Você está na página 1de 5

O Coletivo de Galochas é um grupo com pesquisa teatral continuada

há 12 anos na cidade de São Paulo.


Em sua trajetória, sempre optou por temas críticos, tecendo relações com movimentos sociais,
coletivos e equipamentos públicos em suas peças e processos criativos. Nesse processo, o grupo
estabeleceu circuitos de apresentações por teatros, espaços alternativos, praças, ruas e
comunidades.
Em seu novo projeto, “Coluna Prestes: encruzilhadas da marcha da esperança”, o Galochas
parte da sua experiência para abordar esse importante acontecimento histórico, investigando seus
vestígios e narrativas. É através dessa pesquisa que o próximo espetáculo do grupo será criado,
atrelado a um conjunto de ações voltadas para a cidade.
Nascida no calor do tenentismo, levada a cabo por alguns milhares de soldados, a Coluna Prestes
marchou 23.000 km pelos interiores do Brasil, com a ideia sonhadora de libertar seu próprio povo
da exploração e da ignorância.
Suas principais bandeiras: voto secreto e universal; reforma do ensino com obrigatoriedade de
formação básica e alfabetização; reformas sociais e econômicas e o fim do governo de Artur
Bernardes, que acusavam de corrupção, exploração e crueldade.
Em uma montagem teatral historicista, o que se persegue são rastros, restos ou retalhos dessa
história, que possam ser a gênese de dramas pessoais, acontecimentos marcantes, situações
colocadas em contexto. Outro compromisso do trabalho é o de jogar luz em acontecimentos que
sofrem um processo de apagamento e, mesmo aonde se conta a história da Coluna, são deixados
em segundo plano.
Por isso o subtítulo desse projeto e montagem traz a palavra encruzilhadas, significando um
encontro de caminhos onde devemos escolher como continuar a jornada, como decidir diante de
situações contraditórias. Essa escolha deve levantar as potencialidades do que foi o acontecimento
da Coluna Prestes, mas também revelar esses outros aspectos que fizeram parte dessa mesma
história, mas são comumente apagados na sua recontagem.
Podemos destacar alguns dos temas transversais que atravessaram a marcha da Coluna Prestes
que serão explorados na pesquisa teatral: a participação das mulheres na coluna; a participação de
pessoas negras; a política e a guerra de informação na imprensa da época; a relação entre o povo e
os revolucionários; a luta armada e as consequências dessa opção em um mundo que se vê
aterrorizado por guerras, ontem e hoje.
Esse processo de pesquisa tem como horizonte a criação de uma encenação de palco, com o
objetivo de ocupar teatros públicos da cidade de São Paulo, escolhidos em regiões que foram
marcadas pelos dramáticos conflitos do ano de 1924, em bairros populares e operários que foram
bombardeados ou foram focos de resistência dos revolucionários.
Foram escolhidos três teatros públicos do município a partir da pesquisa: o Teatro Flávio Império,
região onde se concentravam as tropas revolucionárias; e os Teatros Artur Azevedo e João
Caetano, localizados em bairros violentamente bombardeados por aviões das tropas legalistas do
governo de Artur Bernardes.
Esses territórios da cidade de São Paulo marcam o início da epopeia da marcha da Coluna Prestes,
aprofundando as encruzilhadas desse trabalho de resgate e redescoberta crítica, disputando, por
meio do teatro, a construção da memória coletiva.

100 anos da Coluna Prestes


Em 2024, daqui a dois anos, a Coluna Prestes completa cem anos. Este projeto está sintonizado
com a comemoração do centenário.
O processo de pesquisa em torno desse tema envolverá um conjunto de ações pela cidade de São
Paulo que vão muito além da montagem da peça. Serão realizados dois Ciclos de Seminários
Formativos, um Curso Livre de Coro Cênico, a criação do Coro da Coluna, ocupações teatrais
urbanas, além da circulação do espetáculo por três teatros municipais, sempre a preços populares,
contando com sessões em Libras e com audiodescrição.
Esse tipo de processo de criação teatral leva meses para ser desenvolvido, exigindo um leque de
estudos, ensaios e ações raramente possibilitados por mecanismos tradicionais de financiamento
de produção cultural. A exceção é justamente a Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São
Paulo, que torna possível a realização de um trabalho cênico dessa natureza.
O que não significa que, encerrado o projeto, a peça não tenha possibilidade de continuar sua
carreira, independente de editais públicos de financiamento. Muito pelo contrário: a comemoração
do centenário abre uma perspectiva otimista para circulação do espetáculo “Coluna Prestes:
encruzilhadas da marcha da esperança”, facilitando a sustentação do projeto no mercado
depois da realização do presente projeto.

Pesquisa Histórico Poética


Trata-se de criar o passado, e não restaurar ou construí-lo; e é
justamente isso que se busca em uma dramaturgia historicista, a
criação do passado através da reescrita da história pela
dramaturgia, reescrita essa que se dá pelos vestígios, pelos restos,
pelos rastros deixados. (MAGALHÃES, 2018, p. 11)

Articular historicamente o passado, na perspectiva da construção de uma dramaturgia, não


significa conhecer esse passado como “de fato foi”, mas muito mais apropriar-se de uma
reminiscência, como um lampejo que no meio de um turbilhão brilha, não como um farol fixo,
mas como uma luz que se carrega, vacilante e insuficiente, para um caminho ainda não trilhado.
Uma montagem baseada em pesquisa histórica, que estamos aqui denominando de dramaturgia
historicista, revela uma relação dialética entre verdade e verossimilhança. Essa relação estabelece
maior ou menor relevância entre personagens reais, diretamente envolvidos no conflito, ao
mesmo tempo em que cria personagens ficcionais, para além do registrado nos escritos e na
história oficial.
Que histórias pessoais poderiam ter ocorrido? Que diálogos ficaram surdos na historiografia?
Como resgatar histórias dos mortos e dos subjugados?
Pensamos o passado a partir de onde pisamos, o tempo e o espaço que habitamos: aqui e agora.
Desse modo, toda experiência de dramaturgia historicista é tingida por “tempos de agora”. Mas
como não suplantar o próprio passado com ideias do presente, ou com a arrogância de achar que o
espaço contemporâneo é um momento “mais acabado e evoluído” do que seu passado?
O conhecimento histórico talvez só seja possível no momento histórico em que ocorre, perdendo-
se e tornando-se fugaz em qualquer tentativa de história, feita de escolhas de narrativas e
destaques que deverão ser contados.

Devemos deixar às diferentes épocas a sua diversidade e não


esquecer jamais a sua efemeridade, de forma que a nossa época
possa ser também considerada efêmera.(BRECHT, 2005, p. 114)

É nesse sentido que atuamos no contrapelo. A pesquisa historiográfica é uma base de construção
da encenação e da dramaturgia, mas estas revelam traços e vestígios para além do registro
histórico, que encadeia acontecimentos, mas que apaga ou tenta apagar traços e personagens
importantes dessa história que diz revelar. Particularmente a situação das mulheres na coluna é
um capítulo à parte em toda essa pesquisa histórica e estudo de cena.
Além disso, quando olhamos para a história, olhamos a partir do tempo e espaço que configuram
nosso chão, isto é, nosso próprio tempo, onde vivemos e atuamos. O que nos traz uma questão
que tem uma dupla face: por um lado nos permite refletir sobre o tempo presente, à luz do que
aconteceu. Neste caso, vendo as semelhanças de um governo impopular do passado, baseado na
morte e na necropolítica, com desprezo pela vida e pelo bem estar de sua população, baseado
descaradamente na corrupção, com nosso próprio enfrentamento da conjuntura atual, muito
semelhante.
Por outro lado, temos que evitar a arrogância de achar que podemos conhecer, valorizar ou julgar
o passado melhor do que os contemporâneos desse passado, evitando um olhar histórico baseado
em suposições de que “poderíamos ter feito diferente”. Não estabelecer um moralismo retrógrado,
ou anacronismo ético, em que julgamos a história a partir de nossos pressupostos e ideologias
atuais.
Por isso que a pesquisa histórica da Coluna Prestes tem o subtítulo de “encruzilhadas da marcha
da esperança”, pois podemos ver, justamente nas encruzilhadas e paradoxos, uma reflexão sobre
as próprias encruzilhadas e paradoxos que enfrentamos hoje.
Desse modo a pesquisa histórica tem três frentes que se interrelacionam e que são a base desse
processo:

Pesquisa historiográfica
Pesquisa em textos escolhidos e antológicos, entre eles o Diário da Coluna e tratados de história
sobre o assunto; matérias e reportagens, pesquisa iconográfica, sonora e audiovisual.

Palestras e depoimentos
Promoção de um ciclo de palestras com historiadores e pesquisadores, coletando depoimentos,
entrevistas e “contação de causos”.

Conversas com grupo e coletivos que tiveram montagens históricas


Rodas de conversas com grupos que montaram peças ou trabalhos retratando momentos
importantes da história do Brasil. Investigar pesquisas teatrais baseadas em fatos históricos,
envolvendo grandes épicos: Canudos, Revolta da Pedra Bonita, Bombardeios de São Paulo,
Revolta do Pau da Colher, o Levante de Quitino Gatilheiro, entre outros.

Núcleo de Encenação
Pesquisa de criação cênica, onde a linguagem da encenação é concebida a partir do tema,
investigado de forma transversal, levando em consideração textos teóricos, características sociais,
modo de vida, experimentados em cena por meio de improvisos e jogos teatrais. As tradições
teatrais que o processo mobiliza são descobertas nesse processo. Através desse tipo de pesquisa,
cada peça criada pelo grupo desenvolve uma linguagem singular.
Assim, por exemplo, a encenação do Piratas de Galochas (2011), que tinha como tema a pirataria
clássica e o movimento de moradia de São Paulo, que fez sua estréia dentro de uma ocupação de
moradia, mobilizava um repertório técnico ligado a commedia dell’arte e expedientes da tradição
da comédia popular, de caráter épico.
Por outro lado, para encenar Mau Lugar (2018), que leva à cena o debate de falta de perspectivas
e do suicídio, investigando as condições que levam uma pessoa a tirar a própria vida, a linguagem
teatral mobilizada ligava-se a uma tradição do realismo crítico e alguns expedientes mais
próximos do drama.
No caso do presente projeto, a pesquisa teatral partirá das materialidades históricas, encontradas
no período da pesquisa, no Brasil na década de 1920, somadas às muitas manifestações e obras
culturais que povoaram o imaginário e a subjetividade dos soldados da Coluna Prestes. De igual
importância temática, são as práticas culturais e artísticas dos povos e vilarejos por onde a coluna
passou, que traz uma herança cultural e artística bastante distinta daquela carregada pelos
soldados.
Outro eixo poético constante da encenação reside no choque entre a modernidade da cidade, o
progresso tecnológico feito de trens a vapor, telégrafos, bondes, em contraposição ao arcaico dos
vilarejos do Brasil “profundo”, comunidades do sertão, regiões do nordeste e centro-oeste,
regiões amazônicas e fronteiras com outros países.
Por fim, o objetivo central da encenação da marcha da Coluna Prestes é resgatar a utopia e a
esperança de um Brasil melhor, o anseio de liberdade e a crença na ação corajosa e ousada que
cada um de nós pode ter. Teatralizar o passado para construir o presente e sonhar o futuro.
Núcleo de Interpretação
Pesquisa voltada para diferentes aspectos técnicos do trabalho da atuação, organizado a partir de
duas vertentes dialeticamente complementares:
expedientes subjetivos, derivados do realismo crítico, apoiado no sistema de ações
físicas [Constantin Stanislavski];
expedientes objetivos, derivado do gestus e procedimento do teatro épico-dialético
[Bertolt Brecht e Augusto Boal]; aqui também são pesquisadas tradições do teatro
narrativo, como a farsa, a alegoria, a commedia dell’arte e a comédia popular.
Os dois expedientes interagem com os objetos da pesquisa, colhendo daí os repertórios utilizados
pelos atores e atrizes nas suas composições. Cada personagem é investigada dentro dos seus
universos subjetivos e objetivos, traçando a relação dialética produtiva entre esses dois campos ao
longo das ações.

Você também pode gostar