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Desconstruindo o Desconstrucionismo (ou Seja Lá o

que Aconteceu com os Estudos Feministas)


Kathleen Barry
Tradução por Aline Rossi: https://www.medium.com/@feminismoclasse

No início, era o sexo. Sexo como em masculino e feminino, sexo como em investidas sexuais, e
sexo como na reprodução. Sexo era biologia como destino. Essa era a versão patriarcal. Então,
chegaram as feministas.

As feministas desafiaram o sexo patriarcal e demonstraram que o sexo não é "natural", o sexo
(como a reprodução) e o sexo (como sendo sexual) são o que são por causa das nossas
referências e uso. Entre todas as formas que o sexo poderia ser percebido e usado, o sexo é
usado para oprimir; O sexo (como em machos e fêmeas) é construído em uma hierarquia de
dominação masculina.

As feministas redefiniram o que o patriarcado chamou de "sexo" e o chamou de "gênero". Se a


definição patriarcal de "sexo" era inerente, fixa, natural e biologicamente determinada, no
conceito feminista de gênero toda a gama de rótulos sexuais, atribuições, comportamentos e
atos são socialmente moldados pelo significado que o patriarcado lhes dá; socialmente
moldados para formar classes sexuais (ou seja, as mulheres não são apenas oprimidas como uma
classe sexual). Agora, as feministas não inventaram isso; simplesmente observamos e nos
conscientizamos do que o patriarcado fez ao sexo. Essa análise da classe sexual tornou-se o
fundamento da teoria feminista: a definição social do sexo era a condição política das mulheres.

O que queríamos dizer com “gênero” não mais enlaça o destino da mulher à sua “natureza” ou
a qualquer “desejo sexual” masculino. Gênero significava a possibilidade de mudar,
autodeterminação, até libertação. Não é de se espantar que o patriarcado reagisse. O direito
religioso estava determinado a reduzir as mulheres a uma "função natural" – fazer bebês. A
esquerda secular fez campanha incansavelmente para reduzir as mulheres a sua definição de
"função natural" das mulheres – disponibilidade sexual (como na defesa dos liberais sexuais da
pornografia). O conluio da esquerda e da direita tem sido sistemático.

Infelizmente, a resposta feminista foi mista. Continuamos organizando e caminhando para


proteger nossos direitos reprodutivos. Mas as feministas que lutam contra a redução das
mulheres nas funções pornográficas são recebidas com amarga hostilidade das mulheres
(dentro do movimento) que defendem o liberalismo sexual. Tais debates enfureceram todo o
movimento; a academia não foi uma exceção. O feminismo mudou-se para a universidade ligada
à ação feminista nas ruas: manifestações, manifestos, cirandas, discursos, audiências legislativas
e pesquisa, o feminismo focado na vida das mulheres para conectar a teoria à política, a pesquisa
à ação.

Encontramos um terreno comum, descobrimos que o gênero era condição de classe das
mulheres, que o sexismo e o racismo eram indissociáveis. O conhecimento feminista
revolucionário foi posto em movimento.

Quase imediatamente, a reação se estabeleceu: os estudos feministas começaram a se tornar


"Estudos da Mulher". Muitas acadêmicas afastaram-se da ação política, já que suas pesquisas
começaram a se afastar de um feminismo enraizado nas vidas reais das mulheres, e elas não
queriam mais se chamar feministas, pois isso poderia comprometer suas carreiras. A pesquisa
sobre Estudos da Mulher deixou de usar o gênero para significar como o poder patriarcal forma
sexo e classe sexual. A palavra desapareceu e o gênero já não tinha nada a ver com a sexualidade.

"Desejo sexual" retornou à biologia como "destino das mulheres". Não houve um evento único,
importante e histórico, mas os artigos que sustentaram a análise feminista do gênero foram
rejeitados para publicação. Os subsídios para pesquisas baseadas nessa teoria foram negados
(assim funciona o controle social do conhecimento). Muitos programas de Estudos da Mulher –
e alguns apoiantes corajosos – distanciaram-se da maioria do ativismo feminista.
Inevitavelmente, a teoria se separou da política. A pesquisa se estreitou para a "ciência
objetiva", que se distanciou das experiências das mulheres. O processo de desfeminismo dos
Estudos da Mulher estava em andamento.

Muitos programas (certos de terem desconectado o sexo do gênero) mudaram de nome para
"estudos de gênero". No entanto, gênero, fomos alertadas, não mais incluía o conceito de classe
sexual e não era mais uma redefinição do que o patriarcado chamava de natural, inevitável
"sexo". Da mesma forma, o racismo não incluiu mais o sexismo (e o contrário). Afastar-se do
feminismo inevitavelmente significava afastar-se do racismo, ou significava que o racismo não
era parte integrante da opressão das mulheres. Enquanto isso, as feministas radicais,
exasperadas, já tinham se voltado para a comunidade global para construir conexões feministas,
enquanto o feminismo acadêmico continuava a se fragmentar.

Mais tarde, Estudos da Mulher incluiria o movimento internacional – mas só depois de ter sido
peneirado para questões “aceitáveis”. O que era aceitável? Bem, discriminação sexual,
desigualdade legal.

Mas sexo não. Categorias sexuais não, comportamento sexual não, desejo, percepção, atos,
política e poder sexual não – não, tudo isso era biologia, uma coisa fixa e já resolvida. Por
exemplo, muitas pesquisadoras e teóricas foram desviadas dos estudos da exploração sexual.
Quando eu estava escrevendo Female Sexual Slavery (Escravidão Sexual Feminina), mais de
uma mulher acadêmica me alertou que se eu persistisse naquela linha de pesquisa, eu não
teria uma carreira acadêmica.

Com o desfeminismo, os programas de Estudos da Mulher foram legitimados e expandidos.


Mas conforme os programas cresciam, gênero deixou de ser uma análise do sexo como
construção da sociedade. Gênero e sexo eram duas coisas diferentes de novo: o físico,
fisiológico e biológico era sexo; todo o resto era gênero. Na verdade, gênero não tinha mais
nada a ver com algo sexual. E sexo não tinha mais nada a ver com como nós usamos o sexo e
como o sexo é usado para nos moldar.

Aqui vão alguns exemplos de como o desfeminismo funciona na academia (onde feministas
que compreendem a conexão radical entre sexo e gênero agora são estranhas – ou internas
assediadas – aos mesmos programas de Estudos da Mulher que nós iniciamos 20 anos antes).

• Um estudante no meu seminário de teoria feminista pergunta: "Como é que estamos


estudando pesquisas feministas há anos e nenhuma feminista está escrevendo sobre
isso assim?". A questão ressoa pelas feministas politicamente conscientes e apoiantes
masculinos do feminismo que se sentem traídos por sua educação. Explico que as
feministas radicais continuaram a escrever essa teoria há vinte anos. No entanto, um
livro recente declarou que o feminismo radical morreu em 1975. Não é de admirar que
a teoria e pesquisa feminista radical geralmente não estão sendo ensinadas ou, pior
ainda, até mesmo lidas na maioria dos programas de Estudos da Mulher.
• Andrea Dworkin fala em várias faculdades e, às vezes, tem que defender sua
ordenança (e de Catharine MacKinnon) antipornografia de direitos civis feminista de
estudantes hostis que leram apenas os movimentos e documentos de oposição.
• Teóricas feministas como Michele Wallace e Ntozake Shange nunca receberam a
atenção que merecem nos cursos de Estudos da Mulher nos EUA.
• Os cursos "Mulheres e desenvolvimento" são efetivamente segregados dos conceitos
de feminismo.

Não quero deixar a impressão de que as feministas radicais tem sido meramente vitimas
passivas. Na verdade, nós editamos séries de livros e periódicos para assegurar a contínua
publicação de obras feministas radicais. Nós ensinamos obras feministas radicais –
fotocopiadas quando os editores deixam acabar o estoque. Nós assistimos nossas
estudantes se tornarem diretoras de programas de crises de abuso doméstico e estupro, já
que continuamos conectando pesquisa à ação e teoria à prática. No total, continuamos a
agir como se ainda estivéssemos vivas, considerando que disseram termos morrido em
1975.

Enquanto isso, de volta ao desfeminismo acadêmico, os significados patriarcais do sexo


retornaram. Começamos a ouvir sobre o "prazer e perigo na sexualidade"
(sadomasoquismo), como se fosse a natureza da sexualidade da pessoa que perseguiu esse
prazer e seu perigo. Somente quando o sexo foi renaturalizado de volta para "unidades
biológicas inatas", tornou-se um assunto legítimo de Estudos da Mulher.
Convenientemente, o pessoal não era mais político.

O "prazer e o perigo na sexualidade" foi defendido como um direito natural do óvulo ainda
não fertilizado, passando por cima dos direitos humanos de quem o concebe, carrega, dá à
luz e cria. De volta ao mundo real, esses jogos intelectuais estão destruindo a vida das jovens
mulheres. A geração de mulheres que agora são adolescentes enfrenta o determinismo
sexual de liberais sexuais e conservadores fundamentalistas. Todos os anos mais de um
milhão de adolescentes dos EUA ficarão grávidas – uma em cada dez entre as idades de 15
e 19; 34% das garotas de 14 anos que ficam grávidas darão à luz.

Essas jovens mulheres são desproporcionalmente afro-americanas – porque a opressão


sempre afeta mais intensamente nas classes menos protegidas. As leis estaduais de
consentimento dos pais tornam o aborto cada vez mais indisponível e a taxa de gravidez é
duas vezes maior entre adolescentes de cor que entre os euro-americanos. Não só as vidas
foram frustradas e a saúde colocada em perigo, mas a intensa promoção do sexo precoce
combinada com o aumento da negação do aborto aos adolescentes está afetando uma
grande mudança demográfica na classe de gênero feminino.

A próxima geração de mulheres, tendo criado bebês durante seus anos de adolescência e
início da idade adulta, não herdará as poucas vitórias e emancipações conquistadas pelas
mulheres da minha geração: embora tenhamos aberto oportunidades educacionais e de
emprego para as mulheres como nunca antes, as mães adolescentes ganharão
aproximadamente metade da renda que aquelas que dão à luz pela primeira vez em seus
vinte anos. Não é do mais surpreendente, então, que na torre de marfim o sexo não tem
nada a ver com a gravidez, o racismo agora só significa diferenças e os direitos são apenas
individuais? Sobre o que é tudo isso? Lembra-se que "o pessoal é político"?

Bem, primeiro trata-se de tornar o pessoal não-político. Trata-se do uso do feminismo como
uma defesa pessoal por parte de algumas mulheres de suas escolhas privadas para
submeter-se ao sexo pornográfico ou reprodutivo. Pode parecer difícil sugerir isso como a
escolha das mulheres. Mas, de fato, a recusa das mulheres da minha geração em enfrentar
esse mesmo poder de gênero agora resulta na negação de escolha para os adolescentes de
hoje – escolha de ser sexual e/ou grávida somente quando não prejudique sua saúde e bem-
estar, quando está sob seu controle e determinação, se e quando quiserem. Também é sobre
"diferença".

Isso começou com a aparição do feminismo socialista, onde a teoria separa as mulheres e
enfatiza suas oposições de classe entre si. Ainda me lembro de uma conferência inicial sobre
estudos femininos em 1973, quando as mulheres da classe trabalhadora foram convidadas
a sentar-se de um lado da sala e dizer suas queixas às mulheres de classe média. As
acusações virulentas foram lançadas e o inimigo real nem estava lá. A diferença governou o
dia. Mas o que eu sei de crescer pobre é que os marginais são, em última instância, deixados
para se defender por si mesmos, porque nenhuma política de diversidade pretende incluir.
É a confecção do "outro".

Quando a diferença é nosso primeiro reconhecimento umas das outras, torna-se a base
principal de separar as mulheres umas das outras. Numa era que já não se identificava com
a consciência política que se desenvolvia na década de 1960, a diferença fornece a primeira
base de racismo, sexismo e privilégio de classe. "Diferença" pode significar que adolescentes
grávidas e pretas são um problema que apenas as mulheres afro-americanas – nem todas
nós – precisam tratar.

"Diferença" significa que a gravidez na adolescência é uma questão de reprodução feminista


desconectada da sexualização das mulheres e, portanto, do protesto do movimento
feminista contra a pornografia. Como as adolescentes ficaram grávidas é separado da sua
diferença “estar grávida”. A palavra produz rabiscos na torre de marfim da teoria feminista.

Agora passa por um novo nome: desconstrução. Muitas estudiosas se apressaram a adotar
essa teoria intencionalmente inacessível, recentemente importada para os EUA.
Desconstrução nos diz que tudo, incluindo nosso próprio eu, é sobre a diferença.

Nossos eus são eus descentrados; nada tem nenhum significado inerente. Portanto, não só
o pessoal não é político. O pessoal e o político são desconstruídos em favor de suas
diferenças. (Não se preocupe com o que isso significa porque o significado não está sempre
lá, de qualquer maneira. É nos espaços entre as diferenças. Isso não faz sentido? Bem, isso
é porque não estamos olhando os espaços no meio.)

Veja sexo e gênero. Lembre-se de como o feminismo universitário os separou. Bem, a


desconstrução não trata o sexo como inato; não, vai um passo adiante, pede-nos que olhe
o que quer que esteja nos “espaços entre" sexo e gênero. Em outras palavras, classes sexuais
são falsas dicotomias porque todas as dicotomias são falsas: masculino/feminino,
branco/preto, opressor/oprimido, rico/pobre e capitalista/proletariado (Puf! A hierarquia
desaparece!). Por um ato maravilhoso de vontade, todas as dicotomias foram diferidas. (O
diferimento é considerado importante porque está no significado francês da diferença.)
Tudo é sobre os espaços entre, sobre nada.
Bem, tente dizer isso à menina de treze anos prestes a entregar a criança que ela irá criar
até ela ter trinta e um. Talvez você ainda não entenda? Tudo bem. Essas teóricas gostam de
pensar na teoria como algo muito complicado para pessoas comuns. As teorias da
desconstrução flutuam adequadamente na atmosfera rarefeita da torre de marfim. (Soa
classicamente masculino?) Ou você entende, mas não concorda? Claramente você é uma
feminista radical estupidamente persistente com a "análise errada".

Agora que poucos se lembram do que é essa análise, os desconstrucionistas podem inventar:
"as feministas radicais tendem a ver a raiz da opressão das mulheres na capacidade biológica
das mulheres para a maternidade ou a agressividade masculina inata e biologicamente
determinada como manifesta em estupro, o que torna os homens perigosamente diferente
das mulheres". Agora sim! São feministas radicais que tornam os homens "perigosamente
diferentes" das mulheres! E todo o tempo eu pensei que o patriarcado tinha feito isso!

Mas em toda a ênfase na diferença, os desconstrucionistas estão tentando nos dizer que os
homens, na verdade, não são realmente diferentes das mulheres? Bem, isso faz desaparecer
o feminismo. Voilà: "pós-feminismo". Mas o feminismo não desaparecerá por fatos
pseudointelectuais. Estudantes podem ser as e os únicos que o reverterão. Ao longo dos
corredores da academia, em tons silenciados, as perguntas estão sendo feitas: "Sobre o que
é isso, de qualquer maneira?", "Isso não parece certo", “Há algo de errado aqui, mas não
posso colocar meu dedo nisso."

Questionar leva à consciência, à raiva, à ação. Pergunto-me, quando ouço essas afirmações
dos alunos, não começamos assim há mais de vinte anos? O que eu sei de crescer pobre é
que nenhuma "política da diferença" pretende incluir.

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