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Geografia agrária, território

e desenvolvimento

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Geografia agrária, território
e desenvolvimento

Marcos Aurelio Saquet


Roselí Alves dos Santos
[organizadores]

1ª. edição
Editora Expressão Popular
São Paulo – 2010

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Copyright © 2010 Grupo de Estudos Territoriais – GETERR

Esta obra possui Conselho Editorial indicado pelo


Grupo de Estudos Territoriais – GETERR, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Marcos Aurelio Saquet – Presidente
Adilson Francelino Alves
Edson Belo Clemente de Souza
Eliseu Savério Sposito
Luciano Zanetti Candiotto
Roseli Alves dos Santos
Silvia Regina Pereira
Walquíria Kruger Corrêa

Revisão: Roselene de Fátima Coito, Maria Salete Lorenzetti, Joana Pagliosa Corona e Álvaro Antonio Luz
Capa, Projeto gráfico e Diagramação: Krits Estúdio

Impressão: Gráfica Loyola

Tiragem: 1000 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Geografia agrária, território e desenvolvimento / Marcos


C345 Aurelio Saquet, Roselí Alves dos Santos (organizadores).
/ --1.ed.— São Paulo : Expressão Popular, 2010.
256 p. : tabs.

Vários autores.
Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br
ISBN 978-85-7743-147-2

1. Geografia agrária – Brasil. 2. Políticas territoriais – Brasil.


3. Desenvolvimento territorial – Paraná. 4. Conflitos rurais –
Paraná. 5. Agroecologia. 6. Desenvolvimento rural. I. Saquet,
Marcos Aurelio, org. II. Santos, Roselí Alves dos, org. III.Título.

CDD 918.1
918.162
Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

1a edição: março de 2010

A responsabilidade dos conteúdos de cada texto é de seus respectivos autores.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro


pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora.

Editora Expressão Popular Ltda.


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Sumário

Apresentação | 7

Conflitos pela terra e pelo território:


ampliando o debate sobre a questão agrária na América Latina | 13
Jorge Montenegro

Questão agrária, estado e territórios em disputa:


os enfoques sobre o agronegócio e a natureza
dos conflitos no campo brasileiro | 35
João Cleps Junior

O campesinato frente à expansão


do agronegócio e do agrocombustível | 55
João Edmilson Fabrini

O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas


sobre o desenvolvimento rural? | 89
Adilson Francelino Alves
Júlia Silvia Guivant

Políticas territoriais e questão agrária:


da teoria à intervenção | 107
Eliane Tomiasi Paulino

A posse da terra e os conflitos rurais no Paraná | 131


Elpídio Serra

Comunidades rurais da região metropolitana de Curitiba:


territorialidades em (re)construção | 155
Hieda Maria Pagliosa Corona

As interfaces do desenvolvimento agrário:


dependência e conflitualidade | 181
Márcio Freitas Eduardo

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Considerações sobre a modernização da agricultura
no Sudoeste do Paraná | 201
Roselí Alves dos Santos
Marcos Aurelio Saquet

Produtos com identidade territorial:


o caso da farinha de mandioca no Litoral Paranaense | 219
Valdir Frigo Denardin
Mayra Taiza Sulzbach

A agroecologia como estratégia de inclusão social


e desenvolvimento territorial | 237
Marcos Aurélio Saquet
Adilson Francelino Alves
Luciano Pessoa Candiotto
Roselí Alves dos Santos
Serinei Grigolo
Valentina Bianco
Carolina Bonelli
Elaine Fabiane Gaiovicz
Poliane de Souza
Camila Casiraghi

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Apresentação

O presente livro, Geografia agrária, território e desenvolvimento, foi


concebido para reunir e socializar estudos referentes ao desenvolvimento
agrário e ao território, contribuindo para ampliar o debate que vem sen-
do realizado desde 2002 no âmbito do Grupo de Estudos Territoriais (GE-
TERR), da Unioeste, Campus de Francisco Beltrão (PR). O grupo tem seus
estudos vinculados a duas linhas de pesquisa: Teorias, métodos e estudos
territoriais e Planejamento urbano e regional. Os principais temas estudados
são os seguintes: modernização da agricultura, cotidiano e lugar, turismo
rural, áreas de preservação permanente, políticas de desenvolvimento e as-
pectos da epistemologia da geografia.
Procuramos congregar as pesquisas de cada membro do grupo em
três frentes principais de trabalho. Uma centrada em estudos sobre a for-
mação territorial do Sudoeste do Paraná, evidenciando a modernização da
agricultura, a prática agrícola familiar, a formação das cidades e projetos
de desenvolvimento rural. Outra, dedicada às leituras e aos debates sobre
algumas características da história e epistemologia da geografia, mais es-
pecificamente, sobre os conceitos de espaço geográfico, território, paisa-
gem e lugar. E, por fim, outra baseada nos estudos de políticas públicas do
planejamento urbano e regional. São exercícios de uma práxis teórico-em-
pírica trabalhando, concomitantemente, questões teórico-metodológicas e
conceituais da geografia (e de outras ciências sociais) e processos do real.
Em nossa trajetória, sempre tentamos fazer o duplo movimento: do pensa-

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Geografia agraria, território e desenvolvimento

mento ao real e deste à sua reinterpretação, rediscutindo conceitos e pro-


cedimentos utilizados nas pesquisas.
Também conseguimos, desde 2002, estreitar as relações acadêmicas
com pesquisadores de outras instituições de pesquisa do Brasil, algumas
destas expressas nesta obra que objetiva ampliar as discussões a cerca de
estudos agrários e qualificar a inserção/participação na pesquisa, ensino e
extensão, no movimento presente em nossa prática educativa de interação
com os sujeitos com os quais temos trabalhado, buscando o fomento de
novas práticas mais solidárias e críticas na construção da sociedade. Os
autores externos ao Geterr que aceitaram o desafio de ampliar e qualificar
o debate a cerca de novos temas e outros já consolidados encontrados em
diferentes espaços são: João Cleps Junior, Jorge Montenegro, João Edmil-
son Fabrini, Julia Guivant, Eliane Tomisasi Paulino, Elpídio Serra, Valdir
Frigo Denardin, Maya Taiza Sulzbach e Hieda Maria Pagliosa Corona.
Jorge Montenegro, UFPR, debate os conflitos pela terra e pelo terri-
tório na América Latina, considerando estes como elementos específicos
da luta pela terra, marcação de terras indígenas, questões ambientais, ex-
propriação de povos tradicionais e conflitos pelo agrohidronegócio, pro-
dução de alimentos e pelas estratégias de desenvolvimento. Esses conflitos
são analisados a partir da neoliberalização da economia, que facilitou e
ampliou as condições de exploração dos povos pobres e da natureza por
parte de setores hegemônicos economicamente representados por diferen-
tes governos e corporações, evidenciando uma geopolítica de domínio do
capital. O autor evidencia ainda a resistência de determinados grupos so-
ciais, como a Via Campesina, Povos e Nacionalidade Indígenas de Abya
Yala, e outros povos tradicionais que, diante desse processo de expropria-
ção, transformaram a luta pela terra numa luta territorial, as quais “recon-
figuram a questão agrária na atualidade”.
João Cleps Junior, professor da UFU e pesquisador do Cnpq, apre-
senta-nos uma revisão das reflexões teóricas atuais sobre a questão agrá-
ria, envolvendo a problemática dos territórios em disputa entre o agro-
negócio e o campesinato. Reflete sobre o Estado e o desenvolvimento do
agronegócio, evidenciando a importância do conceito de território em es-
tudos de geografia, bem como relações existentes entre o Estado, os pro-
cessos de globalização e a agricultura. Assim explica aspectos centrais das
mudanças atuais ocorridas no mundo agrícola, sobretudo com a expansão
e dominação do agronegócio no campo brasileiro.
João Edmilson Fabrini, professor da Unioeste, Campus de Mare-
chal Cândido Rondon, traz uma valorosa colaboração ao debate atual do
campesinato diante da expansão do agronegócio e, de forma específica, do
agrocombustível que vem acelerando a sua produção nos últimos anos em
respostas as demandas do capital. O autor efetiva uma crítica aos sindica-
tos e aos movimentos sociais que passam a exigir do governo políticas de

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Apresentação

inserção dos pequenos agricultores neste processo produtivo, compreen-


dendo ser esta forma de angariar maiores vantagens econômicas na produ-
ção. Para ele, a participação dos camponeses na produção de agrocombus-
tível implica numa inclusão subordinada, “em que o trabalho e a renda da
terra são transferidos ao capital no processo de circulação (comercializa-
ção) da produção”. Esta inserção não considera os efeitos históricos viven-
ciados pelos camponeses que têm resultado na exploração e expropriação
dos mesmos e que o agronegócio é uma faceta da modernização da agricul-
tura desenvolvida para aumentar o padrão de acumulação capitalista, re-
sultando naexclusão camponesa a partir de uma aliança do capital apoia-
da pelo Estado. O autor reafirma também os malefícios do agronegócio da
produção do agrocombustivel para a sociedade e a natureza, destacando o
papel histórico de resistência que o território camponês tem representado
frente ao agronegócio.
Adilson Francelino Alves e Júlia Silvia Guivant, fazem uma insti-
gante reflexão sobre as propostas que visam implementar estratégias de
desenvolvimento rural, mostrando e explicando os diferentes paradigmas
estabelecidos em nível internacional a partir dos anos 1950. Evidenciam
dicotomias e confluências entre os modelos exógenos e endógenos, bem
como princípios basilares da agricultura sustentável, indicando, para que
se possa fazer uma análise coerente, a necessidade de distanciamento de
tais programas e projetos.
Eliane Tomisasi Paulino, professora da UEL, apresenta um profí-
cuo debate a cerca do método na produção do conhecimento, em especial
para analisar as políticas territoriais brasileiras sobre a questão agrária,
na perspectiva dos limites impostos pelo capital ao desenvolvimento dos
sujeitos do campo. Ao mesmo tempo, a autora apresenta argumentos que
fortalecem a análise da existência de uma agricultura camponesa em con-
traposição a uma agricultura eminentemente capitalista.
Elpídio Serra, professor da UEM, sistematiza a história da ocupação
e apropriação das terras no Paraná enquanto parte do processo de uma ló-
gica de ampliação do modo de produção capitalista instituindo, no Estado,
a propriedade privada da terra. No texto, demonstra os conflitos rurais que
se estabelecem e que são muitas vezes negligenciados, embora sejam es-
ses a base de muitas das feições territoriais no Paraná, as quais explicitam
ou camuflam a luta de classe presente no movimento de apropriação e ex-
ploração da terra. É destacada a força que representa a luta pela reforma
agrária como uma questão relevante na organização territorial do Paraná.
Hieda Pagliossa Corona, professora da UTFPR, Campus de Pato
Branco, no texto “comunidades rurais da região metropolitana de Curiti-
ba: territorialidades em (re)construção”, discute as estratégias fundiárias
materiais e imateriais desenvolvidas pelos agricultores familiares na cons-
trução do território. Nesta análise busca mostrar as semelhanças e diferen-

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Geografia agraria, território e desenvolvimento

ças entre duas comunidades rurais e as formas de visibilidade destas em


uma área metropolitana urbana, para além do atendimento das demandas
por alimentos e possibilidades de turismo. Assim a autora efetiva uma aná-
lise teórica dos processos de constituição da região metropolitana de Curi-
tiba e as relações desta com o rural ao seu entorno. As estratégias fundiá-
rias são concebidas como formas de desenvolvimento das comunidades.
O artigo do professor Márcio Eduardo Freitas, propõe-se a discutir
o desenvolvimento na atualidade, marcada pela dinâmica do capital que
submete o território a maximização do lucro a partir de processos severos
de exclusão territorial, gerando práticas seletivas baseadas estritamente na
dimensão econômica e que tem servido de parâmetros para definição do
desenvolvimento. O autor chama a atenção para a ação submissa do Esta-
do na política neoliberal, diante dos povos tradicionais do campo e da con-
cepção de desenvolvimento local, como uma forma de substituição da ação
do Estado. Assim questiona essa perspectiva considerada romantizada de
desenvolvimento local. Recoloca a discussão do desenvolvimento territo-
rial a partir da análise dos tempos lentos, que representam uma territo-
rialidade expressa no agroartesanato estudado no município de Francisco
Beltrão, no Sudoeste do Paraná. Assim busca, a partir de uma abordagem
territorial, compreender o processo e se contrapor a ideia de desenvolvi-
mento homogeneizante e compreender as diferentes relações de poder que
configuram o território do agroartesanato como uma forma de resistir a
lógica desterritorializante do capital.
Roseli Alves dos Santos e Marcos Aurélio Saquet, professores da
Unioeste, Campus de Francisco Beltrão, no artigo “Considerações sobre a
modernização da agricultura no Sudoeste do Paraná”, retomam uma discus-
são importante e amplamente estudada na questão agrária brasileira, que é
da modernização da agricultura concebida no contexto da revolução verde.
No entanto, os autores apresentam análises de indicadores técnicos da mo-
dernização que demonstram a sua não homogeneização no Sudoeste do Pa-
raná, território marcado predominantemente pela agricultura familiar. De-
monstram, a partir de pesquisas realizadas, os diferentes ritmos do processo
de modernização e as inadequações deste junto aos agricultores familiares,
considerando as dimensões econômicas, culturais e ambientais.
Valdir Frigo Denardin e Maya Taiza Sulzbach, professores da UFPR-
Litoral, explicam a partir do estudo da produção de farinha de mandioca
no litoral do Paraná, a constituição de uma identidade territorial seguin-
do uma tendência mundial. Os autores concebem o território como “uma
unidade ativa de desenvolvimento que possui recursos específicos, únicos,
e não transferíveis de uma região para outra”. Consideram que essa iden-
tidade territorial é uma forma de potencializar o desenvolvimento local,
uma vez que a produção de farinha faz parte da cultura dos agricultores
familiares do litoral do Paraná. Assim o desafio posto é a constituição efe-

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Apresentação

tiva das estratégias de valorização dessa marca territorial no mercado, re-


presentando maior retorno e valoração da atividade familiar local.
Marcos Aurélio Saquet et al, apresentam um texto construído a partir
das pesquisas teóricas e empíricas de um projeto que compreende a agro-
ecologia como uma estratégia de inclusão social e desenvolvimento terri-
torial. Neste texto, a equipe de trabalho discute a agroecologia como uma
forma de vida e produção estruturada em pequenas unidades de produção
familiar, sendo esta uma contraposição ao pacote tecnológico e aos seus
desdobramentos territoriais, os quais têm excluído agricultores familiares,
além de provocar impactos territoriais-ambientais profundos em função do
uso intensivo de agrotóxicos. Assim a agroecologia potencializa “uma agri-
cultura menos agressiva ao ambiente que promove a inclusão social, pro-
porciona melhores condições econômicas para os agricultores e favorece a
segurança alimentar dos produtores e dos consumidores em geral”. Os tra-
balhos desenvolvidos pelo grupo visam a intervenção na qualificação das
práticas dos agricultores familiares agroecológicos dos municípios de Verê,
Salto do Lontra e Itapejara d’Oeste, todos do Sudoeste do Paraná.
Estes importantes e relevantes estudos apresentam uma análise crí-
tica da organização agrária brasileira e latina, evidenciando as dificuldades
e perspectivas de desenvolvimento, em especial, aos agricultores familia-
res-camponeses a partir de diversas realidades estudadas. Assim objetiva-
mos que este livro contribua no debate da geografia agrária e de outras
ciências afins, mas que também seja motivo de discussão para segmentos
sociais além da academia. Os autores manifestam uma posição política
crítica e de redimensionamento do modelo atual de desenvolvimento e ex-
clusão dos povos do campo.

Roselí Alves dos Santos e Marcos Aurélio Saquet


Francisco Beltrão, setembro de 2009.

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Conflitos pela terra e pelo território:
ampliando o debate sobre a questão agrária
na américa latina

Jorge Montenegro
Departamento de Geografia/UFPR | jorgemon@ufpr.br

Conflitos pela concentração fundiária, conflitos pela demarcação de ter-


ras indígenas, conflitos pela preservação ambiental, conflitos pela extra-
ção devastadora de recursos naturais, conflitos pela construção de megain-
fraestruturas, conflitos pela expansão do agrohidronegócio, conflitos pelo
controle da produção de alimentos, conflitos pela manutenção de formas
de vida tradicionais, conflitos pela expropriação, expulsão e exclusão dos
camponeses e dos povos e comunidades tradicionais, conflitos pela imple-
mentação de estratégias de desenvolvimento.
A lista dos conflitos que atravessam o meio rural na América Lati-
na se consolida em um momento de ressaca neoliberal, de balanço do que
foi uma época caracterizada pela redução da capacidade reguladora do
Estado. O aumento da concorrência descontrolada que trouxe a liberali-
zação do comércio, as privatizações ou a desregulamentação do merca-
do de trabalho somado ao delirante crescimento do consumo, ligado, en-
tre outras coisas, a uma regulamentação financeira cada vez mais frouxa
e permissiva de endividamentos insustentáveis (sobretudo nas economias
domésticas), desatou uma verdadeira febre recolonizadora dos espaços de
extração de recursos, de geração de energia ou de produção de alimentos e
matérias primas, ou seja, espaços situados no meio rural.

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

Nesse contexto, a nova geopolítica ligada ao comércio e ao acesso


privilegiado a recursos produtivos essenciais evidencia a intensificação da
espoliação praticada por velhos e novos atores: grandes corporações mul-
tinacionais, novas “corporações imperiais” fruto de fusões ao mais alto ní-
vel, governos como o chinês entrando no controle das reservas de vários
produtos chave (por exemplo, os minerais ferrosos), governos e corpora-
ções comprando terras em outros países para a produção de alimentos,
empresas nacionais disputando seu quinhão dos recursos e das terras do
próprio país etc.
Diante da vitalidade do capital para o despojo, as populações que so-
frem essa recolonização dos seus lugares de vida são mais profundamente
exploradas, empurradas a um êxodo incerto, descaracterizadas do arraigo
territorial que dá sentido a sua identidade. Nesse processo, algumas defi-
nham, outras se organizam, resistem, lutam, dizem “Basta!”.
O ponto de partida deste texto está nesses grupos que dizem “Bas-
ta!”, esses grupos que se constituem em parte litigante de conflitos que não
são apenas pela terra que trabalham para garantir sua reprodução, mas
sim pelo território que marca profundamente sua forma de vida. Toman-
do como escala de análise a América Latina que “luta contra” e “resiste
(ao)” o espólio do capital no campo, nos propomos oferecer um panorama
dos conflitos pela terra e pelo território na região no intuito de nos apro-
ximar das formas em que o capital se expande no campo, reintensificando
sua dominação/apropriação inclusive nos territórios até o momento mais
marginais. Assim, nossa aproximação à dinâmica dos conflitos tem como
objetivo abordar como essas disputas, esses sujeitos e essas demandas re-
configuram a questão agrária na atualidade.
A irrupção de movimentos mundiais como a Via Campesina (que
na América Latina possui uma representação de quase 50% de todos os
grupos que a formam globalmente), a crescente organização continen-
tal de grupos indígenas (por exemplo, as cúpulas dos Povos e Naciona-
lidades Indígenas de Abya Yala) ou a politização dos discursos étnicos,
que incipientemente os Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil
estão impulsionando (e que se pode observar nos desdobramentos ao
redor da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais), nos
desafiam a percorrer os contornos atuais da questão agrária. Nesse sen-
tido, nosso trabalho se centra nos aspectos relacionados com a vitali-
dade da mobilização social na América Latina, em um primeiro mo-
mento, apontando algumas experiências organizativas que colocam em
questão as formas em que o capital avança pelo(s) território(s) latino-
americano(s). Na segunda parte, focamos como a ação desses sujeitos
que resistem e lutam contra o espólio capitalista junto à literatura aca-
dêmica sobre o tema confirmam a vigência da questão agrária e a ne-
cessidade de repensá-la hoje.

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Jorge Montenegro

Percurso pelos conflitos pela terra e pelo território na América


Latina: a estampa da diversidade
Uma leitura das declarações, cartas abertas ou resoluções de diferentes
grupos sociais ao longo da América Latina nos últimos anos nos permite
uma visão, senão sistemática, plural das principais reivindicações e denún-
cias que marcam as lutas e resistências no continente, enfim, os conflitos
fundamentais.
Dentre os inúmeros documentos fruto das inúmeras reuniões de
articulação desses grupos (fóruns, cúpulas, campanhas etc.), escolhemos
apenas sete recentes para serem analisados neste trabalho. Longe de pre-
tender a exaustividade, a escolha responde à tentativa de abranger situa-
ções comuns ao longo do continente que apresentem o foco do conflito,
tanto na identificação das principais estratégias de acumulação do capital
como na afirmação das resistências sociais essenciais.

Declaração final da IV Cúpula Continental dos Povos e Nacionalidades


Indígenas de Abya Yala (Puno-Perú, 31/05/2009)
Com a presença de 6.500 delegados de diversas organizações do continente
americano (Abya Yala), os indígenas reunidos nas margens do Lago Titica-
ca colocaram a ênfase de suas considerações finais na “defesa da Mãe Ter-
ra e dos Povos, contra a mercantilização da vida (terras, matas, água, ma-
res, agrocombustíveis, dívida externa), poluição (transnacionais extrativas,
instituições financeiras internacionais, transgênicos, pesticidas, consumo
tóxico) e criminalização de movimentos indígenas e sociais” (DECLARA-
ÇÃO..., 2009). Especialmente, o documento insiste na construção de um
Tribunal de Justiça Climática que “julgue as empresas transnacionais e os
governos cúmplices que depredam a Mãe Natureza, saqueiam nossos bens
naturais e infringem nossos direitos (DECLARAÇÃO..., 2009). A ingerência
no controle e autonomia de seus territórios ganha na declaração um pa-
pel fundamental através de dois aspectos: enfrentando “a criminalização
de nossos direitos, militarização, bases estrangeiras, deslocamentos força-
dos e genocídios” e rejeitando os “Tratados de Livre Comércio dos Estados
Unidos, Europa, Canadá, China e outros países” (DECLARAÇÃO..., 2009).
Um último aspecto que destacamos abre mais uma via de conflito, a que
se trava no campo da construção e apropriação dos saberes. Nesse sentido,
podemos ler na Declaração que os povos e nacionalidades indígenas consi-
deram importante fortalecer seus...
(...) próprios sistemas de educação intercultural bilíngue e de saúde indí-
gena para avançar na descolonialidade do saber, e especialmente, deter a
biopirataria, defendendo nosso regime especial de patrimônio intelectual
especial dos povos indígenas de caráter coletivo e transgeneracional (DE-
CLARAÇÃO..., 2009).

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

A cúpula, segundo a Declaração, terá continuidade em diversos


eventos como o Fórum sobre Crise da Civilização Ocidental, Descoloniali-
dade e Bom Viver (em 2010), a Cúpula da Comunicação Indígena, a Cúpu-
la Indígena da Água ou a Cúpula Continental das Mulheres Indígenas (as
três em 2011).
Denúncia, proposta e continuidade marcam o direcionamento polí-
tico de uma rede de organizações que vai se consolidando e ganhando em
participação e representatividade (DÁVALOS, 2005). Com sua ênfase na
denúncia do sistema socioeconômico espoliador, na importância de uma
relação radicalmente diferente com a natureza ou na necessidade de ques-
tionar a raiz colonizadora da modernidade que sempre se lhes impôs como
uma regra indiscutível e natural, os Povos e Nacionalidades Indígenas do
Abya Yala (PORTO-GONÇALVES, 2009) conformam um discurso contun-
dente que se desdobra nas múltiplas dimensões do território e dos confli-
tos pelo território (economia, sociedade, política, ambiente, cultura, co-
nhecimento...).

Resolução de povos indígenas sobre a IIRSA (La Paz-Bolivia, 19/01/2008)


Menos abrangente que a declaração anterior, esta resolução contra a IIRSA
tem a virtude de priorizar o embate com um dos projetos que mais con-
flitos provoca ao longo da América Latina: a Iniciativa para a Integração
da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA). A Resolução adotada
por 25 organizações de 10 países diferentes denuncia que os 507 projetos
através dos quais a IIRSA se implementa nos 12 estados sul-americanos
reforçam o papel subordinado desses países como provedores de matéria
prima para as grandes corporações transnacionais, o que provoca enormes
impactos socioambientais e a violação sistemática dos direitos humanos
das populações que habitam os lugares onde se constroem os projetos (CE-
CEÑA; AGUILAR; MOTTO, 2007).
Os fatos demonstram que o IIRSA está provocando uma acelerada destrui-
ção da Amazônia, do ecossistema do Pantanal, dos Andes e do Chaco, danifi-
cando territórios dos povos indígenas, comunidades litorâneas e ribeirinhas,
deslocando milhares de pessoas, com perda de biodiversidade, de meios de
vida, agravando a pobreza e pondo em risco a sobrevivência das futuras ge-
rações (RESOLUCIÓN..., 2008)
O tradicional convívio com a natureza que esses povos levam a cabo
como uma das bases fundamentais de sua cultura se altera profundamente
com a chegada de megaprojetos de infraestrutura que respondem a outras
lógicas e que são tributários de outras populações. Como se afirma na Re-
solução, “[n]osso Bom Viver como alternativa legítima de bem-estar em
equilíbrio com a natureza e espiritualidade está muito longe do IIRSA, que
quer nos converter em territórios ‘de trânsito’ de mercadorias, em covas
mineiras e rios mortos de petróleo” (2008).

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Jorge Montenegro

Apesar de ser uma Resolução breve, há espaço para identificar al-


guns dos principais responsáveis pela dinâmica destruidora que acompa-
nha ao IIRSA. Nesse ponto, o Brasil ganha uma atenção especial. O docu-
mento destaca a
(...) preocupação com a atuação do governo brasileiro, do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e das empresas transna-
cionais brasileiras (Odebrecht, Vale, Petrobrás, Andrade Gutierrez, Queiroz
Galvão e outras) que têm contribuído fortemente para a implementação do
IIRSA e seus danos ambientais e aos povos indígenas e comunidades locais
em toda a América do Sul (RESOLUCIÓN..., 2008).
O IIRSA tem um papel fundamental na valorização econômica do
território sul-americano mediante grandes infraestruturas que sirvam de
atração a empreendimentos capazes de aproveitar as riquezas naturais e
a abundante mão de obra, mas também para permitir uma comunicação
maior na direção litoral atlântico-litoral pacífico, de forma a permitir a in-
corporação da região no espaço central do comércio hoje: a bacia do Pa-
cífico (ZIBECHI, 2006). Contra essa iniciativa, os indígenas (entre outros
grupos) alegam a destruição ambiental que seria provocada pela constru-
ção do conjunto de projetos (como de fato já vem acontecendo nas obras
iniciadas), mas também a vulneração da legislação tanto internacional
(Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração das Nações Uni-
das sobre os Direitos dos Povos Indígenas ou a Convenção 169 da Organi-
zação Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais) como em
muitos casos também nacional.
Os termos contundentes em que se expressa a Resolução contra o
IIRSA nos ajudam a perceber como a prevalência do desenvolvimento sus-
tentável e do Estado de direito na nossa sociedade são retóricas reiterada-
mente ignoradas pelo discurso e especialmente pelas práticas do “desenvol-
vimento macro”, desse suposto desenvolvimento que seria desencadeado
com o investimento em grandes obras de infraestrutura que permitiriam
grandes empreendimentos empresariais.

Proposta da Via Campesina de Declaração dos Direitos das Camponesas


e dos Camponeses (Seul-Coreia do Sul, 08/03/2009)

Diante da falta de reconhecimento do camponês como sujeito titular de


direitos e da escassa efetividade que outras normativas internacionais vêm
tendo para frear as violações dos direitos sofridas pelos mesmos, a partir
do ano 2000 a Via Campesina promove uma campanha para estabelecer
um Convênio Internacional sobre Direitos das Camponesas e Camponeses
dentro do sistema das Nações Unidas. A Proposta de declaração está estru-
turada em treze artigos (como podemos ver na Tabela 1) e enfatiza ques-
tões como o controle do processo de produção (sementes e técnicas) e a
liberdade para escolher a forma de se inserir no mercado, a importância da

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

diversidade biológica e do cuidado com o meio ambiente ou a necessária


defesa da terra e do território camponês.

Tabela 1 – Artigos da Proposta de Declaração dos Direitos das Camponesas e


Camponeses realizada pela Via Campesina.
Proposta de Declaração dos Direitos das Camponesas e Camponeses
Artigo I Definição das camponesas e camponeses: sujeitos titulares de direitos
Artigo II Direitos dos camponeses e camponesas
Artigo III Direito à vida e a um nível de vida digno
Artigo IV Direito à terra e ao território
Artigo V Direito às sementes e ao saber e prática da agricultura tradicional
Artigo VI Direito a meios de produção agrícola
Artigo VII Direito à informação e à tecnologia agrícola
Artigo VIII Liberdade para determinar o preço e o mercado para a produção agrícola
Artigo IX Direito à proteção de valores na agricultura
Artigo X Direito à diversidade biológica
Artigo XI Direito à preservação do meio ambiente
Artigo XII Liberdade de associação, opinião e expressão
Artigo XIII Direito ao acesso à justiça
Fonte: Via Campesina, 2009.

Apesar da importância no conhecimento e análise da Proposta, nes-


te momento, em virtude do recorte deste trabalho, privilegiamos um olhar
sobre os conflitos que a Proposta delimita, isto é, enfatizamos contra que
e contra quem a Proposta se constrói. Como preâmbulo ao desdobramen-
to da Proposta de declaração em artigos, a Via Campesina apresenta uma
ampla lista das violações que os camponeses sofrem nos seus direitos e
que, com variações em função das particularidades da inserção territorial
de cada grupo membro (a Via Campesina está formada por 148 organiza-
ções em 69 países), oferecem um mostruário muito identificável com o
que acontece no rural latinoamericano: usurpação de terras (para implan-
tar indústrias, grandes projetos de infraestruturas, centros turísticos, plan-
tações de cultivos comerciais etc.); militarização e conflitos armados no
meio rural e criminalização da mobilização campesina; desvio da produ-
ção agrícola para a produção de agrocombustíveis o que impacta no entor-
no natural e na vida econômica dos camponeses; perda do controle sobre
a produção, sobre as sementes etc.; continuidade de sistemas de trabalho
baseados na escravidão ou no trabalho degradante; falta de apoio do Esta-
do tanto para garantir aos camponeses uma renda adequada à sua produ-
ção agrícola como para garantir serviços públicos de qualidade (como edu-
cação). Nesse preâmbulo, se afirma também que as políticas neoliberais

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Jorge Montenegro

intensificam os problemas citados com sua ênfase na abertura comercial


(impulsionada pela Organização Mundial do Comércio e pelos Tratados
de Livre Comércio) que impede a proteção da agricultura doméstica e que
deixa os pequenos produtores locais à mercê das práticas de dumping rea-
lizadas pelos governos dos países ricos e pelas empresas transnacionais. Ao
mesmo tempo, mais de duas décadas de ajuste estrutural promovido pelo
FMI reduziu o montante de recursos que davam apoio à agricultura e man-
tinham os serviços sociais, o que vai impactar duplamente os camponeses.
Diante de todo esse quadro, a crise na agricultura camponesa vai exacer-
bar “a migração e a desaparição massiva do campesinato e da população
indígena” (VIA CAMPESINA, 2009).
O conjunto de afirmações recolhidas na Proposta nos mostra como
o atual modelo social e econômico “esqueceu” a importância da agricultura
camponesa como alicerce fundamental na construção da nossa sociedade,
sendo substituído (eliminado) pela agricultura ligada ao modelo do agro-
negócio. Frente a esse processo desintegrador, a Via Campesina levanta a
vigência e o arraigo do modelo camponês como resposta para múltiplos
entraves da nossa dinâmica social atual (produção de alimentos, biodiver-
sidade, sobreexploração de recursos, perda de valores etc.) e a necessidade
de defendê-lo e promovê-lo (DESMARAIS, 2007). Se a vinculação de toda
essa alegação em favor do camponês é mais evidente em relação ao que re-
presenta a terra para o mesmo, o que subjaz em todo o documento é a de-
fesa do território do camponês, esse espaço de construção econômica, mas
também social, política, cultural, comunitária, de valores etc., que se con-
trapõe ao modelo homogeneizador e mercantil da agricultura industrial.
Mais um conflito que, apesar de explicitar sua ênfase na questão da terra,
se legitima na incorporação da disputa pelo território.

Declaração dos Conselhos Comunitários e Organizações


Étnico-territoriais Afro-colombianas e Indígenas do Litoral Pacífico
(Tumaco-Colômbia, 18/06/2007)
No litoral do Pacífico colombiano se concentra uma população afrodes-
cendente numerosa, perto de um milhão de afro-colombianos que moram
em uma área aproximada de dez milhões de hectares coberta pela mata
tropical úmida e que descendem dos escravos trazidos na época colonial
para trabalhar na extração de ouro (OSLENDER, 2004). Desde finais da
década de 1980, essa região “vem passando por um processo histórico sem
precedentes: o surgimento de identidades étnicas coletivas e seu posicio-
namento estratégico nas relações cultura-território” (GRUESO, ROSERO;
ESCOBAR, 2000), impulsionadas pelo reconhecimento legal do direito ao
território que ocupavam (Lei 70 de 1993) e que permitiu às comunidades
se organizarem “em conselhos comunitários ao longo das bacias fluviais
que atuam como máxima autoridade territorial e são responsáveis, segun-

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

do a lei, do uso sustentável das matas e dos rios” (OSLENDER, 2004). O


fortalecimento dessas comunidades se enfrenta nos últimos anos com a
extensão do conflito armado para essa área, o que provoca o deslocamen-
to de uma parte da população, enquanto a outra vive sob a disputa entre
guerrilha, paramilitares e exército. Em função dessa especificidade e do
alto nível organizativo (apesar do contexto) o exemplo das comunidades
afrodescendentes da região do Pacífico colombiano serve como referência
para a organização de comunidades negras em outras partes da América
Latina (RANGEL, 2008).
Em evento realizado no município de Tumaco (litoral pacífico-sul
da Colômbia) mais de vinte organizações de afrodescendentes e indígenas
apontam os seguintes conflitos como eixo principal de seus problemas e
suas reivindicações: a ameaça que as monoculturas em geral (e a de palma
africana em especial) exercem sobre as “formas particulares de ver o mun-
do” violentando o “ecossistema natural frágil” e “distorcendo nossa relação
com o território” (DECLARACIÓN..., 2007); a associação que a expansão
das monoculturas tem com a expansão do paramilitarismo e nesse caso,
funcionando como “estratégia de expropriação, direta ou indireta, dos terri-
tórios coletivos” (DECLARACIÓN..., 2007); a expansão das culturas de uso
ilícito e seu combate com fumigações de glifosato que prejudicam “o am-
biente, a segurança e a Soberania Alimentar e a saúde humana e animal”,
desagregando o tecido social e acirrando os conflitos (DECLARACIÓN...,
2007); o racismo estrutural e institucional que está na base dos principais
problemas com que as comunidades se enfrentam. A declaração se encerra
com toda uma declaração de princípios: “Com nossa tradicional afirmação
de vida alegria, esperança e liberdade” (DECLARACIÓN..., 2007).
A incorporação de questões particulares, ligadas ao conflito arma-
do, apenas complementa reivindicações comuns tanto com camponeses
como com indígenas de outras partes de América Latina. Os problemas as-
sociados à expansão do agronegócio ou ao abandono que sofrem a respei-
to da política pública continuam se desdobrando, como no caso de outros
grupos, na desfiguração do seu território de referência, desse território que
faz parte de sua identidade.

Declaração política do Fórum Nacional “Tecendo Resistências pela


Defesa de Nossos Territórios” (Oaxaca-México, 18/04/2009)
Um dos momentos mais relevantes da mobilização social na Amé-
rica Latina nos últimos anos se deu em Oaxaca (cidade do sul do México,
capital do Estado de Oaxaca) em 2006...
De junho a outubro de 2006 não houve nenhum policial na cidade de Oa-
xaca, com 600.000 habitantes, nem para ordenar o trânsito de veículos. O
governador e seus funcionários se reuniam secretamente em hotéis ou casas
particulares, porque não podiam acudir a seus gabinetes: a Assembleia Po-

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pular dos Povos de Oaxaca (APPO) instalou plantões permanentes em todos


os edifícios públicos e nas estações de rádio e televisão públicas que contro-
lava (ESTEVA, 2008, p. 21).
Uma repressão violenta ao Sindicato Nacional dos Trabalhadores
da Educação no dia 1º de maio de 2006 que tinha organizado um protesto
que em princípio não contava com o interesse nem o apoio popular signi-
fica o ponto de encontro de grupos que não tinham conseguido até então
canalizar seu evidente descontentamento com o governo estadual e nacio-
nal. Na APPO foram convergindo indígenas (Oaxaca é o único estado do
país com maioria indígena), mulheres, movimento urbano-popular, gru-
pos de promoção e defesa dos direitos humanos, ambientalistas, ONG’s,
comunidades de base vinculadas à igreja católica, grupos autonomistas
e anarquistas, zapatistas etc. Organizados em volta de estruturas muito
próximas à sociabilidade comunitária indígena ou camponesa, esses gru-
pos se fortalecem para gerenciar o cotidiano da cidade e para resistir ao
acasso e a repressão provinda do governo institucional, dentro do espírito
do “mandar obedecendo, como em qualquer cidadezinha rural” (ESTEVA,
2008, p. 63).
Na continuidade da mobilização social que teve seu auge no ano de
2006, o Fórum Nacional “Tecendo Resistências pela Defesa de Nossos Ter-
ritórios” (2009) mostra os desdobramentos mais recentes pelos que cami-
nha a discussão no âmbito dos movimentos sociais oaxaquenhos e em par-
ticular, no tema que aqui tratamos, a percepção da estreita relação entre os
problemas do campo e da cidade.
Com mais de sessenta comunidades locais representadas e mais de
cinquenta organizações provenientes de dez países diferentes, a ênfase da
Declaração final do Fórum aponta para o “desenvolvimento” como foco ao
redor do qual giram os principais problemas atuais.
Como resultado do sistema econômico neoliberal, o México vive uma situa-
ção de embate sistemático dos chamados macroprojetos, que são iniciativas
promovidas como uma política estratégica conjunta entre o governo federal,
governos estatais e alguns governos municipais para cumprir os compro-
missos acordados nos tratados internacionais com governos estrangeiros.
Isso lhes permite oferecer uma série de concessões e privilégios às grandes
transnacionais que reproduzem e fortalecem as oligarquias locais com uma
exploração irracional dos habitantes, donos originários dos recursos natu-
rais, do deterioro e do meio ambiente. Utilizaram a palavra “desenvolvimen-
to” para nos despojar de nossos recursos naturais e estão modificando seve-
ramente nossa alimentação original (DECLARACIÓN..., 2009).

Um “desenvolvimento” que se concreta nos projetos de “turismo a


grande escala, construção de barragens, exploração mineira, construção
de complexos imobiliários, diversas infraestruturas, produção de energia
elétrica, exploração petrolífera, exploração de aquíferos para negócios par-

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

ticulares, entre outros” (DECLARACIÓN..., 2009). Um “desenvolvimento”


que, através de formas de controle social disciplinadoras, privatiza os terri-
tórios ocupados por comunidades indígenas e camponesas, provocando:
(...) a devastação e saqueio irracional da riqueza natural e territorial (...); a
violação sistemática dos direitos indígenas, humanos e coletivos e a ruptu-
ra do tecido social; (...) violação ao direito ao acesso à informação pública
(...) em relação ao desenvolvimento dos megaprojetos; perseguição, acosso,
controle e/ou suborno de líderes e autoridades comunitárias e sociais, com
a tendência dos governos à criminalização das manifestações cidadãs (DE-
CLARACIÓN..., 2009).
A condenação desse “desenvolvimento realmente existente” (LA-
TOUCHE, 2009 [2003]) marca o teor de uma Declaração que apresenta
problemas que impedem pensar a relação campo-cidade a partir de uma
dicotomia fragmentadora. Movimentos sociais urbanos e rurais, indígenas
e de defesa dos direitos humanos compartilham da ideia de que os projetos
desenvolvimentistas exercem uma estrita dominação sobre o território em
seu conjunto (tanto no urbano como no rural), porém também concordam
com a perspectiva de que é no arraigo das comunidades nos territórios que
reside sua força para resistir e para propor projetos de vida diferentes da
lógica alheia desses “exomegaprojetos”, desses projetos megalomaníacos
que são marcadamente exógenos.

Acordos e conclusões do 10º Encontro da União de Assembleias Cidadãs


(UAC) “Contra o Saqueio dos Bens Naturais e a Poluição, pela Soberania
Alimentar e a Vida” (Jujuy-Argentina, 26/07/2009)
A partir de julho de 2006 assembleias e organizações de toda a Argentina
começaram a se reunir e a construir uma rede nacional de assembleias ci-
dadãs com o seguinte objetivo: “garantir a sustentabilidade do ambiente,
recursos naturais e a plena vigência dos direitos humanos em suas respec-
tivas comunidades” (UAC, 2007). Essa rede nacional, denominada UAC, se
define como
(...) um espaço de intercâmbio, discussão e ação conformado por assem-
bleias, organizações camponesas e indígenas, organizações sociais autô-
nomas não partidárias nem vinculadas ao aparato estatal, grupos de mo-
radores autoconvocados e cidadãos em geral reunidos na defesa dos bens
naturais, da saúde e da autodeterminação dos povos seriamente ameaçados
pelo saqueio e a poluição produzida pelo avanço dos grupos econômicos e
suas empresas transnacionais em nosso território. (...) A UAC funciona de
maneira horizontal. (...) Não existe um comitê diretivo, nem de gestão, nem
de autoridades (UAC, 2009).

Até junho de 2009 já foram realizados dez Encontros em diversos


pontos do país, seguindo os principais conflitos travados em relação ao
avanço do “modelo agromineiro exportador, representado pelos empreen-

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dimentos destrutivos da grande mineração a céu aberto, o avanço do agro-


negócio (soja transgênica, produção de celulose, biocombustíveis) e a con-
taminação urbana”.
O último Encontro da UAC, realizado em Jujuy (noroeste argen-
tino), congregou mais de 300 representantes de diversas organizações
sociais e dentro do grande número de acordos e conclusões do mesmo,
apontamos alguns eixos que consideramos fundamentais na tentativa de
alinhavá-los com as experiências anteriormente relatadas: a UAC se pro-
põe como instrumento de formação em várias linhas (identificação do
modelo açambarcador atual contra o qual se mobilizar; levantamento e
sistematização de informações sobre os conflitos que hoje acontecem no
país) diante da necessidade de impulsionar “uma visão integral e com-
plexa de todas as problemáticas (ambientais, sociais, etc.) entendendo-as
como parte de uma mesma luta” (ACORDOS..., 2009) e possibilitando a
construção de alternativas que permitam uma reapropriação integral dos
territórios na linha das “das experiências dos movimentos camponeses e
indígenas a respeito da defesa dos territórios, da Soberania Alimentar e do
cuidado dos bens comuns” (ACORDOS..., 2009); ao mesmo tempo, a UAC
se conforma como um espaço para a implementação de ações concretas
e diretas que têm como finalidade deter os empreendimentos das empre-
sas de megamineração e florestais, defender o acesso a água de qualidade
para as comunidades prejudicadas com projetos altamente contaminan-
tes e denunciar as práticas de cooptação realizadas pelas grandes cor-
porações sobre os meios de comunicação e as universidades. Formação,
construção de alternativas e ação direta, portanto, seriam os eixos básicos
a partir dos quais a UAC trabalha e se fortalece como sujeito na disputa
pela terra e pelo território argentino.
Concretamente, podemos perceber nos acordos alcançados no úl-
timo Encontro como o papel da reivindicação plena do controle sobre o
território fundamenta a luta da UAC. A integração de demandas diversas
(ambientais, econômicas, sociais, culturais etc.) em torno de territórios
concretos fortalecem a relação entre a UAC e as organizações que a con-
formam. Como afirma Svampa,
(...) a UAC se converteu em um lugar de intercâmbio de experiências e, por-
tanto, de ampliação das demandas, entre as quais se inclui uma incipiente e
progressiva afinidade valorativa com a cosmovisão dos movimentos campo-
neses e indígenas, historicamente invisibilizados e relegados à margem da
sociedade (2008, p. 38).
De novo os limites entre o urbano e o rural, entre o ambiental e o
econômico etc., perdem sentido diante da contundência de conflitos e re-
postas que emergem da possibilidade da reapropriação de territórios em
disputa contra os grandes empreendimentos projetados por governos e
grandes corporações.

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

Carta dos Povos e Comunidades Tradicionais do Semiárido


(Paulo Afonso-Brasil, 12/12/2008)
Para finalizar, após o percurso por documentos procedentes de várias partes
da América Latina concluímos com uma experiência brasileira ligada aos
Povos e Comunidades Tradicionais. Reunidos em Paulo Afonso (Bahia), Po-
vos Indígenas de diversas etnias, Povos de Terreiros, Comunidades Quilom-
bolas e Comunidade de Pescadores Artesanais, todos moradores do Semiári-
do, elaboraram uma carta que desenha claramente dois eixos: a necessidade
de visibilizar sua identidade e a explicitação das demandas.
A luta contra o preconceito marca o primeiro eixo. A forma como
cada povo e cada comunidade se identifica mostra a importância de bus-
car um lugar na sociedade sem renunciar a sua idiossincrasia. Os Povos de
Terreiros afirmam: “Nós Povos de Terreiros não cultuamos o diabólico. O
Candomblé, a Umbanda é uma tradição antiga, é a religião da Natureza,
os Orixás são os guardiões, defensores e protetores dessa Natureza e cada
um exerce sua função” (CARTA..., 2008). Os Pescadores Artesanais decla-
ram: “Nós Pescadores Artesanais não somos preguiçosos, nem mentirosos
como a sociedade nos acusa. Somos os guardiões das águas, artesãos da
pesca artesanal, é nas águas que tiramos nosso sustento” (CARTA..., 2008).
Já os Quilombolas apontam: “Nós Comunidades Quilombolas carregamos
a herança de nossos antepassados que sofreram a escravidão. Reafirma-
mo-nos na resistência e na busca dos direitos fundamentais para continuar
a viver” (CARTA..., 2008). Os Indígenas, finalmente, expõem: “Nós Povos
Indígenas, somos os primeiros desta terra. Temos os nossos rituais, nossa
identidade, nosso jeito de viver. Precisamos continuar existindo na terra, é
ela que nos sustenta, nos alimenta e nos dá força. Nosso lugar é o lugar da
nossa existência” (CARTA..., 2008).
A natureza, a água ou a terra são elementos fundamentais nas de-
mandas desses povos, porém, como apontam no documento: “Estão des-
truindo a Natureza, estão nos expulsando dos nossos territórios para fazer
grandes obras, com isso, estão destruindo e matando nossos espíritos e
junto com eles nós vamos se enfraquecendo e morrendo aos pouquinhos”
(CARTA..., 2008). A importância das terras para viver se complementa com
o território que dá sentido a essas vidas:
Exigimos proteção às matas, a terra, os rios, nascentes e aos animais, para
que a gente não se acabe (...) Exigimos que seja feita uma profunda Revita-
lização do Rio São Francisco e do Semiárido brasileiro (...). Mais que isso,
queremos nossos Territórios Livres, demarcados, titularizados, reconheci-
dos para os Pescadores Artesanais, Quilombolas, Povos Indígenas, Povos de
Terreiros e tantos outros. É o território o lugar de comunhão e reunião da
comunidade para viver a religião, a festa, a organização, a resistência. É o
lugar da terra e da água onde a vida se reproduz, é o lugar de nossa existên-
cia e de nossa afirmação identitária (CARTA..., 2008).

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A partir da ratificação do Convênio 169 sobre Povos Indígenas e Tri-


bais da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989, efetivada
pelo Brasil em 2004, e do lançamento da Política Nacional de Desenvol-
vimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais em 2007, a
organização dos chamados Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil
ganha maior visibilidade. Se os Indígenas e Quilombolas aparecem como
os grupos mais conhecidos e expandidos pelo país, a lista dos mesmos vai
crescendo a partir da possibilidade da autodefinição que as diferentes le-
gislações incorporam. Além dos citados Indígenas (de etnias diferentes)
e Quilombolas, podemos apontar, sem intenção (nem possibilidade) de
sermos exaustivos, a Açorianos, Barranqueiros, Caatingueiros, Caiçaras,
Campeiros, Ciganos, Cipozeiras, Faxinalenses, Geraizeiros, Ilhéus, Janga-
deiros, Paneleiras, Pantaneiros, Pescadores Artesanais, Pomeranos, Praiei-
ros, Quebradeiras de coco babaçu, Ribeirinhos, Seringueiros, Sertanejos,
Varjeiros, Veredeiros etc.
Ainda sem fazer parte de um grupo homogêneo e bem articulado, os
Povos e Comunidades Tradicionais vão conquistando reconhecimento legal
tanto no âmbito da Federação, como dos estados e municípios (ALMEIDA,
2008) e avançando na demanda de políticas públicas específicas. Mas, não
só. À medida que a organicidade dos grupos vai se estruturando, a identifi-
cação dos problemas, as demandas e as estratégias de negociação vão se ra-
dicalizando. Diante da morosidade dos órgãos do Estado, de seu despreparo
para as especificidades desses sujeitos coletivos e da falta de prioridade po-
lítica para atender as demandas levantadas, os Povos e Comunidades Tradi-
cionais, de forma individual ou formando redes de apoio (como no caso da
Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná), se configu-
ram como ativos participantes na reformulação da reivindicação social em
geral e em particular no desenho dos contornos atuais da questão agrária.

Ampliando os sentidos da questão agrária


a partir da mobilização social

Tradicionalmente a questão agrária se conforma em volta do tema dos


problemas fundiários relacionados à expansão do capitalismo no campo,
desdobrando-se em aspectos concretos como a formação de um mercado
interno através da industrialização da agricultura, o processo de diferen-
ciação camponesa, o questionamento das relações de trabalho e das es-
truturas de poder no campo, a organização dos trabalhadores na luta pela
terra ou a produção agropecuária e o abastecimento de alimentos e outros
insumos (DELGADO, 2005; FERNANDES, 2001; OLIVEIRA, 1991; STÉDI-
LE, 1994; TAVARES, 1996).
Ainda considerando que esses aspectos continuam sendo fundamen-
tais para entender a dinâmica do campo hoje e, portanto, para considerar

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

a questão agrária como um paradigma essencial e necessariamente atual,


também percebemos que outros aspectos vêm a complementar esses mais
tradicionais anteriormente destacados. Tanto o percurso realizado pelos
documentos que retratam a mobilização social na América Latina, reali-
zado na primeira parte deste trabalho, como as abordagens da literatura
mais recente sobre o tema, mostram o transbordamento da questão agrá-
ria diante da enxurrada de conflitos gerados pela expansão do capital no
campo a partir de suas novas formulações.
Um desses novos elementos mais prolificamente tratado é o cor-
respondente à mediação entre os aspectos ambientais e a questão agrá-
ria. Tanto nos documentos analisados como na literatura (ALTIERI, 2004;
PORTO-GONÇALVES, 2006; MACIEL, 2005; NORDER, 2006; SEVILLA
GUZMÁN, 2006), a preocupação ambiental aparece reiteradamente, inclu-
sive apontando duas reflexões com trajetórias diferentes. Por um lado, ob-
servamos uma linha crítica consolidada centrada nos impactos ambientais
do paradigma da Revolução Verde (que tem continuidade até hoje, sob ou-
tras nomenclaturas) que hoje se extremam com a expansão dos agrocom-
bustíveis (e qualquer monocultura), dos “desertos verdes” (de pínus, euca-
liptos etc.), dos transgênicos ou da intensificação no uso de fertilizantes
químicos e agrotóxicos. Por outro lado, a concepção da relação homem/na-
tureza provinda fundamentalmente dos grupos indígenas e comunidades
tradicionais, permite a consolidação de uma crítica contundente contra a
extração intensiva dos recursos naturais e a construção de megainfraestru-
turas, e levanta uma dura alegação contra o produtivismo tóxico seja da
grande propriedade ou da agricultura familiar.
A natureza volta a adquirir centralidade no debate do devir histórico e, com
isso, traz para o centro da cena uma série de sujeitos sociais que acreditáva-
mos estarem fadados à extinção e que emergem dos campos, dos cerrados,
das florestas, dos mangues e dos povos que teceram suas matrizes de racio-
nalidade com esses ambientes (PORTO-GONÇALVES, 2005, p. 28).
Dentro da concepção que esses sujeitos têm da terra como elemento
indissociável da vida em todos seus aspectos, não só econômico-produti-
vos, a utilização de técnicas e insumos que deturpam essa relação é consi-
derada absolutamente improcedente. Nessa linha, a proposta da agroeco-
logia aprofunda um debate necessário que se propõe tanto contra o capital
intensivo em tecnologias destrutivas como contra inserções produtivas da
agricultura de pequeno porte que apenas se preocupa com a quantidade de
produto e sua venda no mercado.
O paradigma da Soberania Alimentar prolonga a reflexão sobre os
aspectos ambientais destacando a importância de construir uma agricul-
tura ancorada no local e que limita os insumos necessários para produzir
e comercializar essa produção em função do contexto de cada população.
Especialmente impulsionada a partir da ação dos movimentos sociais, em

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particular da Via Campesina (CAMPOS e CAMPOS, 2007; CHONCHOL,


2005; COMITÉ..., 2006; DECLARAÇÃO DE NYÉLÉNI, 2007), a Sobera-
nia Alimentar se define como “o direito dos povos a alimentos nutritivos
e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e
ecológica, e seu direito a decidir seu próprio sistema alimentar e produti-
vo” (DECLARAÇÃO DE NYÉLÉNI, 2007). Nesse sentido, o paradigma da
Soberania Alimentar se alinha com aspectos clássicos da questão agrária
como as formas e a escala de produção e o abastecimento de alimentos,
porém, incidindo de novo em questões qualitativas e não só quantitativas,
o debate se remete à reflexão sobre a mercantilização da produção e a co-
mercialização exagerada de produtos agrícolas transportados desde luga-
res remotos.
A Declaração de Nyéléni (documento final do Fórum para a Sobe-
rania Alimentar, realizado em Mali, em 2007, e onde participaram mais de
500 representantes de organizações populares de 80 países) quando deli-
mita os adversários contra os quais lutar sob a bandeira da Soberania Ali-
mentar, nos permite vislumbrar a atualização dos contornos da questão
agrária. Entre os diversos antagonistas, em Nyéléni se listaram: o imperia-
lismo, o neoliberalismo e o patriarcado; as instituições financeiras interna-
cionais; as corporações multinacionais; o dumping de alimentos; o contro-
le dos alimentos por empresas que apenas consideram prioritário o lucro
às pessoas, à saúde e ao meio ambiente; as tecnologias e práticas que alte-
ram perigosamente os processos de produção (transgênicos, agrocombus-
tíveis, “desertos verdes” etc.); a privatização e controle dos conhecimentos,
recursos e sementes; etc. Como podemos observar nessa lista, boa parte
dos assuntos levantados incorpora na discussão da questão agrária as for-
mas em que o capitalismo avança na mercantilização da vida. Além disso,
enfatiza-se que o papel do campo deve ser especialmente valorizado (nas
suas dimensões econômico/produtivas, mas também como lugar de cons-
trução de outras tecnologias e valores) e que a relação campo/cidade tem
que ser revista, tal como a maior parte dos grupos analisados na primeira
parte do texto propunha.
No entanto, apesar da intensificação da capacidade organizativa
que os movimentos sociais mostram em torno de projetos como o da So-
berania Alimentar, não é fácil vislumbrar, a curto ou médio prazo, um
cenário que apresente um meio rural agroecológico e soberano, livre da
pressão que exercem os projetos da IIRSA ou do agrohidronegócio expor-
tador. Nesse sentido, as análises direcionadas a entender melhor os ter-
mos dos conflitos em que se expressa a questão agrária e especialmente a
conhecer os sujeitos que estão envolvidos permitem dimensionar as traje-
tórias das lutas e a construção de resistências plurais capazes de enfren-
tar a lógica destrutiva do capital (ALENTEJANO, 2007; ALMEIDA, 2008;
FERNANDES, 2008a e 2008b; FRANCO, 2004; GIARRACCA e TEUBAL,

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

2009; MENDONÇA, 2004; OLIVEIRA, 2007; THOMAZ JUNIOR, 2009).


Para apreender os termos da conflitualidade atual no campo não é su-
ficiente analisar apenas as mutações levadas a cabo, por exemplo, pelo
agrohidronegócio, mas também resulta fundamental avançar na com­
preensão de qual é a formação dos grupos sociais que se contrapõem e
qual são os posicionamentos que defendem. A origem tanto rural quan-
to urbana dos novos sem-terra, a radicalização das demandas dos Povos
e Comunidades Tradicionais, as novas articulações que as redes de luta
promovem, as filiações étnicas ou de gênero ou as formas como esses
diferentes grupos remodelam as categorias trabalho e trabalhador são
elementos de (ex)tensão da questão agrária que ampliam temas clássicos
como o da diferenciação camponesa.
Outro tema tradicional que ganha desdobramentos atuais é o do pa-
pel do Estado na agricultura. Além da marcada diferenciação entre a força
das políticas públicas dedicadas ao agronegócio e a fragilidade das políti-
cas orientadas aos camponeses, o que percebemos desde os anos 1950 é a
incorporação da discussão do desenvolvimento rural como uma estratégia
de substituir, sem resolver, a discussão sobre a questão agrária. Nos últimos
anos, certamente menos de uma década e meia, essa estratégia se fortalece
com duas teses contundentes apoiadas pelas instituições financeiras interna-
cionais: após décadas de combate a pobreza, os índices de pobreza rural na
América Latina continuam absurdamente altos; o mercado é um instrumen-
to fundamental para resolver essa situação, no entanto, a participação do Es-
tado é necessária nos casos de distorções (BANCO MUNDIAL, 1994 e 2002).
Com esses princípios, a política de desenvolvimento rural, hoje de-
nominada de desenvolvimento territorial rural, invade o campo em prol de
gerir a pobreza e expandir a integração dos pequenos agricultores à lógica
heterônoma do mercado. A translação do debate desde a questão agrária
ao desenvolvimento rural como lógica de política pública significa deixar
de debater questões estruturais do sistema capitalista (formas de distribui-
ção da renda e riqueza, papel político dos sujeitos na construção da socie-
dade, limites da propriedade privada etc.), substituindo-as por estratégias
de gerenciamento “das coisas como são”: investimento, tecnologia, maior
produção, maior lucro, expansão, concorrência etc. O questionamento dos
movimentos sociais na América Latina acerca do modelo de desenvolvi-
mento existente que é promovido com a participação ativa do Estado não
se reduz a esse modelo macrodesenvolvimentista cujo exemplo maior pode
ser a IIRSA, o questionamento se levanta também contra os microdesen-
volvimentos que os incorporam a lógicas mercantis que não respeitam o
arraigo social de suas técnicas, de seus mercados, de suas lógicas de pro-
dução e consumo.
A questão agrária não se resolve com desenvolvimento rural, as preo­
cupações lançadas tanto pela primeira como pelo segundo são divergentes

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Jorge Montenegro

até o extremo da incomunicação. Uma desconstrução crítica da ideia de


desenvolvimento associada ao papel das instituições nacionais ou interna-
cionais dedicadas ao tema reforça a prevalência da questão agrária frente
a formas de controle social embutidas nas políticas públicas de desenvolvi-
mento rural implementadas ad nauseam (ESCOBAR, 1995 [1998], ESTE-
VA, 2000 [1992], LATOUCHE 2009 [2003]).
A incorporação dos problemas ambientais, a estratégia de luta e re-
sistência que representa a Soberania Alimentar, a análise dos termos e dos
sujeitos através dos que se expressa a conflituosidade no campo ou o sen-
tido da política pública cristalizada em um paradigma de desenvolvimento
reducionista mostram um leque possível de aspectos com os quais atuali-
zar o debate da questão agrária, porém poderíamos prosseguir por outros
caminhos: a violação dos direitos humanos (e de uma legislação que se
bem a cada dia aumenta, também a cada dia se desrespeita mais) que se
acirra com a militarização dos conflitos pela terra; a multiescalaridade dos
problemas agrários em função dos arranjos comerciais internacionais (Or-
ganização Mundial do Comércio, Área de Livre Comércio das Américas,
Tratados de Livre Comércio etc.); a importância de promover formação
para os sujeitos que moram no campo por meio de uma Educação do cam-
po ancorada em uma visão de mundo própria das comunidades; a identifi-
cação das formas de construção do discurso sobre o campo, especialmente
no caso dos meios de comunicação de massas...
A lista poderia continuar, no entanto, a cada aspecto acrescido es-
taríamos detalhando elementos que podemos agrupar em tono da ideia de
território.

Considerações finais: o território da questão agrária


Para os povos indígenas, camponeses e rurais, a terra e o território são mais
que meras fontes de trabalho e alimentos; são também cultura, comunida-
de, história, ancestrais, sonhos, futuro, vida e mãe. Porém, hoje, aqui em
Chiapas, igual que em muitas outras partes do México e do mundo (…) tra-
tam de espoliar às comunidades das terras e dos territórios recuperados,
com seus exércitos, paramilitares, leis privatizadoras, autoridades jurídicas
agrárias, partidos políticos, falsos discursos conservacionistas e ambien-
talistas, biopirataria e contaminação com transgênicos, entre outros, tudo
com o fim de converter em mercadoria privada a terra, os territórios, a bio-
diversidade, e a vida mesma (…) A luta em defesa da terra e do território é
a luta pela vida e pela dignidade. Atrás de nós, estamos vocês [sic] (COMU-
NICADO, 2007).
O comunicado lido pela comandante zapatista Kelly em março de
2007 reitera de uma forma breve, mas contundente, que a terra e o territó-
rio são essências para “os povos indígenas, camponeses e rurais”. Terra e
território: uma articulação indispensável.

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Conflitos pela terra e pelo território: ampliando
o debate sobre a questão agrária na américa latina

Ao longo do presente texto, fomos cercando essa afirmação com a


ajuda dos discursos das próprias organizações sociais dos “povos indíge-
nas, camponeses e rurais”. As diatribes dos Indígenas, Camponeses, Afro-
descendentes, Povos e Comunidades Tradicionais e participantes da UAC
ou da mobilização social em Oaxaca são contra a mercantilização da vida,
portanto, contra a mercantilização que “exércitos, paramilitares, leis priva-
tizadoras, autoridades jurídicas agrárias, partidos políticos, falsos discur-
sos conservacionistas e ambientalistas, biopirataria e contaminação com
transgênicos” promovem nos territórios onde esses grupos em resistência
vivem. A defesa da terra e do território é a defesa da vida. A defesa da vida
não se concebe sem a defesa da terra e do território.
Quando reconhecemos a potencialidade que a questão agrária ainda
possui para entender os problemas do campo na América Latina, não po-
demos deixar de lado o papel que a terra e o território possuem. A questão
não se circunscreve a um problema com a terra em função da expansão da
lógica do capital no campo, a incorporação do território nos permite uma
crítica mais profunda e multidimensional de sua lógica destrutiva e acu-
muladora. Atrás da terra e do território estamos todos.

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Questão agrária, estado e territórios em
disputa: os enfoques sobre o agronegócio e
a natureza dos conflitos no campo brasileiro

João Cleps Junior


Universidade Federal de Uberlândia | Pesquisador do Cnpq | jcleps@ufu.br

Introdução
Este texto foi elaborado com a finalidade de realizar uma revisão das re-
flexões teóricas atuais sobre a questão agrária, envolvendo as problemáti-
cas dos territórios em disputa entre o agronegócio e o campesinato. Nesta
análise, também refletirmos sobre o Estado e o desenvolvimento do agro-
negócio, bem como as relações com o território. Embora a questão agrária
ocupe lugar central nas discussões sobre o desenvolvimento agrícola e na
história da relação de classes no Brasil no pós-guerra e, principalmente,
nos anos de 1960, aprofunda-se, uma dualidade do debate agrário: de um
lado as várias correntes que refletem os novos e velhos dilemas da questão
agrária; de outro, os protagonistas do agronegócio e das grandes corpora-
ções internacionais dos setores de processamento, comércio e distribui-
ção de commodities, adeptos de uma integração de agricultores ao sistema
agroindustrial.
Para analisar sobre a questão agrária no Brasil, é preciso contextua-
lizá-la historicamente, resgatando, o que há de essencial no debate clássico
em cada período. Neste estudo, optamos pela abordagem das principais mu-
danças que afetaram diretamente as políticas para o campo, destacando os

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

processos que alteraram tanto o Estado quanto suas relações com a ordem
social econômica a partir da democratização política, com a liberalização/
globalização econômica no final do século XX.
O processo de disputa territorial é uma das dimensões relevantes da
questão agrária que tem se acentuado no país nas duas últimas décadas
como reflexo do embate entre os dois principais modelos de desenvolvi-
mento no campo, ou seja, do campesinato e do agronegócio.

Contextualizando os Debates Agrários no Período


Contemporâneo: O processo de disputa pelo território
e os conflitos no campo

Na perspectiva de Raffestin (1993), o território configura-se como a mani-


festação espacial do poder fundamentada em relações sociais. Essa com-
preensão permite pensar o processo de territorialização-desterritorializa-
ção-reterritorialização, baseado, sobretudo, no grau de acessibilidade à
informação; em outras palavras, a informação, ou não, de símbolos e/ou de
significados pode fazer surgir novos territórios (territorialização), destruí-
los (desterritorialização) ou reconstruí-los (reterritorialização).
Certos elementos do território são materiais e outros imateriais ou
simbólicos. E todo território social, um produto do imaginário humano.
O espaço geográfico tem que ser pensado, ou seja, tem que passar ao es-
tado de representação para constituir um território. O território social é,
portanto, uma re-produção do real. Cada território possui seus próprios
códigos, suas representações e também suas fronteiras. Desta forma, con-
formam-se modelos, representações, construções da realidade, que se reve-
lam como instrumentos de poder. Assim, pensar o território implica ainda
compreendê-lo através das relações de poder (RAFFESTIN, 1993).
O território deve ser também apreendido como síntese contraditó-
ria, como totalidade concreta do processo/modo de produção/distribuição/
circulação/consumo e com suas articulações e mediações supraestrutu-
rais (políticas, ideológicas, simbólicas etc) Em que o Estado desempenha
a função de regulação (OLIVEIRA, 1999, p. 63 a 110). O território é assim,
produto concreto da luta de classes travada pela sociedade no processo de
produção de sua existência. Dessa forma, são as relações sociais de pro-
dução e o processo contínuo/contraditório de desenvolvimento das forças
produtivas que dão a configuração histórica específica ao território. Neste
aspecto, é importante acrescentar as considerações de Oliveira (2009, p.
6):
A rebeldia histórica do campesinato, abriu possibilidade para que sua luta
por uma fração do território capitalista (a luta pela terra) levasse-os a lutar
por um outro território, diferente do capitalista. Neste processo de luta e de
produção autônoma, o campesinato em diferentes partes do mundo, come-

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João Cleps Junior

ça a construir um outro território, um outro mundo possível.


Os interesses conflitantes sobre o uso e a ocupação de um mesmo
território geram as disputas territoriais. Compreender as transformações
territoriais no processo de desenvolvimento da agricultura contemporânea
é questão central das pesquisas. Por que o território é objeto de disputa?
Quais os efeitos das transformações capitalistas sobre o campesinato?
Disputas por território podem ser exemplificadas ao mesmo tempo
por diversas ações e situações que são conflituosas: ocupação, reintegra-
ção de posse, usucapião, regularização fundiária entre outras. Ações judi-
ciais, envolvendo disputa de terras e demarcação de áreas de populações
tradicionais, são exemplos em todo o país e marcadamente na região norte
(madeireiras, mineradoras, grileiros posseiros, índios e ribeirinhos etc.).
A disputa pelo espaço-tempo, por exemplo, pode ser representada
nos estudos sobre manifestações culturais que apontam o movimento dia-
lético da sociedade e a luta pela apropriação do espaço.A compreensão dos
conflitos inplica em considerar também as implicações e diferenciações
espaciais geradas.
De acordo com Fernandes (2008, p. 296),
Pensar o território nesta conjuntura, deve-se considerar a conflitualidade
existente entre o campesinato e o agronegócio que disputam territórios.
Esses compõem diferentes modelos de desenvolvimento, portanto formam
territórios divergentes, com organizações espaciais diferentes, paisagens
geográficas completamente distintas. Nesta condição, temos três tipos de
paisagens: a do território do agronegócio que se distingue pela grande esca-
la e homogeneidade da paisagem, caracterizado pela desertificação popula-
cional, pela monocultura e pelo produtivismo para a exportação; o território
camponês que se diferencia pela pequena escala e heterogeneidade da paisa-
gem geográfica, caracterizado pelo frequente povoamento, pela policultura
e produção diversificada de alimento – principalmente – para o desenvolvi-
mento local, regional e nacional; o território camponês monopolizado pelo
agronegócio, que se distingue pela escala e homogeneidade da paisagem
geo­gráfica, e é caracterizado pelo trabalho subalternizado e controle tecno-
lógico das commodities que se utilizam dos territórios camponeses.

A partir da conflitualidade podemos realizar uma leitura da espacia-


lização e da territorialidade. Para Fernandes (2007), a conflitualidade é ine-
rente ao processo de formação do capitalismo e do campesinato. Acrescen-
ta-se que a questão agrária gera, continuamente, conflitualidade, porque é
movimento de destruição e recriação de relações sociais: de territorializa-
ção, desterritorialização e reterritorialização do capital e do campesinato.
A conflitualidade é pois o processo de enfretamento perene que explicita
o paradoxo das contradições e das desigualdades do sistema capitalista,
evidenciando a necessidade do debate permanente, nos planos teóricos e
práticos, a respeito do controle político e de modelos de desenvolvimento

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

(FERNANDES, 2007, p. 4).


Refletir sobre o papel do Estado implica também em considerar as
políticas territoriais e compreender sua escalaridade e sua multidimensio-
nalidade, como destaca Fernandes (2008).
Nesta perspectiva, quando o território é concebido como uno, ou seja,
apenas como espaço de governança e se ignora os diferentes territórios que
existem no interior do espaço de governança, temos então uma concepção re-
ducionista de território (FERNANDES, 2007, p. 82). Assim, o conceito serve
mais como instrumento de dominação por meio das políticas neoliberais.
Portanto, para compreender a organização do território, em especí-
fico, de cada tipo de território, é preciso considerá-lo na sua totalidade e
com sua multidimensionalidade, organizado em diferentes escalas, a par-
tir de seus diferentes usos. Desse modo, conforme autor, as políticas pú-
blicas de desenvolvimento contribuem para o fortalecimento das relações
capitalistas em detrimento das relações não capitalistas ou familiares e
comunitárias. Intensificam-se, dessa forma, as políticas de expropriação
das comunidades rurais, que perdem seus territórios para o capital que
necessita se apropriar continuamente dos territórios camponeses para se
expandir.
Como bem enfatiza Oliveira (2009), quer na lógica das ações do
Estado, quer na lógica das empresas monopolistas, quer na lógica dos
latifundiários modernos concentradores de terra, quer na luta dos mo-
vimentos socioterritoriais, também modernos, o que se assiste é pura
e simplesmente, luta por uma fração do território capitalista. Aí reside
sua importância política e estratégica. Sua apropriação real ou pela re-
presentação significa o entrechoque de concepções distintas, ou das di-
ferentes sociedades (indígena, quilombola, ou mesmo os inuit – esqui-
mós), ou das classes, frações de classe ou de grupos sociais (OLIVEIRA,
2009, p. 6).
Compreende-se, contudo, que o sistema agrícola camponês não é
necessariamente parte do agronegócio, mas devido às políticas agrícolas,
o controle da tecnologia, do mercado, do conhecimento etc., determinada
pelo capital, torna-os subalternos.

As relações Estado, globalização e agricultura


Estudar o papel do Estado não é uma tarefa simples que possa ser ple-
namente contemplada neste trabalho. Do ponto de vista teórico, busca-
se compreender a inscrição do Estado capitalista no processo de luta, em
particular a luta do campesinato contra a dominação política e econômica
do agronegócio.
O enfraquecimento dos Estados-nações é um traço característico
e muito importante do processo de globalização. Esse enfraquecimento

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tem a ver com o fortalecimento das empresas, corporações transnacio-


nais, entidades multinacionais, não só das empresas mas também dos
organismos como FMI, Banco Mundial, OMC, ONU, UNESCO, UNICEF,
OTAN, NAFTA, MERCOSUL e outros. Esse fato remete, portanto, à cate-
goria nação.
Como afirma Octavio Ianni:
[...] o mundo não é mais apenas, ou principalmente, uma coleção de estados
nacionais, mais ou menos centrais e periféricos, arcaicos e modernos, agrá-
rios e industrializados, coloniais e associados, dependentes e independentes,
ocidentais e orientais, reais e imaginários. As nações transformaram-se em
espaços, territórios ou elos da sociedade global. (IANNI, 1992, p. 96).
Neste contexto, desde os anos 1970 o neoliberalismo vem ganhan-
do espaço e a preocupação dominante passou a ser o Estado mínimo,
cujos instrumentos básicos seriam o ajuste fiscal, a privatização econô-
mica, a desregulamentação e a regulamentação comercial. Esse conjun-
to básico de ideias liberais materializou-se em iniciativas que mudaram
drasticamente as relações anteriores entre mercado/Estado e a ordem de
prioridades do Estado em relação aos segmentos socioeconômicos, tan-
to em termos patrimoniais quanto institucionais. (SALLUN JR., 2003,
p. 44).
Na década de 1980, a crise fiscal do Estado gerou grandes impactos
econômicos na redução do papel do Estado, de acordo com a política neo-
liberal. Enquanto a agricultura dos países desenvolvidos contou com volu-
mes crescentes de recursos públicos, nos países pobres a crise econômica
desarticulou as políticas setoriais existentes, forçando-a aos ajustamentos
com grandes custos sociais.
O esgotamento de um longo ciclo de crescimento econômico no
início da década de 1980 e da ditadura militar são demarcadores signifi-
cativos de um novo arranjo da ordem econômica e política nacional. No
âmbito do poder, novamente a reforma agrária volta à agenda política do
Estado. Ela faz parte do pacto formal que levou o presidente Tancredo Ne-
ves a instaurar a chamada Nova República, com o lançamento do I Plano
Nacional da Reforma Agrária (1985-1988).
O afastamento do Estado da economia, na década de 1990, tradu-
ziu-se nas políticas de privatização de setores ligados à assistência e apoio
aos agricultores e no abandono da política de reforma agrária, em favor
de uma redistribuição de terras orientadas pelo mercado. Esse processo
foi acompanhado por fortes conflitos políticos e fundiários, caracterizados
por expulsão de trabalhadores, ameaças de morte, assassinatos e ainda de
trabalho escravo.
A substituição do antigo nacional-desenvolvimentismo por uma es-
tratégia liberal de desenvolvimento, redirecionou o Estado em relação
a vários setores socioeconômicos privilegiando nitidamente a esfera fi-

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

nanceira. A recessão econômica e o absenteísmo do Estado na política


agrícola no período dificultam a construção de uma política alternativa
de desenvolvimento rural, sobre qual o papel do Estado teria de ser pro-
tagonista.
Nesse processo, o governo Fernando Henrique Cardoso não só esti-
mulou o Congresso a aprovar a lei complementar que regulava as conces-
sões de serviços públicos à iniciativa privada, autorizada pela Constituição
(eletricidade, estradas, ferrovias etc.), mas também conseguiu a aprovação
de uma lei de proteção aos direitos de propriedade industrial e intelectual,
tal como recomendado pela OMC. (SALLUN JR., 2003). No período entre
1985 a 1996, por exemplo, os Censos Agropecuários do IBGE registraram
um milhão a menos de estabelecimentos agropecuários no Brasil.

Da agroindústria ao agribusiness: paradoxos


nos estudos e no desenvolvimento do agronegócio

Diversos estudos sobre a dinâmica agroindustrial, de uma forma ou de ou-


tra, tentam descrever a agricultura sob a perspectiva intersetorial do agribu-
siness, termo utilizado atualmente como agronegócio, tal como fizemos em
nossa tese de doutorado (CLEPS JR., 1998). Naquele trabalho procuramos
desenvolver as noções e as principais discussões sobre o conceito, com o
objetivo de explicar as perspectivas da organização das atividades agrícolas
a partir das relações com a indústria, o que buscamos aqui retomar incor-
porando os elementos recentes das pesquisas sobre o agronegócio.
Originalmente o termo agribusiness foi proposto pela primeira vez
nos anos 1950 no Centro de Administração de Negócios (Graduate School
of Business Administration, de Harvard), por de dois autores norte-ameri-
canos, John Davis e Roy Goldberg (A Concept of Agribusiness, 1957) para
explicar o processo de subordinação e as relações da agricultura com seto-
res industriais e comerciais. O termo define-se como a soma total de todas
as operações envolvidas na manufatura e na distribuição de suprimentos
agrícolas; de operações de produção no campo; e de armazenamento, de
processamento e de distribuição dos produtos agrícolas, bem como dos
itens produzidos.
A grande razão para a definição do termo agribusiness foi a rápida
mudança da agricultura na maior parte do ocidente, especialmente nos
Estados Unidos, nas décadas consecutivas a Segunda Grande Guerra. A
agricultura, ou melhor, o “setor agrícola”, estava transformando-se em um
componente (embora o maior) de um sistema que ligava cada vez mais as
operações com os industriais e distribuidores de todas as partes do país.
Em muitos aspectos, esse desenvolvimento no pós-guerra e suas
consequências fazem jus ao título de “Revolução Agrícola”. O papel dos in-
sumos adquiridos (fora da fazenda) era muito menor na agricultura pré-in-

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dustrial e, apesar dos avanços significativos na mecanização e da introdu-


ção de fertilizantes artificiais durante o século XIX, permaneceu modesto
até 1940. Depois da Segunda Guerra Mundial, contudo, houve um aumen-
to extraordinário no uso de fertilizantes químicos, tratores e equipamen-
tos, além da adoção de insumos comprados de empresas agropecuárias;
todos esses fatores foram causa e efeito da prosperidade e da expansão da
agricultura. A integração da produção agrícola com outros setores da eco-
nomia tornou-se igualmente significativa para o campo-indústria.
O aumento da população e da urbanização, mais o crescente índi-
ce de participação da mulher na força de trabalho, criaram um ambiente
econômico e social que estimulava mudanças substanciais nas indústrias
alimentícias e no comércio varejista. A introdução de inovações como ali-
mentos congelados, o advento dos supermercados e a informação, através
dos anúncios de TV, promoveram a proliferação de alimentos semiprontos,
ao mesmo tempo em que aceleraram as tendências para uma concentração
corporativa nesses setores. Do ponto de vista dos seus formuladores, era
necessário que os administradores dos empreendimentos relacionados ao
agribusiness desenvolvessem uma percepção clara do sistema total de pro-
dução do qual participavam e moldassem suas decisões estrategicamente de
acordo com aquele contexto. Na realidade, o termo surge para dar conta das
relações mais estreitas entre o campo e a indústria, como destaca Graziano
da Silva (1991, p.7), Em que “a ideia de ‘agribusiness’, não apenas ressalta
os vínculos intersetoriais existentes, como coloca a produção agrícola, como
parte de um sistema de ‘commodities’ (‘commodities system’) muito mais
amplo, enfatizando as suas relações com o mundo dos grandes negócios”.
Karl Kautsky (1980) mostrou grande percepção do processo evoluti-
vo da agricultura ao formular que,
[...] o modo de produção moderno chega... no fim do processo dialético, a
seu ponto de partida, a supressão do divórcio entre a indústria e a agricul-
tura”, mostrando que “se a agricultura campesina primitiva, a agricultura
era, do ponto de vista econômico, o elemento decisivo e dirigente, esta re-
lação agora se subverte. A grande indústria capitalista passa agora a domi-
nar. A agricultura passa a obedecer às suas ordens, adaptar-se às suas exi-
gências. A direção da evolução industrial serve de regra à evolução agrícola.
(KAUTSKY, 1980, p.272).
Os postulados de Kautsky, a partir da obra “A Questão Agrária”, têm
servido a muitos autores, principalmente aos que trataram do problema no
contexto latino-americano, que encontram nos postulados do autor as bases
para as explicações recentes das transformações nas relações agricultura-
indústria. Muller (1989, p.27), por exemplo, sintetiza os principais aportes
de Kautsky, destacando em primeiro lugar, “a circulação em geral, o comércio
e as comunicações, revolucionadas pela acumulação de capital, aumentam a
dependência da agricultura”; e, em segundo lugar, “a aplicação de conquistas

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

da ciência moderna na agricultura, provoca uma revolução na organização ru-


ral, suprimindo o divórcio entre agricultura e indústria”. De acordo com essas
ideias, o capital se apodera da agricultura, inicialmente, pelas vias de circu-
lação, e, posteriormente, revolucionando seu modo de produzir.
Aos poucos, o termo agribusines passou a ser a base das elabora-
ções dos denominados “agronegócios” e, mais tarde, nas definições de
“complexos agroindustriais”. As contribuições originais e as adaptações
posteriores procuraram incorporar a visão sistêmica do “agribusiness”.
O seu uso subsequente mostrou uma considerável confusão conceitual,
aumentada ainda pela polêmica da discussão política de “esquerda” e de
“direita”.
O critério analítico baseado nas relações intersetoriais, algo que há
algum tempo tem sido comum no campo das Ciências Econômicas, da So-
ciologia, da Agronomia, da Geografia e em outros campos do conhecimen-
to, tem como base a supressão da divisão trisetorial da economia, ou seja,
dos três setores da economia – primário, secundário e terciário. Ao mesmo
tempo, novas abordagens exigem que se considerem as múltiplas conexões
entre o rural e o urbano, superando tanto a dicotomia como a intensifica-
ção do processo de industrialização e o consequente fenômeno de urbani-
zação, que se intensificou na interdependência campo-cidade.
Por meio de vários enfoques teórico-metodológicos, muitos autores
procuraram superar a análise da evolução da agricultura sob o ponto de
vista “funcional”, ou seja, pelas funções que esta agricultura desempenha-
va. Outros, pela falta de percepção de que o funcionamento das ativida-
des agrícolas depende do desenvolvimento das atividades não agrícolas, fo-
ram também criticados em suas análises. Produziram-se também diversos
instrumentais analíticos e uma vasta literatura sobre a agricultura como
simples ofertante de alimentos e matérias-primas; e outras visões do papel
dessa agricultura, tanto na oferta de divisas quanto fornecedora de mão de
obra, ou ainda como demandante de produtos industriais.
O aprofundamento do processo de desenvolvimento econômico ca-
pitalista levou à crescente interdependência da agricultura com os dife-
rentes ramos industriais. Nesse sentido, o próprio processo de desenvolvi-
mento tem justificado o crescente reconhecimento da importância de uma
análise intersetorial no tratamento de questões relacionadas às mudanças
na agricultura, porém o rural é necessariamente territorial, e não setorial.
Essa tem sido a principal visão de alguns estudiosos e está incorporada
parcialmente nos programas dos órgãos governamentais no Brasil.
Nessa perspectiva, ao contrário de formulações recentes, o “com-
plexo agroindustrial” é visto como uma fase dinâmica e transitória no de-
senvolvimento industrial da agricultura e não sua expressão final e mais
completa; não é possível a imposição de um padrão unificado à totalidade
do sistema agroalimentício.

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Para Oliveira (1999, p.52) o processo de desenvolvimento da agricul-


tura, sobretudo via industrialização,
[...] tem eliminado gradativamente a separação entre a cidade e o campo, en-
tre o rural e o urbano, unificando-os numa unidade dialética. Isto quer dizer
que campo e cidade, cidade e campo, formam uma unidade contraditória.
Uma unidade onde a diferença entre os setores da atividade econômica (a
agricultura, a pecuária e outros, em um, e a indústria, o comércio, etc., em
outro), vai sendo soldada de um lado, pela presença, na cidade, do trabalha-
dor assalariado (boia-fria) do campo. Aliás as greves dos trabalhadores do
campo são feitas nas cidades. Por outro lado, pode-se verificar que a indus-
trialização dos produtos agrícolas pode ser feita no campo com os trabalha-
dores das cidades. Aí reside um ponto importante nas contradições do de-
senvolvimento do capitalismo, tudo indicando que ele mesmo está soldando
a união contraditória que separou no início de sua expansão: a agricultura e
a indústria; a cidade e o campo.

Assim, de acordo com o autor, a industrialização do campo é vista


como processo contraditório e desigual de desenvolvimento da agricultu-
ra. Essas observações ampliam as posições de que “a produção capitalista,
no caso da agricultura, localiza-se na cidade, não no campo” (GOODMAN et
al., 1990, p.6),e permitirem a reflexão do processo de trabalho rural e ur-
bano, sendo este último o locus preferencial da concentração da força de
trabalho e consequentemente do capital.

A Geografia e as pesquisas em agribusiness


Até os anos de 1980 os geógrafos rurais trataram o setor agrícola seleti-
vamente, dando atenção considerável à consolidação da terra e à mudan-
ça social nas comunidades rurais, tratando da emergência do sistema de
agribusiness apenas casualmente. Neste campo, foram desenvolvidos prin-
cipalmente estudos sobre a modernização e a industrialização da agricul-
tura, a partir da Revolução Verde implementada por meio dos “pacotes tec-
nológicos” pelos governos, principalmente nos países subdesenvolvidos.
O fenômeno do “crescimento do agribusiness” no mundo e as pes-
quisas sobre o agronegócio têm sido pouco estudados até então pelos geó-
grafos dedicados aos estudos relacionados à indústria e à agricultura.
A evolução do agribusiness no pós-guerra foi promovida pelas polí-
ticas e ações de alguns, mas certamente não de todos os participantes do
sistema. Mas os modos de pensar e as consequências da transformação da
produção agroalimentar pela maciça penetração de tecnologias e racio-
nalidade de mercado do capitalismo contemporâneo, têm resistido a um
grande número de desinteressados em mudanças. Mesmo Goldberg (1977)
não foi convincente ao tentar responder às críticas sobre o agribusiness,
afirmando que é um termo descritivo apolítico, apartidário, que tenta des-

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

crever a natureza interrelacionada do sistema alimentar interno e global,


incluindo, para efeito de análise, pequenos e grandes agricultores, peque-
nos e grandes distribuidores, ricos e pobres.
O problema com o agribusiness não deve ser apenas na natureza
conceitual, mas de problemáticas tais como quem administra o sistema,
para que fins, e quais os efeitos, pois nem todos os agricultores estão inte-
ressados na integração com o sistema de agribusiness, mas sua dinâmica
tende a polarizar a comunidade agrária. O que deve ser discutido entre os
geógrafos é a questão de que os produtores de pequena e média escala são
mais vítimas que beneficiários das instituições do agribusiness, pois os in-
teresses de lucratividade dos produtores de larga escala, geralmente coin-
cidem com o das instituições não agrícolas, entende-se que o agrícola pode
ser caracterizado como “o lado que produz do agribusiness”
O termo agribusiness tem ainda o uso frequentemente relacionado
ao sistema global de produção, o qual tem servido para moldar as decisões
estratégicas dos grupos de interesse. Para alguns estudiosos, o termo, por
vezes, denota muito mais uma instituição que um sistema. Assim, a trans-
formação em grande parte da economia agrícola em sistema de produção
de agribusiness tem sido associada ao grande crescimento dos focos insti-
tucionais específicos de poder que variam em níveis de análise sobre o pro-
cesso de controle de elementos subordinados ao sistema. Na ex-União So-
viética e na Europa Oriental o focus típico é o “complexo agroindustrial”:
no mundo ocidental a instituição dominante é a grande corporação, pre-
dominantemente transnacional, envolvida em um ou mais estágios estra-
tégicos do processo de produção agroalimentar. Tais corporações são trata-
das frequentemente como agribusiness, o que conduz, consequentemente,
à ambiguidade sobre o tema, pois denota um sistema ou uma instituição
(ou um elemento do sistema).
Devido à natureza mutante, tem sido desafiador à pesquisa geográ-
fica sobre o setor agroindustrial. Conforme destacado a seguir, é preciso ir
além da simples descrição dos processos de mudança econômica e social
em que ele ocorre. De acordo com Wallace (1985, p. 496), há pelo menos
quatro dimensões do sistema agroindustrial que chamam a atenção e me-
recem ser analisados: que a produção mundial de alimentos continua sendo
um assunto de fundamental importância, desde o final do século XX. Para
as instâncias de representação e poder do agronegócio, o sistema de agribu-
siness é a única esperança para alimentar o mundo (ou o maior obstáculo
para que se alcance tal meta); a industrialização da produção agrícola le-
vanta questões fundamentais sobre a relação entre um sistema econômico
com características mecânicas (tanto conceitual quanto material) e um sis-
tema de produção que permanece essencialmente preso aos ciclos biológi-
cos naturais. Estudos de impactos ambientais provocadas pelo agronegócio
(por exemplo: erosão do solo), problemas de estresses do meio ambiente,

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tensões sociais não resolvidas, associadas com a perseguição incansável e


crescente por racionalidade econômica dos agricultores ligados ao agribu-
siness, sugerem pesquisas cooperativas entre geógrafos humanos e físicos;
ainda acerca das interpretações da evolução da agricultura contemporânea,
até mesmo nas nações de industrialização avançada, muitos produtores das
comunidades agrícolas retêm uma base material adequada para resistir à
integração total no modo de produção dominante.
A penetração ambígua e desigual do capitalismo industrial na socie-
dade agrária gerou uma controvérsia histórica e teórica desde o estudo mar-
xista seminal de Kautsky sobre “A Questão Agrária”. As interpretações das
relações entre agricultores e corporações de agribusiness, apontam, contudo,
para novas relações de poder que necessitam ser elucidadas. Assim, a maior
atenção por parte dos geógrafos à economia política da produção agroindus-
trial promete ser uma área estimulante para as pesquisas contemporâneas
e; finalmente, a emergência da biotecnologia como mola propulsora da mu-
dança tecnológica e econômica neste final do século, coloca o sistema agro-
alimentar, em particular, em um contexto radicalmente novo.
O potencial para a manipulação genética da vida de plantas e ani-
mais para controlar as constrições e limitações naturais do meio ambiente
(inclusive doenças) na produção de alimentos pode transformar a agri-
cultura contemporânea e o processamento de seus produtos. Os possíveis
benefícios de um suprimento “mais seguro” e abundante de alimentos,
precisam ser ponderados diante dos riscos e aspectos éticos associados à
engenharia genética.No contexto institucional no qual a biotecnologia pro-
gride e se aplica, cresce o número de perguntas acerca da incidência social
e econômica de seus benefícios e da distribuição destes benefícios entre as
zonas ecológicas principais do mundo. Essas são algumas das importantes
questões sobre o agribusiness que podemos desenvolver como geógrafos
voltados para as questões agrárias.

O Pacto do Estado com o agronegócio no Brasil


As mudanças na orientação do Estado foram tão profundas ao ponto de
romper com os princípios básicos da velha aliança nacional-desenvolvi-
mentista. Como um dos efeitos importantes na agricultura brasileira, a
propriedade agrária, antes utilizada como reserva de valor, deixou de ser
intocável uma vez que a estabilização monetária reduziu sensivelmente os
preços provocando a desvalorização.
Para Szmrecsányi (2008, p. 147), o agronegócio atual:
[...] configura uma aliança entre o latifúndio nacional, comandado por uma
burguesia agrária e colonial, com o capital mercantil e financeiro interna-
cional das tradings, dos operadores de bolsas de mercadorias, dos especula-
dores em commodities. Essa burguesia é colonial em contraposição à bur-

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

guesia de Estado dos empreiteiros e rentistas nacionais que vivem às custas


das benesses propiciadas pelos governos locais, regionais e federal. A alian-
ça da qual ela faz parte sustenta o modelo primário-importador que atual-
mente predomina no Brasil, um modelo econômico que gira em torno da
produção e exportação.

No segundo governo Fernando Henrique Cardoso (2000-2003), ocor-


reu um processo de relançamento do agronegócio no qual, de acordo com
Delgado (2005), consistiu-se por um conjunto de iniciativas:
i) um programa prioritário de investimento em infraestrutura territorial
com “eixos de desenvolvimento”, visando à criação de economias externas
que incorporassem novos territórios, meios de transporte e corredores co-
merciais ao agronegócio; ii) um explícito direcionamento do sistema públi-
co de pesquisa agropecuária, manifesto pela reorganização da Empresa Bra-
sileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a operar em perfeita sincronia
com empresas multinacionais do agronegócio; iii) uma regulação frouxa do
mercado de terras de sorte a deixar fora do controle público as “terras de-
volutas”, mais aquelas que declaradamente não cumprem a função social,
além de boa parte das autodeclaradas produtivas; e iv) a mudança na políti-
ca cambial, que ao eliminar a sobrevalorização tornaria o agronegócio (as-
sociação do grande capital com a grande propriedade fundiária, sob media-
ção estatal) competitivo junto ao comércio internacional e funcional para a
estratégia do “ajustamento constrangido”. (DELGADO, 2005, p. 67).

Apesar da reorientação das formas governamentais para o estímu-


lo aos programas de “reforma agrária de mercado”, e também por pres-
são social do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), Confede-
ração Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (Contag) e Igreja Católica,
durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso desenvolveu-se
um amplo programa de reforma agrária. O poder público realizou desa-
propriações de propriedades improdutivas e o assentamento de centenas
de milhares de famílias de trabalhadores agrícolas sem terra, bem como
um conjunto de programas institucionais e medidas específicas que ele-
varam a taxação sobre as terras improdutivas e o aumento do controle e
mesmo a retomada da posse sobre imensas áreas ilegalmente ocupadas
por grileiros.
Em resultado ao forte crescimento do agronegócio, bem como de
atividades produtivas relacionadas ao setor, as políticas públicas impul-
sionaram a expansão da produção de grãos exportáveis para a frontei-
ra econômica ou de incorporação recente, sobretudo do milho e da soja,
principalmente nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil. No
entanto, a área produtiva incorporada pela expansão do agronegócio tem
sido desproporcionalmente pequena em comparação com o território “im-
produtivo” controlado pelo sistema. Ainda é muito elevada a proporção de
terras não utilizadas e, segundo dados do Sistema Nacional de Cadastro

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Rural de 2003, apenas cerca de metade, ou seja, 49,5% (420,4 milhões de


hectares) dos imóveis estão cadastrados pelo órgão e 20% (170 milhões de
hectares) são formados por terras devolutas.
Desde o primeiro mandato do governo Lula da Silva, as alianças en-
tre o Estado e o agronegócio configuram o atual quadro da questão agrária
no Brasil. O agronegócio, é uma instituição enraizada na história econô-
mico-social e na estrutura de poder político do País. Em continuidade à
política de reforma agrária estabelecida pelo governo anterior, o primeiro
mandato do governo Lula (2004-2007) foi marcado pelo esvaziamento da
proposta e da concepção da reforma agrária e as pretensões de implantar
um processo de mudança no campo brasileiro definharam e os resultados
foram insignificantes. De acordo com a Associação Brasileira de Reforma
Agrária (ABRA), as políticas públicas de reforma agrária demonstram a
mudança do caráter da reforma proposta: de estrutural para meramen-
te compensatória, ou seja, tal qual as “reformas” dos governos anteriores
(ABRA, 2007).
Assim consolidaram-se no país as principais empresas mundiais vol-
tadas para a produção de alimentos e comércio mundial de commodities,
como a Bunge, Cargill, Unilever, Nestlé, ADM, entre outras empresas líde-
res do agronegócio mundial (Quadro 1).

Quadro 1 – Maiores empresas do agronegócio no Brasil

Empresa Segmento Vendas Valor (em R$ milhões)


Bunge Alimentos Óleos, farinhas e conservas 14 384,80
Cargill Óleos, farinhas e conservas 11 656,00
Souza Cruz Fumo 10 385,70
Unilever Óleos, farinhas e conservas 10 199,50
Sadia Aves e suínos 9 592,70
Perdigão Agroindustrial Aves e suínos 6 799,80
Nestlé Leite e derivados 6 613,90
Bunge Fertilizantes Adubos e defensivos 6 167,40
Basf Adubos e defensivos 4 949,20
Copersucar Açúcar e álcool 4 713,90
JBS Carne bovina 4 668,70
ADM Óleos, farinhas e conservas 4 605,80
LDC Brasil Óleos, farinhas e conservas 4 423,90
Bracol Holding Couro 4 123,70
Suzano Madeira e celulose 3 984,70
Kraft Foods Óleos, farinhas e conservas 3 826,30
Klabin Madeira e celulose 3 528,40

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

Coamo Óleos, farinhas e conservas 3 494,80


Bayer Adubos e defensivos 3 236,80
DuPont Adubos e defensivos 3 014,60
CNH Máquinas, equip. e ferramentas 2 831,60
VCP Madeira e celulose 2 763,00
Marfrig Carne bovina 2 702,40
Syngenta Adubos e defensivos 2 691,00
Aracruz Madeira e celulose 2 641,20
Elma Chips Óleos, farinhas e conservas 2 544,60
Eleva Aves e suínos 2 515,20
Heringer Adubos e defensivos 2 424,10
Seara Aves e suínos 2 364,50
Aurora Aves e suínos 2 347,50
Yara Brasil Fertilizantes Adubos e defensivos 2 315,10
Duratex Madeira e celulose 2 250,10
Caterpillar Máquinas, equip. e ferramentas 2 235,00
Sotreq Revenda de máq. e insumos 2 178,30
Mosaic Adubos e defensivos 2 089,90
International Paper-SP Madeira e celulose 2 046,20
Amaggi Óleos, farinhas e conservas 2 020,90
Monsanto Adubos e defensivos 1 913,70
Itambé Leite e derivados 1 835,00
AGCO Máquinas, equip. e ferramentas 1 789,60
Fonte: EXAME: Anuário do Agronegócio, 2008. (org. Cleps Jr., 2009).

No entanto, as políticas do Estado necessariamente não se repre-


sentam ou fomentam uniformemente o poder do agronegócio. Ao con-
trário, capitais agroindustriais em específico tendem a apresentar es-
tratégias diferenciadas e, por vezes, até conflitantes de crescimento e
acumulação. Esta é uma das principais características deste setor, que
possui representações políticas e institucionais de setores ligados à
agroindústria, mas também algumas das mais expressivas e tradicionais
entidades patronais agrícolas, como Sociedade Rural Brasileira (SRB),
Sociedade Nacional da Agricultura (SNA) e a Organização das Coopera-
tivas Brasileiras (OCB), além de algumas Federações e Cooperativas Es-
taduais de Agricultura.
Por outro lado, a organização dos movimentos sociais e sua capaci-
dade de representação e alianças, no sentido de pressionar, têm, em certa
medida, favorecido a continuidade das ações do setor público para uma
intervenção mais efetiva com relação à democratização do campo. No en-
tanto, nas palavras de Fernandes (2007a, p.91),

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João Cleps Junior

[...] o agronegócio investe ferozmente na criminalização da luta pela terra,


pressionando o Estado para impedir a espacialização desta prática de luta
popular. Para tentar evitar o enfretamento com os camponeses, o agronegó-
cio procura convencê-los que o consenso é possível. Todavia, as regras pro-
postas pelo agronegócio são sempre a partir de seu território: o mercado. O
controle do território e das formas de acesso à terra é objetivo da mercanti-
lização da reforma agrária, fazendo com que o acesso seja por meio das re-
lações de mercado, de compra e venda. O controle da propriedade da terra é
um dos trunfos do agronegócio. É fundamental que a terra esteja disponível
para servir à lógica rentista.

Um outro ponto importante na discussão atual da questão agrária


e que rebate diretamente no campo brasileiro refere-se ao problema dos
agrocombustíveis e à produção de alimentos. Oliveira (2009) destaca que
na atual crise de alimentos “o agronegócio do agrocombustível brasileiro
quer pegar carona no futuro fundado na reprodução do passado” (p. 10).
Isso é que se verifica, em termos atuais e no futuro, conforme previsões do
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA, 2009).
De acordo o MAPA, mesmo levando-se em conta o crescimento da
população brasileira para a próxima década, as projeções de produção e
consumo de arroz, feitas pelo MAPA/AGE mostram uma situação preocu-
pante com relação aos produtos produzidos pela agricultura familiar (já
que é um dado histórico), havendo necessidade de importar 7,75 milhões
de toneladas de arroz nos próximos dez anos (Cf. Projeções do Agronegó-
cio Brasil 2008/2009 a 2018/19, p.6). Além disso, também continuaremos
a importar trigo, produto que representa um produto de elevada impor-
tância estratégica para o abastecimento interno. O déficit da produção,
que foi de 6,47 milhões de toneladas na safra de 2008/2009 para o abas-
tecimento interno, exigirá importações de 5,5 milhões de toneladas em
2018/2019.
Por outro lado, a produção de grãos, principalmente voltados para
o agronegócio, deverá apresentar crescimento da produção interna. A pro-
dução de soja em 2018/19 é estimada em 26,5 milhões de hectares, atingin-
do uma produção de cerca de 88, 9 milhões de toneladas, representando
um acréscimo de 5,0 milhões de hectares em relação à safra 2007/08. Se-
gundo o MAPA, essa expansão será superada apenas pela cultura da cana
de açúcar, que aumentará cerca de 7 milhões de hectares em 2018/19. Mas
o aumento da produtividade será o principal fator de crescimento da pro-
dução de soja no Brasil. A soja deve se expandir através de uma combina-
ção de expansão de fronteira em regiões onde ainda há terras disponíveis e
de um processo de substituição de lavouras onde não há terras disponíveis
para serem incorporadas (MAPA, 2009, p. 12).
No entanto, com as projeções da OCDE e de outros organismos liga-
dos à produção, apontam que o Brasil será um país-chave na determinação

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Questão agrária, estado e territórios em disputa: os enfoques
sobre o agronegócio e a natureza dos conflitos no campo brasileiro

do futuro dos preços mundiais do açúcar, permanecendo como o líder em


produtividade e em exportação do produto. Segundo o Food and Agricultu-
ral Policy Research Institute (FAPRI, 2008), o Brasil deverá contar com um
aumento da produção de 7 milhões de toneladas entre 2008/09 e 2017/18,
atingindo um montante de 40,76 milhões de toneladas em 2017/18. Até
2017/18, o comércio de açúcar brasileiro deve aumentar em 20,6%. (MAPA,
2009, p. 19).
As projeções sobre o etanol referentes à produção, consumo e ex-
portação refletem grande dinamismo desse produto devido especialmen-
te ao crescimento do consumo interno. A produção de etanol projetada
para 2018/19 é de 58,8 bilhões de litros, mais que o dobro da produção de
2007/08. O consumo interno para 2018 está projetado em 50,0 bilhões de
litros e as exportações em 8,8 bilhões (MAPA, 2009, p.20).
A opção governamental a favor da expansão da monocultura da
cana-de-açúcar é um dado concreto. De acordo com os dados anuais da
Produção Agrícola Municipal do IBGE, entre 1995 e 2005, a cana-de-açú-
car tornou-se a terceira lavoura do país em extensão, detendo, em média,
9,5% do total de suas áreas plantada e colhida, sendo superada neste par-
ticular apenas pelo milho e pela soja. De acordo com a CONAB, na safra
2008/2009, a cana ultrapassou os 7 milhões de hectares para uma área de
mais de 21 milhões de hectares para a soja e 14 milhões para o milho.
No entanto, a expansão da produção de cana, nos principais bio-
mas brasileiros, é a tendência deste segundo ciclo (PROÁLCOOL). Estu-
dos apontam que essa cultura vem ocupando áreas prioritárias para con-
servação e uso sustentável do Cerrado que ameaçam a biodiversidade em
estados como MG, SP, MT, MS e GO. A expansão da cultura da cana que
está concentrada em 60% no estado de São Paulo, tem como tendência seu
crescimento nas áreas do cerrado de Mato Grosso do Sul, Triângulo Mi-
neiro, Centro-Sul de Goiás e sul do Mato Grosso. Sem dúvida, com alguns
aspectos desse complexo cenário, com foco nos impactos da expansão da
cana-de-açúcar sobre o uso da terra e sobre o desenvolvimento do Cerra-
do, espera-se que o debate sobre a dinâmica de uso da terra com relação à
produção de alimentos vis-à-vis à de agro(bio)combustíveis fique cada vez
mais intenso.

Conclusões
Neste artigo, procuramos desenvolver uma revisão das questões concei
tuais e práticas sobre os enfoques interpretativos do processo de desenvol-
vimento capitalista do campo brasileiro, envolvendo os temas do Estado,
território, agronegócio, população camponesa entre outros.
Nas discussões, procuramos mostrar que o Estado continua envolvi-
do sendo ator central, mas agora sem os instrumentos eficientes de controle

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João Cleps Junior

e planejamento agrícola existentes no passado. O relançamento da tese da


modernização técnica “sem reformas”, no limiar do século XXI, e a atual
aliança conservadora do agronegócio parecem configurar a resposta políti-
ca do Estado brasileiro frente às demandas dos vários públicos excluídos ou
vitimados no processo de mundialização financeira. Em outras palavras, a
realidade atual do agronegócio brasileiro é uma grande ilusão e contradição,
porque reflete a associação do grande capital agroindustrial (e financeiro)
com a grande propriedade fundiária. A conclusão é que ainda faltam políti-
cas concretas em relação à questão agrária. Acreditamos, assim, estar contri-
buindo para os debates e para o entendimento da atual questão agrária, que
tem sido um dos principais desafios das pesquisas em Geografia Agrária.

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Geografia agraria territorio e desenv FINAL.indd 54 3/23/10 11:17:17 AM


O campesinato frente à expansão
do agronegócio e do agrocombustível

João Edmilson Fabrini


UNIOESTE | fabrini2@ibest.com.br

Introdução
As experiências de produção de agrocombustíveis no Brasil existem des-
de início do século XX, mas tomaram impulso na década de 1970 com a
elevação dos preços do petróleo. Atualmente, alguns governos estaduais
e o governo federal estão mobilizando esforços para desenvolver a pro-
dução de energia de biomassa (etanol e biodiesel). Em vista de condições
favoráveis como extensão do território, clima, experiência na produção de
agroenergia, dentre outras, o Brasil estaria predestinado a liderar o pro-
cesso de transição mundial da “civilização do petróleo” para a “civilização
da biomassa”.
Entidades sindicais e movimentos sociais, visualizando possibilida-
de de obtenção de vantagens aos pequenos agricultores na produção de
agroenergia, defendem a participação dos camponeses no projeto do agro-
combustível, sobretudo aquele voltado à produção de biodiesel do PNPB
(programa nacional de produção e uso de biodiesel). A partir desta com-
preensão, movimentos sociais e entidades apresentam uma pauta de rei-
vindicações da qual se destacam as políticas públicas, crédito, assistência
técnica, infraestrutura comunitária, legislação e principalmente a criação

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

de uma empresa estatal capaz de fazer frente ao monopólio de corporações


empresariais do setor privado para evitar a concentração de capital. Assim,
os camponeses deveriam participar da produção do agrocombustível, dis-
putando inclusive projeto e território com o agronegócio.
A inserção da pequena agricultura na produção de agroenergia está
colocada como se fosse possível obter vantagens na produção em cadeia
controlada por corporações nacionais e estrangeiras globalizadas. Contu-
do, a participação dos camponeses na produção de agrocombustível impli-
ca numa inclusão subordinada, semelhante à que ocorre na produção de
aves, tabaco, suínos e leite, por exemplo, em que o trabalho e renda da ter-
ra são transferidos ao capital no processo de circulação (comercialização)
da produção, principalmente.

Agronegócio, desenvolvimento e agrocombustíveis


A produção de agrocombustíveis é entendida pelos governos, empresários,
proprietários, organismos multilaterais e até entidades ligadas aos cam-
poneses como um importante caminho para o desenvolvimento da nação
brasileira.
A concepção hegemônica de desenvolvimento está relacionada à ca-
pacidade produtiva e de geração de riquezas de uma determinada nação.
Esta noção de desenvolvimento está essencialmente vinculada ao desen-
volvimento das forças produtivas. A capacidade de produção derivada do
desenvolvimento de forças produtivas se desdobraria no progresso econô-
mico, político, cultural, dentre outras dimensões, possibilitando o desen-
volvimento social.
A partir de interpretações inspiradas no arcabouço teórico de bases
estruturalistas da CEPAL (comissão econômica para América Latina), e
também das “esquerdas” políticas, a concentração da propriedade da ter-
ra e a predominância de latifúndios na estrutura agrária brasileira, cons-
tituir-se-iam num obstáculo para industrialização e desenvolvimento de
forças produtivas. Celso Furtado, importante teórico vinculado à CEPAL,
entendia que eliminação de latifúndios por medidas de reforma agrária,
principalmente, seria necessária para ampliar o mercado nacional e ala-
vancar o desenvolvimento.
A posição contrária à da CEPAL e das esquerdas afirma que a estru-
tura agrária concentrada não se constitui num obstáculo para o desenvol-
vimento, porque a grande propriedade é mais eficiente economicamente
do que as pequenas propriedades de camponeses. Os adeptos dessa con-
cepção conservadora, tais como Xico Graziano e Delfim Neto, por exem-
plo, entendem que a concentração de terras não é obstáculo para o desen-
volvimento do Brasil, não havendo necessidade econômica de realização
de reforma agrária distributiva e alteração da estrutura fundiária concen-

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João Edmilson Fabrini

trada para a industrialização do País. O diagnóstico feito pela CEPAL da


década de 1960, de que a estrutura agrária se constituía num obstáculo
para a industrialização e desenvolvimento do Brasil, mostrou-se equivoca-
do, pois o Brasil se industrializou e criou relativo mercado interno sem a
necessidade de alteração da estrutura fundiária altamente concentrada.
Os modelos de desenvolvimento adotado no Brasil, macroestrutu-
ralmente podem ser classificados em “agroexportador”, que corresponde
aproximadamente ao período colonial até início do século XX; o “nacio-
nal-desenvolvimentista”, inaugurado em 1930 e que se seguiu até 1980;
e o “neoliberal”, que se iniciou na década de 1990, chegando até os dias
atuais, quando se intensificou no campo uma agricultura de negócio, o
agronegócio.
Alguns autores como Sader (2009), por exemplo, refere-se a um
modelo “pós-neoliberal” centrado na esfera social e pública que está
emergindo no Brasil no lugar da esfera mercantil com a crise do neolibe-
ralismo. Acrescenta-se a este fato, a crise econômico-capitalista iniciada
em 2008 nos EUA que se desdobrou mundialmente, marcando o fim do
neoliberalismo.
Na fase neoliberal, um conjunto de ajustes estruturais na economia
brasileira feito pelo Estado fortaleceu a presença de corporações nacionais
e transnacionais na agricultura. Os ajustes removeram entraves à circula-
ção global de capitais, facilitando investimentos estrangeiros no País, tais
como abertura de mercados, incentivo à agricultura de exportação, redu-
ção de regulamentos ambientais e trabalhistas, etc. À agricultura foi impu-
tado o compromisso de garantir o superávit da balança comercial e, para
tanto, intensificaram-se as suas características de negócio regulado pelo
mercado mundial.
A implantação de medidas neoliberais no campo está relacionada
ao processo de modernização da agricultura que se iniciou em meados da
década de 1960 e se concretizou posteriormente, em alguns setores, com
a integração entre agricultura e indústria – complexo agroindustrial (CAI)
– numa intensificação da expansão das relações capitalista de produção
no campo. Segundo Silva (1996), as transformações na base técnica da
produção agropecuária a partir de meados da década de 1960 marcaram
a passagem de uma agricultura dependente de condições naturais para
a agricultura industrializada, cada vez mais dependente de tecnologias e
trabalho com a formação de um novo padrão agrícola. Silva (1996) ainda,
entende que a agricultura brasileira, a partir deste processo de industria-
lização e modernização, passou do “complexo rural” para uma dinâmica
comandada pelo “complexo agroindustrial”, não sendo possível tratar da
agropecuária como um setor autônomo da economia, pois a integração
agricultura-indústria, com soldagens “para frente” e “para trás”, dificultou
o estabelecimento de limites entre os setores da economia.

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

Segundo Kageyama (1987), neste processo de caificação, a indús-


tria passou a comandar a agricultura. A agricultura se tornou dependente
de pacotes tecnológicos, insumos químicos, biológicos, dentre outros, ne-
cessários para o desenvolvimento da produção agrícola. Assim, uma força
produtiva externa à propriedade rural ergueu-se como fator importante
para a produção agrícola.
É um momento de modernização a partir do qual a indústria passa a coman-
dar a direção, as formas e o ritmo da mudança na base técnica agrícola, o
que ela só pode fazer após a implantação do D1 – Departamento 1 – para a
agricultura do país. (KAGEYAMA, 1987 p.10).

Nesta concepção de Silva (1996) e Kageyama (1987) de expansão do


modo capitalista de produção no campo, a passagem do complexo rural
para o agroindustrial desdobrou-se nas relações de trabalho na agricultu-
ra com a ampliação do assalariamento, mesmo que disfarçado, resultante
da purificação de relações e aumento da divisão do trabalho. Neste novo
padrão agrícola há a dificuldade, inclusive, de se estabelecer o que são re-
lações de trabalho ligadas à agricultura ou indústria. As ocupações rurais
não agrícolas também assumiram maior importância neste novo rural.
Segundo Kageyama (1987) ainda, além da sujeição formal, o comple-
xo agroindustrial engendrou também a sujeição real, quando ocorreu a apro-
priação do modo de trabalhar pelo capital. A fragmentação do processo pro-
dutivo fez o trabalhador perder conhecimento da totalidade da produção. Ao
tratar do complexo agroindustrial canavieiro, Thomaz Jr. (1997) destaca que
o ritmo de trabalho no campo, como o corte de cana, é resultante do controle
exercido na planta fabril. É como se a esteira de uma fábrica saísse da planta
fabril e se estendesse para a agricultura, fazendo dela um ramo da indústria.
A agroindústria canavieira constitui-se assim, num dos mais signi-
ficativos exemplos de unidade entre agricultura e indústria no processo
de expansão do capital. Mas, há que se observar também que esta unida-
de não ocorreu em todos os ramos e atividades agrícolas, revelando que a
unificação não é uma via de mão única, pois a acumulação capitalista não
ocorre somente com a exploração e subordinação do trabalho (real e for-
mal), mas também na sujeição da renda da terra ao capital. Neste caso, a
concentração de terras assume papel fundamental no processo de acumu-
lação de capital, quando no processo contraditório e desigual de expansão
das relações capitalistas, são recriadas e reproduzidas relações sociais de
produção típicas do rural e agrária.
A expansão das relações capitalistas expressa na modernização
e unificação da agricultura e indústria fez aumentar a concentração da
terra. Acrescenta-se nesta concentração da terra, a apropriação de no-
vas terras da fronteira Amazônica, que neste caso, não está ligada dire-
tamente à modernização da agricultura. Na tabela a seguir (tabela 1),

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João Edmilson Fabrini

é possível verificar a concentração fundiária no Brasil, quando de um


lado, apenas 1,6% de grandes imóveis ocupam 43,6% das terras cadas-
tradas, e de outro, 85,2% de pequenos imóveis abrangem 20,1 % da área
total de terras.

Tabela 1 – Estrutura fundiária do Brasil – 2003


Estratos de área N° de imóveis % Área em ha %
Menos de 10 ha 1.338.711 31,6 7.616.113 1,8
10 a < de 100 ha 2.272.752 53,6 76.757.747 18,3
100 a < de 1.000 ha 557.835 13,2 152.407.223 36,3
1.000 ha e mais 69.123 1,6 183.564.299 43,6
Total 4.238.421 100 420.345.382 100
Fonte: II Plano Nacional de Reforma Agrária (MDA/INCRA, 2003).

O processo de modernização da agricultura e a incorporação de no-


vas terras à dinâmica capitalista provocaram a expulsão de milhares peque-
nos proprietários, rendeiros, ribeirinhos, caiçaras, posseiros, quilombolas,
dentre outros camponeses, e indígenas, de suas terras. Muitos camponeses
que perderam suas terras com a modernização da agricultura migraram
para as cidades, fronteira amazônica ou Leste paraguaio, na década de
1970. Um outro caminho criado por esse grande número de camponeses
expulsos/expropriados da terra foi a organização nos movimentos sociais e
recusa à proletarização e “exclusão” com a luta pelo retorno à terra através
de ocupações de grandes propriedades improdutivas, surgindo assim, inú-
meros conflitos de terra em todo o Brasil.
À expansão do modo capitalista de produção com a expulsão/expro-
priação dos camponeses, concentração da terra e unificação da classe de
proprietário de terra e capitalista, Oliveira (2003), denomina de “territoria-
lização do capital”. Mas, a expansão do capitalismo no campo não ocorre
somente com a territorialização do capital, responsável pela expropriação
de milhares de camponeses de suas terras. Esta expansão ocorre ainda,
com a “monopolização do território”, quando indústrias capitalistas pro-
cessadoras de produtos agrícolas extraem a renda da terra sem a neces-
sidade de expropriar os camponeses. Assim, ao mesmo tempo em que o
capital destrói e expropria o camponês em determinada região, contradi-
toriamente, cria e recria a agricultura camponesa em outra.
Esses dois processos de desenvolvimento capitalista no campo revelam que,
no primeiro caso, o capital territorializa-se. Trata-se, portanto, do processo
de territorialização do capital monopolista na agricultura. No segundo caso,
revela-se que o capital monopoliza o território sem, entretanto, territoriali-
zar-se. Trata-se, pois, do processo de monopolização do território pelo capi-
tal monopolista (OLIVEIRA, 2003, p.478).

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

Foi neste contexto de modernização da agricultura, territorializa-


ção do capital e ajustes neoliberais, que surgiu o agronegócio. A partir do
discurso dos setores dominantes da sociedade, o agronegócio se constitui
no mais importante caminho para a agricultura brasileira, tornando-se pa-
radigmático. O agronegócio, segundo Welch e Fernandes (2008), caracte-
riza-se por uma agricultura altamente mecanizada, usuária dos pacotes
tecnológicos modernos, produção em larga escala, que explora grandes ex-
tensões de terras, geralmente de base monocultora e voltada para os mer-
cados de exportação. Neste modelo, evidencia-se um processo de integra-
ção dos diferentes conjuntos de sistemas de produção, dentre eles os de
produção agrícola, insumos, máquinas e equipamentos, distribuição, co-
mercialização, mercados, operações financeiras.
O processo de unificação entre o capital industrial e proprietários
de terra se expressa no agronegócio e complexos agroindústrias. Embora
existam semelhanças entre agronegócio e CAI, eles se diferenciam enquan-
to instrumental de análise pelo fato de que o primeiro – agronegócio – a
apropriação da terra também se constitui num fator essencial para a acu-
mulação capitalista, e o segundo, o CAI, não reconhece na terra e na renda
gerada por ela, um fator imprescindível na acumulação de capital.
O discurso positivo de segmentos sociais diversos (estudiosos, go-
vernantes, parlamentares e empresários, por exemplo) é de que o agrone-
gócio possui grande importância para o País porque é responsável pela ele-
vação da produção agrícola (alimentos), superávits da balança comercial,
geração de emprego e renda, dentre outros benefícios. Vê-se com isso que
de “vilões” que eram no passado, os grandes proprietários rurais do agro-
negócio, tornaram-se “heróis” da nação. Assim, as propriedades rurais la-
tifundiárias, antes responsáveis pela miséria e pobreza porque não produ-
ziam, transformaram-se em verdadeiras empresas rurais, ou seja, imóveis
altamente produtivos, explorados racionalmente e responsáveis por vários
benefícios sociais e econômicos.
Considerando ainda o discurso favorável ao agronegócio, alguns au-
tores entendem que um conjunto de evidências indica a eficiência econô-
mica e produtiva deste setor. Segundo Barros (2006), por exemplo, depois
de 1989 houve importante crescimento da produção agrícola estimada em
68%, enquanto que a população cresceu 27%, indicando que a disponibi-
lidade de alimentos para a população brasileira aumentou em 32%. Acres-
cente-se ainda um aumento de produtividade agrícola e pecuária de 2,6%
e 4% ao ano, respectivamente.
A elevação da produção agrícola para patamares antes nunca al-
cançados esteve na contramão das intervenções estatais com os subsídios
agrícolas, pois na década de 1980 os subsídios representavam 8% do or-
çamento da União, enquanto que no ano de 2005 eles passaram a repre-
sentar apenas 2% do orçamento. Dessa forma, seria possível verificar as

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João Edmilson Fabrini

vantagens da competitividade, pois a diminuição de intervenções estatais


na economia representou significativo aumento da produção. Graças a
homens e mulheres de talento, visão de negócio e espírito empreendedor
foi possível elevar a produção agrícola do patamar de 80 milhões de to-
neladas na década de 1980 para mais de 144 milhões de toneladas no ano
agrícola 2007/08.
Contraditoriamente, se de um lado, a diminuição dos subsídios
agrícolas não implicou em queda da produção, de outro, o agronegocian-
te reclama por intervenções estatais para fortalecer seu empreendimento.
Como visto anteriormente, o conjunto de supostos “benefícios” trazidos a
toda a nação justificaria as compensações e socorro feito pelo Estado em
nome da sociedade, pois o agronegócio, inserido no mercado capitalista
global, está sujeito a ciclos de expansão e retração pelo fato de ficar sujei-
to ao humor do comércio internacional. Neste sentido, para que o agro-
negócio não fique sujeito a momentos de euforia e depressão, as interven-
ções do Estado são solicitadas para garantir estabilidade ao setor. Assim, o
agronegócio demanda garantias políticas e econômicas do Estado.
Quanto às garantias econômicas, o agronegócio exige recursos fi-
nanceiros e juros subsidiados para investimentos e custeios. Os Planos-
Safra que destinam recursos financeiros para a agricultura comercial (o
Plano 2009/10 deve destinar R$ 93 bilhões para a agricultura empresarial)
e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social)
são importantes mecanismos a serviço da expansão do agronegócio. Além
de financiamentos a juros baixos, outras garantias econômicas demanda-
das pelo agronegócio são as renegociações/rolagens de dívidas; redução
de juros; alongamento de prazos; ampliação de carências e prorrogação
de débitos de custeio. Segundo Lima (2008), em abril 2008, o governo fe-
deral oficializou uma proposta de renegociação de dívidas dos produtores
rurais no valor de R$ 56,2 bilhões com previsão de redução de encargos
de operações de inadimplentes, rolagem de dívidas até 2025, dentre ou-
tras medidas.
Segundo Lima (2008) ainda, a partir de dados divulgados pelo Te-
souro Nacional, no período de 1995-2005, os grandes proprietários de ter-
ra deram um prejuízo de R$ 10,4 bilhões para o governo federal. Mas, as
garantias econômicas exigidas pelo agronegócio vão além de subsídios, fi-
nanciamentos e renegociação/perdão de dívidas. O agronegócio demanda
de melhoria na infraestrutura e logística, sistema de informação para am-
pliar comércio exterior, desburocratização aduaneira, pesquisas, educação
rural etc.
A melhoria na infraestrutura e logística para escoamento de produ-
tos é reivindicação dos setores ligados ao agronegócio. Um conjunto de li-
mitações logísticas tem comprometido a competitividade do agronegócio
brasileiro no mercado internacional, dentre os quais se destacam: as ferro-

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

vias, rodovias e hidrovias que dificultam o intercâmbio entre os terminais


de movimentação de mercadorias (carga e descarga); o armazenamento,
que implica na formação de longas filas para o escoamento da produção;
os terminais graneleiros e portos que carecem de modernização, inclusive
a movimentação de mercadorias pela cabotagem; e, dutos para movimen-
tação da produção de agrocombustível.
É necessário também, para expansão do agronegócio, que o Estado,
através dos diferentes órgãos, crie “um sistema de informações para o co-
mércio exterior com um gerenciador capaz de disponibilizar informações
sobre regulamentos e normas exigidas por países na compra de produtos
brasileiros” (BARROS et. all, 2006, p. 23). Assim, há necessidade de inves-
timentos na comunicação e marketing internacional para que consumido-
res de todo o mundo tenham acesso e confiança nos produtos brasileiros
do agronegócio.
A desburocratização e facilidades aduaneiras também são ações que
contribuem para ampliação do comércio dos produtos do agronegócio.
Neste sentido, a ação do Estado para remover obstáculos tarifários co-
locados pelos países desenvolvidos é outra frente de atuação necessária
para garantir a expansão da agricultura de negócio brasileira. As relações
comerciais bilaterais devem ser ampliadas, o que exige atuação forte do
Estado no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio) para fle-
xibilizar os entraves aduaneiros colocados pelos países desenvolvidos aos
produtos brasileiros.
O agronegócio reivindica também atenção do governo à pesquisa
científica e tecnológica, com apoio a projetos desenvolvidos nas universi-
dades brasileiras e institutos de pesquisa. Reclamam ainda investimentos
na educação rural (diferente de educação do campo defendida pelos mo-
vimentos sociais e entidades) para formar profissionais (operários, téc-
nicos etc.) que desempenhem com maior competência as tarefas, que a
agricultura “moderna e produtiva” do agronegócio exige. A capacitação
de um corpo técnico-científico capaz de elaborar balanços dos ciclos de
vida das cadeias produtivas, avaliação do potencial de diferentes produtos
alternativos, zoneamento agrícola de espécies vegetais que possibilitem
maiores rendas, desenvolvimento de tecnologias que permitam aproveitar
os resíduos e subprodutos de cadeias agroindustriais, também são deman-
das do agronegócio.
Além de garantias econômicas e ligadas à produção, o Estado tam-
bém deveria, segundo os “empresários” rurais, prover ao agronegócio de
garantias políticas. Estas garantias são diferentes de políticas agrícolas e
estão relacionadas à estrutura da propriedade privada no campo, pois se-
ria preciso de “tranquilidade” para o agronegócio produzir.
Dentre as medidas políticas defendidas pelo agronegócio a serem
tomadas pelo Estado está o veemente combate à ação dos movimentos so-

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João Edmilson Fabrini

ciais no campo, ocupações de terra e acampamentos realizados em todo


o Brasil. Em passado recente, em favor do agronegócio, algumas medidas
governamentais foram tomadas na esfera de ação do MDA (Ministério do
Desenvolvimento Agrário) para conter as ocupações de terra. Este foi o
caso da portaria 62/2001, fundamentada na Medida Provisória 2109-49 de
2000, do MDA, no governo de FHC, que determinou no seu artigo 1º a proi-
bição de vistoria e avaliação de imóveis ocupados pelos sem-terra no prazo
de dois anos para fins de reforma agrária.
Segundo Xico Graziano (2007), as ocupações de terra têm afugen-
tado empresários que desejam investir na agricultura. Argumenta que nas
regiões onde os movimentos sociais têm forte atuação como no Pontal do
Paranapanema, por exemplo, houve uma regressão econômica nos últimos
anos porque existe grande probabilidade da propriedade rural ser invadida
(sic) pelos sem-terra contrários à modernização e progresso da agricultu-
ra brasileira! Assim, a propriedade privada capitalista se ergue como uma
instituição sagrada que não deverá ser ameaçada/desestabilizada, condi-
ção necessária para expansão e fortalecimento do agronegócio brasileiro.
Delfim Neto (2009) é outro que afirma que os movimentos sociais
ameaçam a agricultura eficiente, produtiva e moderna. Ao analisar o Pla-
no Safra 2009/2010, que destina 93 bilhões de reais à agricultura empre-
sarial, Delfim Neto entende que esta é uma medida importante e acertada
do governo federal para o fortalecimento de uma agricultura moderna e
eficiente. Mas, segundo o autor, a ameaça à propriedade com as ocupações
de terra e a lei ambiental, poderão prejudicar a eficiência e produtividade
dessa agricultura moderna.
Há perspectivas muito boas para o aumento da área plantada e melhora da
produtividade na safra 2009/2010... Na realidade estamos caminhando para
ter sucesso com uma política agrícola realmente moderna e eficiente. O que
pode perturbar essa caminhada são as duas questões-chave que atazanam os
produtores rurais: uma é a frequente violação do estatuto da propriedade pri-
vada, vítima da violência das invasões sob os olhos complacentes dos gover-
nos. A segunda é a relação cada vez mais importante entre a atividade agrícola
e os custos de conservação do meio ambiente. (DELFIM NETO, 2009, p.2).
Além da ação do poder executivo, providências também são solici-
tadas pelo agronegociante (muitas vezes, prontamente atendidas) ao po-
der judiciário para garantir a “tranquilidade” no campo, desdobrando-se
na criminalização dos movimentos sociais camponeses. São comuns as
condenações de sem-terra acusados de cometer crimes como esbulho pos-
sessório (invasão de propriedade), alteração de limites, furto, roubo, porte
ilegal de armas, formação de quadrilha e bando, dentre outros.
Em contraponto à concepção conservadora de defesa do agronegó-
cio, alguns autores entendem que embora este setor tenha se tornado si-
nônimo de produtividade, ele é responsável por um conjunto de barbáries

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

representadas pela miséria e pobreza, exclusão, superexploração do tra-


balho, violências, degradação ambiental, dentre outras. Segundo Canuto
(2004), o latifúndio do passado excluía pela improdutividade e agora o
agronegócio exclui pela intensa produtividade. Entende que o agronegócio
tornou-se a expressão principal da reprodução das relações capitalistas no
campo, semelhante ao que ocorre com o CAI.
Nesta compreensão de que as relações capitalistas no campo se ex-
pressam pela produção no agronegócio, o latifúndio tende a ser um res-
quício que mais cedo ou mais tarde será eliminado com a expansão das
relações “puramente” capitalistas. Moreira (1988), reportando-se ao caso
russo, tratado por Lênin no século XIX, aponta dois caminhos para o de-
senvolvimento das relações capitalistas no campo: o camponês-burguês e
latifundiário-burguês. Neste processo, serão “limpadas” as estruturas eco-
nômicas pré-capitalistas como o latifúndio para o florescimento de um
mercado capitalista em que grandes propriedades rurais atrasadas se
transformariam em modernas empresas capitalistas, semelhantes ao agro-
negócio dos dias atuais. Assim, nesta compreensão, o latifúndio tende a ser
eliminado com a expansão das relações “puramente” capitalistas.
Analisando o caso russo com base no estudo do quadro europeu e norte-
americano a ele contemporâneo, Lênin já observara em 1908 os dois cami-
nhos que fundamentalmente pode seguir o desenvolvimento capitalista no
campo, o latifundiário-burguês e o camponês-burguês, ambos destinados a
“limpar” as estruturas econômico-sociais ao livre florescimento do merca-
do, a “maneira capitalista” de desenvolvimento. O primeiro passa pela mo-
dernização dos processos produtivos, mediante a qual a grande propriedade
atrasada acabe por transformar-se numa moderna empresa rural capitalista,
consistindo num caminho de lenta evolução do capitalismo e consequente-
mente doloroso para o campesinato. (MOREIRA, 1988, p. 22)

Entretanto, verifica-se que a acumulação capitalista do agronegócio


não está pautada exclusivamente nas relações mercadológicas empresa-
riais (produção de mercadorias), mas também na exploração da mais-valia
social (renda da terra). É possível verificar uma acumulação capitalista de
renda derivada da propriedade da terra, o que faz surgir a classe de pro-
prietários fundiários e não somente a classe dos capitalista no campo. Se-
gundo Marcos (2008), trata-se de uma face da agricultura capitalista, em
que por trás da modernidade, esconde-se o “velho” caráter especulativo da
agricultura (rentismo) e concentração da propriedade da terra.
A acumulação capitalista não originada na produção de mercado-
rias do agronegócio, típica da “acumulação primitiva” de capital também
é verificada na superexploração do trabalho, violências, peonagem, traba-
lhos análogos à escravidão, como é o caso das condições dos cortadores de
cana. Por isso, é possível afirmar que existe forte semelhança entre a acu-
mulação de capital do latifúndio e do agronegócio.

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João Edmilson Fabrini

Os movimentos sociais, como aqueles vinculados à Via Campesina,


por exemplo, elegeram o agronegócio como o principal “inimigo” da re-
forma agrária a ser combatido no campo. O agronegócio é entendido pe-
los movimentos camponeses como a principal expressão das relações ca-
pitalistas no campo do século XXI, ou seja, entendem que o latifúndio e
a acumulação rentista estão deixando de exercer papel central no campo
brasileiro.
É ilustrativa a afirmação de importante dirigente do MPA (Movi-
mento dos Pequenos Agricultores) sobre o latifúndio e a grande empresa
capitalista no campo:
O inimigo da reforma não é mais o latifundiário tradicional, e sim a gran-
de corporação transnacional, porque ela vê no camponês e no índio, uma
ameaça aos seus interesses. Segundo esta visão capitalista, os povos das flo-
restas estão “atrapalhando” o desenvolvimento do país, quando na verdade
não é o desenvolvimento do país, mas sim, do capital estrangeiro. (GÖR-
GEN, 2007, p. 2)
Assim, em contraponto ao projeto do agronegócio, está o projeto dos
camponeses, que por meio dos movimentos sociais e lutas diversas, dentre
as quais se destacam as ocupações de terra a acampamentos, resistem bra-
vamente a este projeto de “desenvolvimento” do campo brasileiro. As lutas
camponesas resultaram em importantes conquistas como a realização dos
assentamentos de reforma agrária. De acordo com o DATALUTA (banco
de dados da luta pela terra), em 2006, havia 57 movimentos camponeses
lutando pela reforma agrária e contra a concentração da propriedade pri-
vada da terra. Por isso, as lutas dos camponeses, mais do que políticas go-
vernamentais, são as responsáveis pela implantação de milhares de assen-
tamentos de reforma agrária no país.
Nas pequenas unidades de produção e assentamentos de reforma
agrária estão sendo construídas diversas alternativas de produção para ga-
rantir a segurança e soberania alimentar. Mas, se por um lado existe uma
preocupação alimentar entre os movimentos camponeses, de outro, eles
visualizam a possibilidade de produção de agroenergia pelos pequenos
agricultores como uma alternativa de geração de renda e garantia de sua
existência autônoma no campo. Neste sentido, os pequenos agricultores
devem disputar o agrocombustível com o agronegócio, fazendo do territó-
rio camponês espaço de produção de agroenergia e alimentos, pois não há
contradição entre campesinato e agrocombustíveis, pelo menos no enten-
dimento de movimentos sociais camponeses.

O agronegócio e produção de agrocombustível


Em vista das supostas vantagens competitivas e eficiência econômica do
agronegócio, ele estaria legitimado para operacionalizar hegemonicamen-

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

te o projeto do agrocombustível, produção estratégica para alavancar o


desenvolvimento do Brasil. O projeto do agrocombustível tomou impulso
recentemente (início de 2000) com a possibilidade de escassez, elevação
especulativa do preço do petróleo e o despertar de um mercado mundial,
quando governos, políticos, empresários, organismos multilaterais, ONU,
dentre outros segmentos, passaram a apoiar criação de um combustível
“sustentável” e alternativo ao petróleo.
As primeiras experiências de produção de agroenergia no Brasil
surgiram no início do século XX (1925), mas em vista dos baixos preços
do combustível derivado do petróleo, não tiveram os estímulos necessá-
rios para sua expansão. Os impactos causados na produção comercial
e mundial de petróleo durante a II Guerra Mundial também estimula-
ram experiências com agrocombustível no Brasil, quando foi misturado
álcool­à gasolina.
No início de 1970, a agroenergia recebeu importante estímulo em
vista da elevação do preço do petróleo (primeiro choque do petróleo) que
passou de 2 dólares em 1973 para 11 dólares em 1975. O “choque do pe-
tróleo” foi resultado de ações dos países produtores e exportadores que
criaram um cartel, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Pe-
tróleo), para responder a outro cartel (privado), o das “sete irmãs” (Exxon,
Texaco, Mobil Olil, Gulf Olil, Satander Olil, Britsch Petroleum e Shell), que
monopolizavam a exploração mundial de petróleo. Os países exportadores
de petróleo promoveram nacionalizações, desapropriações de empresas,
elevação de impostos, etc. Foi neste contexto em que praticamente todos
os países do mundo foram atingidos pela crise do petróleo que surgiram
propostas alternativas para reduzir a dependência e consumo de petróleo,
como a reativação de fontes antigas como o gás e o carvão, bem como no-
vas fontes: energias nuclear, hidrelétrica, solar e biomassa.
O Brasil, altamente dependente da importação de petróleo (na dé-
cada de 1970 o petróleo representava em torno de 45% das importações
do país), foi um dos países que se destacou na produção de biomassa para
fins energéticos, desenvolvendo uma cadeia produtiva em larga escala de
álcool etílico (etanol) com a criação do Pró-álcool (programa nacional do
álcool) em 1975, para atender as necessidades do mercado interno, prin-
cipalmente. O Pró-álcool se constitui num programa governamental que
incentivava na forma de subsídios diversos (incentivos aos fabricantes de
automóveis, instalação de destilarias, desenvolvimento de tecnologias, fa-
cilidade de aquisição de automóveis movidos a álcool, etc.) à produção de
álcool de cana-de-açúcar e mandioca, principalmente. Os subsídios soma-
ram até o ano de 1986 um total aproximado de 7 bilhões de dólares. A ope-
racionalização do programa governamental teve importante participação
da Petrobrás que controlava o comércio, distribuição, mistura e armaze-
namento do combustível.

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João Edmilson Fabrini

A primeira fase do Pro-álcool foi adicionar álcool anidro à gasolina. O go-


verno investiu sete bilhões de dólares até 1985 em subsídios. A Petrobras
era responsável pela compra de toda a produção, transporte e distribui-
ção, enquanto as indústrias recebiam incentivos e tecnologia para fabricar
carros a álcool. O objetivo era diminuir a dependência externa de ener-
gia, mas também propiciar melhora no balanço de pagamentos, expandir
a produção de bens de capital e gerar empregos e melhor distribuição de
renda, além de reduzir a poluição nos centros urbanos. Um êxito inegável
do programa foi exatamente o de promover sinergias, aliando indústria e
instituições de pesquisa, sempre com apoio governamental no desenvolvi-
mento de tecnologia, política industrial, planejamento energético, agricul-
tura. (BRAGION, 2007, p 1).

A fase inicial do Pró-álcool (1975 a 1979) consistiu na produção de


álcool anidro para mistura à gasolina e com o surgimento dos primeiros
automóveis movidos a álcool em 1978. Na segunda fase, de 1980 a 1986,
período em que houve aumento do preço do petróleo no segundo “cho-
que do petróleo” (1979-1980), o governo intensificou o estímulo à produ-
ção do álcool com a criação de órgãos como o CNAL (Conselho Nacional
do Álcool­), quando foram produzidos 12,3 bilhões de litros entre os anos
de 86/87. A produção de automóveis movidos à álcool saltou de 0,4% em
1979 para 78% em 1986. A terceira fase, de 1986 a 1995, foi caracterizada
pela estagnação do programa, quando o cenário internacional do petró-
leo sofreu mudanças substanciais e os preços do barril, que se encontrava
no patamar de 30 a 40 dólares, caiu para faixa de 12 dólares, colocando
em dúvida os programas alternativos de produção de agrocombustível, no
chamado “contra choque” do petróleo.
Soma-se à queda no preço do petróleo para estagnação da produção
de combustível de cana-de-açúcar, a escassez de recursos governamentais
para subsidiar a produção de álcool, o que se desdobrou na dificuldade de
abastecimento da frota de automóveis movidos a álcool. Embora o volume
de produção de álcool se mantivesse na casa de 10 bilhões de litros ao ano,
de 1985 a 1990, a crise do setor alcooleiro somente foi amenizada com a
mistura de 22% a 24% de álcool etílico à gasolina a partir do ano 1998. No
ano de 2000, a fabricação de automóveis equipados com motores à álcool­
não passava de 1%, conforme dados da ANFAVEA (associação nacional
dos fabricantes de veículos automotores).
Embora o Pró-álcool tivesse gerado um milhão de empregos até
1985, o Programa foi marcado por uma série de críticas, principalmente
pela expansão da plantação de cana-de-açúcar em substituição ao cultivo
de alimentos, além da cana-de-açúcar demandar terras de boa qualidade.
Outra crítica ao Pró-álcool foi àquela voltada para os investimentos finan-
ceiros, os quais não eram norteados por critérios técnicos rigorosos, como
recursos públicos mal empregados para criação de destilarias que depois

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

de pouco tempo eram abandonadas. Além disso, o Programa não tinha


como objetivo a distribuição da renda, pois as lavouras de cana eram rea­
lizadas em base monocultora e concentradas em algumas regiões (Sul e
Nordeste), não favorecendo o desenvolvimento do interior do Brasil.
Após um período de estagnação do Pró-álcool e fabricação de veícu-
los equipados com motores a álcool, emergiu novamente, a partir de 2000,
a produção de combustível de biomassa (etanol). A elevação dos preços do
petróleo e o desenvolvimento de tecnologias com a fabricação de veículos
bicombustível (flex fuel) em 2003 elevou a demanda de álcool no merca-
do interno e externo. A visita do presidente dos EUA, George W. Bush, em
2007, ao Brasil para tratar da formação de um mercado mundial de álcool
para as próximas três décadas acenou para a possibilidade de exportações
de etanol aos EUA, o que serviu para despertar a atenção à produção de
combustível derivado de biomassa.
Diferentemente da década de 1970, o novo arranque na produção de
álcool no início de 2000 não se fez por meio de programa de governo, mas
pela iniciativa privada, no sistema de produção de agronegócio canavieiro.
Mas, embora entregue a incitativa privada, o Estado está presente na pro-
dução de etanol de diversas formas, sobretudo por meio de financiamentos
feitos com recursos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Eco-
nômico e Social) que aumentou em 565% (2007/2008) a solicitação e pro-
postas de investimentos para construção de usinas e destilarias de álcool.
O Estado também está presente na rolagem e perdão de dívidas; isenção de
impostos, pesquisa e tecnologias; educação rural, logísticas, marketing co-
mércio internacional para o agronegócio canavieiro, como destacado an-
teriormente.
A preocupação com a produção do etanol ocorreu pela emergência
de um potencial mercado externo em vista da intenção da União Euro-
peia de substituir 10% do consumo de combustíveis derivados de petró-
leo usado no transporte até 2020. Neste sentido, abrir-se-ia para os países
do hemisfério sul a possibilidade de produção de agrocombustíveis a este
“promissor” mercado externo europeu. A possibilidade de importações de
etanol pelos EUA também se constituiria em importante mercado, pois
este país pretende substituir 20% da demanda de gasolina por etanol até
2020. Considerando que os EUA produzem etanol de milho em pequena
quantidade (4% do total consumido) a custos elevados, pois a produção de
etanol de milho tem um custo de 0,3 dólares o litro e o etanol de cana-de-
açúcar 0,2 dólares o litro, o Brasil teria grandes vantagens competitivas.
Acrescentam-se ainda à competitividade brasileira, outras condições favo-
ráveis como terras aráveis, clima, tecnologias e experiências na produção
de etanol.
No ano 2007, o Brasil produziu um excedente de agrocombustível
de 20%, ou seja, 4 bilhões de litros do total de 20,1 bilhões de litros pro-

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João Edmilson Fabrini

duzidos, conforme o Mapa (ministério da agricultura, pecuária e abasteci-


mento) citado por Rebrip (2007). Assim, a produção para exportação seria
um importante estímulo para o agronegócio da cana-de-açúcar.
Mas, a oportunidade de ocupar importante mercado de etanol pode-
rá não se realizar em vista de barreiras alfandegárias colocadas aos produ-
tos agropecuários do Brasil pelos países capitalistas desenvolvidos, como
os EUA. Os agricultores deste País, principalmente os produtores de milho
– útil para a produção de etanol – exercem forte pressão contra as impor-
tações de agrocombustível porque não querem ter os preços de seus pro-
dutos rebaixados pela diminuição da demanda de matéria-prima (milho).
Neste sentido, o governo brasileiro procura negociar a flexibilização de
barreiras alfandegárias e políticas protecionistas aos produtos agrícolas
brasileiros.
Conforme o engenheiro José Bautista Vidal, um dos criadores do
programa de uso do álcool, a parceria comercial com os EUA será prejudi-
cial ao Brasil porque apesar de “sermos os donos do território, os meios de
produção e de distribuição vão acabar ficando em mãos dos Estados Uni-
dos. O que eles estão fazendo é montarem empresas para dominar o mer-
cado brasileiro e se tornarem os grandes exportadores mundiais” (Agosti-
nho, 2007, p.1). Há que ser considerado também outro limite ao mercado
internacional de agrocombustível, ou seja, o risco dos países dependerem
de poucos produtores de etanol, neste caso, Brasil e EUA, que detêm 70%
da produção de etanol do mundo.
Acrescenta-se ainda o discurso ufanista de que o Brasil deve assu-
mir papel de líder mundial na transição da civilização do petróleo para a
civilização da biomassa em vista da crise estrutural de geração de energia
que se anuncia. Assim, o País não deveria perder esta oportunidade de
desenvolvimento e “soberania” energética ocupando importante papel no
mercado de agrocombustíveis. Neste sentido, o Brasil estaria predestinado
a comandar o processo de transição mundial do petróleo para a biomassa
como afirma Ignacy Sachs do Centro de Estudos sobre o Brasil Contem-
porâneo da França, “O Brasil é um país predestinado a liderar a transição
mundial da civilização do petróleo para a civilização moderna da biomas-
sa”. (SACHS, 2005, p.3).
A produção de agroenergia indicaria uma transição, não somente
energética, mas também agrária, pois se no passado o desenvolvimento as-
sentado na industrialização foi movido por energia derivada de combustí-
veis fósseis, agora seria a vez do campo, inclusive dos camponeses, respon-
sáveis pela produção de matéria-prima para o agrocombustível. Portanto,
não seria apenas uma transição energética, mas agrária, em vista da pro-
dução de matéria-prima do agrocombustível ser procedente do campo.
Os defensores do agrocombustível acreditam também no expressi-
vo mercado interno brasileiro, que foi responsável pelo consumo de 16

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

bilhões de litros no ano de 2007. Neste mesmo ano, o etanol foi classifi-
cado como a segunda fonte energética mais importante do Brasil, sendo
superada apenas pelo petróleo e derivados, conforme a tabela a seguir
(tabela 2).

Tabela 2 – Evolução da matriz energética brasileira 2006 e 2007 (em %)


Energia 2006 2007
Energia não renovável 55,1 53,6
Petróleo e derivados 37,8 36,7
Gás natural 9,6 9,3
Carvão mineral e derivado 6,0 6,2
Urânio e derivados 1,6 1,4
Energia renovável 44,9 46,4
Hidráulica e eletricidade 14,8 14,7
Lenha e carvão vegetal 12,7 12,5
Cana-de-açúcar 14,5 16,0
Outros renováveis 2,9 3,1
Fonte: Ministério Minas e Energia. In: MELO (Brasil de Fato, 2008)

Os defensores do etanol apontam ainda, além das vantagens eco-


nômicas, sociais (geração de emprego e renda) e soberania, as vantagens
ambientais da agroenergia, pois no seu uso há baixa emissão de gases po-
luentes na atmosfera. Esta baixa emissão de poluentes serviria para ame-
nizar os efeitos do aquecimento global, além da fotossíntese das plantas
removerem os gases do efeito estufa da atmosfera. Portanto, trata-se neste
entendimento, de energia limpa, o que iria ao encontro de convenções in-
ternacionais, principalmente ao Protocolo de Kioto. Do ponto de vista am-
biental ainda, o agrocombustível contribuiria para a recuperação de terras
degradas de pastagens estimadas em 40 milhões de hectares com cultivo
de cana-de-açúcar.

Os limites do agrocombustível no agronegócio


O discurso positivo em favor do agrocombustível no agronegócio merece
questionamentos, pois esta produção é portadora de um conjunto de ma-
lefícios para a sociedade, como a concentração de terras e capitais, super­
exploração dos trabalhadores, impactos sobre a produção de alimentos,
ambiente, etc.
Dentre os problemas vinculados à questão alimentar, a cana-de-açú-
car é exemplar, pois esta cultura tem avançado sobre áreas de pastagens e
cultivos onde a taxa de renda é menor, atingido segmentos tradicionais da
produção de alimentos da agricultura camponesa. O feijão, por exemplo,

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João Edmilson Fabrini

tradicionalmente produzido pela agricultura camponesa, tem sua produ-


ção estabilizada desde 1992, e em 2008, apresentou um déficit de 7% no
consumo, o que leva a necessidade de importação de produto básico da
alimentação dos brasileiros.
O problema alimentar é agravado ainda pela procura de terras fér-
teis a serem destinadas à produção de cana e soja pelo agronegócio. Esta
procura fez elevar o preço da terra, dificultando a aquisição de áreas pelos
pequenos agricultores que produzem alimentos e para assentamentos de
reforma agrária. Acrescenta-se ainda que segundo a REBRIP (Rede Brasi-
leira de Integração dos Povos) para substituição de apenas 10% da gasoli-
na por álcool nos EUA, seria necessária uma área correspondente a toda a
terra agrícola do Brasil e para uma suposta substituição da matriz energé-
tica do petróleo pelo agrocombustível, seria necessária uma área agricultu-
rável três vezes maior do que o planeta terra. (REBRIP, 2007, p.1).
A ideia de que o agronegócio monocultor dedicado à produção de
matéria-prima para o agrocombustível é eficiente produtivamente não cor-
responde à realidade. Oliveira (2003) afirma que as grandes propriedades
e o agronegócio não são necessariamente sinônimos de grande produção,
conforme se verifica na tabelas a seguir (tabela 3 e 4) do volume de produ-
ção de lavouras temporárias e criação de gado no Brasil. A relutância do
agronegócio para corrigir os índices de produtividade dos imóveis rurais,
estabelecidos na década de 1970, indica o risco de muitas empresas “alta-
mente produtivas” se converterem em latifúndios improdutivos, o que se
desdobraria na possibilidade de desapropriação para realização de assen-
tamentos de reforma agrária.

Tabela 3 – Volume de produção – lavouras temporárias (Brasil)


Produtos Pequena Média Grande
Algodão (herbáceo) 55,1 29,9 15,0
Arroz (em casca) 38,9 42,7 18,4
Batata-inglesa (1ª safra) 74,0 20,7 5,3
Batata-inglesa (2ª safra) 76,7 20,9 2,4
Cana-de-açúcar 19,8 47,1 33,1
Feijão (1ª,2ª e 3ª safras) 78,5 16,9 4,6
Fumo em folha 99,5 0,5 Zero
Mandioca 91,9 7,3 0,8
Milho em grão 54,4 34,8 10,8
Soja em grão 34,4 43,7 21,9
Tomate 76,4 18,5 5,1
Trigo em grão 60,6 35,2 4,2
Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6; Org.: OLIVEIRA (2003).

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

Tabela 4 – Brasil – distribuição dos plantéis


Rebanho Pequena % Média % Grande %
Bovinos 37,7 40,5 21,8
Bubalinos (búfalos) 24,6 44,5 30,9
Equinos 59,2 31,3 9,5
Asininos 87,1 11,3 1,6
Muares 63,0 25,3 11,7
Caprinos 78,1 19,2 2,5
Coelhos 93,1 6,4 0,5
Suínos 87,1 11,0 1,7
Ovinos 55,5 35,7 8,8
Aves 87,7 11,5 0,8
Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6; Org.: OLIVEIRA (2003)

A entrada de grandes corporações como Cargill, ADM, Bunge, Syn-


genta, por exemplo, no negócio da agroenergia, cria uma economia de es-
cala altamente dependente de infra estrutura de transporte, armazenamen-
to, industrialização e comercialização da produção. Além da logística, há a
dependência também de insumos de empresas monopolistas. Acrescenta-
se ainda que os pequenos agricultores não possuem informações e capaci-
dade essa de operacionalizar negócios na grande escala de produção. Aliás,
muitas práticas agrícolas camponesas vão na contramão de agricultura de
negócio em escala, sendo necessário o capital domá-las para extrair mais-
valia social.
O poder de mercado dessas corporações é impressionante: a Cargill e a
ADM controlam 65% de todo o comércio global de grãos, a Monsanto e
a Syngenta controlam um quarto dos 60 bilhões de dólares da indústria
de tecnologia genética. Esse poder de mercado permite que essas com-
panhias extraiam lucros do segmento mais lucrativo e de baixo risco da
cadeia de valor que são os insumos, processamento e distribuição. (HOLT-
GIMÉNEZ­, 2007, p. 5).
Holt-Giménez (2007) entende que a elevada concentração de capi-
tais faz do setor da agroenergia um subnegócio da indústria de automó-
veis, indicando que é “briga de cachorro grande”. Além disso, as dificul-
dades colocadas na esfera das relações comerciais internacionais com o
estabelecimento de barreiras tarifárias (protecionismo), tradicionalmente
praticadas pelos EUA, implicam em limitações às exportações de agrocom-
bustível, como tratado anteriormente.
O problema ambiental também se constitui num limite ao agro-
combustível. Embora exista o argumento de que se trata de energia “ver-
de e limpa”, porque emite menos de gases poluentes na atmosfera, o pro-
cesso de produção é sujo, pois está assentado na monocultura que usa

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João Edmilson Fabrini

toneladas de agrotóxicos, fertilizantes, isso sem considerar as implicações


das plantas transgênicas para o cultivo de soja destinada à fabricação de
biodiesel.
O engodo do discurso ambiental também é verificado na realização
de queimadas, erosão, exaustão do solo e principalmente irrigação das cul-
turas que demandam de grande volume de água. Segundo Aleixo (2007),
para produzir 1 litro de etanol é necessário cerca 100 litros água, dos quais
12 convertem-se em vinhoto. Considerando que o mundo deve produzir
147 milhões de toneladas de agrocombustíveis até 2030, serão produzidas
mais de 2 bilhões de toneladas de água poluída.
O avanço da cana e da soja sobre áreas degradadas de pecuária tam-
bém faz aumentar os índices de desmatamento na Amazônia, região para
onde a pecuária tem se expandido. A destruição das florestas nativas im-
plica também em forte poluição atmosférica com emissão de gases poluen-
tes resultantes de queimadas, o que tem gerado grande polêmica sobre o
“aquecimento global”. Um forte confronto entre os setores proprietários
fundiários representados na CNA (Confederação Nacional da Agricultura),
bem como políticos comprometidos com o agronegócio e os segmentos
comprometidos com o meio ambiente, tornou-se explícito com a discussão
do Código Florestal brasileiro, a partir de 2008.
A procura por novas terras na Amazônia para exploração pecuá-
ria deslocada pela cana-de-açúcar no sistema de agronegócio pressionou
a legalização de áreas desmatadas ou griladas nesta região. A possibili-
dade de legalização ocorreu pelas MPs (medidas provisórias) 422 e 458
que foram aprovadas no Congresso Nacional e sancionadas pelo gover-
no, permitindo a apropriação e legalização de áreas de até 1.500 hecta-
res sem licitação. Esta possibilidade de legalização de áreas desmatadas
por proprietários que não cumprem a lei ambiental foi denunciada por
movimentos sociais, Igreja, estudiosos da questão agrária, ONGs (orga-
nizações não governamentais), etc. Segundo Oliveira (2009) poderão ser
legalizadas com a MP 422 e 458 aproximadamente 68 milhões de hecta-
res representados por 293 mil imóveis que estão à margens das rodovias
da região Amazônica.
A geração de emprego também se constitui num mito do agronegó-
cio produtor de agrocombustível. Além da baixa remuneração proporcio-
nada aos cortadores de cana, os postos de trabalho gerados pelo agronegó-
cio não se igualam aos gerados pela pequena agricultura. Segundo Canuto
(2004), considerando dados do INPA (instituto nacional de pesquisas da
Amazônia), a soja, por exemplo, gera apenas 01 emprego para cada 200
hectares, isso devido ao elevado grau de mecanização do cultivo desta la-
voura. A cana e a palma geram 10 empregos em cada 100 hectares explo-
rados. Na tabela a seguir (tabela 5) verificam-se os empregos gerados por
grandes, médias e pequenas propriedades.

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

Tabela 5 – Brasil – pessoal ocupado


Pessoal Ocupado PEQUENA MÉDIA GRANDE
Nº % Nº % Nº %
TOTAL 14.444.779 86,6 1.821.026 10,9 421.388 2,5
Familiar 12.956.214 95,5 565.761 4,2 45.208 0,3
Assalariado
994.508 40,3 1.124.356 45,5 351.942 14,2
Total
Assalariado Permanente 861.508 46,8 729.009 39,7 248.591 13,5
Assalariado Temporário 133.001 72,8 395.347 21,6 103.351 5,6
Parceiros 238.643 82,4 45.137 15,6 5.877 2,0
Outra
255.414 71,0 85.772 23,9 18.361 5,1
Condição
Fonte: Censo Agropecuário do IBGE 1995/6; Org.: OLIVEIRA (2003).

Outro problema grave criado em torno da produção de agrocombus-


tível no sistema de agronegócio é a superexploração dos trabalhadores, de-
nominada por entidades de defesa dos direitos humanos, Igreja (Comissão
Pastoral da Terra) e estudiosos de trabalho escravo. A superexploração do tra-
balho e a manutenção de condições análogas à escravidão são um expediente
adotado pelos “modernos” empresários do agronegócio para acumulação ca-
pitalista, sobretudo no setor sucroalcooleiro. Verifica-se neste setor um pro-
gressivo aumento do volume de cana cortada por cada trabalhador, que pas-
sou nos últimos anos de 08 para 12 toneladas diárias, incidindo diretamente
na expectativa de vida. Mais grave ainda é o óbito de cortadores de cana por
exaustão resultante do excesso de trabalho, chegando a 16 horas por dia.
São muitos os exemplos de violências de superexploração aponta-
dos pela CPT (comissão pastoral da terra), que publica anualmente ca-
dernos de conflitos no campo. As denúncias feitas pela CPT de violência,
superexploração e trabalho escravo indicam que a acumulação capitalista
do agronegócio ocorre também pelo estabelecimento de relações não “tipi-
camente” capitalistas, ou seja, uma acumulação de capital não assentada
na produção de mercadorias.
Em 2006 foram registradas 262 ocorrências de trabalho escravo. Houve a de-
núncia de existência de 6.930 trabalhadores em situação de escravidão, dentre
os quais 100 menores. A fiscalização do Ministério do Trabalho libertou 3.633.
Os casos registrados de superexploração foram 109, como 7.078 pessoas. Já
os casos de desrespeito são 27, envolvendo 932 pessoas. Houve 3 assassinatos
nas ocorrências de trabalho escravo e um no caso de superexploração. Foram
registradas 14 mortes em acidentes de trabalho, 22 feridos, e, ainda, 9 ações de
resistência das quais participaram 5.123 pessoas. (CPT-Especial, 2007, p. 10).
No ano de 2007, a CPT computou 1.946 casos de superexploração do
trabalho e 5.974 trabalhadores libertados da condição de escravos em vá-

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rias empresas ligadas ao agronegócio da cana, como as usinas/destilarias


de álcool Debrasa e Decoil em Mato Grosso do Sul, onde se encontravam
mais de 1.500 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Segundo
a CPT (2008) ainda, “52% dos trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel
do Ministério do Trabalho de condição análoga à escravidão, foram de usi-
nas do setor sucroalcooleiro” (CPT, 2008, p. 17).
Em 2003, pressionado por entidades de defesa dos direitos humanos
e movimentos sociais, o governo federal criou o Plano Nacional para Er-
radicação do Trabalho Escravo, vinculado ao Ministério do Trabalho, para
combater a existência de trabalho escravo no Brasil, quando foi elaborado
um cadastro das propriedades rurais que recorrem à superexploração do
trabalho, violências e trabalho análogo à escravidão. Este cadastro é deno-
minado pelos movimentos sociais e entidades ligadas às lutas camponesas
de “lista suja”, e é encabeçada pelos empresários da cana, madeira e soja.
Em 2009, o governo federal, juntamente com empresários da cana
e organizações de trabalhadores, estabeleceu uma pauta denominada de
“Compromissos para Melhorar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açú-
car” que tem por objetivo garantir melhores condições de trabalho aos cor-
tadores de cana, principalmente. Segundo a CPT, o documento não acres-
centa nada às conquistas já existentes na legislação trabalhista, as quais
são sistematicamente descumpridas pelo agronegócio do setor canaviei-
ro. Para a CPT ainda, o documento tem como objetivo maior amenizar a
rejeição internacional ao etanol brasileiro porque devasta o ambiente e é
produzido por meio de relações de trabalho escravo, servindo mais para
restabelecer uma imagem positiva do agrocombustível do que combater a
superexploração e o trabalho escravo nos canaviais.
Mas, se de um lado, o agrocombustível produzido pelo agronegócio
apresenta um conjunto de limites e prejuízos sociais, como apontado ante-
riormente, de outro, movimentos camponeses, sindicatos de trabalhadores
rurais e agricultores familiares têm demonstrado simpatia à agroenergia,
principalmente o biodiesel, quando praticado pelos pequenos agricultores.
Apresentando uma concepção diferenciada de produção de agrocombus-
tível do agronegócio, entidades e movimentos entendem que os pequenos
agricultores devem participar do projeto dos agrocombustíveis. Portanto,
não são necessariamente contra a produção de agrocombustível, mas con-
tra produção hegemonizada pelos setores dominantes no campo ligados
ao agronegócio.

Movimentos camponeses e o projeto de produção de agroenergia


Os camponeses têm desenvolvido um conjunto de ações políticas nos mo-
vimentos sociais para se contraporem à expropriação, exploração e subor-
dinação representada pela acumulação e mercado capitalista. Neste enfre-

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

tamento, muitos movimentos têm assumindo uma dimensão geográfica


nacional ou mundial, articulando diferentes territórios, semelhante a uma
rede de luta e resistência.
Um exemplo típico de movimentos camponeses de escala nacional
que luta pela reforma agrária e oferece forte resistência à opressão engen-
drada na produção capitalista no campo é o MST. O fato de o movimento ser
espacializado nacional e internacionalmente, articulado a outros movimen-
tos, tem trazido importantes resultados e conquistas para os camponeses. A
Via Campesina se constitui também num exemplo de movimento camponês
de escala mundial. Dessa forma, importantes “entidades” mundializadas de
camponeses respondem à dominação da produção capitalista que se expres-
sa no campo pela agricultura de negócio, o agronegócio e o latifúndio.
(...) temos de procurar uma articulação dos excluídos, desprezados, domi-
nados e explorados em escala mundial, incluindo os que vivem nos paises
desenvolvidos; uma coordenação, cooperação e alianças entre os sujeitos
políticos e sociais que participam nas lutas emancipadoras procurando a
construção de entidades mundiais. É necessário elaborarmos uma estraté-
gia que inclua a articulação com forças que operam nos três grandes blocos
de poder mundiais, e estabelecer relações multilaterais com cada um deles
como uma maneira de deslocar a partilha política das zonas de influência
entre os mesmos. (HARNECKER, 2000, p. 393).

A partir da visão de progresso das relações de produção é possível


apreender que o capital, com sua vocação internacional, criou contradito-
riamente condições técnicas, científicas e de comunicação para estabele-
cer uma geografia mundial não apenas de mercadorias, mas também de
movimentos sociais, o que fortaleceu as lutas camponesas, por exemplo.
É nesta compreensão que Santos (2000) nos alerta para a necessidade de
pensar sobre uma “outra globalização”, diferente da perversa que aí está;
a do capital. Nesta compreensão está implícita que a articulação nacional
e mundial dos movimentos sociais, uma rede de resistência, foi possível
graças ao desenvolvimento técnico-científico que ao servir o capital (glo-
balização), serviu também às ações humanas pautadas na solidariedade,
cooperação e igualdade entre os povos.
A ação em rede dos camponeses viabilizada pelos movimentos so-
ciais serviria inclusive para o resgate, pela vias modernas do progresso, de
tradições, saberes e conhecimentos camponeses solapados pelo processo
de industrialização da agricultura expressa no CAI/agronegócio. Mas, se os
movimentos defendem o resgate de saberes do passado como forma de se
projetar no futuro, defendem também o estabelecimento de modernas re-
lações sociais de produção. A produção de agroenergia pelos camponeses
está inserida neste contexto.
As entidades e movimentos sociais vinculadas aos camponeses, reco-
nhecendo possibilidade de obtenção de vantagens para os pequenos agri-

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João Edmilson Fabrini

cultores, defendem a participação no projeto do agrocombustível, devendo


inclusive disputar o projeto e território com o agronegócio, principalmente
na produção de biodiesel.
O biodiesel é um agrocombustível derivado de diferentes fontes olea­
ginosas como a mamona, palma azeiteira (dendê), algodão, milho, gordu-
ra animal, girassol e soja, esta última responsável por 95% do biodiesel
produzido. Enquanto o projeto de produção de álcool é operacionaliza-
do atualmente pela iniciativa privada, a produção de biodiesel se realiza
no PNPB (Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel) e conta
com importante participação estatal na sua realização. Governos estaduais
também têm feito gestão e investimentos para a produção de biodiesel na
pequena agricultura.
Embora houvesse várias experiências de produção de biodiesel há
mais de 50 anos e a primeira patente do produto tivesse sido registrada
em 1980, foi em 2004 que o governo federal criou o PNPB. O programa foi
criado para organizar a cadeia produtiva, linhas de financiamento, bases
tecnológicas e um marco regulatório (estabelecimento de regras para pro-
dução e comercialização coordenada pela Agência Nacional de Petróleo)
para a produção de biodiesel. O objetivo do PNPB é permitir a substituição
de 15% do combustível de petróleo utilizado em veículos automotores e a
geração de energia em regiões distantes de centros de consumo, adicionan-
do na primeira etapa (etapa B2) um volume de 2% do combustível ao azei-
te diesel de petróleo até 2006. Embora estivesse prevista a adição de 5% de
biodiesel (etapa B5) a partir de 2008, somente em 07/2009, o governo auto-
rizou a mistura de 4% de biodiesel ao diesel de petróleo.
Algumas empresas de transporte coletivo, principalmente, acom-
panhado pelo Probiodiesel (Programa de Desenvolvimento Tecnológico
de Combustíveis Alternativos) do governo federal, estão realizando expe­
riências de introdução de volume superior ao estabelecido na etapa B5 de
adição biodiesel ao diesel. A prefeitura de Curitiba/PR, por exemplo, está
realizando experiências, sustentadas pelo Probiodisel, para circulação de
ônibus urbanos (Linha Verde) movido com 100% de biodiesel, sem mistura
de combustível convencional de petróleo.
Segundo o discurso oficial, é possível apreender que os objetivos
e diretrizes do PNPB possuem substancial diferença da produção de eta-
nol que está praticamente entregue ao agronegócio canavieiro. A diferença
principal residiria no conteúdo social e includente do Programa, que visa
incorporar 100 mil famílias de pequenos agricultores à produção, evitan-
do a pobreza no campo e o deslocamento da população para as grandes
cidades em busca de empregos. De acordo com discurso oficial ainda, o
biodiesel não é apenas uma alternativa de geração de renda e emprego,
mas um caminho para o desenvolvimento, erguido a partir de bases locais
(desenvolvimento local).

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

O conteúdo includente e social do programa do biodiesel seria veri-


ficado, dentre outras formas, pela instituição do Selo Combustível Social,
que garante benefícios como isenção de impostos, financiamentos, parti-
cipação em leilões de biodiesel, por exemplo, às empresas que adquirirem
produtos dos pequenos agricultores. Assim, o Selo é concedido às empre-
sas que se enquadram no projeto de inclusão social do PNPB, ou seja, em-
presas que adquirem matéria-prima de cooperativas, sindicatos e associa-
ções de agricultores familiares.
O principal trunfo do MDA para garantir a participação dos pequenos agri-
cultores na expansão da produção de biodiesel foi a criação do Selo Com-
bustível Social, concedido às empresas que compram matéria-prima junto
às cooperativas, sindicatos e associações de trabalhadores ligados à agricul-
tura familiar. As empresas certificadas também terão redução no pagamento
de PIS/Cofins, fato que faz com que o interesse do mercado pelo selo social
seja grande. (THUSWOHL, 2007, p. 1).
Verifica-se que o sentido social e de inclusão do Programa está vin-
culado à inserção e integração dos camponeses produtores de matérias-
primas às cadeias produtivas, ou seja, uma agricultura camponesa acopla-
da aos interesses de “agroindústrias” do setor de agroenergia. Além disso,
o biodiesel está tomando caminho semelhante ao etanol, pois aproximada-
mente 95% desse agrocombustível é proveniente da soja, tradicionalmente
cultivada no sistema de monocultura do agronegócio.
Existem várias organizações de camponeses (entidades sindicais,
cooperativas, movimentos sociais), favoráveis à participação, ora mais ora
menos crítica, dos camponeses na produção de biodiesel. Elas entendem
que os camponeses poderão protagonizar na construção de projeto de de-
senvolvimento da nação, garantindo assim o seu lugar social, contrariando
a concepção de que eles possuem somente interesses localizados, imedia-
tos, corporativos porque não tem um projeto universal de existência.
Existe também a interpretação de estudiosos e movimentos de que
numa transição da civilização do combustível fóssil para a energia de-
rivada de biomassa, o espaço do campo vai assumir papel central neste
processo e os camponeses poderão sacar importantes benefícios se estive-
rem preparados e organizados para se inserir nesta emergente atividade
produtiva.
A Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultu-
ra), por exemplo, defende a adesão ao projeto oficial do biodiesel com a in-
serção dos pequenos agricultores às cadeias produtivas, pois seria uma im-
portante alternativa de geração de renda para o fortalecimento e existência
da pequena agricultura. A Contag é a organização que apoia de forma mais
explícita o projeto governamental de produção de agrocombustível pela
pequena agricultura. Esta posição pode ser verificada nas declarações da
própria entidade sindical.

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João Edmilson Fabrini

O secretário de Política Agrícola, explicou que o objetivo do movimento sin-


dical é que a agricultura familiar trabalhe em toda a cadeia produtiva do
biocombustível.´Estamos trabalhando nessa perspectiva de que a agricultu-
ra familiar não seja apenas uma fornecedora de matéria-prima. Esperamos
formar cooperativas e produzir não só a matéria-prima, mas fazer o esma-
gamento e, se possível, a separação do biodiesel da parafina, do óleo bruto.
Consequentemente, o produto final é o biodiesel para ser adicionado ao die-
sel´, explicou. Desde o início do ano, a Contag promove encontros estaduais
para sensibilizar todo o movimento sindical sobre a importância do progra-
ma nacional do biodiesel. (CONTAG, 2006, p. 1).

Nesta concepção, o lugar da pequena agricultura estaria garantido


pelo seu papel econômico e sua eficiência produtiva, avançando em dire-
ção de um “agronegócio familiar”. A estrutura sindical da Contag deverá
ser utilizada como uma ferramenta de aporte para implantação de proje-
tos, numa proposta de colaboração da entidade com o governo e segmen-
tos empresariais vinculados à produção de agrocombustível.
A CUT (central única dos trabalhadores) a quem a Contag esteve vin-
culada de 1995 a 2009, também apresenta um posicionamento favorável ao
programa do biodiesel do governo, embora aponte de maneira branda, em
vista dos vínculos governamentais que possui, algumas limitações e discor-
dância dos caminhos tomados pelo agrocombustível no País. A posição da
CUT é de participação dos camponeses como protagonistas na cadeia pro-
dutiva do biodiesel, como era a concepção inicial do programa.
‘Vamos exigir que a concepção original seja retomada’, avalia Artur. O pro-
jeto dava espaço importante para o cultivo da mamona, como oleaginosa
rústica capaz de ser cultivada em regiões semiáridas, de forma a incluir
agricultores familiares como protagonistas da cadeia produtiva. Ele lem-
bra ainda que a pauta cutista defende a ampliação de experiências como
cooperativas de trabalhadores, construção de miniusinas e organização
de arranjos produtivos locais que promovam desenvolvimento regional.
(CUT, 2009, p.1).
Outras entidades e organizações da sociedade civil como a Fetraf/
CUT (federação dos agricultores/as familiares do Brasil), MPA (movimen-
tos dos pequenos agricultores), Via Campesina, também entendem que a
produção de biodiesel poderá ser uma oportunidade de geração de renda
para os camponeses. Assumindo uma posição mais crítica ao projeto do
agrocombustível do que a Contag, estes segmentos organizados defendem
a participação dos camponeses naquilo que consideram produção de bio-
combustível, pois poderia ser uma energia produzida para garantir e me-
lhorar a vida dos camponeses, servindo aos interesses sociais e não aos do
capital. Assim, ora mais ora menos crítica, estes movimentos e entidades
defendem a participação dos camponeses na produção de biodiesel como
alternativa para sobrevivência dos camponeses.

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

O MPA e a Via Campesina têm uma postura favorável à produção


de agrocombustível (biodiesel), principalmente quando organizados em
cooperativas. Embora defenda a participação, a Via Campesina possui
uma postura crítica em relação ao agrocombustível produzido pelo agro-
negócio em vista dos prejuízos sociais que esta forma de produção causa,
como visto anteriormente, bem como a subordinação e exploração que a
incorporação às cadeias produtivas monopolizadas pelo capital pode tra-
zer. Assim, a Via Campesina é contrária à subordinação e exploração que
a produção de agroenergia pelo agronegócio significa, e defende um agro-
combustível produzido em cooperativas camponesas.
O MPA defende projetos de produção de Biodiesel onde o agricultor não seja
um simples produtor de matérias primas, mas ganhe na produção industrial,
como sócio cooperativado. O MPA aposta em projetos de Biodiesel constru-
ídos em parceria entre agricultores cooperativados, empresários da região e
Petrobrás, ou outro parceiro estratégico, que respeite a lógica da participa-
ção ativa e cooperativa dos pequenos agricultores. (MPA, 2006, p.1).
Algumas usinas vinculadas às cooperativas formadas por campone-
ses do MPA já estão em funcionamento em vários Estados brasileiros e
foram criadas com recursos alocados na Petrobrás Biocombustíveis, que
tem estimulado a produção de biodiesel entre os pequenos agricultores.
Um exemplo de cooperativa camponesa de agrocombustível é a Cooper-
bio (cooperativa mista de produção, industrialização e comercialização de
biocombustíveis do Brasil Ltda). Dessa forma, a Via Campesina e o MPA
entendem que poderão ser escamoteados esquemas de exploração e subor-
dinação que o capital comercial, financeiro e industrial engendra.
A Via Campesina está em fase de criação de uma cooperativa de produção de
biodiesel (Cooperbio) e organiza os agricultores das regiões sul e noroeste
do Estado – RS – para a produção de oleaginosas. Cerca de 15 mil famílias
de pequenos agricultores serão beneficiadas em 21 municípios. O biodisel –
proveniente do aproveitamento das oleaginosas, entre elas a soja, o girassol,
a mamona etc. – pode ser usado não só para mover motores e máquinas,
mas também para a geração de energia elétrica. Já os resíduos do esmaga-
mento das oleaginosas servem como ração animal e adubo para a lavoura.
(CASSOL, 2005, p. 13).

As cooperativas seriam responsáveis pela operacionalização da


produção em microdestilarias capazes de produzir agrocombustível a
baixos custos, e consequentemente, mais competitivas. A diversificação
da agricultura com um produto principal, erguido a partir de arranjos
produtivos mercadológicos locais (desenvolvimento local), serviria para
sustentar esta produção mais competitiva. Neste sentido, a proposta de
produção camponesa de agrocombustível, aproxima-se de um “agronegó-
cio familiar” pautando sua existência na eficiência econômica e compe-
tência mercadológica.

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João Edmilson Fabrini

Segundo Guimarães (2007), em evento organizado pela Via Campe-


sina para debater a “agronergia no Brasil”, existe uma série de vantagens
também para o País no investimento em microusinas, pois enquanto uma
refinaria tradicional de petróleo exige 2 bilhões de dólares para processar
110 mil barris de petróleo e gerar de 7 mil empregos, o agrocombustível,
em microdestilarias, geraria 1 milhão de empregos e 100 mil barris de ál-
cool com este valor (2 bilhões de dólares).
A saída, nesse sentido, seria o desenvolvimento de microdestilarias, uma
proposta de atividade integrada a partir da diversidade de produção agríco-
la, que poderia aumentar a produção de leite e de carne, segundo ele. Para
fazer uma refinaria que processa 110 mil barris de petróleo por dia, o in-
vestimento é de 2 bilhões de dólares e eu criaria 7 mil empregos. Com esse
dinheiro, eu faço 100 mil microdestilarias para produzir 100 mil barris de
álcool e crio um milhão de empregos. A solução está aí, falta alguém querer
levá-la para frente... (GUIMARÃES, 2007, p.5).
Além de consorciar a produção de alimentos e agroenergia com
uma importante agricultura diversificada, os movimentos entendem que
se afastaria o problema da escassez de alimentos, permitindo à nação uma
soberania energética e alimentar. Desta forma, a produção de energia e ali-
mentos não estaria em oposição uma à outra, como ocorre na produção de
agrocombustível pelo agronegócio, mas seriam complementares.
Decididos a participar do programa do biodiesel, os movimentos e
sindicatos (Contag, MPA, Via Campesina, CUT, etc.) têm apresentado uma
pauta de reivindicações ao governo como a elaboração e implementação
de políticas públicas, crédito, assistência técnica, criação de infraestrutura
comunitária, legislação sobre o agrocombustível adequada aos interesses
de pequenos agricultores e principalmente a criação de uma empresa es-
tatal, semelhante à Petrobrás, da agroenergia. Para os movimentos, esta
empresa estatal deverá controlar a produção e comercialização de agro-
combustível para fazer frente a monopólios e corporações empresariais
privados, evitando assim, a concentração de capitais e a subordinação e
dependência dos camponeses.
Entretanto, mesmo considerando uma base local e o consórcio da
produção de alimentos e energia proposta pelos movimentos e entidades
camponesas, está colocado como se fosse possível um pequeno negócio ob-
ter vantagens na produção em cadeia e mercados globais monopolizados
por corporações nacionais e estrangeiras. Os camponeses produtores de
agrocombustível têm pouca capacidade de intervenção no estabelecimen-
to de preços forjado num contexto macroeconômico vinculado a esquemas
globais de produção de mercadorias. A dependência de insumos, serviços,
assistência técnica e conhecimentos produzidos por empresas capitalistas
nacionais e transnacionais também poderá ser responsável pela subordi-
nação dos camponeses inseridos na cadeia produtiva de agroenergia.

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

Semelhante ao que ocorre também com a produção de aves, taba-


co, suínos, leite, dentre outras, nas pequenas propriedades, a integração às
cadeias produtivas implica na subordinação da renda da terra dos campo-
neses ao capital, que se realiza na esfera da circulação da produção, como
destacou Martins (1990). Este processo de subordinação da renda da terra
camponesa, Oliveira (2005) denomina de “monopolização do território”,
como apontado anteriormente.
Assim, a proposta do agrocombustível não é uma alternativa ao mo-
delo de desenvolvimento assentado na produção e consumo infinito de
mercadorias. O agrocombustível é um prolongamento da economia assen-
tada na produção do petróleo ameaçada pela escassez, ou seja, serve à ma-
nutenção do sistema. Aos camponeses está sendo proposta a entrada neste
sistema. Neste sentido, há que se pensar numa reversão do sistema; não no
retorno romântico ao passado, mas na retomada de práticas e saberes não
mercadológicos marginais acumulados secularmente que permitam proje-
tar os camponeses para o futuro, garantindo a sua existência na sociedade
moderna. Por isso, há que se pensar na perspectiva da resistência e não
na integração dos camponeses ao mundo da mercadoria para garantir sua
existência, semelhante a um “agronegócio familiar” do agrocombustível.
Se de um lado, a entrada na produção da agroenergia poderá con-
tribuir na geração de renda para a pequena agricultura como entendem
alguns setores, de outro, é necessário olhar para uma possibilidade de exis-
tência camponesa por fora da incorporação ao sistema de cadeias pro-
dutivas. Entrar na disputa do agrocombustível com o agronegócio para
demonstrar que a pequena agricultura é mais eficiente na produção de
agroenergia do que o agronegócio/latifundiários é escamotear a concepção
negadora do capitalismo que o campesinato possui na sua essência.

Resistência ao agrocombustível e território camponês


A concepção hegemônica de território implica no reconhecimento de um
campo de forças e confronto, no caso abordado, entre relações campone-
sas e relações capitalistas. O território camponês se constitui num trunfo,
conforme destacou Raffestin (1993), numa força negadora de esquemas de
dominação e subordinação que a produção capitalista representa.
No processo de enfrentamento entre a agricultura camponesa e capi-
talista, os assentamentos de reforma agrária destacam-se como importante
território camponês (fração do território) em que novas e antigas sociabi-
lidades são reavivadas e recriadas com a conquista da terra. Nos assenta-
mentos, ergue-se um conjunto de saberes e conhecimentos secularmente
acumulados, ou seja, saberes que estavam sendo erodidos e perdidos com a
expulsão e expropriação dos camponeses e que são recriados e recuperados
como estratégias de existência pela resistência dos camponeses.

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João Edmilson Fabrini

As forças territoriais (simbólicas e materiais) construídas secular-


mente se manifestam nos conhecimentos, práticas e saberes diversos de
conteúdo político, econômico, cultural, ambiental, costumeiro, etc. Os co-
nhecimentos sobre as sementes para cultivos, solos, plantas, clima e tem-
po, prevenção de doenças, melhoramento genético, dentre outros, são
forjados, cultivados e difundidos entre os camponeses. Os movimentos so-
ciais camponeses contribuem para recuperar tais saberes, conhecimentos
e práticas camponesas que possuem um conteúdo negador da produção
capitalista. Mas, não são recuperados somente por meio de ações dos mo-
vimentos nacional e mundialmente organizados, pois existe uma resistên-
cia, um movimento camponês mais amplo do que os movimentos sociais,
uma resistência assentada no território.
Dentre os componentes do território camponês se sobressaem os
relativos à produção para “autoconsumo” das famílias e as “trocas solidá-
rias”. Estes componentes territoriais de resistência carecem de serem ob-
servados e valorizados como estratégia de existência autônoma dos peque-
nos agricultores, o que não ocorre quando se projeta a produção voltada
para o mercado capitalista como o agrocombustível, por exemplo. Neste
caso, a renda da terra e a existência camponesa serão subordinadas e o ter-
ritório é convertido em trunfo empresarial.
A perspectiva do autoconsumo da produção camponesa apresenta
uma lógica diferenciada da empresa capitalista, pois é regida pelas necessi-
dades do grupo familiar, como destacado por Chayanov (1974) ao tratar do
pressuposto balanço trabalho-consumo, considerando o número de mem-
bros da família (condições biológicas). Assim, a produção para o atendi-
mento das necessidades da família, e não para os mercados, se ergue como
elemento fundante da produção camponesa.
A produção para autoconsumo emerge como atividade que implica
na construção da autonomia, independência e geração de renda. Os cam-
poneses, a partir do contexto local têm implementado uma agricultura de-
fensiva ao padrão agrícola caracterizado pelo elevado consumo de agrotó-
xicos, insumos, máquinas, equipamentos, instrumentos, conhecimentos e
tecnologias elaboradas na esfera da produção de mercadorias e nos inters-
tícios das relações capitalistas. Em contrapartida à incorporação ao mun-
do da mercadoria, os camponeses forjam uma agricultura em que uma
parte dos instrumentos, ferramentas, conhecimentos e técnicas são produ-
zidos por eles mesmos. São exemplares também as experiências ecológicas
como o uso de resíduos vegetais e animais (palha, folhas, raízes, esterco,
etc.) utilizados na adubação das lavouras que também são compreendidas
como produção de autoconsumo.
O peso da lógica do atendimento das necessidades da família campo-
nesa tem importantes rebatimentos na relação com a natureza. São exem-
plares, os saberes e experiências que se desdobram numa agricultura ecoló-

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

gica. O aproveitamento de resíduos orgânicos para a adubação das lavouras


e hortas; o aproveitamento de sementes, principalmente de milho e feijão,
utilizadas de um ano para o outro (as denominadas sementes crioulas), são
práticas de autoconsumo largamente verificadas entre os camponeses. Estas
práticas não surgem da agroecologia vinculadas a ONGs (organizações não
governamentais) ou movimentos sociais estabelecidos em redes. Pelo con-
trário, o movimento da agroecologia se afirma a partir de saberes campone-
ses secularmente acumulados; ou seja, ergue-se a partir do território.
Além destas práticas, muitas outras são verificadas no território
camponês, tais como cultivo, criação e industrialização artesanal de pro-
dutos alimentícios para as famílias visando uma segurança e soberania
alimentar “interna”, além de fabricação dos próprios instrumentos e fer-
ramentas de trabalho, fabricação de roupas para o trabalho na roça, ma-
nejo de lavouras, criação a partir de conhecimentos transmitidos pelas ge-
rações, melhoramento artesanal das espécies animais e vegetais, dentre
outros. Esta prática precisa ser reforçada ou recuperada para garantir a
autonomia camponesa.
As “trocas solidárias” também são práticas verificadas entre os cam-
poneses. Estas trocas solidárias, calcadas no espírito comunitário, reali-
zam-se tanto na esfera econômico-produtiva (trocas de sementes, produtos,
alimentos, ferramentas, máquinas, trabalho e dias de serviço, conheci-
mentos, serviço de transporte, técnicas de cultivos, informações variadas),
como nos momentos de precisão (enfermidade de um membro da família,
por exemplo), atividades sociais, comunitárias, religiosas, festas, etc. En-
fim, é uma variedade de trocas não capitalistas regidas mais pelas neces-
sidades das famílias do que por uma economia mercantil. A produção de
agrocombustível (biodiesel) proposta pelo governo e aderida parcialmente
por movimentos sociais e sindicatos não se preocupa com este conteúdo
solidário não capitalista da essência do campesinato e aproximam-se mais
de trocas realizadas no universo da mercadoria.
Estas práticas camponesas de uma agricultura defensiva foram en-
tendidas, em passado recente, por entidades organizadas (partidos políti-
cos de esquerda, por exemplo) e também por movimentos sociais (MST),
como um atraso que ia à contramão do progresso e desenvolvimento. Os
camponeses, por estabelecerem vínculos locais, familiares e comunitários
foram entendidos como se não possuíssem visão universal de totalidade
para pensar/elaborar um projeto de existência como fazem os trabalha-
dores das fábricas, por exemplo. O trabalho camponês realizado em base
familiar e não coletivo também seria responsável por uma prática indivi-
dualista, pois faltava a consciência político-coletiva. O camponês teria no
máximo uma consciência comunitária.
A partir de 2000, aproximadamente, com o estreitamento de laços
entre o MST e a Via Campesina, a preocupação com o fortalecimento e

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João Edmilson Fabrini

recuperação de uma agricultura camponesa tornou-se mais evidente. O


saber camponês que foi entendido como inimigo do progresso, agora está
sendo reconhecido, quando buscam conhecimentos do passado para ga-
rantir melhores condições de vida no presente e se projetar no futuro. A
recuperação de saberes tradicionais acumulados secularmente não é volta
romântica, saudosista e nostálgica ao passado, mas condição de existência
presente e projeção no futuro.
Assim, é necessário pensar o lugar do campesinato a partir de ex-
periências marginais aos esquemas de mercado global, seja ela nos movi-
mentos sociais ou fora deles (para além dos movimentos sociais); fora do
agrocombustível em cadeia e do “agronegócio familiar”. É necessário pen-
sar ainda o lugar dos camponeses na sociedade não pela incorporação às
dinâmicas globais da produção de etanol e biodiesel, mas um projeto que
possa fortalecer as práticas e ações não capitalistas na esfera produtiva,
política, social, comunitária, etc. Nisso, o território camponês é prenhe de
práticas não capitalistas.
Neste sentido, não há um único caminho para os camponeses como
o da incorporação às dinâmicas produtivas nacional-global da agroener-
gia. Outro caminho, não capitalista, deve ser reconhecido e fortalecido
pelas políticas públicas, movimentos sociais, Igreja, militantes, etc. Na
construção de outro caminho, os estudiosos das várias áreas das ciências
sociais, sobretudo a geografia, estão constantemente desafiados a contri-
buir com sua interpretação sobre o campo brasileiro. Uma interpretação
capaz de apontar caminhos que possam servir à emancipação e autonomia
dos camponeses.

Considerações finais
Sustentada pela industrialização e modernização da agricultura, fortale-
ceu-se a partir da década de 1990, no Brasil, uma agricultura empresa-
rial de negócio, o agronegócio. Embora este processo de territorialização
do capital se realize desigual e contraditoriamente, a agricultura de negó-
cio tornou-se, numa visão conservadora, referência principal de produção
agropecuária, inclusive considerada uma alavanca do desenvolvimento da
nação brasileira. Em vista de suposta eficiência e de vantagens competiti-
vas, o agronegócio deveria operacionalizar hegemonicamente o projeto do
agrocombustível no Brasil.
Entretanto, os movimentos camponeses, visualizando possibilidade
de tirar vantagem do projeto de agrocombustível, principalmente no pro-
grama do biodiesel, apresentam a agricultura camponesa como outro ca-
minho para a produção de agrocombustível. Para obter vantagens na pro-
dução de agrocombustível, os movimentos camponeses reivindicam um
conjunto de políticas púbicas e medidas governamentais para impedir a

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O campesinato frente à expansão do agronegócio e do agrocombustível

exploração dos camponeses pelo capital nacional e transnacional que atua


no setor do agrocombustível.
Mas, mesmo com a presença estatal, a inserção da pequena agricul-
tura aos esquemas de produção em cadeia de agrocombustível e mercados
globalizados poderá implicar na subordinação da renda da terra ao capital,
semelhante ao que ocorre com outras cadeias produtivas como a avicultu-
ra, suinocultura, sericicultura, etc. Neste sentido, é necessário pensar na
possibilidade de um caminho marginal aos mercados globais de produção
de agrocombustível para garantir a existência independente e autônoma
dos camponeses, ou seja, um caminho que não reproduza o modelo de de-
senvolvimento assentado na produção e consumo de mercadoria. Por isso,
é necessário reconhecer o lugar dos camponeses na sociedade não pela in-
corporação às dinâmicas globais de produção de mercadorias como etanol
e biodiesel, mas o seu lugar a partir de experiências marginais aos esque-
mas de produção em cadeia do agronegócio. O território camponês é pre-
nhe deste conteúdo de autonomia e independência camponesa.
Oxalá, os camponeses possam construir um caminho que leve à sua
autonomia e emancipação e não uma inclusão subordinada aos esquemas
de produção global de mercadorias.

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Geografia agraria territorio e desenv FINAL.indd 88 3/23/10 11:17:20 AM


O que há além do endógeno e exógeno nas
pesquisas sobre o desenvolvimento rural?*

Adilson Francelino Alves


Professor | Unioeste | adilsonfalves@gmail.com

Júlia Silvia Guivant


Professora da UFSC | juguivant@uol.com.br

Superando dicotomias: novas contribuições para o estudo do


desenvolvimento rural

Desde o início da década de 1980, em resposta às externalidades ne-


gativas da modernização da agricultura, projetos de desenvolvimento rural
sustentável tem sido implementados em diversos países onde o Brasil, devi-
do à importância da sua agricultura e do forte movimento social no campo,
tem um lugar de destaque. Tais experiências têm articulando agricultores de
pequenas comunidades locais e atores vinculados a ONGs, grupos de pres-
são urbanos, setores do governo e comunidade internacional. Estas propos-
tas de desenvolvimento tendem a apoiar-se preferencialmente em três prin-
cípios básicos: a) na valorização da vida em comunidade; b) na capacidade
de protagonismo dos agricultores; c) na ideia de que, a partir das forças
internas (solidariedade, identidade, espírito comunitário, valorização do sa-
ber-fazer local etc.) estas comunidades poderiam se contrapor à estandardi-
zação das técnicas agrícolas modernas. A estes princípios podemos agregar

*
Este capítulo resulta da tese de doutorado, Do desenho à implementação de projetos de de-
senvolvimento rural sustentável: interfaces e negociações no Projeto Vida na Roça (Paraná),
defendida em 2008 no Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade
Federal de Santa Catarina.

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O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas
sobre o desenvolvimento rural?

outros dois importantes aspectos: 1) o debate sobre as relações entre agricul-


tura familiar e a questão ambiental, e 2) a dicotomização do mundo em duas
esferas distintas, contraditórias e polarizadas no espaço local e o global.
Estas e outras questões fizeram com que a “questão agrária” (consi-
derada superada por setores da pesquisa acadêmica brasileira) ressurgisse
como tema de pesquisa nas agendas de institutos e universidades, possi-
bilitado um fecundo debate, em que, novos e promissores estudos direcio-
nam o olhar sobre a intensa transformação que a agricultura vem expe-
rimentando (Abramovay, 1992; Almeida, 1999; Tedesco, 1999; Schneider,
2003; Petry, 1995; Buttel, 1990, 1994 dentre outros).

Endógeno versus exógeno: paradigmas


do desenvolvimento rural em conflito

As propostas que tratam do desenvolvimento rural têm, no geral, orbitado


ao redor de dois paradigmas básicos: o desenvolvimento exógeno e o de-
senvolvimento endógeno. As abordagens do desenvolvimento exógeno, em
que se pauta a revolução verde, confluem para uma proposta de articula-
ção subordinada das atividades desenvolvidas no espaço rural pelas desen-
volvidas nas economias urbanas. Nessa visão, o aspecto dinâmico da eco-
nomia (com desenvolvimento de produtos, serviços e pesquisas) ocorreria
no espaço urbano. Ao rural caberia o papel de receptáculo de tecnologia e
insumos e de fornecedor de matérias-primas e de alimentos para nutrir a
máquina produtiva urbana.
Inicialmente (na década de 1950) o crescimento e desenvolvimento
agrícola eram vistos principalmente em termos de segurança alimentar,
e essa ideia era reforçada pela experiência europeia durante a Segunda
Guerra Mundial. Contudo um processo de reconceitualização do desenvol-
vimento agrícola permitiu reconfigurar o setor, de modo que a moderni-
zação da agricultura não só permitisse aumentar a disponibilidade de ali-
mentos, mas também de se constituir como um poderoso instrumento de
desenvolvimento econômico ao possibilitar a ligação de uma enorme ca-
deia de inputs e outputs com o setor não agrícola ao servir de vaso receptor
para os insumos industrialmente produzidos e fornecer matérias primas
para a indústria e alimentos baratos para as populações urbanas.
Os desenvolvimentos urbanos e rurais estariam integrados não ape-
nas entre si, mas à lógica de expansão econômica cujo fomento dependia
da ajuda externa. Esta política foi amplamente utilizada a partir da déca-
da de 1950 nos projetos da revolução verde e conseguiram imprimir um
enorme dinamismo no setor agrícola tornando-o mais moderno e articula-
do. Os princípios essenciais deste modelo estavam localizados em econo-
mias de escala e de concentração. Os centros urbanos eram considerados
como polos de crescimento e de desenvolvimento econômico das “zonas

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rurais”. Nesse cenário os problemas de desenvolvimento das regiões agrí-


colas eram diagnosticados como os da marginalidade, pois estavam distan-
tes técnica, econômica e culturalmente dos principais centros urbanos de
atividade e em todos estes aspectos eram considerados atrasados (WARD,
et alli. 2005). Este modelo continua como o paradigma central do rural até
finais dos anos 1970, quando o modelo exógeno começa a cair em descré-
dito. As zonas rurais são então apresentadas como altamente dependentes
de subsídios e distantes das arenas de decisão política. Este discurso ainda
hoje é um elemento central dos argumentos e críticas efetuados por ONGs
e setores da sociedade vinculados à questão rural.
A proposta do desenvolvimento exógeno tem sofrido alterações
desde sua implantação na década de 1950. Inicialmente, segundo Ellis
e Biggs (2001), a ideia central de desenvolvimento rural estava baseada
na percepção de que a grande massa dos agricultores chamados de ‘tra-
dicionais’ ou de ‘subsistência’ não ofereciam perspectivas para o desen-
volvimento econômico ou para o aumento da produtividade, já que eram
categorizados como economicamente irracionais. Dessa forma, a estes
agricultores caberia apenas um papel passivo no processo de desenvol-
vimento econômico (fornecedores de recursos para o setor moderno da
economia) e que, com o tempo, eles seriam suplantados pela expansão de
agentes econômicos mais dinâmicos.O setor moderno, que surgiria em
substituição ao antigo, era visto como constituído por grandes áreas pro-
dutivas, consideradas então, mais aptas a utilizar os recursos econômicos
com eficiência do que as pequenas propriedades.Esta visão sobre o rural
foi também importante para os países socialistas, pois estas estratégias
de desenvolvimento agrícola foram praticadas intensivamente na União
Soviética nas décadas de 1960 e 1970 procedeu a política coletivização de
grandes áreas agrícolas.
Este modelo, que se estendeu quase inalterado até meados da déca-
da de 1980, foi desenvolvido por poderosas redes de pesquisas e financia-
mentos, desenvolvimento, parques industriais, extensão e comercializa-
ção. Nas redes que se conectam ao desenvolvimento exógeno, encontramos
as instituições representantes das dimensões científica, tecnológica e polí-
tica construídas no processo de difusão da modernização da agricultura.
Para essa ótica de desenvolvimento o conhecimento tradicional e local
deveria ser substituído por um conhecimento científico e globalizado, o
que por sua vez foi realizado através de novas relações sociais no meio ru-
ral. A agricultura proposta pela revolução verde pode ser resumida como
a implantação de um sistema dependente de inputs externos à proprieda-
de, caracterizados pela alta densidade tecnológica viabilizada por enor-
mes investimentos públicos e privados em pesquisa e desenvolvimento.
Essa rede procurava a estandardização em tecnologias a serem aplica-
das potencialmente em qualquer ecossistema do planeta independente

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O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas
sobre o desenvolvimento rural?

das suas complexidades e peculiaridades. Nesse processo os centros de


decisão se afastam do espaço de sua aplicação gerando longas redes ver-
ticais de poder e controle. Em outras palavras, a construção da rede de
ciência permitiu que estas tivessem uma ação a distância, ao contrário do
conhecimento local, que se organiza em redes menores restritas ao con-
texto doméstico, ou quando muito contextos restritos a pequenas regiões
geográficas(GUIVANT, 1997).
Mas entre anos de 1960 e 1970, o paradigma da revolução verde so-
freu uma grande alteração. Uma primeira mudança no desenvolvimento
rural ocorreu em meados dos anos de 1960, quando emerge outra aborda-
gem que passa a considerar as pequenas propriedades agrícolas como mo-
tor do crescimento e do desenvolvimento. No entanto, esta perspectiva (po-
lítica e acadêmica) não se fez sentir de imediato nas políticas públicas. Nos
países desenvolvidos isto só começou a ocorrer em meados da década de
1970. Essa mudança foi responsável por integrar a agricultura de pequena
escala à dinâmica de desenvolvimento com a abertura de linhas de crédito
e políticas de assistência técnica específicas destinadas à difusão das téc-
nicas e práticas da revolução verde junto a agricultores com propriedades
menores.As pequenas propriedades começam a se tornar responsáveis por
um aumento no desempenho no crescimento econômico global. Isto ocor-
reu porque o incremento da produtividade agrícola estimulou a procura de
serviços não agrícolas, bem como a criação de um mercado interno consu-
midor de bens industriais.
As principais mudanças nos paradigmas de desenvolvimento ru-
ral nesse período foram segundo Ellis e Biggs (2001): 1) os pequenos
agricultores são considerados agentes econômicos racionais, capazes de
tomar decisões eficientes ; 2) os pequenos agricultores são tão capazes,
como grandes agricultores, de produzirem variedades vegetais, uma vez
que as combinações deinputsnecessários a produção são agentes neu-
tros (sementes, fertilizantes, água); 3) existe uma relação inversa entre
dimensão das explorações e da eficiência econômica, de tal forma que
os pequenos agricultores são mais eficientes do que os grandes agricul-
tores, devido à intensidade do seu uso e à existência abundante de traba-
lho, em combinação com as pequenas explorações baixos requisitos de
capital; 4) a combinação desses três fatoreslevam em direção a uma es-
tratégia agrícola que favorece as pequenas propriedades familiares, em
vez de uma estratégiaque apostava na força de um setor agrícola moder-
no composto de grandes fazendas; e finalmente, 5) a crescente produção
agrícola nas pequenas propriedades estimula o crescimento da mão de
obra em atividades não agrícolas na zonas rurais. Este último fator seria
fundamental na estratégia de diminuição da pobreza, que se constituiria
em um dos elementos chave da proposta de desenvolvimento endógeno
nas décadas seguintes.

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Em contraponto à revolução verde, surgem debates que se difundem


paralelamente a consolidação do conceito de sustentabilidade (especial-
mente no Relatório Bruntland) sobre qual agricultura é desejável, social e
ecologicamente sustentável, e apta a oferecer para as populações padrões
de segurança alimentar, ambiental e social. Deste questionamento surge
boa parte do arcabouço teórico do desenvolvimento endógeno. Este con-
ceito está ancorado no pressuposto de que os recursos específicos de um
local (natural, humano e cultural) são a chave para viabilizar o desenvol-
vimento sustentável. O principal desafio que o desenvolvimento endógeno
deve enfrentar em longo prazo está justamente na valorização das diferen-
ças e especificidades locais frente a um cenário mundial onde dominavam
as técnicas e processos produtivos estandardizados. O principal objetivo
desta perspectiva de desenvolvimento seria o de melhorar as circunstân-
cias econômicas e sociais locais através da mobilização dos recursos inter-
nos disponíveis, garantindo aos atores parcelas maiores de decisão sobre
os modelos técnicos e produtivos, sobre as decisões internas às proprieda-
des, bem como, a construção de mecanismo políticos que deem voz de de-
cisão aos agricultores.
Estas transformações nas propostas de desenvolvimento são apon-
tadas por Ellis e Biggs (2001) como uma segunda mudança paradigmática
no desenvolvimento rural.No geral elas se caracterizam pela alteração na
forma de propor a tomada de decisões que nas décadas anteriores eram,
sobretudo de cima para baixo (top-down) para sugerir abordagens de bai-
xo para cima (bottom-up), valorizando o conhecimento e os atores locais.
Alguns dos elementos-chave neste período segundo os autores foram: 1) o
advento das pesquisas sobre sistemas agrícolas; 2) crescente critica a mo-
noculturas estimuladas pela Revolução Verde; 3) um crescente reconhe-
cimento da validade dos conhecimentos técnicos locais; e na capacidade
dos agricultores pobres em contribuir para soluções dos seus problemas;
4) o aumento do uso de métodos participativos, originários do diagnósti-
co rural rápido (rapid rural appraisal – RRA), passando pelo Diagnóstico
Rural Participativo (participatory rural appraisal – PRA) e depois, durante
a década de 1990, para Aprendizagem e Ação Participatória (Participatory
Learning and Action – PLA); 5) o advento da perspectiva ator-orientada
sobre desenvolvimento rural, em que os participantes no desenvolvimento
rural são considerados atores competentes com diferentes e legítimos en-
tendimentos dos processos de mudança em que estão envolvidos (Long e
Long, 1992); 6) do ponto de vista teórico houve a rejeição de teorias macro
explicativas como guias úteis para a ação com o consequente crescimento
das teorias que salientavam as especificidades locais e os enfoques micro-
sociológicos; 7) aumento da importância das questões de gênero para o
desenvolvimento rural; e 8) surgimento de temática ambientais fruto dos
movimentos de contestação e daspesquisassobre o tema.

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O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas
sobre o desenvolvimento rural?

Quadro 1 – Principais modelos de desenvolvimento e paradigmas dominantes 1950 a 2000


Características dos principais modelos
Paradigmas dominantes
de desenvolvimento
Modelo de dupla modernização da econômica e
1950 desenvolvimento de comunidade: ideia de camponeses 1. Modernização e economia dual.
preguiçosos.
Transformação da abordagem de transferência
1. Modernização, economia dual
de tecnologia (extensão) e mecanização agrícola
1960 2. Rendimentos crescentes em
crescimento do papel da agricultura (Inicio da
pequenas e eficientes propriedades.
Revolução verde): ideia agricultores racionais.
Redistribuição com crescimento atendimento
das necessidades básicas o rural integrado ao
1. Rendimentos crescentes em
1970 desenvolvimento do Estado, políticas estatais de crédito
pequenas e eficientes propriedades.
levaram ao campo um viés de inovação vinculado ao
setor urbano revolução verde (continuação).
Ajustamento estruturala mercados livres“obtenção de
preços corretos.Recuo do Estado 1. Rendimentos crescentes em
décadas

aumento das ONGs Diagnóstico RuralRápido (DRR). pequenas e eficientes propriedades.


1980 Foco na segurança alimentar e fome análise. Pesquisa 2. Participação e empoderamento
e Desenvolvimento como processo não como produto. 3. Pesquisa sobre meios de vida
Foco no desenvolvimento das mulheres (WID)e na sustentável (SL Approach)
redução da pobreza”.
1. Rendimentos crescentes em
Microcrédito, Pesquisa Rural Participativa (PRP),
pequenas e eficientes propriedades.
Ator-orientado Stakeholder; análise Rural segurança,
1990 2. Participação e empoderamento
redes, Gênero e Desenvolvimento (GAD) Ambiente e
3. Pesquisa sobre meios de vida
sustentabilidade. Redução da pobreza
sustentável (SL Approach)
1. Rendimentos crescentes em
Estilo de vida sustentável, boa governança e
pequenas e eficientes propriedades.
descentralização crítica aos Programas com o enfoque
2000 2. Participação e empoderamento
setorial amplo (Sector-wide approaches – SWAps)
3. Pesquisa sobre meios de vida
como proteção social a erradicação da pobreza.
sustentável (SL Approach)
Fonte: Ellis, F; Biggs,S (2001). Organizado por ALVES, A.F. (2008).

Devemos considerar que o contexto político e econômico também so-


freu transformações, com o início dos ajustamentos estruturais nas econo-
mias mundiais com liberalização dos mercados no início de 1980, o que le-
vou a uma diminuição das intervenções estatais na gestão do setor agrícola.
A diminuição da presença estatal levou os agricultores a buscarem alternati-
vas para o desenvolvimento; e com isso houve o aumento da participação das
ONGs como agentes de desenvolvimento rural. Em síntese estas duas grandes
linhas apontam para uma dicotomização do desenvolvimento rural. As princi-
pais características de ambos os modelos são sintetizadas no Quadro 2:

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Quadro 2 – Modelos de desenvolvimento rural


Características Desenvolvimento exógeno Desenvolvimento endógeno
Arranjos locais (naturais, humanos
& culturais).
Princípio-chave Economia de escala e concentração
Recursos para o desenvolvimento
sustentável.
Polos de crescimento urbano. As áreas rurais
são concebidas como fonte de alimentos e
Força dinâmica Empresas e iniciativas locais.
de produtos primários para a expansão das
economias urbanas.
Função das Produção de alimentos e de produtos primários Diversificação das economias e dos
áreas rurais para a expansão da economia urbana. serviços.
Maiores Limitada capacidade de áreas/
problemas de Baixa produtividade e marginalização. grupos sociais de participar das
desenvolvimento atividades econômicas.
Construção de capacidades
Foco do
Modernização agrícola: estímulo à mobilidade (habilidades, instituições e infra
desenvolvimento
de capital e trabalho. estrutura).
rural
Superação da exclusão social.
Fonte: Adaptado de Ward et alii (2005).

Ocorre, contudo, que as divisões nem sempre são tão claras. Espe-
cialmente porque, na prática ocorrem entrelaçamentos entre ambas, le-
vando-se a formulações que procuram superar as dicotomias e conseguir
um dialogo equilibrado entre ambos os lados, como veremos a seguir.

Confluências entre os modelos endógeno e exógeno


Uma das análises pioneiras que procura romper com a visão dicotômica
de desenvolvimento é encontrada em Buttel (1994). Para este sociólogo ru-
ral, um dos mais importantes dos anos 90, desde o final da década de 1980
ocorre uma transição na base teórica que estuda o desenvolvimento rural.
A sociologia clássica, por exemplo, tinha, até meados do século XX, a pers-
pectiva macrossocial como foco prioritário de análise (Estado e economia
nacional, sistema de valores nacionais, etc.). O sinal de mudança no foco
da análise é identificado por Buttel no crescimento de temas ligados a mi-
crossociologia, com o estudo de relações de poder em categorias sociais
mais ligadas ao cotidiano, tentando entender o papel dos atores sociais
como competentes e capazes de agência. Para Buttel, este recente aban-
dono da perspectiva de que todos os aspectos microsociais podem ser ex-
plicados por causas macrossociais, e especialmente de caráter econômico,
estimulou uma transição teórica e um aprimoramento dos instrumentais
de análise aptos a fornecer ferramentas mais adequadas para a pesquisa

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O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas
sobre o desenvolvimento rural?

social sobre as transformações em curso na sociedade. Desta maneira, But-


tel encaminha seu argumento para demonstrar a necessidade de integrar
os modelos endógenos e exógenos. Cada um isoladamente é incapaz de ex-
plicar os processos de desenvolvimento rural. A perspectiva exógena, asso-
ciada a uma macrossociologia, é incapaz de explicar os processos de poder
microssociais. Por sua vez, a perspectiva endógena é incapaz de explicar
os processos macrossociais. Uma síntese entre ambas possibilitaria obter
uma perspectiva teórica que capte a complexidade da realidade social.
Buttel (1994) então aponta para a existência de outros dois modelos
dicotômicos de análise do desenvolvimento rural, que também deveriam
dialogar: os modelos da globalização e o da relocalização, que levam a uma
visão polarizada e empobrecida teórica e metodologicamente para enten-
der os processos de desenvolvimento.
No modelo da sociologia rural que enfatiza os processos globalizan-
tes, os regimes alimentares pós-fordistas, bem como o processo de mun-
dialização da agricultura, são vistos como respostas ao declínio da capaci-
dade dos Estados-nação de regular os seus setores agrícolas e alimentares,
cedendo lugar a uma regulação global. A globalização estaria se tornando
o centro dinâmico do mundo agrícola e as teorias da globalização têm, se-
gundo Butell, em Bonanno et alli (1994); Goodman e Radcliffe (1991); Mc
Michael (1994), as mais fortes referências sobre o tema. Esta perspectiva
está apoiada no pressuposto de que o setor agrícola havia mudado e o dina-
mismo econômico, ideológico e político nas sociedades locais (inclusive os
estados nacionais).Nesse cenário, os determinantes do sistema alimentar
teriam se deslocado do espaço local para o global. Segundo Buttel (1994)
e Ward et. alli (2005), para esse argumento corroborariam os dados rela-
tivos à agricultura nos países da OCDE. Embora a agricultura ainda seja
predominante na utilização dos solos da Europa rural, ela já não domina
socialmente ou economicamente estes espaços. Este setor representava na
década de 1990 apenas 5% dos empregos e desempenhava um papel ain-
da menor na formação do PIB das regiões rurais. No mesmo sentido eles
apontam que os gastos alimentares familiares destes países eram de ape-
nas 15% da renda. No entanto, quando se fala em financiamento, a Política
Agrícola Comum da União Europeia representa pouco menos da metade
do orçamento anual (Ward. et. alli. 2005). Desse modo, o setor agrícola dos
países desenvolvidos está sob forte pressão política, sobretudo devido aos
crescentes gastos com subsídios. Contudo, segundo esses autores deve-se
considerar que a agricultura continua a ser um setor estratégico importan-
te na política europeia e se constitui na principal força para a determina-
ção do que acontece no meio ambiente rural.
Além das críticas domésticas na Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm crescido os questionamentos no
âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), sobretudo por par-

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te de países onde a agricultura tem um peso maior na economia, como no


Brasil. Buttel (1994) observa que, embora de forma diferente, os países em
desenvolvimento também estavam experimentando uma transição nas te-
orias e políticas de apoio ao setor agrícola.
Mas as teorias microssociais, que se orientam mais para enfatizar
as especificidades do desenvolvimento endógeno, tem apontado como os
fatores locais não desaparecem dentro da dinâmica da globalização, mas
se transformam. Em lugar de homogeneidade no meio rural, o que estas
teorias veem é heterogeneidade. Uma das teorias mais importantes nessa
direção é a da relocalização que tem em Ploeg (1990, 1992) e Long & Plo-
eg (1995) as principais referências analisadas por Buttel. A relocalização
tem como argumento fundamental que a perspectiva da globalização so-
bre-enfatiza as forças homogeneizadoras que atuam na produção agrícola
(modernização tecnológica e mercados). E que, ao focarem apenas estes
aspectos, se equivocam ao não considerarem a diversidade de técnicas e
arranjos existentes no espaço local. A perspectiva da relocalização abriu
a crítica à ideia de homogeneização da agricultura. Além desse fato, esta
teoria contribuiu para chamar a atenção para diversas questões ainda não
devidamente estudas, tais como: o papel fundamental que os saberes lo-
cais, a complexidade intrínseca na coordenação dos afazeres e das tarefas
agrícolas, as questões de gênero e os aspectos domésticos da organização
da agricultura desempenham na dinâmica dos sistemas agrícolas e rurais
e nas sociedades em geral. Os representantes desta corrente lançam luz
também sobre a necessidade de observar os aspectos microeconômicos en-
volvidos e não só os macroeconômicos, bem como os aspectos localizados
no cotidiano dos agricultores com seus significados e interpretações. Estas
dimensões do desenvolvimento são comumente negligenciadas pelos estu-
dos focados na globalização.
A necessidade de romper com as visões dicotômicas, segundo Buttel
(1994), é que ambas as abordagens têm pontos fracos e fortes. O aspecto
mais frágil da visão focada exclusivamente na globalização está na tendência
em privilegiar a grande escala e o recurso explicativo a grandes e poderosas
forças macroestruturais. Por outro lado a fraqueza da relocalização está no
fato de ela produzir uma crítica simplificada à economia e à política agrária
globalizada. Segundo Buttel, essa crítica pode sucumbir à utopia, sobretudo
por exagerar na diversidade e na capacidade de resiliência e adaptação dos
agricultores frente a força dos processos homogeneizadores da globalização.
Contudo, para Buttel, a diversidade local não é por si só um elemento capaz
de produzir alternativas. É necessário que as teorias da relocalização pro-
duzam reflexões teoricamente fundamentadas e apoiadas em experiências
concretas, e demonstrem que têm capacidade de gerar contrapontos viáveis
às teorias da globalização, sobretudo em termos de implicações para a vida
rural, para a viabilidade da agricultura e para a qualidade ambiental.

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O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas
sobre o desenvolvimento rural?

Desenvolvimento neoendógeno
Outro contraponto importante à perspectiva que enfatiza a homo-
geneização como produto da globalização é apontado por Ward et. Alli.
(2005), que por sua vez sugerem a nomenclatura neoendógeno, em subs-
tituição ao conceito de desenvolvimento endógeno. Para estes autores o
neoendógeno se inspira em teorias que sustentam que a chave para o de-
senvolvimento local é a construção de uma capacidade institucional local,
simultaneamente capaz de mobilizar recursos internos e de lidar com as
forças externas em ação sobre determinada região. Esta perspectiva salien-
ta que não só o econômico ou o desenvolvimento empresarial precisa de
ser incorporado na região, mas que o meio de atingir este objetivo é através
da participação dos atores locais nos processos de desenvolvimento inter-
no e externo. Além disso, propõem estudar como o nível local interage com
o extralocal. Na visão desses pesquisadores o ponto crítico está em como
aumentar a capacidade do local para utilizar áreas, recursos, ações e pro-
cessos mais vastos em seu benefício.
Para Lowe et alli. (1995) eRay (2001, apud WARD et. alli 2005), a no-
ção de zonas rurais locais capazes de promover um desenvolvimento socio-
econômico autônomo e imune às influências externas (como globalização,
comércio externo ou ação governamental) pode ser ideal, mas não é uma
proposição prática no mundo contemporâneo. Para eles, qualquer localida-
de rural europeia, atualmente, inclui uma combinação de forças endógenas
e exógenas em sua configuração.

A agricultura sustentável e desenvolvimento


exógeno e endógeno

Estas questões obrigatoriamente nos conduzem a diferentes espaços pú-


blicos e às suas arenas de embate, dentre as quais podemos citar: as rela-
ções e na atuação do Estado no enfrentamento das questões referentes ao
desenvolvimento, na capacidade das comunidades locais de gerarem suas
próprias alternativas de desenvolvimento buscando uma identidade que as
diferencie no cenário e na negociação dos interesses dos atores (agriculto-
res, mercado, ONGs, governos etc.)
Nesse sentido a questão do lugar e do que se entende por conhe-
cimento, técnica e tecnologias no desenvolvimento rural devem ser tam-
bém abordadas nas pesquisas, junto com questões como: o modo como
os atores mobilizam os conhecimentos de que dispõem, como executam a
tradução, como negociam seus papéis e como recepcionam as propostas
de desenvolvimento local. Dentro do quadro de mudança paradigmática
ocorrida a partir da década de 1990, é possível observar que a introdução
do conceito de sustentabilidade torna-se um eixo articulador fundamental

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para as discussões e para políticas agrícolas.É também nos marcos desse


discurso que as ONGs preocupadas com a questão do desenvolvimento
rural encontram a base central de seus discursos e é por meio disso que
as propostas de um modelo de agricultura sustentável surgem como ele-
mento central das propostas de implementação de projetos de desenvol-
vimento rural.
Se procurarmos definições de agricultura sustentável vamos a en-
contrar inúmeras delas, na análise de Pretty (1995) a agricultura sustentá-
vel (Box 1) é um processo em aberto, sujeito a negociações e conflitos e que
envolve um apelo para a aquisição de novas habilidades e competências
para intervir nas políticas de desenvolvimento de forma ativa.

Box 1 – Princípios da agricultura sustentável


1. A sustentabilidade não pode ser definida de forma precisa: é um conceito altamente contestado e não
representa um conjunto fechado de práticas ou tecnologias, nem um modelo a ser descrito ou imposto.
A questão de definir o que estamos tratando de fazer é parte do problema, devido a que cada indivíduo
tem valores diferentes. A agricultura sustentável é, desta maneira, não tanto uma estratégia mas uma
abordagem para apreender o mundo.
2. Os problemas sempre estão abertos às interpretações diferentes: como o conhecimento e o
entendimento podem ser considerados como socialmente construídos, o que cada um de nós conhece
e acredita está relacionado com o nosso contexto atual e nossa história. Não há, portanto, só uma
interpretação “correta”. Dessa maneira, é fundamental procurar entender as múltiplas perspectivas
sobre um problema para assegurar um amplo envolvimento dos atores e grupos.
3. A resolução de um problema inevitavelmente leva à produção de outro problema porque os problemas
são endêmicos. Sempre haverá incertezas.
4. A característica-chave passa a ser a capacidade dos atores de aprenderem continuamente a partir
dessas situações em mudança, de forma a que possa agir rapidamente e transformar suas práticas.
As incertezas devem passar a ser explícitas e reconhecidas como válidas
5. Os sistemas de aprendizagem e interação devem procurar as múltiplas perspectivas das diferentes
partes interessadas e estimular o seu envolvimento. A participação e colaboração são componentes
essenciais de qualquer sistema de pesquisa.
Fonte: Pretty (1995), apud Guivant, 2002.

Desse modo, dentro dos marcos dessa crítica, a superação de visões


dicotômicas é condição necessária para estimular a difusão da agricultura
sustentável. Para os atores envolvidos em projetos de desenvolvimento ru-
ral evitar as polarizações dos modelos de desenvolvimento significa rom-
per com uma definição fechada de sustentabilidade e aderir a tecnologias
vindas de outras matrizes de pensamento e aceitar um grau elevado de in-
certeza na execução e condução dessas experiências. Deste modo, a análise
do espaço rural, em sua perspectiva sustentável, deve ser olhada não como
um espaço de homogeneidades, mas de espaços híbridos, constituídos por
tempos e territórios distintos, mas que podem conviver no mesmo tempo e

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O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas
sobre o desenvolvimento rural?

espaço (SAQUET, 2003). Nesse sentido se insere a dificuldade metodológi-


ca de estudar os processos de desenvolvimento local, pois eles são produtos
substantivados por mudanças, mas também por permanências.
Assim, na discussão sobre o desenvolvimento rural, é importante
perceber que as experiências locais não são locais no sentido estrito, pois
são/estão conectados ao global, pelos agentes, pelas técnicas, pela política,
pela questão ambiental, dentre outros fatores. Isto implica olhar o proces-
so de desenvolvimento rural sustentável como interconectado por redes
e, a análise das redes permite seguir as etapas de construção observando
como os atores e sistemas coevoluem na definição de seus papéis e na rede-
finição de expectativas em contextos locais constantemente permeados por
aspectos globais. O desenvolvimento rural sustentável, ao ser analisado,
deve ser percebido como o resultado da coevolução e do entrelaçamento
destes sistemas de relações. Esta conceituação das redes permite a obser-
vação dos diversos elementos interconectados sem a atribuição de papéis
hierárquicos entre eles, o que possibilita a cada ator se tornar fundamental
dentro da sua construção (CALLON, 1983).
Outro aspecto central diz respeito atuação dos atores locais nas are-
nas e nos processos que envolvem projetos de desenvolvimento endógeno.
A capacidade de agência dos atores em sua interação e articulação com os
diversos mundos (simbólico, técnico, político, global) desloca-os do eixo
da vitimização. Esse deslocamento posiciona os atores em novos papéis,
ou seja, coloca-os também como agentes protagonistas do processo e não
meros receptáculos à espera de soluções.
Entretanto, é necessário considerar a realidade de cada uma destas
experiências com o devido cuidado. Guivant (1997), ao analisar as propos-
tas de desenvolvimento rural sustentável, destaca, como sendo uma das
tendências mais expressivas dos defensores de projetos de desenvolvimen-
to rural endógeno, o que ela chama de “populismo participativo”, cuja pro-
posta tem em Robert Chambers (1983, 2002) um dos autores mais impor-
tantes. Essa proposta de desenvolvimento rural tem como eixo central a
valorização do conhecimento local e a participação dos agricultores em
todos os processos como agentes principais do desenvolvimento. Ocorre
que, de certa forma, a proposta desconsidera o poder do processo de enrai-
zamento de práticas e conhecimentos exógenos. Outra crítica a Chambers
refere-se a uma idealização do conhecimento local como conhecimento
tradicional. A crítica a isto, refeita posteriormente pelo próprio Chambers,
aponta à idealização do conhecimento tradicional, considerado melhor ou
superior ao conhecimento científico, ou como sendo capaz de incorporar
práticas e técnicas tradicionais acriticamente.O conhecimento local não
deve ser idealizado como melhor ou superior ao conhecimento científico
ou visto como um conhecimento puro pronto para ser resgatado (GUI-
VANT, 1997), até porque, no saber popular o processo da globalização na

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Adilson Francelino Alves | Júlia Silvia Guivant

estandardização da agricultura, a ciência, as empresas, os governos e a as-


sistência técnica desempenharam um importante papel de formação por
mais de meio século, alterando e influenciando profundamente os saberes
tradicionais. O conhecimento produzido e reproduzido no espaço rural é
produto das interações entre os conhecimentos tradicionais (caboclos, ín-
dios, negros e colonos europeus) e, nos dias atuais, fundamentalmente, os
que emergem de redes de pesquisas científicas e que influenciam políticas
públicas de desenvolvimento rural, e difundidos por uma estrutura de as-
sistência técnica de comercialização de insumos cujo objetivo central é a
manutenção da lucratividade estado, no geral, descolada das políticas e
dos debates sociais e ambientais.
Outro aspecto que deve ser considerado é que defesa dos métodos
participativos tem sido demasiadamente prescritiva e de certa forma coer-
citiva. Prescritiva ao propor um receituário único (ou muito similar entre
si) para o desenvolvimento rural e, coercitiva, ao sugerir que não há outra
alternativa para a viabilização econômica e social fora dos marcos visua-
lizados como participativos pelos proponentes desse modelo de desenvol-
vimento. Long, em contraste a esta perspectiva, propõe uma investigação
social que em lugar de ser prescritiva nos permita analisar como se for-
mulam e implementam projetos de desenvolvimento rural. Em diversos
trabalhos Long pretende problematizar a noção de replicabilidade de mo-
delos de desenvolvimento. Não obstante a aparente aceitação dos méto-
dos participativos, a relação entre os implementadores (técnicos, ONGs,
representantes dos mais variados conjuntos de atores, cientistas, etc.) e os
agricultores (a despeito das intenções e discursos) mantém-se em assime-
tria e envolvem inevitavelmente questões de poder. Propostas de desenvol-
vimento rural que se continuem difundindo de cima para abaixo, apesar
de procurar ser participativas, correm o risco de falhar em suas pretensões
de promover o desenvolvimento. Esta falha é resultado de múltiplos fato-
res, dentre os quais as percepções que os implementadores de tais projetos
têm dos agricultores. Esta visão, no geral, está sedimentada na concepção
da existência de comunidades homogêneas, cujo patrimônio técnico tradi-
cional manteve-se inalterado apesar da exposição aos agentes da moderni-
zação da agricultura.
As propostas de mudanças, sugeridas pelos atores envolvidos em
projetos de desenvolvimento rural sustentável são parte de processo de
transformação na definição de um novo papel para os agricultores, para o
Estado e para as políticas públicas. Portanto, para não cair numa visão in-
gênua dos problemas de formulação e implementação destas propostas de
desenvolvimento sustentável consideramos que, como sugere Long (1992),
precisamos de um referencial teórico-metodológico que nos possibilite to-
mar distância das propostas e analisar também suas intenções como parte
do processo e não como algo já dado.

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O que há além do endógeno e exógeno nas pesquisas
sobre o desenvolvimento rural?

Campos em disputa
A tentativa de enclausuramento dos agricultores familiares a “modelos
ideais” quer sob o ponto de vista de vista de ONGs ambientais, políticas go-
vernamentais ou a visão meramente comercial/industrial não correspon-
dem com a realidade observada no mundo rural atualmente. Em todos os
processos os atores (dentro de sua capacidade de agência e estratégias) po-
dem modificar os significados e as estratégias traçadas exigindo, por parte
dos proponentes de processos de desenvolvimento rural, constantes relei-
turas e readequações dos objetivos e possibilidades.
Um cenário ideal seria constituído por um processo interativo entre
os elementos endógenos e exógenos, em que as forças locais se potencia-
lizariam em contato com as forças extralocais. Contudo, o que se observa
é que estes processos não são uma balança em que se depositam os cus-
tos de um lado e os benefícios de outro; muito menos são eles uma equa-
ção algorítmica cujos resultados são previsíveis. Ao invés disto, temos algo
bem mais complexo, que exige a sinergia entre agendas diversas cuja com-
patibilização é processual e complexa. Neste cenário se torna ainda mais
complexo quando se observa a heterogeneidade de atores que atuam na
disputa pelo domínio do espaço rural. E elas atuam em grandes frentes: (i)
oferta de crédito agrícola a baixo custo apoiado em políticas públicas mais
perenes; (ii) aumento das redes conectadas ao espaço local; (iii) maior pre-
sença do Estado na promoção do desenvolvimento; (iv) diversas formas
de inserção nas redes sociais e produtivas; (v) presença das agroindústrias
integradoras como elemento de conexão com o mercado externo; (vi) con-
solidação e ampliação das entidades representativas dos agricultores agora
segmentados por áreas (produção, comercialização, crédito etc.);e (vii) a
ampliação da presença da ATER de redes longas seja nas comunidades de
agricultoresseja atuando diretamente nas propriedades rurais.
Estes diferentes modos de articulação dos agricultores com as polí-
ticas públicas, com os movimentos sociais e com o mercado apontam, na
nossa visão, para um processo heterogêneo de transição nas relações de
produção, consumo bem como nas organizações políticas dos agricultores
onde a mediação/representação/tradução do deverá ser repensada.

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Políticas territoriais e questão agrária:
da teoria à intervenção

Eliane Tomiasi Paulino


Universidade Estadual de Londrina | eliane.tomiasi@uel.br

Introdução
Esse texto busca estabelecer uma correlação entre o pensamento que se
constrói no âmbito da produção científica e suas implicações no plano das
ações concretas. Para tanto, parte dos conceitos de campo e de rural para
refletir sobre políticas territoriais, tendo como recorte o caso brasileiro.
A fim de fazer as devidas amarrações, parte-se de um debate sobre o
sentido do método na produção do conhecimento para, a partir daí, refle-
tir sobre pares ambíguos que culminam em interpretações sobre a questão
agrária e, por conseguinte, em políticas públicas frágeis, senão inexisten-
tes, no tocante a uma variável que lhe é cara: o monopólio fundiário.
Sendo assim, evoca-se apontamentos de duas ordens: primeiro, os
de caráter formal, que instituem como limitantes ao progresso as delimita-
ções entre o rural e urbano utilizadas como referência para as políticas de
gestão territorial e, em segundo lugar, os estruturais, que vislumbram nos
pactos de classe os bloqueios essenciais ao desenvolvimento.
Nessa ordem, procura-se desconstruir argumentos sobre o desenvol-
vimento rural pautados na premissa de que a agricultura de pequena es-
cala é inviável no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas,
por ser supostamente incapaz de gerar renda aos que nela trabalham. Esse
entendimento é convergente à distorção necessária para manter intocada

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

a grande propriedade, que segue privilegiada por políticas públicas, sem a


devida resposta em termos de ocupação produtiva da terra e da força de
trabalho disponível.
Os conceitos de terra de trabalho e de terra de negócios são resga-
tados para construir uma linha interpretativa que se opõe às premissas de
superação da pobreza via inserção competitiva no mercado, pois se enten-
de que as mesmas reafirmam a manutenção das assimetrias de classes, as
quais reverberam em produções territoriais repulsivas ao desenvolvimento,
ora entendido como socialmente includente e ambientalmente compatível.

O campo e o rural em uma perspectiva conceitual e de método


Arranjos territoriais não são casualidades, mas desdobramentos de opções
que definem os termos do intercâmbio entre seres humanos e base mate-
rial na qual subsistem e da qual não podem prescindir. Por sua vez, esses
termos possuem vinculação estrita com as relações de poder que afloram
na disputa por condições de existência, e que direta ou indiretamente di-
zem respeito à terra, matriz de todos os bens, convertidos ou não em mer-
cadorias, a depender do circuito no qual são extraídos, transformados e
consumidos.
No interior da lógica hegemônica, a capitalista, a propriedade priva-
da é um mediador primordial, seja no campo, seja na cidade, porque para
além dos alimentos e matérias primas é o substrato inclusive dos elemen-
tos virtuais, que não possuem existência descolada de uma base material
que os provê ou os justifica.
Os termos em que se dão os acessos e interdições podem suscitar
questões, aqui entendidas como problemáticas cujas lacunas despertam
a atenção coletiva e agregam entendimentos, posicionamentos e interven-
ções das mais diversas. A questão agrária brasileira é um desses exemplos,
razão pela qual a ela nos deteremos, começando por um debate sobre o
campo e o rural, o qual extrapola limites territoriais e compreende termi-
nologias, conceitos e suas vinculações às representações que não são e não
poderiam ser neutras, porque a sociedade não o é.
Se formos ao Houaiss (2007), teremos a seguinte definição para cam-
po: “região além dos limites das cidades e longe do litoral, na qual se prati-
cam, em maior ou menor escala, atividades agrícolas e pecuárias ou onde
estão situadas pequenas cidades utilizadas para recreio e férias”. Já o rural
recebe a seguinte definição: “relativo a ou próprio do campo; situado no
campo; campestre, agrícola, rústico”. Nesses termos, teríamos o rural como
caracterização do campo que, por sua vez, seria o que está em oposição à
cidade como espaço de aglomeração e utilização produtiva específica.
Tais definições podem ser tomadas como ponto de partida para pen-
sarmos nos contornos teóricos dessa problemática, pois remetem a uma

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Eliane Tomiasi Paulino

dada representação geográfica, que é a do domínio comum, sendo nossa


tarefa buscar uma conceituação prenhe da geograficidade que essa escala
de análise comporta.
Entretanto, não nos parece oportuno fazê-lo sem antes adentrar
uma breve reflexão sobre os paradigmas que norteiam a produção do co-
nhecimento, até para não reproduzir o mito da verdade científica. Como se
sabe, trata-se de uma herança cara à ciência, de um modo geral, e à Geo­
grafia em particular, que compactuou com a naturalização dos processos
sociais por meio da orientação positivista, em um tributo à cientificidade
que não resiste a qualquer prova.
Somando aos profusos e profícuos debates em torno da necessidade
de conciliação com um estatuto filosófico-epistemológico claro, resta-nos
assinalar, de antemão, a rejeição ao princípio de verdade que se sustenta
nos pressupostos cartesianos, em que haveria um único método, o cientí-
fico, porque ancorado na prevalência do objeto sobre o sujeito do conheci-
mento, como elucidou Sposito (2004, p. 34).
De acordo com esse viés teórico-metodológico, a realidade falaria
por si, restando-nos interpretá-la corretamente, daí o princípio da objeti-
vidade que está na raiz das dualidades que caracterizam o conhecimento.
Segundo Haesbaert (1990), tais dualidades revelam duas questões funda-
mentais, uma de caráter ontológico, na qual o embate se dá entre materia-
lismo e idealismo e outra de caráter epistemológico, que nasce com a ciên-
cia moderna, e que opõe sujeito e objeto do conhecimento.
A interpretação de mundo calcada na dicotomia hierarquizante en-
tre sujeito e objeto, como se houvesse a prevalência de um sobre o outro no
processo do conhecimento, leva Lefebvre (1979) a advertir sobre a existên-
cia de uma base metafísica na ciência moderna manifestada na abordagem
dicotomizadora da realidade, a qual se coloca como barreira à identifica-
ção da intercomplementaridade e das interrelações que a compõem.
Isso permite inferir que as políticas territoriais para o campo ma-
nifestam entendimentos sobre a questão agrária delineados pelo método.
Nesse contexto, um caminho fácil seria concordar com Descartes, para
quem não só havia um único método, o científico, como por meio dele
chegar-se-ia, com facilidade, ao conhecimento verdadeiro.
Por método, entendo as regras certas e fáceis, graças às quais todos os que
as observam exatamente iguais jamais tomarão como verdadeiro aquilo que
é falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis, ao conhecimento ver-
dadeiro [...] (apud SPOSITO, 2004, p. 25).

Todavia, é forçoso reconhecer que método como receita não existe,


depreendendo-se que a afirmação de Descartes se inscreve em uma pers-
pectiva derivada de sua inserção no contexto de seu tempo, se assim con-
cordarmos com Marx, para quem as condições materiais de existência de-

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

terminam a consciência. Coerente com essa tese, Santos (1996) elucida o


sentido do método.
[...] a questão do método é fundamental porque se trata da construção de
um sistema intelectual que permite, analiticamente, abordar uma realidade,
a partir de um ponto de vista, não sendo isso um dado a priori, mas uma
construção, no sentido de que a realidade social é intelectualmente constru-
ída. (apud SPOSITO, 2004, p. 24)
Assim, o conhecimento sistematizado, o único a ter status de cientí-
fico, resulta do acúmulo de saberes socialmente produzidos, tratando-se,
portanto, de patrimônio comum da humanidade. Contudo, a sua sistemati-
zação seguiu o curso das sociedades mergulhadas em contradições incon-
ciliáveis, porque divididas em classes, divisão essa que precede a ciência
moderna, já que a divisão entre trabalho intelectual e trabalho mecânico
se insinuou nos primórdios da organização em sociedade. Isso se deu para-
lelamente ao alcance de um arcabouço técnico capaz de gerar excedentes,
momento em que alguns puderam se desincumbir da tarefa de produzir,
para si próprios, alimento e abrigo, para dedicar-se, entre outras coisas, à
construção de respostas plausíveis às indagações comuns à época.
Eis a razão pela qual a verdade científica está mais para crença do
que para fato, dada a sua validação em contextos de completa assimetria
social e que, em muitos casos, dependem da própria ciência para legitimá-
la ou, pior ainda, para aprofundá-la.
[...] a verdade do conhecimento aparece como prática teórica, que tem na
posição de classe o parâmetro do encontro do significado da teoria prática
que, ao orientar a ação, mostra-se como prática teórica. Por isso, a verdade
é uma verdade de classe, que varia no tempo e no espaço de sua realização
como futuro socialmente desejado. (SILVA, 1986, p. 30)
A compreensão da realidade, portanto, é orientada por conhecimen-
tos acionados a partir de um viés metodológico, dentre outros possíveis,
daí a diversidade que, para além de teórica, materializa-se em intervenções
que vão adquirindo uma ordenação própria, coerente com o arcabouço po-
lítico, filosófico e ideológico que as parametriza.
No que tange às políticas de ordenamento territorial, mais preci-
samente as políticas agrárias, são conceitos como campo e rural que pro-
movem essa mediação, embora seu alcance seja incompleto ao não se in-
vocar aquilo que os distingue, por correlação para alguns, por oposição
para outros.
À distinção entre a cidade e o campo vinculam-se as oposições destinadas a
se desenvolverem: trabalho material e trabalho intelectual, produção e co-
mércio, agricultura e indústria. Oposições inicialmente complementares,
virtualmente contraditórias, depois conflituosas. Ao campo correspondem
formas de propriedade fundiária [...]à cidade correspondem outras formas
[...]. (LEFEBVRE, 1991, p. 41)

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Eliane Tomiasi Paulino

Para além da diferenciação campo-cidade, Lefebrve invoca a dimen-


são forma-conteúdo, como enfatizou Spósito (2006), que seria expressa
respectivamente nos conceitos de rural e de urbano, cuja complexidade se
revela em interpretações divergentes e, por conseguinte, em intervenções
territoriais igualmente díspares.
Abramovay (2000), ao ocupar-se da problemática, questiona a deli-
mitação entre rural e urbano no Brasil e, para tanto, se detém nos critérios
de mensuração e classificação adotados por diversos países, bem como os
elementos que os instituem.
Um deles refere-se à proporção da força de trabalho ocupada na
agricultura, citando-se como exemplo Israel, em que são classificadas
como rurais as localidades em que pelo menos dois terços dos chefes de fa-
mília estão ocupados em atividades agrícolas. Outro exemplo complemen-
tar é o do Chile, onde são rurais as localidades com até 1.500 habitantes,
desde que pelos menos a metade deles trabalhem na agricultura. (ABRA-
MOVAY, 2000, p. 4)
Outro critério elencado pelo autor (2000, p. 5) é o da concentração
populacional em habitações contíguas, sendo citados os casos de Portugal,
Espanha, Itália e Grécia, onde são rurais as localidades com menos de 10
mil habitantes, desde que distantes de centros metropolitanos. Segundo o
autor, na América Latina esse também é o critério mais comum, variando
o limite populacionalentre 1.000 e 2.500 habitantes.
Abramovay salienta que tais classificações são limitantes, por en-
tender que impedem, por exemplo, o estabelecimento de um critério inter-
nacional de mensuração da ruralidade. Contudo, as considera menos ina-
dequadas que as baseadas no critério administrativo, de incumbência do
poder público. No Brasil, essa é a delimitação entre urbano e rural oficial-
mente aceita, sendo tarefa dos municípios arbitrá-la. Isso porque é nessa
esfera político-administrativa que se constroem os planos diretores, bem
como são estabelecidos os respectivos perímetros urbanos das sedes e sub-
sedes municipais.
O problema, de acordo com o autor, é que além de prevalecer a con-
veniência arrecadatória dos municípios, basta a disponibilização de alguns
serviços públicos em áreas com aglomeração populacional para considerá-
las urbanas, o que faz com que o campo seja caracterizado pelo seu oposto,
ou como salienta o autor, pelas carências de diferentes ordens.
Há um vício de raciocínio na maneira como se definem as áreas rurais no
Brasil, que contribui decisivamente para que sejam assimiladas automatica-
mente a atraso, carência de serviços e falta de cidadania. A definição do IBGE
[...] é de natureza residual: as áreas rurais são aquelas que se encontram fora
dos limites das cidades, cujo estabelecimento é prerrogativa das prefeituras
municipais. O acesso a infraestruturas e serviços básicos e um mínimo de
adensamento são suficientes para que a população se torne “urbana”. Com

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

isso, o meio rural corresponde aos remanescentes ainda não atingidos pelas
cidades e sua emancipação social passa a ser vista – de maneira distorcida –
como “urbanização do campo”. (ABRAMOVAY, 2000, p. 2)
Em princípio, o critério administrativo faz com que sedes de distrito
sejam consideradas espaços urbanos, ainda que tenham escassa concen-
tração de habitações e serviços. Para Abramovay (2000, p. 4), isso explica
sua parca aceitação na atualidade, inclusive na América Latina, pois além
do Brasil, apenas a Guatemala, El Salvador, Equador e República Domini-
cana o adotam.
Salienta o autor que as distorções oriundas desse critério de delimi-
tação tornam-se reais à medida que as conveniências fiscais dos municí-
pios prevalecem sobre as condições geográficas e socioculturais que parti-
cularizam rural e urbano.
Sabendo-se que sobre áreas urbanas recaem o Imposto Predial Ter-
ritorial Urbano (IPTU), enquanto que as áreas rurais são tributadas pelo
Imposto Territorial Rural (ITR), os argumentos de Abramovay procedem.
Isso porque o IPTU é um tributo municipal, enquanto o ITR é um tributo
federal, embora a Lei 11.250/2005 tenha franqueado a arrecadação e a des-
tinação pelos próprios municípios, desde que sejam celebrados os devidos
convênios com a União.
Com essa Lei, a tributação sobre a propriedade rural poderá ganhar
maior efetividade, o que até então era irrelevante, pois apesar do valor irri-
sório do imposto, concorria o desinteresse dos municípios em arrecadá-lo,
dada a necessidade de repassar 40% à União.
Com o direito ao repasseintegral, aumentam as chances de fiscali-
zação e execução dos inadimplentes, o que não muda os termos da con-
descendência tributária em relação à propriedade rural. De acordo com o
Ministério da Fazenda (2009), apenas 0,07 das arrecadações federais em
2008 foram provenientes do ITR, ao passo que nesse mesmo ano a taxa-
ção sobre os rendimentos do trabalho representou 7,53% das receitas, ou
108 vezes mais.
Caso o parâmetro seja exclusivamente a propriedade da terra ru-
ral ou urbana, os respectivos tributos são absolutamente discrepantes.
Para se ter uma ideia, em 2008 o montante arrecadado pela prefeitura
municipal de São Paulo com IPTU foi 6,2 vezes maior que o montante
correspondente ao ITR do país inteiro. De acordo com Sorano (2009),
foram arrecadados R$ 2,913 bilhões em IPTU pela prefeitura paulista-
na, enquanto a União e os municípios arrecadaram conjuntamente R$
470 milhões de ITR. Outro elemento de comparação pode ser a cidade
de Curitiba, cujo valor lançado em 2008, de acordo com a Prefeitura Mu-
nicipal, foi de 379 milhões de reais, ou seja, essa única cidade assegura
uma tributação territorial próxima a 81% do correspondente ao campo
brasileiro em sua totalidade.

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Desconsiderando tamanho, localização, valor das propriedades e to-


mando como referência apenas o número delas, não deixa de ser oportuno
considerar que em 2008 foram tributados cerca de 4,8 milhões de imóveis
rurais, de acordo com o Ministério da Fazenda (2009). Esse montante re-
vela apenas uma variável, a condescendência tributária para com a pro-
priedade rural, pois concorre ainda a inadimplência associada à grande
propriedade, fato já apontado por Oliveira (2002).
O problema não está nos números, mas na distribuição da terra en-
tre elas, dado que a concentração fundiária é, sem sombra de dúvida, o
principal entrave ao desenvolvimento no campo, para ficar somente nele.
Além de algumas propriedades controlarem áreas gigantescas, muitas não
são legítimas, como é o caso da Fazenda Curuá, localizada no Pará, com
4,7 milhões de hectares. Essa fazenda é, por ora, o maior grilo oficialmente
reconhecido no Brasil, pois desde março de 2007 há uma sentença judicial
de desocupação da área, declarada como terra pública, mas sem previsão
de execução pelo Estado brasileiro, menos por inoperância do que por ra-
zões que nem sequer podem ser caracterizadas como inconfessáveis, dada
a omissão escancarada dos órgãos responsáveis pela fiscalização e contro-
le do patrimônio fundiário público.
Considerando a agilidade de um Estado que consegue despejar cam-
poneses, inclusive de acampamentos em beiras de estrada, é evidente que
situações como a da fazenda mencionada se inscrevem em um jogo de for-
ças que não permite um olhar desavisado sobre o campo, porque remete a
um modelo de capitalismo que não possui similar na contemporaneidade.
Ante essa situação concreta de controle sobre a terra, os debates em torno
da definição de ruralidade e de delimitação entre campo e cidade parecem
irrelevantes, embora não o sejam.
Para Abramovay (2000, p. 1), a delimitação indevida do rural no
Brasil está associada a outro problema, a compreensão de que o campo
seria o reduto da pobreza e do atraso. Em oposição a ela, destaca que al-
guns dos municípios com maior Índice de Desenvolvimento Humano são
eminentemente rurais. Para tanto, recorre inclusive aos dados da Organi-
zação de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo a
qual algumas das regiões mais dinâmicas dos países que a compõem são
rurais. Aliás, é com base nesse argumento que Veiga (2003) tece as “cidades
imaginárias”, como se verá posteriormente.
Abramovay relata que na literatura internacional três aspectos básicos
têm sido a referência para o enquadramento das áreas rurais: a relação com a
natureza, a importância das áreas não densamente povoadas e a dependência
para com o urbano. Tais referências resultam na advertência de que rurali-
dade é um conceito de natureza territorial e não de natureza setorial, tornan-
do improcedente a distinção do campo pelo seu caráter agrícola, do mesmo
modo que não se poderia definir a cidade pelo seu caráter industrial.

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

Essa compreensão coroa a tese de que o desenvolvimento das áreas


rurais obedeceria a um caminho inversamente proporcional ao das ativi-
dades agrícolas, ou seja, o sustentáculo do desenvolvimento teria se deslo-
cado para as atividades não agrícolas. Eis a espinha dorsal do projeto “rur-
bano”, que vislumbra na agricultura de tempo parcial a alternativa para a
viabilidade do campo, ao mesmo tempo que desconsidera, como possibili-
dade, a existência camponesa.
A supressão conceitual, com camponeses convertidos em agriculto-
res familiares, encontra aí sentido. Como partícipes de relações de produ-
ção em que a sujeição do trabalho supostamente torna-se primaz, ganha
sentido a tese de que esses sujeitos sociais estão condenados ao processo
de diferenciação social, convertendo-se assim em fração da classe traba-
lhadora, já que nos termos da eficiência produtiva, muitos sucumbiriam.
Reafirma-se, assim, o pressuposto clássico de que capitalismo no campo e
existência camponesa são mutuamente excludentes.
É por essa razão que, a nosso ver, não é satisfatório o caminho para
a conceituação do agrário e do rural a partir das tentativas de mensuração
das ruralidades, em que prevalece a busca de indicadores sobre as dinâ-
micas das regiões rurais em suas relações com os núcleos urbanos que as
polarizam.
Igual limitação pode ser observada na leitura crítica às delimitações
de ordem político-administrativa que a mesma encerra, merecendo des-
taque a obra “cidades imaginárias” (VEIGA, 2003), em perfeita sincronia
com os pressupostos destacados A tese central que a perpassa é de que há
um erro grosseiro na delimitação do que seria urbano e o que seria rural no
Brasil, em virtude de uma regra de 1938 que identifica como urbana toda e
qualquer sede de município, incluindo-se as aglomerações distritais.
De um total de 5.507 sedes de município existentes em 2000, havia 1.176
com menos de 2 mil habitantes, 3.887 com menos de 10 mil e 4.642 com me-
nos de 20 mil, todas com estatuto legal de cidade idêntico ao que é atribuído
aos inconfundíveis núcleos que formam as regiões metropolitanas, ou que
constituem evidentes centros urbanos regionais. E todas as pessoas que re-
sidem em sedes, inclusive com ínfimas sedes distritais, são oficialmente con-
tadas como urbanas, alimentando esse disparate segundo o qual o grau de
urbanização do Brasil teria atingido 81,2% em 2000. (VEIGA, 2003, p. 32)
Diante do que classifica “delírios” alimentados por tais distorções,
Veiga propõe, além do critério populacional, a análise da densidade popu-
lacional e da localização dos respectivos municípios para excluir do que ele
denomina Brasil inequivocamente urbano os municípios de pequeno e mé-
dio porte. Os primeiros seriam aqueles com até 50 mil habitantes e menos
de 80 habitantes por km² e, os segundos, os que abrigam entre 50 e 100 mil
habitantes ou apresentam densidade populacional superior a 80 habitan-
tes por km² e menos de 50 mil habitantes.

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Diante disso, Veiga (2003, p. 34) conclui que


[...] o Brasil essencialmente rural é formado por 80% dos municípios, nos
quais residem 30% dos habitantes. Ao contrário da absurda regra em vigor
– criada no período mais totalitário do Estado Novo pelo Decreto-lei 311/38
– esta tipologia permite entender que só existem cidades nos 455 municípios
do Brasil urbano. As sedes dos 4.485 municípios do Brasil rural são vilarejos
e as sedes dos 567 municípios intermédios são vilas, das quais apenas uma
parte se transformará em novas cidades.
A rejeição a essa definição do urbano e consequentemente do rural
faz com que o autor, tal como Abramovay (2000), se oponha à tese de urba-
nização do campo, pois esta nasce no seio da compreensão de cidade como
locus de equipamentos e serviços públicos essenciais em áreas com con-
centração populacional, em oposição ao campo, desprovido dos mesmos.
Nessa linha, eventuais expansões de equipamentos e serviços públicos res-
ponderiam pela conversão do rural em urbano.
Mesmo rechaçando a ideia de urbanização do campo, o autor é em-
balado pelo pressuposto de que a estrutura organizacional da economia
rural tornou-se semelhante à da economia urbana. Isso implica passar ao
largo de especificidades, particularmente no que refere-se à dinâmica em-
preendida pelo campesinato em sua relação singular com a terra, com os
meios de produção, com a comunidade a qual pertence e, por fim, com o
mercado, cujo elo o subordina aos atores hegemônicos da sociedade.
Essa compreensão do rural como reduto de estrutura produtiva co-
mum ao urbano remete à compreensão marxista ortodoxa de que o desen-
volvimento do capitalismo na agricultura obedeceria aos mesmos princí-
pios da indústria, o que confere pleno sentido à supressão conceitual do
campesinato.
Concretamente, a questão agrária no marxismo ortodoxo atribui um senti-
do histórico e alguns condicionamentos estruturais ao desenvolvimento do
capitalismo de tal forma que o campesinato se converte em resíduo anacrô-
nico condenado inelutavelmente a desaparecer ante o inexorável desenvolvi-
mento das forças produtivas. Não poderia ser de outra maneira na medida
em que o capitalismo fosse considerado um estágio superior da racionali-
dade possível e, ainda desejável, no avanço irrefreável das forças produtivas
e estas seguem sendo consideradas como o demiurgo que finalmente con-
duziria os povos a graus superiores de bem-estar [...]. (GUSMÃN; MOLINA,
2005, p. 52, 53)
Como visto, esse marco teórico converte camponeses em agricul-
tores familiares, necessariamente pluriativos e multifuncionais, o que ex-
prime uma leitura dual da realidade nos termos apontados por Lefebvre
(apud MARTINS, 1986). Para ele, a crítica à análise dualista do urbano-
rural não pode prescindir de explicações baseadas na premissa de que
o conhecimento é produto de uma sociedade inserida em um modo de

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

produção que, em última análise, influi decisivamente nos rumos da pro-


dução científica. A visão dualista, assim, caracterizaria uma fundamen-
tação filosófica do capitalismo, em que se faz necessário o ocultamento
de muitas contradições que, nesse caso, diz respeito à apropriação da
renda da terra.

O ordenamento territorial a partir da tríade:


terra, trabalho e capital

Os liames considerados os mais adequados para o entendimento do cam-


po e do rural contemplam os apontamentos de Marx (1974), para o qual
o modo capitalista de produção está fundado em três pilares estruturais,
respectivamente a terra, o trabalho e o capital.
[...] o método que se foi definindo ao longo da obra de Marx, que combina
os momentos do método de investigação e do método de explicação; e que
culmina com a análise inacabada sobre as classes sociais, isto é, sobre a pri-
meira tríade: trabalho, terra e capital, ou seja, salário, renda e lucro. O pen-
samento de Marx não era binário, como o fez mais tarde o marxismo vulgar,
e sim triádico. (MARTINS, 1996, p. 14)
Contudo, a ânsia pela dissolução das amarras ao socialismo, na qual
supostamente os camponeses eram determinantes (MITRANY, 1957) con-
tribuiu para a amputação mencionada. Nesse sentido, os apontamentos de
Gusmãn e Molina (2005, p. 52), são esclarecedores:
Deve-se à Plekanov e outros intelectuais revolucionários [...] a elaboração
do esquema teórico central [...] ao atribuir ao capitalismo um ‘trabalho
histórico progressista’ [...]. É essa interpretação que, ao contrário da inten-
ção do próprio Marx ao escrever tal trabalho [o primeiro tomo de O capi-
tal], eleva o processo histórico europeu à teoria geral. Não seria, portanto,
o apoio mútuo [...] o elemento-chave na evolução do processo histórico,
mas sim os avanços tecnológicos materiais, o desenvolvimento das forças
produtivas [...].
Talvez esteja aí o sentido da reafirmação do pressuposto de que o
tempo em que o campo era locus de atividades agropecuárias strictu sensu
estaria superado, sendo exatamente as atividades secundárias e terciárias
as que mais oportunizariam ocupação e renda.
A indicação de que entre apontamentos teóricos e intervenções prá-
ticas caminham lado a lado pode ser colhida em fato recente na política
do Estado brasileiro. O respeitado estudioso da questão agrária e articula-
dor do programa agrário do então candidato José Inácio Lula da Silva, no
caso José Graziano da Silva, ao ocupar o posto de ministro de Estado com
a eleição do primeiro à presidência da república, ao invés de propor am-
pla política de reforma agrária, como seria de se esperar em virtude de sua
própria trajetória, limitou-se a implantar o Programa “fome zero”.

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Com isso, ratificou a tese de que não convém adotar como políti-
ca estratégica de desenvolvimento o reordenamento fundiário, entendido
como inviável em si mesmo, pelo imperativo de escala que supostamen-
te viabilizaria somente a grande propriedade, devidamente bancada por
esse governo. Daí a opção de socorrer os miseráveis com a concessão de
um mínimo vital, sem qualquer programa paralelo de emancipação econô-
mica e inserção cidadã, coisa que o acesso à terra, via assentamentos por
exemplo, comprovadamente proporciona, apesar das persistentes limita-
ções monetárias e técnicas que, aliás, emanam do próprio projeto territo-
rial do Estado.
O aporte financeiro recorrente o confirma, a exemplo da safra
2009/10, em que o governo federal liberou R$ 92,5 bilhões à agricultura
empresarial e R$ 15 bilhões à agricultura camponesa. Apesar de envol-
ver aproximadamente 4,5 milhões de propriedades, a última ficou com
16% dos recursos, embora responda por 56,8% do valor total gerado pela
produção agropecuária, 86,6% empregos no campo (OLIVEIRA, 2003,
p. 136) e pela produção de 70% dos alimentos da cesta interna de con-
sumo, conforme estimativas do próprio Ministério do Desenvolvimento
Agrário (2009).
É indubitável que referenciais “científicos” e intervenções concre-
tas são mutuamente condicionantes. Em suma, o ordenamento territorial,
que emana diretamente das políticas públicas, possui profunda articula-
ção com vieses interpretativos da realidade.

O debate público sobre o meio rural brasileiro tem sido marcado por um
combate entre modernos e anti-modernos. Os primeiros são os arautos do
agrobusiness, incomodados com a “miopia” de uma sociedade que parece
ter sido seduzida pela bandeira da reforma agrária, justamente quando a
tecnologia tende a tornar a terra um mero “fetiche”. Os outros são os sim-
patizantes do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –, que
pregam um retorno ao passado ao pretenderem acabar com a “exclusão”
distribuindo pequenos lotes a milhões de miseráveis que perambulam sem
destino pelo país. [...]Pode ser que todos estejam fazendo as perguntas erra-
das, parados diante de falsos impasses. [...] As ações mais importantes não
têm o apelo publicitário que dá visibilidade ao MST. Mas são as que mais
estão contribuindo para a ampliação das oportunidades de geração de renda
no meio rural, desafio central de qualquer projeto de redução da pobreza.
Enquanto modernos, antimodernos e pós-modernos pautam os meios de
comunicação, uma imensa legião de sindicalistas, ajudada por um punhado
de ONGs estão trabalhando em silêncio [...] para encontrar novas formas de
ocupação rural em ramos industriais ou terciários [...]. Os verdadeiros pro-
tagonistas de novos padrões de desenvolvimento regional – endógenos e pro-
missores – estão envolvidos em uma pesquisa que já indica o quanto é ver-
dadeira a tese de Latour. Eles continuam desconhecidos exatamente porque
jamais fomos modernos. (VEIGA, 2003, p. 145-148. Grifo do autor)

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

A via apontada por Veiga para o desenvolvimento rural seria o rom-


pimento com a lógica que privilegia o que ele denomina agricultura pa-
tronal e a valorização da agricultura familiar. Para o autor, bases pluria-
tivas poderiam resultar em maior diversificação das economias locais,
posto que a especialização produtiva, típica da agricultura patronal, seria
o principal fator de expulsão da força de trabalho do campo. Embora tais
apontamentos sejam convergentes com leituras agrárias anti conservado-
ras, eles são coerentes com uma concepção de desenvolvimento que tem
como parâmetro a ordem liberal na qual o mercado se mantém como or-
denador primaz.
Trata-se de uma abordagem fundada na lógica formal, cujo cons-
tructo teórico não se atém ao fato de que a pobreza no campo, e sua rea-
locação nas cidades, têm como raiz uma questão estrutural que remete à
contradição essencial da sociedade brasileira, a concentração fundiária.
Passar ao largo desse fato tem sido um grande trunfo para as classes hege-
mônicas, pois o monopólio fundiário, do qual decorrem os limites para o
desenvolvimento nos termos apontados pelo autor, segue intocado por mo-
bilização insuficiente para extirpá-lo.
Ainda que a metodologia apontada por Veiga (2003) pareça adequa-
da para a definição das fronteiras entre o campo e a cidade, cremos tratar-
se de uma questão secundária, mesmo porque a diferença entre população
urbana e rural entre a classificação oficial e a proposta é de pouco mais de
10%, o que torna questionável a tese das cidades imaginárias.
Ademais, ao projetar como problema central os parâmetros supos-
tamente insuficientes para orientar as políticas públicas em favor do de-
senvolvimento, há o pressuposto da incompetência dos agentes públicos
na gestão do território, daí a convicção derivada da aquiescência com o
antropologo francês Bruno Latour, de que “jamais fomos modernos” (VEI-
GA, 2003, p. 148).
Mesmo que inadvertidamente, essa compreensão reforça o colonia-
lismo que atinge cultural e intelectualmente este país, cujo povo há muito é
levado a crer que existem modelos a ser seguidos, os quais invariavelmen-
te nos chegam do além mar, reforçando a tese de Oliveira (1982), de nossa
origem como arquipélago, de costas para nós mesmos, porque sedentos da
modernização redentora que emana do centro do sistema.
A crença de que a gestão do território é uma questão de ordem téc-
nica, e que quanto mais eficiente, melhores os resultados para a socieda-
de, é que tem legitimado intervenções externas, baseadas nas receitas que
nos são impostas inclusive por instituições internacionais porque, em tese,
precisaríamos aprender como governar. Nesse contexto, a ideia do pro-
gresso material da sociedade está atrelada ao pressuposto da moderniza-
ção das estratégias de governança ou, em outras palavras, das técnicas de
administração pública.

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O parâmetro subjacente e rigorosamente questionado por Chang


(2004) é que o desenvolvimento dos países centrais resulta da capacidade
que tiveram em dominar tais estratégias, o que remeteria ao princípio da
eficiência técnica na ordenação do território e na distribuição da riqueza
socialmente produzida.
No entanto, as desigualdades entre os Estados-Nações modernos
não podem ser analisadas por outro prisma senão o da divisão territorial
do trabalho que, por sua vez, deriva dos processos de acumulação primiti-
va do capital e dos mecanismos de trocas desiguais.
Em outras palavras, não se pode esquecer que os saques praticados
desde o início da colonização foram decisivos para os países centrais acu-
mularem a riqueza da qual a expansão tecnológica não pode prescindir
e que, por sua vez, está na raiz das assimetrias profundas dos preços dos
bens primários e produtos manufaturados.
Os termos das trocas globais na atualidade são a melhor expressão
do gradiente de forças correlato à geopolítica contemporânea e as commo-
dities são o melhor exemplo, dado o preço ínfimo em relação a produtos
manufaturados e serviços fundados em incorporação de tecnologia, cujo
controle permanece no centro do sistema.
Por sua vez, não é possível restringir esse debate a uma suposta di-
visão territorialmente delimitada, como se de um lado estivessem países
e povos ricos e, de outro, países e povos pobres. Trata-se, sim, de analisar
tais desníveis pelo viés das classes sociais, pois do mesmo modo que há
ricos por aqui, há pobres por lá, embora em proporções diferentes. É isso
que não autoriza uma divisão simplista do mundo e tampouco uma visão
ingênua do Estado, tomando-o como ente acima das classes, supostamente
imbuído da busca do bem comum. Aliás, essa é a grande lacuna, para não
dizer empobrecimento do conceito de território, quando tomado como si-
nônimo de Estado-Nação, herança Ratzeliana que, não raro, segue repro-
duzida por burocratas e teóricos.
Em outras palavras, Estado neutro é uma ficção ao gosto das classes
dominantes, porque a apropriação desigual da riqueza requer o mínimo
de consenso e esse se constrói no plano ideológico, transformando conve­
niências de classe em verdade para toda a sociedade. É por isso que asso-
ciar o Estado à busca do bem comumé ignorar sua profunda vinculação
com os interesses hegemônicos de um dado momento histórico, em torno
dos quais emergem projetos de gestão pública que não são meramente eco-
nômicos, mas sim territoriais, porque impõem determinadas correlações
de forças que darão o tom das assimetrias.
Daí concordarmos com Carlos (2003), quando afirma que a análise
de Veiga (2003) toma desenvolvimento e crescimento econômico como si-
nônimos, ignorando as contradições profundas que envolvem as relações
cidade-campo no Brasil.

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

O que o Autor ignora é que estamos diante da produção do espaço pela so-
ciedade e sob a égide do Estado esta produção ganha um caráter estratégico.
O Estado regulador impõe as relações de produção enquanto dominação do
espaço, imbricando espaços dominados/dominantes para assegurar a repro-
dução da sociedade. A busca de coesão/coerência e equilíbrio baseada na
eficácia do que chama “desenvolvimento sustentável” é pura ideologia, pois
elimina conflitos e contradições. E assim a crítica ao Estado se reduz ao pro-
blema da definição administrativa da cidade e não à  sua capacidade pro-
dutiva, que se estende por todo o espaço. É ingênuo acreditar que mexendo
nas estatísticas,  redirecionam-se as políticas que vão criar a possibilidade
do crescimento; isto porque o espaço é o lugar da planificação de uma lógica
de crescimento sob a égide do Estado. (CARLOS, 2003)

Diante disso, seria oportuno lembrar o debate proposto por Andrade


(1994), quando analisa os desafios postos aos geógrafos e que remetem à
influência do positivismo e sua consequente tendência de seccionar a rea-
lidade em “gavetas”. Ao vislumbrar subdivisões e compartimentos, resgata
o sentido dos estudos agrícolas em oposição aos estudos agrários, senão
vejamos:
As preocupações sociais, integradas à problemática da estrutura agrária e
das relações de trabalho no meio rural, contribuíram para caracterizar uma
geografia agrária que se distinguiria do que se chamaria de geografia agrí-
cola ou da agricultura, onde a preocupação maior se ligava aos problemas
de produção, de mercado, de produtividade e de rentabilidade. (ANDRADE,
1994, p. 54)
A nosso ver, a dualidade agrícola-agrário está necessariamente con-
tida na forma de abordagem questionada, a qual reafirma a herança teóri-
ca de suprimir o campesinato do debate, porque o caminho para a compre-
ensão da realidade destitui as classes e institui a primazia do mercado.
É por isso que os dilemas da conceituação do rural e ou do campo
envolvem uma opção metodológica: ou se acata uma leitura apoiada em
ambiguidades ou se mergulha na busca das contradições, cujos focos ne-
cessariamente divergem.
Não se equivocara Marques (2002, p. 96), ao afirmar que o debate so-
bre o rural deve transcender a perspectiva instrumentalista, de caráter es-
tritamente econômico e setorial, que muito pouco contribui para a consoli-
dação de estratégias de desenvolvimento quando se consideram os sujeitos
que vivem no campo. Nesse sentido, há que se transcender a homogeneiza-
ção implícita, o que implica admitir que as condições de produção e de vida
dos sujeitos envolvidos com a agricultura são bastante heterogêneas.
E isso reverbera em geograficidades, em que signos de pujança e
de escassez podem se apresentar lado a lado, quando não estão sobrepos-
tos, em face da intervenção de produtores necessariamente diversos, cada
qual cultivando (ou não) a terra a seu modo. Nesse contexto, a noção am-

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plamente difundida do dinamismo econômico estritamente relacionado à


agricultura empresarial mais serve para camuflar a diversidade social e de
classes existente do que contribuir para a compreensão dos mecanismos
que concorrem para a ordenação geográfica do campo.
Com efeito, a existência de um arranjo territorial marcado pela he-
terogeneidade exige um passo além em relação aos consensos genéricos
sobre o campo e a teoria de Marx (1974) pode auxiliar nessa tarefa, pela
centralidade conferida ao princípio da contradição nos desafios de enten-
dimento da realidade.
Depreende-se, por meio dele, que diferentes arranjos territoriais no
interior dos quais florescem experiências de produção econômica e repro-
dução social vinculadas à propriedade da terra, ao invés de indicarem con-
dições independentes entre si e com os processos mais gerais, revelam uma
estreita relação com a lógica maior, a qual alimenta e, ao mesmo tempo,
é alimentada por especificidades particularizantes ou agregadoras, confe-
rindo unidade ao diverso.
Sabendo-se que o capitalismo contemporâneo se situa nos marcos
da Revolução Industrial, sendo essa delineada pelas trocas desiguais em es-
cala planetária, delas advém feições e condições particulares aos diferentes
Estados Nacionais. Por outro lado, a emergência do setor industrial como
hegemônico no processo mais geral de acumulação do capital se fez às ex-
pensas de alguns entraves ao livre arbítrio do direito de propriedade, espe-
cificamente em relação à propriedade da terra, a qual habilita seus detento-
res a cobrarem renda para que a mesma assuma seu papel produtivo.
É por isso que a vigência da propriedade privada da terra pressupõe
um ônus do qual não estão isentos os capitalistas, que precisam despender
uma parte do capital para o pagamento da renda da terra, montante esse
que poderia ser convertido em investimento produtivo. Some-se a isso o
princípio que orienta a definição geral dos salários; sabendo-se que o pa-
râmetro é a reprodução da força de trabalho, quanto mais alta for a renda
fundiária, mais caros serão os alimentos e demais matérias-primas. Com
isso, os salários deverão ser mais altos, havendo ainda a tendência de me-
nor consumo de bens intermediários, preteridos diante da premência dos
trabalhadores em satisfazer as necessidades mais imediatas.
Portanto, a propriedade privada da terra, em si destoante das con-
veniências dos capitalistas, ao se inscrever em um regime de monopólio,
torna ainda mais pesado o tributo a ser pago aos proprietários. É por essa
razão que a desconcentração fundiária constituiu-se em política basilar da
maior parte dos países industriais, como esclarecido por Martins (1994),
quando evidencia os desdobramentos da opção contrária adotada pelas
elites no Brasil.
Diante da constatação de que a propriedade privada da terra co-
bra um tributo do capital e de que o monopólio fundiário pode tornar

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

esse tributo incompatível com as taxas da acumulação capitalista, poder-


se-ia questionar o que sustenta a concentração fundiária nos níveis aqui
verificados.
Para compreender esse aparente paradoxo é preciso considerar os
apontamentos de Martins (1994) para o qual, no modelo clássico, capita-
listas e proprietários de terra ocupam posições distintas e, por isso mesmo,
conflitantes. Evidentemente, a divergência de interesses que acabou por
materializar-se em estratégias de acumulação capitaneadas pela burguesia
decorre de condições históricas próprias. Vale lembrar que a Revolução
Industrial, ancorada na extração limite da mais valia absoluta, não pode
prescindir da “Lei do Trigo”, a lei que lançou a Inglaterra na importação de
alimentos à revelia dos interesses dos proprietários de terras, para quem o
monopólio do fornecimento era a razão de sua proeminência.
Em outras palavras, se naquele momento a palavra de ordem dos
proprietários era a proteção da agricultura à concorrência “desleal” dos
produtos de além-mar, convinha aos industriais alimentos baratos, condi-
ção primordial para o rebaixamento dos salários.
Naquele momento, venceram os segundos, embora a fúria dos pro-
prietários ante a deterioração das condições de extração de renda conver-
teu-se em forte pressão política contra os níveis de exploração da força de
trabalho perpetrada pelos industriais. Isso resultou na gradativa diminui-
ção da jornada de trabalho, bem como em apreciáveis conquistas traba-
lhistas.
Esses fatos não somente sepultaram a constituição de uma aliança
da burguesia nascente com os proprietários fundiários mas também foram
decisivos para a arquitetura do modelo de acumulação em bases indus-
triais, em que o controle sobre os níveis de auferibilidade da renda da terra
tornara-se imperativo.
No Brasil, ao contrário, a implantação do modelo urbano-industrial
foi uma empreitada em que a participação da oligarquia agrária, classe
fortalecida economicamente em virtude da apropriação da renda da terra,
foi primordial.
Porquanto, houve um rompimento com a via capitalista clássica, na
qual o desenvolvimento das forças produtivas se apoia na distribuição da
terra com vistas à minimização da pressão da renda fundiária sobre a fra-
ção da mais-valia a ser apropriada pela burguesia.
Daí a evidência do caráter sui generis do capitalismo brasileiro, cujos
mecanismos de acumulação estão fortemente articulados à apropriação da
renda da terra. São as diversas possibilidades de apropriação dessa renda
que se refletem nos processos de territorialização do capital e de monopo-
lização do território pelo capital, destacadas por Oliveira (1986), as quais
são primordiais para compreender o campo, transcendendo as ambiguida-
des conceituais.

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Eliane Tomiasi Paulino

Apropriação privada da terra em seus distintos conteúdos


Para Oliveira (1986), o conceito de territorialização do capital remete às
experiências produtivas em que o circuito se fecha na extração da mais-
valia, além evidentemente da extração da renda da terra.
Por outro lado, o conceito de monopolização do território pelo ca-
pital por ele proposto remete às unidades camponesas, as quais operam a
partir de lógica distinta das primeiras, particularmente em relação ao ele-
mento capaz de criar valor: o trabalho.
Com efeito, entre os camponeses o controle da propriedade está ar-
ticulado à lógica da terra de trabalho, sendo essa o instrumento para a re-
produção da família, por meio do concurso de seus próprios membros. É
isso que lhe confere um caráter distinto em relação às explorações em que
o capital está territorializado. Portanto, no campo operam duas lógicas
opostas: terra para o trabalho e terra para a exploração do trabalho.
No cerne desse desencontro está a explicação para a permanência
contraditória da classe camponesa em um modo de produção essencial-
mente marcado pela expropriação dos meios de produção.Oliveira (1986),
ao reportar-se à pertinência do conceito de camponês, o faz destacando
um dos equívocos em relação à interpretação do pensamento de Marx,
particularmente no que se refere à diferença entre produção e reprodução
do capital.
Para Marx, a produção do capital não pode ser capitalista; ela neces-
sariamente dar-se-á dentro do circuito M-D-M, dominado por produtores
simples de mercadorias, os quais as trocam para a obtenção do dinheiro
necessário para a compra daquelas mercadorias que não conseguem pro-
duzir por meios próprios. É essa relação que alimenta a monopolização do
território pelo capital, visto que o valor que excede as necessidades ime-
diatas da família e que está contido nessa produção pode ser apropriado
por diferentes agentes do capital, seja na esfera comercial, industrial ou
financeira.
Dentro dessa lógica, a chamada acumulação primitiva do capital
não deixou de existir, ela é um dos mecanismos indissociáveis desse modo
de produção. Como assevera Oliveira (1986), não se pode admitir que os
capitalistas reproduzam-se apenas por herança; eles devem nascer, social-
mente falando, todos os dias, e isso se concretiza via apropriação da renda
da terra gerada nos interstícios da produção camponesa.
Ao fortalecerem-se economicamente com essa intermediação, os
capitalistas estão aptos para integrar o circuito D-M-D’, no qual o dinhei-
ro é aplicado em mercadorias que, ao serem trocadas, possam proporcio-
nar um montante maior de dinheiro do que o originalmente aplicado. Em
outras palavras, é nessa relação que se concretiza a reprodução capitalista
do capital.

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

Sendo assim, a produção no campo condiciona e é condicionada por


mecanismos de geração de valor que alçam concreticidade na renda da ter-
ra. Compreendê-la exige, por extensão, investigar a lógica de ordenação do
território que, para além das questões relativas às delimitações, envolve os
interstícios das relações de poder emanadas das contradições entre e in-
ter classes. Esse viés metodológico, ao invés de privilegiar as delimitações
entre campo e cidade, urbano e rural, contempla uma abordagem que vai
além da perspectiva do desenvolvimento rural atrelado à noção de inserção
eficiente no mercado de trabalho, via multifuncionalidades, pluriativida-
des e estratégias afins.
Para compreender as imagens do campo e da cidade é preciso examinar os
processos sociais concretos de alienação, separação, exterioridade e abstra-
ção de modo crítico. É preciso também recuperar a história do capitalismo
rural e urbano, afirmando as experiências de relações diretas, recíprocas
e cooperativas que são descobertas e redescobertas muitas vezes sob pres-
são. Nem a cidade irá salvar o campo, nem o campo irá salvar a cidade.
(MARQUES,2002, p. 104)
Sabendo-se que no atual estágio do modo de produção, no qual são
progressivamente limitadas as possibilidades de os trabalhadores vende-
rem a única mercadoria de que dispõem, a força de trabalho, em vista do
incremento crescente decapital constante em detrimento do capital variá-
vel nos processos produtivos, qualquer estratégia de desenvolvimento rural
calcada no fomento à integração do campesinato ao mercado de trabalho,
mesmo queparcial, é inócua, senão danosa, porque incrementa o exército
industrial de reserva.
Por sua vez, não se poderá invocar o argumento de um suposto mer-
cado em expansão em face de novos nichos de mercado, como o lazer no
campo, pois consumo requer renda e enquanto não forem alteradas as
condições estruturais que fazem pender a balança em favor do capital,
não se poderá vislumbrar conquistas relevantes no âmbito do trabalho. Até
porque o imperativo da acumulação em escala ampliada, que passa neces-
sariamente pelo aumento da taxa de apropriação da mais valia, está posto,
e cada vez mais orientado para a mais valia relativa, que supõe maior pro-
dutividade do trabalho via incrementos técnicos, leia-se maior produção
com menos trabalho.
Portanto, mais do que nunca se faz necessário reafirmar a neces-
sidade de um caminho alternativo à exclusão social que, saliente-se, não
deriva de outra coisa senão dos próprios contornos da lógica produtiva
em questão. Se temos claro que no Brasil a propriedade concentrada da
terra para isso contribui, seja olhando-se pelo foco da interdição ao aces-
so (muita terra para poucos e muitos para pouca terra) ou até pelo crité-
rio em que a técnica sobrepuja as relações (a relação entre escala e oti-
mização dos meios de produção) é sobre ela que deverá recair o foco, ou

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Eliane Tomiasi Paulino

seja, a desconcentração fundiária precede a qualquer intervenção que se


pretenda inclusiva, até porque o monopólio fundiário em si depõe contra
o dinamismo econômico, porque faculta aos seus agentes a imposição de
determinados parâmetros de rentabilidade para colocar suas terras para
produzir.
No Brasil, essa variável é ubíqua, pois o estoque de terras improdu-
tivas é, de acordo com a declaração dos próprios proprietários ao INCRA,
de 120 milhões de hectares (OLIVEIRA, 2003, p. 128), o que explicita a pri-
mazia da especulação em detrimento do caráter produtivo da propriedade.
Para além desses dados, este se manifesta na forma com que o trabalho é
mobilizado, pois quando o é, via de regra se pauta na precariedade, sem
falar no conceito de usufruto que lhe é inerente, o qual se manifesta na ló-
gica extrativa, que submete o solo, a vegetação, as águas e os seres vivos
aos cálculos do lucro imediato, cuja voracidade começa a dar sinais con-
tundentes de incompatibilidade com qualquer noção de desenvolvimento
que se queira.
Cumpre, assim, fugir à tradição conservadora moldada pelas pró-
prias especificidades do capitalismo brasileiro, em que são propostos mo-
delos de resgate da pobreza do campo sem que seja necessário tocar nas
estruturas que as desencadeiam.

Considerações finais
O privilegiamento de modelos de desenvolvimento agrário baseados na
concepção de agricultura como atividade incapaz de gerar renda suficien-
te, daí o recurso às pluriatividades, por vezes pensadas no próprio con-
texto do campo como espaço de amenidades, de consumo turístico, em
detrimento de seu papel de produtor de alimentos e demais matérias pri-
mas, contempla princípios sacramentados pela própria divisão territorial
do trabalho.
Essa compreensão não poderia, pois, advir senão dos países centrais,
que se valem de relações assimétricas para que as necessidades básicas de
parcelas preponderantes de sua população sejam providas. Por sua vez, as
condições materiais oriundas das trocas desiguais em escala planetária as-
seguram as bases para o desfrute das amenidades que o campo pode ofere-
cer, o que igualmente possui uma expressão geográfica inequívoca: é nes-
ses países, que contam com aproximadamente 20% da população mundial,
que 80% de tudo o que o planeta produz está sendo consumido.
Sendo assim, é necessário romper com o discurso de que a tecnolo-
gia poderá prover a humanidade do essencial à sua sobrevivência, e que se
reproduz em abordagens necessariamente duais: propriedades mecaniza-
das a serviço da produção e camponeses a serviço da “jardinagem” cam-
pestre ou do artesanato, na melhor das hipóteses.

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Políticas territoriais e questão agrária: da teoria à intervenção

Ainda que isso seja possível, do ponto de vista do estágio tecnológi-


co atual, desconsiderando-se o cenário de esgotamento desse paradigma
técnico, não o é do ponto de vista da lógica do modo de produção, pois a
cada ciclo de concentração da produção, tem-se um ciclo de concentração
de riquezas, o que redefine o desafio posto ao capitalismo de forjar consu-
midores para garantir a apropriação ampliada da mais valia.
Dada essa exigência não conjuntural, mas estrutural, ainda não está
superado o debate em torno das assimetrias entre as diferentes classes de
agricultores e as respectivas condições com que se deparam para perma-
necer na atividade. Isso em virtude da regra, em escala global, da conver-
gência entre grandes produtores e atividades mais rentáveis, fato em si
derivado de uma política fiscal, de crédito e de inserção mais favorável no
mercado.
Em razão disso, os camponeses são confrontados com desafios que
vão desde a escala da produção incompatível com os preceitos de competi-
tividade dos grandes mercados até as barreiras para obtenção de crédito e
assistência técnica para a produção.
Mas, a despeito disso, é a unidade familiar camponesa que melhor
tem respondido aos desafios da geração de ocupação e renda, sendo opor-
tuno retomar o significado do conceito de agricultura, pois como já lem-
brou Kautsky (1980), ele transcende o recorte empobrecedor que supõe
o mero ato de cultivar a terra, razão pela qual Guzmán e Molina (2005)
creditam a essa classe a potencialidade da gestão capaz de reverter a lógi-
ca predatória da técnica a serviço da produtividade, ao preço dos biomas
arrasados.
Tais parâmetros permitem avançar em relação à dualidade presente
na delimitação entre rural e urbano, campo e cidade, pois incluem as de-
terminações que emanam do pacto hegemônico e que culminam em um
mosaico formado por frações diferenciadas do território, umas sob con-
trole do capital produtivo e ou especulativo no campo e outras dominadas
pelos camponeses, mas monopolizadas pelo capital.
São as geografias dessas lógicas opostas de ordenar o território que
devem ser buscadas, embora se trate de fronteiras difusas, uma vez que
propriedades capitalistas e propriedades camponesas podem estar dispos-
tas lado a lado, embora as camponesas se destaquem porque a trama de
relações não se esgota nos limites das propriedades individuais, nem no
sentido econômico da atividade. A ordenação que lhes é própria projeta os
signos agregadores da vida comunitária, que transcende o sentido mercan-
til da exploração agrícola, posto que os camponeses, diferentemente dos
capitalistas, operam a partir de duas dimensões, a produção econômica e
a reprodução social.
Por sua vez, a ordenação espacial das unidades capitalistas é coeren-
te com o sentido meramente econômico da propriedade, no qual não ape-

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Eliane Tomiasi Paulino

nas o trabalhar e o morar são mutuamente excludentes, mas também pre-


valece a hegemonia das trocas, que as liga diretamente às cidades, razão
pela qual tendem a exprimir uma lógica entrópica, sem conexões efetivas
com as áreas circundantes.
Essa diversidade exige que se abdique tanto da visão formal, que
traduz o destino da agricultura pela produção tecnificada, bem como de
visões idealizadoras do campo, incluindo-se leituras sobre a agricultura
camponesa, que ignoram as contradições de classe e seu rebatimento na
ordenação do rural. Sendo assim, não se pode deixar de mencionar os des-
dobramentos da sujeição da renda da terra ao capital, nas atividades e nas
áreas em que atuam os camponeses.
São os liames da sujeição da renda da terra que merecem ser des-
vendados, caso o propósito seja o desenvolvimento, não como sinônimo de
taxa de atividade econômica, mas como expressão do desenvolvimento hu-
mano, o que inclui acesso aos benefícios possíveis de serem usufruídos, e
não consumidos, conforme a lógica voraz prevalecente em nosso tempo.
Isso supõe desvendar os processos de apropriação da renda campone-
sa, assentados na depreciação dos produtos que esses têm a oferecer no mer-
cado, ante a aquisição de itens necessários à sua produção e reprodução.
Esse mecanismo explicita uma sangria de renda que se reflete nas
condições de vida dos camponeses, impondo uma análise mais atenta das
contradições próprias do momento atual, no qual a concentração de capi-
tais igualmente conduz à concentração de riquezas que, por sua vez, se-
meia miséria na mesma proporção, e que no caso do campesinato, classe
indissociável do campo, se manifesta na interdição ao acesso a bens dis-
ponibilizados aos citadinos em maior proporção, comosaúde, educação,
cultura e lazer.
É por isso que teorias e conceitos são pertinentes na exata medida
em que exprimem concepções capazes de somar conhecimentos passíveis
de se traduzirem em intervenções potencialmente transformadoras.

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A posse da terra e os conflitos rurais
no paraná

Elpídio Serra
Universidade Estadual de Maringá | elpidio_serra@hotmail.com

Introdução
No Paraná existe uma íntima relação entre os processos de apropriação
da terra agrícola e de seu uso econômico e os conflitos rurais que se es-
tabeleceram no decorrer da história agrária, de tal forma que o estudo
de um aspecto geralmente acaba esbarrando no estudo de outro aspecto.
Diante disso, ao se resgatar a história dos conflitos rurais, passa-se quase
que automaticamente pela história dos mecanismos de apropriação da
terra, envolvendo a colonização em seus diferentes aspectos e etapas, da
mesma forma como se passa pelo resgate dos diferentes modelos agrí-
colas que marcaram a exploração econômica da terra. As consequências
sociais geradas pela apropriação e pela exploração da terra, que vão se
caracterizar pela exclusão e/ou inclusão de determinadas categorias aca-
bam se transformando nos pontos catalisadores dos conflitos. A apropria-
ção da terra por uma categoria social em detrimento de outra, da mesma
forma como mudanças de modelos agrícolas, trocando um modelo que
absorve por outro que dispensa trabalhadores, podem se transformar em
focos de violência no campo, dependendo do surgimento de oportunida-
des para a reação popular. Na condição de oportunidade, assume particu-

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

lar importância histórica no Paraná a construção de barragens de usinas


hidrelétricas. Itaipu se transformou no exemplo típico: ao desalojarem
trabalhadores as obras da usina oportunizaram a mobilização e a organi-
zação camponesa para um processo de lutas, que de simples indenização
justa no valor das indenizações das terras inundadas acabaram envol-
vendo conquistas mais amplas, chegando à luta pela reforma agrária no
Estado e fora dele.
Considerando o emaranhado de situações encaixantes, quando o en-
foque envolve as vertentes posse da terra e conflitos rurais, torna-se funda-
mental resgatar, mesmo que sinteticamente, alguns aspectos que se torna-
ram relevantes na história agrária paranaense.

A emancipação política e a herança fundiária


O Paraná conquistou sua emancipação político-administrativa em 1853,
três anos depois da edição da Lei de Terras (Lei 601, de 1850) que estabe-
leceu o mecanismo da compra como segunda forma jurídica de acesso à
terra – a primeira foi o regime de sesmarias, extinto em 1822, pouco antes
da promulgação da Primeira Carta do Império. Teoricamente, poderia se
dizer que como a emancipação ocorreu quando a Lei 601/1850 já estava
em vigor, a apropriação da terra no Paraná, teve as condições necessárias
para seguir as novas normas jurídicas estabelecidas, desprezando os me-
canismos extintos. Ocorre que apenas em parte isso é verdadeiro. Mesmo
emancipado após a promulgação da nova Lei Agrária, o Paraná incorpo-
rou os mecanismos anteriores, considerando que a Lei 601, além de ca-
racterizar a terra como produto de mercado e de definir que doravante o
acesso às áreas agrícolas só se daria por meio da compra, se preocupou
em garantir os direitos de quem já havia se apropriado de extensas áreas,
quer sob o regime de sesmarias, quer sob a forma precária das grandes
posses. As posses se constituíram, no Paraná, em mecanismo largamente
utilizado no período 1822-1850, marcado por um vazio jurídico em termos
de legislação agrária no Brasil. Não havendo legislação agrária em vigor,
posto que o regime de sesmarias havia sido extinto e a nova legislação te-
ria que esperar 28 anos para acontecer, algumas categorias aproveitaram
para se apropriar de extensas áreas, na expectativa de conseguir a sua re-
gularização por meio de alguma brecha criada da nova Lei, o que de fato
aconteceu. No seu texto, a Lei 601, num primeiro momento, estabeleceu a
mercantilização da terra como forma jurídica para, em seguida, garantir o
pleno domínio sobre as sesmarias conquistadas até 1822 e sobre as “pos-
ses mansas e pacíficas”, apropriadas nos 28 anos que vão de 1822 a 1850.
O Paraná, diante disso, começa sua história agrária já convivendo com as
bases do latifúndio, construídas pelas sesmarias e pelas grandes posses e
consolidadas pela Lei 601/1850.

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Elpídio Serra

Definida a compra como nova forma jurídica, a colonização passa,


a partir de 1850, a ser o instrumento mais utilizado, tanto na repartição
como na apropriação da terra e, ao mesmo tempo, vai se constituir em im-
portante estratégia de organização do espaço e de desenvolvimento rural
no Paraná. Deve ser observado, no entanto, que embora a colonização esti-
vesse oficializada e em parte regulamentada, na época era de competência
do poder central, representado pelo Império, a última decisão quanto ao
destino das terras devolutas existentes em todo o território nacional. Foi
com a Constituição Republicana, promulgada em 1893, que os Estados,
sucessores das Províncias como unidades político-administrativas, passa-
ram a ter o poder de decisão sobre o estoque de terras devolutas ainda
existentes em seus respectivos territórios. Aí sim, efetivamente, o Paraná
assume o controle sobre os processos de construção, reconstrução ou des-
construção de sua estrutura fundiária e edita seus próprios instrumentos
reguladores. Uma série de recursos jurídicos são criados para disciplinar o
acesso à terra, dando a aparente ideia de que a nova ordem estava, de fato,
estabelecida no Estado. A expressão “aparente ideia” se justifica: apesar do
aparato jurídico institucional, categorias atreladas ao poder político domi-
nante continuariam ainda, e por um bom tempo, desviando extensas áreas
por meio de grilagens e por meio de concessões fraudulentas. Exemplos
que foram marcantes na história agrária: grupos políticos e econômicos
conseguiam sob concessão áreas para colonização, não desenvolviam o
projeto aprovado pelo poder público e não devolviam a terra, mantendo-a
como se fosse propriedade particular.
Detalhe importante: até o momento em que o Estado assume o con-
trole das terras devolutas, no início da República, são raros os registros
em que a pequena propriedade conseguiu espaço na estrutura agrária pa-
ranaense, mas são fartos os registros dando conta do domínio da grande
propriedade. Quando a colonização avança, quer na forma oficial (a de-
senvolvida pelo próprio Estado), quer na forma empresarial privada (a
desenvolvida por empresas do setor imobiliário), aí sim a pequena pro-
priedade ganha importância no Paraná e consegue equilíbrio com as uni-
dades maiores, isto considerando número de unidades e não a área por
elas ocupada.
Vencida a fase da colonização, o que ocorre entre os anos 1950 e
1960, as áreas mais dinâmicas sob o ponto de vista do interesse econômi-
co e que mais atraíram compradores de terra, caso das localizadas na re-
gião Norte, apresentam-se quase que inteiramente repartidas e ocupadas
economicamente, em sua maior parte pela atividade cafeeira. Tendo o café
como produto de mercado e as lavouras de subsistência garantindo a ma-
nutenção da família e a reprodução da força de trabalho, o trabalhador ru-
ral teve como se fixar no campo e nele se manter em harmonia, pelo menos
até os primeiros anos da década de 1960, quando o setor cafeeiro entra em

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

crise como consequência direta do excesso de produção e de seus reflexos


na queda dos preços de mercado. A crise do café vai, na década de 1970,
oportunizar a entrada de um novo modelo agrícola tanto na região Norte
como nas demais regiões do Estado, sustentado pelas lavouras mecaniza-
das de soja, trigo e milho e pelas pastagens plantadas.
O novo modelo provoca a dispensa em massa de trabalhadores, além
de gerar elevada concentração fundiária por depender de grandes áreas
para plantio, anulando desta forma a marca principal da colonização, que
foi caracterizada pelas pequenas e médias propriedades. Pequenos pro-
prietários que perderam suas terras e desempregados rurais se “juntam”
aos excluídos do acesso a terra na fase da ocupação pioneira, formando
uma massa humana que, a partir dos anos 1980, vai engrossar os movi-
mentos sociais na luta pela Reforma Agrária. O MST – Movimento dos Tra-
balhadores Rurais sem Terra consegue aglutinar as forças dispersas desses
trabalhadores excluídos e unificar a luta camponesa em prol de conquistas
em termos de uma reforma agrária ampla, geral e irrestrita.

Os primeiros mecanismos de acesso a terra


É importante observar que até a época da concessão da primeira carta de
sesmarias no Paraná, em 1614, todo o espaço paranaense (que foi emanci-
pado em 1853, ou seja, mais de dois séculos depois de iniciado o primeiro
mecanismo de apropriação jurídica da terra) se constituía em proprieda-
de pública sob o domínio da Coroa portuguesa. É a sesmaria, como obser-
va Graziano da Silva (1981, p. 4), que vai marcar no Brasil, e por extensão
no Paraná, a evolução da propriedade da terra da forma pública para a
forma particular, ao mesmo tempo em que vai se constituir no primeiro
regime jurídico regulamentando o acesso e a repartição da terra agrícola.
Quanto aos motivos que vão justificar a apropriação da terra: de manei-
ra geral, quem pleiteava sesmaria no Paraná via no acesso a terra apenas
uma forma de demonstrar poder político, poucas vezes se fazendo presen-
te o interesse pela exploração econômica da área conquistada. “O regime
de sesmaria salienta a influência dominialista acobertada pela concessão
estatal, em benefício de alguns poucos privilegiados que, muitas vezes,
não estavam interessados em explorar economicamente a terra...” (COS-
TA, 1986, p.89).
O fato do interesse político, e não o vínculo com a atividade produ-
tiva, funcionar como credencial para a conquista da terra vai fazer com
que a sesmaria apareça já de início, estreitamente identificada com a pro-
priedade improdutiva no Paraná. Paralelamente, o fato da distribuição das
cartas de sesmaria beneficiar determinada categoria social, em detrimento
das camadas menos aquinhoadas em termos econômicos, vai gerar, tam-
bém desde o início do processo de ocupação do espaço agrário paranaense,

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Elpídio Serra

toda uma gama de dificuldades de acesso a terra por parte dessas mesmas
camadas menos privilegiadas, social e economicamente falando.
Na prática, não houve qualquer preocupação em preservar os di-
reitos dos trabalhadores rurais vinculados às categorias “menos expressi-
vas”; no máximo, foi permitido que esses trabalhadores se estabelecessem
em áreas já, ou ainda não requeridas em sesmarias, mas apenas até que
as terras onde se fixaram despertassem, a cobiça ou o interesse dos “ver-
dadeiros donos”. “Os pobres se estabeleciam nos terrenos aparentemente
sem donos, construíam pequenas casas e iniciavam o plantio. Subitamen-
te surgia um homem rico portando o título que conseguira na véspera,
expulsando-os e ainda se utilizando do fruto de seu trabalho...” (SAINT
HILAIRE, 1932, p. 38).
Situações desse tipo passaram a ser comuns na medida em que as
frentes de ocupação avançaram do litoral para o interior paranaense, a
partir do século XVII. Ao se transformarem em fato comum, as posses “ir-
regulares”, seguidas da expulsão dos posseiros “invasores”, vão se consti-
tuir numa das primeiras formas de conflito pela posse da terra no Paraná,
ao mesmo tempo em que, à força, vão abrir caminho para a efetiva afirma-
ção da pequena propriedade no contexto da estrutura fundiária pioneira.
A exemplo do que passaria a ocorrer no restante do País, com a atua­
ção dos posseiros em escala progressiva, a sesmaria deixa, no Paraná, de
ser o único meio de acesso a terra no período colonial. “Como nem todos
possuíam recursos suficientes para obter e cultivar aquelas grandes exten-
sões de terra, a posse surgiu naturalmente e, na verdade, constituiu o ger-
me da pequena propriedade. Ao lado da sesmaria, que passara a represen-
tar um meio privilegiado de acesso a terra – assentado na monocultura, no
latifúndio e na escravidão – a posse passou a ser a legitimação da pequena
propriedade pelo trabalho, para a população livre da Colônia...” (GRAZIA-
NO DA SILVA, 1981, p. 5).
O regime de sesmarias foi extinto em julho de 1822 por ato do Go-
verno Imperial, pouco antes de ser declarada a Independência política do
Brasil. Como não surgiu de imediato uma nova legislação tratando da des-
tinação das terras devolutas de maneira específica, posto que a Consti-
tuição de 25 de março de 1824 tratou apenas da garantia dos direitos de
propriedade das terras já legalmente transferidas para o domínio privado
e das condições em que poderiam ser desapropriadas pelo poder público,
as apropriações irregulares são intensificadas com o surgimento da figura
dos “papa-terras”.
Como característica, tais elementos atuavam em conivência com
pessoas diretamente vinculadas às esferas do poder dominante e a pre-
texto de terem prestado algum serviço de utilidade pública, acabavam se
apropriando de grandes extensões de terra e ainda se beneficiando de uma
série de regalias, jamais ao alcance do cidadão comum.

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

Desde os tempos coloniais, a administração central valia-se de indivíduos


prestigiosos locais, para auxiliar na administração do vasto território (...).
Eram geralmente latifundiários e/ou altas patentes militares, bem como ele-
mentos do clero (...). As decisões e atitudes dessas pessoas eram depois re-
ferendadas pelas autoridades constituídas. O poder central contava com a
colaboração dessas pessoas e depois as pagava com favores especiais, como
a doação de terras, a nomeação de pessoas indicadas para cargos governa-
mentais, etc. (WACHOWICZ, 1987, p. 25).

Só em 1850, com o advento da Lei de Terras (Lei 601/1850) é que


vai ser redefinida a política de terras no Brasil e que no Paraná a questão
das áreas devolutas ensaia trilhar novos rumos, abertos pelos diferentes
níveis de interesse embutidos no texto da nova legislação. Como citado an-
teriormente, a nova Lei teve particular importância no Paraná, levando em
conta que foi editada apenas três anos antes do Paraná tornar-se Provín-
cia independente de São Paulo. Com isso a nova Província, em parte, pôde
contar com os mecanismos de um instrumento legal recente para dar des-
tinação ao que havia restado de seu estoque de terras devolutas.
Ao contrário do que ocorreu em São Paulo, onde a Lei 601 contri-
buiu para preservar o fornecimento de mão de obra à grande lavoura ca-
feeira diante da iminência do fim do trabalho escravo, garantindo neste
e em outros aspectos a manutenção da grande propriedade, no Paraná o
efeito maior foi garantir o domínio territorial da grande propriedade na
sua condição de área improdutiva. Praticamente inexistia na época alguma
atividade que se destacasse no setor agrícola paranaense como resultado
da exploração econômica da terra, sendo que a motivação que vai justificar
os pedidos de sesmarias (até a extinção do regime) e a apropriação irregu-
lar da terra na forma de grandes posses (até a vigência da Lei de Terras)
esteve sempre relacionada ou aos recursos naturais existentes (ouro, por
exemplo) ou a simples conquista da área como forma de demonstração de
poder político.
Do ponto de vista da administração pública, o interesse maior foi
aproveitar aberturas no texto da Lei para regularizar a estrutura fundiá-
ria, para estimular o povoamento do território e para fomentar a produção
de gêneros alimentícios, da qual a Província era bastante deficiente. Tanto
o povoamento quanto a produção de alimentos seriam conquistadas com
base no imigrante estrangeiro. Diferente de São Paulo, “onde a imigração se
destinava a suprir a carência de mão de obra na grande lavoura de exporta-
ção, no Paraná o problema imigratório foi desde logo colocado no sentido
de criar uma agricultura de abastecimento” (BALHANA, 1969, p. 74).
A regularização da estrutura fundiária teria que esperar algum tem-
po ainda para ser consolidada no Paraná. Só depois da Proclamação da
República, quando a primeira Constituição Republicana atribuiu aos Es-
tados a competência de legislar sobre o destino das terras devolutas exis-

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Elpídio Serra

tentes em seus respectivos territórios é que algumas medidas acabariam


sendo tomadas neste sentido. Em 1892, o Estado edita a Lei número 68,
garantindo o direito à propriedade aos detentores de cartas de sesmarias,
na condição de que provassem moradia e exploração econômica da terra
e que estabelecessem a medição e a demarcação seu domínio territorial.
No ano seguinte, edita o Ato número 35 em que institucionaliza a comer-
cialização das terras devolutas e estabelece os preços em que deveriam ser
vendidas; através do mesmo Ato cria mecanismos para barrar o processo
de apropriação irregular, ainda em andamento. Em 1907 publica o De-
creto 218, em que são definidas as bases para o processo de colonização,
privilegiando a implantação de colônias agrícolas para o assentamento de
agricultores imigrantes. No ano 1916, é editada a Lei 1642, através da qual
a colonização passa a ser função também da iniciativa privada. A nova Lei
autorizava a constituição e a atuação das empresas colonizadoras, condi-
cionando que parte do lucro obtido na comercialização dos lotes deveria
ser aplicada na implantação da infraestrutura necessária à segurança e à
prosperidade do loteamento.
Os mecanismos adotados, entretanto, não foram suficientes para
conter a onda de apropriação irregular da terra, sendo que boa parte das
áreas destinadas à colonização também foi objeto de desvio. Na prática, o
processo de apropriação irregular em andamento, sustentado através de
concessões fraudulentas e de grilagens, havia se constituído em poderoso
suporte para a formação e afirmação de uma classe latifundiária dotada de
força suficiente para desafiar qualquer forma de intervenção adotada até
então pelo Estado. Só depois dos anos 1930 é que a força de tal poder para-
lelo ao Estado começa a minar, contribuindo para isso a crise de 1929, que
ao derrubar as bolsas internacionais desestabilizou as classes econômicas
e políticas brasileiras e, no âmbito interno, a Revolução de 1930, que ao
imprimir nova ordem institucional ao País originou as condições políticas
necessárias para a adoção de medidas de impacto destinadas a sanear e re-
verter o quadro de apropriação irregular da terra no Paraná.
Tais medidas, tomadas pelos primeiros interventores federais desig-
nados para comandar o governo do Estado, fizeram retornar ao patrimô-
nio público todas as áreas até então desviadas através da prática da gri-
lagem e objeto de concessões que por um motivo ou outro não estavam
cumprindo as finalidades para as quais haviam sido destinadas. Ao reto-
marem as terras, os interventores passaram a ter condições de, enfim, es-
tabelecer nova ordem na ocupação do espaço, tendo a colonização como
processo básico. É a colonização, a propósito, que marcaria daí em dian-
te, e até o esgotamento das frentes de ocupação, o processo de repartição
do espaço agrário tendo, por outro lado, o trabalhador brasileiro e não
mais o imigrante estrangeiro como elemento potencialmente beneficiário
no acesso à propriedade da terra.

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

A colonização e a “paz agrária”


As medidas saneadoras adotadas a partir da Revolução de 1930, como fo-
ram evidenciadas, produziram no Paraná resultados práticos e positivos,
do ponto de vista dos interesses do Estado e das classes empresariais vin-
culados ao setor imobiliário, ao afunilar o processo de ocupação e apro-
priação da terra para o desenvolvimento de projetos de colonização que
passariam a ser executados pelo próprio Estado (os projetos de coloniza-
ção oficial) e pela iniciativa privada (os projetos de colonização empre-
sarial privada). No entanto, não tardariam a também evidenciar seu lado
contraditório, isto ainda no período do Estado Novo quando, depois de se
unir à classe empresarial, que juntamente com a classe latifundiária tra-
dicional (a esta altura recuperada política e economicamente do revés so-
frido com a crise mundial de 1929 e em função da própria Revolução de
1930), personificava a elite econômica dominante, o Estado se deixa levar
por um jogo de interesses nada condizentes à sua esfera de poder. Na nova
condição, alimenta intrigas entre grupos, protege grileiros, acoberta cri-
mes geralmente praticados contra posseiros, tornando inócuas boa parte
das medidas saneadoras tomadas no início dos anos 1930.
A fase de contradições às medidas saneadoras ganha corpo nos anos
1940, principalmente nas regiões que passavam por uma ocupação desvin-
culada de um prévio planejamento e onde a valorização das terras se dava
em função do trabalho anônimo e isolado dos pequenos posseiros, caso do
Sudoeste e de algumas faixas do chamado Norte Velho paranaense. Na mar-
cha da ocupação pioneira, áreas já apropriadas por posseiros são cobiçadas
por grileiros e colonizadoras, com fortes ligações com o Estado, estabelecen-
do-se a partir daí as bases para uma fase de sangrentos conflitos envolvendo
disputas pela posse da terra. Dentro deste contexto, no final dos anos 1940,
eclode no Norte Velho a chamada “Guerra de Porecatú”, envolvendo possei-
ros e fazendeiros e no final dos anos 1950, no Sudoeste, o “Levante dos Pos-
seiros”, envolvendo posseiros e colonizadores, em ambos os casos com um
grande número de baixas principalmente entre posseiros. Uma série de ou-
tros conflitos vai acontecer, marcando o avanço das frentes de colonização.
Somente quando as frentes se encontram, no início dos anos 1960, é que a
“paz agrária” volta a reinar no Paraná. Mas não por muito tempo.
A esta altura, tendo esgotado quase todo o estoque de terras devolu-
tas, o Estado, que de um lado vê sua malha fundiária organizada, boa parte
em função do trabalho das colonizadoras, de outro lado vai enfrentar uma
nova forma de problema agrário. Ocorre que enquanto havia terra devo-
luta em estoque nas frentes de ocupação, apesar das frentes se marcarem
como espaços de violência no Paraná, o Estado dispunha de uma poderosa
válvula de escape que lhe possibilitava manter sob controle os eventuais
perío­dos de tensão social no campo, isto, logicamente, dependendo do tipo

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de interesse predominante nas esferas de poder. O desemprego em épo-


cas de crises nas lavouras e o desequilíbrio na distribuição da população
rural no território, que levava algumas regiões a ficarem mais saturadas
que outras são exemplos de problemas que o Estado tinha como equacio-
nar simplesmente executando ou autorizando a iniciativa privada a execu-
tar projetos de colonização. As populações excedentes ou marginalizadas
do acesso a terra ou ao mercado de trabalho agrícola, eram persuadidas
a aventurar rumo às novas frentes de colonização pela oportunidade de
acesso à terra na condição de proprietários rurais, que podia se consolidar
desde que o “aventureiro” dispusesse de capital financeiro, no mínimo su-
ficiente para o pagamento da entrada do lote, considerando que as presta-
ções seguintes poderiam ser quitadas com o rendimento obtido na explo-
ração da própria terra adquirida.
Foi em função desse tipo de interesse que, a propósito, se proces-
sou a ocupação da região Norte e de boa parte da região Sudoeste. Nesses
espaços, as colonizadoras optaram pela pequena propriedade como mo-
delo de repartição da terra, sendo esta vendida em suaves prestações que
venciam ano a ano, exatamente de acordo com as modestas possibilidades
financeiras dos compradores. Mesmo depois de iniciados os anos 1960,
que vão marcar o esgotamento das frentes de ocupação e de todo o esto-
que de terras devolutas disponibilizado para as colonizadoras, “a ocupação
do campo cria oportunidade de trabalho para mais de 285 mil produtores
agropecuaristas, especialmente sob a forma de acesso à propriedade da
terra” (IPARDES, 1978, p. 51), isto em função dos projetos já iniciados e
ainda não concluídos.
Para as empresas loteadoras, a pequena propriedade e as facilidades
de pagamento oferecidas aos compradores não passavam de estratégia que
ajudava a dinamizar as vendas. Para o Estado, entretanto, o significado era
bem maior: representava o caminho para o avanço das frentes pioneiras,
para a incorporação de novas terras ao processo produtivo e o consequente
desenvolvimento econômico e, principalmente, representava a concretiza-
ção da “ideologia da paz agrária” em que, para aliviar a tensão social, era
importante fixar o homem à terra onde, no mínimo, teria assegurada a sua
sobrevivência e a reprodução, embora precária, de sua força de trabalho.
Esta ideologia, no entanto, escapa das mãos do Estado quando se
esgotam as terras devolutas e quando a fronteira política e a fronteira eco-
nômica passam a significar praticamente a mesma coisa. O Estado, grada-
tivamente, vai perdendo o controle sobre os deslocamentos populacionais
e sobre os negócios imobiliários, que passam a seguir as leis do mercado.
Como resultado direto, as populações que ainda não haviam adquirido o
acesso à terra, veem suas chances bastante reduzidas, ainda mais levando
em conta que a simples diminuição na oferta de áreas virgens levou à valo-
rização das áreas já apropriadas.

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

Na região Norte, a crise da pequena propriedade


Particularmente na região Norte do Estado, a ocupação humana e a apro-
priação das terras tinham um objetivo quase único: o desenvolvimento da
cultura cafeeira. O café tornou-se uma cultura rentável na região e seu do-
mínio territorial deveu-se às condições favoráveis, em termos de clima e
de solo, e também à experiência acumulada pelos pequenos proprietários
de terra, em sua maioria vinda das tradicionais zonas produtoras de São
Paulo e Minas Gerais. Ao contrário de São Paulo e Minas, onde as lavou-
ras se desenvolveram em grandes propriedades, no Norte do Paraná foram
adaptadas às pequenas propriedades, dividindo espaço com as lavouras
de subsistência e com a estrutura, quase sempre rústica, construída para
a moradia do agricultor e sua família, para os pequenos animais e para o
reduzido número de cabeças de gado leiteiro. As lavouras de subsistência
possibilitavam ao agricultor se manter nos períodos da entressafra porque,
além de ter garantida a alimentação da família, algum excedente acabava
sendo comercializado, proporcionando uma renda extra para gastos emer-
genciais. O agricultor tinha no café o vínculo efetivo com o mercado e nas
lavouras de subsistência a garantia da reprodução de sua força de traba-
lho. A reprodução de força de trabalho era fundamental, considerando que
para o grande volume de mão de obra necessária para tocar as lavouras,
podia contar com a força de trabalho familiar não remunerado. Em ou-
tros termos: mesmo dispondo de pouco capital, o produtor tinha como se
manter e prosperar, na condição de que o mercado se mantivesse, no mí-
nimo, estável. Não havia fartura na zona rural, mas comida nunca faltava
na mesa do trabalhador.
Publicação da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), pos-
teriormente designada Companhia Melhoramentos Norte do Paraná
(CMNP), considerada a maior empresa colonizadora regional pela exten-
são da área que colonizou (1.300.000 hectares), detalha o modelo de colo-
nização idealizado, a base da estrutura fundiária construída e as condições
em que o homem vivia e se mantinha na propriedade:

A área rural seria cortada de estradas vicinais, abertas de preferência ao lon-


go dos espigões, de maneira a permitir a divisão da terra da seguinte manei-
ra: pequenos lotes de 10, 15 ou 20 alqueires, com frente para a estrada de
acesso e fundos para o ribeirão. Na parte alta, apropriada para plantar café,
o proprietário da gleba desenvolveria sua atividade agrícola básica: cerca de
1.500 pés por alqueire. Na parte baixa construiria sua casa, plantaria a sua
horta, criaria os seus animais para consumo próprio, formaria seu pequeno
pomar. Água seria obtida no ribeirão ou em poços de boa vazão. As casas de
vários lotes contíguos, alinhadas nas margens dos cursos d’água, formariam
comunidades que evitassem o isolamento das famílias e favorecessem o tra-
balho em mutirão, principalmente na época da colheita do café, que para a

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Elpídio Serra

maioria dos pequenos agricultores representaria o lucro líquido de sua ativi-


dade independente, porquanto no decorrer do ano ele viveria – consumindo
o necessário e vendendo o supérfluo – das culturas paralelas: arroz e milho
plantados por entre as fileiras de café novo, legumes e hortaliças, frutas di-
versas, porcos e galinhas. (CMNP, 1975, p.78).

A situação de tranquilidade permaneceu praticamente inalterada


até o início da década de 1960. A partir daí, as sucessivas superproduções
regionais passaram a ser fator de desequilíbrio do mercado externo, com
reflexos na economia regional e, por conseguinte, na manutenção da pro-
priedade cafeeira. Ribeiro (1973, p. 107) mostra em números o problema
vivido pelo Brasil, na época, em função da superprodução cafeeira:
A produção nacional de café, que fora de 33,3 milhões de sacas de 60 quilos
na safra 52-53, evoluiria para 66,5 milhões em 62-63, com um incremento
da ordem de 99,7% no período, ou 9,1% em média por ano. As exportações,
no entanto, no mesmo período tinham aumentado apenas 40,1% (de 34,7
milhões de sacas em 1953 para 48,6 milhões em 1963). Enquanto o consu-
mo crescera apenas vegetativamente, a produção quase dobrara no período,
acarretando redução da participação nacional no mercado mundial, passan-
do de 51,9% no período 1948/52 para 35,4% em 1962.
Informa o mesmo autor que em 1963 o Brasil dispunha de um esto-
que praticamente invendável de 54,4 milhões de sacas, situação que exigiu
do Governo a tomada de medidas visando adequar a produção interna às
reais condições do mercado externo. A solução encontrada, no momento,
foi estimular e pressionar os cafeicultores a erradicarem parte de seus ca-
feeiros e optarem por novas formas de cultivo.
O Paraná, e dentro do Paraná, a região Norte, era o maior produtor
nacional de café, respondendo por 45% da produção brasileira em 1961/62,
passando para 62,2% na safra seguinte (IBC, 1977/78).
A crise do café passou a representar a crise da pequena proprieda-
de, particularmente na região Norte do Estado. A esta altura, uma série de
fatores passa a funcionar como desarticuladores da economia agrícola tra-
dicional paranaense, com profundos reflexos no campo social. Um a um
e cada um a seu modo e a seu tempo, esses fatores vão alterando a ordem
econômica até então estabelecida e abrindo caminho para uma nova reali-
dade no campo. Pelos efeitos que causaram, podem ser destacados:

1. A erradicação de cafeeiros financiada pelo Governo Federal através


do programa IBC/GERCA a partir de 1962.
De acordo com relatório dos órgãos executores do programa, foram erra-
dicados 249 milhões e 957 mil pés de café no período de junho de 1962 a
maio de 1967. A consequência social gerada: “...o fator mão de obra even-
tualmente liberado até 1966, considerando que em média um homem tra-
ta de aproximadamente 2 mil e 200 cafeeiros, que uma família tem duas

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

enxadas e se compõe de cinco pessoas (...) foi da ordem de 116 mil enxa-
das, ou 58 mil famílias, ou 290 mil pessoas ligadas à cultura do café, que
ficaram marginalizadas das zonas rurais” (IBC-GERCA/DAC, 1967, p. 32).
Segundo a mesma fonte um ano depois, em 1967, o número de famílias
desempregadas atingiu a casa dos 90 mil e o número de pessoas a casa dos
450 mil trabalhadores. Observação: na época do café uma “enxada” corres-
pondia à jornada de trabalho de um trabalhador adulto, do sexo masculino
e meia “enxada” correspondia à jornada de trabalho de uma mulher, uma
criança ou de um trabalhador idoso.

2. A implantação do Estatuto do Trabalhador Rural em 1963.


A nova legislação trabalhista, que proporcionou aos trabalhadores do cam-
po direitos idênticos aos desfrutados pelos trabalhadores urbanos (férias re-
muneradas, décimo terceiro salário, jornada de 8 horas de trabalho) criou
dificuldades financeiras para os pequenos proprietários que dependiam da
contratação de mão de obra permanente e deu a muitos proprietários atra-
sados, na categoria de médios e grandes, a oportunidade para se livrarem de
seus empregados. O resultado é que uma nova onda de desemprego atingiu
o setor agrícola. “Com a chegada das obrigações trabalhistas e os conse-
quentes encargos sociais no campo, o sistema esboroou-se. O Estatuto do
Trabalhador Rural, então foi a pá de cal. O meio rural não estava prepa-
rado para a brusca mudança...” (EXPRESSÃO ECONÔMICA, 1977, p.37).
Os proprietários rurais, para “ocupar o lugar dos trabalhadores demitidos”
intensificaram a compra de máquinas agrícolas, principalmente tratores.
Como resultado, de acordo com os recenseamentos agropecuários do IBGE,
a frota de tratores no Paraná, que era de 5.181 unidades em 1960, passou
para 18.619 unidades dez anos depois, num incremento da ordem de 260%.

3. As geadas, que atingiram fortemente as lavouras em 1975.


A economia paranaense, estruturada em cima da cultura do café, já havia
sofrido duros golpes com as geadas ocorridas em 1953 e 1955, que deixa-
ram danos acima de 50% como quebra nas safras dos anos seguintes. Na
época, muitos produtores deixaram a atividade por não suportarem os pre-
juízos sofridos. Com as geadas de 1969, 1972 e 1975, que deixaram danos
ainda maiores, os produtores que relutavam em sair acabaram seguindo o
mesmo caminho, principalmente tendo em vista o resultado catastrófico
de 1975. Enquanto as geadas anteriores ainda deixaram algumas poucas
partes das lavouras sem queimar, caso das localizadas nos espigões, a de
1975 destruiu tudo. Foi o golpe de misericórdia sofrido pelo que, na época,
era considerado o maior parque cafeeiro do País, com 915 milhões de pés.
Destruídas as lavouras, o mercado de trabalho no campo ficou reduzido
ao corte das árvores queimadas; concluída a atividade, o desemprego foi
quase que absoluto.

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Elpídio Serra

4. A modernização da agricultura, desencadeada a partir de 1975.


Este foi o último e decisivo fator, o que veio completar de fato as transfor-
mações que se processavam no espaço agrário. Embora tendo começado
bem antes, quando no início da década de 1960, ao se completar o pro-
cesso de ocupação pioneira das terras agrícolas parte dos proprietários
rurais resolve desenvolver lavouras de café que se distanciavam do mode-
lo tradicional por serem mais intensivas de capital, é basicamente depois
de 1975, ou seja, depois que as geadas destruíram as lavouras cafeeiras,
que o processo modernizador é intensificado e consolidado. A erradica-
ção das lavouras de café destruídas pelas geadas e o advento das lavouras
mecanizadas de soja, trigo e milho e ainda as pastagens plantadas, abrem
espaço para um novo modelo agrícola e para o consequente surgimento
de uma nova fisionomia para o espaço agrário. O novo modelo leva à ex-
tinção da agricultura tradicional, dependente do trabalho braçal familiar
e à expansão da agricultura em bases empresariais, dependente de tec-
nologias modernas, que implicam em investimentos de capital. Paralela-
mente, leva à concentração da estrutura fundiária e do lucro da produção
e à expulsão do trabalhador rural, com profundos reflexos na sociedade
como um todo.
Vale observar que em nível de Brasil a modernização começou a ser
implementada nos anos 1960, tomando-se como referência os estados de
São Paulo e Rio Grande do Sul, pioneiros na incorporação de novas tecno-
logias no setor agrícola. O Paraná não aderiu ao novo modelo nesse mes-
mo período, justamente por conta da resistência dos produtores de café da
região Norte, que insistiam em continuar na atividade mesmo diante das
crises que afetavam o setor. Com a destruição das lavouras em 1975, não ti-
veram alternativa, a não ser também incorporar as novas formas de produ-
zir. Ao incorporar o novo modelo pelo menos 15 anos depois, com relativo
atraso, portanto, o Paraná superou a fase do “aprendizado”, incorporando
experiências que deram certo e descartando as que não surgiram o efeito
desejado em São Paulo e no Rio Grande do Sul. No entanto, tornou-se o es-
paço onde as consequências sociais foram mais intensas, justamente pela
pressa com que as modificações ocorreram. Considerando que as altera-
ções no espaço agrário começaram depois das geadas de 1975 para serem
consolidadas nos anos 1980, deduz-se que a metamorfose não demorou
mais do que cinco anos para acontecer. Como na região Norte o modelo
de colonização privilegiou a pequena propriedade e como esse estrato de
área não foi contemplado no novo modelo agrícola, dependente de áreas
maiores, uma das marcas da modernização foi a eliminação das pequenas
unidades produtivas. Pelo menos cem mil pequenos estabelecimentos de-
sapareceram entre os anos 1960 e 1980, sendo incorporados aos médios e
grandes, segundo dados dos recenseamentos agropecuários do IBGE rela-
tivos ao período.

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

A consequência maior, no entanto, ficou por conta do desemprego e


da rápida expulsão de trabalhadores rurais. Num primeiro momento, com
o fechamento dos postos de trabalho no setor agrícola, os trabalhadores fo-
ram deslocados para os espaços urbanos mais próximos. Como nem sem-
pre conseguiam emprego, foram se aventurando para as cidades de maior
porte e, em seguida, para outros Estados. Como resultado o Paraná, que
tradicionalmente havia se transformado em foco de atração populacional
(o crescimento demográfico paranaense, no auge da produção cafeeira, su-
perava a casa dos 7% ao ano), acabou se transformando em polo de disper-
são (em 1980, já com o novo modelo agrícola, o crescimento populacional
não superou a casa do 1%, um dos menores do País). O destino dos para-
naenses, de acordo com dados levantados pelo IBGE foi São Paulo (53,6%)
e as novas zonas de fronteira agrícola, caso de Mato Grosso (19,9%), Ron-
dônia, Acre e Amapá (10,6%).

A organização e a reação dos movimentos sociais


Os fatos e as situações destacadas levam a deduzir que é no processo histó-
rico de distribuição e ocupação da terra agrícola, carregado de distorções
na fase da ocupação pioneira e em seguida no processo de modernização
da agricultura que vai residir a essência da crise agrária no Paraná. No
caso da região Norte, vai ganhar destaque a crise do café pelo impacto ge-
rado em função da dispensa em massa de trabalhadores e da descapitali-
zação dos pequenos proprietários rurais.
Vale destacar que as crises agrárias sempre existiram no Estado e
que os trabalhadores, da mesma forma, sempre reagiram mesmo que em
grupos isolados, sem um mínimo de organização. Pela pressão dos traba-
lhadores, é que o Estado é levado, no contexto histórico, a tomar medidas
“saneadoras” no sentido de “restabelecer a paz agrária”.
As medidas de intervenção do Estado apresentam características
diferentes, de acordo com os problemas que vão marcar cada momento
do processo histórico. Assim, de acordo com Serra (1991, p. 213), que
considera os anos de 1970 como divisores de águas, no que se refere às
formas de estratégias intervencionistas do Estado, “anterior a esse perío-
do o que se tem é o Estado preocupado em ajustar o processo de ocupa-
ção das terras, principalmente nas frentes pioneiras e nas áreas de fron-
teira; é o Estado preocupado em neutralizar os conflitos no campo e é o
Estado criando mecanismos ao nível de leis específicas para legalmente
poder distribuir terras, justamente nas frentes pioneiras e nas faixas de
fronteira, onde se localizavam as áreas de tensão social. Na contrapar-
tida, o que se tem nesse período é o trabalhador lutando pela posse da
terra, sem se preocupar com outras soluções que o Estado poderia viabi-
lizar, além do acesso à terra”. Continuando, afirma o autor: “Já no segun-

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Elpídio Serra

do período, posterior à década de 1970 (...) o Estado passa a enfrentar os


trabalhadores organizados, envolvidos num processo de luta conjunto e
reivindicando não apenas a posse da terra, mas a implementação de uma
Reforma Agrária abrangente destinada a mudar radicalmente o panora-
ma agrário paranaense”. A distribuição pura e simples da terra não es-
tava mais tendo sentido no novo horizonte das lutas camponesas. O que
contava agora era a reestruturação fundiária, dentro de um conjunto de
medidas em que, além da terra, o trabalhador passaria a ter acesso à as-
sistência técnica, educacional e social. Ou seja: o trabalhador teria viabi-
lizado o acesso à terra e às condições para a sua exploração econômica,
garantindo desta forma a manutenção de sua família e a consequente re-
produção da força de trabalho no campo.
Em 1986, os movimentos sociais constituídos de trabalhadores ru-
rais sem terra, devidamente organizados na luta pela Reforma Agrária, le-
vam o Estado a editar o primeiro Plano Regional de Reforma Agrária que,
na prática, não saiu do papel. O maior mérito do PRRA foi reconhecer ofi-
cialmente a luta dos trabalhadores, bem como a sua dimensão e seus fun-
damentos. Trechos do documento revelam:
• Que “o Paraná tem testemunhado o surgimento de grandes movi-
mentos, espontâneos ou organizados, de trabalhadores e pequenos
produtores rurais, reivindicando o acesso a terra”;
• que “no meio rural paranaense localizam-se atualmente focos de
tensão social, resultantes de distorções acumuladas na agricultura
do Estado ao longo, sobretudo, das últimas décadas”;
• que “essas distorções e a falta de meios que estimulassem a fixação
do pequeno produtor à sua terra, geraram problemas que se agra-
vam a cada dia, com o crescimento do número de agricultores sem
terra e de famílias acampadas”;
• que “a descapitalização do pequeno produtor, decorrente de preços
pouco remunerativos dos bens destinados ao mercado interno – base
da agricultura praticada em várias regiões do Estado – somada à er-
radicação da cafeicultura e à prática de grandes culturas destinadas,
como a soja, à exportação, refletiu-se na diminuição do número das
pequenas e médias propriedades rurais. Para ter-se dimensão desse
fenômeno basta apontar para a redução de 100 mil estabelecimen-
tos agrícolas no Paraná, entre 1970 e 1980”.

Diagnosticadas as causas, o PRRA aponta o que viria a ser a con-


sequência mais perversa da problemática agrária paranaense: “(...) cerca
de 430 mil famílias de trabalhadores rurais sem terra gravitam, nos mais
variados graus de pobreza, em torno de uma agricultura altamente tecnifi-
cada; são 52 mil famílias de parceiros, 24 mil de arrendatários, 122 mil de

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

assalariados permanentes, 160 mil de assalariados temporários e 72 mil de


outros trabalhadores em outra situação”.
Para este público potencialmente beneficiário em projetos de Refor-
ma Agrária no Estado, a meta estabelecida no PRRA, em sintonia com a
meta do Plano Nacional de Reforma Agrária, foi assentar 77.900 famílias
durante o período 1986-89, o que correspondia a 18% das famílias de sem
terra existente na época no Paraná (430.000) e a 5,4% da meta estabelecida
para o País como um todo, através do PNRA (1.400.000) para o mesmo pe-
ríodo. Só para o primeiro ano de vigência do Plano (1986), a meta era as-
sentar 8.300 famílias, o que demandaria a desapropriação de 130 mil hec-
tares de terras agricultáveis. O assentamento consistia no cumprimento de
uma parte do programa de Reforma Agrária que no seu contexto, visava:
“dar condições de acesso à terra aos trabalhadores rurais, assegurando re-
gime de posse e uso que atenda aos princípios de justiça social, e contri-
buir para o reordenamento da estrutura fundiária e promoção da tranqui-
lidade social, mediante erradicação das causas de tensões”.
Enquanto a proposta estava em discussão, os trabalhadores expro-
priados e expulsos do campo acompanhavam com euforia o desenvolvi-
mento das negociações, certos de que seriam atendidos em suas expecta-
tivas. Não demorou muito, no entanto, para constatarem que a Reforma
Agrária não sairia do papel, sendo condenada a ficar presa a um discurso
demagógico e sem consistência. Isso vai ser comprovado na medida em
que, com o passar dos tempos, as metas não são integralmente cumpri-
das, como os números demonstram: no primeiro ano de execução do Pla-
no, justamente quando a euforia era maior e as expectativas idem, dos
130 mil hectares previstos para a Reforma, apenas 39.565 (30%) foram
efetivamente desapropriados enquanto que das 8.300 famílias seleciona-
das, apenas 2.086 (25%) acabaram sendo assentadas. Nos três anos se-
guintes, até o encerramento da vigência do Plano, os números vão con-
firmar a frustração das expectativas: em 1987, dos 2.169 mil hectares
previstos, 16.700 (apenas 2%) foram desapropriados enquanto que das
16.700 famílias selecionadas, apenas 551 (3,3%) foram assentadas; em
1988, dos 390 mil hectares previstos, 21.485 (5,5%) foram desapropria-
dos, enquanto que das 25.000 famílias selecionadas, apenas 698 (2,8%)
conquistaram o acesso a terra; em 1989, o último ano de vigência do Pla-
no, em lugar dos 430 mil hectares previstos, foram desapropriados ape-
nas 27.232 (6,3%) e em lugar das 27.900 famílias que deveriam ser assen-
tadas, apenas 1.038 (3,7%) foram efetivamente contempladas. O balanço
final: de um total de 1.210.000 hectares previstos para a Reforma, foram
desapropriados 93.629 (7,7% do total) e das 77.900 famílias que deveriam
ser assentadas, 4.352 (5,6%) receberam terra. Ou seja: a defasagem su-
perou a casa dos 90% tanto no que se refere às desapropriações (92,3%),
quanto no que se refere ao contingente de famílias indicadas para os as-

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sentamentos rurais (94.4%). Os dados, citados por SERRA (1991, p. 236),


são do ITCF – Instituto de Terras, Cartografia e Florestas, órgão público
na época encarregado pelo Estado para concretizar a Reforma Agrária no
Paraná, em parceria com o INCRA – Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária.
É a partir da frustração das expectativas que os trabalhadores po-
tencialmente beneficiários resolvem assumir a luta pela Reforma Agrária
no Paraná. Eles aprenderam que seria pelo caminho da pressão social que
conseguiriam chegar à posse da terra. Se de cima para baixo, a partir da
iniciativa do Estado, por força de seus planos e programas oficiais, a Re-
forma não conseguiu deslanchar, teriam que conseguir a inversão da or-
dem, fazer com que a Reforma se desenvolvesse de baixo para cima, ou
seja, a reboque da pressão social. Entretanto, para que tal inversão aconte-
cesse, tornava-se necessária a organização da luta. Os trabalhadores, para
serem bem sucedidos, teriam que desistir da luta isolada, sem planejamen-
to, como faziam antes, nos tempos da ocupação pioneira. Na época, tendo
seus instrumentos de trabalho como arma (foices, facões, enxadas e, raras
vezes, espingardas de carregar pela boca), enfrentavam corpo a corpo, os
grileiros de terra e os agentes das companhias colonizadoras, encarrega-
dos do trabalho de “limpar a área”. Com o detalhe: nos novos tempos, os
grandes proprietários rurais, contrários à Reforma Agrária, já haviam se
organizado, um motivo a mais para os trabalhadores fazerem a mesma
coisa. Logo que se iniciam as discussões em torno do Plano Regional de
Reforma Agrária no Paraná, os fazendeiros assumiram a dianteira da luta
organizada antirreforma e criaram a UDR – União Democrática Ruralista
no Paraná. Quando os trabalhadores começam a se articular, tendo em vis-
ta sua organização enquanto classe social e movimento político, engajados
na luta pela Reforma Agrária, os fazendeiros já haviam assumido a dian-
teira da luta organizada, mas contra a Reforma, pelo menos nos termos
preconizados pelos trabalhadores.

o mst e a luta pela reforma agrária

Para fazer frente a UDR, entidade que na época assumiu a defesa dos
proprietários rurais, vai surgir nos anos 1980 o MST – Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra, atuando em defesa dos trabalhadores.
De um lado, uma entidade agindo em defesa da preservação do direito de
propriedade, da extensão e da manutenção do latifúndio, da forma como
construído até então; de outro lado, uma entidade pregando o rompimen-
to do monopólio da propriedade da terra, a volta dos trabalhadores ao
campo, de onde estavam sendo expulsos pelo processo de modernização
da agricultura em andamento. Estava formada a base dos conflitos rurais
nos novos tempos.

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

Antes de se entrar na questão da luta recente, valorizando a partici-


pação do MST, é oportuno resgatar alguns pontos que antecederam a fase
em que os trabalhadores resolvem, enfim, fazer a Reforma Agrária com as
próprias mãos, ou seja, depois de terem frustradas todas as expectativas
quanto à seriedade dos planos oficiais. Deve ser considerado que a nova
fase da luta só existiu porque, na contrapartida, existiram situações favo-
ráveis, contabilizadas em benefício dos movimentos sociais e sua organi-
zação política. Algumas delas:

•A abertura política do regime militar, no final dos anos 1970.


Mesmo parcialmente, a liberação do regime ditatorial imposto pelo golpe
de 1964 vai permitir a livre manifestação do pensamento e com isso passa
a haver alguma condição para a articulação do movimento camponês.

•A inversão do papel da Igreja Católica em relação ao homem do campo.


Em lugar da defesa intransigente da família e da propriedade, como his-
toricamente vinha fazendo, a Igreja assume nos anos 1970 a opção pelos
pobres e oprimidos e, com isso, passa a se identificar com o problema dos
posseiros, dos empregados rurais e dos pequenos proprietários, bem como
com suas formas de luta.

•A modernização da agricultura.
Ao concentrar a propriedade da terra, ao expulsar e expropriar trabalha-
dores rurais, ao criar as bases do desenvolvimento capitalista no campo, a
modernização acabou originando focos de tensão social que, por sua vez
vão justificar a reação camponesa.

•A construção de barragens de usinas hidrelétricas.


Da mesma forma como ocorreu com o processo de modernização da agri-
cultura, a construção de barragens leva à expulsão de grandes contingentes
de trabalhadores, retirados de seus empregos e de suas pequenas proprie-
dades para a construção dos reservatórios das usinas.

•A retomada das discussões em torno da Reforma Agrária em nível nacional.


A partir da segunda metade dos anos 1970, a Reforma se transforma em
jargão político e abre caminho para a participação dos trabalhadores nas
discussões, boa parte delas afunilada para a montagem do texto do (frus-
trado) Plano Nacional de Reforma Agrária.

No Paraná, de todos esses fatores assume particular importância,


como embrião de uma nova forma de luta camponesa, a construção de bar-
ragens de usinas hidrelétricas, considerando que foi a partir daí que se cons-
tituiu, de fato, a célula dos movimentos organizados, no período pós-1964.

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O primeiro empurrão neste sentido foi desencadeado pela constru-


ção das barragens da Usina de Salto Santiago, no Rio Iguaçu, região Sudo-
este do Estado, que ao ser concluída, em 1979, inundou grandes extensões
de áreas agrícolas nos municípios de Laranjeiras do Sul, Chopinzinho,
Mangueirinha e Coronel Vivida e expulsou pelo menos 170 famílias de pro-
dutores rurais. Na época, os movimentos não estavam ainda organizados
no Paraná, o que equivale a dizer que não havia pressão social por parte
dos desabrigados, no sentido de negociar valores justos tendo em vista a
indenização das terras inundadas. Aproveitando-se disso a ELETROSUL
(empresa pública), responsável pelas obras da hidrelétrica, jogou para bai-
xo o valor das indenizações.
O caso Santiago se constituiu em derrota para os agricultores, mas
serviu de alerta. Pouco tempo depois, a história do baixo valor das inde-
nizações só não se repetiu na construção de outra usina, a Hidrelétrica de
Itaipu porque os agricultores estavam cientes do que havia acontecido em
Salto Santiago e resolveram se organizar. O valor das indenizações das ter-
ras, anunciado pela Itaipu Binacional, responsável pela construção e ex-
ploração da usina, foi igualmente considerado aquém dos preços de mer-
cado. Os proprietários, na sua maioria pequenos, não aceitaram e com o
apoio das igrejas Católica e Luterana, através da CPT – Comissão Pastoral
da Terra, decidiram estabelecer uma luta organizada para exigir indeniza-
ções mais justas.
O que chama atenção no movimento dos expropriados de Itaipu
é que a empresa construtora não aceitou uma pauta de reivindicações
por eles apresentada e fechou canais de negociação, na expectativa da
desmobilização camponesa. Os proprietários de terra, no entanto, não
desistiram e permaneceram acampados no canteiro de obras e em fren-
te a setores administrativos da empresa, localizados em Foz do Iguaçu
e Cascavel, no Oeste do Paraná. Depois de dois meses de mobilização,
organizados pelo movimento por eles próprios denominado “Justiça e
Terra”, os camponeses, enfim, receberam o sinal verde da Itaipu, que
aceitou rever os valores anunciados anteriormente para as indeniza-
ções e também os critérios para a permuta de áreas. No segundo se-
mestre de 1981, cedendo à força da pressão social, as indenizações
começaram a ser feitas em novas bases, da forma como queriam os
acampados.
Deve ser considerado que a demora no atendimento das reivindica-
ções por parte da Itaipu Binacional (empresa constituída por capitais bra-
sileiros e paraguaios) foi útil no sentido de que deu tempo para aprimorar
a organização camponesa. Durante a mobilização, que começou em 1979 e
só terminou em 1981, a CPT e as outras forças de apoio ao movimento, ti-
veram condições suficientes para criar e testar um conjunto muito grande
de estratégias voltadas basicamente ao que fazer ou ao que não fazer nos

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

acampamentos. Ou seja: tiveram a oportunidade de “descobrir o caminho


das pedras”, o que se tornaria de grande valor para o sucesso do movimen-
to de Itaipu e também para o sucesso de outros movimentos de trabalha-
dores que, por outros motivos, eclodiriam tempos depois em praticamente
todo o território paranaense. Em vista disso, conforme SERRA (1991, p.
297) “pode-se dizer que Itaipu foi o laboratório para as primeiras aulas te-
óricas e práticas que levaram ao aprendizado da mobilização camponesa
nos períodos mais recentes”.
Tanto isso é verdade que nem havia ainda terminado o caso de Itai-
pu e a luta camponesa, ali iniciada, cria sua primeira ramificação na pró-
pria região Oeste paranaense. Preocupada com a situação de miséria de
posseiros, pequenos arrendatários, boias frias e outros trabalhadores ru-
rais, categorias de não proprietários em grande parte desalojadas da área
de inundação dos reservatórios da usina, a CPT juntamente com sindi-
catos rurais, inicia uma nova mobilização camponesa, agora objetivando
uma conquista muito mais abrangente: a Reforma Agrária, inicialmente
no Oeste e em seguida em todo o Estado.
Como estratégias, tendo em vista a nova dimensão da luta cam-
ponesa, o primeiro passo foi cadastrar todas as famílias que de uma
forma ou de outra haviam sido expulsas da terra que ocupavam e explo-
ravam. Em seguida, os trabalhadores sem terra foram organizados em
grupos, de acordo com os municípios de origem. Cada grupo constituía
suas próprias lideranças, encarregadas de fomentar discussões diárias,
tendo como um dos temas a problemática camponesa do Paraná e suas
causas mais evidentes. Uma vez por mês os grupos se reuniam em as-
sembleia geral, agora tendo como pauta estratégias políticas para a es-
truturação do movimento e para a definição de pontos de sua bandeira
de lutas.
Em fins de 1981, a partir de uma dessas assembleias, duas decisões
importantes foram tomadas: A) – a definição do nome do movimento, ba-
tizado inicialmente como MASTRO – Movimento dos Agricultores Sem-
Terra do Oeste do Paraná; B) – a centralização da luta para o assentamen-
to de todos os trabalhadores cadastrados (mais de seis mil) no próprio
Estado do Paraná, descartando-se áreas de outros Estados. A recusa de
áreas fora do Paraná tinha um bom motivo: na época do regime militar,
muitos trabalhadores da região Oeste haviam sido assentados nos Esta-
dos do Acre e Rondônia, em áreas sem a menor infra estrutura de apoio
e de lá estavam voltando completamente fracassados e bem mais pobres
do que antes.
Em 1982, um ano depois, a articulação política dos trabalhadores
da região Oeste estimula os trabalhadores das outras regiões do Estado a
também se organizarem. Os outros movimentos organizados que vão sur-
gir como consequência deste “contágio”:

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• MASTES – Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do


Paraná
• MASTEL – Movimento dos Agricultores Sem Terra do Litoral do Pa-
raná
• MASTEN – Movimento dos Agricultores Sem Terra do Norte do Pa-
raná
• MASTRECO – Movimento dos Agricultores Sem Terra do Centro-
Oeste do Paraná

A malha do movimento camponês estava, assim, constituída em


todo o território paranaense, sendo que a partir daí duas metas passam a
ser perseguidas, sob o enfoque político da organização e mobilização: A)
– manter a unidade dos movimentos regionais em torno de um comando
central; B) – interligar a mobilização camponesa do Paraná com a mobili-
zação que, na mesma época, eclodia em outras regiões do País, particular-
mente no Rio Grande do Sul.
Tendo em vista tais objetivos, lideranças dos trabalhadores rurais do
Sul do Brasil se reúnem no município de Medianeira, em junho de 1982,
para uma primeira troca de experiências. No ano seguinte um novo encon-
tro é realizado em Chapecó, Santa Catarina. Os encontros de 1982 no Pa-
raná e de 1983 em Santa Catarina vão servir de base para o terceiro e mais
importante de todos: o realizado no município de Cascavel, Oeste do Pa-
raná, em 1984, quando ficou acertada a criação de um movimento único,
com força suficiente para lutar pela reforma agrária em todo o País. Ficou
definido também o nome do movimento: MST – Movimento dos Trabalha-
dores Rurais Sem Terra. Com a criação do MST, todos os movimentos de
alcance regional criados no Paraná foram extintos, como meio de não divi-
dir, mas centralizar a luta em nível nacional.
Como estratégia para pressionar o Estado e fazer a Reforma Agrá-
ria andar, logo que fundam o MST em 1984, os trabalhadores rurais sem
terra, agora organizados, passam a ocupar áreas improdutivas e a reivin-
dicar assentamentos. No final do ano, oito ocupações já haviam ocorrido,
envolvendo 1.700 famílias e 25 mil hectares de terras. A Reforma, que não
conseguiu acontecer de cima para baixo, a partir da iniciativa do Estado,
agora começava a ocorrer em sentido contrário: de baixo para cima, a re-
boque da pressão social.

Considerações finais
Alguns pontos ficam evidenciados quando se estuda a mobilização cam-
ponesa no Paraná afunilada para conquistas em termos de uma Reforma
Agrária ampla, geral e irrestrita: 1) – A forte ligação entre o processo his-

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A posse da terra e os conflitos rurais no paraná

tórico de ocupação do território, os mecanismos utilizados para a distri-


buição da terra agrícola e a marginalização dos pequenos produtores ru-
rais, que vão constituir ao longo dos tempos uma categoria de excluídos
do acesso à posse da terra; 2) – A forte ligação também entre as transfor-
mações recentes ocorridas no setor agrícola e o desemprego rural, ou seja:
quem não conseguiu ter terra, mas conservou o emprego, agora também
ficou sem o emprego; 3) – O confuso e contraditório papel do Estado que
agindo em conivência com interesses de grupos políticos e econômicos,
sempre virou as costas para a crise que foi sendo construída no campo, na
prática desde que ocorreu o primeiro mecanismo de apropriação da terra
e que quando teve a grande oportunidade de reverter o processo, ao editar
os Planos Nacional e Regional de Reforma Agrária, não teve fôlego para le-
var avante as metas por ele próprio colocadas no documento oficial; 4) – A
lição de que, de tanto apanhar, se aprende a reagir e a lutar: os trabalhado-
res excluídos e marginalizados encontram meios de fazer a Reforma, que
não andou de cima para baixo, a andar de baixo para cima, a reboque da
pressão social. A luta, que sempre existiu, mas se manteve surda no campo
por ser desorganizada, agora é ouvida porque incomoda: tornou-se organi-
zada, tem plano e metas a seguir.

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Comunidades rurais da região
metropolitana de curitiba:
territorialidades em (re)construção

Hieda Maria Pagliosa Corona


UTFPR | pagliosa@utfpr.edu.br

Introdução
O objetivo do presente capítulo é apresentar a análise das estratégias fun-
diárias desenvolvidas pelos agricultores familiares das comunidades de
Postinho (Tijucas do Sul) e de Santo Amaro Um (Mandirituba), ambas lo-
calizadas na Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Tal análise levará
em conta as trajetórias familiares em seus estabelecimentos rurais nessas
comunidades, observando as interrelações entre a materialidade (incluin-
do a natureza) e imaterialidade (saberes, cultura) na constituição destes
territórios rurais, naquilo que incide sobre as estratégias fundiárias.
Neste sentido, a escolha destas duas comunidades é relevante, pois
ambas são originárias da ocupação de terras devolutas pelos caboclos, os
quais percorreram caminhos que contém semelhanças e diferenças impor-
tantes. Semelhanças porque ocupam pequenas áreas de terra (em Posti-
nho, das 32 famílias, 29 têm área até 20ha; em Santo Amaro Um, das 40 fa-
mílias, 37 têm área até 20ha) e mantém relações sociais que caracterizam
tradicionalmente o campesinato, a exemplo de relações de interconheci-
mento (MENDRAS, 1978), da centralidade da família, entre outras. Dife-
renças que se expressam, principalmente, na relação com as demandas da

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territorialidades em (re)construção

metrópole e como isso incidiu no acesso ou não às políticas públicas de


desenvolvimento para a RMC, o que teve influência sobre a composição e
recomposição dos estabelecimentos familiares.
Pensar na agricultura familiar de uma região metropolitana conduz,
de início, à constatação de uma relativa invisibilidade do rural, justifica-
da pela centralidade do urbano e da indústria na lógica dominante de de-
senvolvimento metropolitano. Essa “invisibilidade” dificulta reconhecê-lo
como espaço da produção e de vida de uma parcela importante da popula-
ção, como também da sua importância na construção de novas possibili-
dades de enfrentamento da chamada crise socioambiental, que se apresen-
tam nas “novas ruralidades”, por exemplo, dos produtores orgânicos. Ao
tornar visível esse rural, a constatação que chama atenção é a singularida-
de da RMC, pois possui a maior área rural entre as metrópoles brasileiras
e apresenta uma relevante e diversificada agricultura familiar em um am-
biente natural diverso e heterogêneo.
Como relata Moura et al (2004), a RMC é a Região Metropolitana,
entre as aglomerações urbanas de caráter metropolitano, com maior exten-
são territorial (área de 15,5 mil Km²) e com o maior contingente de popula-
ção rural (1970: 20,09%; 2000: 8,82%) dentre os 2,7 milhões de habitantes.
A agricultura familiar é responsável por cerca de 80% das unidades rurais,
segundo dados do PRONAF e aproximadamente 93% dos imóveis rurais ti-
nham menos de 50 hectares, os quais ocupavam apenas 27% da área total
(INCRA, 1996), tendência que se mantém até hoje. Essa agricultura fami-
liar abriga vários tipos de produtores: tradicionais, voltados à produção de
subsistência; produtores que incorporaram as demandas do mercado de
produção de grãos, batata e cebola, com forte uso de tecnologia e insumos
químicos; produtores de frutas e silvicultores; produtores ultraintegrados
ao mercado de olerículas; e, mais recentemente, os produtores orgânicos.
Porém, mesmo significativo, trata-se de um rural aparentemente
“invisível” para as políticas públicas, pois sua relevância restringe-se às
suas funções de atendimento, às demandas urbanas da metrópole, tanto
no que se refere à produção de alimentos e de possibilidades para o turis-
mo como à preservação dos recursos hídricos e remanescentes florestais.
Essa relativa invisibilidade acaba ocultando a importância do rural metro-
politano que, entre outros aspectos, abriga uma população significativa
(que se aproxima de 250 mil pessoas), é constituído de municípios rurais,
em alguns dos quais, a população rural excede 80% da total e participa
com uma importante produção agropecuária para a RMC e para as demais
regiões. Importância porque se trata de um espaço em que transcorre a
vida dos agricultores, que procuram manter os patrimônios social, cultu-
ral, ambiental e fundiário de suas famílias e da comunidade, para usufru-
to, também, da sociedade mais geral, já que muitos desses aspectos trans-
cendem os interesses locais.

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Deste modo, o estudo das trajetórias das comunidades será realiza-


do levando em conta as relações que os seus habitantes estabelecem en-
tre si e com o ambiente natural no qual estão circunscritos, ou seja, como
construíram e reconstroem suas territorialidades, no contexto de suas rela-
ções com a sociedade mais geral, em especial com o Estado. Para isso, será
utilizada parte das informações e dos dados levantados na pesquisa rea-
lizada em 2005 para a tese de doutoramento, no Programa em Meio Am-
biente e Desenvolvimento da UFPR, defendida em 2006 (CORONA, 2006).
Em especial, dados levantados na pesquisa, realizada com todas as famí-
lias agricultoras das duas comunidades (72 famílias), com base em um for-
mulário, e de depoimentos feitos na última fase de campo, na qual foram
exaustivamente exploradas as trajetórias de cada uma das 12 famílias en-
trevistadas.
O capítulo foi estruturado de modo que, num primeiro momento,
sejam apresentados alguns pressupostos teóricos e a constituição mais ge-
ral do processo de desenvolvimento da RMC; em seguida, será construída a
análise da relação das duas comunidades estudadas com a metrópole; e no
item seguinte será apresentada a discussão das estratégias fundiárias no
contexto do desenvolvimento das comunidades. Nesse momento a análise
será centrada em três aspectos: a constituição do patrimônio fundiário das
famílias agricultoras; a estruturação e reestruturação do estabelecimento
familiar no contexto da dinâmica social, econômica e ambiental; e as pers-
pectivas de transmissão desse patrimônio. Por último, serão apresentadas
algumas considerações finais.

Reflexões sobre as categorias analíticas e a constituição


do território metropolitano

Sob o ponto de vista das ciências sociais, o conceito de território é entendi-


do como o espaço em que transcorrem as relações que os seres humanos,
em suas atividades fundamentais de autorreprodução, estabelecem entre
si e com o ambiente natural no qual estão circunscritos (RAYNAUT et all,
2000). Segundo Santos (2001), território como categoria de análise das
ciências sociais é o território utilizado, ou seja, é onde ocorre a “interde-
pendência e a inseparabilidade entre materialidade, que inclui a natureza,
e o uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política” (SANTOS,
2001, p. 247). Neste sentido, tratar das territorialidades requer compreen-
der a materialidade das comunidades humanas, considerando a conexão
entre o espaço em que ocorrem as relações sociais em suas interrelações
com o meio ambiente, e, ao mesmo tempo, a imaterialidade que se revela
nos processos culturais. Como esses processos estão em contínua transfor-
mação, faz-se necessário observar a permanente construção e reconstru-
ção de territorialidades.

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territorialidades em (re)construção

O desafio é que ao centrar a análise nas trajetórias das estratégias


fundiárias estabelecidas pelas famílias agricultoras das duas comunidades
investigadas, se faz necessário dar evidência às relações entre os aspectos
materiais e imateriais nelas contidas. Ou seja, como a escolha de determi-
nadas estratégias de composição e recomposição dos estabelecimentos fa-
miliares está vinculada às necessidades econômicas (produtivas, técnicas e
de renda), às condições concretas do ambiente natural, e também ao habi-
tus familiar em que são relevantes as predisposições para agir, acumuladas
pelas experiências e saberes historicamente construídos, bem como, pelos
projetos/desejos de futuro das famílias.
Neste sentido, é preciso levar em conta os fatos reais vividos pelas
famílias agricultoras que compõem esses territórios, ou como diz Bour-
dieu (2001), é preciso tomar como base a prática social. Parte-se do prin-
cípio de que, em qualquer formação societária, existem vivências e apren-
dizados para resolver os problemas práticos do cotidiano que implicam a
relação direta ou indireta com a dimensão material, incluindo a natureza.
Existem, além disso, saberes construídos nas relações entre os seres hu-
manos que possibilitam a formação de um arcabouço de conhecimentos
(imaterial) e de sociabilidades, que resultam em características tornadas
permanentes nas diferentes formações sociais. Isso quer dizer que existe
um arcabouço de experiências e de saberes que, sendo estruturantes de
uma dada sociedade, devem ser reproduzidos para que as pessoas possam
até mesmo se reconhecer e se manter enquanto grupo social.
Entretanto, tal arcabouço não é fixo, não segue a ordem de evolu-
ção gradativa tal como supunham alguns teóricos da sociologia clássica,
como Comte ou Durkheim. Ele sofre mudanças não apenas pela evolução
simples de seus elementos, mas também pela desorganização ou desordem
causada por eventos e acontecimentos que ocorrem no ambiente (catás-
trofes ecológicas, etc.), na cultura (iluminismo, feminismo etc.) e na pro-
dução (industrialização, inovações tecnológicas, etc.); os quais modificam
estruturas e possibilitam novas possibilidades e novas estratégias aos ato-
res sociais.
Deste modo, Bourdieu (1991) evidencia que há interrelações dinâ-
micas entre o pensar e o agir, entre a construção do saber e as estratégias
e ações concretas dos atores sociais, as quais são orientadas pelo “senso
prático” para resolver os problemas cotidianos, e não por uma finalidade
intencional, produto do cálculo racional da ação, ou pela simples reação
aos estímulos do ambiente. Evidencia, também, que há interrelações entre
o local e o global, entre as especificidades das comunidades e o complexo
sistema socioambiental. É neste contexto que a opção pelo estudo de co-
munidades está referendada. Toma-se como referência o que diz Morin
(1998), pois para analisar uma comunidade é necessário levar em conta
que ela, ao mesmo tempo, contém singularidades, mas como em todo sis-

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tema complexo, o local contém de certo modo o todo em que se inscreve e


esses dois caracteres são indissociáveis.
Com base nas reflexões teóricas acima, é possível construir um qua-
dro mais geral do processo de desenvolvimento da RMC, e outro mais espe-
cífico, de como as comunidades de Postinho e Santo Amaro Um situam-se
neste processo. Sob o ponto de vista histórico, o território rural da Região
Metropolitana de Curitiba foi se constituindo historicamente através de
dois principais movimentos de ocupação, que revelam aspectos sociais,
econômicos e ambientais os quais influenciam as ruralidades até hoje.
O primeiro foi a ocupação de terras pelos caboclos (“elemento na-
cional”) envolvidos nos ciclos da mineração, da pecuária/tropeirismo (sé-
culo XVII a XIX) e, principalmente, da erva-mate (início do século XIX).
Esses habitantes foram, ao longo do tempo, ocupando áreas devolutas e
constituindo um sistema de vida muito circunscrito ao pequeno grupo so-
cial (da parentela) que se formava no interior dos “faxinais”, alicerçado no
uso comum de terras e no trabalho coletivo sem, no entanto, prescindir da
renda com o trabalho agrícola fora do estabelecimento. Tal processo foi
acompanhado de inúmeras dificuldades e limitações pela precariedade das
condições de vida e trabalho.
O segundo foi a ocupação de terras devolutas pelos imigrantes eu-
ropeus, direcionada por políticas públicas de colonização das áreas rurais
(últimas décadas do século XIX e início do século XX), como uma estraté-
gia de desenvolvimento para a região. As políticas públicas para a ocupa-
ção do rural no entorno de Curitiba suprimia os graves problemas ocorri-
dos com a imigração europeia para as colônias do café em São Paulo, o que
motivou rebeliões contra o endividamento pelo custo da viagem, a submis-
são ao trabalho nas lavouras do café e o não acesso à propriedade da terra,
como era a expectativa dos imigrantes. A colonização na região de Curiti-
ba superou tais restrições, mas não foi muito além, porque a conquista de
uma colônia – coberta por “mato fechado”, sem nenhuma infraestrutura
nem recursos financeiros, impôs limitações concretas à manutenção das
famílias devido tanto à falta de alimentos como ao penoso e árduo traba-
lho, enfrentados pela esperança de melhorar as condições de vida da famí-
lia, vista como inatingível em seus países de origem. Tal política de estímu-
lo ao “branqueamento” da população era acompanhada da expectativa de
que os conhecimentos e práticas “mais racionais” (técnicas agrícolas, uso
de equipamentos, etc.) conduziriam ao progresso desejado. Além das ativi-
dades agrícolas, esses migrantes eram valorizados pelos ofícios de carpin-
teiro, pedreiro, ferreiro, alfaiate, comerciante, etc. Isso colocaria a região
de Curitiba no circuito de desenvolvimento do Brasil moderno.
Tal modernização foi desencadeada pelas políticas públicas, que fo-
ram além do estímulo à imigração. No final do século XIX foi aprovado o
Código de Postura de Curitiba, o qual definiu os limites entre o rural e o ur-

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bano e estabeleceu os planos de ocupação do rural no entorno de Curitiba,


segundo o modelo dos “cinturões verdes” já existentes na Europa. Segundo
Karam (2001), isso demonstrava que o rural reafirmava-se como espaço a
serviço da urbanização, pois as preocupações eram com o atendimento das
demandas da cidade, tanto por alimentos como pela mão de obra destina-
da a outras atividades, incluindo serviços domésticos. A sociabilidade e a
vida econômica estruturavam-se no interior das colônias, favorecendo a
integração entre “iguais”, os colonos mantinham relações esporádicas com
a cidade para vender seus produtos e prestar serviços aos citadinos.
Porém, a consolidação da modernização do rural metropolitano,
como a do brasileiro, tem efetividade a partir das políticas públicas nas dé-
cadas de 1960/70, marcada pelo estreitamento da relação à jusante (agro-
químicos, sementes e matrizes animais selecionadas, etc.) e a montante
(agroindústria de alimentos, CAI´s), entre o setor agropecuário e o indus-
trial, promovido pelo financiamento subsidiado, pela extensão rural, entre
outras políticas públicas. Esse processo promoveu um intenso fluxo migra-
tório em direção à Região Metropolitana, sendo que no final da década de
1970, segundo Maranho e Ciminelli (1988) apud relatório MADE de 1997,
1/3 de sua população era de migrantes (menos de 10 anos como residentes),
predominando a faixa etária de 20 a 39 anos. Destacam os autores do rela-
tório que 79% dos migrantes eram oriundos do interior do Estado, a maio-
ria do rural. Esse fluxo dirigia-se majoritariamente para as áreas urbanas,
mas também para o rural menos valorizado pelo mercado de terras.
Tal processo de modernização transformou aspectos importantes,
tanto na concepção (no saber) como nas práticas (no fazer) dos agriculto-
res. O rural passava a ser visto apenas como espaço da produção (WAN-
DERLEY, 2000) para abastecer as necessidades de alimento da população
urbana, que vinha se expandindo de forma acelerada, em especial nas re-
giões metropolitanas. Os impactos desse modelo de desenvolvimento no
Brasil foram variados por uma série de motivos, entre eles as limitações
por ser um país de grande extensão territorial e com uma multiplicidade
de condições ambientais e sociais e, principalmente, porque o projeto de
desenvolvimento não transformou a base fundiária nem a política de or-
ganização do campo brasileiro, baseado na grande propriedade (índice de
Gini da concentração fundiária brasileira/2003: 0,816 – INCRA, 2009). Des-
te modo, as facilidades foram muito maiores para aqueles que atingiam as
condições de acesso aos financiamentos, em especial àqueles que podiam
dar respostas imediatas, tanto porque tinham patrimônio suficiente para
“penhorar” como para assimilar e desenvolver o novo projeto.
De imediato, muitos agricultores ficaram “de fora” desse processo
e muitos dos que entraram perderam suas terras por diversas razões: por-
que não foram hábeis em lidar com as novas tecnologias; porque os com-
promissos com os financiamentos não foram saudados; porque sofreram a

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pressão (nem sempre “limpa”) para a venda das terras; ou, ainda, porque
a cidade promovia espaços de trabalho e de possibilidades que atraíam­
muitas famílias. As regiões que viveram mais intensamente tais transfor-
mações foram aquelas com condições geoambientais que favoreciam a pe-
netração do pacote tecnológico (terra plana e solos profundos para uso das
máquinas), para desenvolver as culturas agrícolas (soja, trigo, etc.) ade-
quadas ao mercado externo e a alguns segmentos do mercado interno, con-
forme o projeto dos governos militares.
A RMC não apresentava tais condições, por um lado, porque apre-
sentava uma importante heterogeneidade geoambiental por ser uma re-
gião de formação geológica mais “jovem”, que resulta em relevo muito on-
dulado e montanhoso (incluindo a da Serra do Mar) e em muitas áreas
com solos mais rasos e frágeis ao uso intensivo (MADE, 2003). Por outro
lado, porque a “função” do rural metropolitano estava condicionada pe-
las demandas por alimentos e pela prestação de serviços para atender às
necessidades da metrópole em processo de consolidação. As regiões me-
tropolitanas resultaram desse processo de expansão rápida das metrópo-
les que atraíam as populações vindas do meio rural, sem perspectivas de
trabalho e renda, porque elas concentravam os investimentos dos setores
industriais, comerciais e de serviços. As comunidades selecionadas, de al-
guma forma, ilustram tanto a heterogeneidade geoambiental como as di-
ferenças nas relações com as demandas da metrópole e no acesso às polí-
ticas públicas.
É nesse contexto que a COMEC (Coordenadoria da Região Metropo-
litana de Curitiba), instituída por Lei Federal em 1975, institui o primeiro
Plano de Desenvolvimento Integrado da RMC, em 1978, com base na Polí-
tica Nacional de Desenvolvimento Urbano. O PDI promoveu investimentos
em saneamento básico, sistemas de transporte público, equipamentos ur-
banos e sistema viário metropolitano, bem como, estabeleceu uma política
de uso do solo vinculada à proteção dos mananciais hídricos (IPARDES,
2005). Especificamente para a área rural, recomendava: a exploração mi-
neral em municípios da região oeste; a horticultura nas regiões nordeste e
sudeste; a bacia leiteira ao leste (mais próximo de Curitiba); e a exploração
agrícola intensiva ao sul, pelos solos apropriados.
Com o fim do período militar e a redemocratização do país, as mu-
danças institucionais e econômicas foram acentuadas e a COMEC sofreu
um relativo esvaziamento de suas funções, incluindo o enfrentamento das
mudanças ocorridas na Constituição de 1988, que assegurou a participação
da sociedade civil no planejamento municipal, estadual e federal e redefi-
niu a finalidade da COMEC para “coordenar e articular as funções públi-
cas de interesse comum” (COMEC, 2002, p.5). Passada essa fase, a década
de 1990 foi marcada pelas preocupações ambientais e com o crescimento
populacional da região, vislumbrando a necessidade da ação conjunta dos

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municípios. Nessa perspectiva, a COMEC publicou o II PDI em 2003, tendo


como proposta o “desenvolvimento sustentável” que articulasse a questão
ambiental, socioeconômica e o crescimento. Como ressaltado por Karam
(2001), as propostas para o espaço rural baseiam-se na “sustentabilidade
ecológica”, com a proteção dos recursos hídricos e remanescentes naturais;
na “sustentabilidade econômica”, com o desenvolvimento do turismo nas
áreas­de proteção; e na “sustentabilidade espacial”, com a configuração rural-
-urbana por meio do acesso à população e estruturação da Rede Integrada
de Transporte Metropolitano (RIT). O que se conclui preliminarmente é
que as políticas para o rural continuam vinculadas às demandas urbanas,
com ênfase agora na conservação ambiental.
A dinâmica das políticas públicas incide de forma diferente nas duas
comunidades pesquisadas. O município de Tijucas do Sul (município fun-
dado em 1952), onde está localizada a comunidade de Postinho, tem a base
de sua população e de sua economia no rural (população: 12.260, 85% re-
sidem no rural), o qual não foi até hoje incorporado de fato às políticas
públicas da RMC. O município de Mandirituba (município fundado em
1960), onde está localizada a comunidade de Santo Amaro Um, também
tem sua população e economia vinculados ao rural (população: 17.540,
74% residem no rural), no entanto, é um município estratégico para a pro-
dução de alimentos para a metrópole e para o sistema CEASA.

As comunidades rurais e suas relações com a metrópole


Os dois movimentos de ocupação da RMC, expostos anteriormente, estão
presentes na história das duas comunidades selecionadas para a pesquisa.
A comunidade de Postinho em Tijucas do Sul e a de Santo Amaro Um ti-
veram suas origens vinculadas à ocupação de terras devolutas pelos cabo-
clos, os quais constituíram o Sistema Faxinal, caracterizado por uma orga-
nização física e social baseada em estruturas coletivas, de uso de recursos
da natureza e também de organização do trabalho. Essa semelhança foi
sofrendo modificações importantes no decorrer dos últimos 30 anos. Em
Postinho, as famílias pioneiras de origem brasileira (caboclos) ocuparam
as terras e ali estabeleceram estratégias que foram lentamente modificadas
pelas parcas políticas públicas e ações de empresas privadas (reflorestado-
ras e fumicultoras), que promoveram a inserção precária da comunidade
no processo de modernização do campo. O relativo isolamento físico e
social de Postinho promove a manutenção de vários aspectos da vida tra-
dicional das famílias, as quais mantêm um modo de vida e de saberes fa-
miliares (também da comunidade), reveladores de especificidades que se
refletem até os dias de hoje.
O relativo “isolamento” físico e social de Postinho se deve ao fato de
ser ela uma comunidade que foi se constituindo na borda da Serra do Mar,

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na divisa com o estado de Santa Catarina, e longe do núcleo urbano do mu-


nicípio (mais ou menos 40 km) e de Curitiba (mais ou menos 120 km). O
sistema do criadouro comum aliado aos “pixiruns” – trabalho coletivo nas
lavouras em forma de grandes mutirões – permaneceu até cerca de 15 anos
atrás. Nos depoimentos colhidos durante as entrevistas, ficavam explícitos
fatos concretos vividos pelas famílias, incluindo os mais jovens agriculto-
res (por volta de 29 anos), que tinham na memória tanto o funcionamen-
to do sistema como o envolvimento nas atividades dos “pixiruns”, mesmo
quando ainda eram crianças.
O sistema funcionava com características do modo de organização
dos caboclos, conforme aponta Chang (1988), porque o “lajanal”, identifi-
cado assim pelas famílias, se constituía pelo criadouro comum de animais,
principalmente do suíno, no espaço em que se encontravam as “terras de
morada”, que era separado das “terras de planta” pelos rios, córregos e a
lajana (arbusto). As lavouras (milho, feijão e inhame) eram destinadas ao
consumo da família e dos animais e resultavam do esforço familiar, com-
binado com o trabalho coletivo dos “pixiruns”, que contavam com “até 90
pessoas” na capina e colheita. O “pixirum” era um dos espaços sociais mais
importantes dessa comunidade, porque além da função de prover os ali-
mentos para as famílias e animais, era onde ocorriam as festas (bailes para
comemorar ou “pagar” pelo trabalho), o namoro, a troca de alimentos, os
laços de solidariedade, enfim, constituía-se no espaço da sociabilidade.
Esse sistema, no entanto, se reproduzia contando com a renda mo-
netária oriunda da venda de suíno, da queima do carvão e, principalmente,
do assalariamento dos homens, em geral, nas lavouras ou nas empresas
catarinenses. Isso impunha grande penosidade, tanto para quem saía em
busca de emprego, porque os deslocamentos eram normalmente a pé ou a
cavalo e as pessoas viviam em acampamentos mal estruturados como para
quem ficava nas comunidades, principalmente, as mulheres. Elas chega-
vam a ficar três meses responsáveis pelos cuidados com a lavoura, com a
criação, com a casa e os filhos. Há relatos de muitos pixiruns feitos por
grande número de mulheres e crianças. Postinho, pelo relativo isolamento
em relação ao polo regional e às demandas da cidade, manteve uma dinâ-
mica alicerçada na tradição da produção para autoconsumo, do extrativis-
mo, da queima do carvão e do assalariamento agrícola temporário fora do
estabelecimento familiar.
Na década de 1980, o processo de modernização em Postinho, pro-
movido de forma precária pela ação do Estado e de empresas privadas,
principalmente as fumicultoras, ficou restrito a poucas inovações técni-
cas, em especial, àquelas que diziam respeito à produção do milho/feijão
e ao cultivo do fumo. O plantio no “toco” após as queimadas, com uso de
sementes crioulas do milho e dos instrumentos como a enxada e a foice, é
uma técnica tradicional que ainda está presente em vários estabelecimen-

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tos da comunidade. A modernização penetrou na comunidade, de forma


muito esparsa, através da atuação da extensão rural (ACARPA, hoje EMA-
TER) que trouxe orientações técnicas e introduziu as sementes seleciona-
das do milho e do feijão, bem como a adubação química. De forma mais
presente, no entanto, quem promoveu as mudanças mais intensas nos sis-
temas produtivos foram as grandes empresas, preenchendo um relativo
“vazio” deixado pelas políticas públicas.
As empresas de reflorestamento passaram a empregar membros das
famílias agricultoras e a atrair um significativo número de famílias (em
torno de 100) que vinham para se empregar como assalariados, os quais
passaram a demandar terrenos para moradia e que promoveu, também,
modificações no sistema faxinal. Tal demanda criou, ao mesmo tempo,
pressões e oportunidades para as famílias tradicionais da comunidade.
Pressões, porque retirou-se parte das áreas do processo produtivo, o que
facilitou uma relativa valorização imobiliária; no entanto, essas pressões
ocorreram concomitantes com o declínio do sistema faxinal (redução da
produção animal e de grãos). Oportunidades, porque ao serem vendidas
pequenas áreas ou alugados imóveis nos estabelecimentos familiares, ge-
rou-se uma nova fonte de renda.
Nesta comunidade, foram as empresas do fumo as que mais incen-
tivaram a inserção do pacote tecnológico, o qual incluía o adubo químico,
os agrotóxicos, as mudas selecionadas, o financiamento da infraestrutura
(fornos e depósito) e os ensinamentos técnicos. Esses aprendizados se con-
verteram em alterações que ultrapassavam o cultivo do fumo e o assalaria-
mento, modificavam as práticas em relação ao solo, ao reflorestamento e
aos demais cultivos, bem como garantiam um mercado assegurado para
a produção agrícola e para o trabalho, o que consistia numa grande novi-
dade para uma comunidade que não havia experimentado relações mais
diretas e seguras com o mercado. No caso do fumo, essas alterações não
se estenderam a toda a comunidade nem transformaram a vida da maioria
das famílias, porque a integração foi e continua sendo muito seletiva. Os
agricultores integrados com as empresas do fumo são aqueles que vêm mo-
dificando de forma mais visível as práticas tradicionais. No entanto, isso
não representa o abandono tanto de técnicas tradicionais (tração animal,
enxada) como de formas de trabalho coletivo (troca de dias e ainda peque-
nos pixiruns) e, principalmente, da produção para o autoconsumo, do ex-
trativismo e queima do carvão e do trabalho assalariado externo.
As políticas públicas municipais que mais vêm se destacando nessa
comunidade são aquelas voltadas para a prestação dos serviços públicos de
saúde básica, de educação fundamental e de assistência social, para fazer
frente à precariedade das condições de vida de grande número de famí-
lias. As pressões mais severas sentidas pelas famílias agricultoras vêm dos
agentes públicos estaduais e federais, principalmente no que se refere às

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questões ambientais. As pressões vêm através de multas pelas queimadas,


pela extração e transporte demadeira e da queima do carvão, todas essas
ações são tradicionais da comunidade de Postinho.
Em Santo Amaro Um, as famílias pioneiras de origem brasileira
(caboclos) ocuparam as terras e ali estabeleceram estratégias que foram
sendo modificadas através do tempo, mais acentuadamente na década de
1980. No entanto, o sistema faxinal já vinha sendo alterado pelas pressões
e oportunidades que as demandas da metrópole por alimento, principal-
mente frutas e hortaliças, vinha promovendo na comunidade, aliada à in-
serção de poloneses via casamento com pessoas do lugar, o que promoveu
mudanças também no uso e ocupação das terras. A necessidade de incor-
porar mais áreas à produção foi pressionando para o fim do criadouro co-
mum e uma nova reconfiguração fundiária foi se efetivando, com delimi-
tações mais precisas entre seus proprietários. Essas transformações foram
facilitadas, provavelmente, segundo os depoimentos dos entrevistados, pe-
las estratégias dos poloneses que já haviam adaptado o sistema faxinal dos
caboclos a seus conhecimentos sobre cercamento de terras para facilitar
o aumento das roças, isolando-as das criações. Segundo os depoimentos a
seguir, é possível perceber tanto a temporalidade desse processo como as
etapas percorridas pelo desmantelamento do sistema faxinal, o que hoje
ainda vêm ocorrendo em Postinho.
Sistema faxinal? É, eu conheci muito, ih. No tempo dos meus avôs, então
não tinha cerca, mas daí começou a entrar muito vizinho. Vamos dizer, eu
moro aqui e você mora ali no teu terreno, mas daí se eu jogar minhas gali-
nha aqui, vai comer as verdura dele, daí tem que ter um limite fechado pra
não ter problema [...] ah, isso aí, que eu lembro, de quando era piazão já era
fechado, tudo cercado. [...] isso tem uns trinta anos que eu lembro. Aqui pra
baixo, tinha tudo os morador era tudo aberto deixava os bicho tudo solto,
isso faz o que, cinco ano. Cinco anos, só que daí tinha muito portão. Era
um criadoro grande, mas daí, cruzar as estrada, quer dizer, tem um portão
na entrada e um na saída, entra aqui em cima sai lá embaixo, são quatro
portão. [...] então primeiro era tudo aberto então depois veio o cercamento
(entrevistado 32).
Antigamente era um criador muito grande, daí acabou tudo, começaram a
dividir também o criador, então foi ficando pequeno, daí começaram a fazer
planta já meio dentro do criador, daí bem no fim o criador terminou [...] isso
faz tempo, vê eu to com sessenta e três anos, então faz uns 50 anos [...] an-
tigamente aqui tudo era um terreno só [...] tudo criação solta, tudo mundo
tinha bastante criação [...] tinha roça, tinha os terreno do lado, fora do cria-
douro já, então tinha terra de planta meio perto lá, mas na parte do criadou-
ro não. Pra começar onde tem essas terra de planta dá pra vê, sempre tem
um arroio, se não um valo feito nas beira das terra de planta pra separar do
criador. Mas é que o povo antigo trabalhava unido, tinha uma cerca lá eles
num ligavam nem que fosse um mês pra fazer um valo lá, se reuniam ali às

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Comunidades rurais da região metropolitana de curitiba:
territorialidades em (re)construção

vezes dez pessoa ou quinze, e eles terminavam aquele serviço, não interes-
sava o tempo, se um dia ou ia trinta dia, mas eles faziam, o pessoal antigo
num ponto era mais trabalhador, [..] é, aqui tudo mundo começou partir
pros mangueirãozinho pequenininho [..] o nossoda família com os vizinho
durou até uns vinte anos atrás (entrevistado 13).

Essa comunidade, de forma oposta a Postinho, vivenciou transfor-


mações importantes na produção, na forma de exploração da terra e na
sociabilidade, em função de sua integração à dinâmica da metrópole. Seja
porque pertence a um município que faz parte desde o início da RMC, seja
porque está inserida na dinâmica da RMC como fornecedora de alimentos
(olerícolas), seja, ainda, porque está localizada estrategicamente em rela-
ção ao CEASA (Centrais de Abastecimento do Paraná) – que fica próximo a
Curitiba, mas na BR que liga Mandirituba a Curitiba – o fato é que a inte-
gração ocorreu. Essa localização estratégica foi combinada com políticas
públicas de sucessivas gestões municipais e estaduais, as quais vêm desde
a década de 1980 visando ao incremento e fortalecimento das atividades
da agricultura familiar e do rural. Isso fez com que a comunidade de Santo
Amaro Um se integrasse ao mercado e conquistasse melhorias para a po-
pulação (segundo afirmam seus moradores).
Essa integração com a metrópole promoveu, como esperado, a in-
serção da comunidade no processo de modernização do campo de modo
mais intensivo. As principais políticas públicas que foram desenvolvidas
pelo estado (Emater, Microbacias, etc.) e município foram: infraestrutura
– estradas e transporte (incluindo estudantes); saneamento – 80% do mu-
nicípio com água tratada e canalizada; eletrificação rural em quase 100%
das propriedades; cursos para conversão da produção tradicional do milho
e feijão, predominante no município, para a moderna olericultura, fru-
ticultura (frutas de caroço: ameixa e pêssego) e avicultura; inseminação
artificial para melhoramento genético dos animais. Santo Amaro Um foi
diretamente envolvido em tais transformações.
Observa-se que a agricultura é fundamental para as famílias de San-
to Amaro Um, no entanto, quase todas as famílias possuem membros tra-
balhando nas lavadoras e no CEASA. Essa pluriatividade (atividade extra-
agrícola) engloba os agricultores que investiram nas estruturas de lavagem,
seleção, encaixotamento e comercialização com o CEASA, e também aque-
les que são assalariados nestes empreendimentos. Essas atividades, além
de funcionarem como fonte de renda e trabalho, ainda promovem a produ-
ção local de olerículas, mesmo que a concorrência com produtos de “fora”
(regiões e outros estados) acabe sendo um problema, segundo os agriculto-
res entrevistados. Deste modo, a relação com o mercado foi e continua sen-
do a principal via de relação dos agricultores familiares de Santo Amaro
Um com o polo metropolitano. As pressões mais acentuadas que a comu-
nidade vivencia são aquelas relacionadas hoje com as questões ambientais,

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como apontadas no II PDI. Tanto no que se refere às lavadoras que podem


contaminar a água abundante do local como às multas pelo corte de árvo-
res para incorporar novas terras na produção.
Observa-se em todas as políticas públicas citadas acima que é a in-
clusão nas demandas da metrópole que promove maior ou menor inser-
ção das políticas públicas metropolitanas nas comunidades pesquisadas.
Predomina uma visão utilitarista em prol dos interesses do urbano, pois
as políticas públicas gerais para a RMC pouco incidem sobre as reais de-
mandas das populações rurais. Reitera-se, então, a visão predominante
das políticas institucionais, as quais minimizam a importância do rural na
RMC, rural esse que contribui com a dinâmica regional, seja na produção
agropecuária, seja no turismo rural ou, ainda, na conservação ambiental.
A análise das políticas públicas para esse meio remete a pelo menos duas
hipóteses: a primeira seria a de que o rural da RMC continua sem visibili-
dade para as instituições que pensam tais políticas e a segunda apontaria
para o fato de as políticas públicas existentes, em geral, não estarem ade-
quadas às demandas do meio rural da RMC.

Territorialidades em (re)construção:
a terra e as estratégias familiares

Observando a dinâmica da relação entre sociedade e natureza, desenvol-


vida nos itens precedentes, é possível entender como a questão fundiária,
ou da ocupação de terras, sendo a base para a agricultura, conduz a pen-
sar nas várias dimensões que estão nela contidas. A terra, compreendida
como espaço físico que ao mesmo tempo condiciona e é transformado pelo
agricultor, é um território onde ocorrem movimentadas interações entre
os agricultores e deles com a natureza. Essas interações vão além dos as-
pectos materiais, elas se constituem em espaços em que o próprio “ser”
agricultor se constrói e se reconstrói nesta relação. Assim, tratar dessa di-
nâmica e intrincada relação, buscando evidenciar suas diferentes facetas,
requer olhar para além da dimensão produtiva. Como já argumentaram di-
versos autores, a terra não é um meio de produção equivalente aos demais,
utilizados nos estabelecimentos agrícolas. Como afirma Maurel, a terra:

Tem valor de patrimônio, transmissível pela herança dentro de uma linha-


gem. Em qualquer sistema econômico, a terra é um bem mercantil, objeto
de transações, que expressa um preço, preço de locação ou de concessão de
um direito de uso, preço de venda ou de cessão dos direitos de propriedade.
Por sua dimensão de território de produção, fruto do trabalho de gerações, e
não apenas suporte de um processo de produção, a terra revela sua natureza
ambivalente de bem patrimonial e de bem de produção, no ponto de junção,
e às vezes de confrontação, entre a lógica da família e a lógica da exploração
agrícola (Maurel, 1998, p. 89).

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Comunidades rurais da região metropolitana de curitiba:
territorialidades em (re)construção

Entendida como um patrimônio e um bem de produção, não é pos-


sível desvincular a questão da terra de suas dimensões sociais, econômicas,
ambientais e simbólicas. Assim, para compreender a relação dos agriculto-
res com a terra, é importante levar em conta a trajetória de constituição do
estabelecimento familiar, observando a evolução da terra disponível, des-
de sua forma precedente até sua dimensão atual, passando pela aquisição
ou venda de terras. Quando analisadas as trajetórias familiares, é possível
identificar em que contexto ocorreram tais mudanças e quais as limitações
e potencialidades que daí se originaram.
Em Postinho, a questão da terra coloca em evidência vários aspec-
tos. Nos depoimentos transcritos abaixo, é possível observar várias situa­
ções que trazem elementos para compreender a dinâmica da terra nes-
sa comunidade. As afirmações dos entrevistados 11 e 18 demonstram a
presença do conflito que marca a luta dos posseiros pelo direito de pro-
priedade da terra, muito comum na história brasileira. Depoimentos que
conduzem à conclusão de que o espaço social em que transcorreu a vida
das famílias que o habitavam foi marcado pela posição de subalternidade
destas diante do capital econômico e político (incluindo a força) dos que
praticavam a grilagem de terras. As referências a “gente importante [...],
advogado” da cidade ou a “grandes”, os quais são responsáveis pelas em-
presas que estavam comprando e investindo no reflorestamento do Pinus,
há mais ou menos 30 anos, são formas de ilustrar tais conflitos em que está
presente a questão da honra e, ao mesmo tempo, do medo, que expressam
a relação desigual de poder. Está presente, ainda, a noção de que, pelo fato
de as terras não serem de “ninguém”, as posses de fato se tornavam muito
mais precárias, facilitando a ação da grilagem.
Que a gente não... nunca sabe a quantia certa. Que falavam em cinquenta al-
queires, o pai.E daí teve uma parte de invasão, de uns seis a oito alqueires [...]
olha, nem quero citar o nome, mas foi de pessoas importantes de São José dos
Pinhais. Advogado e coisa, né? Veio, cortou roças do pai e fez cerca [...] o pai...
ele sempre teve esperança na justiça e correu atrás da justiça. Ele cobrou, as-
sim, trabalho que ele tinha em cima da terra. Mas a terra exatamente no preço
que ela valia não... foi feito um acordo. Revoltava, né? Os irmão mais velho
tavam querendo tomar outras providências. Daí o pai foi procurar a justiça e
fez esse acordo. Hoje é plantado Pinus lá. Mas foi uma... no dia que ele entrou,
ele entrou com doze pistoleiros. Foi um trabalho feio, foi invasão mesmo. In-
vasão, invasão de cortar roças pra fazer cerca. (entrevistado 11).
Faz dezesseis que nós tamo aqui, nós era do lado de lá do rio que é Santa Ca-
tarina [...] o coitado do pai ele era pobre e nós os filho cada um foi compran-
do um pedacinho pra ir ajudando ele [...] Esse dinheiro é quando nós traba-
lhava pra fora. Aqui eu comprei de um irmão meu. Quando o pai entrou era
mais matão aqui... ele tirou bastantinha lenha, ele queimou muito carvão.
De primeiro os terreno não tinha dono, os primeiro chegaram e foram pe-
gando, e daí diz que aumentou, diz que as empresa de pinus cercaram mais,

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não sei [...] Dois, três ano, era mil real o alquere, agora que subiu [...] agora
acho que é R$2.000,00, aumentou por causa do reflorestamento e tem muita
gente que plantou pinus aqui, valorizou né (entrevistado 18).
Tais empresas, principalmente a Confloresta e a Batistela, margeiam
a comunidade ocupando grandes extensões de terra (Em Tijucas do Sul:
Batistela, com 1.500 alq de reflorestamento; Confloresta, com 3.000 alq;
Panagro, com 2.000 alq – segundo informações da Prefeitura e STR). Mui-
tos moradores venderam suas terras para as empresas de reflorestamento
e perderam sua única garantia de ter um lugar, uma posição na dinâmica
da agricultura familiar, desde que se tornaram trabalhadores assalariados
nas lavouras de outros, perdendo, consequentemente, as possibilidades de
se reproduzirem com mais dignidade.
Eu trabalhei ali na Confloresta, nem me lembro quantos mil alqueires eles
tem [...] Postinho era mais pequeno, mas tinha gente que tinha aí vinte, trin-
ta alqueire, outros cinquenta. E muito deles venderam pra Confloresta. Ago-
ra acho que não compram mais... é só esse ao redor aqui que tem, o mais já
venderam tudo né? Eu acho que ela prejudicou. Porque o povo venderam e
não souberam arrumar o que fazer.Gastava tudo [...] e hoje vive trabalhandi-
nho na lavoura dos outro (entrevistado 27).
As limitações ao acesso a terra estão ligadas, em grande medida,
à presença dos grandes projetos de reflorestamento das empresas que se
instalaram próximas à comunidade. Tanto a aquisição de terrenos como o
plantio de pinus promovido pelas empresas valorizaram o preço das terras
e limitaram (e limitam) os agricultores familiares, que já possuem peque-
nas áreas obtidas através do fracionamento da herança familiar. De certo
modo, tais estratégias das empresas constituíram práticas que interferem
na lógica de reprodução da agricultura familiar em Postinho, seja por te-
rem inserido o plantio de pinus e eucalipto na lógica dos sistemas produti-
vos tradicionais, seja porque a região passou a atrair mais investidores em
reflorestamento, aumentando a pressão sobre os recursos naturais, espe-
cialmente sobre a disponibilidade de terra. No entanto, a busca por “terra
limpa” para o plantio do pinus favoreceu o “ocultamento” da permissão
das empresas pela derrubada de árvores e de sua transformação em carvão
pelos moradores de Postinho. Assim, a pretendida modernização se realiza
nesta comunidade através das ações das empresas globais, seja do reflores-
tamento, ou do fumo.
O apego a terra parece ser a garantia de um lugar na comunidade
e na sociedade. Como diz o entrevistado 11, ele pode trabalhar onde for,
mas tem que manter (e não vender) a terra que vai herdar do pai, a qual
é a garantia de manutenção de um lugar para os filhos. É um dos meios
que garantem a reprodução da lógica familiar, mesmo quando a agricultura
está reduzida à pequena produção de autoconsumo e o trabalho assalariado
fora do estabelecimento passa a ser a única fonte de renda monetária, como

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territorialidades em (re)construção

é o caso da maioria das famílias de Postinho. Como explicita a esposa do


entrevistado 21, a terra que resultou da herança das duas famílias (dela e do
marido) é que constituiu o estabelecimento familiar, que nunca foi alterado,
o qual garante a manutenção de um modo de viver, alicerçado na tradição
(criar os animais soltos, manutenção do pousio arbustivo, queimada e a
planta “no toco”, o uso do “monjolo” para fazer a farinha, entre outros), e
que assegura a eles uma condição social reconhecida na comunidade.
No depoimento de um dos agricultores – o qual, comparativamente
aos demais da comunidade, está em melhores condições de vida (entrevis-
tado 23) – é possível observar uma das experiências consideradas, tanto
pelo entrevistado como por outros agricultores da comunidade, comobem-
sucedidas. Ele é um “vindor” que chegou à comunidade há mais ou menos
18 anos e casou-se com uma das filhas de um casal local, ou seja, a família
era “do lugar”. Sua experiência “bem-sucedida” tem como base os resulta-
dos econômicos auferidos com a produção do fumo aliada a uma das mais
expressivas produções de autoconsumo, como verificado na pesquisa de
campo. Seu estabelecimento foi sendo constituído através da compra de
pequenas áreas, sempre agregadas ao primeiro alqueire inicial. Diz ele que
sua conquista é porque: “eu sempre digo, quem tem vontade, tem sonho,
consegue”.
Foi aumentando, comecei com um alqueire, daí, quando eu fiz a primeira
safra comprei mais um alqueire. Só que daí, esse alqueire, eu fiz em socie-
dade com a mãe, fiquei com meio pra mim, mas daí no outro ano, eu com-
prei mais um alqueire, eu já tinha comprado meio alqueire do meu sogro, aí
depois comprei mais um alqueire. Tudo com o fumo. Hoje dá praticamente
dez alqueires, dá vinte e três hectares ponto seis, depois não comprei mais
porque os filhos cresceu, tem que comprar roupa, tem que pagar um curso
pra lá, você tem que dar graças a Deus de se estar levando assim as coisas.
Não tenho do que me queixar, pra mim tá bom assim, Mas se quiser comprar
tem terra [..] só que tá muito caro [..] esse último que comprei pagamo dois
mil... era um alquere e meio (entrevistado 23).

Há, nas diferentes experiências dos agricultores de Postinho, uma


tensão entre o tradicional e o moderno. Uma modernidade exposta pelo
uso de tecnologias (insumos industrializados e máquinas) para a produção
voltada ao mercado globalizado (fumo e madeira), que se desenvolve no
contexto da agricultura camponesa. Mas essa experiência dá a dimensão
de como essa modernidade é incompleta, pois é questionável tanto quanto
às finalidades como em relação aos meios empregados para a produção.
Conforme dizem os plantadores de fumo, houve mudanças importantes
na diminuição do grau de toxidade dos agrotóxicos e nos programas mais
racionais de reposição de árvores visando à madeira consumida nos for-
nos, porém, a produção não deixa de incomodar pela sua finalidade, que é
a de alimentar o vício, prejudicial à saúde dos usuários, nem de exaurir o

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trabalho dos membros das famílias agricultoras envolvidas no período da


colheita e secagem do fumo. O pinus e outras espécies para reflorestamen-
to (as mais comuns são a bracatinga e o eucalipto) são sinais incontestes
da degradação ambiental e, pelo modelo de cultivo, de degradação da pai-
sagem rural. Sem aprofundar nos aspectos técnicos, é possível verificar a
“olho nu” que a monocultura do pinus impede o florescimento de outras
espécies e, segundo os depoimentos da maioria dos entrevistados, ele “seca
as águas” do lugar.
As limitações ao acesso a terra, principalmente quando se referem
ao preço desta (em torno de R$1.500,00 e 2.000,00 o alqueire), dão a di-
mensão, por um lado, da precariedade das condições gerais de vida dos
agricultores de Postinho, por outro lado, demonstra a pressão pela redu-
ção ou manutenção do preço das terras num patamar baixo, para que os
investimentos em projetos de reflorestamento sejam viabilizados pelas
grandes e médias empresas e, inclusive, pelos pequenos produtores. Em
síntese, pode-se dizer que a pressão pelo acesso à terra contém uma tensa
dualidade: o aumento dos preços para alguns em função dos projetos de
reflorestamento – agricultores das famílias mais tradicionais de Postinho
que vivem em condições de precariedade – e a manutenção dos preços bai-
xos para viabilizar e gerar os lucros almejados pelas empresas, já que os
frutos dos investimentos são a médio prazo (variando de 15 a 30 anos).
Em Santo Amaro Um, como dito anteriormente, não é diferente: a
maioria dos agricultores familiares foi constituindo seu patrimônio a par-
tir da herança familiar, sendo que grande parte das famílias, como em Pos-
tinho, ainda não possui o título de propriedade. A estratégia das famílias
é conceder a cada filho parcelas do espaço da propriedade dos pais, para
irem desenvolvendo suas atividades e construindo as estruturas físicas ne-
cessárias para atender às opções produtivas e às necessidades de cada fa-
mília. Há, em Santo Amaro Um, uma estrutura de distribuição das áreas
de grande parte dos estabelecimentos muito parecida com a de Postinho, o
que lembra os faxinais, pois há uma divisão de “terra de planta” e “terra de
morada”, sem que isso esteja na memória recente dos entrevistados. Isso
aparece em algumas falas, mas não com a mesma intensidade e clareza
que nas dos entrevistados de Postinho, até porque muitas pequenas parce-
las que provavelmente eram “terra de planta” foram sendo comercializa-
das com outros agricultores, perdendo as características originais.
O pai não chegou a dividir, mas acontece que cada um se apoitô num pedaço
[...] Então daí agora um não vai incomodar o outro [...] Na falta do pai ou da
mãe, ninguém vai dizer assim: “Ó você vai saí daqui porque eu quero o terre-
no”. Ah, o nosso aqui é pequeno, trinta litro, porque tem a casa, paiol, quintal
pro verdinho pra vaca, tenho fechado o cavalo e a vaca, é isso que tô usando.
Ah, minha terra de planta deve dá uns perto de dois alquere, da herança da
mulher. Daí eu tenho um terreninho que eu comprei do pai, mais um alque-

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territorialidades em (re)construção

re, que eu tô plantando. Tem um pedaço que tem capoeirão que já num posso
mexer porque tenho uma aguada lá, um arroio. (entrevistado 2).
É aqui é herança... aí é pouquinho, é sete litro e meio só [...] num tem docu-
mento [...] agora lá em cima meio arquere é comprado e tem mais um peda-
ço ali no asfalto que é comprado, que é de nove mil metro. É três terreno e
somado dá trinta e sete litro tudo, é mais o menos isso. Ah comprei faz anos
já, ih, essa aqui eu tenho documento da terra que comprei faz uns trinta ano
e o de lá de vinte ano em diante também. Comprei com as fruta, eu plantava
ameixa antigamente. (entrevistado 13).
Quase todos esses, eram tudo terreno do meu avô, ficou pros tio, daí os tio
foram morrendo e foi ficando tudo pros filhos [...] aqui nós compremos de
uma tia, que ela ganhou de herança lá do meu avô, é um alquere (27 litros).
Aquela época eu paguei quatrocentos contos [...] Deus o livre. É, aqui pri-
meramente todo mundo comprava terreno barato, mas é tudo enrolado [...]
documento de herdeiro, né? Eu tava comprando dois alqueire aqui pertinho
da Areia Branca por trezentos e cinquenta conto, mas fugiu os documento.
Nunca sai documento aqui.Mas a nossa tem escritura.(entrevistado 14).
Ah, esse aqui[...] era do meu pai. Foi de herança. Faz quase quarenta anos,
daí fiz a casinha ali. Depois continuamo e daí foi indo, indo, e [..] eu com-
prei tudo as parte que tinha aqui [...] dos irmão. Herdei aqui pouquinho, só
peguei... oh, parece que deu oito litro cada um só. Ah, eu comprei no total
sete alquere de chão. E tudo os fio tão tudo em cima desse terreno. Tudo,
tudo trabalhando [...] é quatro. O mais novo que é técnico agrícola [...] é, tá
construindo aqui do lado. (entrevistado 34).

Segundo os depoimentos dos entrevistados, é possível identificar


que a estratégia predominante das famílias é acolher os filhos que querem
permanecer na terra, permitindo que ocupem e desenvolvam suas opções
produtivas e de trabalho no estabelecimento dos pais. Nos dados sobre os
40 estabelecimentos, consta que 17 possuem outros domicílios além da-
quele da família do responsável.
Em relação ao acesso a terra, as limitações que se apresentam nas
falas dos agricultores devem-se ao encarecimento no preço desta, porque
está cada vez mais escassa; e às pressões pela preservação ambiental que
impossibilita o uso de novas áreas. A escassez de terras deve-se, tanto à
permanência de um número significativo de membros das famílias pelas
oportunidades de trabalho, renda e de manutenção do patrimônio fami-
liar dos pioneiros e de seus descendentes como a “entrada dos chacreiros”
– novos proprietários que são, em sua maioria, da cidade e visam ao lazer
– que vêm comprando terras de herdeiros que não residem e não têm inte-
resse nas terras da família. Muitos consideram que a localização estratégi-
ca em relação ao CEASA e o interesse dos proprietários das lavadoras e dos
“ceaseiros” (que têm box ou que vendem como intermediários na “pedra”)
são, igualmente, motivos para a valorização das terras.

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Aqui é difícil de comprar, aqui é caro. [...] ah, um litro de terra eles querem
à base de um conto (R$1.000,00) o litro. [...] Aumentou é por causa que tem
muito chacrero entrando. Teve uma velha que comprou treze litro de terra
e pagou dezessete milhão. [...] Até pagou demais também. [...] Vem fazer
chacrinha pra vim fim de semana. Por causa disso que virou esse preço. Ih,
atrapalhou tudo a comunidade [...] antigamente você comprava um alquere
de terra por dez conto, agora hoje, um alquere de terra, você vai comprar é
quarenta conto um alqueire aí (R$ 40.000,00). Porque não dá pra comprar
mais. Não tem condição...é um preção. (entrevistado 14).
Ma tem aí uns oito, nove chacrero. O que acontece é o seguinte: herdeiro
dos terreno dos pai que tão vendendo, daí vai vindo os chacrero [...] isso não
é bão, eu acho que isso vai ser ruim. Prejudicou muita coisa porque o cha-
crero chega ali, ele compra, põe uma cerca, ele cerca e quando era do dono
só, a pessoa às vezes alugava pra plantar o terreno, tinha mais espaço, hoje
o chacrero compra, cerca lá, pronto, não aluga pra ninguém e também num
plantam. Mas aqui no começo tinha tanta galinha solta e agora não se pode
tê uma galinha solta mais. [...] Por causa dos chacrero [...] porque eles num
quer incomodação. É, isso aí aperta o lugar, os chacrero começam vim e cer-
car [..] porque as pessoas que já se criaram junto, eles se combinam tudo, sai
com as galinha vai pro terreno do outro um não liga, mas os chacrero num
pode, são diferente. (entrevistado 13).

Em Santo Amaro Um predomina a estratégia do arrendamento ou


“aluguel” das terras necessárias para compor o estabelecimento familiar.
Tal necessidade é dimensionada pelos projetos e pela capacidade produti-
va da família. Os motivos estão, em geral, relacionados aos altos preços da
terra e à indisponibilidade de terras “limpas” para o cultivo, que estejam à
venda ou disponíveis para o arrendamento. A pressão que os “chacreiros”
fazem é grande, seja porque aceitam comprar áreas acima do preço ope-
rado na comunidade, seja porque deixam de arrendar (ou fazer parceria)
áreas que antes faziam parte da dinâmica de composição dos estabeleci-
mentos familiares. Estima-se que cerca de ¼ das famílias seja dos chama-
dos chacreiros, presença que, pelas expressões de indignação das famílias
pioneiras, coloca-se como uma ameaça às possibilidades de reprodução do
estabelecimento e da família. Isso porque estabelecem barreiras precisas
à manutenção de sistemas produtivos (como a criação solta) tradicionais,
além de retirarem áreas importantes que faziam parte da dinâmica de com-
posição e recomposição do estabelecimento familiar através do habitual
aluguel ou parcerias de terras. Pelos dados da pesquisa, Postinho tinha um
estabelecimento com arrendamento e quatro com parcerias; Santo Amaro
Um tinha oito estabelecimentos com arrendamento e seis com parcerias.
A restrição ao acesso a terra na comunidade traz à tona uma das
questões ambientais mais citadas nas conversas com os agricultores: os
limites que as leis ambientais colocam para o uso produtivo do solo, prin-
cipalmente através da lei de proteção dos recursos hídricos e da reserva

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Comunidades rurais da região metropolitana de curitiba:
territorialidades em (re)construção

florestal obrigatória. Essas leis são apontadas pelos agricultores como ne-
cessárias, mas, também, limitantes para eles que têm um acesso precário à
terra, especialmente em função da área pequena. Deste modo, a “terra lim-
pa” passou a ser o grande filão do mercado de terras na comunidade e ela
compensa os sacrifícios da família. A expressão “terra limpa” significa, no
geral, terra sem mata e plana, porque a ausência dos rios ou arroios evita
tanto a obrigatoriedade da mata ciliar como a possibilidade da erosão.
As terra aí depende do local. Às vezes é alto o preço, de repente abaixa, depen-
de. Olha o pessoal que vem de Curitiba paga mais. É só o que vem de lá, por-
que daqui mesmo... Que nem nós, se for pra comprar um terreno aqui dentro
do Santo Amaro, pra nós num serve [...] Porque aqui num dá pra plantar, é
tudo mato que sobrou. Aí você vai mexer num troço desse aqui num dá. Ah
mas se tem uma terra limpa, se surge uma terra limpa que dá pra comprar,
daí o caboclo tem que se esforçar. Mas é... quem tem terra no limpo, num
vende. Que nem desses parente meu ali. Eu fui lá, até pra alugar ou comprar
um pedaço, mas num... por enquanto num teve acerto cus home. O preço,
sabe que o troço aumentou. [...] Hoje um terreninho qualquer, que seja limpo
aí, menos de milhão num compra, o litro. É mil (R$ 1.000,00) o litro e não...
num acha [...] prá comprar barato aí mais é terreno caído bastante. Agora
limpo num tem. Esse é muito difícil de achar. (entrevistado 2).

A estratégia do arrendamento ou da parceria para compor o estabe-


lecimento familiar representa, por um lado, uma opção menos arriscada
que a compra de terras, porque tanto os altos preços operados atualmen-
te como o fato de a agricultura ser uma atividade que depende das condi-
ções naturais (oscilações climáticas) podem colocar em risco a reprodução
do estabelecimento pelo endividamento. Por outro lado, coloca riscos pela
falta de garantias sobre a permanência do arrendamento de um ano para
o outro, porque a valorização das terras, interferindo no aumento do va-
lor do aluguel, conduz à troca de arrendatário pelo que pagar melhor. Isso
leva à precarização das relações sociais, pela quebra de confiança entre as
famílias da comunidade, e da qualidade da terra, pela insegurança do in-
vestimento, como o exemplo da adubação. Não havendo garantias para o
acesso a essa através do arrendamento ou de parcerias, a compra continua
sendo uma possibilidade, mas não sem riscos. Nesse sentido, o depoimen-
to a seguir é muito ilustrativo:
Não, aqui não encontra terreno pra comprar e se tem o preço é muito alto.
Nós pretendia comprar mais 1 ou 2 arquere, mas não dá, sabe por quê? Se
eu for financiar um alqueire pelo banco HSBC, nós temos folha de cheque
de lá, se for vinte mil reais, o que vai acontecer? Eu tenho que penhorá a ca-
minhonete, ou o trator. Daí tem que pagar semestral ou anual. E se for men-
sal, donde vou arrancar mil e pouco por mês? Tem mês que gastemos tudo
e fico até devendo pro mercado, pra casa de agropecuária de defensivos, en-
tão você tem que ter prazo, cheque, uma amizade pra você tocar o barco. A

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Hieda Maria Pagliosa Corona

saída é alugar os pedacinho, e você tentar na safra, assim, tem ano que você
sai, tem ano que fica no vermelho. Depende do que? Do tempo. Se o tempo
correr bem, boa produção. E tem mais: quando que eu alugo o terreno e me-
lhoro, porque faço adubação verde e tal, mas não tenho contrato [...] porque
a turma tem medo de contrato, eles acha que com um contrato de um ano
você tá querendo ficar com a terra dele. Ignorante mesmo. [...] Agora se eu
arrumo um terreno aqui alugado da pessoa, mesmo de quem tem chacrinha
aqui pra empregar o dinheiro. Daí ele quer que plante, eu pranto, mas eu
digo que temo que acertar porque eu quero saber se vai me alugar no ano
que vem, porque não adianta eu arrumar o terreno, forçar o trator e me es-
forçar, deixar o terreno uma joia e eu pagando 500 reais e de repente vem
uns que diz, “não seja burro rapaz, eu te dou mil reais esse ano”, e aí nem
me avisa. Aí tá louco, rapaz, é difícil, mesmo! Existe muito desse tipo [..] é o
tipo das família que vieram de fora né. (entrevistado 32).
Na discussão sobre a transmissão do patrimônio fundiário, aparece
mais nitidamente a noção de que a terra é um patrimônio também socio-
cultural e que a luta pela manutenção desse patrimônio passa pela estra-
tégia de assegurar a sucessão da terra para os descendentes. No entanto,
o processo de sucessão não ocorre sem tensões, inseguranças e temores
sobre a possibilidade concreta de a sucessão garantir a reprodução da fa-
mília no estabelecimento. Praticamente a totalidade dos entrevistados das
duas comunidades tem, nos seus projetos de futuro, a preocupação com a
sucessão desse patrimônio e a expectativa de continuidade da propriedade
e das atividades desenvolvidas pela família. Estar convencido, de alguma
maneira, de que o patrimônio fundiário permanecerá na família é uma
motivação tanto para a expansão deste como para o estabelecimento de
novas estratégias produtivas e técnicas. O contrário também é verdadeiro,
ou seja, quanto mais inseguro sobre as possibilidades reais da sucessão,
menor o interesse na ampliação do patrimônio fundiário.
Em Postinho, a maioria dos entrevistados na última etapa da pesqui-
sa de campo era de casais com idade em torno de 40 anos. A preocupação
com o futuro da propriedade está em estreita relação com as possibilidades
concretas de garantir a sobrevivência dos filhos. Essa garantia, em quase
todos os casos, se dá através do reflorestamento, que é considerado uma
estratégia que permite construir uma poupança para os filhos e, em alguns
casos, também para a velhice. Porém, essa prática encontra na restrição ao
acesso à terra, tratado anteriormente, um obstáculo a ser superado.
Ah, eu espero que ele assuma sim. Eu queria botar ele num colégio agríco-
la, mas ele não quer, ele tem vergonha, ele acha que ficar longe é ruim. Ele
tem vez que fala de comprar outra propriedade pra ele aqui do lado, porque
o homem quer vender uma área de seis alqueres, e eu falo: é bom, tem que
comprar mesmo. E ele tá falando de plantar reflorestamento. Pra ter uma
ideia, ontem ele foi cortar uns pau secos de eucalipto lá embaixo e ele viu as
sementes de eucalipto e colheu e tá preparando as sementes. Não, por en-

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Comunidades rurais da região metropolitana de curitiba:
territorialidades em (re)construção

quanto não pode comprar [..] mas eu sempre digo, quem tem vontade, tem
sonho, consegue. (entrevistado 23).
É só pros filho esses pinus, que a gente usa pro futuro deles, porque eu outra
coisa... não sei te dizer. É, se puder estudar e fazer [...] mas é meio difícil.
Porque fazer uma faculdade, por exemplo [...] eu digo, às vezes estudá num
aproveita porque não existe muito trabalho, tem muito estudado qui num
tem o quê fazer. É isso que eu sempre falo, que se, se plantar pinho, vai sê
mais futuro prá eles do que estuda... eles até a terceira série tem que estudá,
que nós temo aqui. (entrevistado 18).
Em Santo Amaro Um, a pressão pela limitação ao acesso à terra
também é um fator que pesa nas decisões sobre o futuro do estabelecimen-
to. Aliada a esse aspecto, observa-se, em vários depoimentos, a existência
de uma relativa insegurança na compra de novas áreas de terras vinculada
ao temor de que os filhos não permaneçam na propriedade familiar e, as-
sim, não garantam a reprodução desse patrimônio construído através da
história dos pais e de seus ascendentes.
O futuro pra família? O que eu penso é que tem que segurar esse terreno pra
mim dá um pedacinho pra cada um dos filhos quando eu morrer. Porque
mais a gente não vai pode comprar, eu acho tudo difícil. Num quero com-
prar mais terreno [...] melhor alugar porque arrisca os filhos vender tudo de-
pois e trocar por qualquer coisa. Tem família que executa o que o pai manda,
não vai vender o que o pai deixou, mas outros vão vender e trocar por carro
velho, caminhão, sabe como é? Que nem aqui tem um vizinho que o velho
comia farinha, só pra deixar pros filho, eles morreram, brigaram e trocaram
por carro veio... sambaram com tudo. [...] Até a granja de estimação, o velho
ficava a noite intera cuidando, venderam. (entrevistado 14).
Nossa terra fica pros filhos, com a família [...] bom, se vão ficar é problema
deles né, porque hoje em dia sabe como é... enquanto tá no nome da pessoa
ninguém num vende as terra, só que caiu nas mão dos filho, daí eles faze, a
maioria vende, aí vem o problema dos chacrero, é isso aí né. [...] Mas a maio-
ria eu acho que querem ficar, que nem um dos filho acho que ele vende seu
pedaço, mas outro gosta mais da roça. Porque as pioca (meninas) hi, essas
aí nem pensam em ficar na roça, já são empregada na cidade e uma quer
estudá faculdade... que Deus ajude que passe. Mas pro futuro [...] eu acho
que assim, a gente da idade que tá agora eu acho que o sonho é ficar como
tá né. (entrevistado 13).

É possível afirmar que a questão da terra vista como um patrimô-


nio familiar coloca em evidência a interrelação existente entre os aspectos
materiais e imateriais presentes nas estratégias que são estabelecidas no
espaço ou território no qual se desenvolve a vida destas famílias. Há di-
ferenças de posições na estrutura social e nas disposições para a ação e,
ao mesmo tempo, semelhanças, quando observados o sentido e a finali-
dade de tais ações. Ou seja, ao estabelecer as estratégias fundiárias, todos

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Hieda Maria Pagliosa Corona

os agricultores pesquisados, mais especificamente aqueles envolvidos na


pesquisa aprofundada, procuraram enfrentar as limitações e as pressões
do mercado de terras e aproveitar as possibilidades abertas pelo mercado,
com o objetivo de manter a família no estabelecimento rural. As estratégias
de sucessão do patrimônio fundiário, levantadas a partir dos depoimentos
acima, demonstram especificidades em cada uma das comunidades, o que
não significa que as mais comuns em Postinho (reflorestamento) não se-
jam também utilizadas por agricultores de Santo Amaro Um. Da mesma
forma, não quer dizer que estratégias destinadas a enfrentar as restrições
pela valorização das terras em Santo Amaro Um (arrendamento e parce-
rias) não estejam presentes, de certo modo, em Postinho.
As diferenças têm origem nas particularidades em relação à ocupa-
ção e ao uso da terra, ou seja, no uso dos recursos naturais disponíveis e na
história das famílias e suas tradições culturais. No entanto, as singularida-
des observadas não encobrem o fato de que as estratégias fundiárias iden-
tificadas são comuns na agricultura familiar, tanto no objetivo – manter a
família ou parte dela no estabelecimento rural – como no meio – utilizar-se
do próprio potencial que representa ter na família o espaço social básico
em que as carências e as restrições são enfrentadas. Isso pode ser consta-
tado no uso compartilhado da terra de forma geracional, como também no
esforço (mesmo que com temor) em manter o patrimônio familiar para as
futuras gerações.
Há semelhanças nas pressões que “o pessoal de fora” – os chacrei-
ros, em Santo Amaro Um e os “vindor”, em Postinho – vêm promoven-
do nas comunidades. A restrição do acesso à terra coloca, de certo modo,
em risco as estratégias fundiárias das famílias. Restrição, pela valorização
imobiliária e retirada de áreas do processo produtivo; como é o caso de
Postinho, com a venda ou aluguel de áreas para os assalariados das empre-
sas reflorestadoras; e no caso de Santo Amaro Um, com venda de terras aos
chacreiros. No entanto, essa mesma dinâmica cria oportunidades que, no
caso de Postinho, gerou e gera renda extra.
Observa-se que em ambas as comunidades a restrição ao acesso à
terra na comunidade traz à tona a noção de “terra boa”, que para as famí-
lias agricultoras entrevistadas é aquela pronta para o plantio, portanto,
“limpa” para o uso agrícola. Isso lembra o que diz Brandão (1999, p. 64)
sobre a relação de afeto do lavrador com a terra no tocante ao desejo “de
tornar ‘culturalmente’ culto o inculto, civilizado o selvagem, socializado e
útil aquilo que, dado pela natureza ao homem, somente parece completar
o ciclo de seu valor quando transformado de floresta em campo, de campo
em terra de lavoura, de terra de lavoura em lavoura plantada e colhida”. O
sentido desse desejo do lavrador tem uma relação estreita com o “desejo”
ou projeto de inserção do Brasil na modernização, desde o início do século
XX, mais precisamente com a vinda dos imigrantes.

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Comunidades rurais da região metropolitana de curitiba:
territorialidades em (re)construção

Isso é possível perceber mais nitidamente em Santo Amaro Um do


que em Postinho, seja porque ela esteve inserida no processo de desenvol-
vimento da metrópole, seja pela influência dos poloneses (em Mandiritu-
ba há importantes colônias de poloneses e ucranianos). Como diz Chang
(1988, p. 35), com base nos escritos de Wachowicz (1981), “apesar das pre-
cárias condições de produção, o imigrante polonês era imbuído de um es-
pírito de laboriosidade e de ânsia por terra fora dos padrões conhecidos
pelos brasileiros”. Se de início os poloneses tinham ânsia por terra e a des-
bravavam derrubando o mato para poder cultivá-la, agora as limitações de
acesso à terra colocam o mato como um limitador à reprodução da família
e à possibilidade de crescer e prosperar.
Desse modo, é possível evidenciar como as particularidades das co-
munidades estão em relação com as questões mais globais, através das re-
lações com as políticas públicas e com diferentes culturas, e, também, das
demandas de empresas globais. A terra ou as questões fundiárias, devem
ser entendidas com base na complexidade do que é ser agricultor familiar
e em como a terra extrapola questões produtivas e se afirma como um pa-
trimônio familiar em suas múltiplas dimensões.
Assim, é possível afirmar que as estratégias fundiárias estabeleci-
das pelos agricultores são informadas pelo habitus (experiências/saberes
imateriais), o qual se revela tanto nas estratégias concretas (senso prá-
tico) estabelecidas pelos agricultores para resolver seus problemas coti-
dianos como nas possibilidades de antecipação, presentes nos projetos
de futuro. São informadas, também, pelas condições materiais concretas
nas quais os agricultores estão circunscritos, em que contam tanto a si-
tuação social em que se encontram (renda, educação, participação, etc.),
implicando em suas relações com as políticas públicas como as relações
que mantém com o ambiente natural, o que implica no uso e ocupação
dos recursos naturais, entre outros. Ambas as dimensões estão presentes
na construção dos territórios, e não são fixas, estão em contínuo movi-
mento, por isso as territorialidades estão sendo constantemente (re)cons-
truídas.

Referências

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CHANG Man Yu. Sistema faxinal: uma forma de organização camponesa
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COORDENAÇÃO DA REGIÃO METROPOLINATA DE CURITIBA (CO-
MEC). PDI – Plano de Desenvolvimento Integrado da Região

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Hieda Maria Pagliosa Corona

Metropolitana de Curitiba 2001: Documento Síntese para Discus-


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CORONA, Hieda Maria Pagliosa. As estratégias de reprodução social
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Comunidades rurais da região metropolitana de curitiba:
territorialidades em (re)construção

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

Márcio Freitas Eduardo


Grupo de Estudos Territoriais – Unioeste | marciofreitaseduardo@hotmail.com

Todos os homens seriam, portanto, necessariamente


iguais se de nada precisassem. A miséria, condição
agregada à nossa espécie, subordina um homem
a outro homem; não é a desigualdade
que é um mal real, mas a dependência.
(Voltaire, “Dicionário Filosófico”).

Considerações acerca do fenômeno do desenvolvimento


Frequentemente recordamo-nos, com reminiscência, do tempo em que as
relações sociais de produção do espaço eram fundamentadas nas possibi-
lidades concretas das realidades dos lugares. Era um tempo das perma-
nências históricas. Era de imperiosidade do tempo lento. Dos valores de
uso. Tempo em que apenas a dimensão natural possuía efeito globalizan-
te. As técnicas eram produzidas a partir das territorialidades específicas
e, assim, instalavam-se nos territórios. Não expressavam desígnios es-
tranhos, “racionalidades alienígenas e alienantes” (SANTOS e SILVEIRA,
2001), muito menos conteúdos ideológicos estabelecidos com intentos a
priori. Poderíamos falar, objetivamente, em relações de desenvolvimento
local.
No começo dos tempos históricos, cada grupo humano construía seu espaço
de vida com as técnicas que inventava para tirar do seu pedaço de Nature-
za os elementos indispensáveis à sua própria sobrevivência. Organizando a
produção, organizava a vida social e organizava o espaço, na medida de suas
próprias forças, necessidades e desejos. A cada constelação de recursos cor-
respondia a um modelo particular. (SANTOS, 1992, p. 97).

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

O desenvolvimento imperioso das forças produtivas, intensificado,


no transcorrer da história, como tônica da expansão das relações capi-
talistas e dos conflitos de classes, proporcionou, progressivamente, a de-
sestruturação e o rompimento com a saudosa autogestão do lugar, com
os princípios dos desenvolvimentos territoriais autóctones. Os lugares, na
contemporaneidade, incessante e intencionalmente, são redefinidos, como
ressalta Santos (1992, p. 98), “como ponto de encontro de interesses longín-
quos e próximos” e a técnica torna-se elemento imperativo provendo de
unicidade os território. Instaura-se o desenvolvimento, negligenciando as
temporalidades locais e os almejos territoriais de suas populações.
Durante a agonia moribunda da sociedade feudal, os humanistas,
apegaram-se ao resgate de valores greco-romanos, adormecidos por mil
anos, como princípio para a constituição de um novo ideário do renasci-
mento intelectual, do racionalismo. Assim como para os humanistas, hoje,
é mister encontrarmo-nos empenhados num renovado processo de relei-
tura de determinados preceitos de organização social a começar por uma
revisão paradigmática do sentido relegado historicamente à concepção de
desenvolvimento, especialmente no que tange à questão agrária e o capi-
talismo. A empreitada não é a de retroceder na história, revitalizar valo-
res adormecidos, mas sim a de buscar subsídios históricos para o perfeito
entendimento do conceito de desenvolvimento, suas interfaces e trans-
mutações. É crucial que sejam reexaminados os atuais paradigmas de de-
senvolvimento que primam pela sustentabilidade apenas econômica dos
territórios e não pela sustentabilidade de cada território enquanto multi-
dimensionalidade.
Indubitavelmente, vivemos o tempo do capital e esse tempo é o tem-
po de sua própria valorização, de sua reprodução, contínua e ampliada. Os
princípios atuais de desenvolvimento eclodem de vertentes que defendem
a maximização desse tempo do capital globalmente combinado, estrutura-
do em um mecanismo autoacelerativo, seletivo e perverso, social e ecolo-
gicamente insustentáveis.
Os disparates de desenvolvimento entre os diferentes lugares são
medidos em termos de crescimento do Produto Interno Bruto. As de-
sigualdades territoriais são compreendidas em termos de transitorieda-
de sob a tutela de uma visão amorfa, unilateral e homogeneizadora do
desenvolvimento. Nos países subdesenvolvidos, a crescente apologia à
inserção mercantil internacional, ao incremento tecnológico e à maior
participação nos circuitos financeiros, traduzem-se no enfeudamento sis-
temático desse conjunto de países aos países de capitalismo avançado,
patrocinadores dessas matrizes ideológicas do desenvolvimento ilimita-
do e linear do capital.
A simplificação da concepção de desenvolvimento a meros indica-
dores econômicos de produção e produtividade proporciona estreitezas

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Márcio Freitas Eduardo

ao bom entendimento a respeito da promoção do sentido de bem-estar


social coletivo.
A consequente atrofia dos staffs governamentais, acompanhada de uma qua-
se devastação da reflexão acadêmica sobre o tema, debilitou a polêmica so-
bre as escolhas de longa duração que desconjuntaram os programas de políti-
cas sociais, que foram sendo substituídos gradativamente pelas neopolíticas
de produtividade e competitividade (ARBIX e ZILBOVICIUS, 2001, p. 56).
A assimilação desse ideário economicista de desenvolvimento ocor-
reu com a ascensão dos preceitos neoliberais (neoclássicos) e a paralela
corrosão dos princípios nacionais de gestão estatal. O Estado, paulatina-
mente, constituiu-se enquanto órgão implementador das medidas neolibe-
rais ditas de desenvolvimento, tratando de tornar o espaço fluído tecnica-
mente com vistas à reprodução do grande capital.
O status – quo do atual paradigma desenvolvimentista só se susten-
ta devido ao mérito teórico de afirmação desses pensamentos persuasivos,
edificados como autênticos territórios imateriais que adquirem vida, mate-
rialidade nas relações cotidianas. Pensamentos que são consumidos como
mercadorias no “reino tranquilo da harmonia universal” (AMIN, 1987,
p.82), pois “como o discurso invadiu o cotidiano, ele se torna presente em to-
dos os lugares onde a modernidade se instala” (SANTOS, 2002, p. 227).
Mas então, “que fazer?”. Meu caro Lênin, certamente não temos as
respostas, mas sim dúvidas a compartilharmos.
Vivemos o tempo em que tanto o capital quanto seus sistemas ideo­
lógicos de explicação da realidade tomaram vocações universais. Torna-
ram-se unitários, mas não homogêneos, muito pelo contrário. Porém, o
fenômeno globalizante é irreversível. Podemos fazer alusão a uma outra
globalização, alternativa, solidária etc. Mas, não podemos negá-la como
produto histórico.
Quanto ao caso brasileiro, há quem defenda a estruturação de um
projeto centralizado de desenvolvimento, semelhante ao nipônico; outros,
já preferem trilhar o áspero caminho do desenvolvimento local, no tocan-
te ao fomento das políticas de desenvolvimento. Definitivamente, estamos
diante de um impasse grandioso. Não pretendemos entrar no mérito da dis-
cussão, apenas tecer algumas considerações que julgamos ser pertinentes.
Podemos esperar de um Estado que compactua com um modelo ex-
portador, orientado por empresas e mercados globais, a estruturação de
um projeto centralizado de desenvolvimento realmente nacional, como no
caso da herança Pós-Meiji? Em “O Brasil”, M. Santos e M. Silveira trata-
ram exaustivamente dessa questão; demonstraram que a desigualdade em
âmbito nacional é produto da maior densidade técnica e, normativa aufe-
rida pelo Estado, com dinheiro público, à chamada região concentrada – re-
gião onde convergem os capitais transnacionais balizados pela mais-valia
mundial, as dispensas dos espaços opacos dos rincões brasileiros. Ratifi-

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

cam a ideia do Brasil ser, desigual e, combinadamente, um “espaço nacio-


nal da economia internacional” (p. 256).
Emerge-se, nessa ótica, um uso seletivo do território, comandado
por forças hegemônicas que, como resultado, intensifica a invasão dos
tempos rápidos do capital imperialista, em relação aos tempos lentos, ori-
ginários das especificidades dos lugares. Ao tratarmos do Estado como
instituição de fomento ao desenvolvimento, lembremo-nos das palavras de
Galbraith em “O novo estado industrial”.
Somente o reformista inocente e o conservador obtuso é que imaginam ser
o Estado um instrumento de mudança, separado dos interesses e aspirações
daqueles que o formam. Os interesses ou as necessidades do sistema de pla-
nejamento são promovidos com sutileza e poder. Como são feitos para pare-
cer coordenados com os propósitos da sociedade, a ação governamental que
serve às necessidades do sistema de planejamento possui um forte aspecto
de objetivo social (GALBRAITH, 1982, p. 275).
Ou mesmo a passagem do filósofo iluminista Voltaire, quando trata
da questão dos fins e das causas finais, permitindo-nos traçar um paralelo
quanto à crítica de Galbraith auferida ao caráter de classe inerente à con-
duta do Estado:
Tudo aquilo que está feito foi previsto, foi antecipadamente cal -culado. Não
há arranjo sem objetivo, nem efeito sem causa; logo, tudo é igualmente o
resultado, o produto duma causa final [...]Quando os efeitos são invariavel-
mente os mesmos, em qualquer lugar e em qualquer tempo, quando esses
efeitos uniformes são independentes dos seres aos quais pertencem, nesse
caso há, visivelmente, uma causa final (VOLTAIRE, 1973, p. 107).
As palavras de Galbraith, assim como as de Voltaire, revelam-se ex-
tremamente atuais. O Estado, como um agente de poder, empreende me-
didas de desenvolvimento econômico cujos efeitos negligenciam as terri-
torialidades específicas, ao mesmo tempo em que os lugares passam a ser
únicos e fragmentados pelo excessivo aumento da divisão territorial do
trabalho e por intermédio das especializações crescentes.
Na questão agrária brasileira, essa matriz teórica desenvolvimen-
tista territorializou-se como sinônimo de incorporação técnica e produti-
vidade agrícolas. O agronegócio é exaltado pela competitividade atingida
em âmbito internacional. Isso, graças ao ônus ambiental e social ignorado,
o pacto com o capital internacional (capital financeiro e empresas globais
do agrobusiness) e aos altos subsídios governamentais canalizados ao seg-
mento (PAULINO, 2008).
O Brasil continua sendo o eterno berço esplêndido da matéria-
prima.O modelo do agronegócio avança, anexando terras, desterritoriali-
zando indígenas e camponeses, e exaurindo os recursos biofísicos.
Imbuídos na crítica concernente à incapacidade do Estado em ges-
tar os processos de desenvolvimentos dos lugares, resplandecem os defen-

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sores do desenvolvimento local. Muitos de seus adeptos desconsideram as


conexões complexas de solidariedade que o capital articula globalmente,
com forças que imperam sobre os lugares (político e economicamente) im-
buídos em retóricas democráticas desconexas.
As concepções de desenvolvimento local equiparam-se, por vezes,
aos princípios das especializações produtivas territoriais (polos indus-
triais, malhas agropecuárias etc.). O que se concebe por desenvolvimento
local contrasta com as conhecidas e veementes guerras fiscais, pela qual,
cada município tenta valer-se das potencialidades dos lugares para atrair
investimentos, culminando no que M. Santos e M. Silveira (2001) designa-
ram por “alienação do território”:
O fato de o território ser teatro de especializações alienadas, de uma super-
posição de contextos entre agentes de diferente força e, de ser também, não
apenas o teatro de divisões de trabalho superpostas, mas de uma guerra glo-
bal entres empresas e lugares permitem sugerir que o território é também
objeto de desarticulações (p. 301).
A noção de desenvolvimento local é, no mínimo, complexa, sujeita a
ser fragmentária e romântica. Corre o risco de escapar-lhe (referimo-nos a
noção de desenvolvimento local) o entendimento do jogo de poderes que,
combinados, reinventam os territórios. Nessa perspectiva, os próprios mo-
vimentos de resistência, de contrarracionalidades estariam fadados a um
endemismo, que só ancorados numa lógica formal, desconexa das lutas de
classes, poderiam ser validadas. Terreno analítico que julgamos ser peri-
goso.
Amartya Sen (2004) defende a ideia de “desenvolvimento como liber-
dade”, como a capacidade do indivíduo atuar como agente ensejando uma
perspectiva de vida que lhe seja valorosa. Ressalta que os paradigmas que
abordam o desenvolvimento unicamente, apenas como geração de renda,
são limitados. O meio e a finalidade do desenvolvimento, para Sen (2004),
é a busca assídua pela expansão das liberdades. Embora não possa ser ig-
norado, o mercado pode ser um fator eminente na perda das liberdades in-
dividuais. Basta atentarmos para as várias formas de sujeição da renda da
terra e do trabalho camponês ao capital.
Nossas instituições primam pela lógica da sustentabilidade do capi-
tal, de sua valoração, consequentemente, pela retórica do desenvolvimen-
to, unicamente como geração de divisas. O convencimento é persuasivo. O
que diriam os atores do tempo lento? São realmente livres para levar uma
vida valorativa? A concepção de liberdade é também envolta de grande
complexidade (não tratada por Amartya Sen em termos de conflitualida-
de). O que é ser livre? Quem é realmente livre? Livre de que e para quê?
Se alguém for surpreendido pelo disparo de uma bateria de canhões, teria
liberdade para escolher ouvi-la? Obviamente que não. Poderíamos esta-
belecer uma correlação: o disparo da bateria de canhões simbolizaria as

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

políticas de desenvolvimento do capital e, a circunstância hipotética de


alguém não poder abster-se de ouvi-la, representaria, grosso modo, os im-
pactos concretos de tais políticas desenvolvimentistas nas territorialidades
múltiplas. Grosso modo, pois os territórios não se estruturam apenas sob
qualidade de suscetibilidade a impactos determinados, são também igual-
mente condições ao desenvolvimento, ao exercício dos poderes dissolvidos
nas territorialidades.

Abordagem do tempo lento: desenvolvimento e conflitualidade


– o caso do agroartesanato em Francisco Beltrão/PR
O tempo lento exprime a lógica das permanências. Ao que concerne à re-
produção do agroartesanato sulista, fundamenta-se em códigos de territo-
rialidade tradicionais; econômico, político e culturalmente, arraigados ao
patrimônio histórico do modo de produzir (e se autoproduzir) camponês,
familiar.
Compreendemos a noção de tempo enquanto aspecto da imateria-
lidade relacional da sociedade na construção de seus territórios e terri-
torialidades cotidianas. O tempo lento deriva do patrimônio cultural, e é
reproduzido por intermédio da razão entre a lógica de sociabilidade dos
agentes sintagmáticos no território e a disposição dos elementos técnicos
que animam esse mesmo território. A qualidade de permanência do tempo
lento, não resulta, objetivamente, do tempo mecânico das máquinas, mas,
do tempo de reprodução da vida: é um tempo característico da relação en-
tre os sujeitos e os objetos técnicos dispostos no território. Trata-se de uma
dialética oriunda do exercício do poder no e pelo território.
Produzir uma leitura geográfica do tempo lento, de seu caráter de
permanência territorial significa romper com as concepções de desenvol-
vimento uniformizante e, paralelamente, reconhecer, nos diversos feixes
dos micropoderes, a existência de conteúdos de resistência, a produção de
territórios e de territorialidades específicas.
Na produção teórica tradicional, da geografia regional e agrária,
mereceu destaque, quanto à apreensão da territorialidade, do tempo lento
das produções tradicionais rurais, o seu caráter de resquício, de “freio” ao
mecanismo do desenvolvimento regional. A incompatibilidade acirrava-se
no sentido de que sua dinâmica confrontava-se com os desígnios desen-
volvimentistas almejados. Perguntamo-nos então: em qual panorama de
desenvolvimento esse ideário está respaldado? Limitar-nos-emos a dizer
que, o que pode parecer para muitos, retrocesso, pode representar para
outros tantos, as manobras de alcance de suas concepções próprias de de-
senvolvimento.
A análise do exercício do(s) poder (s) no(s) território(s) é a ferra-
menta teórico-conceitual pela qual pode-se conceber o desenvolvimento

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enquanto diferenciabilidade e não apenas enquanto linearidade, enquan-


to direcionamento político-econômico. O território, nessas circunstâncias,
afirma-se enquanto uma amálgama de temporalidades, enquanto uma
acumulação desigual de tempos.
Porém, é importante termos em mente que, para o capitalismo, a
questão agrária já foi resolvida: otimizando-se a produção e minimizando
os custos da reprodução da força de trabalho.
Interessa-nos, aqui, tratarmos da dinâmica territorial suscitada a
partir da reprodução do tempo lento da produção agroartesanal e familiar
de alimentos, ou simplesmente, do agroartesanato, em Francisco Beltrão/
PR, tratado em termos de resistência da agricultura familiar perante a lógi-
ca desterritorializante do capital (ver EDUARDO, 2008). Estaremos, pois,
tratando do território e de expressões de territorialidade da produção fa-
miliar, não capitalista, onde é mister conceber a propriedade da terra e as
relações de produção familiares como sustentáculo desse modo de vida.
A atividade agroartesanal difundida localmente – e também ao nível
de mesorregião Sudoeste Paranaense é praticada, sobretudo, por descen-
dentes de italianos, alemães e poloneses reterritorializados no Sudoeste
Paranaense, na década de 1940, com o processo de colonização efetiva em-
preendido pela CANGO (Colônia Agrícola Nacional General Osório).
O agroartesanato é uma permanência do tempo lento, reproduzido
pelos euro-brasileiros, em seu processo de dispersão territorial pelo Brasil.
Afirma-se como atividade produtiva tradicional, de subsistência e/ou mer-
cantil, uma rugosidade, reflexo de um patrimônio cultural herdado. A dinâ-
mica territorial do agroartesanato tem como característica, a centralidade
na propriedade e no trabalho familiar, com abrangência de mercado emi-
nentemente local (EDUARDO, 2008). Com a prática agroartesanal, busca-
se, fundamentalmente, agregar mais valor ao trabalho familiar, por inter-
médio da produção e transformação intraunidade (in loco) de alimentos e
a venda direta ao consumidor (queijos, salames, doces, bebidas etc.).
Em síntese, alguns pontos em comum identificam as unidades agro-
artesanais: a) são pequenas unidades de produção de alimentos (em espa-
ço físico e produção); b) produzem no intuito de atender nichos de merca-
do locais ou, em raras situações, regionais; c) a mão de obra dos membros
da família basta, na maioria das vezes, para atender a demanda do pro-
cesso produtivo; d) têm sua dinâmica vinculada à economia agropecuária
intraunidade; e) sustentam-se em práticas, conhecimentos e experiências
herdadas de geração em geração (saber fazer).
A partir da década de 1970, constata-se a evolução do processo de
modernização agropecuária regional, incremento da base técnica da pro-
dução e especialização produtiva. Ocorre também, no decorrer da déca-
da de 1980, a introdução, no Sudoeste, de grandes complexos agroindus-
triais nas áreas de tabaco, frangos, suínos e leite. Essas transformações

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

processam-se numa estrutura fundiária minifundiária, com predominân-


cia da agricultura familiar, camponesa (95% dos estabelecimentos rurais
no Sudoeste do Paraná situam-se em estratos de área de até 50 hectares
– IBGE/1995-96).
Em consonância com os desígnios de sua reprodução ampliada, o
capital apropria para explorar. Essa apropriação traz à tona o desenrolar
das conflitualidades entre classes sociais em defesa de seus territórios, ou
seja, acirram-se as “disputas territoriais” pelas quais “territórios capitalis-
tas e não capitalistas produzem permanente conflitualidades pela disputa ter-
ritorial” (FERNANDES, 2008, p. 208).
A saber, o capital, para se apropriar da capacidade de produção de
riqueza do território camponês, age sob duas facetas: 1) através da dester-
ritorialização ou 2) por intermédio da “monopolização do território pelo ca-
pital” (OLIVEIRA, 2001).
Fato é que a situação de encurralamento com que muitas famílias
minifundiàrias se depararam devido ao acirramento das contradições en-
gendradas pelo fenômeno agrário da modernização da agricultura fez com
que a produção agroartesanal tornasse uma alternativa plausível de inclu-
são através da geração de trabalho e renda, principalmente com a criação
do SIM nos diversos municípios Sudoestinos (Selo de Inspeção Munici-
pal). Em Francisco Beltrão/PR, o SIM foi criado em 1996, regularizando
as produções agroartesanais, segundo enquadramentos produtivos orien-
tados pela Prefeitura Municipal (vigilância sanitária), pela EMATER/PR
(Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural) e, pelo pro-
grama do Estado do Paraná “Fábrica do Agricultor”.
Segundo dados da Prefeitura Municipal – Secretaria da Agricultura,
existem atualmente, 56 agroindústrias instaladas no município de Francis-
co Beltrão, envolvendo a produção de leite, queijo, embutidos e defumados,
mel, ovos, frango, derivados de cana-de-açúcar, de frutas e de hortaliças.
A prática do agroartesanato tem sido estimulada, nos últimos dez
ou quinze anos, como política de desenvolvimento, amparada na ideia de
geração de renda à agricultura familiar.Cabe-nos aqui tratarmos das con-
flitualidades imanentes a esta concepção desenvolvimentista tal como está
embasada.
O invólucro das políticas de desenvolvimento ao estímulo pelo agro-
artesanato consiste no seguinte princípio: através da institucionalização do
SIM, cabe aos órgãos competentes orientar e fiscalizar as agroindústrias ar-
tesanais, no sentido de enquadrar técnica e sanitariamente, as explorações,
otimizando a agregação de valor às mercadorias. Os produtores não cadas-
trados pelo SIM são considerados clandestinos e, esta circunstância prevê
punições, tais como multas e/ou apreensão dos produtos em circulação.
Cabe destacar que a reprodução, no Sudoeste Paranaense, do saber
fazer produtivo, artesanal e familiar denota um aspecto de reterritorializa-

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ção associada ao patrimônio simbólico dos gaúchos e catarinenses, descen-


dentes, sobretudo, de imigrantes italianos, alemães e poloneses. Através do
processo de desterritorialização, houve a afirmação da reprodução de ativi-
dades não tipicamente capitalistas e, de identidades ligadas a pressupostos
culturais artesanais e familiares, importantes na formação territorial do
Sudoeste paranaense a partir da sua colonização efetiva (pós – 1940). Sen-
do assim, atentamos para o fato de que se tratam de um domínio cultural
desses produtores, as práticas agroartesanais. Sempre o fizeram, contudo,
atendendo, outrora, especificamente, a demanda familiar de alimentos, ou
seja, a subsistência.
A baixa composição orgânica dessas produções, devido à permanên-
cia de elementos tradicionais de produção familiar, mostrou-se capaz de se
inserir no campo de força das relações mercantis locais.
Os territórios do agroartesanato e do agronegócio conflitualizam-se
e sobrepõem-se regionalmente. A recente orientação mercantil das produ-
ções agroartesanais deve ser compreendida não como transfiguração do
patrimônio cultural camponês, mas como estratégia de sua afirmação ter-
ritorial, como mais uma possibilidade histórica de ação do tempo lento
contra as forças desterritorializantes do capital.
Mesmo porque o que predomina nessas circunstancias é a circula-
ção simples de mercadoria, isto é, produzir e circular para consumir, para
se autoreproduzir. Contraditoriamente, podemos observar que o mesmo
processo de expansão das forças produtivas capitalistas pode fomentar a
recriação do tempo lento.
Paulatinamente, um novo conteúdo social entra no âmago dessas
explorações no momento em que o mercado passa a ser um feixe de inte-
resse direcionado para esses produtores, resistentes aos impactos da mo-
dernização agrícola.
É verdade que o SIM, ao mesmo tempo em que restringe os limites de
comercialização à escala municipal, protege os produtores da concorrência
de produtores cadastrados pelo SIM das adjacências. Contudo, a concorrên-
cia com agroindústrias que possuem SIP ou SIF, e mesmo com os produto-
res não cadastrados, avoluma o grau de competitividade que os produtores
agroartesanais locais devem desenvolver. Esses micropoderes do mercado
fazem com que os produtores, progressivamente, orientem suas produções
para os preceitos da lógica produtora de mercadoria: maior produtividade,
maior escala de produção, maior competitividade, incremento técnico etc.,
afastando-os dos códigos de territorialidades originais que os ligam a essas
produções e à gestão da unidade de produção familiar.
Entendemos, dessa forma, que por mais que seja importante a mui-
tas famílias a inserção mercantil via agroartesanato, essa atividade não
deve ser apontada como princípio unívoco de desenvolvimento (econômi-
co) da produção familiar.

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

Podemos citar alguns fatores potencialmente limitantes: 1) especia-


lização produtiva demandada pelo aumento da competitividade entre os
produtores agroartesanais; 2) restrição do mercado consumidor local (fa-
zendo com que produtores busquem o SIP ou SIF – indo ao encontro do
primeiro ponto); 3) caráter minifundiária das explorações familiares (in-
viabilizando produções em larga escala); 4) parcos recursos financeiros
disponíveis; 5) limitações em relação à mão de obra apta para o trabalho
(que dominam o saber fazer); 6) essência artesanal e familiar dos códigos
de territorialidade dos produtores agroartesanais (que deveriam ser reade-
quados à lógica do agronegócio); 7) o próprio trabalho no agroartesanato
faz com que os produtores afastem-se da agricultura (pela carga de traba-
lho na transformação dos alimentos e pelo tempo requerido para higieni-
zação dos trabalhadores cada vez que iniciam o trabalho).
Recorramos a contextos empíricos. Destacaremos a dinâmica ter-
ritorial de duas famílias produtoras agroartesanais, sob prismas distintos
(família Cuba e família Smaniotto) e também, duas famílias produtoras
(famílias Cavichon e Belavera) que, em 2007, tinham encerrado recente-
mente suas atividades agroartesanais.
Pedro Cuba, 52 anos, foi nosso entrevistado. É descendente de po-
loneses oriundos de São Mateus do Sul/PR. Possui uma propriedade de
15,5 hectares, situada nas proximidades da PR 483, interior do município
de Francisco Beltrão/PR, onde reside há 52 anos. A família possui duas
agroindústrias: uma de beneficiamento de mel e outra de filetagem de pei-
xes, ambas cadastradas no SIM (ano de 2000). O SIM, conforme destaca
Cuba, é importante, pois “facilita mais a venda. Produz e vende. O mel; an-
tigamente, quando não tinha agroindústria, era vendido por R$ 2,00”. Atual-
mente, vendem o quilo do mel entre oito e dez reais.
Toda a extensão de sua propriedade é aproveitada economicamente,
sendo ela composta por: reserva de mata nativa, pomar, açudes (12 tan-
ques) e lavouras (milho, arroz, feijão, erva-mate, cana-de-açúcar, verduras,
soja, entre outras culturas). Sua família compõe-se de 04 pessoas, sendo
que todos trabalham na agroindústria. Não há contratação de funcionários
na unidade produtiva.
Em 2007, a família possuía 200 caixas de abelhas. Beneficiava um
total de 05 toneladas de mel por ano; destas, 600 quilos eram produzi-
dos no interior da unidade produtiva e, o restante é adquirido de outras
dez propriedades, sob sistema de locação. A renda anual aproximada da
agroindústria de beneficiamento de mel era de R$ 15.000,00 líquido. Ven-
dia o mel no mercado local, com instrumentos de trabalho e meios de
transporte próprios. O meio de transporte próprio é 01 automóvel utilitá-
rio. As instalações da agroindústria são de alvenaria, medindo 03 x 04m.
Os instrumentos de trabalho consistem em: mesa inox, pia e centrífuga. O
consumo de energia elétrica era de R$ 80,00 mensais.

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Outra atividade econômica na propriedade da família Cuba é a


piscicultura: venda de peixes via pesque-pague1 e, através da produção
agroartesanal de filés de peixe. Com 12 tanques de peixes, além de sub-
sidiar toda a atividade comercial, envolvendo a prática do lazer através
da pesca direta do peixe, produz matéria-prima (350 Kg/mês, de tilápia
in natura) que é transformada num total de 150 Kg de filé de tilápia/mês,
produto este, comercializado na feira de Francisco Beltrão/PR e nos su-
permercados locais. Além de complemento semanal à renda da família, a
prática do beneficiamento do produto in natura agrega mais valor à mer-
cadoria. Porém, mais de 70% da produção de peixe é vendida na própria
unidade produtiva, através do pesque-pague. Na unidade, a família Cuba
mantém uma estrutura para recepcionar os clientes com lanchonete e
mesa de bilhar; comercializam também bebidas, lanches e porções de
peixe. A família também aproveita internamente os restos da produção
de filetagem para fazer ração. Trabalham duas vezes por mês na atividade
de filetagem e o ganho mensal proveniente da atividade de piscicultura é
de R$ 500,00 líquidos.
As instalações da agroindústria são de propriedade da família; são
elas de alvenaria e medem 3,5 x 04m. Os instrumentos de produção tam-
bém são de propriedade privada da família: mesa, tanque de limpeza,
freezer­, entre outros utensílios domésticos. Calculam o preço do produto
numa porcentagem abaixo do preço estabelecido nos supermercados.
Na feira-livre municipal, onde há 03 anos, a família Cuba comer-
cializa seus produtos, pudemos ter uma noção da prática de policultura
empreendida pela família. Em um ponto de venda, na feira-livre, identi-
ficamos vários produtos como: pomada de pólen, tempero caseiro, filé de
tilápia, feijão, arroz, linhaça, tomate, soja, lentilha, cebola, suco de uva,
vinho, vinagre, brócolis, trigo, açúcar mascavo, milho, canjica, pipoca, ca-
nela, mel, quirela, melado, couve, repolho, couve-flor, batata-doce, pokan,
laranja, beterraba, abobrinha, entre outros hortifrutigranjeiros produzidos
pela família e vendidos na feira.
Gilberto Smaniotto é descendente de italianos, cujo pai residia em
Araquiba/RS. Era agricultor no Rio Grande do Sul, mas, foi desapropriado
porque suas terras foram alagadas pela barragem de Itá. É dono e reside
com sua família em uma propriedade de 18,4 hectares, desde 1988, locali-
zada na Cabeceira Rio do Mato, município de Francisco Beltrão/PR.

1
A prática do pesque-pague consiste na pesca, in loco, do peixe pelo consumidor. Pescam-se
os peixes e estes são pesados e o preço calculado, variando conforme o tipo de peixe (tilápia
– R$ 5,00 por kg; Pacu – R$ 8,00 por kg). Posteriormente, os pescados são limpos pela famí-
lia Cuba em ambiente apropriado na própria unidade. O pesque-pague é mais uma fonte de
renda da família, pois, durante os momentos de lazer promovidos pela pesca, os visitantes
costumam jogar bilhar, consumir bebidas e alimentos que são comercializados em um pe-
queno bar construído próximo aos locais de pesca.

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

A agroindústria de pasteurização de leite foi construída há 10 anos e


possui o SIM desde 2000. Com sua implantação, o manejo da unidade pro-
dutiva familiar passou a ser orientado em torno dessa atividade, no sentido
de prover as matérias-primas necessárias ao processo produtivo, especia-
lizando sua produção.
Subsidiando a atividade agroartesanal, a família cultivava 10 hec-
tares de milho, 03 ha de soja (milho e soja transformados em ração ao re-
banho) e 5,4 ha de pastagens. Sua família era composta por 06 pessoas,
todos trabalhavam na agroindústria. O ganho bruto aproximado da ativi-
dade agroartesanal era de 05 salários mínimos mensais.
Em 2004, comercializava sua produção em 04 creches do município
e entregava o restante da produção diretamente ao consumidor. A agroin-
dústria pasteurizava um total de 7.000 litros/mês, sendo 1.500 (21,5%) li-
tros adquiridos de outros produtores de sua localidade e o restante (78,5%
ou 5.500 litros) eram provenientes de sua propriedade.
Em 2007, voltamos a estudar a unidade de produção familiar. O pro-
cesso de produção estava improvisado na garagem do domicílio da famí-
lia, pois a agroindústria estava passando por reformas. Em 2006, a família
perdeu a autorização para comercializar seu produto nas quatro creches
às quais atendia, devido a uma suposta inadequação tecnológica da sua
agroindústria perante a exigência do governo do Estado do Paraná. Por
isso, estava tentando readequar sua agroindústria, investindo um total de
R$ 50.000,00 em equipamentos e estrutura física no intuito de conseguir
novamente a licitação das creches de Francisco Beltrão com a adoção do
SIP (Sistema de Inspeção Paranaense).
Em 2005, foi construído também um aviário para a criação de pe-
rus, sob sistema de integração à Sadia. O investimento total foi de R$
90.000,00, sendo 50% recursos próprios e o montante restante, obtido via
financiamento bancário. Construiu o aviário visando aproveitar o esterco
gerado para adubar sua propriedade: “há oito anos que nós temos as vacas
na terra, né, e a terra estava meio morta. Pra comprar cama de aviário pra
recuperar a terra fica muito caro, né. Daí é uma atividade a mais e a gente
pensa que com o adubo vai voltar pro leite, né” (Gilberto Smaniotto).
Sobre o sistema de integração, o produtor destaca:
Alojamos cinco lotes aqui no aviário. Vai dizer o que da Sadia? Ela te traz os
peruzinhos, te traz a ração, vem o veterinário uma vez por semana, eles car-
regam os perus, levam e tu não sabe nada. Eu acho que o aviário não paga
o investimento. Quem financia 70%, não paga. Eu financiei metade. Quem
pode com uma firma grande? A gente sai sempre perdendo.Daí, o dólar des-
pencando, e eles alegam que também vendem em dólar; daí os preços des-
pencam também. Quando tivemos pensando em colocar o aviário, quem ti-
nha aviário e deixava uma média de 60 dias na propriedade, dava de 80 a 90
centavos por cabeça; hoje, não chega a 40. Ta apertando cada vez mais.

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A família Smaniotto, mesmo com a construção do aviário, não mu-


dou de orientação produtiva. O aviário foi construído para fortalecer a pro-
dução leiteira. A produção da agroindústria e sua margem de ganho con-
tinuaram as mesmas de 2004. Porém, a produção agora é entregue a um
laticínio (Latco), comercializada em 02 supermercados e a domicílio.
Possui 45 cabeças de gado, (25 produzindo), holandesas e Jersey,
melhoradas por inseminação artificial, feita pelo próprio Gilberto, que há
oito anos possui um botijão de sêmen. Adquire como matéria-prima, 02
toneladas de ração por mês (R$ 800,00), oriundos da Candu (município
de Dois Vizinhos). O restante da matéria-prima é da propriedade (silagem,
pasto e cana-de-açúcar).
Os meios de transporte são próprios: uma caminhonete e um trator.
Esporadicamente, contratam mão de obra no processo produtivo, basica-
mente quando fazem a chamada “silagem” do milho. A instalação da agroin-
dústria é própria, de alvenaria, medindo 04 x 5,5m. Os instrumentos de
trabalho são de propriedade da família: 03 freezers, embaladeira e pasteuri-
zador de leite, além de outros utensílios domésticos utilizados no processo
produtivo. O consumo de energia elétrica é de R$ 220,00 mensais. O preço
do produto final é estipulado a partir do preço do leite dos laticínios.
Gilberto Smaniotto, ponderando alguns aspectos sobre a reestrutu-
ração de sua unidade agroartesanal destacou que:
Esse leite que o Requião dá pras famílias, só hoje, perdi umas sessenta famí-
lias que agora ganham. A EMATER me disse que se eu conseguir equipar a
agroindústria do jeito que eles querem é bem fácil que eu consiga embalar
o leite das crianças2. Porque a preferência é pras agroindústrias e aqui não
tem nenhuma capacitada. Quem esta embalando é a Latco. Vamos colocar
o CNPJ pra tentar licitação das creches, vamos colocar pra funcionar [...] A
intenção é colocar lá um resfriador de expansão, um tanque de equilíbrio,
pasteurizador de placa, embaladeira, câmara fria, essas coisas tudo (Gilber-
to Smaniotto). Na Caixa3 puxei o gerente lá e ele me disse que tem linha pra
financiamento desse tipo, mas tem que ter um ano de CNPJ no mínimo. E
nós não temos ainda, mais uma porta que se fecha. Não tem financiamento
a longo prazo. Vai ter que ter contador e já começam mais despesas. Com o
pouco que a gente tem não compensa, vamos ter que fazer grande quantia
pra ganhar centavos no litro.

Em momentos de crise desses segmentos produtivos capitalistas


(queda do preço do leite e das commodities, por exemplo), a família recor-

2
Alusão ao programa do governo do Estado do Paraná, implementado durante o mandato
de Roberto Requião “Leite das Crianças”. Somente os grandes laticínios têm vendido leite
ao programa devido às inúmeras exigências técnicas requeridas. Várias famílias produtoras
agroartesanais perderam sua clientela com a instituição do programa, sendo que, algumas
dessas famílias encerraram suas atividades agroartesanais.
3
Caixa Econômica Federal.

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

re a seus trunfos de gestão do território (policultura, agroartesanato, redes


de solidariedade etc.) mantendo sua condição de produtor independente –
logicamente essa manobra dependerá do grau de imbricamento da família
camponesa a sistemática do capital: por essa razão a consciência política
do campesinato face a natureza desterritorializante do capital é fator es-
sencial a sua reprodução.
Em 2007, entrevistamos também Josenir Cavichon. Produtor que
havia recentemente encerrado as atividades da agroindústria familiar. Du-
rante 06 anos a família trabalhou com pasteurização de leite sob sistema
agroartesanal regularizados pelo SIM. Os recursos da família provinham
essencialmente da atividade. Vendiam o leite a domicílio, em supermerca-
dos e em padarias de Francisco Beltrão/PR. Interrogado sobre o que o le-
vou a encerrar as atividades mencionou:
Foi parado por que não compensava mais. Pra você ir de carro sempre e
quebra carro e daí você tem que comprar o pacote, era 10 centavos o pacote.
Levava no mercado e às vezes vendia tudo o leite, às vezes deixava 100 litros
e não vendia nada, tinha que trazer e jogar fora o leite. E era muita gente
que vendia clandestino igual nas casas e podia vender mais barato e daí você
perdia muito com “sem vergonha” que não te paga.
A família ainda mantém a atividade leiteira com um efetivo de 15
vacas. No entanto, agora vende o leite a um laticínio (Cedrence).
No mesmo ano, entrevistamos a produtora Ivonete Belavera cuja
família também possuía uma agroindústria artesanal de pasteurização de
leite. A agroindústria era cadastrada no SIM e a atividade era exercida há
cinco anos. Comercializavam o produto a domicílio e vendiam-no em su-
permercados locais. Possuíam 14 vacas leiteiras. A metade, já foi vendida,
com o fechamento da agroindústria familiar.
A atividade leiteira era a principal fonte de renda da família. Pro-
duziam 300 litros de leite semanalmente. Encerraram a atividade porque
perderam mercado consumidor. O governo do Paraná passou a fornecer
leite gratuitamente com o programa “Leite das Crianças”, inviabilizando a
atividade leiteira da família. O aumento do preço das embalagens foi ou-
tro fator agravante, segundo Ivonete. Após o fechamento da agroindústria
familiar, o marido de Ivonete Belavera passou a trabalhar como pedreiro:
“Olha, se fosse de depender mesmo do leite, a gente iria passar fome. A sorte
nossa é que ele conseguiu arranjar um emprego fora né. Ele tá trabalhando
fora agora, por que a gente se obriga a achar um rumo para sobreviver né”.
Sua filha estava concluindo o Ensino Médio e à procura de emprego na ci-
dade de Francisco Beltrão.
A família passou a vender o leite ao laticínio Latco. Interrogada sob
a remuneração referente à venda do produto a partir de então, Ivonete
destacou: “a gente não sabe né, tem que esperá eles pega pra depois vê né.
Porque vai precisa ver a qualidade do leite, a quantidade, é uma coisa assim

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Márcio Freitas Eduardo

parece” – Quão frágil é a relação do campesinato perante o agronegócio!


Interrogada sob a possibilidade de produzirem queijos para venda, Ivonete
ressaltou que, por ora, pensava não ser possível, pois não tinham os “prepa-
ros certos” para produzir queijos conforme especificações do SIM, mesmo
sabendo produzi-lo. Na sequência, mencionou: “estou pensando em fazer
umas estufa [de verduras]. Daí, ele vai ver se consegue vender nas feiras, nos
mercados alguma coisa”.

Palavras finais
As dinâmicas territoriais das famílias camponesas citadas anteriormente
são de extrema importância para o entendimento de questões relativas a
conflitualidade latente nas concepções do desenvolvimento agrário e da
questão agrária tomada como disputa territorial.
Em Eduardo (2008) pudemos constatar que, quanto maior é o teor
de dependência do campesinato, a exterioridade maior é a intensidade pela
qual sua reprodução é comprometida. Dessa forma, o inevitável seria um
retrocesso aos primórdios da organização territorial camponesa, cuja au-
tossuficiência era a sistemática? Não. Acreditamos que uma relação de
mercado possa ser edificada com autonomia produtiva. Para tanto se ne-
cessita que uma produção teórica consistente balise tais princípios, que a
princípio, parecem tão destoantes. Existem sociedades que podem, inclu-
sive independerem do mercado, como revela Sen (2004). Mas, ignorarmos
as possibilidades concretas de geração de renda via inserção mercantil. Pa-
rece-nos uma postura retrógrada, por não dizer reacionária. Acreditamos
que a questão da autonomia deva ser colocada em primeiro plano, quando
os horizontes do mercado se avultam.
A dinâmica territorial da família Cuba é um exemplo de acesso ao
mercado mesclado à autonomia produtiva. As produções dos agroartesa-
natos da família inserem-se num contexto produtivo mais amplo, centrado
nas necessidades de reprodução da unidade de produção familiar. Os pro-
dutos orgânicos produzidos pela família Cuba têm alta aceitação no merca-
do local de Francisco Beltrão/PR. A diversificação produtiva aliada à multi-
plicidade de estratégias na reprodução, de um modo de vida característico,
denota aspectos da sustentabilidade dessa relação territorial. Os efeitos da
monocultura, da tecnificação induzida, da degradação natural e do subjugo
aos territórios imateriais exteriores não atuam como espectro localmente.
Os outros exemplos citados anteriormente seguem uma direção
oposta à orientação da família Cuba: a especialização produtiva. Esse nor-
te faz com que a dependência aos mercados seja mais estreita, restando
menos margem para manobras em períodos de dificuldades produtivas.
Fato que levou ao fechamento dos dois agroartesanatos e ao arrocho eco-
nômico, no outro.

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As interfaces do desenvolvimento agrário:
dependência e conflitualidade

Nas informações constantes nos depoimentos de Ivonete Belavera


e de Josenir Cavichon é evidente a fragilidade com que o campesinato é
relegado sob o respaldo de uma orientação mercantil restrita. As relações
mercantis e as determinações políticas da fiscalização (SIM) reduzem a
autonomia familiar (produtiva e política – na tomada de decisões) fazendo
com que o campesinato trilhe territórios hostis e inconstantes (subjugado
a territórios imateriais e a lógica competitiva do mercado).
A sistemática territorial da família de Gilberto Smaniotto é um
exemplo empírico desse subjugo mencionado. A fragilidade da organiza-
ção política desse produtor se faz sentir nas medidas públicas que o ne-
gligenciaram (no caso do programa Leite das Crianças). A especialização
produtiva demandada por uma lógica de competitividade orientada pelos
órgãos de fomento ao desenvolvimento da atividade agroartesanal, Prefei-
tura Municipal e EMATER/PR, os quais revelaram-se altamente contradi-
tórios à sustentabilidade de sua unidade produtiva familiar. O esgotamen-
to da fertilidade natural de sua terra, a subsunção às medidas políticas de
racionalidades exteriores, a orientação pela obtenção de financiamentos e
o ímpeto competitivo que certamente será suscitado pela provável expan-
são do mercado, da produção e da produtividade (depois de reestruturada
sua agroindústria familiar) são elementos que afetam a racionalidade cam-
ponesa, levando-a a rupturas de territorialidade.
O território tem que ser entendido como fluidez, como mescla de
poderes relacionalmente amalgamados em diferentes ordenações. Um ter-
ritório vem a ser pelo nexo que une os diversos poderes (instituições, po-
líticas de desenvolvimento econômico, produção do conhecimento, infra-
estruturas) na conformação de uma dada solidariedade multidimensional.
Quando as distintas dimensões do social convergem para desígnios assi-
métricos, temos aí uma sistemática territorial.
O reconhecimento dos feixes de poderes capazes de estimularem
ordenações territoriais, delineados em paradigmas, é uma postura teórico-
metodológica desafiadora ao processo de construção do conhecimento das
geografias dos lugares, dos preceitos de desenvolvimento. Tem-se de en-
contrar uma maneira, afirma Harvey (2004), tanto teórica como politica-
mente, de ir além do amorfo conceito de “multidão” sem cair na armadilha
do “minha comunidade, meu local ou meu grupo social acima de tudo” (p.
146 – grifo do autor). Acrescenta Harvey (2004) que urge principalmente a
necessidade de “cultivar assiduamente a conectividade”.
A questão agrária, sob a abordagem territorial, é necessária ser
concebida de maneira holística, no que tange à busca por princípios de
desenvolvimento. Como processo contínuo de ação sobre as forças es-
timuladoras das ordenações territoriais: como internalidade (relativo a
ações na dimensão de territorialidade na escala da propriedade do ator
sintagmático) e como externalidade (consoante a mobilização dos atores

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Márcio Freitas Eduardo

pela expansão do exercício ativo no processo de construção das políticas


de desenvolvimento).
Podemos aqui fazer uso da distinção que Dematteis (2008) sugeriu
entre uma “territorialidade ativa” e uma “territorialidade passiva”: “Nes-
ses territórios, vistos como ‘ativos’, a territorialidade corresponde a media-
ções simbólicas, cognitivas e práticas entre a materialidade dos lugares e o
agir social nos processos de transformação territorial e de desenvolvimento
local” (p. 35).
Urge a necessidade de potencialidades territoriais realizarem-se
como territorialidades ativas: “entrando nos territórios do território” (FER-
NANDES, 2008), construindo conhecimento, valendo-se dos territórios da
política e constantemente os sujeitos do território reexaminarem-se a par-
tir das experiências de luta acumuladas historicamente.

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

Roselí Alves dos Santos


Unioeste – Colegiado de Geografia | roseliasantos@gmail.com

Marcos Aurelio Saquet


Pesquisador do Cnpq | Unioeste – Colegiado de Geografia |
saquetmarcos@hotmail.com

Introdução
Um dos nossos temas de estudos nos últimos anos é o da modernização
agropecuária, visando compreender a dinâmica territorial existente na
agricultura do Sudoeste do Paraná, em especial a agricultura familiar, por
meio de uma abordagem territorial histórica e multidimensional. A agri-
cultura familiar se constitui não apenas em uma feição territorial, mas em
uma forma de vida na qual se efetivam diferentes relações de poder e prá-
ticas produtivas que se traduzem em formas de fortalecimento da mesma
e em contradições que procuramos demonstrar neste texto.
Para realização deste estudo, fizemos pesquisa bibliográfica; coleta,
tabulação e análise de dados secundários, e trabalho de campo, através de
entrevistas previamente planejadas e agendadas. Nossa opção pela aborda-
gem territorial, caracteriza-se num esforço acadêmico para entender deter-
minados processos que, normalmente, são desconsiderados ou estudados
separadamente. Assim, embora tenhamos destacado aspectos econômicos
e políticos inerentes à modernização da agricultura no Sudoeste do Para-
ná, também reconhecemos e valorizamos processos culturais-identitários
que estão presentes nesta prática produtiva e de vida, especialmente na

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

agricultura familiar que apresenta parcialmente mecanizada. A opção por


uma abordagem histórica e relacional, também possibilita a compreensão
da processualidade existente no movimento (histórico) do tempo e das re-
lações (transescalares) de poder, bem como as redes de circulação e comu-
nicação concretizadas historicamente.
Neste texto, ainda que nosso propósito é gerar uma abordagem mais
completa, evidenciamos algumas características da constituição da agri-
cultura familiar no Sudoeste do Paraná a partir dos anos 1940, a imple-
mentação da modernização agropecuária, as políticas públicas de incen-
tivo para a mesma e algumas características centrais da modernização
agrícola ocorrida nesse recorte espacial.

A formação basilar da agricultura familiar


O Sudoeste do Paraná teve sua colonização efetiva promovida pelo Estado,
a partir da década de 1940, representando uma aliança entre agentes eco-
nômicos e políticos, a fim de facilitar a acumulação capitalista e a ocupação
de uma área de fronteira, sob a expansão da produção agrícola e da estrutu-
ração de um novo território. O processo de urbanização e industrialização
brasileira, a partir de 1930, gera uma demanda por alimentos, mão de obra
e consumidores, para a qual a colonização sistemática do Sudoeste contri-
bui a partir de uma produção agrícola mercantil de base familiar.
Anteriormente aos anos 1940, o Sudoeste era ocupado de maneira
esparsa por caboclos, indígenas, paraguaios e argentinos, que viviam da
caça, da pesca, da criação de suínos soltos (chamadas safras) e da extra-
ção da erva-mate. Havia uma prática agrícola familiar, porém, bastante in-
cipiente e rudimentar, sem contribuir para a ocupação efetiva das terras,
para o domínio geopolítico e nem para a apropriação privada da terra.
A intensificação da construção do território da agricultura fami-
liar ocorre a partir da década de 1940, com a intensificação da migração
gaúcha e catarinense facilitada através da criação e instituição da Colô-
nia Agrícola Nacional General Osório (CANGO), pelo Governo Federal, em
1943. Isto possibilita a coexistência de tempos, revelados pelas mudanças
e permanências territoriais que se manifestam ora isoladamente, ora em
redes, mas que estão na base de uma organização política de representa-
ção dos sujeitos muito significativa. As organizações constituem as redes
de poder que marcam e demarcam o território. As redes são estabelecidas
a partir da materialidade e da imaterialidade que interligam os territórios,
por intermédio, como destaca Raffestin (1993), da circulação e da comuni-
cação. Estão sempre presentes, assumindo diferentes arranjos, de acordo
com as características de cada sociedade.
Os processos econômicos são expressivos na organização desse terri-
tório da agricultura familiar, pois inicialmente são eles que aparecem como

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

motivadores para a migração e ocupação do Sudoeste do Paraná. Apesar


da importância das condições naturais locais, lentamente, há sobreposição
e predomínio da forma de produção que os migrantes conheciam e repro-
duziram. Eles “repartem” as terras entre si, com forte mediação do Estado,
definindo a estrutura fundiária regional (baseada nas pequenas unidades
de produção e consumo), os tipos de cultivo, as técnicas e tecnologias ini-
ciais, a organização política, a ocupação de terras de maior declividade etc..
Para ilustrar, destacamos uma entrevista realizada. Em visita a um produ-
tor rural de Salgado Filho (município de acentuada declividade no Sudoes-
te do Paraná), o mesmo afirma que, quando chegou nesse local, na década
de 1950, optou por ocupar aquelas terras, deixando para traz áreas planas
e hoje totalmente mecanizáveis, pois o que sabiam produzir era o feijão e
este tipo de produto não produzia bem em áreas planas.
Nesse sentido, Santos (2008) afirma:
essa colonização materializa a existência de pequenas propriedades produ-
toras de alimentos com base no trabalho familiar, ao mesmo tempo, que
atende a uma lógica de planificação estatal, de ocupação de partes do Bra-
sil. Há um processo histórico e relacional, que caracteriza e condiciona a
vida. A atualidade acirra e desnuda a contradição, da forma de produção
com técnicas antigas paralela àquelas de cunho moderno, com utilização
de alta tecnologia que revelam os ritmos que se combinam e dão formas a
esse território.
No Sudoeste do Paraná o trabalho e a produção mercantil se ba-
seiam, até a década de 1960, em atividades que exigiam menor dispêndio
tecnológico como a erva-mate, a criação de porcos, a produção de feijão.
Na medida em que as redes de circulação e comercialização se ampliam,
novas demandas surgem e outras atividades agropecuárias se estabelecem,
todavia sem romper em absoluto a configuração inicial dessa organização
territorial constituída a partir da chegada dos migrantes vindos de San-
ta Catarina e do Rio Grande do Sul. A chegada e instalação dos migran-
tes gaúchos e catarinenses provocou a suplantação da economia cabocla
predominante na região, consubstanciando uma transição étnica, cultural,
econômica e política.
Segundo Santos (2008), muitos dos migrantes que foram atraídos ao
Sudoeste do Paraná eram excluídos social e territorialmente, porém, para
muitos deles as condições precárias permanecem. No Sudoeste, atualmen-
te, são visíveis, na paisagem, as pequenas propriedades em condições pre-
cárias, localizadas nas áreas de topografia mais acidentadas ou mais dis-
tantes das cidades. As áreas menos íngremes são destinadas à produção
de grãos e os morros às pastagens. Mais recentemente, as áreas mais incli-
nadas estão sendo reflorestadas para a comercialização de madeira. A im-
plantação de aviários, integrados a empresa Sadia (sediada em Francisco
Beltrão), têm aumentado a demanda por pequenas áreas de terra.

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

Os migrantes que, em maior número se deslocam para a região, são


os de origem ítalo-germânica. Também estes migrantes deixam seus locais
de origem pelo esgotamento das terras provocado pelo modelo de ocupa-
ção/colonização. O Sudoeste paranaense se configura como lugar de edifi-
cações de seus sonhos, no qual a formação de redes sociais foi uma estra-
tégia utilizada para a ocupação, resultando em uma organização presente
na atualidade em que os sobrenomes das famílias servem como forma de
identificação do lugar.
Nessa composição territorial o Estado foi fundamental, assim como
nas mudanças e no ritmo destas verificados a partir da década de 1970
com a implantação do pacote tecnológico para a agricultura. Essas mu-
danças se manifestam na ocupação inicial das terras, na inserção ao mer-
cado nacional e, especialmente, no uso e apropriação do solo, com novas
técnicas e tecnologias de produção e relações de trabalho.
Uma outra marca territorial no Sudoeste do Paraná foi a Revolta
dos Posseiros ocorrida em 1957, na qual as relações econômicas, políticas
e culturais se manifestaram de modo explícito. Esse movimento e luta re-
presentou a manifestação de diferentes formas de poder local, contrapon-
do-se ao poder exógeno, materializado na forma de Governo doEstado do
Paraná, o qual atende a interesses das companhias privadas de coloniza-
ção. De maneira geral, institui-se uma categoria de agricultores familiares
que, aos poucos, inserem-se e são inseridos no movimento de moderniza-
ção da agricultura ocorrido em nível nacional.

As feições territoriais decorrentes da modernização


da agricultura no Sudoeste do Paraná

Na década de 1970, o Sudoeste do Paraná estava ocupado efetivamen-


te e em processo de expansão horizontal da agricultura, o qual perdura
até mea­dos da década de 1980. Neste processo de ocupação e expansão,
a modernização da agricultura vai se firmando em uma base fundiária de
pequenas propriedades e com a participação efetiva do trabalho familiar.
Juntamente, ampliam-se outras condições materiais para produção, arma-
zenamento e escoamento da produção agropecuária.
A figura do comerciante local vai sendo substituída pela presença de
cooperativas e estabelecimentos comerciais específicos distribuídos territo-
rialmente, mas articulados a outras áreas de escoamento, como o porto de
Paranaguá. A produção simples de mercadorias vai cedendo espaço a uma
produção cada vez mais mercantil e complexa, assim como se reforçam for-
mas para extração de renda da terra e do agricultor-produtor, em especial do
pequeno produtor agrícola mercantil, como é o caso do Sudoeste do Paraná.
Nesse sentido, Martins (1981, p.176) afirma: “Onde o capital não se
torna proprietário real da terra para extrair juntos o lucro e a renda, ele se

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

assegura o direito de extrair a renda.(...) Por isso, começa estabelecendo a


dependência do produtor em relação ao crédito bancário, em relação aos in-
termediários etc.” A extração de trabalho excedente acontece na circulação,
por meio do mecanismo de preços diferenciados praticado no mercado.
Veronese (1998, p. 30) reforça esta análise:
Libertos das ameaças das companhias Colonizadoras, a partir dos anos 60
os agricultores familiares descapitalizados da região foram se dando con-
ta, progressivamente, que a exploração por eles sofrida passava pelos co-
merciantes locais e regionais. Eram eles que serviam de mediação junto ao
grande mercado e por onde ocorria a apropriação e acumulação da renda
obtida com a atividade agrícola. A partir de então o Sudoeste do Paraná aca-
bou sendo marcado crescentemente: pela vazão da renda agrícola da região
para as mãos dos comerciantes locais e regionais e destes para os estabele-
cimentos fora da região, chegando, em última instância, a beneficiar o setor
industrial; pelo fortalecimento econômico e político de uma elite regional;
e pela exclusão crescente de agricultores familiares dos benefícios do pro-
cesso produtivo e político em andamento no país. O processo de exclusão,
no sentido de não apresentar qualquer perspectiva de viabilização da agri-
cultura familiar, acentuou-se particularmente com a chegada do modelo de
modernização agrícola identificado como pacote tecnológico da Revolução
Verde, e firmado no interesse do desenvolvimento urbano-industrial do ca-
pital internacional.
Com a modernização agrícola, privilegiam-se alguns segmentos da
sociedade brasileira, os mais capitalizados, e no Sudoeste, muitos são os
que se enriquecem fazendo a ligação entre os produtores rurais locais e o
comércio situado fora deste circuito. As forças exógenas do território im-
põem mudanças que são disseminadas por forças endógenas, como as co-
operativas de produção e comercialização que crescem em todo o país, a
partir da década de 1960, e atendem aos interesses de empresários indus-
triais com aparato e sustentação do Estado. Além de procurar disseminar
a ideologia de uma face moderna que se contrapunha a outra rudimentar
e atrasada, representada pelas práticas agropecuárias dos agricultores, em
especial, os pequenos produtores de mercadorias.
Na modernização da agricultura brasileira, o Estado se constitui em
ator central do processo, como financiador e responsável pelas implanta-
ções e disseminação de um sistema de pesquisa e de extensão para atender
as demandas geradas. Segundo Santos (2008, p.57), “a modernização tec-
nológica da agricultura no Sudoeste do Paraná provoca alterações na sua
configuração territorial e no ritmo das mudanças. Possibilita repensar o
espaço em rede, verificando o processo de exclusão e/ou inclusão dos dife-
rentes atores sociais em um sistema global”.
Para a autora, se por um lado a tecnificação e as relações de traba-
lho, no espaço rural, provocam a inserção instantânea em um sistema in-
ternacionalizado, por outro, essas mesmas condições materiais (ou a falta

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

delas) provocam a exclusão de muitos agricultores deste sistema. Pode-se


afirmar, utilizando essa lógica, que tanto os lugares como as pessoas são
incluídas e excluídas da constituição das redes de produção/comercializa-
ção agrícola. Alguns se capitalizam, outros não. Muitos acabam se endi-
vidando, vendendo as terras e migrando, ora para outros estados, como
Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Acre e Rondônia, ora para algumas ci-
dades do Sudoeste do Paraná e de outros estados.
Há uma conjugação de tempos lentos e rápidos, conforme as condi-
ções materiais e imateriais de cada agricultor. Tempo lento do movimen-
to do arado à tração animal, do carro de bois, do cultivo de subsistência;
tempo rápido da plantadeira mecânica, da colheitadeira, do pulveriza-
dor e do trator. Nem todos são envolvidos pela modernização agrícola
ao mesmo tempo; os que são, não o são com a mesma intensidade e ve-
locidade. Conforme já afirmaram Santos (1996) e Saquet (2003/2001), o
tempo rápido ditado pelas novas tecnologias não cobre a totalidade do
território nem abrange a sociedade inteira no mesmo instante. Há um
movimento do tempo no espaço, configurando heterogeneidade, territo-
rialidades, territórios. Em cada área, são múltiplos os ritmos e as moda-
lidades de combinações.
A técnica significa uma manifestação política e expressa em si a ló-
gica estruturante que a configurou, nesse sentido, a agricultura local não
destoa da dinâmica nacional, do processo da revolução verde, o qual altera
o padrão técnico da produção agropecuária. O que identificamos são rit-
mos diferentes. É a partir desses ritmos e da dinâmica geral que, no Sudo-
este do Paraná, dois períodos se destacam: a) o da expansão horizontal da
modernização agrícola até meados da década de 1980 e, b) o da consoli-
dação desse modelo de produção e da verticalização. Ambos substantivam
um movimento histórico e relacional de um modo específico de produ-
zir, centrado no uso de máquinas e equipamentos (mecanização), insumos
químicos (herbicidas, fungicidas, agrotóxicos...), cultivo de grãos, aumen-
to da produtividade e concentração da terra.
As condições político-econômicas, materiais-imateriais, globais-
locais é que, mesmo em condições naturais adversas, não inviabilizam
mudanças territoriais decorrentes da evolução tecnológica no trabalho
agropecuário. No entanto, alguns fatores de ordem natural implicam em
determinadas feições territoriais, como por exemplo, os cultivos que incor-
poram de forma integral o pacote tecnológico da modernização agrícola
tendem a se concentrar nas áreas mais planas, embora nas áreas de topo-
grafia mais acidentada tais cultivos agrícolas são praticados, porém utili-
za-se o referido pacote de forma parcial, através do emprego de técnicas
numa parcela da área total do estabelecimento agrícola.
São manifestações-feições, na organização territorial, que revelam
uma forma específica de produzir mercadorias agropecuárias. Cada par-

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

cela de terra é ocupada, devastada e cultivada, constituindo imagens ter-


ritoriais que revelam relações de poder (Raffestin, 1993). A modernização
agrícola brasileira, historicamente, fez parte de um projeto nacional de ex-
pansão da produção, tanto em escala nacional como internacional, além
de representar uma complementaridade entre sujeitos da agricultura e da
indústria, na qual a primeira tem um papel subalterno e de dependência
em relação às empresas que dominam os elementos basilares da moder-
nização da agricultura, como máquinas e insumos químicos. Embora se
trate de um movimento internacional, este se territorializa a partir das
condições localmente construídas. As cooperativas agrícolas de produção,
por exemplo, são consideradas como “locais seguros” de comercialização,
sendo que a assistência técnica reforça a importância da técnica e redire-
ciona a produção.
Geralmente, a ideia de modernização da agricultura está associa-
da a áreas com predomínio de grandes propriedades e com relevo pla-
no que facilitam o deslocamento das grandes máquinas, símbolos da
modernização: tratores e colheitadeiras. No Sudoeste do Paraná, essas
não são características predominantes, todavia, a modernização agríco-
la tem se efetivado, especialmente, a partir do cultivo da soja, considera-
da mercadoria chave desse processo, pois através dela decorre, a partir
da década de 1960, a implantação do pacote da revolução verde de forma
sistemática nas diferentes unidades de produção. Além da dinâmica do
mercado, essas mudanças são apoiadas e direcionadas a partir das po-
líticas públicas direcionadas à agricultura, de forma setorial, sem con-
siderar as diferentes perspectivas territoriais, impactando nas relações
de produção, uso do solo, devastação das florestas, comercialização e
transformação.

As políticas públicas direcionadas para a agricultura


No Brasil, historicamente, tem-se construído as políticas para o rural a
partir de uma lógica setorial, desconsiderando as diversidades e especifi-
cidades que compõem cada território. As mais expressivas e que demons-
traram maior intensidade foram àquelas processadas a partir da década de
1960, condicionando um caráter empresarial-mercantil à agricultura. Nes-
te sentido, conforme Souza (2000), algumas políticas de destacam:
(...) políticas de crédito e de subsídios foram criadas com a finalidade de
ampliar as possibilidades de investimentos maciços dos produtores rurais
na aquisição de máquinas e de insumos modernos. Ela permitiu a asso-
ciação dos objetivos de aumento de mercados para os produtos de origem
industrial e, ao mesmo tempo, o crescimento da produção de matérias pri-
mas para as indústrias alimentares emergentes num país em processo de
urbanização.

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

Com isso tornou-se possível implementar uma bem sucedida estratégia de


modernização agrícola na região Sul e, particularmente, no Paraná onde
existiu uma conjugação de vários elementos que impulsionaram este pro-
cesso.
Esses elementos eram: a presença de um importante setor empresarial rural
com relativo poder aquisitivo e, de certa forma, preocupado com o aumen-
to da produtividade e da rentabilidade das explorações agropecuárias atra-
vés da redução dos custos de produção; uma política de incentivos oficiais
conjugados aos poderosos interesses das indústrias de insumos, máquinas e
equipamentos, bem como as condições favoráveis de solo e clima (p.39).

Segundo Sauer (2008), apoiado nas proposições de Marcuse, as tec-


nologias modernas da revolução verde representam a imposição de um
modo social de produção, assumindo uma função de controle e domina-
ção. Sendo que estas se processam por várias ações cotidianas, mas são
fomentadas por ações políticas.
No Sudoeste do Paraná, essas políticas promovem alteração na pro-
dução e mudanças parciais nas técnicas de produção. O feijão que era o
principal produto agrícola cultivado vai cedendo espaço à produção de soja.
Espaço este ancorado no crédito e também na assistência técnica e de pes-
quisa, que impulsionam a mudança na forma e intensidade de produzir.
Nessa compreensão, Santos (2008), a partir da pesquisa realizada
em reportagens do arquivo da ACARPA/EMATER, publicadas entre o fi-
nal da década de 1960 até os anos 1980, afirma que, localmente, ocorre
um orquestramento no sentido de indicar aos agricultores que as princi-
pais atividades realizadas até então, a suinocultura e a produção de feijão,
eram inviáveis. Há um esforço ordenado, que perpassa as ações do Estado
e direciona a utilização de novas técnicas e tecnologias na prática agríco-
la. Alguns agentes locais indicam a necessidade de mudanças na forma de
plantio com o fim das queimadas, correção do solo, o melhoramento das
sementes e treinamento dos produtores para tais mudanças.
Nesse sentido, Gonçalves Neto (1997), afirma que os extensionistas
rurais cumprem um importante papel na política de modernização agrí-
cola, complementando a ação dos centros de pesquisas e experimenta-
ção, através do apelo à melhoria da qualidade de vida econômica e social,
afirmando que a base da mudança passa pelo aumento da produção e da
produtividade.
O programa de assistência técnica no Brasil já existe desde a década
de 1940, mas se intensifica com a política de crédito rural a partir da déca-
da de 1960, quando ocorre uma conjugação entre a concessão do crédito
e o parecer técnico. Juntamente com essas práticas se introduz a ideia da
contraposição entre o atraso e a modernidade, representadas pelas for-
mas de cultivos tradicionais e mecanizadas. Tais equívocos permanecem
na atualidade, inclusive sendo reforçados por políticas públicas setoriais.

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

Tais políticas objetivam dar segurança ao produtor rural, espe-


cialmente através da definição de preços mínimos, do crédito rural, da
aquisição de parte da safra pelo governo, do incentivo às cooperativas
de produção agrícola, da implementação da EMATER etc. A assistência
técnica, tanto estatal como das empresas privadas, desempenhou papel
fundamental no processo de ofertas de garantias e no convencimento dos
produtores rurais.
Essas ações são direcionadas pelas questões econômicas e embora
primem por mudanças, não respeitam as dimensões culturais e ambientais
e acabam por impor novas formas de produção, baseadas no uso intensivo
de capital para aquisição de insumos químicos e de máquinas agrícolas,
desconsiderando os conhecimentos adquiridos pelos agricultores. No pe-
ríodo pós-1970, a ação extensionista visava transformar o agricultor tradi-
cional em um produtor moderno.
As práticas adotadas pela extensão rural, no Sudoeste do Paraná não
divergem dessa lógica e constroem a partir dos discursos uma ideologia
modernizante que, em muitos casos, desconsiderava as práticas utilizadas
nas quais se pautava a produção agrícola até aquele momento.
Embora a ação possa ter uma condução externa, para configurar o terri-
tório, a formação territorial ocorre a partir das relações de poder que se
realizam localmente. A compreensão das mudanças territoriais, decorridas
da modernização da agricultura, impõe conhecer os atores locais que exer-
cem influência nesse processo. Assim, parte-se da compreensão de que o
papel desempenhado pelo sistema de Assistência Técnica e Extensão Rural
(ATER), no Sudoeste do Paraná, influencia nas mudanças de forma e de
conteúdo da produção agrícola, procedimento que também ocorre no res-
tante do Brasil, em diferentes momentos e com distintas intensidades.
As ações promovidas pelo sistema de ATER, junto aos produtores rurais,
promovem alguns desdobramentos que caracterizam o Sudoeste do Paraná
e impõem, de acordo com a identidade desse território, ritmos e manifesta-
ções que repercutem territorialmente. (SANTOS, 2008, p.120)

Nesta perspectiva de produção além das novas tecnologias, o uso de


agrotóxicos passa a fazer parte do cotidiano dos agricultores. No uso do
pacote tecnológico se constrói uma ideia naturalizada de um tipo de pro-
dução que tem efeitos sociais, políticos e econômicos distintos. Desapa-
rece, nessa perspectiva, a ideia de conflito e de interesses de poder que se
colocam nesse contexto. Assim como também de superação de uma forma
de produção por outra. Na agricultura familiar predominante no Sudoeste
do Paraná, busca-se continuar existindo e aumentar a produção e a produ-
tividade agrícola.
A modernização da agricultura intensificou a expansão das frontei-
ras agrícolas no Paraná, alterou a pauta de produção e aumentou a pro-
dutividade, especialmente dos cultivos destinados a exportação (Tabela 1).

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

Cabe destacar que as exportações agrícolas cumprem um importante pa-


pel para a captação de recursos e para o superávit da balança comercial.
Porém, simultaneamente ao aumento da produtividade, verifica-se a con-
centração de terras e das técnicas modernas nos médios e grandes estabe-
lecimentos, a intensificação do êxodo rural, o aumento da população nas
cidades etc.
Nesse processo, são as culturas de soja e milho as que mais repre-
sentam o dinamismo da produção agrícola, o que faz com que muitos atre-
lem a produtividade ao conceito de desenvolvimento, sem considerar que
este é substantivado por outras dimensões sociais. Essa perspectiva políti-
ca e econômica é que explica o montante superior de recursos destinado as
práticas consideradas modernas ao longo da história brasileira, em detri-
mento, muitas vezes, de uma agricultura voltada à produção de alimentos
que não são adequados ao pacote tecnológico. Um processo de desenvolvi-
mento envolve, necessariamente, conquistas econômicas, políticas e cultu-
rais que possam sustentar melhorias nas condições e na qualidade de vida
da maioria das pessoas.
Todavia, o desenvolvimento tecnológico da agricultura tem possibilitado a
incorporação cada vez maior de técnicas avançadas que propiciam o aumen-
to da produção e da produtividade agrícola. Estas se mostram inadequadas à
realidade do Sudoeste do Paraná, conforme se verifica em trabalho de cam-
po, pois tem remetido a uma prática de atividades de monocultura com o uso
intenso de agrotóxicos. Estas práticas, como têm demonstrado alguns auto-
res, potencializam o desmatamento, a contaminação das águas subterrâneas
e superficiais, o desgaste químico e físico dos solos, além de um êxodo rural
intenso e acelerado que tem agravado os problemas urbanos. No entanto, há
um movimento bem forte que ratifica a modernização da agricultura, como
sinônimo de moderno e progresso. (SANTOS, 2008, p.75).

Esse movimento é substantivado por materialidades e imaterialida-


des, por discursos e práticas territoriais que envolvem as máquinas, os
insumos químicos, a inserção cada vez mais intensa ao mercado, a veloci-
dade, a produtividade agrícola e assim por diante. São processos e, ao mes-
mo tempo, mecanismos ideológicos traduzidos, para os agricultores, como
sinônimo de progresso, de moderno, de vida melhor, sem considerar a de-
vastação da mata nativa, o assoreamento dos rios, a poluição das águas e
dos solos, a produção de alimentos com insumos químicos, as mortes por
intoxicação e a concentração da terra.
Um dos processos utilizados para encobrir esses efeitos e/ou impac-
tos provocados pela modernização da agricultura é o aumento considerá-
vel da produtividade de produtos como a soja e o milho. Esse aumento é
utilizado, muitas vezes, para demonstrar o progresso e o moderno, masca-
rando impactos provocados por um processo perverso e excludente, tanto
social como territorialmente.

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

Tabela 1 – Produtividade agrícola no Sudoeste Paranaense – em toneladas/ha.


Ano safra Feijão Arroz Soja Milho
1977-78 0,97 1,80 1,74 2,49
1978-79 1,00 1,84 1,84 2,70
1985-86 0,41 1,40 1,73 1,25
1986-87 0,50 1,80 2,00 2,99
1995-96 0,69 1,91 2,66 2,73
1996-97 0,78 1,68 2,57 3,20
2004-05 1,43 - 1,49 4,55
2005-06 1,41 - 1,72 2,45
Fonte: Secretaria de Agricultura/Deral. In: Santos, 2008, p.185.

No Sudoeste do Paraná, como noutros espaços do Brasil, aconte-


ce uma diferenciação entre os produtos destinados especificamente ao
mercado interno, como o feijão e o arroz, e aqueles destinados ao mer-
cado interno e externo, mas que se adequam de forma mais completa
ao pacote tecnológico. No caso da produção de feijão, os índices de
produtividade atingidos entre as safras de 1985/86 e 1996/97, mostram-
se inferiores ao da safra 1977-78. A produtividade é retomada somente
nos últimos anos, quando ocorre um maior incentivo à produção de fei-
jão em decorrência do aumento do preço de comercialização. No caso
do arroz, a situação é semelhante, pois se trata de um produto que a
produtividade diminui entre 1977-78 e 1996-97, assim como a própria
produção.
Ao mesmo tempo, a soja e o milho aumentam de produtividade ao
longo da série apresentada: a produtividade da soja aumenta consideravel-
mente entre 1977-78 e 1996-97; a do milho também, entre 1977-78 e 2004-
05. Cabe lembrar que se tratam de cultivos temporários de verão, mas que
não utilizam o mesmo padrão tecnológico para produção. Assim, há algu-
mas oscilações na produtividade que estão ligadas a mudanças de ordem
natural e também de mercado.
O aumento da produtividade, de fato, apesar de todos os impactos
sociais e territoriais gerados, resulta num aumento também considerável
da produção. Esta é mais uma das características da modernização agrí-
cola (Tabela 2). A expressividade da produção de soja e milho decorre do
uso do pacote tecnológico e das políticas que as fomentam, em especial o
crédito rural que tem sido destinado em sua maioria ao custeio agrícola,
ao contrário do que ocorreu da década de 1970, quando o crédito rural era
utilizado principalmente para investimentos em tecnologias poupadoras
de mão de obra.

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

Tabela 2 – Produção agrícola do Sudoeste Paranaense


feijão arroz soja milho
área quantidade área quantidade área quantidade área quantidade
(ha) (t) (ha) (t) (ha) (t) (ha) (t)
1995 123.775 125.788 7.558 13.488 175.160 477.304 434.490 1.450.672
1997 84.560 64.781 5.400 9.493 230.120 614.791 345.220 1.083.390
1999 78.890 53.457 4.360 8.348 250.555 605.109 285.870 968.792
2001 29.263 34.583 3.140 6.247 222.503 639.879 363.350 1.668.310
2003 40.985 56.382 1.745 3.403 327.940 1.002.031 278.650 1.515.190
2005 22.899 31.641 1.723 488 347.581 489.878 246.250 1.026.745
2007 44.320 65.766 1.175 2.275 373.230 1.061.050 247.930 1.508.697
Fonte: IBGE – Produção agrícola municipal.

No caso da soja, no Sudoeste do Paranaense, entre 1995 e 2007, au-


menta consideravelmente a área cultivada, diminui a produtividade (até
2006) e aumenta a produção, em virtude do grande aumento da área cul-
tivada com a mesma. Na década de 1980, aumentou tanto a área cultivada
como a produtividade. Já no caso do milho,diminui consideravelmente a
área cultivada (1995-2007), diminui a produtividade (1995-2006) e aumen-
ta a produção. Esta última tem pouca variação entre 1995 e 2007, porque
os melhores índices foram atingidos na década de 1980. É fundamental
evidenciar, também, a diminuição da área cultivada e da produção, entre
1995 e 2007, do feijão e do arroz, produtos que, conforme já mencionamos,
estão voltados para o mercado interno.
Esse processo de modernização da base técnica da produção agro-
pecuária, em especial agrícola, não altera significativamente, no Sudoeste
paranaense, a sua estrutura fundiária. Esta contém permanências impor-
tantes, apesar de sinais claros que verificamos na concentração da terra.
É nesta lógica que compreendemos que 93% dos estabelecimentos agro-
pecuários, em 1995/96, tinham até 50 hectares, os quais ocupam 58% da
área total.
No entanto, a existência e a predominância de pequenos estabeleci-
mentos não impede a implementação da lógica de modernização pautada
no pacote tecnológico e configurada a partir das diferentes políticas desen-
volvimentistas adotadas para transformação de uma agricultura tradicio-
nal em “moderna”.
Em termos das políticas agrícolas não se pode desconsiderar o cré-
dito rural que foi a principal política para a modernização e que, apesar
dos momentos de crise que aconteceram envolvendo a agricultura brasilei-
ra, permanece com uma importante função no direcionamento produtivo.
Atrelado ao crédito, encontramos também as políticas de preços e da pró-
pria extensão rural. As mudanças no crédito, como a diminuição deste em

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

meados da década de 1980, alteram a dinâmica, incluindo novos agentes


no fomento da agricultura como empresas privadas e cooperativas agríco-
las de produção e de crédito.
Segundo o sistema OCEPAR, as cooperativas são importantes ins-
trumentos na difusão de tecnologias e implementação de políticas de-
senvolvimentistas como a do crédito rural. Na produção agrícola da sa-
fra 2006/2007, por exemplo, as cooperativas do Paraná responderam por
72,5% da produção de soja, 46,3% do milho, 8,2% do feijão e 8,8% do ar-
roz. O que mostra a integração das cooperativas com a lógica estruturante
discutida anteriormente. Além das cooperativas agropecuárias vinculadas
a OCEPAR, outras de organização da agricultura familiar são formadas
com o intuito de incluir os agricultores menos capitalizados, embora se
distingam das primeiras pelo seu caráter mais solidário e pelo processo
histórico e organizacional de sua constituição. Estas têm sido expressivas
no Sudoeste do Paraná, como a Cooperativa de Leite da Agricultura Fa-
miliar (CLAF), a Cooperativa de Comercialização da Agricultura Familiar
Integrada (COOPAFI) e a Cooperativa de Crédito Rural com Interação So-
lidária (CRESOL).
Historicamente, o crédito tem um papel fundamental na agricultu-
ra e este permanece na atualidade. No Sudoeste do Paraná, o uso deste é
bastante significativo. Sob um olhar atento aos dados pesquisados, em tra-
balho de campo, é possível verificar que 87% dos agricultores financiam a
safra 2005/2006. Também notamos que 76% dos produtores entrevistados
têm financiamentos realizados para investimentos a pagar, referentes aos
anos anteriores. Esses dados demonstram o endividamento de muitos agri-
cultores. Em períodos de crise e frustração de safras, como as verificadas
em 2004, 2005 e 2006, têm se tornado comum a utilização do crédito, em
especial do chamado Pronafinho (é uma linha de crédito do PRONAF des-
tinada aos agricultores com renda bruta anual de até R$8.000,00), normal-
mente destinado à compra de produtos para o autoconsumo da família.
As condições vividas pelos agricultores fazem com que, constante-
mente, eles tenham que recorrer ao crédito, formando um círculo vicioso:
crédito – produção – crédito. Como destaca Santos (2008, p. 96), “O PRO-
NAF é considerado como um avanço na distribuição e acesso dos agricul-
tores familiares ao crédito, porém, sua utilização, ano após ano, tem se
configurado como uma forma de sujeição do agricultor ao Estado e ao ca-
pital financeiro”. É uma contradição, como tantas outras presentes no seio
da modernização da agricultura e de nossas vidas cotidianas. O crédito
facilita e dificulta, envolvendo muitos agricultores em tramas que limitam
cada vez mais sua autonomia.
A força da agricultura no Sudoeste do Paraná é expressiva, princi-
palmente quando considerada a dimensão econômica, a qual tem sido um
dos motes do desenvolvimento brasileiro e um dos objetivos destacados no

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

processo de modernização da agricultura. Em seu território, o montante da


renda agropecuária é bastante significativo em quase todos os municípios
que o compõem, consoante observado nos dados do Produto Interno Bruto
(PIB) do Sudoeste do Paraná, considerado um importante indicador econô-
mico para demonstrar o grau de relevância de determinados segmentos.
O PIB agropecuário do Sudoeste do Paraná, apesar da diminuição
que vem ocorrendo nos últimos anos, é bastante significativo e revela a im-
portância dessas atividades na economia regional. Em 1970, o PIB total é
majoritariamente originado das atividades agropecuárias (70%); em 1975, o
seu valor é o mesmo do quinquênio anterior, entretanto, o PIB total aumen-
ta demonstrando o crescimento da renda em outros segmentos. Em 1985, o
PIB agropecuário representa 48,46%, percentual que diminui ainda mais a
partir da segunda metade dos anos 1990, atingindo, no ano de 1996, o seu
percentual mais baixo, 30%, retomando o crescimento nos anos seguintes,
voltando a 45,34% em 2003. Apesar dessas oscilações, o PIB agropecuário
tem sido representativo nos municípios do Sudoeste do Paraná.
Contraditoriamente, apesar da importância da atividade agropecuá­
ria no Sudoeste do Paraná e da utilização do trabalho familiar, o uso des-
ta mão de obra tem diminuído (Tabela 3). Essa diminuição, efetivamente,
está relacionada às mudanças decorrentes da modernização da agricultu-
ra. Seus agentes sociais dinamizadores condicionam a utilização menor de
pessoas no processo produtivo e, ao mesmo tempo, a maior utilização de
máquinas e de insumos químicos.

Tabela 3 – Pessoal ocupado em estabelecimentos agropecuários no Sudoeste


Paranaense
1996 2006
Número de Número de Número de Número de
pessoas estabelecimentos pessoas estabelecimentos
Com laço de parentesco
144.589 47.277 115.028 44.632
com o produtor
Sem laço de parentesco
14.971 4.346 12.422 3.465
com o produtor
Total 159.560 47.277 127.450 44.632
Fonte: IBGE – Censos agropecuários.

Entre 1996 e 2006, diminui o número de estabelecimentos e a quan-


tidade de trabalhadores que têm laços de parentesco com o produtor e, si-
multaneamente, diminui o número de estabelecimentos e a quantidade de
trabalhadores sem laços de parentesco com os produtores agropecuários.
Esse é um elemento que indica não somente a substituição dos trabalha-
dores pelas máquinas, mas a dificuldade de absorção de mão de obra em

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

um território em que a maioria absoluta dos estabelecimentos é pequena


em extensão de terras.
A tabela 4 mostra o número de tratores no Sudoeste Paranaense e
nela é possível observar que o aumento da quantidade de tratores foi mais
significativo no período entre 1970 e 1985, o qual classificamos como de
expansão horizontal da agricultura de base técnica moderna. Após esse
período, o incremento é pouco expressivo, na ordem de 18% (entre 1985 e
1995/96), contramais de 100% na década anterior. Neste caso, poderíamos
incorrer em um equívoco se afirmássemos que está ocorrendo um reflu-
xo no processo de modernização no Sudoeste Paranaense, pois os traba-
lhos de campo demonstram a efetivação de uma expansão e especialização
agropecuária. Como podemos explicar esse pequeno incremento?

Tabela 4 – Número de tratores no Sudoeste Paranaense


1970 380
1975 2.986
1985 6.325
1995/96 7.481
Fonte: IBGE – Censos agropecuários.

Um dos elementos a ser considerado diz respeito à própria produção


agropecuária que tem mantido a área agrícola, em especial das lavouras
temporárias. Outro, diz respeito à prática de aluguel de horas máquinas
para realização do processo produtivo, desde o preparo da terra, o plantio,
a dessecagem, a colheita e o transporte da produção, em especial dos pe-
quenos produtores agrícolas que não possuem máquinas agrícolas. O alto
índice de variação verificado entre 1970 e 1985 justifica-se, também, por-
que o número de tratores, em 1970, era ainda muito pequeno.
Apresentamos, na tabela 5, o número dos estabelecimentos agro-
pecuários de acordo com a origem da força utilizada. No período entre
1985 e 1995/96, os dados demonstram que aumenta o número de estabe-
lecimentos com uso de força mecânica, seguindo a tendência de tecnifica-
ção do trabalho no campo, no entanto, apesar da diminuição do número
de estabelecimentos com uso de força animal, esta é de pequena monta.
Trata-se de uma diminuição de 642 estabelecimentos, revelando uma das
contradições presentes na agricultura familiar do Sudoeste Paranaense,
onde se utilizam técnicas consideradas rudimentares e mesmo atrasadas
pelos adeptos do pacote tecnológico. O uso dessas técnicas de mais fácil
acesso aos agricultores familiares, decorre de uma adaptação econômica
mas também ambiental, além de representar uma manifestação cultural
de um modo de produzir baseado em conhecimentos adquiridos por ou-
tras gerações.

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

Tabela 5 – Número de estabelecimentos agropecuários segundo a força utilizada para o


trabalho agropecuário no Sudoeste Paranaense
1985 1995/96
animal 35.739 35.097
mecânica 17.906 22.793
Fonte: IBGE – Censos Agropecuários.

No entanto, o uso da força animal, apesar de representar, de certa


forma, maior autonomia no processo produtivo, também significa a difi-
culdade de inserção de muitos produtores na chamada forma moderna
de produção agropecuária. Essa afirmação decorre da realidade verificada
em que instrumentos técnicos mais rudimentares servem para o plantio de
commodities, que seguem o padrão tecnológico da revolução verde, como
ocorre com o milho.
De maneira geral, o que apresentamos são alguns sinais-indicado-
res, entre tantos outros, que revelam um pouco das relações dicotômicas
existentes neste território e o processo de modernização de atividades
agrícolas. Assim, ao mesmo tempo em que encontramos uma subordi-
nação às formas de exploração e acumulação de capital, identificamos
tentativas de organização para maior autonomia diante desse contexto.
Porém, é importante destacar que a grande marca deste processo de mo-
dernização é a intensificação no uso do capital, seja de forma plena ou
de forma parcial.
Também é importante evidenciar que o processo de modernização
não ocorreu de forma homogênea em todos os municípios do Sudoeste
Paranaense, manifestando ritmos diferentes, mudanças e permanências
territoriais como a permanência das pequenas unidades de produção fa-
miliar, mesma com a diminuição da população rural. Essas manifestações
expressam o caráter contraditório da organização da agricultura capitalis-
ta. Poderíamos ainda discutir outras feições como os sistemas de integra-
ção efetivados junto às empresas avícolas, fumageiras e as estratégias para
aumento da autonomia como a produção agroecológica familiar.
Efetivamente, o processo de inovação tecnológica aumenta a pro-
dutividade e diminuiu a penosidade física do trabalho agropecuário, pos-
sibilitando a ampliação da acumulação de capital via integração entre in-
dústria e agricultura. Porém, os benefícios ficaram restritos a poucos, em
especial os produtores maiores (em área, produção...), que ocupam, via de
regra, as melhores terras. Aos demais representou uma forma de subordi-
nação e exploração, com dificuldades de se viabilizar economicamente ao
mesmo tempo em que vê diminuída a autonomia produtiva e a perda ou
desqualificação de valores culturais diante da modernização cristalizada
por meio de inovações técnicas e tecnológicas que, num jogo ideológico
dominante, estão na base da desvalorização identitária e cultural.

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Roselí Alves dos Santos | Marcos Aurelio Saquet

Considerações finais
É notória a importância da agricultura familiar no Sudoeste do Paraná.
Prática produtiva e de vida constituída no seio da migração interna ocorri-
da sobretudo a partir dos anos 1940, do Rio Grande do Sul e de Santa Ca-
tarina, para o recorte espacial que estamos estudando. Foram milhares de
migrantes, descendentes de alemães, poloneses e italianos, conhecedores
de uma prática agropecuária e mercantil diferente daquela até então efeti-
vada no Sudoeste do Paraná pelos caboclos, paraguaios e argentinos.
Há um processo de reterritorialização e reprodução de uma forma
específica de vida, que imprime, no novo território e lugar, um novo arran-
jo por meio de novas forças produtivas, relações sociais, crenças, práticas
culturais, organizações políticas etc., definindo novos contornos e conteú-
dos ao território. Este, passa por mudanças profundas a partir da atuação
do GETSOP e com a implementação da modernização da agricultura a
partir da década de 1970.
O território é metamorfoseado, transformado e reorganizado por
agentes sociais econômicos, políticos e culturais envolvidos, de maneira
geral, pelo movimento de expansão do modo capitalista de produção. Este,
recria relações de produção não especificamente capitalistas e, ao mesmo
tempo, impõe uma forma de produzir centrada na mecanização e na utili-
zação de insumos químicos. Processo mediado pela forte atuação do Esta-
do que define políticas de incentivo peculiares como a de crédito rural e a
de definição de preços mínimos.
Há uma combinação entre agentes do Estado e do capital que fa-
vorecem a expansão deste último e sua reprodução ampliada, também
fortemente mediada pela constituição, no Sudoeste do Paraná e noutros
territórios, de cooperativas de produção e crédito. Esse processo provoca
mudanças profundas na produção agropecuária, aumentando a utilização
de máquinas e insumos químicos, a produtividade e a produção de merca-
dorias, especialmente da soja e do milho.
Simultaneamente, acontece a concentração de parte das terras, a
fragmentação de outras e a “liberação” de força de trabalho, substituída
pelas máquinas e novas técnicas de cultivo. É um processo contraditório,
pois os pequenos estabelecimentos e a utilização de força de trabalho fa-
miliar permanecem muito importantes no Sudoeste do Paraná, bem como
o PIB agropecuário, embora outras atividades econômicas tenham assu-
mido certa centralidade na economia regional, como as de serviço e as in-
dustriais.
Assim, perguntamo-nos: até que ponto-nível os agentes do capital
podem avançar e controlar atividades agrícolas como estas do Sudoeste do
Paraná, ainda centradas no trabalho familiar? Há níveis gerais de domi-
nação e controle? Por que não há, até o momento, uma utilização maior e

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Considerações sobre a modernização
da agricultura no sudoeste do paraná

mais intensa do trabalho assalariado na prática agropecuária? Com toda


heterogeneidade existente, econômica (ritmos...), política e cultural, pode-
mos afirmar que são atividades agrícolas capitalistas? Ou há reprodução
de formas de produzir e de vida híbridas, que envolvem traços-caracterís-
ticas-elementos-processos tipicamente e não especificamente capitalistas,
com ritmos, territorialidades e lógicas distintas?

Referências

Martins, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil.


Petrópolis:Vozes, 1981.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática,
1993.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.
SANTOS, Roseli dos. O processo de Modernização da Agricultura no
Sudoeste do Paraná. Tese (Doutorado em Geografia). Universida-
de Estadual Paulista “Julio Mesquita Filho”, Presidente Prudente,
2008.
SAQUET, Marcos. Os tempos e os territórios da colonização italiana.
Porto Alegre: EST Edições, 2003/2001.
SAUER, Sérgio. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica so-
ciopolítica do campo brasileiro, EMBRAPA, Brasília, 2008. (Texto
para discussão 30)
SOUZA, Marcelino. Atividades não agrícolas e desenvolvimento rural
no Estado do Paraná. Tese (Doutorado em Geografia). UNICAMP:
Programa de Pós-Graduação em Engenharia Agrícola, Campinas,
2000.
Veronese, Claudino Domingos. O papel pedagógico da Assesoar no
apoio à construção da cidadania dos ex-posseiros do Sudoeste
do Paraná. Dissertação (Mestrado em Educação nas Ciências). Uni-
versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,
Ijuí, 1998.

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca
no litoral paranaense

Valdir Frigo Denardin


Professor da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral | valdirfd@ufpr.br

Mayra Taiza Sulzbach


Professora da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral | mayrats@ufpr.br

Introdução
A demanda por produtos com identidade é uma tendência mundial. Os
consumidores estão deixando de consumir commodities para consumir
produtos com identidade. Essa afirmação tem respaldo no crescimento do
mercado de produtos orgânicos, agroecológicos e provenientes do comér-
cio justo, bem como dos serviços relacionados ao turismo rural e étnico.
O desafio das estratégias de desenvolvimento territorial consiste em
se apropriar de recursos específicos e buscar o que constituiria o potencial
identificável de um território. Para tal, deve ocorrer um processo de espe-
cificação ou ativação de recursos de maneira atransformar recursos em
ativos específicos.
O território, nesta perspectiva, é uma unidade ativa de desenvolvimen-
to que possui recursos específicos, únicos, e não transferíveis de uma região
para outra. Os recursos podem ser materiais (como jazidas) ou não (como o
saber fazer, ligado à história e à cultura local). A valorização dos recursos es-
pecíficos pode possibilitar ao território uma renda de qualidade territorial.
Tem-se como hipótese que o saber fazer relacionado a “arte de fa-
rinhar” (fazer farinha) é um recurso único e não transferível que torna a

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

farinha de mandioca do litoral do Paraná um produto com identidade ter-


ritorial, podendo, se devidamente valorizada, permitir aos agricultores fa-
miliares uma renda diferencial: uma renda de qualidade territorial.

Produtos com identidade e desenvolvimento territorial


Para entender o processo de especificação de recursos faz-se necessário
num primeiro momento diferenciar território dado de território constru-
ído. Na sequência faz-se a diferenciação entre ativos e recursos genéricos
e específicos.

Território dado e território construído


Segundo Pecqueur (2005), território dadoé um território sem valor acres-
centado, com fatores de constrangimento ou limitações. O território é tido
como preexistente e se analisa o que ali acontece, o que lhe contém. Ele é,
portando, uma porção do espaço que é objeto de observação. Para Flores
(2006), o território dado é definido por uma decisão político-administrati-
va, é um processo top down, cujo interesse pode ser, por exemplo, o estabe-
lecimento de políticas de desenvolvimento para determinada região.
O território construído, por outro lado, é produto de um processo de
melhorias, fruto do jogo dos atores e constatado a posteriori; é o resultado
de um processo de construção social pelos atores (PECQUEUR, 2005). O
território construído é um espaço-território que se forma a partir do en-
contro de atores sociais em um espaço geográfico dado; atores que buscam
identificar e resolver problemas comuns (FLORES, 2008; CARRIÈRE e CA-
ZELLA, 2006). Para Flores (2008), o território construído é um espaço de
relações sociais, no qual existe um sentimento de pertencimento por parte
dos atores com respeito à identidade construída e associada ao espaço de
ação coletiva; local em que se criam laços de solidariedade entre os atores.
Por fim, Carrière e Cazella (2006) argumentam que um território
dado (de delimitação político-administrativa) pode abrigar vários territó-
rios construídos. Mencionam ainda que a formação de um território resulta
do encontro e da mobilização dos atores sociais que integram um dado es-
paço geográfico e que procuram identificar e resolver problemas comuns.

Os recursos no território
Segundo Pecqueur (2005, p.13), recursos são “fatores a explorar, a organi-
zar, ou ainda, a revelar”.O autor os considera uma reserva, um potencial
latente ou virtual que pode, se as condições de produção e inovação tec-
nológica permitirem, se transformar em ativo. Carrière e Cazella (2006,
p.34) mencionam que “quando um processo de identificação e valorização

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

dos recursos latentes se concretiza, esses recursos se tornam ativos territo-


riais”. Destarte, ativos são os fatores de produção em atividade, em uso no
processo produtivo. Quando o recurso é incorporado no sistema produtivo
ele passa a ser tratado com um ativo.
Para avançar nas discussões, faz-se necessário aprofundar a dife-
renciação entre ativos /recursos genéricos e ativos/recursos específicos.
Os ativos e recursos genéricos são totalmente transferíveis e seu valor é
um valor de troca, estipulado no mercado via sistema de preços. Estes
ativos e recursos não permitem que um território se diferencie de forma
consistente (duradoura) de outros, uma vez que eles são transferíveis, ou
seja, transacionados no mercado. Pecqueur (2005, p.13) menciona que
eles são um “conjunto dos fatores tradicionais de definição espacial dis-
criminados pelos preços e que são objetos de um cálculo de otimização”.
Para Carrière e Cazella (2006, p.34) os recursos e ativos genéricos “são to-
talmente transferíveis e independentes da aptidão do lugar e das pessoas
onde e por quem são produzidos”. Portanto, os ativos e recursos genéricos
não são únicos, eles existem em outros territórios e não são objetos de di-
ferenciação do território.
Os ativos específicos, por sua vez, possibilitam um uso particular e
seu valor é função das condições de seu uso. Além disso, eles apresentam
um custo de transferência que pode ser alto e irrecuperável. Segundo Pec-
queur (2005, p.14), o ativo específico “possui um custo de redirecionamen-
to. O ativo perde uma parte de seu valor produtivo caso for direcionado
para um uso alternativo”.
Os recursos específicos merecem maior atenção. Eles possibilitam a
construção de uma argumentação que destaca a importância dos produtos
com identidade para o desenvolvimento.
Os recursos específicos, ao contrário dos recursos genéricos, não são
mensuráveis, ou seja, não são expressos em preços e não podem ser trans-
feridos, como qualquer produto transacionado no mercado. Para Pecqueur
(2005, p.15) a “produção desses recursos resulta, pois, de normas, costumes,
de uma cultura que são elaborados num espaço de proximidade geográfica
e institucional, a partir de uma troca não mercantil: a reciprocidade”.
Os recursos específicos, segundo esta concepção, só existem no esta-
do virtual e não podem ser transferidos. Eles resultam de uma longa histó-
ria, de um acumulo de memória, de uma aprendizagem cognitiva coletiva,
de processos interativos carregados de cultura, de saber local. Quando co-
nhecimentos e saberes heterogêneos são combinados, segundo Pecqueur
(2005), novos conhecimentos são produzidos.
O processo de “especificação de ativos” é o que propicia a dife-
renciação de um território dos demais e se contrapõe ao regime de con-
corrência baseado na produção standard ou produtos commodities. Para
Pecqueur (2006a), a dinâmica de desenvolvimento territorial “visa revelar

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

os recursos inéditos e é por isso que ela se constitui uma inovação”. Carriè-
re e Cazella (2006, p. 34), por sua vez, mencionam que a metamorfose dos
recursos em ativos específicos “é indissociável da história longa, da memó-
ria social acumulada e de um processo de aprendizagem coletiva e cogniti-
va (aquisição de conhecimento) característica de um dado território”.
O processo de especificação consiste na qualificação e diferenciação
de recursos que os atores locais revelam no processo de resolução de seus
problemas comuns. Para Carrière e Cazella (2006, p. 34), o “ponto máxi-
mo de maturação de um território construído consiste na geração de uma
renda de qualidade territorial”. Nesta proposta, a imagem do território é o
produto a ser comercializado.
A renda de qualidade territorial, para Pecqueur (2006b, p.136), “é
uma renda organizacional, ela reflete a capacidade dos atores locais de,
mediante certos dispositivos institucionais, captar a disposição dos con-
sumidores de pagarem por aspectos relacionados ao ambiente produtivo”.
Fonte et. al. (2006, p. 13) mencionam que a possibilidade de criar e se be-
neficiar da renda de identidade está associada ao quadro de “governança
local”, que relaciona dois fatores – um deles, a capacidade dos atores locais
de criar mecanismos institucionais coletivos capazes de regular o emprego
dos recursos; o outro, a distribuição dos benefícios ao quadro institucional
exógeno ao território – de maneira a garantir a apropriação local dos bene-
fícios econômicos nos mercados local e global.

Identidade como elemento dinamizador


da economia de um território

Produtos e serviços com identidade cultural ou territorial, são objetos de


estudo para quem pensa o desenvolvimento territorial sob uma perspectiva
endógena, na qual se busca valorizar as potencialidades locais.
Segundo Soucy (2003), o desenvolvimento com identidade territo-
rial supõe uma valorização daquilo que distingue um território e lhe per-
mite competir: vantagens absolutas (únicas) ou comparativas (melhores
condições para entregar o produto ou serviço). Em oposição, um desen-
volvimento desprovido de identidade supõe que em todos os locais deve-se
fazer exatamente o mesmo: a mesma arquitetura, as mesmas vestimentas,
a mesma comida, os mesmos idiomas etc.
O conceito de identidade cultural, para Fonte et al. (2006), carrega
um sentido de pertencimento a um grupo social que compartilha laços cul-
turais como costumes, valores e crenças. Para os autores, a “identidade”
pode se expressar através de sinais materiais e imateriais, como a língua, a
música, a literatura, as artes, os sítios arqueológicos, a arquitetura, a paisa-
gem, a tradição, o folclore, a biodiversidade vegetal e animal, os produtos
alimentares típicos e os produtos artesanais.

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

Para Soucy (2003), a identidade é uma qualidade que faz com que
algo seja único, que seja distinto, distinguível e distinguido. O autor men-
ciona um conjunto de produtos, serviços e imagens que distinguem um
território: i) arquitetura: monumentos e sítios históricos; ii) paisagens:
rios, flora, fauna, florestas etc.; iii) pessoas e imagens: fatos históricos,
vestimentas, chapéus, modismos etc.; iv) ativos culturais: idioma, música,
dança, artistas famosos, culinária etc.; v) serviços culturais únicos: festas,
pratos típicos etc.; e vi) especialistas: escultores de madeira e cerâmica,
artesanato etc.
Produtos com identidade territorial, portanto, incorporam todos os
bens, serviços, informações e imagens próprias de um território. Um tipo
de queijo produzido artesanalmente em determinado território é um exem-
plo de um bem; um grupo folclórico, por sua vez, é um serviço e uma igreja
ou gruta é um símbolo que identifica o território.
Para Ramirez (2008), mais que um espaço físico dotado de deter-
minadas características, identidade territorial é “uma construção social”.
A identidade, portanto, pode se manifestar em atributos geográficos espe-
cíficos de certas regiões, na história ou particularidades sociais, sobre um
tipo de produto ou sabor especial. Logo, não haveria uma única identidade
em um território, mas possivelmente várias. O autor apresenta dois tipos
de identidade: uma que se refere aos bens e serviços específicos e únicos
do território e outra de bens ou serviços resultantes de um conjunto de ar-
ranjos institucionais (normas) que incluem os produtores e suas técnicas
de produção, juntamente com as entidades públicas ou privadas que certi-
ficam estes atributos. Para este segundo caso, pode-se citar como exemplo
o queijo parmegiano na Itália e os diferentes produtos DOC (Denominação
de Origem Controlada) na França.
No Brasil, a título de exemplo, cita-se duas regiões em que ocorre
a valorização dos produtos territoriais e que podem ser consideradas um
território com identidade cultural. No Rio Grande do Sul, o Vale dos Vi-
nhedos apresenta uma forte organização turística em torno da produção
de vinho e da paisagem rural associada à gastronomia, sendo a primeira
região com o uso da Identidade de Procedência (IP) no Brasil.Em Minas
Gerais, por seu turno, tem-se a região dos Cerrados e de Machado/Poço
Fundo de Minas Gerais (Sul de Minas), que vem se tornando conhecida
como um polo de geração de conhecimento e produção de café com quali-
dade (café orgânico).
Ramirez (2008) menciona que a especificidade territorial é uma
condição natural, geográfica, histórica, legal ou uma combinação delas. A
condição natural permite que certos produtos e serviços sejam ofertados
pelos produtores de determinando território. As condições geográficas do
território podem, também, permitir certo grau de especificidade. A condi-
ção histórica, por sua vez, permite que certos territórios possuam identi-

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

dade a partir do desenvolvimento de elementos culturais e históricos. Por


fim, a condição legal se refere ao conjunto de arranjos institucionais que
permitem dar sentido econômico ao território e a produção.
Com a identidade ganhando valor no mercado, surge um conjun-
to de procedimentos (estratégias) que possibilitam que os produtores se
apropriem deste valor. Os elementos não observáveis (intangíveis) podem
tornar-se visíveis com a ajuda de um terceiro (uma certificadora, por exem-
plo) que disponibiliza a informação necessária para que os consumidores
valorizem os atributos específicos de identidade contidos nos bens e servi-
ços (FONTE et. al., 2006).
As interações entre a especificidade territorial e o nível de identida-
de geram quatro grupos de identidade territorial, conforme o Gráfico 01
(RAMIREZ, 2008). O grupo Tipo I apresenta características de especifi-
cidade territorial relacionadas às condições geográficas ou culturais que
permitem que se produzam bens e serviços com identidade. Existem ar-
ranjos institucionais que permitem explorar esta especificidade no merca-
do e oferecer produtos e serviços com identidade territorial. O grupo Tipo
II também se encontra em um território onde existem atributos de identi-
dade (sejam de caráter geográfico ou cultural), porém sem condições para
melhorar o nível de identidade. Não existem instituições que organizem
os diferentes atores com o intuito de capturar os benefícios potenciais que
a identidade territorial pode acrescentar aos seus produtos. O grupo Tipo
III é caracterizado pelos produtos commodities. É um espaço onde não
existem condições naturais, físicas ou históricas, bem como instituições
que possibilitem que os produtos possam se diferenciar. Nesta situação os
produtores devem maximizar a eficiência (minimizar custos) e aumentar a
escala de operação para serem competitivos no mercado. Por fim, o grupo
Tipo IV está presente em um espaço que não apresenta especificidade ter-
ritorial mas que, em função dos processos de organização e ação coletiva,
permite certo nível de identidade territorial aos produtos e serviços.

Gráfico 1 – Classificação dos produtos em relação ao seu nível de identidade e


especificidade territorial.
Nivel de identidade

IV I

Especificidade territorial
III II

Fonte: Ramirez (2008, p. 66)

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

Uma discussão sobre o preço dos produtos com identidade pode ser
feita a partir do Gráfico 02. Ele nos permite pensar três possíveis cenários
relativos aos preços dos produtos. Na primeira situação, os consumidores
não valorizam a identidade ou não a identificam no produto ou serviço ad-
quirido, nesse caso o produto é considerado uma commodity (reta A). Na
segunda situação, o produto ou serviço tem um preço menor que um pro-
duto similar no mercado, evidenciando possíveis problemas de qualidade
(reta C). Por fim, na terceira situação o produto com identidade tem um
preço maior em relação a uma commodity. Neste caso, os atributos do pro-
duto ou serviço são percebidos pelos consumidores (ponto B).
Um produto com identidade é considerado um bem único e os con-
sumidores podem diferenciar este bem dos demais. A possibilidade de di-
ferenciação permite que seja atribuído ao bem ou serviço um “prêmio à
identidade” que consiste na diferença entre P2-P1, observável no Gráfico 02.
A diferença entre o preço P0 e P1 mostra o prêmio de qualidade recebido
por um produto commodity.

Gráfico 2 – Definição do prêmio aos produtos e serviços com identidade


Preço

B (identidade) B (commodity)
P2
Prêmio a identidade
P1
Prêmio a qualidade
P0 C (neutro em qualidade)

C0 Qualidade

Fonte: Ramirez (2008, p.59).

Se o prêmio à identidade for elevado, os atores possuem incentivos


para trabalharem de forma coordenada na cadeia de produção de bens e
serviços. Neste caso, os custos de coordenação são compensados pelas re-
ceitas esperadas. Porém, se o prêmio é baixo ou os custos de coordenação
são mais elevados que o prêmio, os níveis de identidade do território são
baixos, dando origem à produção de bens commodity. Portanto, os esfor-
ços dos atores para melhorarem sua coordenação no território, proporcio-
nando maiores níveis de identidade, se encontram diretamente relaciona-
dos com a magnitude do prêmio à identidade.
Pelo lado da demanda, existem três fatores que permitem a valoriza-
ção dos produtos com identidade territorial: a) a abertura dos mercados, que
possibilita que os consumidores passem a conhecer e adquirir novos produ-

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

tos antes não disponíveis, por exemplo, comércio justo; b) os sistemas de


comercialização, com destaque aos supermercados, que podem permitir o
desenvolvimento de sistemas de abastecimento que facilitam os consumido-
res a identificar os produtos com atributos específicos não observáveis, tais
como a identidade territorial – neste caso, pode-se citar o exemplo da rede
de supermercados Condor que reserva espaço para os produtos da agroin-
dústria familiar; e c) o aumento da renda das famílias no meio urbano, que
as leva a consumir produtos de maior valor (RAMIREZ, 2008, p.61).
Por fim, Flores (2006, p.39), chama atenção a quatro pontos rele-
vantes para a definição de estratégias de valorização da identidade: a) a
identificação de unidades territoriais onde seja possível a promoção de
empreendimentos locais, com delimitação de seu espaço geográfico base-
ado no sentido de identidade e pertencimento, sentido de exclusividade/ti-
picidade, tipos e intensidade de interação de atores locais; b) a geração de
conhecimentos sobre o território, para identificar e caracterizar as especi-
ficidades que representam potencialidades; c) a promoção de sociabilida-
des, em busca de possíveis modalidades de ação coletiva; e d) o reconheci-
mento e a valorização da territorialidade com a recuperação de imagens e
simbologia local.

Farinheiras no Litoral do Paraná:


produzindo produtos com identidade

O litoral do Paraná possui uma área física de 6.057 Km2 entre o


Oceano Atlântico e a Serra do Mar, distribuídos entre sete municípios, sen-
do Guaraqueçaba o maior, com área de 2.019 Km2, e Matinhos o menor,
com área de 117 Km2. Em termos de população, o litoral possui 245.820
habitantes, sendo Paranaguá o município mais populoso, com 133.756 ha-
bitantes e Guaraqueçaba o município que apresenta menor contingente
populacional, 7.733 habitantes (Tabela 01).

Tabela 1 – População e área dos municípios do litoral paranaense


Municípios População (2007) Área (Km2)
Antonina 17.583 882
Guaraqueçaba 7.733 2.019
Guaratuba 30.565 1.326
Matinhos 23.357 117
Morretes 16.198 685
Paranaguá 133.756 827
Pontal do Paraná 16.628 201
Total 245.820 6.057
Fonte: IBGE – Contagem populacional 2007 e Scortegana (2005, p.66).

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

Os sete municípios que compõem o litoral, segundo Estades (2005),


podem ser agrupados em três grupos: os portuários (Paranaguá e Anto-
nina), os rurais (Morretes e Guaraqueçaba) e os praiano-turísticos (Mati-
nhos, Pontal do Paraná e Guaratuba). As principais atividades econômicas
associadas aos três grupos são: o turismo, a agropecuária, a pesca e o ex-
trativismo vegetal, com ênfase para o palmito. A atividade portuária me-
rece destaque na Região, sendo o Porto de Paranaguá um dos maiores do
Brasil e o maior exportador de grãos da América do Sul.
Para Andriguetto Filho e Marchioro (2002) e Raynaut et al. (2002) as
heterogeneidades ambientais e socioeconômicas da zona costeira parana-
ense são marcantes e de grande complexidade, podendo, resumidamente,
serem caracterizadas como: i) uma grande variedade de ecossistemas, dos
ambientes marinhos aos refúgios vegetacionais de altitude; ii) existência
de pelo menos onze atividades agropecuárias ou extrativistas geradoras de
renda, além de atividades de transformação como agroindústrias caseiras;
iii) uma variedade de situações culturais, nos meios urbano e rural; iv) dife-
rentes situações de acesso aos recursos, condicionadas pela posse da terra,
capital, complexa legislação ambiental e grau de participação no mercado;
e v) forte polarização industrial e urbana, com a presença do complexo
portuário de Paranaguá e das áreas urbano-turísticas da orla sul.
A complexidade e a heterogeneidade apresentadas no litoral dão ori-
gem a duas fortes contradições: de um lado, o valor da Região como patri-
mônio natural e de proteção da biodiversidade (a Região abriga um total
de 31 Unidades de Conservação, federais e estaduais) e, de outro, um qua-
dro de subdesenvolvimento que não corresponde aos potenciais regionais
e ao sucesso de algumas atividades. No litoral paranaense encontram-se os
remanescentes mais preservados da mata atlântica do Brasil.
Entre os produtos cultivados pelos agricultores familiares na região,
pode-se afirmar que a produção de mandioca (aipim) atua como uma “ati-
vidade amortecedora” em dois aspectos: contribui para a segurança ali-
mentar das famílias no meio rural e apresenta-se como atividade com
potencial para gerar renda, podendo ser comercializada in natura ou in-
dustrializada sob a forma de farinha de mandioca, biju, fécula, polvilho e
aipim congelado.
O litoral Norte, assim denominado, engloba os municípios de An-
tonina, Guaraqueçaba e Morretes. Nestes municípios foram identificadas
sessenta e três (63) farinheiras, as quais estão classificadas como ativas,
inativas, autoconsumo e comunitárias (Tabela 02). As farinheiras ativas
caracterizam-se por serem agroindústrias que produzem farinha para o
consumo da família, bem como para comercialização. As farinheiras de
autoconsumo caracterizam-se por serem agroindústrias que produzem fa-
rinha para o consumo próprio, podendo ser comercializado uma pequena
parte, porém em quantidade inexpressiva. As farinheiras inativas caracte-

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

rizam-se por serem agroindústrias que não produzem mais farinha, mas
que ainda mantêm os equipamentos e as instalações. Em sua maioria, as
farinheiras inativas estão em propriedades de pessoas idosas que não pos-
suem condições físicas para realizar as atividades relacionadas a produção
de farinha (farinhar). Por fim, as farinheiras comunitárias caracterizam-se
por serem instalações que foram construídas através de políticas públicas
(Paraná doze meses), visando atender a um grupo de famílias. São fari-
nheiras que possuem uma boa infraestrutura física, construídas em alve-
naria, atendendo as exigências da legislação sanitária em vigor na época.
Praticamente todas estas unidades estão desativadas.

Tabela 2 – Situação das farinheiras, quanto ao seu funcionamento, no Litoral do Paraná


Municípios Ativas Autoconsumo Inativas Comunitárias Total
Antonina 8 11 0 0 19
Litoral Norte

Guaraqueçaba 10 13 3 4 30

Morretes 7 3 2 2 14

Guaratuba 17 27 3 1 48

Matinhos 2 1 0 0 3
Litoral Sul

Paranaguá 9 1 6 1 17

Pontal do Paraná 1 0 1 0 2
Total 54 56 15 8 133
Fonte: Elaborada pelos autores.

O município de Guaraqueçaba, entre os municípios do litoral Norte,


apresenta o maior número de farinheiras. Nas visitas foram mapeadas trin-
ta unidades, principalmente nas comunidades da Potinga, Açungui, Tagaça-
ba, Tagaçaba de Cima e Pedra Chata. Parte do município, de difícil acesso,
não foi visitado. Estima-se porém que existe um número igual ou superior
de farinheiras ainda desconhecidas nessas áreas. As farinheiras localizadas
em locais de difícil acesso são, em sua maioria, de autoconsumo; a distân-
cia dos centros urbanos dificulta a comercialização do produto.
O litoral Sul, por sua vez, engloba os municípios de Guaratuba, Ma-
tinhos, Paranaguá e Pontal do Paraná. Nestes municípios, há uma quanti-
dade considerável de farinheiras, totalizando setenta (70) unidades (Tabela
02). O município de Guaratuba se destaca em relação aos demais municí-
pios, apresentando 48 unidades.
A atividade de fazer farinha sofre com diversos problemas no litoral
do Paraná. Um dos problemas identificados é a distância das farinheiras até
o mercado consumidor. Soma-se a isso, agravando ainda mais a situação, as

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

condições ruins das estradas por onde é escoado o produto final. Essa situa-
ção foi constatada com maior evidência e com maior gravidade nos municí-
pios do litoral Norte, principalmente em Antonina e Guaraqueçaba.
Outro empecilho para a produção de farinha está relacionado a dis-
ponibilidade de área para o plantio da matéria-prima, a mandioca. Muni-
cípios como Guaratuba e Guaraqueçaba possuem grandes Áreas de Preser-
vação Permanentes (APAs), nas quais não se pode fazer o plantio, ficando
os produtores com espaços restritos para o cultivo de mandioca. Nos ou-
tros municípios este problema é menos acentuado, mas ainda assim está
presente em várias propriedades.
No município de Morretes, principalmente, constata-se a concor-
rência desleal com a farinha proveniente de outras regiões e estados. Os
produtores argumentam que a farinha que vem de outras regiões é de me-
nor qualidade, desvalorizando o produto local. Para confundir os consumi-
dores, os embaladores, que compram a farinha de outras regiões, embalam
a farinha em sacos plásticos transparentes, na maioria das vezes sem rótu-
los, e utilizam a mesma técnica dos agricultores para amarar os pacotes.
Embora a comercialização de produto de outras regiões seja concentrada
no município de Morretes, os demais municípios também acabam sofren-
do suas consequências desestruturantes e prejudiciais à comercialização e
à valorização do produto local.
Com tantas adversidades – como a falta de incentivos para a produ-
ção da matéria-prima, o longo ciclo da cultura, o preço de venda da fari-
nha (que não compensa os custos), a perda de lavouras por problemas cli-
máticos (principalmente enchentes), e o trabalho pesado tanto na lavoura
como na produção de farinha –, várias famílias estão deixando a atividade
e migrando para o meio urbano. O êxodo rural ocorre principalmente com
pessoas mais jovens, restando no campo somente pessoas com idade avan-
çada. Com a ida dos jovens para a cidade, instala-se um quadro alarmante
para os próximos anos, pois muitas destas farinheiras serão desativadas.
Nas visitas presenciou-se que a maioria das farinheiras é operada por pes-
soas com idade avançada; muitos mencionaram que seus filhos não apren-
deram e não têm interesse em dar continuidade a atividade.
Entre os atributos da farinha do litoral paranaense destaca-se a pre-
sença do amido no produto, pois a tecnologia utilizada pelos agricultores
não permite retirar o amido na hora do processamento da mandioca. Esta
farinha possui um sabor único e uma textura diferenciada, característico
da farinha do litoral paranaense, que precisa ser informado aos consumi-
dores. Tal característica dá a farinha uma identidade cultural que diferen-
cia o produto e permite, se bem explorado, agregar valor ao mesmo.
Outro fator importante que deve ser trabalhado é o fato de a maté-
ria-prima ser produzida, em sua grande maioria, sem a adição de insumos
químicos. As lavouras geralmente estão em áreas de preservação e não po-

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

dem receber tais insumos, o que gera um produto mais saudável, com me-
lhor qualidade e com menor risco à saúde humana.
O produto proveniente da agricultura familiar, produzido de forma
artesanal, também é uma característica do modelo de produção adotado
que o diferencia. A atividade mantém as pessoas no campo produzindo ali-
mentos, garantindo sua soberania alimentar e contribuindo para a redu-
ção do êxodo rural.
Portanto, a farinha do litoral paranaense possui forte identidade
cultural, podendo ser vendida em quantidades consideráveis em Curiti-
ba, por exemplo, que é um mercado consumidor exigente. Essa identidade
cultural/territorial faz com que a farinha do litoral seja conhecida popular-
mente como “Farinha Da Boa” ou “Farinha da Terra”, potencialidade que
deve ser trabalhada para o fortalecimento da imagem do produto perante
o mercado consumidor.

Estratégias para dinamizar ou potencializar produtos


com identidade territorial

Existe na literatura um conjunto de estratégias para valorizar os recursos


específicos presentes no território. Na sequência apresentar-se-á a estra-
tégia de produto ou de cadeia de valor, que relaciona verticalmente os di-
ferentes atores na cadeia de valor do produto, e a estratégia de desenvol-
vimento integrado, baseada na valorização de uma “cesta de bens”, que
relaciona horizontalmente os diversos atores presentes no território. As
duas estratégias podem apresentar efeitos diferentes para as áreas rurais,
mas não há contradição entre elas. Há, como será mostrado na sequência,
complementaridade.

A estratégia da Cadeia de Valor e os Produtos Certificados


A estratégia de cadeia está centrada na valorização de um produto especí-
fico, único. Seu objetivo é permitir que o produto portador de identidade
territorial alcance mercados distantes, nacionais ou internacionais, sem
perder o vinculo com seu território de origem. Um exemplo dessa estraté-
gia é o que corresponde aos “Produtos de Origem Protegida” existentes na
União Europeia (ACAMPORA e FONTE, 2008).
Para Fonte et. al. (2006), esta estratégia tem como objetivo atrelar
um produto a um território. Simultaneamente a comercialização, faz-se,
simultaneamente, a promoção, a divulgação do território. A estratégia per-
mite resultados econômicos, que se manifestam através do aumento das
atividades produtivas no território, e socioculturais, como o aumento da
coesão social através da percepção das raízes culturais da comunidade.
No caso dos produtos alimentícios típicos, esta estratégia pode ser
implementada através de um processo de reconhecimento de Denomi-

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

nação de Origem Protegida (DOP) ou de Indicação Geográfica Protegida


(IGP). Isso permite que o produto possa acessar mercados distantes e a
certificação tem o papel de informar e garantir a qualidade territorial do
produto. Os produtos DOP são atribuídos a produtos cuja produção, trans-
formação e elaboração devem ser realizadas em uma zona geográfica de-
terminada, com conhecimentos reconhecidos e comprovados. Para os pro-
dutos IGP, o vínculo com o meio geográfico deve estar presente ao menos
em uma das etapas de produção, de transformação ou de elaboração do
produto (ACAMPORA e FONTE, 2008).
Para Pequeur (2006b) o uso da DOP é uma estratégia de valorização
do produto por meio da qualidade, que é garantida por um selo, e por meio
da delimitação precisa de um espaço (geográfico) de produção do bem –
por isso pode-se dizer que o produto é único e “situado”.
Segundo Acampora e Fonte (2008) as experiências europeias com
marcas de de diferenciação demonstram que: i) os preços dos produtos
alimentícios com marcas de qualidade são em média 30% superior aos
produtos standard; ii) os produtos com marca de qualidade são menos afe-
tados em momentos de crise econômica e de sanidade; e iii) as marcas de
diferenciação permitem aos atores econômicos pertencentes a economias
mais frágeis uma maior estabilidade e segurança.
Pecqueur (2006b, p.151) menciona que a estratégia DOP valoriza es-
sencialmente a qualidade intrínseca dos produtos ofertados, podendo uti-
lizar a imagem do território de origem. Porém, faz uma crítica à estratégia
no sentido de que esta não estabelece necessariamente relações com outros
produtores e com os consumidores numa relação de dependência do lugar
e do contexto cognitivo e cultural desse lugar.
Ao adotar a estratégia DOP a identidade territorial se converte em
um recurso coletivo, regulado pelas instituições intermediárias, represen-
tativas dos interesses dos produtores (consórcios de tutela, organismos de
certificação etc.). Por fim, os produtos DOP são considerados bens públi-
cos cuja gestão é delegada aos usuários. O caráter público justifica a inter-
venção do estado contra eventuais abusos.
Por fim, Pecqueur (2006b: p.142) apresenta uma síntese das caracte-
rísticas inerentes ao modelo DOP:
i) O modelo trabalha com uma oferta de produto único e situado;
ii) O produto DOP traz informações transparentes e consistentes para os
consumidores. A DOP constitui um sinal para os olhos do consumidor;
iii) Se o bem é especificado claramente, o produtor também o será. O
produtor deve ser visto como o personagem central da oferta dos
produtos DOP, uma vez que é ele quem ganha os excedentes;
iv) O mercado é aberto, podendo o produto DOPser exportado. A deli-
mitação geográfica é importante para o processo de produção, mas

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

não para o consumo. O modelo situa-se tendencialmente na concor-


rência monopolística, ou seja, na medida em que, para um bom nú-
mero de produtos, uma substituição é possível;
v) O modelo é caracterizado por um processo de construção institucio-
nal pelos atores sociais que se beneficiam desse processo.

A estratégia de Valorização da Qualidade Territorial


através da Cesta de Bens

Esta estratégia se baseia na valorização da identidade territorial não por


meio de um único produto, mas através de uma “cesta de bens”, na qual o
marcador da identidade pode ser um produto específico, ou seja, o produ-
to protagonista. Para Acampora e Fonte (2008), a estratégia se aplica a um
conjunto de bens fortemente vinculados com a cultura e a história local.
Segundo Pecqueur et al. (2003), a hipótese da cesta de bens pode ser
verificada quando, no momento de aquisição de um produto de qualida-
de territorial, o consumidor descobre a especificidade de outros produtos
procedentes da produção local. É importante frisar que não é o vendedor
que constitui o lote, é o consumidor que o compõe livremente. Pecqueur
(2000) comenta o exemplo de Les Baronnies, na França, onde a demanda
por óleo de oliva de Nyons (produto DOP) induz a compra de outros pro-
dutos (vinhos produzidos na região, óleos essenciais, chás etc.). Além dis-
so, a região passou a utilizar os terraços de oliveiras e os espaços protegi-
dos para a implementação do turismo. Neste exemplo o óleo é o produto
líder, que pode ser ou não um produto DOP.
O produto líder, segundo Pecqueur (2006b), atrai consumidores que
também apreciam a qualidade dos outros produtos da cesta, o que reforça
a imagem da qualidade global do território. A cesta é composta por produ-
tos e serviços oriundos de diferentes produtores e lugares de um mesmo
território. O autor menciona também que o consumo de bens que com-
põem a cesta pode estar relacionado a amenidades sociais ou ambientais.
Esses atributos passam a compor o preço do bem de qualidade territorial.
Referente a renda gerada pela estratégia da cesta, esta será apropriada
num primeiro momento pelos produtores do produto líder e na sequên-
cia se distribuirá para os demais produtores dos bens e serviços que com-
põem a cesta.
Por fim, segundo Pecqueur (2006b, p. 146), a cesta de bens e servi-
ços apresenta as seguintes características: a) um conjunto de bens e servi-
ços complementares, que se fortalecem nos mercados locais; b) uma com-
binação de bens privados e públicos, que convergem para a elaboração de
uma imagem e de uma reputação de qualidade territorial; e c) uma orga-
nização interativa entre os produtores da cesta (clube), visando internali-
zar a renda de qualidade territorial.

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

A existência de um produto DOP o IGP para compor a cesta pode


gerar externalidades positivas sobre os demais produtos que irão compor
a cesta territorial. Segundo Acampora e Fonte (2008), o que se busca é a
construção de “uma imagem de qualidade para todos os produtos e ser-
viços da região”. Para as autoras, o uso de uma marca territorial poderia
contribuir para o sucesso dessa estratégia que possui uma dupla função:
promover o território regionalmente, nacionalmente e no exterior e forta-
lecer a cultura local como base para a reativação da economia regional,
aumentando a autoestima das pessoas.
A cesta, portanto, não é uma adição de bens privados justapostos,
mas uma combinação de bens privados e bens públicos, tais como amenida-
des ambientais (paisagem, clima etc.) e investimentos públicos, financiados
por meio de incentivos fiscais ou subvenções (PECQUEUR, 2006b). A cesta
de bens é muito mais que uma estratégia de comercialização – é uma estra-
tégia de desenvolvimento territorial implementada institucionalmente.

Conclusões
Produzir farinha de mandioca faz parte da cultura dos pequenos agriculto-
res familiares do litoral do Paraná. O produto é utilizado para a alimenta-
ção diária das famílias, contribuindo para a soberania alimentar, e possi-
bilita a geração de renda para quem o comercializa. Nas visitas realizadas
aos agricultores que possuíam farinheiras foi possível perceber que fazer
farinha é uma arte que é repassada de pai para filho, ao longo de gerações,
e que a farinha produzida não é homogênea – cada agricultor produz do
seu modo, possui seu saber fazer que é único. A condição natural (parte do
território é coberta por Unidades de Conservação) agrega ao produto po-
tencial agroecológico, uma vez que não se utilizam produtos químicos em
áreas de proteção ambiental.
O processo de especificação dos ativos, portanto, é de extrema im-
portância para o desenvolvimento territorial. É a identificação e valoriza-
ção dos recursos do território que lhe permitirá se diferenciar de outras
regiões, não sendo uma boa estratégia disputar mercado nos produtos pa-
dronizados, commodities. Neste sentido, a renda de qualidade territorial
decorre do processo de especificação dos ativos, e o saber fazer presente
na cultura dos agricultores familiares é um recurso latente que precisa ser
devidamente explorado.
A dinâmica do desenvolvimento territorial consiste, portanto, em
revelar recursos inéditos, é nisso que se constitui uma inovação. O uso de
estratégias de valorização dos produtos com identidade territorial consti-
tui a operacionalização do modelo.
Enquanto estratégia, a farinha de mandioca pode vir a se tornar o
produto líder para compor a cesta de bens do território. Outros produtos

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Produtos com identidade territorial:
o caso da farinha de mandioca no litoral paranaense

derivados da mandioca (biju, chips, pão de mandioca, berrereca etc.) e de-


mais produtos do território (bala de banana, cachaça, polpa de açaí etc.)
podem vir a complementar a cesta de bens.
Por fim, entre os problemas enfrentados no litoral do Paraná está a
ausência de instituições para auxiliar na organização da atividade produ-
tiva e fomentar o processo de desenvolvimento territorial a partir da valo-
rização dos recursos existentes no território, possibilitando a obtenção de
uma renda de qualidade territorial.

Referências

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Valdir Frigo Denardin | Mayra Taiza Sulzbach

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A agroecologia como estratégia de inclusão
social e desenvolvimento territorial

Marcos Aurélio Saquet


Professor – Unioeste | saquetmarcos@hotmail.com
Adilson Francelino Alves
Professor – Unioeste | adilsonfalves@gmail.com
Luciano Pessoa Candiotto
Professor – Unioeste | lucianocandiotto@yahoo.com.br
Roseli Alves dos Santos
Professora – Unioeste | roseliasantos@gmail.com
Serinei César Grigolo
Professor – UTFPR | serineister@gmail.com
Valentina Bianco
Bolsista – Unioeste | valentina.bianco84@gmail.com
Carolina Bonelli
Bolsista – Unioeste | ladypoikila@hotmail.com
Elaine Fabiane Gaiovicz
Bolsista – Unioeste | elaine-fabiane@hotmail.com
Poliane de Souza
Bolsista – Unioeste | poliane_nardi@hotmail.com
Camila Casiraghi
Bolsista – Unioeste | camilacasiraghi@hotmail.com

Apresentação
A lista de autores pode causar estranheza, numa primeira impressão,
no meio acadêmico. Porém, formamos uma equipe num projeto intitu-
lado “Agricultura familiar agroecológica nos municípios de Verê, Itape-
jara d’Oeste e Salto do Lontra (Sudoeste do Paraná), como estratégia de
inclusão social e desenvolvimento territorial”, financiado pela Secretaria
de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI – PR) e pela
Fundação Araucária. Somos professores, bolsistas recém-formados e bol-
sistas graduandos, brasileiros e italianos (Universidade de Turim), e to-
dos realizam as tarefas previamente discutidas e planejadas em reuniões
quinzenais, inclusive as de análise e redação. São atividades de pesquisa

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

(bibliográfica, de dados secundários e primários) e extensão-cooperação


realizadas com os sujeitos estudados (agricultores agroecológicos) e com
as instituições parceiras de cada município. Também temos uma parceria
com a Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural (ONG ASSE-
SOAR), com o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA – Verê) e com
o Instituto Federal Farroupilha – Campus Panambi (RS). A equipe supraci-
tada corresponde aos membros locais, vinculados diretamente com as ati-
vidades de nosso projeto até o momento. Outros professores e especialistas
farão o papel de leitores críticos e debatedores.
O debate em torno dos impactos socioambientais decorrentes da
chamada revolução verde, iniciada na década de 1950, tem se intensifi-
cado tanto no Brasil como em vários países do mundo em virtude dos
impactos degradantes e da concentração da terra e da riqueza. De modo
geral, há um tom bastante crítico para esse fenômeno, caracterizado
pela mecanização e pela industrialização dos processos de produção
e de processamento de produtos agropecuários que se manifestam no
espaço agrário, gerando impactos como a contaminação de recursos
hídricos, solos, plantas e animais; perda de biodiversidade; redução da
fertilidade natural de solos; dependência de insumos químicos e má-
quinas agrícolas; concentração fundiária e êxodo rural, entre outros. O
modelo de desenvolvimento econômico pautado a partir do pacote tec-
nológico da revolução verde aumentou a produtividade agrícola, no en-
tanto os desdobramentos sociais e ambientais nos remetem a repensar
este modelo elaborando uma concepção de desenvolvimento integrado
que considere as dimensões sociais (economia, cultura e política) e na-
turais. Houve um processo crescente de marginalização social e degra-
dação do ambiente.
Neste sentido, como contraposição à revolução verde, elaboram-se
métodos e técnicas agrícolas denominados alternativos, que buscam se
adaptar à dinâmica dos ecossistemas, e, ao mesmo tempo, utilizar seus
elementos (animais, vegetais, minerais, recursos hídricos, solos etc) de
forma sustentável. Os principais objetivos desses sistemas de produção
alternativos são: produzir e oferecer alimentos livres de insumos quími-
cos e com qualidade nutricional para a sociedade; garantir a produção
alimentar para a subsistência dos agricultores; utilizar os recursos natu-
rais de maneira responsável e equilibrada, levando em consideração a re-
cuperação e manutenção dos ecossistemas; propiciar formas de trabalho
que permitam ao agricultor familiar viver com saúde e qualidade de vida.
Uma das correntes dessa perspectiva alternativa se traduz na agroecolo-
gia. Esta nos remete a uma agricultura menos agressiva ao ambiente que
promove a inclusão social, proporciona melhores condições econômicas
para os agricultores e favorece a segurança alimentar dos produtores e
dos consumidores em geral.

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Geografia agraria territorio e desenv FINAL.indd 238 3/23/10 11:17:31 AM


M. A. Saquet | A. F. Alves | L. P. Candiotto | R. A. dos Santos | S. C. Grigolo |
V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

Um grupo de pesquisadores suíços (Schmutz, et al., 2006) apresentou


90 argumentos em favor da agricultura ecológica e isto mostra a relevân-
cia da temática. Destes, destacamos alguns: i) as frutas e hortaliças contêm
maiores concentrações de elementos como flavonoides e resveratrol; ii) as
saladas folhosas contêm menores concentrações em nitratos; iii) o leite das
vacas criadas no sistema orgânico possui maior quantidade do ácido graxo
ômega 3; iv) de maneira geral, os orgânicos possuem, em média, 50 a 70%
menos resíduos de produtos químicos; v) os produtores não precisam usar
herbicidas para o controle de plantas daninhas; vi) hormônios ou outras
substâncias estimuladoras do crescimento são proibidas na alimentação
dos animais ou na produção vegetal; vii) os solos são mais ricos; viii) a água
do subsolo não é contaminada; ix) a agricultura orgânica libera menos dió-
xido de carbono; x) a agroecologia tem um caráter mais social. Diminui os
custos com a saúde da população em geral, porque os alimentos são mais
saudáveis. É neste contexto que nos propomos a estudar e auxiliar direta-
mente, através das atividades de pesquisa e extensão universitária (finan-
ciado pela SETI/PR), na produção agroecológica efetivada nos municípios
de Verê, Itapejara d’Oeste e Salto do Lontra, todos do Sudoeste do Paraná e
com IDH-M relativamente baixo, respectivamente, 0,774; 0,786 e 0,760.
Nosso objetivo principal é compreender as características da produ-
ção agroecológica familiar de alimentos e participar na qualificação dessa
produção nos municípios anteriormente mencionados, contribuindo para
a geração de empregos e/ou melhoria na renda familiar e inclusão social.
Para tal, adotamos a metodologia participativa, envolvendo os atores so-
ciais ligados à agricultura familiar dos municípios (sindicatos, EMATERs,
prefeituras municipais e ONGs) e os agricultores agroecológicos. Para in-
terpretação das características econômicas, políticas e culturais destes
agricultores e da prática agroecológica, nós optamos pela abordagem ter-
ritorial histórica, relacional (das redes sociais) e multidimensional, reco-
nhecendo a importância da preservação ambiental. Assim, degradar o am-
biente significa degradar o território; a sustentabilidade é pensada para
além da proteção da natureza, incorporando os componentes políticos,
econômicos e culturais de cada território. Como se trata de um projeto de
pesquisa e extensão, essa abordagem deve resultar num instrumento de fo-
mento às políticas públicas e ao desenvolvimento territorial com inclusão
social a partir de melhorias na prática agroecológica.
Os principais resultados obtidos até o momento são: a) reunião
com entidades e agricultores nos municípios citados; b) elaboração de um
quadro comparativo com as características das produções agroecológica
e convencional; c) participação da VIII Jornada Agroecológica Nacional,
realizando entrevistas com agricultores agroecológicos dos municípios de
Verê e Salto do Lontra; d) coleta e tabulação de dados secundários dos três
municípios; e) leituras e fichamentos sobre a agroecologia; f) início das en-

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

trevistas (trabalhos de campo) com os agricultores familiares agroecológi-


cos de Verê, Salto do Lontra e Itapejara d’Oeste.

A opção teórico-metodológica
Os conceitos principais que servem de orientação metodológica de nossa
proposta de estudos participativos e extensão universitária são os seguin-
tes: território, desenvolvimento, tecnologias, agricultura familiar, agroe-
cologia, redes, cooperação e inclusão social. O desenvolvimento significa
uma problemática territorial, ou seja, um processo contínuo de conquis-
tas sociais (econômicas, políticas e culturais) que se manifestam em nossa
vida cotidiana através de uma alimentação saudável, moradia e educação
de qualidade, assistência médica e dentária, acesso ao cinema e outros
meios de comunicação, higiene, organização política, entre outros aspec-
tos que são fundamentais para viver com dignidade e qualidade, como a re-
cuperação e preservação dos componentes da natureza degradados diante
do processo avassalador de ocupação do território.
É necessário valorizar o patrimônio histórico e cultural dos dife-
rentes grupos sociais e territórios.Isto nos remete a uma concepção múlti-
pla e híbrida do desenvolvimento, do território, da agricultura familiar, da
agroecologia, das redes e tecnologias, da cooperação e da inclusão social.
Entendemos que é necessário compreender estes temas como processos
historicamente constituídos, ou seja, há um processo histórico e relacional
(transescalar) que caracteriza nossa vida cotidiana, o desenvolvimento, os
territórios. A exclusão social é produto das características da sociedade na
qual vivemos, que está centrada na reprodução do capital, na concentração
da terra e da riqueza, na marginalização social. São todos processos ine-
rentes ao modo capitalista de produção: através de seus princípios basila-
res, organiza-se o território de forma a facilitar a concentração da riqueza
e a centralização do poder.
Dessa maneira, para reorganizar o território e a sociedade, é neces-
sário repensar e reorganizar as relações de poder, como ocorre através de
organizações políticas e produtivas alternativas (associações de agriculto-
res e pequenas cooperativas). Esta forma de produção exige um rearranjo
e novas relações dos homens entre si e com a natureza; um manejo ade-
quado do solo, das plantas e das águas; relações de cooperação e participa-
tivas, enfim, a agroecologia traduz-se em traços societários diferentes dos
emanados das grandes iniciativas produtivas capitalistas.
E isto exige um olhar e uma compreensão, que considere os proces-
sos sociais (econômicos, políticos e culturais) e naturais, tanto na aborda-
gem (estudo) como no planejamento e nas ações a serem realizadas com
os agricultores familiares. Há destaque para o lugar, para a dinâmica am-
biental e para a elaboração de projetos de desenvolvimento. A sustentabi-

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M. A. Saquet | A. F. Alves | L. P. Candiotto | R. A. dos Santos | S. C. Grigolo |
V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

lidade é pensada para além da proteção da natureza, incorporando o terri-


tório, ou seja, a sustentabilidade política, econômica, cultural e ambiental.
A natureza é um patrimônio territorial e precisa ser gerida pela sociedade
local articulada a outros grupos sociais, com capacidade de autogestão, va-
lorizando a natureza, a ajuda mútua, o pequeno comércio, a autonomia,
o trabalho manual do agricultor, os saberes populares, a cooperação, os
marginalizados, o patrimônio cultural-identitário, a biodiversidade, as mi-
croempresas, enfim, a vida.
Dematteis (2001) resume os principais elementos da abordagem
territorial que estamos utilizando. Esta precisa ser construída, necessa-
riamente, a partir da realidade estudada, no caso, da agricultura agro-
ecológica. Giuseppe Dematteis propõe os seguintes componentes ana-
líticos: a) a rede local de sujeitos, que corresponde às interações entre
indivíduos em um território local, onde há relações de proximidade fí-
sica e entre os sujeitos do local e os de outros lugares; b) o milieu local,
entendido como um conjunto de condições ambientais locais nas quais
trabalham os sujeitos; c) a relação da rede local com o milieu local e com
o ecossistema, de forma tanto cognitiva (simbólica) como material. Há
interações entre os domínios social e natural; d) a relação interativa da
rede local com redes extralocais, em distintas escalas: regional, nacional
e global.
Conforme evidenciamos em Saquet e Sinhorini (2008), essa forma
de compreensão da abordagem territorial considera o território em três
níveis inseparáveis: a) como conceito de orientação teórico-metodológica,
juntamente com os demais conceitos basilares da geografia (espaço, pai-
sagem, região e lugar); b) como objeto de estudo e componente do real; c)
como espaço de organização política, mobilização e atuação em progra-
mas e projetos de desenvolvimento, exigindo uma práxis transformadora
do status quo.
Os principais elementos constituintes do território são os seguintes:
• as redes de circulação e comunicação, traduzidas através de nós, redes e
malhas.
• as identidades culturais e/ou as identidades mais gerais, ocorridas no âm-
bito das relações sociais políticas e econômicas.
• as relações de poder em sua multidimensionalidade.
• a natureza exterior ao homem: solo, clima, vegetação, fauna, hidrografia.
• os processos de territorialização, desterritorialização e reterritorializa-
ção.
• o movimento mais geral, ou seja, o movimento sempre constante do
tempo e do espaço em unidade universal. (Saquet e Sinhorini, 2008,
p.184-85).

241

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

Além disso, a aplicação de uma tecnologia como a dos sistemas


de informações geográficas (SIG), de maneira participativa, pode re-
presentar um passo importante para a interpretação integrada do con-
texto agroecológico e da gestão dos recursos naturais, considerando a
inclusão social. A participação deverá ocorrer desde a coleta dos dados,
passando pela discussão da metodologia até o planejamento e realiza-
ção das ações voltadas ao desenvolvimento. Conforme Quattrone (2003)
e Burini (2004), a metodologia denominada participatory GIS favorece
o envolvimento dos membros da sociedade residentes no território que
está sendo estudado, valorizando-se o saber local e as modalidades de
representação e percepção do território. A metodologia SIG participa-
tiva, conforme argumentam esses autores citados, é múltipla quanto
a sua aplicação na interpretação e representação dos processos estu-
dados, possibilitando o envolvimento direto dos indivíduos estudados
tanto na interpretação como na definição das estratégias de desenvolvi-
mento a serem definidas.
A coleta dos dados para a construção do SIG está sendo realiza-
da através de uma metodologia participativa (participatory mapping) que
prevê a utilização do diagnóstico rural dialógico (Partecipatory Rural Ap-
praisal). As atividades e os instrumentos elaborados estão sendo aplica-
dos para coletar dados suficientes para identificar e explicar os limites e
as potencialidades da produção agroecológica, bem como para definir e
concretizar as ações de extensão com os produtores agroecológicos. Tal
abordagem, além de ser ágil, tem um caráter de aprendizagem intensiva e
interativa, gerando, para a população estudada: i) conhecimento sobre seu
território e mobilização política para a autogestão; ii) a possibilidade de
análise e definição das suas prioridades com vistas às novas tecnologias e
à inclusão social; iii) possibilidade para o planejamento das ações e para a
avaliação das atividades realizadas. A utilização de uma metodologia par-
ticipativa estimulará a capacidade de planejamento cooperativo, o desen-
volvimento e a inclusão.

A produção convencional em Verê, Itapejara d’Oeste


e Salto do Lontra

É notória a expansão da chamada modernização agrícola no Sudoeste do


Paraná e, ao mesmo tempo, nos municípios que estamos estudando. De
acordo com os dados dos Censos Agropecuários realizados pelo IBGE e
com os dados do IPARDES, temos a seguinte distribuição de quantidade de
área colhida por ano e por produto no município de Verê:

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M. A. Saquet | A. F. Alves | L. P. Candiotto | R. A. dos Santos | S. C. Grigolo |
V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

Tabela 1 – Área colhida por produtos agrícolas no município de Verê


1985 Equivalente 1996 Equivalente 2007 Equivalente
Produto
(ha) (%) (ha) (%) (ha) (%)
Feijão 4.035 14 3.700 12 3.500 12
Fumo 39 0* 170 1 415 1
Mandioca 370 1 140 0* 300 1
Milho 12.670 43 16.000 54 11.300 39
Soja 6.325 22 5.000 17 9.500 33
Trigo 5.730 20 4.600 16 4.000 14
Área Total 29.169 100 29.610 100 29.015 100
* Menos de 1%.
Fonte: IPARDES e IBGE.

A partir dos dados das tabelas 01 e 02, observamos que a produção


predominante no município de Verê, entre 1985 e 2007, tem sido as tem-
porárias. O principal destaque é o milho, seguido pela soja e pelo trigo. Es-
ses cultivos, especialmente a soja e o trigo, são decorrentes da expansão da
agricultura denominada moderna, incorporando, no processo produtivo, o
uso de técnicas e tecnologias do pacote da revolução verde, introduzido no
Sudoeste do Paraná na década de 1970. Segundo Santos (2008), Verê foi o
primeiro município do Sudoeste do Paraná a introduzir o cultivo da soja
no final da década de 1960, respondendo às demandas impostas pelo Es-
tado e pelas cooperativas e empresas agropecuárias para a modernização
da produção agrícola.
A quantidade produzida em comparação com a área colhida per-
mite visualizar que, no caso da soja, a área colhida teve um aumento pro-
porcionalmente menor que a quantidade produzida, revelando um dos as-
pectos que justificam o emprego do pacote tecnológico, baseado no uso de
insumos químicos e na dependência do mercado. Enquanto a área colhida,
entre 1985 e 2007, aumenta 15%, a produção, no mesmo período, aumenta
97%. No caso do milho, a produtividade alcança níveis ainda mais expres-
sivos, pois no mesmo período, ele tem uma diminuição da área colhida,
acompanhada pelo aumento da produção em 33% em relação a 1985. No
caso do trigo, verifica-se a diminuição da área e da produção, embora te-
nha ocorrido um aumento em 1996, em 2007 a produção é menor que a
verificada em 1985, momento especial para a produção de trigo na região,
em decorrência dos incentivos destinados a este cultivo.
O feijão, que se constituiu, juntamente com o milho, num dos pro-
dutos predominantes na década de 1970 no Sudoeste do Paraná, a partir
dos anos 1980, apresenta uma diminuição significativa: entre 1985 e 2007
diminui a área colhida, que é acompanhada de uma diminuição importan-
te entre 1985 e 1996 na produção total e seguida de um aumento expressi-

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

vo em 2007. Este aumento da produção decorre de vários fatores, especial-


mente das políticas nacionais direcionadas ao fomento da sua produção,
da ascensão dos preços no mercado e do trabalho de fomento das organi-
zações locais para a produção do mesmo.
Outro tipo de cultivo que tem se expandido no Sudoeste é o fumo,
em sistema de integração com grandes grupos fumageiros, que tem au-
mentado no período em análise tanto a área colhida como a quantidade
produzida.

Tabela 2 – Quantidade produzida em toneladas no município de Verê


Quantidade Equivalente Quantidade Equivalente Quantidade Equivalente
Produto
1985 (%) 1996 (%) 2007 (%)
Feijão 4.419 8 2.725 4 8.100 10
Fumo 59 0* 289 1 595 1
Mandioca 7.400 13 2.800 4 7.200 9
Milho 28.587 49 36.500 57 38.050 47
Soja 10.436 18 14.500 22 20.590 26
Trigo 6.876 12 7.880 12 6.000 7
Área Total 57.777 100 64.694 100 80.535 100
* Menos de 1%.
Fonte: IPARDES e IBGE.

A seguir, nas tabelas 03 e 04, apresentamos os dados das mesmas va-


riáveis das tabelas anteriores referentes ao município de Salto do Lontra.
O destaque é que este município tem uma área colhida dos produtos esco-
lhidos para análise menor que Verê e com uma alteração bastante signifi-
cativa entre 1996 e 2007. Embora esteja localizado no Sudoeste do Paraná
e em condições bastante semelhantes aos outros municípios, a distribui-
ção da produção difere. O milho é também o cultivo que ocupa a maior
área ao longo do período analisado (1996 a 2007), entretanto, até 1996, a
produção que ocupava o segundo lugar, em termos de área colhida, era o
feijão, o qual teve uma diminuição de 91% da área colhida em relação a
1996. A diminuição também foi verificada em relação à quantidade produ-
zida, 97%. Os dados apresentados mostram que a soja vem aumentando
sua produção em termos de área colhida e produção, bem como o lugar de
destaque nos principais cultivos apresentados.
Seguindo caminho oposto ao verificado na produção de feijão, em
especial em 2007, outro produto que apresenta uma dinâmica específi-
ca é a mandioca que, em 2007, apresenta aumento na área colhida e na
produção obtida. Consideramos que seja um efeito direto da política de
compra direta para abastecer o Programa Fome Zero, que tem conta-
do, segundo informação de técnicos da prefeitura, participação crescente

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M. A. Saquet | A. F. Alves | L. P. Candiotto | R. A. dos Santos | S. C. Grigolo |
V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

dos agricultores familiares. O fumo é também uma atividade que apre-


sentou um aumento significativo na área colhida, 116% entre 1985 e 1996
e, 661% entre 1996 e 2007. A produção de fumo aumentou no primeiro
intervalo 140% e, no segundo, 546%. A produção de fumo tem significado
uma forma importante para obtenção de renda no Sudoeste do Paraná,
predominantemente no que concerne aos agricultores familiares, embora
seja reconhecidamente uma atividade de alto impacto pelo uso dos agro-
tóxicos e risco para a saúde do agricultor. O trigo também tem se cons-
tituído em um cultivo presente e crescente em termos de área colhida e
aumento da produção, embora se observe uma diminuição desta entre os
dados de 1996 e 2007.

Tabela 3 – Área colhida por ano e por produto no município de Salto do Lontra
1985 Equivalente 1996 Equivalente 2007 Equivalente
Produto
(ha) (%) (ha) (%) (ha) (%)
Feijão 6.005 23 10.500 36 900 4
Fumo 60 0* 130 1 990 2
Mandioca 350 1 340 1 500 5
Milho 16.000 61 13.000 45 11.000 53
Soja 2.500 9 3.000 10 5.500 26
Trigo 1.500 6 2.000 7 2.000 10
Área Total 26.415 100 28.970 100 20.890 100
* Menos de 1%.
Fonte: IPARDES e IBGE.

Nas tabelas 5 e 6 apresentamos as mesmas variáveis referentes ao


município de Itapejara d’Oeste que, destacadamente dos três municípios
estudados, é o que tem a área colhida de soja mais expressiva, significando
mais da metade da área colhida do próprio município (54%), ultrapassan-
do inclusive a área de milho que predominou em 1985 e em 1996.No entan-
to, como nos demais municípios, são as lavouras temporárias que melhor
se ajustam ao pacote tecnológico, as mais expressivas em termos de área e
produção. Apenas no caso da produção de trigo, observa-se que diminuiu
a área colhida e também a produção obtida em 2007, em relação aos anos
anteriores apresentados na tabela. O feijão aparece como o terceiro pro-
duto em termos de área colhida e também de produção obtida, no entanto
com um expressivo aumento entre 1996 e 2007 na produção obtida (303%)
e na área colhida (87%).
Uma tendência presente nos demais municípios que não se obser-
va em Itapejara d’Oeste nos períodos analisados, diz respeito à produção
de fumo, que é pouco expressiva, tendo um aumento mais significativo
entre 1985 e 1996, aumentando pouco em relação a 2007, sendo 17% em

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

relação à área colhida e 19% na produção. No município, destacam-se


os cultivos mecanizados, principalmente, considerando que a topografia
desta localidade apresenta menor declividade. O trigo seguindo a ten-
dência do Sudoeste do Paraná, é um cultivo que está perdendo expres-
sividade, assim como a produção de mandioca que se caracteriza como
atividade alternativa na diversificação da produção, o que não se obser-
va em Itapejara, onde 83% da área colhida é destinada a produção de
soja e milho.

Tabela 4 – Quantidade produzida em toneladas no município de Salto do Lontra


Quantidade Equivalente Quantidade Equivalente Quantidade Equivalente
Produto
1985 (%) 1996 (%) 2007 (%)
Feijão 5.401 8 5.400 9 1.680 2
Fumo 92 0* 221 0* 1.428 2
Mandioca 6.000 8 8.500 14 12.000 18
Milho 52.480 75 35.200 57 37.000 56
Soja 4.500 6 9.000 14 11.000 17
Trigo 1.815 3 4.000 6 3.200 5
Área Total 70.288 100 62.321 100 66.308 100
* Menos de 1%.
Fonte: IPARDES e IBGE.

Tabela 5 – Área colhida por ano e por produto no município de Itapejara d´Oeste
1985 Equivalente 1996 Equivalente 2007 Equivalente
Produto
(ha) (%) (ha) (%) (ha) (%)
Feijão 3.825 16 1.150 5 2.150 11
Fumo 10 0* 40 0* 47 0*
Mandioca 370 2 300 1 500 2
Milho 9.630 40 12.700 56 6.000 29
Soja 8.390 35 6.700 29 10.920 54
Trigo 1.760 7 2.000 9 800 4
Área Total 23.985 100 22.890 100 20.417 100
* Menos de 1%.
Fonte: IPARDES e IBGE.

Esses dados revelam sinais claros da força do processo de moderni-


zação agrícola efetivado nos municípios estudados. Em Verê há destaque,
entre 1985 e 2007, tanto no que se refere à área colhida como à produção,
para o milho e a soja, nesta ordem de importância. Ao mesmo tempo, ocor-
re perda de área colhida e produção de trigo e mandioca, e aumento da
produtividade de feijão. Em Salto do Lontra, no mesmo período, também

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V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

há destaque à área colhida e à produção de milho e soja, com fortaleci-


mento do cultivo e produção de mandioca a partir dos anos 1990. Simul-
taneamente, acontece uma diminuição bem acentuada na área colhida e
produção de feijão. E em Itapejara d’Oeste, esse movimento não é muito
diferente: há predomínio, em área colhida e produção, do milho e da soja,
em 1985 e 1996, registrando um aumento considerável da área colhida de
soja em 2007 e uma diminuição da área colhida e da produção de feijão e
trigo entre 1985 e 2007. Há, claramente, o predomínio do cultivo do milho
e da soja, produtos centrais da agricultura convencional à base de insumos
químicos e da mecanização.

Tabela 6 – Quantidade produzida em toneladas no município de Itapejara d’Oeste


Quantidade
Quantidade Equivalente Quantidade Equivalente Equivalente
Produto 2007
1985 (%) 1996 (%) (%)
Feijão 4.064 8 915 1 3.690 10
Fumo 15 0* 68 0* 81 0*
Mandioca 7.400 15 6.000 8 1.200 3
Milho 22.422 45 42.764 60 16.500 42
Soja 13.844 28 18.291 26 16.159 41
Trigo 1.860 4 3.680 5 1.600 4
Área Total 49.605 100 71.718 100 39.230 100
* Menos de 1%.
Fonte: IPARDES e IBGE.

No entanto, é justamente no bojo de expansão da chamada moderni-


zação agrícola no Sudoeste do Paraná, a partir dos anos 1970, centrada na
produção de grãos como milho e soja, conforme já mencionamos, que se
substantivam as primeiras reações em favor de uma prática agrícola alter-
nativa, ou seja, que faça frente ao movimento avassalador baseado nos in-
sumos químicos e na utilização de máquinas e implementos. As primeiras
iniciativas em favor da agroecologia, no Sudoeste, surgem na década de
1970 a partir das atividades realizadas pela ONG Assesoar (Associação de
Estudos, Orientação e Assistência a Agricultura Familiar), localizada em
Francisco Beltrão. Fritz (2008) resume o início deste movimento:
Teve um papel muito forte o trabalho da ONG Assesoar, ainda na década de
1970. A Acarpa/Emater, na década de 1980, teve um trabalho com ênfase em
adubação verde e adubação orgânica, introdução de animais rústicos, pro-
dução de sementes variadas e trabalho de extensão através da organização
das comunidades partindo de sua realidade e necessidade (p.187).
Há o envolvimento de diferentes instituições em projetos e ativida-
des de orientação e assistência técnica voltadas, principalmente, para a

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

produção orgânica de grãos, como a soja, um dos principais produtos da


atualidade no Sudoeste do Paraná, destinado para exportação. Há, de ma-
neira geral, uma confusão entre produção orgânica e produção agroecoló-
gica de alimentos, que favorece, discursiva e ideologicamente, a expansão
do cultivo de grãos, muito valorizados no mercado internacional.
A Assesoar denuncia, já nos anos 1970, o drama ecológico da chamada ‘re-
volução verde’ e defende a agroecologia como condição para a agricultura
familiar. Cria o fundo de crédito rotativo, faz trabalho com sementes, ofici-
nas, formação, apoiando alternativas ecológicas na perspectiva do desenvol-
vimento (Grigolo, 2008, p.245).
Ao mesmo tempo, há iniciativas muito importantes centradas na
olericultura e na fruticultura, práticas agrícolas e de vida caracterizadas
por princípios que consideramos agroecológicos, conforme indicamos no
início deste texto. De acordo com Fritz (2008), em Capanema, destacou-se
a produção de soja orgânica. Porém, desde 2001, houve um trabalho orien-
tado pela ASSESOAR tentando fortalecer a diversificação da olericultura
e formar a feira orgânica municipal. Em Cruzeiro do Iguaçu, a introdução
do sistema orgânico acontece desde 1997, através da parceria da Secretaria
Municipal da Agricultura com a Associação de Hortifruticultores de Cru-
zeiro do Iguaçu (ASFRUCI). No entanto, ali também ocorreu a implanta-
ção de um abatedouro de frango caipira e o direcionamento de incentivos
para a prática da olericultura.
Em Francisco Beltrão, cabe destacar as atividades da ASSESOAR,
da EMATER e da Secretaria Municipal da Agricultura. Em Salto do Lon-
tra, as atividades na produção orgânica foram iniciadas em 1997, por
meio do apoio da EMATER e da Secretaria Municipal da Agricultura,
principalmente com o cultivo da soja e com a olericultura, como também
aconteceu em outros municípios, como Renascença, São Jorge d’Oeste
e Marmeleiro. Há uma dispersão de iniciativas em favor da agricultura
orgânica e da agroecologia que são efetivadas, concomitantemente, no
mesmo município.

A produção agroecológica e a produção orgânica em Verê,


Itapejara d’Oeste e Salto do Lontra
Por meio do trabalho de campo que fizemos até o momento, foi possível
verificar que a produção agroecológica se destaca em Verê. Ali, as ativida-
des em favor desta produção acentuam-se com a criação do CAPA (Centro
de Apoio ao Pequeno Agricultor), em 1997. O CAPA-Verê teve e tem uma
participação fundamental na difusão e no fortalecimento da agroecologia
no Sudoeste do Paraná a partir de sua instalação, concentrando a realiza-
ção de atividades importantes referentes à produção e à comercialização
da produção. Movimento fortalecido, mais recentemente, com a consti-

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V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

tuição da APAVE (Associação de Produtores Agroecológicos de Verê), em


2001 que, como o próprio nome indica, passa a comercializar parte da
produção agroecológica do município e também de outros lugares: feijão,
tomate, verduras, frutas, legumes etc..
Ao mesmo tempo, notamos um movimento considerável em favor
da produção orgânica, especialmente da soja para exportação, como ocor-
re em Salto do Lontra e Itapejara d’Oeste, conforme descrevemos a seguir.
Antes disto, é importante destacar que, para demonstração neste texto, se-
lecionamos duas unidades produtivas que consideramos agroecológicas e
duas orgânicas com base na importância que ambas representam em nível
municipal como referências para outros produtores do ramo.

A produção orgânica
A primeira unidade produtiva que selecionamos é a de Raul Dall Agnol,
residente no município de Itapejara d’Oeste desde 1972. Migrante do Rio
Grande do Sul, tem quatro filhos, apenas um trabalha na propriedade, sen-
do necessária a contratação de empregados no período de safra. A gestão
da propriedade é familiar. A família tem a expectativa de continuar moran-
do na propriedade, ocupados com a agricultura que toma um tempo de 10
horas diárias, em média, todo dia da semana. A propriedade tem uma área
total de 13 hectares: 10 para cultivos temporários como soja, milho e fei-
jão; 2 com pastagens permanentes; ½ para culturas permanentes como as
frutas e ½ ha com mata nativa.
Esse agricultor trabalha com a produção orgânica desde o ano de
1994, optando por esse sistema por influência de pessoas da Prefeitura
Municipal através de cursos e palestras. Objetiva cuidar da terra, da saú-
de, do ambiente e ganhar mais com a produção orgânica. As instituições
com as quais estabelece relações mais efetivas são a Agrorgânica, a Coasul
e a Prefeitura Municipal, especialmente por causa da assistência técnica e
da comercialização da sua produção agrícola. De acordo com nosso entre-
vistado, as vantagens do cultivo orgânico são “a melhora da saúde de to-
das as pessoas, dos animais, enfim do meio ambiente”, e as desvantagens
resumem-se nas “dificuldades para transportar a soja e na falta de mão de
obra... é muito difícil encontrar gente para trabalhar”. Para o fortalecimen-
to da produção orgânica em Itapejara, ele defende a organização de um
grupo/associação de produtores.
Na safra 2008-2009, utilizou 5 ha para o cultivo de milho e 5 para
cultivo da soja. A produção do milho foi de aproximadamente 700 sacas
por hectare, comercializadas na Coasul, sendo 100 sacas destinadas ao
consumo. A produção de soja foi de aproximadamente 300 sacas por hec-
tare, toda ela comercializada com a Agrorgânica (que exporta o produ-
to). Ele também produz leite que considera orgânico, com uma produção

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

mensal que varia entre 1800 e 2000 litros, comercializado com a Empre-
sa Latco, de Francisco Beltrão. Ao mesmo tempo, tem uma produção de
subsistên­cia diversificada: bois, aves caipiras, peixes, ovos, verduras, man-
dioca, geleias e conservas.
De Salto do Lontra, evidenciamos a produção da família de Paulo
Ferreira, residente no município há 38 anos. A gestão da propriedade é
familiar, envolvendo o trabalho cotidiano de 4 pessoas. Eles também con-
tratam empregados temporários nos períodos de safra. A área total da pro-
priedade é de 16 ha: 7 de culturas temporárias: milho e soja; 1 de cultura
permanente: uva e pera; 2 de pastagem permanente (potreiro); cerca de 3
hectares de mata nativa e 3 de silvicultura: eucalipto (400 pés). O milho e a
soja são orgânicos (certificados). A empresa Gebana Brasil oferece cursos
e assistência técnica, além do fornecimento das sementes e da comerciali-
zação da soja no exterior. A Gebana atua no município através do Sindica-
to dos Trabalhadores Rurais e da Cresol, que concede financiamentos do
PRONAF-custeio.
Conforme depoimento de nosso entrevistado, toda produção da fa-
mília é orgânica desde 2000 e escolheram “esse caminho sobretudo pela
questão econômica, porque é maior a remuneração da produção. A soja
orgânica rende um preço 9% maior em relação ao produto convencional”.
Além disso, eles têm como objetivo melhorar a qualidade de vida dos mem-
bros da família e evitar intoxicações. Assim, a subsistência também é im-
portante nessa unidade de produção: mandioca: 1.000 m2; hortaliças: 20
m2; produção de leite: 7 litros por dia; aves caipiras: 10 cabeças.

A produção agroecológica
A unidade produtiva e de vida familiar de Darci Cassol, município de Verê,
é uma ótima demonstração do que estamos entendendo por produção
agroecológica de alimentos. Ele também é proveniente do Rio Grande do
Sul e mora na propriedade desde o 1973. Todo trabalho realizado é fami-
liar. A área total da propriedade é de 2,4 ha, toda dedicada às culturas agro-
ecológicas (certificadas) de hortaliças (repolho, abobrinha, salsa, cebola,
alface, repolho, pepinos), frutas (laranjas, bergamota, caqui), batata-doce
e mandioca. A maior parte dos cultivos é feita nas estufas e a irrigação é
noturna, porque paga menos pela energia elétrica. Há 20% das terras com
mata nativa e capoeira. Darci e Fátima têm duas filhas, uma mora no Rio
Grande do Sul e outra faz o curso de fruticultura e auxilia esporadicamen-
te nas atividades da família. A prática agroecológica é realizada na unidade
há 13 anos e foram incentivados pelas atividades do CAPA. Parte da pro-
dução é comercializada in loco e parte na APAVE, na cidade de Verê. Para
produzir, conta com assistência técnica do pessoal do CAPA e financiamen-
to da CRESOL (construção das estufas).

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M. A. Saquet | A. F. Alves | L. P. Candiotto | R. A. dos Santos | S. C. Grigolo |
V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

Nosso entrevistado destaca com principais vantagens dessa produ-


ção: a) garantia de venda por um preço razoável; b) produção de alimentos
saudáveis para sua família e para os consumidores: “Não estou no meio do
veneno”.
Além disso Darci tem, claramente, um cuidado especial com a terra
e com a vegetação. Percebemos isso durante o trabalho de campo realizado
em sua propriedade: ele cuida de quase todos os detalhes do manejo da ter-
ra, desde a preparação para o cultivo até a sua conservação com cobertura
vegetal. A principal dificuldade encontrada no momento é a falta de mão
de obra para auxiliar nos períodos de colheita e plantio. Também faltam,
conforme depoimento do Darci, mais técnicos para orientar a produção e
uma linha de financiamento específica para pequenos produtores agroeco-
lógicos. Evidentemente, uma pequena parcela do que produz é consumida
pela própria família. Além das frutas e verduras, produz para subsistência
leite e cria suínos e peixes.
Também de Verê, Décio Cagnini, além de produtor agroecológico, é
técnico agrícola especializado nesta produção e trabalha no CAPA. Assim,
sua unidade produtiva e de vida está muito bem organizada e serve de re-
ferência naquele município. A família Cagnini também é originária do Rio
Grande do Sul e moram em Verê desde 1951. Como ele ocupa-se das ativi-
dades do CAPA, contrataram um casal para auxiliar nas tarefas de sua pro-
priedade, como empregados temporários diaristas. A gestão da proprieda-
de é familiar. A área total é de 13,6 ha: 3 ha de culturas convencionais, onde
trabalham outras pessoas (arrendamento); 1 ha de pastagens permanen-
tes; 20% da área total é de mata nativa; o restante é dedicado à fruticultura
[uvas (niágra, bordô e francesa), pera, pêssego e laranja], erva-mate (5.000
pés) e hortaliças em estufas (alface, tomate, vagem, pepino, cenoura, beter-
raba, brócolis...). Sua produção é certificada pela Rede Ecovida.
Décio trabalha com agroecologia há 10 anos. Fez essa escolha para
cuidar das crianças, pois sua filha havia se intoxicado com “o veneno dos
tomates”. Foram os primeiros em Verê a optar pela agroecologia, graças ao
trabalho no Capa. “Foi um desafio naquela época”, comenta Décio. “Como
funcionário do Capa, tive que dar o bom exemplo e o experimento deu cer-
to”. Para comercializar a produção, vende uma parcela in loco, participa
de feiras a cada 15 dias (Foz do Iguaçu e Curitiba), entrega as hortaliças
na APAVE e a uva na Aprovive (unidade de transformação da uva em suco,
localizada também em Verê).
Ao falar sobre as vantagens da produção agroecológica, destaca: a)
os preços obtidos pela produção; b) mercado garantido; c) saúde familiar e
dos consumidores através da produção de alimentos saudáveis. “A comer-
cialização sempre dá certo e há garantia que tudo é vendido. Além disso, é
o produtor que estabelece o preço. Eu faço o preço, sem ter que contratar
grandes empresas”, afirma. Como desvantagem, nosso entrevistado men-

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A agroecologia como estratégia de inclusão social
e desenvolvimento territorial

ciona a falta de força de trabalho, ou seja, de pessoas disponíveis para fa-


zer o trabalho braçal que a prática agroecológica exige: “Os jovens saem
do campo para a cidade e deixam o trabalho rural. O mercado também é
frágil, é difícil é criar um mercado regular e ainda falta organização dos
produtores em um sistema coeso”. Além disso, também afirma que faltam
técnicos especializados em agroecologia.
Apesar de destacar a fragilidade do mercado, Décio afirma que há
consumidores para a produção, normalmente, vendem tudo que cultivam
e faltam produtos, especialmente frutas e verduras. Assim, é necessário
ampliar a produção e a comercialização envolvendo esse território e ou-
tros vizinhos, como Francisco Beltrão. Isto pode ocorrer, por exemplo, na
opinião do Décio, através da criação de uma central de produtos agroeco-
lógicos, que articule produtores de diferentes municípios.

Considerações finais
As pesquisas que realizamos até o momento deixam clara a construção
de uma prática agrícola diferenciada da convencional, especialmente no
município de Verê. Em Salto do Lontra e Itapejara d’Oeste evidencia-se
o que estamos denominando de produção orgânica de soja para expor-
tação, porém, também muito importante na preservação do ambiente e
na sustentação econômica das famílias estudadas. É em Verê, no entan-
to, que identificamos princípios agroecológicos na produção familiar de
alimentos e é ali que esta prática agrícola se manifesta mais claramente
como uma forma-estratégia fundamental de inclusão social e desenvolvi-
mento territorial.
A produção orgânica para exportação, conforme verificamos em
campo, também se efetiva como uma alternativa, pois há todo um conjun-
to de ações, por parte da família produtora, vinculadas à produção de sub-
sistência saudável e ao manejo adequado do solo, por exemplo. Alguns têm
as nascentes d’água protegidas. Porém, na prática agroecológica, há maior
coesão na gestão da unidade produtiva e de vida familiar. Há sinais mais
claros de uma consciência política que valoriza o ambiente, a saúde da fa-
mília e de outras pessoas, além do ganho gerado pelos cultivos diversifica-
dos que têm mercado garantido. Também, parece que ocorre, nas unidades
agroecológicas estudadas até o momento, um nível maior de autonomia,
sobretudo na tomada de decisões sobre o que cultivar, quando, com quem
comercializar e na definição dos preços de seus produtos. Nessa produção
é possível identificar relações sociais de ajuda mútua, a não dependência
de grandes empresas, a valorização do saber-fazer reproduzido de geração
em geração, enfim, elementos que vão ao encontro de nossa concepção de
desenvolvimento territorial e favorecem a inclusão social, principalmente
por meio de associações e pequenas cooperativas.

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M. A. Saquet | A. F. Alves | L. P. Candiotto | R. A. dos Santos | S. C. Grigolo |
V. Bianco | C. Bonelli | E. F. Gaiovicz | P. de Souza | C. Casiraghi

Por isto, a produção agroecológica de alimentos se constitui efeti-


vamente numa alternativa de inclusão social e desenvolvimento. São vá-
rias as conquistas conseguidas pelas famílias: maior autonomia, alimenta-
ção saudável, mercado consumidor garantido, bons preços pelos produtos,
participação de associações, preservação de áreas de mata nativa, todas
fundamentais na gestão do território de maneira multidimensional, isto é,
considerando-se a preservação do ambiente, a valorização das identidades
locais, a produção de alimentos saudáveis, a realização de atividades em
parceria (redes sociais locais), o pequeno comércio e as condições ambien-
tais de cada unidade produtiva e de vida familiar.

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