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Círculos de Leitura: um espaço de troca e conexão

Coletânea de poesias

Você, meu leitor, que pulsa de vida e


orgulho e amor, assim como eu:
para você, por isso, os cantos que aqui seguem.

Walt Whitman

Escolhemos uma coletânea de poesias maravilhosas especialmente para lhe dar boas-vindas.
Sugerimos que leia uma a cada noite, antes de dormir. Ao terminar toda a leitura, recomece-a,
dessa vez no ritmo e do jeito que quiser. Leia quantas poesias quiser e quantas vezes desejar, em
voz alta ou baixinho, para você ou para alguém.
Descubra então o que acontece quando se lê uma poesia pela segunda vez. As palavras do livro
certamente serão as mesmas, mas será que as poesias lhe parecerão iguais? O que mudou?
Desperte para a magia desse segundo olhar e verá que uma obra de arte nunca tem fim.
Dentro desse nosso mundo há muitos mundos a descobrir e muitas ideias para refletir. Quando
descobrimos o mundo da poesia, o que encontramos? Como nos sentimos?
Convidamos você a responder essas perguntas. Aproprie-se deste livro. Anote trechos que
achar importantes, escreva suas conclusões, sentimentos, sonhos que teve durante a noite após
a leitura e experimente criar suas próprias poesias. Se gostar do convite e quiser conhecer um
mundo novo e diferente, decore um trecho, uma ou mais poesias dentre aquelas que mais lhe
fizeram sonhar.
Saber de cor é colocar uma poesia dentro do coração, um ato de paixão, de encantamento e
entrega. Permita que a poesia se hospede dentro de você, e, como diz o poeta Paul Celan, “para
ela, lance sua alma”. Estamos à espera! Queremos ouvir todas as histórias, todos esses mundos
novos que você certamente descobrirá.

Uma didática da invenção;


Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber...
repetir, repetir – até ficar diferente.

Manoel de Barros

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Coletânea de poesias

Eu te darei amor

Eu te darei, amor, mais do que a angústia


De minhas ânsias por um mundo justo,
Eu te darei, fermento resoluto,
Meu canto, que supera o homem mudo.
Eu te darei, num sonho vigilante,
A certeira emergência da alvorada,
Desvelando, num canto lancinante,
A oclusão da clausura obstinada.
Eu te darei o som, que compendia
Mil vozes das palavras preteridas,
E te darei, na áspera alegria,
As vozes sufocadas de mil vidas.
E assim, tudo o que a simples mão fraterna
Associa em uníssono e coesão
– A Rosa, a liberdade, o sonho, o pão... –
Eu te darei, amor, neste poema.

Antônio Lázaro de Almeida Prado

Começar e o fim

a teoria dos mares prevê inúmeros regressos


tantos que são poucas as viagens
idas e vindas
nesse jogo incessante de águas
não existem mares
existimos
nesta teoria

a importância está em não se ter virtudes


existimos ora secos ora regressados

Dora Ribeiro

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Coletânea de poesias

Aurora de tempos novos

Dividimos o pão, o sonho, a aurora


Com alma solidária e mão aberta,
Que a urgência do tempo nos aperta
E não suporta o amor, pausa ou demora.
Seja o tempo do encontro, logo agora,
Com as provas de amor, em hora certa,
E, pronto para a amizade, sempre alerta
Esteja o coração, a toda hora.
Fraterna seja a vida: o amor, fraterno,
E tudo se entrelace num abraço,
Que seja muito estreito e muito terno
Triunfe a luz do amor, anule o espaço
E se abra para o novo, para um eterno
Arco-íris, sem entrave ou embaraço.

Antônio Lázaro de Almeida Prado

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

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Mar português

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa

Ulisses

O mito é um nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É o mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada morre.

Fernando Pessoa

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A João Guimarães Rosa

Não é contemplar
de longe
as letras na varanda vitrine;
é dormir com elas
no sertão do mundo
e gozar
em cada vogal
a senda
a vereda

em cada consoante
e conceber
cada palavra bem composta
como o jagunço afiado
que há de nos vingar
que há de nos valer

David Calderoni

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Hino de consagração a Eros

A inteligência sem amor, te faz perverso.


A justiça sem amor, te faz implacável.
A diplomacia sem amor, te faz hipócrita.
O êxito sem amor, te faz arrogante.
A riqueza sem amor, te faz avaro.
A docilidade sem amor te faz servil.
A pobreza sem amor, te faz orgulhoso.
A beleza sem amor, te faz ridículo.
A autoridade sem amor, te faz tirano.
O trabalho sem amor, te faz escravo.
A simplicidade sem amor, te deprecia.
A oração sem amor, te faz introvertido.
A lei sem amor, te escraviza.
A política sem amor, te deixa egoísta.
A fé sem amor te deixa fanático.
A religião sem amor se converte em tortura.

Hesíodo, séc. VIII a.C.

Vigie os seus pensamentos, porque eles se tornarão palavras;


vigie suas palavras, pois elas se transformarão em atos;
vigie seus atos, porque eles se tornarão seus hábitos;
vigie seus hábitos, pois eles formarão seu caráter;
vigie seu caráter, porque ele será o seu destino.

Píndaro, Fragmentos, séc. VI a.C.

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Tu e eu

Feliz o momento em que nos sentarmos no palácio,


dois corpos, dois semblantes, uma única alma

– tu e eu.

E ao adentrarmos o jardim, as cores da alameda


e a voz dos pássaros nos farão imortais

– tu e eu.

As estrelas do céu virão contemplar-nos


e nós lhe mostraremos a própria lua

– tu e eu.

Tu e eu, não mais separados, fundidos em êxtase,


felizes e a salvo da fala vulgar

– tu e eu.

As aves celestes de rara plumagem


por inveja perderão o encanto
no lugar em que estaremos a rir

– tu e eu.

Eis a maior das maravilhas: que tu e eu,


sentados aqui neste recanto, estejamos agora
um no Iraque, outro em Khorassan

– tu e eu.

Djalal ad-Din Rûmi

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Ela

Contigo aqui em Mertu


É como se já estivesse em Heliópolis.
Regressamos ao jardim das muitas árvores,
Os meus braços cheios de flores.
Olhando o meu reflexo no quieto lago –
Os meus braços cheios de flores –
Vejo-te a aproximares-te pé ante pé
Para me beijares por trás,
Os meus cabelos carregados de perfume.
Com os teus braços à minha volta
Sinto-me como se pertencesse ao faraó.

O poema egípcio data entre 1567 e 1085 a.C.


Tradução: Hélder M. Pereira

Confissões

Perguntei à terra,
ao mar, à profundeza
e, entre os animais, às criaturas que rastejam.
Perguntei aos ventos que sopram
e aos seres que o mar encerra.
Perguntei aos céus, ao sol, à lua e às estrelas
e a todas as criaturas à volta da minha carne:
Minha pergunta era o olhar que eu lhes lançava
Sua resposta era a sua beleza.

Santo Agostinho

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Motivo

Eu canto porque o instante existe


e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles

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Cânticos XXIII e XXIV

Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam,
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Não digas: este que me deu corpo é meu Pai.
Esta que me deu corpo é minha Mãe.
Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram
Em espírito.
E esses foram sem número.
Sem nome.
De todos os tempos.
Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje.
Todos os que já viveram.
E andam fazendo-te dia a dia
Os de hoje, os de amanhã.
E os homens, e as coisas todas silenciosas.
A tua extensão prolonga-se em todos os sentidos.
O teu mundo não tem polos.
E tu és o próprio mundo.

Cecília Meireles

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Homem, presta atenção

O que diz a profunda meia-noite?


Eu dormia, dormia
e de um profundo sonhar eu despertei.
O mundo é profundo
Mais profundo do que o pensa o dia
Profunda é sua dor

O prazer – mais profundo ainda que a dor

A dor diz: Passa!


Mas todo prazer deseja eternidade
Uma profunda, profunda Eternidade.

Friedrich Nietzsche

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