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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

31º Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Maranhão. Imperatriz - MA. 06 a 10 de junho de 2022.

IMAGENS DE LINCHAMENTOS: abordagens em produções


artísticas contemporâneas 1
LYNCHING IMAGES: approaches in contemporary artistic
productions
Marina Feldhues 2

Resumo: Neste artigo investigo como cenas de linchamento são abordadas em diferentes
produções artísticas contemporâneas. Procuro refletir sobre os papéis sociais das
imagens (em especial das fotografias) de linchamento, e as estratégias ético-estética-
políticas movimentadas pelos artistas ao lidar com tais arquivos de violência.
Algumas perguntas norteiam minhas reflexões: como as pinturas, fotos e frames de
linchamento se relacionam nas obras? Quais questões específicas sobre
linchamentos são trazidas à tona? E, em termos de conhecimento poético
(GLISSANT, 2021), o que aprendi sobre fotografia junto com essas obras? As obras
são: Postais para Charles Lynch (2015) do Coletivo Garapa, Justiça e Barbárie
(2017) de Jaime Lauriano, Without Sanctuary-Lynching Photography in America
(2000) de James Allen, Erased Lynchings (2006) de Ken Gonzales-Day e
Transparência (2021) de minha autoria.

Palavras-Chave: Linchamento. Imagens. Fotografia.

Abstract: In this article, I investigate how lynching scenes are approached in different
contemporary artistic productions. I try to reflect on the social roles of images
(especially photographs) of lynching, and the ethical-aesthetic-political strategies
used by artists when dealing with such archives of violence. Some questions guide
my reflections: how are the paintings, photos and frames of lynching related in the
works? What specific issues about lynchings are brought up? And, in terms of poetic
knowledge (GLISSANT, 2021), what did I learn about photography from these
works? The works are: Postcards for Charles Lynch (2015) by Coletivo Garapa,
Justiça e Barbarie (2017) by Jaime Lauriano, Without Sanctuary-Lynching
Photography in America (2000) by James Allen, Erased Lynchings (2006) by Ken
Gonzales-Day and Transparency (2021) by me.

Keywords: lynching. Images. Photography.

1. Mostrar ou não mostrar?


O que Postais para Charles Lynch (2015) do Coletivo Garapa, Justiça e Barbárie
(2017) de Jaime Lauriano, Without Sanctuary-Lynching Photography in America 3 (2000) de
James Allen, Erased Lynchings4 (2006) de Ken Gonzales-Day e Transparência 5 (2021) de

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Arte e Tecnologias da Imagem do 31º Encontro
Anual da Compós, Universidade Federal do Maranhão, Imperatriz - MA. 06 a 10 de junho de 2022.
2
Doutoranda em comunicação na Universidade Federal de Pernambuco, marinafeldhues@gmail.com
3 Disponível em: https://withoutsanctuary.com/product/without-sanctuary-lynching-photography-in-america-

14th/
4
Disponível em: https://kengonzalesday.com/projects/erased-lynchings/
5
Disponível em: https://marinafeldhues.wixsite.com/marinafeldhues/transparencia

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minha autoria possuem em comum? São produções artísticas que fazem uso de fotografias,
pinturas e/ou frames de vídeo de linchamentos ocorridos entre o séc. XIX e XXI. Noutras
palavras, as obras fazem uso de materiais de arquivo visuais para pôr em debate práticas antigas
e contemporâneas de linchamento. Without Sanctuary-Lynching Photography in America
(2000), Erased Lynchings (2006) e Transparência (2021) são os pontos de apoio a partir dos
quais parto para me atentar mais detalhadamente nas produções do Coletivo Garapa e de Jaime
Lauriano.
Meu interesse particular com essas duas obras é o de refletir sobre os papéis sociais das
imagens (em especial das fotografias) de linchamento, e as estratégias ético-estética-políticas
movimentadas pelos artistas ao lidar com tais arquivos de violência. Para tanto, algumas
perguntas norteiam minha abordagem: como pinturas, fotos e frames de linchamento de épocas
distintas se relacionam nas obras? Que questões específicas sobre linchamentos são trazidas à
tona? E, em termos de conhecimento poético (GLISSANT, 2021), o que aprendi sobre
fotografia junto com essas obras? O que faço neste artigo é apresentar as respostas provisórias
que por hora encontrei.
Começo por Erased Lynchings (2006) de Ken Gonzales-Day e por seu livro Lynching
in the West: 1850-1935 (2006), complemento ensaístico de seu trabalho visual. O artista se
apropria de fotografias de linchamento de pessoas racializadas como negras, em sua maioria
cartões postais, que circularam como souvenires pelos Estados Unidos entre 1835 e 1935 e
apaga das imagens os corpos linchados. Sua intenção é dar a ver os perpetradores de violência,
o lugar da prática e não o espetáculo do sofrimento da vítima. Nesse sentido, ele cria um contra-
visualidade aos cartões postais de linchamento, os quais tinham como foco a exposição do
corpo linchado morto. Gonzales-Day também dialoga diretamente com a exposição e livro
Without Sanctuary-Lynching Photography in America (2000) organizada pelo colecionador
James Allen. Na mostra, Allen expõe cerca de cem fotografias de linchamento garimpadas em
sua pesquisa.
Ambos os livros de Gonzales-Day e de James Allen discutem o terrorismo racial da
prática do linchamento, apresentam matérias de jornais sobre os acontecimentos, dão a ver a
violência dos discursos racistas que justificavam tais práticas e que contextualizavam as
fotografias de linchamento nos veículos de comunicação da época. Contudo, enquanto James
Allen expõe as imagens de linchamento em seu original; Gonzales-Day as manipula, excluindo
o corpo da vítima. Tais estratégias implicam a nós espectadores:

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Somos testemunhas que confirmam a verdade do que aconteceu em face das


capacidades mundialmente destrutivas da dor, as distorções da tortura, a pura
irrepresentabilidade do terror e a repressão dos relatos dominantes? Ou somos
voyeurs fascinados e repelidos por exibições de terror e sofrimento? O que produz a
exposição do corpo violado? Prova da senciência negra ou da desumanidade da
"instituição peculiar"? Ou a dor do outro apenas nos fornece uma oportunidade de
autorreflexão? Em causa aqui está a precariedade da empatia e a linha incerta entre
testemunha e espectador. Só mais obscena do que a brutalidade desencadeada no
poste de açoite é a exigência de que esse sofrimento seja materializado e evidenciado
pela exibição do corpo torturado em intermináveis recitações do medonho e do
terrível. Diante disso, como expressar esses ultrajes sem exacerbar a indiferença ao
sofrimento que é consequência do espetáculo entorpecente ou contender com a
identificação narcísica que oblitera o outro ou a lascívia que muitas vezes é a resposta
a tais exibições? 6 (HARTMAN, 1997, p. 3-4, t.n.).

A citação é longa, mas Saidiya Hartman consegue colocar numa encruzilhada de


questões a complexidade da posição do espectador entre testemunha e voyeur7 de imagens de
violência, ou para ser mais específica, “do sofrimento negro” (HARTMAN, 1997). Será que
não basta a pessoa ter sido vítima de linchamento, ter morrido, é preciso condená-la a uma
reiteração perpétua de sua condição de vítima por meio da imagem fotográfica? Não pretendo
apontar uma resposta irrecusável, é a pergunta quem tem mais valor, mostrar ou não e pra
quem? E porquê? Gonzales-Day responde recusando a “precariedade da empatia”. Em sua
obra, não se trata de novamente expor a vítima, mas sim seus perpetradores.
Em Transparência (2021), respondo preenchendo o espaço em branco deixado na
“remoção” do corpo da vítima de linchamentos, com os comentários dos vídeos no Youtube e
em matérias de jornais digitais, bem como com os textos que circularam em jornais de época.
Me interessa não apenas a remoção da vítima, mas a exposição dos discursos racistas que
sustentam as práticas de linchamento. Afinal, elas são as justificativas usadas pelos
perpetradores e espectadores para autorizar a prática da violência.

6
No original: “Are we witnesses who confirm the truth of what happened in the face of the world-destroying
capacities of pain, the distortions of torture, the sheer unrepresentability of terror, and the repression of the
dominant accounts? Or are we voyeurs fascinated with and repelled by exhibitions of terror and sufferance? What
does the exposure of the violated body yield? Proof of black sentience or the inhumanity of the "peculiar
institution"? Or does the pain of the other merely provide us with the opportunity for self-reflection? At issue here
is the precariousness of empathy and the uncertain line between witness and spectator. Only more obscene than
the brutality unleashed at the whipping post is the demand that this suffering be materialized and evidenced by
the display of the tortured body on endless recitations of the ghastly and the terrible. In light of this, how does one
live expression to these outrages without exacerbating the indifference to suffering that is the consequence of the
benumbing spectacle or contend with the narcissistic identification that obliterates the other or the prurience that
too often is the response to such displays?”
7
No texto, a autora realiza uma aproximação entre a ideia de espectador e a de voyeur, de um lado. E a testemunha,
do outro. Contudo, prefiro manter a distinção entre testemunha e voyeur, compreendendo ambos como
espectadores, no sentido de observam, presenciam algo. Sendo o voyeur aquele que assiste espetáculos. Tento
manter no termo espectador a encruzilhada entre a testemunha e o voyeur.

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Ver ou não ver, mostrar ou não mostrar, parece ser a primeira decisão a ser tomada ante
tal arquivo visual. Questão sem resposta, já que o efeito de mostrar ou não é incerto e depende
da relação entre a obra e o espectador. Relação incerta. Contudo, uma decisão precisa ser
tomada. Trabalhar com arquivos visuais de violência é lidar com essa série de questionamentos
elaborados por Hartman e qualquer solução parece ser sempre uma estratégia contextual e
provisória.

2. Conhecimento e temporalidades
Postais para Charles Lynch (2015) do Coletivo Garapa, Justiça e Barbárie (2017) de
Jaime Lauriano abordam as relações entre práticas antigas e contemporâneas de linchamento.
A fotografia, em ambas, é um elemento central para a exposição da reiteração dessa prática ao
longo do tempo, mais precisamente, entre os séculos XIX e XXI. Noutras palavras, ambas as
obras fazem do tempo o palco em que um certo roteiro de violência é reencenado.
Em relação ao séc. XIX, as obras dialogam com pinturas que mostram açoitamento de
escravizados8 em praça pública. No ensaio Notas de um percurso pela barbárie 9, um dos
produtos do projeto Postais para Charles Lynch (figura 1), o Coletivo Garapa menciona a fala
de Yvone Bezerra de Mello, moradora do Rio de Janeiro que em 2014 viu um jovem negro
linchado preso pelo pescoço a um poste: “Na hora, eu vi um quadro de Debret, aqueles negros
no pau de arara, amarrados no tronco para serem castigados a pauladas” (figura 2). Já em
Justiça e Barbárie (figura 3), uma das imagens expostas por Lauriano no vídeo é a pintura
Punições públicas: praça Santa Ana (entre 1827 e 1835) de Jean Moritz Rugendas [1802 –
1858].
Quanto ao séc. XX, novamente no ensaio Notas de um percurso pela barbárie, o
Coletivo Garapa discute cenas de linchamento de pessoas negras no início do séc. XX nos
EUA; a etimologia da palavra linchamento; a ausência de imagens no caso brasileiro, embora
saiba-se que há registros da prática desde o séc. XVI; o uso do pau-de-arara como ferramenta
de tortura pela ditadura militar brasileira em meados do séc. XX; práticas recentes
televisionadas e fotografadas nas décadas de 80 e 90; até o caso amplamente divulgado das
cenas de tortura dos prisioneiros de Abu Ghraib em 2003. O ensaio é peça fundamental para

8
No Brasil do séc. XIX se usava o termo escravo, como se fosse uma condição ontológica das pessoas negras e
racializadas. Mas, eu escrevo no séc. XXI para as pessoas de meu tempo, não compactuo com a escravidão, nem
com sua gramática, uso o termo escravizado, que informa um estado, uma situação imposta por alguns, mediante
o uso de violência, contra a existência de pessoas em sua maioria negras ou racializadas e pobres.
9
Disponível em: https://medium.com/mal-secreto/notas-de-um-percurso-pela-barb%C3%A1rie-5dfb35cc3929.

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compreendermos as escolhas formais realizadas pelo coletivo na produção do livro-objeto


Postais para Charles Lynch. Já que uma das principais questões levantadas pelo projeto é a do
espetáculo público da violência do linchamento, em especial no momento da circulação de
fotografias (os postais nos EUA do séc. XX) e as imagens compartilhadas no Youtube
contemporaneamente:
Durante o processo 10, no entanto, percebemos que a relação que nós tínhamos com
esses eventos era em grande parte mediada pela imagem (na tv, nas fotos e vídeos
compartilhados na internet), muito mais do que uma relação corporal, presencial. Isso
fez com que a nossa abordagem se direcionasse para um questionamento dessas
imagens, da relação e do papel da imagem da violência extrema, do linchamento
hoje 11. (COLETIVO GARAPA, 2015)

Lauriano, por sua vez, ao apresentar Justiça e Barbárie em seu site 12, aborda igualmente
a questão das fotografias de linchamentos nos EUA e das ausências de tais imagens no Brasil,
em relação ao mesmo período, acrescentando que:
Nas décadas de 1910 e 1920, nos Estados Unidos da América, eram comuns
fotografias mostrando corpos de afro-americanos enforcados por uma população
branca. Exibidos como troféus, estes corpos configuravam verdadeiros monumentos
que exaltavam a supremacia branca. Não obstante, eram exibidos em cartões postais
com a naturalidade de uma paisagem digna de ser exaltada. No Brasil, casos como
estes não eram comumente publicizados, pois durante este período a imagem que se
pretendia construir do país, era a de uma sociedade mestiça que vivenciava a
plenitude de uma democracia racial. (LAURIANO, 2017)

O artista enfatiza, tanto no texto inserido no vídeo Justiça e Barbárie, quanto no de


apresentação da obra no site, as relações entre a prática da violência colonial/racial contra os
corpos de pessoas negras escravizadas, as práticas de tortura da ditadura militar brasileira e as
práticas de linchamento contemporâneas:
Separados temporalmente por mais de 100 anos 13, e após diversas revoltas e
manifestações, as duas situações mostram como a violência contemporânea aos
corpos afro-americanos está diretamente ligada com as práticas de violência colonial:
linchamentos públicos, aprisionamento em postes e praças públicas, etc. Tais práticas
podem ser encontradas, também, nas sessões de tortura durante a ditadura civil-
militar brasileira. Algumas dessas sessões contavam com uma platéia de pessoas
oriundas dos mais diversos setores da sociedade civil, que através da compra de um
ticket, assistiam a sessões de estupro, choques, pauladas e outros diversos tipos de
atentados contra os direitos humanos perpetrados pelos agentes da ditadura civil-
militar brasileira. (LAURIANO, 2017)

10
Refere-se a pesquisa artística e produção da obra.
11
Entrevista disponível em: https://revistazum.com.br/bolsa/coletivo-garapa/.
12
Disponível em: https://pt.jaimelauriano.com/justica-e-barbarie.
13
Refere-se aos linchamentos praticados nos EUA nas décadas de 1910 e 1920 e às cenas contemporâneas de
linchamento.

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Em comum, as duas obras discutem cenas de linchamento em que o corpo violado é,


em sua maioria, negro e pobre. E associam tais cenas a imagens do passado colonial e ditatorial
brasileiro, propondo apreender as cenas de hoje não como inteiramente novas, ou
completamente diferentes do que aconteceu antes, mas como uma certa repetição ou
transferência14 de um gesto de violência colonial/racial, um padrão que se repete no tempo (DA
SILVA, 2016; AZOULAY, 2019; SEALY, 2019).
Faço um parêntesis para explicar que entendo o gesto como um tipo de movimento
corporal por meio do qual se manifesta uma ética15. Ele é simultaneamente expressão e
mensagem, afeto e enunciado. Estudar o gesto é ler as maneiras pelas quais nos relacionamos
com os demais existentes no planeta. Segundo Leda Maria Martins (2003, p.66), “o que no
corpo se repete, não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de
inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético,
filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc.”. Sendo assim, o gesto é manifestação de
conhecimento incorporado, ou mais especificamente, de um conhecimento ético incorporado.
Diana Taylor (2013) propõem a distinção entre o que seria da ordem do repertório e o
que seria material de arquivo. “O repertório encena a memória incorporada – performances,
gestos, movimento, dança, canto –, em suma, todos aqueles atos geralmente vistos como
conhecimento efêmero e não reproduzível” (ibid, p.49). Por sua vez, “os materiais de arquivo16
dão forma a prática incorporada de inumeráveis maneiras, mas nunca ditam totalmente a
incorporação” (ibid, p.51), excedendo em termos de duração os limites do repertório. Ambos,
arquivo e repertório se relacionam e se excedem, transmitindo histórias, conhecimentos e
valores de uma geração a outra.
Por sua vez, Elizabeth Edwards (2021) afirma que a fotografia (e acrescento o vídeo) é
uma máquina de inscrição das ações humanas em um suporte (leio fotos e vídeos como material
de arquivo). Ela torna as ações efêmeras praticadas, o repertório, duráveis, sugerindo
significação e visibilidade. A diferença do desenho, ou da pintura, a fotografia introduziria um

14
Leda Maria Martins (2003, p.66) afirma que a repetição “é sempre provisória, sempre sujeita à revisão, sempre
passível de reinvenção; repetição nunca se oferece da mesma maneira, mesmo quando sustentada pela constância
da transmissão”. Nesse sentido, a repetição deve ser compreendida mais como atualização do que como idêntica.
Hortense Spillers (1987) usa o termo transferência para afirmar que, na atualização de uma época a outra, a
eficácia dos significados repete os momentos iniciais. Diana Taylor (2013), por sua vez, chama de atos de
transferência essa transmissão intergeracional, que ocorre por meio de arquivos e repertórios.
15
Aqui me aproximo de Flusser, mas apenas no entendimento de que pelo gesto “se manifesta uma maneira de
estar no mundo” (FLUSSER, 2014, p.111).
16
Exemplos de materiais de arquivo: pinturas, fotografias, vídeos e textos, etc.

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“senso de autenticidade e de testemunho” em virtude de sua natureza tecnológica indicial. Por


fim, a pesquisadora conclui que a sobrevivência das fotos no tempo é também reveladora de
uma certa intenção e agência humana.
O fato é que a presença hoje desses materiais de arquivo visuais e, acrescento, a
combinação de imagens fotográficas, imagens de tempos pré-fotográficos e imagens
videográficas parece reforçar a atualidade do passado inscrito nesses materiais. Portanto, por
um lado, os gestos de violência, dos linchamentos, evento efêmero (repertório), adquirem uma
forma especifica ao serem materializados numa foto, por exemplo, e parecem se projetar sobre
o presente e sobre o futuro. Por outro lado, posso pensar as obras em si como “gesto
materializado” (FLUSSER, 2014, p.22) de seus criadores, já que por meio da recomposição
daquelas imagens, acrescidas de textos, elas expressam uma outra ética e realizam uma crítica
verbo-visual àquela maneira de estar no mundo.

FIGURA 1 – Páginas de Postais para Charles Lynch.


FONTE: reproduzido de Coletivo Garapa, 2015.

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FIGURA 2 – Pelourinho de Jean-Baptiste Debret [1768 – 1848].


FONTE: Wikipedia 17.

17
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Pelourinho.jpg.

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FIGURA 3 – frames de Justiça e Barbárie.


FONTE: reproduzido de Lauriano, 2017.

De volta às obras e às propostas por elas enunciadas, Postais para Charles Lynch (2015)
do Coletivo Garapa é um projeto artístico que se materializa num livro-objeto 18 e no ensaio já
mencionado. O livro-objeto é composto por páginas de fotografias (em sua maioria frames de
vídeos de linchamento extraídos do Youtube) 19 rasuradas; textos de comentários públicos sobre
os vídeos; o roteiro de vídeo de um linchamento fictício, Linchamento em Barra do Fogo; uma
fita magnética LTO de backup com os vídeos utilizados20; e um índice dos mais de 200 vídeos
pesquisados para a realização da obra. Tudo isso acoplado em uma caixa de aço-carbono. Os
fotogramas do livro receberam o seguinte tratamento estético21:
O cerne do trabalho é uma série de capturas de tela de vídeos selecionados. Essas
imagens foram então corrompidas por meio da manipulação desses arquivos em um
editor de texto, a partir do enxerto, no código, de comentários de ódio também
publicados no YouTube. Isso gera um defeito na imagem, conhecido como glitch,
que acaba criando um ruído visual na leitura (seja a leitura do software ou do
observador) 22. COLETIVO GARAPA, 2015

De modo que o corpo da vítima, o mais exposto nos vídeos de linchamento, fica
encoberto em muitas das imagens, rasurado pelo ruído inserido. De certa forma, é como se o
ruído ao mesmo tempo que violasse o fotograma, borrando seu conteúdo, protegesse
simbolicamente a vítima de mais uma exibição pública de seu sofrimento. O que faz sentido

18
Disponível em: https://issuu.com/fehlauer/docs/postais_para_charles_lynch.
19
Leio os frames de vídeo do livro Postais para Charles Lynch como fotografias, já que no livro se comportam
como imagens fixas, fotográficas.
20
A fita conserva os vídeos no longo prazo, mas o acesso só é realizado a partir de um equipamento específico.
21
O making-off de produção da obra está disponível em: https://vimeo.com/140832075.
22
Disponível em: https://revistazum.com.br/bolsa/coletivo-garapa/.

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uma vez que, conforme mencionado no ensaio, uma das intenções do coletivo era pôr em
questão a circulação dessas imagens, como espetáculo “da dor dos outros”, parafraseando
Susan Sontag (2003) ou, como já mencionado, uma vez que esse outro é quase sempre negro e
pobre, “do sofrimento negro” (HARTMAN, 1997).
Assim, se os ruídos escondem ou camuflam as imagens das vítimas, dificultando uma
reiteração simbólica da violência; os textos, tanto os comentários, quanto o roteiro, atuam na
exposição da violência. Lê-los é imaginá-los. E entre o que é dito e o que é difícil de enxergar
por estar borrado, rasurado, a obra parece me direcionar menos para uma “empatia precária”
com a vítima e mais para uma reflexão sobre o repertório da prática do linchamento.
Segundo Taylor (2013, p.60), os roteiros são “paradigmas para a construção de sentidos
que estruturam os ambientes sociais, comportamentos e consequências potenciais”. A autora
ainda afirma que eles não são inteiramente novos, pois são portadores de repetições que se
acumulam com o tempo. Eles trazem à tona, de novo, os velhos dramas do passado. Ao ler o
roteiro Linchamento em Barra do Fogo fabulado nas últimas páginas do livro-objeto, me vejo
diante dos indicadores da cena, dos atores envolvidos23, dos gestos e movimentos tais como
devem ser realizados pelos atores, das narrativas a serem verbalizadas e do lugar em que será
encenado mais um linchamento. A consequência potencial desse roteiro ficcional é o
linchamento da vítima, um homem negro jovem. “Simultaneamente montagem e ação, os
roteiros moldam e ativam os dramas sociais” (ibid, p.61).
De um lado, o roteiro fabulado me leva a, simultaneamente, imaginar a violência e
conhecer o padrão comportamental dos atores envolvidos. Do outro, o ensaio Notas de um
percurso pela barbárie me apresenta visualmente uma história de imagens de linchamento que
se atualizam ao longo do tempo, alicerçadas por textos que indicam o percurso da pesquisa
histórica/social realizada pelo coletivo. Enquanto o ensaio me conta do passado; as fotografias
e os comentários do livro-objeto me contam do presente; e o roteiro mostra como passado e
presente podem vir se repetir no futuro, basta reencená-lo.
Justiça e Barbárie (2017), por sua vez, é um vídeo de 2m31s com o uso de uma única
fotografia de uma cena de linchamento. O vídeo inicia mostrando detalhes da imagem 24, cada

23
linchado, linchadores, instigadores, policiais, advogado de acusação, apaziguadores, espectadores e o câmera
que filma o evento do linchamento.
24
À diferença do Coletivo Garapa em Postais para Charles Lynch, Jaime Lauriano opta por expor detalhadamente
a cena do linchamento. Contudo, a fotografia que escolhe expor no vídeo mostra mais os espectadores presentes
à cena do que vítima, escondida atras do poste em primeiro plano.

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frame é legendado por comentários de leitores de jornais que naturalizam os casos de


linchamento. Quando a imagem abre para o plano geral, as legendas parecem assumir o papel
de um diálogo que poderia estar ocorrendo entre os espectadores que vemos observando um
homem negro amarrado a um poste25. Em seguida, o vídeo apenas mostra no meio da tela preta
uma sequência de textos em letras brancas, os quais reproduzimos:
A imagem utilizada neste vídeo retrata apenas um caso de linchamento ocorrido no
Brasil.
As legendas contidas neste vídeo foram retiradas de comentários em reportagens
digitais sobre caso de “justiçamento popular” em diversas cidades brasileiras.
Essas reações mostram como a violência contemporânea, aos corpos classificados
como marginalizados, está diretamente ligada com as práticas de violência colonial e
ditatorial no Brasil. (LAURIANO, 2017)

Em seguida, a reprodução da pintura Punições públicas: praça Santa Ana aparece. O


texto citado realiza uma ponte entre a fotografia do linchamento de um homem negro no séc.
XXI, e a pintura do açoitamento de um homem negro no séc. XIX, ao menos 180 anos separam
tais imagens interligadas simbolicamente no vídeo de Lauriano. Leio ambas as imagens como
cenas de um roteiro de linchamento e observo como seus elementos constituintes se
correspondem e diferenciam.
Na imagem do séc. XIX, o açoitamento ocorre em espaço público, uma praça.
Escravizados e escravizadores, a coletividade do local, observam a cena. Um homem negro
escravizado de torso nu, o feitor, açoita outro homem negro escravizado de torso nu, que está
amarrado com cordas pelas mãos a um poste de madeira. No primeiro plano vejo ainda um
homem negro escravizado caído no chão sendo aparado por um outro. Roupas também
aparecem no primeiro plano caídas ao chão.
Na imagem do séc. XXI, no primeiro plano, um homem negro de torso nu está de costas
para a câmera, sentado no chão, amarrado a um poste. É provável que se encontre morto. No
fundo da cena, uma multidão se aglomera atrás de uma fita de proteção policial que cerca o
espaço em que a vítima está: a coletividade do local observa a cena. Vejo um carro da polícia
civil, a farda de um policial. Braços levantando a fita de isolamento, é o carro da polícia ou
está chegando ao local ou está abrindo caminho para a passagem de outro veículo.
Estabeleço, então, entre as imagens algumas correspondências imediatas: a presença de
uma vítima, homem negro (escravizado/pobre); de uma coletividade que assiste a cena no local;

25
Trata-se de imagem do linchamento que resultou no assassinato de Cleidenilson Pereira Silva no Maranhão no
ano de 2015. Mais informações em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-linchamento-como-sintoma-
2154/.

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de alguns instrumentos tecnológicos auxiliares da violência (corda e poste de madeira/corda e


poste de concreto); e da localização pública do evento (praça/rua). Contudo, gostaria de
explorar algumas diferenças.
Quanto à imagem do séc. XIX, pela época em que a pintura foi realizada, é sabido que
o feitor escravizado açoitava a mando de seu senhor, escravizador, ex-colonizador e, àquela
época, cidadão do recém Império do Brazil. Nesse contexto, o gesto do feitor era de pouco ou
nenhum espaço de decisão, já que atuava como instrumento da vontade do senhor26 e qualquer
atitude contrária a esta poderia transferi-lo para a posição da vítima. O agressor e sua vítima
são visíveis na cena, o que pode indicar a licitude da prática do açoitamento público do
escravizado à época em que a pintura foi realizada 27. Na fotografia do séc. XXI, os linchadores
são figuras indeterminadas, podem estar presentes ou não entre os espectadores que vejo na
fotografia. O linchamento é uma prática de violência que se caracteriza pela dificuldade de
determinar os indivíduos participantes:
Por ser uma ação coletiva, é difícil apontar, por exemplo, quem foi o autor do golpe
fatal (o que caracterizaria o homicídio); por ser espontâneo, é geralmente impossível
determinar o nível de envolvimento de cada participante (o que diferenciaria
agressores de cúmplices. (COLETIVO GARAPA, 2015)

O linchamento não é um crime tipificado no código penal brasileiro. Não há estatísticas


oficiais sobre sua prática. As pesquisas realizadas sobre o tema no país se valem principalmente
de noticiários de jornais e de vídeos e fotografias publicados em plataformas digitais28. O Brasil
já não tem mais, na forma da lei, as figuras do escravizado e do senhor, tampouco punições

26
Uma outra leitura possível é que o açoitamento seja uma punição aplicada pelos tribunais do império. Neste
caso, o feitor executa a vontade direta do Estado. Em quaisquer das situações, ele atua em conformidade com a
legislação criminal brasileira.
27
O Código Criminal do Império do Brazil de 1830 diz que “Art. 14. Será o crime justificável, e não terá lugar a
punição delle: [...] 6º Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a
seus escravos, e os mestres a seus discipulos; ou desse castigo resultar, uma vez que a qualidade delle, não seja
contraria ás Leis em vigor”. Em que pese a ideia de “castigo moderado” do código, é sabido que as punições
poderiam inclusive levar o escravizado à morte física tamanha a brutalidade de sua aplicação. Noutra passagem,
o código, ao mencionar as penas, diz que “Art. 60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital,
ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a
trazel-o com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar”. Este último artigo só foi revogado cerca de 50
anos depois do momento em que a pintura de Rugendas foi realizada, em 1886 pela Lei 3.310. (Revogado pela
Lei 3.310, de 3.310, de 1886). (grifos meus). O Código criminal está disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm.
28
Menciono duas relevantes pesquisas sobre a questão dos linchamentos no Brasil: o livro Linchamento – a justiça
popular no Brasil (2015) de José de Souza Martins e a dissertação de mestrado em sociologia 30 anos de
linchamento na região metropolitana de São Paulo 1980 – 2009 (2012) de Ariadne Lima Natal.

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baseadas em violência física 29. E com isso, a diferença parece colocar um impasse para a
relação entre imagens proposta na obra. A Lei que possibilitava a violência mais antiga já não
existe para possibilitar a mais recente. Volto às imagens, se antes o agressor era uma figura
individual e determinada e separadas dos espectadores (pintura); agora, os agressores são
vários e indeterminados na massa de espectadores (fotografia). Se antes, podia-se argumentar
que o agressor agia de acordo com a vontade do senhor ou do Estado; agora, o que se pode
dizer é que os agressores agiram por decisão própria.
Mas esse impasse é só uma limitação cognitiva do pensamento que se baseia
exclusivamente na lógica da linearidade temporal (sequencial) e sua “presunção de
separabilidade” (DA SILVA, 2016, p.408) entre o passado, o presente e o futuro. A partir dessa
lógica, pode-se argumentar que a cena do açoitamento se trata de uma punição legítima na
forma da lei da época, portanto não é linchamento, termo que não era de uso corrente no país30.
Enquanto que a fotografia mostra a cena de uma punição ilegítima na forma da lei, podendo
ser considerada como linchamento, termo já existente 31. Por serem momentos espaço-
temporalmente distintos, pelas condições de possibilidade (em especial a lei e seus executores)
serem distintas, são eventos que não se relacionam. Ora, para se chegar a esse tipo de conclusão
é preciso observar apenas as diferenças e obliterar todas as correspondências. Cria-se, assim,
uma ficção puramente abstrata de que aquele açoitamento do passado não possui nenhuma
correspondência com os linchamentos do agora.
Uma outra leitura possível, aceitando que eles se relacionam, poderia ser a de que são
eventos separados no tempo, sendo o mais recente um momento no desenvolvimento, ao longo
do tempo, do mais antigo. O gesto de violência seria a expressão da liberdade do ser humano
se autodesenvolvendo no tempo. Essa versão progressista transcendental seria contraditória já
que violência do passado tinha respaldo na lei (a sociedade do passado que se autodeclarava
como “civilizada” admitia institucionalmente tal violência) e a do presente não. Também se
poderia fazer a leitura de que o linchamento contemporâneo é sim um resquício do passado,
pois os modos de conduta humana possuem durações muito longas e, portanto, se modificam

29
O que não significa que punições físicas não sejam praticas por agentes do Estado, vide os inúmeros casos de
chacinas, assassinatos e torturas praticados por policiais no exercício da função.
30
“A origem do termo linchamento é controversa, mas acredita-se que decorra da atividade do fazendeiro Charles
Lynch (1736 – 1796), que aplicava sua própria lei – a Lei de Lynch – para julgar e punir, sem autorização do
Estado, os insurgentes legalistas que apoiavam a coroa britânica” (NOGUEIRA, 2017, p. 14).
31
Disponível em: https://www.dicio.com.br/linchamento/

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no longo prazo. Numa e noutra leitura, a diversidade das maneiras de os seres humanos estarem
no mundo, de se relacionarem uns com os outros e com o entorno, são pensadas a partir de um
“eixo temporal comum” (KOSELLECK, 2014, p.272): “desde então, os diferentes Estados e
culturas podem ser medidos e comparados por meio de uma cronologia comum” (id.). Isto é,
ainda quando se considera a multiplicidade dos tempos, um eixo hierárquico os ordena.
A prática de linchamento no Brasil contemporâneo poderia ser então reveladora do
momento civilizacional da sociedade brasileira ante outras classificadas como mais avançadas
nessa régua temporal, moral, por exemplo. Ou, numa hipótese não homogeneizadora do que
seria a sociedade brasileira, as práticas de linchamento apenas revelariam o momento no tempo
da coletividade que o praticou. De uma ou outra forma, a classificação temporal é sustentada
pela ideia de um tempo linear e progressista, produtor de indivíduos e coletividades
anacrônicos. Foram essas leituras temporais lineares e hierárquicas que, entre os sécs. XVIII e
XIX, ajudaram a produzir seres humanos racializados “primitivos”, “selvagens” e/ou
“patológicos” em relação aos supostos sujeitos “civilizados”, os quais ocupavam a linha do
tempo no presente e tinham seu lugar garantido no futuro 32 e, aqui, uma digressão se faz
necessária.
Racked & Dispatched (2017, p.8, t.n) afirmam sobre a escravidão que: “o escravo é
objetificado de tal forma que legalmente se torna um objeto (uma mercadoria) a ser usado e
trocado”33. Na fase hegemônica mercantil do capital, os escravizados eram considerados pelos
colonizadores como objetos, bens físicos, pertencentes ao patrimônio do colonizador. Denise
Ferreira da Silva (2019) lembra que o trabalho do escravizado se quer entrava no computo do
valor da mercadoria, já que anacronicamente considerado como um momento de “acumulação
primitiva de capital”, portando anterior ao capital em si. O que é mais uma evidência da
obliteração da existência negra pela lógica anacrônica e hierárquica da temporalidade linear no
pensamento ocidental.
De volta ao objeto, estar escravizado significava estar “socialmente morto”
(PATTERSON, 2008), pois a “inclusão na humanidade sendo baseada no reconhecimento

32
Sobre o papel do pensamento linear e da concepção de tempo linear, cronológico, na produção científica de
seres humanos racializados recomendo os livros Toward a global idea of race (2007) de Denise Ferreira da Silva
e Underrepresentation: the racial regime of aesthetics (2018) de David Lloyd.
33
No original: “the slave is objectified in such way that they are legally made an object (a commodity) to be used
and exchanged” (RACKED & DISPATCHED, 2017, p.8, t.n)

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social 34, volição, condição de sujeito e a valorização da vida” 35 (RACKED & DISPATCHED,
2017, p.8, t.n) não se aplicava a objetos. Para compreender a escravidão é preciso ter em mente
que a principal alternativa para as pessoas traficadas de África para o Brasil na condição de
escravizadas, ou para aquelas nascidas aqui e capturadas para esse estado de existência é a
morte:
A condição de escravidão não mitigava ou eliminava a perspectiva da morte. A
escravidão não era um perdão; era, particularmente, uma permuta condicional. A
execução era suspensa enquanto o escravo concordasse com sua impotência. O
senhor efetuava essencialmente um resgate. O que ele comprava ou adquiria era a
vida do escravo, e restrições à capacidade de o senhor destruir arbitrariamente seu
escravo não enfraqueciam seu direito sobre essa vida. Como o escravo não tinha uma
existência socialmente reconhecida fora do domínio do senhor, ele se tornava uma
não-pessoa. (PATTERSON, 2008, p.24)

A abolição da escravidão no séc. XIX não significou o fim da morte social. O que houve
foi uma reorganização dos modos de dominação: “o ex-escravo tornou-se o 'sujeito' negro
racializado, cuja posição foi marcada epidermicamente”36 (RACKED & DISPATCHED, 2017,
p.8, t.n). Denise Ferreira da Silva (2007, 2019) argumenta sobre essa transformação do
escravizado no sujeito racializado como negro ao explorar como a categoria analítica de raça,
desenvolvida entre os sécs. XVIII e XIX pelos estudiosos da Ciência do Homem na Europa
produziu uma das principais ferramentas de dominação social ainda em uso, a diferença racial.
Esta possui a função social de “transubstancializar os efeitos de mecanismos coloniais de
expropriação em defeitos naturais (intelectuais e morais37) que são sinalizados por diferenças
físicas, práticas, instituições etc.” (DA SILVA, 2019, p.35). O tempo linear participa da
ferramenta na medida em que serve de régua classificatória entre os seres humanos
racializados, pertencentes ao passado da humanidade, e aqueles, os civilizados 38 ou
caucasianos, a quem é destinado o futuro, nessa dialética letal 39:

34
Achille Mbembe (2017, p.199) informa como o afeto do ódio é inibidor das relações de reconhecimento.
35
No original: “inclusion in humanity being predicated on social recognition, volition, subjecthood, and the
valuation of life” (RACKED & DISPATCHED, 2017, p.8, t.n)
36
No original: “the former slave became the racialized Black ‘subject’, whose position was marked epidermally”.
37
De modo que na sociedade, “o comportamento patológico é frequentemente apresentado com ‘autenticamente’
negro” (GORDON, apud. FANON, 2008, p.15).
38
Em Under representation (2018), David Lloyd esclarece como as pessoas racializadas vem sendo assimiladas
como civilizadas no âmbito do capitalismo global, apesar de sua cor. Aceita-se o racializado na medida em que
este corrobore com as ideias neoliberais do capital global. Contudo, o movimento de assimilação não é total, já
que o “defeito de cor” permanece como marca de violência. Para o filósofo, o corpo negro simboliza a
possibilidade de destruição do mundo erguido por meio da colonização.
39
Segundo Franz Fanon (2008, p.90): “a inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia.
Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado”.

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Em algum período futuro, não muito distante, medido por séculos, as raças humanas
civilizadas quase certamente exterminarão, e substituirão, as raças selvagens em todo
o mundo. Ao mesmo tempo, os símios antropomorfos [...] serão sem dúvida
exterminados. A ruptura entre o homem e seus mais próximos aliados será mais
ampla, pois irá intervir entre o homem em um estado mais civilizado, como podemos
esperar, até mesmo do que o Caucasiano, e algum macaco tão baixo quanto um
babuíno, em vez de como agora entre o negro ou Australiano e o gorila 40. (DARWIN,
[1871] 1889, p.156, t.n.)

Pois bem, é para a matéria concreta desses corpos linchados e a repetição do espetáculo
de seu sofrimento em espaço público (físico e virtual) que me volto agora. A carne que sofre
a brutalidade, que sangra, treme, perde às forças e morre, no caso brasileiro, retratado nas duas
obras, é quase sempre negra. Portanto estamos lidando, no passado, com os escravizados, e no
presente com seus descendentes racializados. O que as obras parecem propor é (re)pensar o
linchamento a partir da matéria bruta desse corpo violado. A mutilação, a tortura e morte do
corpo escravizado são possíveis porque, socialmente morto, esse corpo é lido pela sociedade
colonizadora como carne, a qual poder ser marcada pelo chicote e pelas diversas substituições
materiais ou simbólicas deste último (SPILLERS, 1987).
E, com isso, retorno às das duas imagens de Justiça e Barbárie. Para analisar o eco de
uma na outra é preciso levar em consideração as substituições simbólicas de que fala Spillers
(1987) e ler as correspondências (DA SILVA, 2016; BENJAMIN, 2018). Faço isso por meio
da observação dos roteiros de violência colonial/racial e de seu repertório de gestos, frutos
tanto de conhecimento incorporado, quanto de memórias arquivais. O que me leva a pensar
doravante a pedagogia violenta do açoitamento público do escravizado.
A punição física pública do escravizado, no contexto colonial servia para garantir a
manutenção da ordem vigente. Pune-se ao infrator e ao mesmo tempo educa-se à coletividade
de escravizados presentes, muitas vezes obrigados a assistir a cena da tortura, a não infringir a
lei do senhor, já que o risco iminente é o castigo físico e, eventualmente, a morte daí decorrente.
O ensinamento possui ao menos dois aspectos, um de ordem afetiva, o temor de que aconteça
o mesmo consigo; e outro de ordem cognitiva, a certeza de que a corpo negro pode ser violado
sem que daí decorra uma crise ética na sociedade e/ou a punição dos agressores. Noutras

40
No original: “At some future period, not very distant as measured by centuries, the civilized races of man will
almost certainly exterminate, and replace, the savage races throughout the world. At the same time the
anthropomorphous apes […] will no doubt be exterminated. The break between man and his nearest allies will
then be wider, for it will intervene between man in a more civilized state, as we may hope, even than the Caucasian,
and some apes as low as a baboon, instead of as now between the negro or Australian and the gorilla”.

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palavras, ensina-se que a violência contra corpos negros é tolerável, já que socialmente mortos,
suas vidas não são passíveis de luto.
E aqui reside a perversidade maior para as pessoas negras e racializadas presentes à
cena, obrigadas a aprender a ver o mundo e a si próprias pelos olhos e mente do colonizador
(FANON, 2008). Isto implica desenvolver ódio por si mesmo, a não se reconhecer (MBEMBE,
2017, p.199). O ódio é, nesse sentido, o afeto necessário tanto para os açoitamentos, quanto
para os linchamentos contemporâneos, já que inibidor do reconhecimento social.
Assim, os linchamentos contemporâneos ratificam a morte social e a condição de carne
do sujeito negro, “numa eficácia de significados que repetem os momentos iniciais”
(SPILLERS, 1987, p.67, t.n) do açoitamento público do escravizado. E, se até aqui atenho-me
ao repertório, à pedagogia do evento efêmero do açoitamento, que se repete/transfere no tempo.
Gostaria agora de abordar a inscrição desse evento em materiais de arquivo. Começo pelo
comentário de Lilia Schwarcz (2021) sobre a imagem de Debret (figura 2):
Imagens não são simples ilustrações. Ao contrário, conformam e confirmam valores
e visões de mundo. [...] Nela 41 vemos um escravizado sendo chibatado por um feitor
negro. Parcialmente desnuda, a vítima aparece de forma passiva, assim como os
demais escravizados. Alguns assistem à cena de cabeça baixa —aguardando a
punição —, enquanto outros já se encontram no chão depois de serem seviciados. A
mensagem alude à perfeita ordem. (SCHWARCZ, 2021) 42

Ao reforçar a passividade dos espectadores negros presentes à cena de açoitamento, a


imagem de Debret procurava ensinar como as pessoas negras deveriam se comportar naquela
sociedade. A pintura materializa uma certa maneira de “ver o mundo e viver nele” (GORDON,
apud. FANON, 2008, p.15). E sua reprodução fotográfica e disseminação nas redes de internet
hoje produz um duplo efeito contraditório. De um lado permite conhecer aquele passado,
refletir sobre ele, criticá-lo e analisar seus ecos no presente. O estudo dos gestos materializados
na pintura e a observação dos roteiros acionados exemplificam isso. De outro, não deixa de
ser mais uma reiteração do espetáculo do sofrimento negro. Se junta ao imenso conjunto de
fotografias e vídeos de linchamento contemporâneos que em coro reverberam que a carne negra
pode ser violada pois o sujeito é prefigurado como socialmente morto. Essa também é uma
pedagogia que garante a continuidade da violência colonial/racial no passado, no presente e no
futuro.

41
Refere-se à imagem de Debret (figura 2).
42
Disponível em: https://www.instagram.com/p/CUd7VWhNmoC/.

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Essas maneiras de ver, estar e viver o/no mundo marcadas pela violência colonial/racial
se repetem/transferem entre as gerações, por meio de arquivos e repertórios. A cada novo
linchamento, portanto, um roteiro de violência colonial/racial, prescrito há muito tempo, é
reencenado. E, com isso, passo a afirmar que as duas obras procuram criar imagens
antidialéticas daquilo que Denise Ferreira da Silva (2016) chama de eventos raciais.
“A violência racial é uma condição sine qua non para o capital global, isto é, trata-se
de uma condição de possibilidade de acumulação de capital sob a forma hegemônica do capital
financeiro” (DA SILVA, 2016, p.407). A filósofa em seu texto refere-se a exemplos de
violência colonial/racial vinculados à proteção do patrimônio do capitalista e praticados por
policiais. Me aproprio do termo para pensar a todo os eventos de violência colonial/racial
aprendidos e transferidos entre as gerações, tais como os linchamentos.
O evento racial acontece fora da lógica do tempo linear, cronológico. É um padrão que
se repete em diferentes escalas espaço-temporais. Romper com esse padrão 43 é realizar a cada
agora uma escolha ético-política de pôr fim a uma certa maneira de estar no mundo, de existir
e de se relacionar com os outros. É rasgar o roteiro e recusar-se a encená-lo. De volta às obras,
entendo que elas não se compõem a partir da lógica da temporalidade linear. Para não romper
de vez com a ideia de tempo, posso argumentar que o que percebo nas obras é a “imobilidade
na dialética” (BENJAMIN, 2018, p.768) e, aqui, argumento que as obras procuram compor
imagens dialéticas.
Ou, porque não desejamos apenas a imobilidade, mas a sim a destruição dessa dialética
letal e a abertura para um mundo em que a liberdade seja figurada pela diversidade, afirmo
doravante que as obras procuram compor “imagens antidialéticas” (SILVA, 2016). E o que fiz,
quando da leitura dessas obras, foi tentar analisar suas imagens a partir do pensamento
composicional44 (DA SILVA, 2016), uma vez que o pensamento regido pela temporalidade
linear não me parece dar conta da repetição incessante dos eventos raciais, dos linchamentos:
Ao deslocar o pensamento temporal, que impõe e necessita da presunção de
separabilidade, passo a ler os ‘tempos de outrora’ e o ‘lá longe’ como constitutivos
daquilo que está acontecendo aqui e agora e daquilo que está para acontecer. [...] Ler
sempre ‘o que acontece’ como uma composição (decomposição ou recomposição),
sempre como já um momento, que é uma composição singular, daquilo que também
constitui ‘o que aconteceu e o que ainda está para acontecer’. [...] Quando se lida com
o semelhante, inevitavelmente se procura a simetria, isto é, as correspondências. Ao

43
A filosofa brasileira usa o termo padrão. Neste artigo dei preferência ao termo roteiro, tal como desenvolvido
por Taylor (2013). Contudo, compreendo que a ideia de padrão e roteiro confluem numa mesma direção, ainda
que as autoras partam de lugares distintos.
44
Inspirada na ideia de imagem dialética de Walter Benjamin.

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esperar simetria - ou procurar por semelhanças -, é possível imaginar (recompor) o


contexto sob observação como uma figura fractal. Isto é, em vez de procurar conexões
causais (lineares), o pensamento composicional busca identificar um padrão que se
repete em diferentes escalas (DA SILVA, 2016, p. 408-409).

Assim, o que as obras verbo-visualmente me contam, ao abordar os linchamentos, é a


história de um padrão de violência colonial/racial que se repete no tempo. A ideia de roteiro
como ferramenta metodológica da análise de performances sociais, proposta por Taylor (2013),
me ajudou a localizar os elementos que participam do padrão e suas atuações: os agressores, a
vítima, os espectadores, o espaço público, etc. O corpo violado é transformado nesse arquivo
visual sangrento, pinturas, fotografias, vídeos: objetos de celebração? Lascívia?
Entorpecimento? Identificação narcísica? Empatia precária? Angustia? Dor? Crítica?
Aprendizado? Que tipo de aprendizado? Longe de responder, me interessa o que a
complexidade de questões coloca para quem lida com esses arquivos violentos. É deles que me
ocupo agora, para abordar os papéis da fotografia.

3. Sobre fotografia
Como arquivo, tanto as pinturas do séc. XIX, quanto as fotografias de linchamento do
séc. XX e XXI 45 e os vídeos do Youtube salvaguardam as cenas efêmeras dos eventos
singulares para observação noutros espaços-tempos. Se a fotografia analógica tornou possível
acessar uma reprodução da pintura; hoje, a fotografia digital e as redes de internet possibilitam
a circulação virtual infinita dessas reproduções. Como esses arquivos visuais serão utilizados
é o que me interessa principalmente. Penso doravante a fotografia não apenas como uma
máquina de inscrição ou um material de arquivo, mas também como uma ferramenta de atuação
ético-política que manifesta uma certa maneira de estar no mundo. No séc. XX nos EUA,
cidadãos americanos colecionavam postais de linchamento de pessoas negras como troféus,
esse hábito durou décadas, e é sintomático de uma maneira de estar no mundo, por exemplo.
Os frames e fotografias de linchamentos contemporâneos presentes nas obras podem,
portanto, desempenhar diferentes papéis. A fotografia usada em Justiça e Barbárie foi feita por
um fotojornalista, num momento posterior ao ato do linchamento, e é justaposta a uma
discussão sobre “justiçamento popular” naquele jornal46. A mesma imagem, na obra, me leva
a refletir as relações entre os linchamentos de hoje e as violências coloniais/raciais do séc. XIX.

45
Fotografias diversas de linchamentos no séc. XX aparecem no ensaio Notas de um percurso pela barbárie do
Coletivo Garapa.
46
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-linchamento-como-sintoma-2154/.

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Em Postais para Charles Lynch, os fotogramas que compõem a obra foram retirados de vídeos
no Youtube. Quem filmou estava presente à cena de linchamento enquanto acontecia e
escolheu fazer a inscrição fílmica e não socorrer a vítima, por exemplo. Por que essa escolha
foi feita? O que o gesto de filmar nesse contexto significa? O compartilhamento dos vídeos no
Youtube mantém semelhanças com o compartilhamento dos cartões postais nos EUA do séc.
XX? Seria uma substituição simbólica do mesmo gesto? Em Postais para Charles Lynch a
resposta parece ser que sim.
Inscrição de eventos efêmeros, arquivo e circulação. Três ações desempenhadas pela
fotografia ao dar forma a maneiras de ver/estar/viver o/no mundo. Fotografias quando tornadas
públicas em um dado contexto dialogam com seus espectadores: “isso deve ser visto assim” ou
“poderia ser visto assim” ou ainda “como você vê isto?”. Seu noema é a relacional. Quando a
relação proposta é violenta, a exemplo dos vídeos e comentários coletados pelos artistas em
sites e redes sociais, o que se aprende por meio dessa pedagogia visual colonial/racial pode se
materializar, de novo, em gestos letais inscritos na carne negra.
Por outro lado, essas mesmas fotografias tornam possível essa leitura dos padrões de
violência colonial/racial através do tempo. E essa parece ser a potência desses matérias de
arquivo. Explico. O gesto artístico que decompõem fotografias e vídeos de seus contextos de
origem e os recompõem noutro é, como todo gesto, ético-político-estético e, no caso das obras,
sua materialização parece expressar e enunciar que a violência colonial/racial não é um dado
do passado, pois ainda organiza nossas relações com os demais existentes do planeta e, mais
especificamente, ainda marca o corpo negro para a morte. Sendo assim, conheci, por meio
dessas obras, histórias de linchamentos contra a flecha do tempo.

Referências

AZOULAY, Ariella. Potential History: unlearning imperialism. London, New York: Verso, 2019.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
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KOSELLECK, Reinahrt. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Editora Contraponto; Puc-
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