo gire em volta disso também. Eu abri o meu livro de Francês e
dei com aquilo. Fui e tranquei a porta. As linhas queimavam e as
palavras pulavam pra cima e pra baixo. Eu acho que li quase tudo com
os olhos fechados. As suas explicações são estranhas - ao mesmo
tempo são familiares. O que mais me perturbou foi o que você disse
sobre as meninas. A sensibilidade delas tem a frescura de uma flor que
brota na pedra. Ela ergue a taça (que nenhuma boca ainda encostou)
e toma o néctar, enquanto ele queima e brilha. O prazer do homem,
comparado com isso, é insosso e miserável.

Melchior: Você ache o que quiser, mas guarde pra você. Eu não me
permito nem sequer pensar sobre esse assunto.

Cena 7
(Floresta)

Melchior: É você mesmo, Wendla? O que é que você Está fazendo


aqui sozinha?

Wendla: Sou eu, sim.

Melchior: Se eu não soubesse que era Wendla, diria que era uma
ninfa.

Wendla: Não, não. Sou a Wendla mesmo. E você, o que está fazendo
aqui?

Melchior: Pensando.

Wendla: Estava procurando brincos-de-princesa. Mamãe vai fazer


ponche. Ela vinha comigo, mas aí a tia Bauer chegou e ela não
aguenta as subidas. Então eu vim sozinha.

Melchior: E achou as flores?

Wendla: Um cesto cheio. Ali embaixo daquelas árvores elas


crescem feito mato. Eu estava procurando a saída. Acho que eu me
perdi. Que horas são?

Melchior: Quatro e meia. Tem que chegar em casa que horas?


Wendla: Pensei que fosse mais tarde. Eu fiquei deitada na margem do
rio não sei quanto tempo. Tive um sonho, o tempo voou. Fiquei com
medo que já fosse de noite.

Melchior: Se você não precisa ir agora, pode ficar aqui comigo. Gosto
de olhar para aquele lado, o céu fica meio laranja quando o sol está se
pondo. Wendla, já faz um tempo que quero te perguntar uma coisa.

Wendla: Tenho que voltar pra casa antes das seis.

Melchior: Vamos juntos depois, eu levo a sacola. Eu gosto de ficar


assim, olhando pro nada, a gente fica assustado com os nossos
pensamentos.

Wendla: O que você quer me perguntar, Melchior?

Melchior: Eu ouvi dizer que muitas vezes você vai à casa de gente
pobre. Que lhes leva comida, roupas, dinheiro. Quando você vai, é por
que quer? Ou por que tua mãe te mandam?

Wendla: A maioria das vezes é minha mãe quem manda, vamos


juntas, são pessoas carentes, pais desempregados, gente passando
fome e frio. Em casa sempre tem coisas sobrando. Quem te contou?

Melchior: Quando tua mãe te manda, você gosta de ir?

Wendla: Claro que gosto! Como você pode perguntar uma coisa
dessas?

Melchior: Mas as crianças são porcas, as mulheres doentes, as casas


imundas, os homens têm ódio de você porque você tem dinheiro.

Wendla: Isso não é verdade, Melchior. E se fosse, aí é que eu iria


mesmo!

Melchior: Aí é que você iria?

Wendla: É, então que iria.Teria mais prazer em poder ajudar.

Melchior: Você vai à casa de gente pobre porque isso te dá prazer?

Wendla: Vou por que são pobres!

Melchior:Mas se não tivesse prazer nisso não iria!


Wendla: Que culpa tenho eu que isso me dê prazer?

Melchior: E ainda assim vai pro “céu”.Eu estava certo.Que culpa tem
o egoísta se não tem prazer em visitar crianças pobres e doentes?

Wendla:Você adoraria fazer isso, Melchior.

Melchior: Os egoístas vão pro inferno! Vou conversar com o padre,


meus pais querem que eu faça a crisma! O padre fica falando sobre a
tal alegria de doar! Se ele não me convencer, não faço a crisma e
acabo com essa história de comunhão.

Wendla: Por que magoar seus pais, Melchior? Faça a crisma. Não
custa nada.

Melchior: Não se tem que fazer nada pelos outros! O sacrifício não
existe! Os bons ssofrem e os maus e alegram... Em que você estava
pensando antes de eu chegar?

Wendla: Bobagens

Melchior: Só?

Wendla: Pensei como seria se eu fosse uma menina muito pobre, uma
mendiga. Teria que acordar muito cedo, pedir esmola o dia todo, ver
as pessoas com frieza, maldade. Voltando pra casa com fome e frio, e
por que não tinha conseguido o dinheiro, meu pai me batia, batia.

Melchior: As pessoas não fazem isso por maldade. Acredite, já não


existem homens tão cruéis.

Wendla: Existem sim, Melchior. Você está muito enganado! A Martha


apanha dos pais todo dia. De manhã está cheia de marcas roxas. Oh,
meu Deus! Sinto tanta pena dela! Queria poder ajuda-la, ficar no lugar
dela por uma semana que fosse. Melchior, em mim nunca ninguém
bateu, nenhuma vez. Eu não imagino o que seja apanhar. Eu já tentei
me bater pra ver como é!

Melchior: Eu não acredito que uma criança se corrija assim.

Wendla: Assim como?

Melchior: Com surras.


Wendla: Dessa vara, por exemplo.

Melchior: Essa tira sangue.

Wendla: Melchior, você era capaz de me bater com ela?

Melchior: Bater em você?

Wendla: Isso. Em mim. Agora.

Melchior: Wendla, o que foi que deu em você?

Wendla: Por que não?

Melchior: Chega! Eu não vou bater em você.

Wendla: Eu deixo.

Melchior: Nunca.

Wendla: E se eu implorasse, Melchior?

Melchior: Você está doida?

Wendla: Nunca me bateram, em toda a minha vida. Por favor!

Melchior: Como é capaz de implorar uma coisa dessas?

Wendla: Por favor, Melchior. Por favor!

Melchior: Por favor? Eu vou te ensinar como se pede "Por favor"!


(bate nela com a vara).

Wendla: Não sinto nada:

Melchior: Também, todas essas saias.

Wendla: (subindo as saias) Então, me bata nas pernas.

Melchior: Wendla! (bate com mais força).

Wendla: Isso não é bater, Melchior? Me bata de verdade!

Melchior: Bruxa! De verdade? Eu vou arrancar o demônio do seu


corpo!
(joga fora a vara e começa a dar socos em Wendla. Ela grita. Ele a
ataca com mais violência e chora furiosamente. Levanta-se e, de
repente, foge para o meio da mata, soluçando).

SEGUNDO ATO

Cena 1
(quarto de Hanschen Rillow)

(Hanschen Rillow com um lampião na mão tranca a porta atrás de si)

Hanschen Rillow: Você rezou esta noite, Desdêmona? (tira do peito


uma reprodução da "Venus" de Palma "Il Vecchio") Eu não acho que
você rezou com bastante força, querida - fica me olhando como se
soubesse o que vai acontecer. Como naquele dia, no nosso primeiro
encontro, quando eu espiei você deitada na vitrine do Schlesinger,
entre um candelabro de bronze e um facão de caça. Tão alucinante. Os
membros flexíveis. A curva suave do quadril. Os seios duros e jovens.
Como deve ter ficado embriagado o grande mestre, quando teve a
modelo de quatorze anos estendida ali, bem na sua frente, no divã. Ele
podia tocar, se quisesse. Você vem me visitar nos meus sonhos? Eu
me deito na cama quente, abro os braços e te beijo até você sufocar.
Você toma conta de mim, entra em mim como a dama entra no seu
palácio deserto. Quando as portas são abertas por mãos invisíveis. E lá
embaixo, no jardim, a fonte começa a jorrar mais uma vez.
(começa a se masturbar).

Cena 2
(Um celeiro)

(Melchior está deitado de costas no feno fresco.Wendla aparece)

Wendla: Então você está aqui, Melchior Todos estão procurando você
pra ajudar com esse feno; vem vindo um temporal...

Melchior: Vá embora! Vá embora daqui!

Wendla:O que é que você tem? Está escondendo o rosto?


Melchior: Saia, ou eu mesmo te ponho para fora!

Wendla:Pois agora‚ que eu não saio. (ajoelha-se perto dele) Por que
você não vai me ajudar a recolher o feno, Melchior. Credo, aqui está
abafado e escuro...

Melchior: O feno tem um cheiro maravilhoso. O céu lá fora deve estar


negro como uma mortalha. Só vejo a papoula luminosa do seu peito e
ouço o teu coração bater...

Wendla: Não me beije, Melchior, não me beije!

Melchior: Ouço o teu coração bater....

Wendla: As pessoas se amam...quando se beijam...não, não...

Melchior: Acredite em mim.O amor não existe.Tudo é interesse,


tudo‚ egoísmo. Amo você pouco como você também me ama pouco.

Wendla: Não, não, Melchior!

Melchior: Wendla!

Wendla: Oh, Melchior! Não, não...

Cena 3
(Hanschen volta a olhar para a Vênus)

Hanschen Rillow: Esse aperto no coração. Isso só mostra que eu não


te mato assim, futilmente. Minha garganta seca quando eu penso nas
noites solitárias. Eu juro por Deus que não é ausência de desejo, nem
é porque se esgotaram os seus encantos. Que homem poderia se
desinteressar por você? É que a sua castidade exige muito. Você seca
a medula dos meus ossos, torce a minha espinha, tira o brilho jovem
dos meus olhos. Um de nós tem que morrer. E a vitória vai ser minha.
Quantas já se foram, antes de você? Psique, Io, Galatéia, Cupido,
Ada? Essa eu roubei da escrivaninha do meu pai e acrescentei no
harém. E a Leda, que caiu dos cadernos do meu irmão mais velho?
Seis. Foram seis antes de você. Pros infernos! Que isso te sirva de
consolo. Nada desse olhar de súplica. Isso só aumenta o meu
desespero. Você não está morrendo por causa dos seus pecados. É por
causa dos meus. É pra salvar a minha pele que eu cometo esse crime,
com o coração sangrando. Pela sétima vez. Mas minha consciência vai
ficar mais tranqüila e o meu corpo vai ficar mais forte, quando você -
demônio - não se deitar mais na seda vermelha do meu porta-jóias.
Eu arranjo depois uma Lorelei pra te substituir. Mais três meses desse
teu sexo desnudado e os meus miolos iam derreter. Já é hora de
separar a cama da mesa. O que me deixa louco é a sua castidade. É
dela que nasce a minha depravação. Por isso, eu te amaldiçôo. Todas
da sua laia. Esses monstros de educação esmerada. Como a minha.
Tem que ser assim, meu amor. Tem que ser.

(Rasga a foto)

Cena 4
(Quarto dos Srs Gabor)

Sra. Gabor: Caro Sr. Stiefel. Tenho pensado sobre o que me escreveu.
Agora, com o coração pesado, respondo. Dou minha palavra que não
tenho como emprestar o dinheiro para sua passagem para Amsterdam.
Mesmo se eu tivesse o dinheiro, não seria irresponsável a ponto de
cometer esse pecado, oferecendo os meios para um ato tão irrefletido
e cheio de conseqüências. Será injusto da sua parte imaginar que isso
seja falta de amor. Ao contrário. Se ajudar, escrevo para os seus pais.
Posso tentar explicar que você fez tudo o que era possível, até o limite
do esgotamento - e que uma avaliação severa demais seria
imensamente prejudicial à sua saúde física e psíquica. Mas o que me
deixou perplexa foi a menção de que pretende tirar a própria vida,
caso não tenha meios de fugir. Não há desgraça que justifique isso.
Além disso, me entristece a maneira como você tenta me tornar
responsável por esse crime horrível, a mim que sempre te dei provas
de bondade e simpatia. Isso se chama chantagem. De você eu nunca
esperaria isso. Estou convencida que o terror compromete sua razão e
espero que minhas palavras o encontrem mais equilibrado. Não
exagere - não se julga ninguém pelos boletins da escola. E saiba que,
no que depender de mim, sua relação com Melchior continua a
mesma. Por mais que te condenem, eu admiro e apóio a amizade de
vocês. Levante a cabeça, Stiefel! Crises assim são parte da vida - se
todos apelassem ao punhal ou ao veneno, não haveria mais homens
no mundo. De sua amiga... Fanny Gabor.

Cena 5
(Crepúsculo. O céu está levemente encoberto. Ouve-se a uma certa
distância o murmúrio do rio)
Moritz: É o melhor a fazer. Eu não me adapto a isso. Eles que se
danem. Fecho a porta atrás de mim e me liberto disso tudo. Não estou
muito interessado em me deixar levar, não. Eu não me impus, por que
haveria de me impor agora. Não tenho nenhum contrato com o Nosso
Senhor. De qualquer modo, meus pais deveriam estar preparados para
o pior. Eles tinham idade suficiente para saber o que estavam fazendo.
Eu não, eu era um bebê quando vim ao mundo... Mas por que eu é
que tenho que pagar pelos erros dos outros? Por que devo pagar pelo
fato de todos os outros já estarem aqui? As pessoas nascem
totalmente por acaso e depois de refletirem bem, elas deviam, é...dar
um tiro na cabeça. Não quero chorar outra vez... Não quero pensar no
meu enterro. O Melchior vai colocar uma coroa no meu caixão. O
Pastor Kahlbauch vai consolar os meus pais, o reitor Sonnentisch vai
citar exemplos da história. Eles não devem me dar um túmulo. Eu
gostaria de ter um túmulo de mármore branco, mas também não
sentirei falta. Os monumentos são para os vivos e não para os
mortos...
Eu precisaria de um ano para poder me despedir de todos em
pensamento. Não quero chorar outra vez. Estou contente por poder
olhar para trás sem amargura. Quantas noites agradáveis eu passei
com o Melchior. Soluço de tristeza por minha perda. A vida mostrou o
seu lado amargo.(Tira a arma) E eu tenho aqui o meu bilhete para a
liberdade...

Ilse:(com um vestido rasgado, um lenço colorido na cabeça. Ela


agarra Moritz pelos ombros) O que você perdeu?

Moritz:Ilse!

Ilse: O que você está procurando aqui?

Moritz: Por que você me assustou?

Ilse: O que você perdeu?

Moritz: Que susto que eu levei. Eu não sei o que foi que eu perdi.

Ilse: Então não vale a pena ficar procurando.

Moritz: Meu Deus do céu!

Ilse: Estou vindo da cidade.

Moritz: Silenciosa como um gato!


Ilse: É por que estou sem sapatos.

Moritz: Por onde você tem andado?

Ilse: Na casa do Nohl, do Fehrendorf, do Padinsky, do Lenz, do Rank,


do Spüller - de todos! Din-don!

Moritz: Eles estão pintando você?

Ilse: O Fehrendorf está me pintando como uma deusa em cima de


uma coluna grega. Aquele Fehrendorf é muito esquisito. Eu pisei numa
bisnaga de tinta e ele limpou os pincéis no meu cabelo. Eu dei um
soco nele. Ele atirou a paleta na minha testa. Eu derrubei o cavalete e
ele correu atrás de mim que nem um louco, por cima dos divãs, das
mesas, das cadeiras. Aí eu peguei um esboço atrás do fogão e
ameacei: "Você para ou eu rasgo isto aqui!". Fizemos as pazes e ele
me beijou, me beijou da cabeça aos pés.

Moritz: Onde você dorme quando fica lá na cidade?

Ilse: Noite passada foi na casa do Nohl. Antes foi na do Bojokewitsch.


Domingo na do Oikonomopoulos. Tem tanta champagne na casa do
Padinsky. A gente bebia até no cinzeiro. O Lenz cantava a arrebentou
o violão. Eu estava tão bêbada que tiveram que me carregar pra
cama. Você ainda esta na escola, Moritz?

Moritz: Não, eu saio este semestre.

Ilse: Que bom. Quando você sai da escola o tempo voa. Lembra
quando a gente brincava de ladrão, eu, você, a Wendla Bergman e os
outros? Como a gente bebia leite de cabra ainda quente, lá em casa?
O que a Wendla anda fazendo? Eu me encontrei com ela, quando
teve a enchente. E o Melchior Gabor? Ele ainda tem aquele olhar
melancólico? A gente ficava de frente um pro outro na aula de canto.

Moritz: Ele é um filósofo.

Ilse: Encontrei com a Wendla no dia da enchente... Você está com


ânsia?

Moritz: (mentindo) Essa noite a gente bebeu feito uns porcos. Fui
pra casa às cinco da manhã, tropeçando.

Ilse: Eu nunca fico enjoada. No carnaval passado eu fiquei três dias e


três noites sem dormir e sem trocar de roupa. Do baile pro café,
depois almoço, cabaré de noite e de volta pro baile. A Lena estava
comigo e a Viola, gorda. Lembra dela? Aí no quarto dia o Heinrich me
achou.

Moritz: Ele tinha ficado procurando?

Ilse: Ele tropeçou no meu braço. Eu estava caída na sarjeta,


inconsciente, coberta de neve. Ele me levou pra casa dele. Não saí de
lá durante quinze dias - foi horrível! De manhã eu tinha que andar
pela casa de roupão persa. E de noite num preto, de pajem, com
renda branca na gola, nos punhos e na barra. Todo dia ele tirava
fotografias minhas, nas poses mais exóticas - uma Ariadne deitada no
sofá, às vezes como Leda ou de quatro no chão, feito um
Nabucodonosor feminino. Foi nessa época que ele andava obcecado
com a idéia de assassinar, de fuzilar, de se suicidar, de se asfixiar com
gás. Ele levantava da cama de madrugada e voltava com uma arma
carregada. Apontava pro meu peito. "Se você piscar, eu puxo o
gatilho". E ele era capaz, Moritz! Pode acreditar. Depois ele punha o
cano dentro da boca. Ele dizia que isso despertava o meu instinto de
preservação.

Moritz: Ele conseguiu se matar?

Ilse: Como é que eu vou saber? Eu acordava e ficava contando os


minutos - por favor, meu Deus, amanheça logo! “Boa noite, Ilse.
Quando você dorme, sabe, querida? Você é tão bonita que eu tenho
vontade de matar!”

Moritz: Esse homem está vivo?

Ilse: Deus queira que esteja morto. Um dia ele saiu pra buscar
absinto, eu pus o casaco e fugi. O carnaval já tinha passado e a polícia
me pegou. Que é que eu pretendia assim, vestida de homem? Me
levaram pra delegacia. Então apareceram o Nohl, o Fehrendorf, o
Padinsky. Eles me tiraram de lá. Num carro de aluguel. Desde esse
dia, eu sou fiel a todos eles. O Fehrendorf é um gorila. O Nohl é um
porco. O Padinsky um burro. Mas eu amo todos eles e não quero mais
ninguém, mesmo que o resto dos homens fossem anjos e milionários.

Moritz: Eu tenho que voltar, Ilse.

Ilse: Venha até a minha casa.

Moritz: Pra quê?


Ilse: Pra tomar leite de cabra quente. Eu vou pentear os seus cabelos
e colocar um sino no seu pescoço. A gente tem um cavalinho de pau
que você pode brincar.

Moritz: Eu tenho que voltar. Os sassânidas, o Sermão da Montanha


pesam na minha cabeça. Tudo pra amanhã. Boa noite, Ilse.

Ilse: Durma bem! Você e o Melchior ainda saem juntos? Ah, quando
vocês chegarem onde estou agora, eu com certeza já estarei um lixo!
(sai correndo)

Moritz: Bastaria uma palavra minha...(chama) Ilse, Ilse! Graças à


Deus que ela não ouviu.É, não estou disposto mesmo.Para isso é
preciso ter a cabeça despreocupada.Mas é uma pena perder essa
oportunidade! SER VOCÊ, ILSE! SE EU PUDESSE SER VOCÊ! Essa
filha da Sorte, essa filha da vida! ESSA PROSTITUTA NO MEU
CALVÁRIO! (nos arbustos da margem)
Essas flores parece que cresceram de ontem pra hoje, mas a vista
através dos salgueiros ainda é a mesma. O rio corre pesado. Parece
chumbo derretido. Ah, que eu não me esqueça. (tira a carta de
Sra.Gabor do bolso e a rasga) Almas, estrelas cadentes... Antes dava
para ver um risco no horizonte. Agora escureceu. É agora eu não volto
mais pra casa. (aponta o revólver na cabeça e atira. O barulho do tiro
é ensurdecedor)

Cena 6
Cemitério. Chove muito.

Ernst: (jogando uma flor na cova) Descansa em paz.

Hanschen: (jogando uma flor na cova) O seu túmulo merece um


espantalho como enfeite, por causa da tua ingenuidade angelical.

Ernst: Acharam a arma?

Hanschen: Não faz diferença.

Thea: Você viu a cara dele, Ernst?

Ernst: Eles cobriram com um lençol. Estava quase todo enrolado.

Thea: Será que a língua dele estava pra fora?


Ernst: Parece que os olhos estavam. Por isso cobriram a cara com o
lençol.

Thea: Que nojo! Tem certeza que ele se enforcou?

Hanschen: Dizem que a cabeça estava solta. Todo enforcado tem a


cabeça coberta no velório.

Ernst: Ele não podia ter arranjado um jeito melhor de se despedir.

Hanschen: Dizem que morrer enforcado tem as suas compensações.

(Os dois saem)

Ilse: Depressa que os coveiros vêm vindo.

Martha: Não é melhor esperar, Ilse?

Ilse: Por quê? A gente pode trazer flores novas depois. Sempre
trazendo mais flores. Tem tantas por aí. (joga as flores na cova)

Martha: Você tem razão. Vou arrancar as roseiras lá de casa. Assim


pelo menos me batem com algum motivo. Elas vão crescer lindas aqui.

Ilse: E toda vez que eu passar aqui, eu rego as flores. Vou trazer
miosótis do riacho e crisântemos da casa do Padinsky.

Martha: Vai ficar lindo! Uma maravilha!

Ilse: Eu tinha acabado de atravessar a ponte quando ouvi o tiro.

Thea: Pobre!

Ilse: Eu sei porque ele fez isso, meninas.

Martha: O que foi que ele te disse?

Ilse: Sermão da Montanha. Mas não contem pra ninguém.

Martha e Thea: Sermão da Montanha?

Martha: Não vou contar.


Thea: Também não.

Ilse: Olha a arma.

Martha: Por isso é que ninguém achou.

Ilse: Quando eu voltei para saber o que havia acontecido, eu mesma


tirei da mão dele.

Martha: Me dê, Ilse. Por favor, deixe eu ficar com ela.

Ilse: Vou guardar de lembrança.

Thea: Ilse, é verdade que a cabeça estava solta? Fora?

Ilse: Estava. O mato ao redor estava salpicado de sangue. E havia


pedaços dos seus miolos escorrendo pelo chorão.

Cena 7
(Sala de conselhos – Melchior e Reitor Sonnentisch)

Reitor Sonnentisch: Melchior Gabor... Depois de saber do crime


abjeto perpetrado por seu filho, o Sr. Stiefel revistou os papéis do
finado Moritz na esperança de encontrar uma indicação do motivo para
um ato tão inqualificável. O fato é que ele achou um documento que,
apesar de não justificar a atrocidade, comprova o estado de
degradação moral que foi decisiva para o crime. O documento em
questão chama-se "O Coito", uma dissertação de vinte páginas em
forma de diálogo, com ilustrações das obscenidades mais imundas, de
tamanho natural. O senhor conhece este documento? Sabe qual é o
conteúdo deste documento? É a sua letra? O senhor é o autor desta
imundície? O senhor limite-se a responder às perguntas. De
preferência com "Sim" ou "Não". Insolente! Sem-vergonha! Não queira
me fazer de tolo, Gabor! Cale a boca, rapaz! O seu comportamento é
um desrespeito a este corpo docente aqui reunido. Meus senhores,
não podemos deixar de requerer ao excelso Ministério da Educação
Nacional a expulsão deste demônio incriminado da influência
desmoralizadora que exerceu sobre o seu colega Moritz Stiefel e para
impedi-lo de exercer uma influência semelhante nos outros colegas.
Temos que proteger a nossa instituição dos estragos de uma epidemia
de suícidio que já eclodiu em vários colégios. Levem este rebelde para
o reformatório!

(Melchior foge)

Reitor Sonnentisch: Ele esta fugindo! Peguem este deliquente!

Cena 8
(Quarto de Wendla)

Sra. Bergmann: Obrigada doutor, até mais.

Wendla: Mãe, o médico disse que eu estava com anemia?

Sra Bergmann: Disse que você tem que tomar leite e comer carnes
e verduras. Assim que tenha apetite de novo.

Wendla: Mãe, acho que não estou com anemia...

Sra.Bergmann: Wendla, você tem uma anemia!

Wendla: Não, mãe, não tenho! Eu sei, sinto. Não tenho uma
anemia... Tenho uma barriga d'água!

Sra Bergmann: Você vai melhorar!

Wendla: Não vou nada.Tenho uma hidropsia. Eu vou morrer, mãe.


Vou morrer!

Sra Bergmann: Você não vai morrer nada. (chorando) Deus de


misericórdia, você não vai morrer!

Wendla: Mas por que está chorando tanto, mãe?

Sra Bergmann: Você não vai morrer, filha. Você não tem uma
hidropsia! Tem um filho! Você esta grávida, Wendla! Por que você me
fez uma coisa dessas, minha filha?!

Wendla: Mas eu não fiz nada!

Sra Bergmann: Não minta, Wendla. Sei tudo. Olha, preferia não te
dizer nada. Wendla, minha Wendla...
Wendla: Mas não é possível! Eu não sou casada!

Sra. Bergmann: Meu Deus, esse é o problema: você não é casada. E


isso que é horrível...Wendla, mas o que é que você fez?

Wendla: Deus sabe que eu não sei. Eu e Melchior estivemos deitados


no feno... Eu não amei mais ninguém no mundo, senão você, mãe,
você.

Sra Bergmann: Wendla, não dificultemos mais as coisas para nós


duas. Você esta me machucando!

Wendla: Meu Deus, mãe! Porque a senhora não me contou tudo?

Sra. Bergmann: Vamos ter confiança em Deus, minha filha. Coragem,


Wendla, coragem! Po...porque está tremendo tanto?

Wendla: Bateram na porta!

Sra Bergamann: Eu não ouvi nada, meu amor. (vai até a porta e
abre)

Wendla: Eu tenho certeza que ouvi. Quem está aí?

Sra Bergmann: Ninguém... (à parte) Chegou na hora, obrigada por


ter vindo, quem me indicou o senhor foi um médico amigo meu... A
minha filha...

Sr. Schimidt: Compreendo...

Sra. Bergmann: O procedimento é seguro?

Sr. Schimidt: Farei o possível.


Sra. Bergmann: (para Wendla) O pai do Schimidt, da rua do jardim.
Ele veio para tratar da tua doença...

Wendla: Estou com medo mamãe!

Sra.Bergmann: Coragem minha filha! Coragem... Meu Deus! Meu


Deus!
TERCEIRO ATO

Cena 1
(Hanschen Rillow e Ernst rolando na relva murcha – Os sinos batem)

Hanschen: Esses sinos dão uma paz na gente, não?

Ernst: Eu sei... As vezes quando está silêncio, de noitinha, como


agora, eu imagino que sou um pastor no campo, com a minha mulher
de bochechas vermelhas, a minha biblioteca, os meus diplomas, e as
crianças da vizinhança vem correndo me dar a mão quando eu chego
em casa.

Hanschen: (rindo) Você esta falando sério? Meu Deus, como você é
sentimental!

Ernst: Eu?

Hanschen: Sabe aquela cara de devoto que os padres tem? Você já


viu aquela cara de tranquilidade deles, Ernst? Aquilo tudo é encenação.
Só existem três rumos que um homem pode tomar na vida: ele pode
deixar que a situação o derrote, como o Moritz; ele pode jogar tudo
pro alto, como o Melchior e acabar expulso; ou ele pode esperar,
esperar pacientemente até que todo o sistema funcione a seu favor,
como eu...

Ernst: Como você?

Hanschen: Pense no futuro como um balde, cheio de leite. O homem


se cansa de mexer para transformar o leite em manteiga, o outro é
estabanado, derrama o leite e chora a noite toda, mas eu sou como
um gatinho, eu fico só ali, lambendo a nata e o creme.

Ernst: Lambendo a nata e o creme?...


Hanschen: Isso...

Ernst: Mas o que você faz com Nata e Creme, Hanschen? Porque eles
não são doces. Não seria melhor lamber o mel?... (Hanschen ri
dirfaçadamente) Você esta rindo? De quê? De mim?

Hanschen: Desculpa.

Ernst: Hanschen...
Hanschen: O mel está em mim... Vem provar o néctar nos meus
lábios. (Beija Ernst)

Ernst: (assustado) Meu Deus! Hanschen...

Hanschen: Se lembrarmos disso daqui a trinta anos desta noite, ela


vai parecer incrivelmente linda.

Ernst: Mas só daqui há trinta anos? E até lá, nada?

Hanschen: Por que não? (Beijam-se)

Ernst: Hanschen, quando a gente tava vindo pra cá, eu achei que a
gente só iria conversar...

Hanschen: Esta arrependido?

Ernst: Não... Se eu estivesse sozinho, era capaz até de chorar.

Hanschen: Não é hora de tristeza agora.

Ernst: Quando eu saí de casa hoje, tudo o que eu pensava era


conversar com você.

Hanschen: Eu também estava esperando isso. Sabe, a virtude é uma


roupa bonita que os homens comuns não podem vestir.

Ernst: Em nós, ela ainda fica grande demais. (Beijam-se)

Cena 2
(Um cemitério)

Melchior: (saltando para o chão do lado de dentro) Aqui os cães não


me perseguem. Enquanto me procuram pelos bordéis eu posso
respirar e ver até onde cheguei. Derrubei uma cruz. Pisei nas flores.
Um anjo, rezando-uma inscrição?!

“AQUI JAZ
WENDLA BERGMANN
NASCIDA A CINCO DE MAIO DE 1878
FALECIDA COM ANEMIA
A VINTE E SETE DE OUTUBRO DE 1892
BEM AVENTURADOS OS PUROS DE CORAÇÃO...”

Fui eu quem a assassinou! Sou eu o assassino! Não devo chorar aqui.


Vou embora.

Moritz: (com a cabeça debaixo debaixo do braço) Um momento,


Melchior! Não terei outra oportunidade tão cedo.

Melchior: De onde você vem?

Moritz: Venho de perto do muro.Você derrubou a minha cruz!

Melchior: Você não é Moritz Stiefel?!

Moritz: Me dê a mão.Tenho certeza de que você vai me agradecer.de


agora em diante as coisas vão ser fáceis pra você.É um encontro
estranhamente feliz.Eu vim de propósito.

Melchior: Então você não está dormindo?!

Moritz: Aquilo que vocês chamam de sono? Não! Nós ficamos


sentados nas torres das igrejas, nos telhados das casas, onde
quisermos.

Melchior: Sem descanso?

Moritz: Só nos divertimos. Me dá a mão. Nós não nos comunicamos


entre nós, mas vemos e ouvimos tudo o que se passa no mundo.

Melchior: E o que isso interessa ?

Moritz: Não interessa. Nada nos afeta.Nem o bem, nem o mal.


Estamos acima, bem acima do que é terreno. Desprezamos de tal
maneira os vivos que quase não sentimos pena deles. Estive no meu
funeral. Me diverti muito.isso é sublime, Melchior! Chorei como
ninguém e fui devagarinho para perto do muro para segurar a barriga
de tanto rir. A nossa inacessivel elevação é de fato a única perspectiva
que nos faz digerir essa porcaria... Também riram de mim antes de ter
morrido.

Melchior: Não tenho vontade de rir de mim próprio.

Moritz: É, de fato não temos nenhuma pena dos vivos. Me dê a mão


Melchior! Num instante você se eleva muitissimo acima de você
próprio. A sua vida é um pecado de omissão.

Melchior: Vocês podem esquecer?

Moritz: Nós podemos tudo.Me dá a mão, Melchior. Você só precisa


estender o dedinho.

Melchior: Se eu apertar a sua mão, Moritz, vai ser por desprezo. O


que me deu coragem, jaz naquele túmulo. Não posso me considerar
digno de emoções nobres. E não vejo nada, nada do que se oponha à
minha queda.

Moritz: Por que você não me dá a mão, Melchior?

(Entra o Sr. Disfarçado)

Sr. Disfarçado: (a Melchior) Você está tremendo de fome, não está


em condições de poder julgar. (para Moritz) Vá embora.

Melchior: Quem é o senhor?

Sr. Disfarçado: Isso você verá depois.(para Moritz) Desapareça! O


que você tem para fazer aqui Por que sua cabeça não está sobre os
ombros?

Moritz: Eu me matei com um tiro?

Sr Disfarçado: Pare de nos incomodar com esse cheiro horrível de


túmulo!

Moritz: Por favor, não me mandem embora.

Melchior: Quem é o senhor?

Moritz: Não me mande embora, eu lhe peço. Deixe-me participar mais


um pouco. Não vou contradizer o senhor em nada. Lá embaixo é tão
horrível.

Sr Disfarçado: Por que você se gaba nessa história de sublime Nós


sabemos que essa história é bobagem. Por que você mente de
propósito, seu fantasma? E por favor, tire sua mão de cadáver daqui.

Melchior: O senhor vai ou não me dizer quem é?!

Sr Disfarçado: Proponho que você confie em mim. Não se preocupe,


eu abrirei as portas do mundo para você. A sua perplexidade
momentânea é o resultado do estado miserável em que você se
encontra. Bastará um bom jantar e você rirá disso tudo.

Melchior: Com as culpas que caem sobre mim não vai ser um bom
jantar que vai devolver a paz!

Sr. Disfarçado: Isso depende do jantar! O que eu posso dizer é que a


menina poderia dar à luz muito bem. Ela morreu simplesmente por
causa dos métodos abortivos do Sr. Schimidt. Vou levar você para
junto das pessoas Vou te pôr em contato com tudo o que o mundo
oferece, sem exceção.

Melchior: Quem é o senhor?! Não posso confiar em quem não


conheço.

Sr. Disfarçado: Se não confiar em mim não poderá me conhecer.

Melchior: Acha mesmo?

Sr. Disfarçado: Claro! E você não tem outra escolha?

Melchior: Posso apertar a mão do meu amigo.

Sr. Disfarçado: O seu amigo é um charlatão. O falso desprezado, a


criatura mais mesquinha e mais desgraçada de toda criação!

Melchior: Seja lá o que for o charlatão, ou o senhor me diz quem é ou


dou a mão a ele!

Sr.Disfarçado: Então?!

Moritz: Ele tem razão, Melchior.Eu estava inventando. Vá com ele,


apesar de disfarçado, ele existe.

Melchior: Acredita em Deus?

Sr Disfarçado: Depende das circunstâncias...

Melchior: Sabe me dizer quem inventou a pólvora?!

Sr Disfarçado: Berthold Schwarz- Aliás, Konstantin Ankitzen-monge


franciscano-em 1330

Moritz: O que eu daria para que ele não a tivesse inventado!


Sr Disfarçado: Nesse caso você teria tomado veneno.

Melchior: O que pensa da moral?

Sr Disfarçado: Isso é uma prova? Eu sou teu aluno?

Melchior: Sei lá o que o senhor é.

Moritz: Não briguem! Por favor! Estamos aqui às duas da manhã, dois
vivos e um morto e vamos brigar?!

Sr Disfarçado: O fantasminha tem razão. Uma pessoa não pode abrir


mão da dignidade. Eu vou responder à sua pergunta. Eu vejo a moral
como o produto de duas forças imaginárias - o dever e o instinto.

Moritz: Se me dissesse isso há mais tempo! A minha moral me lançou


a morte. Para evitar a morte dos meus pais é que eu atirei.

Sr Disfarçado: Não se iluda! Os seus pais não morreriam por causa


disso!

Melchior: Pode ser verdade, mas tenho certeza que se há pouco eu


tivesse apertado a mão do Moritz, a culpa era só da minha moral.

Moritz: Não creio que somos tão diferentes assim para que o senhor
não fosse ao meu encontro quando eu estava com a pistola.

Sr Disfarçado: Então não se recorda de mim? De fato eu estava lá,


mesmo no último instante, quando você estava entre a vida e a morte.
Mas não podemos discutir agora, algo tão importante.

Melchior: Adeus, Moritz.não sei onde me leva esse homem, mas ao


menos está vivo.

Moritz: Não queira se vingar de mim, Melchior, por eu ter tentado te


matar! Foi a velha amizade. Queria poder chorar e me queixar a vida
inteira. Queria poder sair daqui e acompanha-lo.

Melchior: Obrigado por ter vindo, Moritz. Não esqueça esses quatorze
anos. Não importa o que aconteça comigo, de bom ou de ruim. Eu não
vou esquecer.

Moritz: Obrigado.
Melchior: Quando eu for velho, de cabelo branco, quem sabe a gente
volte a ficar perto assim, um do outro.

Moritz: Boa sorte!

Sr Disfarçado: Vem, Melchior!

(dá o braço a Melchior e afasta-se com ele)

Moritz: Sozinho, de novo. A Lua cobre o rosto. E depois tira de novo o


véu. Mas nem por isso parece ter alguma coisa a dizer. Vou voltar para
o meu lugar. Endireitar a cruz que o louco idiota derrubou brutalmente.
E quando estiver tudo arrumado, eu me deito outra vez de costas, me
aqueço ao calor da minha putrefação. E sorrio.

FIM

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