Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em anais sobre uma pesquisa de campo acerca da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Para criá-la, utilizou-se das teorias de Isabel Solé sobre a Leitura Compartilhada.
Título original
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector impressões de alunos do ensino médio
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em anais sobre uma pesquisa de campo acerca da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Para criá-la, utilizou-se das teorias de Isabel Solé sobre a Leitura Compartilhada.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em anais sobre uma pesquisa de campo acerca da obra A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Para criá-la, utilizou-se das teorias de Isabel Solé sobre a Leitura Compartilhada.
Anais do IV CONAEL e V Jornada de Letras do IFSP – Avaré
(2021) ISSN 2675-2654
A HORA DA ESTRELA , DE CLARICE LISPECTOR: impressões de leitura
de alunos do ensino médio
Chiara Magá Moreira*
RESUMO
Pesquisas como a Retratos da Leitura no Brasil evidenciam que, apesar dos
avanços ocorridos nessa área ao longo dos anos, formar leitores de literatura tem sido um grande desafio. Isso porque, em razão de seu caráter polissêmico, muitas vezes, o leitor não consegue usufruir de todas as suas potencialidades em virtude da falta de letramento literário. Com o objetivo de contribuir com as pesquisas que discutem metodologias para a promoção da educação literária em contexto escolar, esta pesquisa apresenta os resultados positivos da implementação de uma leitura compartilhada de A hora da Estrela , livro publicado por Clarice Lispector em 1977. A atividade foi desenvolvida com alunos da 3º série do Ensino Médio Profissionalizante de uma escola localizada no interior do Paraná, com base nos pressupostos teóricos e metodológicos de Isabel Solé (1998). A Leitura Compartilhada se configura como uma metodologia eficiente para aproximar leitores inexperientes da literatura considerada erudita, uma vez que é realizada em conjunto com o(a) professor(a) que tem o papel de mediador(a) no processo de leitura, dando oportunidade aos estudantes de terem acesso a textos de maior qualidade literária que, sozinhos, dificilmente teriam contato.
Palavras-chave: Educação literária. Literatura clássica. A hora da estrela. Leitura
compartilhada.
1 INTRODUÇÃO
Conforme já assinalou Antonio Candido em “O Direito à Literatura” (1995), a
literatura é uma arte que pode atuar no processo de desenvolvimento humano. Assim como o indivíduo possui direitos básicos, como alimentação, moradia, vestuário, instrução, saúde, liberdade individual, amparo da justiça pública, resistência à opressão, entre outros, ele também possui o direito à crença, à opinião, ao lazer e, consequentemente, à literatura. Isso porque a arte literária, segundo esse sociólogo, satisfaz as necessidades de ficção e de fantasia, enriquece a visão de mundo, sendo capaz de desenvolver, no leitor, “uma cota de humanidade”, na medida em que o torna mais compreensivo e aberto para a natureza, para a sociedade e para os seus semelhantes.
* Graduanda em Letras Português-Inglês pela Universidade Estadual do Norte do Paraná
(UENP). Integrante do grupo de pesquisa Estudos do Romance pela UENP/Campus de Jacarezinho. Contato: chiaramoreira@hotmail.com Assim como a literatura atua no processo de formação humana, a instituição escolar é um espaço privilegiado para que ocorra essa formação de maneira sistematizada. Nesse sentido, enquanto a comunicação literária atua no processo de formação humana de forma gratuita, ou seja, por meio da relação entre texto e leitor de maneira prazerosa e descompromissada ocorrida no ato da leitura, na escola, essa formação se dá a partir de um trabalho pedagógico planejado com o intuito de promover a aprendizagem de conhecimentos produzidos historicamente, bem como formar indivíduos mais capacitados para enxergar as questões da sociedade com maior clareza, com intuito de desenvolver um senso crítico, o que pode ocorrer por meio das competências leitora, escritora e oral. Para tanto, a escola pode lançar mão de variados gêneros textuais, estando entre eles os que circulam na esfera literária. Em relação à formação leitora especificamente, dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2019) mostram a baixíssima quantidade de leitores em território nacional (em torno de 55% da população). Esse apontamento pode ser feito em decorrência de a pesquisa considerar leitores pessoas que leram um livro inteiro ou em partes no momento em que participaram da investigação, considerando os últimos três meses. Os dados evidenciam um número maior de leitores entre os que estão em fase escolar, sinalizando que a leitura, na maioria das vezes, está ligada a uma atividade obrigatória e não a um hábito regular na vida dos brasileiros. Nesse sentido, pode-se inferir que a escola consegue fazer com que as pessoas leiam com um objetivo pragmático, neste caso, para obter uma nota, mas não necessariamente consegue formar leitores praticantes de uma leitura prazerosa, bem como de satisfazer suas necessidades de ficção e de fantasia, nos moldes propostos por Candido (1995). Ao discutir esse ponto, muitos pesquisadores evidenciam o motivo por trás da dificuldade em promover a educação literária na escola. Para eles, essa problemática está ligada ao modo como a literatura é trabalhada. Conforme defende Isabel Solé (1998), as atividades desenvolvidas nesse espaço estão voltadas para a avaliação em vez de estarem focadas no ensino de estratégias de leitura, de maneira a desenvolver a competência leitora. Diferentes pesquisas revelam que, dentro das escolas, frequentemente, os textos são trabalhados apenas com intuito de responder a questões previamente elaboradas para avaliar se o aluno compreendeu o texto lido, não havendo preocupação em promover o letramento literário. Isso pode fazer com que o aluno não se sinta incentivado a buscar, na leitura, uma forma de enriquecer seus conhecimentos, bem como de percebê-la como uma prática que pode lhe dar prazer. Esse tipo de exercício pode levá-lo a encarar o ato de ler apenas como obrigação escolar. A leitura vai muito além disso. Ela é um processo de compreensão de mundo capaz de abranger características essenciais e singulares do homem, e a escola precisa trabalhar em conjunto com a família, com intuito de melhorar a recepção da leitura literária para além de uma atividade meramente escolar. Assim como Solé defende (1998), ler não é uma tarefa de competências simples, pois é preciso dominar as habilidades de decodificação e aprender as distintas estratégias cognitivas que levam à compreensão de um texto. O aluno precisa estar inserido em um ambiente escolar capaz de instigá-lo a participar de um processo constante de emissão e verificação de hipóteses responsáveis por conduzir à construção de sentidos internos e externos de um texto. Com o intuito de contribuir com essa discussão, será apresentado, neste texto, o resultado positivo de uma pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), desenvolvido no curso de graduação em Letras Português/Inglês, da Universidade Estadual do Norte do Paraná, Campus de Jacarezinho, sob a orientação da professora Valdirene Barboza de Araújo Batista. Trata-se de uma sequência didática (SD) elaborada com base nos pressupostos teóricos e práticos de Isabel Solé, materializados no livro Estratégias de Leitura, cuja primeira edição é de 1998, para trabalhar a leitura de A hora da estrela, de autoria de Clarice Lispector. Entendendo a expressão “sequência didática” como um conjunto de atividades planejadas teórica e metodologicamente implementadas de forma sequencial, a pesquisa foi desenvolvida com estudantes da 3ª série do Ensino Médio Profissionalizante, de uma escola pública do norte do Paraná. Nos parágrafos seguintes, serão apresentados o detalhamento da sequência didática desenvolvida, seus princípios teóricos e metodológicos e os resultados obtidos, por meio da análise dos registros de impressões de leitura feitos pelos estudantes participantes da atividade.
2 AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA, SEGUNDO ISABEL SOLÉ (1998)
Para Isabel Solé, professora catedrática do departamento de Psicologia
Evolutiva e da Educação na Universidade de Barcelona, na Espanha, o docente deve exercer um papel fundamental no processo de leitores autônomos. Em sua perspectiva, ler é compreender, sendo a compreensão um processo de construção de significados a respeito do texto lido. Nesse processo, o leitor deve ser capaz de lançar mão de uma série de procedimentos de ordem elevada, responsáveis por envolver ações cognitivas e metacognitivas, denominados por Solé (1998) de “estratégias de leitura”. Tais procedimentos devem ser ensinados ao aluno pelo professor, de modo gradativo, até conseguir transformar-se em um leitor competente e autônomo. Para a pesquisadora espanhola, o professor, na condição de leitor experiente, deve ser o mediador desse processo, responsável por proporcionar aos alunos os “andaimes” necessários para que eles possam dominar progressivamente essas estratégias e utilizá-las com autonomia individualmente com o passar dos anos. Para tanto, as atividades de leitura devem ser desenvolvidas de forma guiada, contemplando tarefas que devem ser realizadas antes, durante e depois do momento de leitura. Trata-se de ensinar os alunos a formular hipóteses acerca do texto, as quais serão confirmadas, refutadas, reformuladas ao longo do processo de leitura. Por meio dessas atividades, o docente poderá instigar os estudantes a respeito da temática principal do texto, do vocabulário, das informações explícitas e implícitas, bem como posicionar-se criticamente diante da obra lida.Portanto, a proposta de Isabel Solé é a realização de uma leitura compartilhada em que o docente é o mediador de todo o processo. A título de ilustração, antes de iniciar a leitura de um texto/livro, o professor poderá fazer perguntas a respeito do título, do autor da obra, da temática e acerca das ilustrações, se for o caso. São exemplos de perguntas que podem ser feitas nesse momento: “O título fala alguma coisa para vocês?”, “Vocês acham que a ilustração da capa nos diz algo sobre o texto?”, “Vocês conhecem o(a) autor(a) do texto?”. As atividades feitas antes da leitura podem ser orais e objetivam, além de levantar os conhecimentos prévios, situar os alunos na esfera da obra que será lida. O próximo passo é trabalhar atividades durante a leitura, as quais intencionam proporcionar momentos de leitura autônoma do texto propriamente dito, por meio da decodificação, intercalados com pausas, com intuito de possibilitar uma conversa sobre a compreensão do que está sendo lido. Nesse momento, é importante haver a concentração dos estudantes na leitura do texto, e dessa forma, o professor mediador conseguirá estimular a compreensão a partir de tópicos criados a fim de os ajudar a encontrar respostas, dentro da obra, para as hipóteses levantadas antes e durante o processo de leitura. Segundo Solé (1998), ensinar a formular e a responder perguntas sobre a obra lida é uma estratégia essencial para uma leitura ativa, além de autoavaliar se as hipóteses sobre o que se julga compreender realmente se confirmam na tessitura do texto. Assim, esse processo deve ser contínuo durante todo o ato de ler. Nesse momento, são pertinentes questionamentos capazes de estimular a ativação dos conhecimentos prévios sobre o tema/assunto/gênero, conforme a leitura se desenrola, pois os conhecimentos prévios atuam diretamente no processo de leitura e compreensão global do texto. Para Isabel Solé (1998), quando ativados, os conhecimentos prévios auxiliam o leitor a estabelecer o tema global e, dessa maneira, pode compreendê-lo de forma eficaz. Para isso, é importante respeitar o espaço do aluno, dando a ele autonomia para a realização da sua própria leitura individual, estimulando-o a avançar e/ou retroceder a leitura. Durante todo o percurso, o leitor precisa ser capaz de parar, pensar, recapitular, relacionar a informação obtida com o conhecimento prévio, formular perguntas, decidir qual informação é importante e qual é secundária. Mesmo sendo interno, esse processo deve ser ensinado. Importa salientar, neste momento, o ponto de vista de Solé. Para ela (1998), a leitura individual permite ao aluno a compreensão do texto. Tal compreensão possibilitará o estudante a construir uma ideia sobre o conteúdo textual, extraindo dele as informações julgadas importantes em função dos seus objetivos. Daí a pertinência de possibilitar momentos em que haja tanto a leitura individual e silenciosa quanto a compartilhada, ocasião em que pode ser conversado coletivamente a respeito da obra lida, possibilitando ao leitor a comparação entre a sua compreensão com as dos demais colegas e a do professor mediador, bem como retomar o texto para confirmar/refutar as hipóteses levantadas sobre ele. As atividades depois da leitura são de muita relevância para esse momento de conversa mais direcionada acerca do texto, oportunidade que, segundo Solé (1998), é propícia para “continuar compreendendo e aprendendo”. Essa etapa consiste na busca pela melhor compreensão da obra, que só é possível quando há a troca de impressões de leitura entre os leitores. Dessa forma, o professor mediador deverá formular passos capazes de possibilitar ao estudante a recapitulação das impressões feitas antes, durante e depois da leitura, com intuito de compará-las e de verificar se elas se confirmam ou não no texto. Além disso, o estudante precisa ser capaz de considerar as explicações dos leitores mais experientes, no caso, dos docentes mediadores. Nessa etapa, o docente deve estimular os estudantes a falar sobre suas impressões de leitura, fundamentados com passagens do texto; tais questões podem ser utilizadas nesse momento: “O que o texto pode dizer ao leitor?”; “Por que devemos considerar essa a mensagem principal, e não a outra?”; “Por qual razão você pensa dessa maneira?”; “É inadequado entender o texto dessa forma?”. Portanto, é a etapa para sanar dúvidas surgidas ao longo da leitura. A pesquisadora espanhola também chama a atenção para a escrita do resumo em atividades depois da leitura. Em sua perspectiva, esse gênero textual é uma estratégia de compreensão, pois só consegue produzir um resumo quem compreendeu o texto. Caso os estudantes não tenham afinidade com a produção do gênero, o docente poderá produzir um resumo coletivo com a classe de modo que consigam, futuramente, produzir resumos individualmente, a partir da aprendizagem de seus elementos composicionais. Essa produção também pode ocorrer de forma oral; o docente poderá solicitar que um ou vários estudantes tentem resumir o texto, dando abertura para que possam discutir certas informações, caso a compreensão esteja equivocada. Seja como for, do ponto de vista de Solé(1998), é importante que os alunos entendam a pertinência da criação do resumo, da mesma forma, é importante que testemunhem resumos criados por seus professores. Ainda sobre a produção de resumos, em Estratégias de leitura, Isabel Solé destaca a necessidade de o professor ensinar, aos estudantes, por meio da escrita, procedimentos para a identificação do tema central do texto, bem como das ideias principais e secundárias contidas nos parágrafos, deixando informações triviais e repetidas de lado. Da mesma maneira, é necessário ensinar a agrupar as ideias no parágrafo , encontrando formas de incluí-las, desenvolvendo a capacidade de identificar e/ou elaborar a frase-resumo de um parágrafo. Para a autora espanhola, o resumo deve ser elaborado com base naquilo que o leitor determina como ideias principais e escreve o que julga relevante, sem preocupações com o mínimo e máximo de linhas, ficando isso a critério do estudante. Por fim, importa mencionar que o resumo objetiva desenvolver a capacidade de relatar experiências com o texto lido e as principais emoções sentidas, pelo leitor, no decorrer da história.
3 O ROMANCE A HORA DA ESTRELA , DE CLARICE LISPECTOR
Para desenvolver a sequência didática, com base nos pressupostos teóricos
e metodológicos de Isabel Solé (1998), conforme já se informou, foi utilizado o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, cuja publicação data de 1977, ano da morte da escritora. A escolha da obra não se deu por acaso, pois corresponde ao intuito de atender às orientações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), quando prevê que, no ensino médio, as leituras literárias devem potencializar a fruição e conhecimento de um modo mais sistematizado, sem desconsiderar as relações com os contextos históricos, artísticos e culturais. Na perspectiva desse documento, nesta etapa do ensino, a leitura do texto literário deve, primeiramente, proporcionar o envolvimento dos alunos com a obra, de forma dinâmica, possibilitando o desenvolvimento de suas habilidades e formando, assim, cidadãos críticos, capazes de compreender o mundo à sua volta. Ao propor a leitura de textos desafiadores como A hora da estrela (2015), romance caracterizado por ser uma narrativa intimista e de estrutura peculiar, dotada de intenso trabalho estético com a linguagem, o docente, certamente, estará atendendo ao que preconiza a BNCC. Ao refletir acerca da escrita de Clarice Lispector, Campedelli defende que “sua literatura é um ambíguo espelho da mente, registrado através do fluxo da consciência, que indefine as fronteiras entre a voz do narrador e das personagens” (CAMPEDELLI; ABDALA JR,1988, p. 132). Logo, é uma narrativa desafiadora e, apesar de todos os sobressaltos que poderão aparecer no processo de leitura, guiados pelo professor mediador, os estudantes poderão ter a oportunidade de vivenciar uma experiência de leitura muito mais expressiva e significativa. Nesses termos, qualificada como obra de forte teor estético e intimista, o romance narra a vida penosa e hostil de Macabéa, uma jovem nordestina de 19 anos, descrita, pelo narrador, como ser constituído de inocência pisada e de uma miséria anônima. Considerada por vários especialistas uma trama autobiográfica e sociológica, A hora da estrela é narrada por Rodrigo S. M., narrador-personagem que, além de relatar o drama vivenciado pela jovem nordestina Macabéa, trazendo à tona suas manias e conflitos internos, também reflete sobre o papel da escrita e da palavra.Para muitos estudiosos do romance, a criação do narrador Rodrigo S.M. se caracteriza como uma resposta irônica à condição da mulher escritora na sociedade da época, a qual tinha a sua escrita menos valorizada do ponto de vista da qualidade artística. No desenrolar do processo de leitura, são trazidas à tona temas sociais, como a representação da mulher nos anos 1970, a invisibilidade do povo nordestino, a pobreza na vida do indivíduo, diálogos com teor machista, além de indagações psicológicas variadas.Na visão de vários estudiosos desse romance, a narrativa retrata o pesar de sonhar frente à miséria humana de uma sociedade aflita pelo Regime Militar. Macabéa seria a denúncia dos problemas sociais presentes na época da escrita do romance, estando entre esses problemas o analfabetismo funcional, uma vez que, sendo a alfabetizada, não conseguia compreender o significado e função das palavras na prática social. O processo de escrita é também um tema central do texto. Para Cristina Ferreira Pinto (1987), a linguagem é, na obra, instrumento para o questionamento, e "conscientização da realidade". Cristiane Amorim (2008), similarmente, no texto intitulado “A hora da estrela: a face onipresente da morte”, descreve o romance como um esforço por traduzir em palavras uma história que brota do momento epifânico, na qual se revela para o narrador, na verdade, Clarice, a essência de uma nordestina no Rio de Janeiro, a partir de seu um olhar para a realidade. Rodrigo S.M., ao se propor a contar a história de Macabéa, constrói uma narração paralela, em que descreve suas próprias angústias em um embate com a linguagem, revelado na luta constante do narrador em tentar extrair das palavras seus significados máximos. Além da relevância da obra como objeto estético de qualidade literária, a narrativa também se configura como texto capaz de atuar no processo de humanização dos estudantes. Isso porque, como afirma Antonio Candido em “A Literatura e a Formação do Homem” (1972), as criações ficcionais e poéticas podem atuar de modo subconsciente e inconsciente, operando uma espécie de inculcamento que não percebemos. Clarice, por meio dessa obra, tece críticas ao mundo capitalista a partir da criação de personagens tensas e inadaptadas à sociedade em que vivem. A autora restaura o cotidiano alienado das pessoas. Esse processo pode potencializar o desenvolvimento da criticidade dos estudantes, bem como um sentimento de empatia ou de identificação com as personagens, podendo ocorrer aquilo que Smith (1999) defende como leitura significativa. Na visão do pesquisador, o processo de leitura ocorre além das marcas visíveis do texto escrito, isto é, a informação percebida, além do que o cérebro capta de imediato; o que está por trás dos olhos do leitor significa muito mais para que a leitura seja prazerosa. Para o pesquisador, uma habilidade essencial para a leitura é depender o menos possível dos olhos, embora o seu uso seja o responsável para que a informação chegue ao cérebro, ou seja, por meio da informação visual. A informação não visual identificada pelo leitor no texto é muito importante para a leitura de qualquer obra, pois o leitor poderá trazer seus próprios conhecimentos prévios acerca do assunto abordado no texto e infundi-los com a temática exposta na obra, deixando de depender exclusivamente da estrutura de superfície da linguagem ou das marcas visíveis da escrita. Informações como o conhecimento sobre o assunto por parte do leitor, a compreensão da linguagem e a habilidade geral em relação à leitura são fundamentais para a leitura quando agrupadas. Ao acrescentar as habilidades não visuais ao ato de ler, o leitor possui a chance de obter maior compreensão do que está sendo lido, pois recupera informações da memória de longo prazo, além de torná-la mais significativa. Por isso, transformar a leitura da literatura em sala em uma atividade significativa pode auxiliar os alunos do ensino médio a desenvolver não apenas as suas habilidades de compreensão e interpretação, mas também desenvolver a cota de humanidade abordada por Antonio Candido(1972), abstraindo sentidos para a própria vida.
4 A SEQUÊNCIA DIDÁTICA E OS RESULTADOS OBTIDOS
A sequência didática, conforme já informado, seguiu as orientações teóricas e
metodológicas constantes no livro Estratégias de leitura, de autoria da pesquisadora espanhola Isabel Solé, tendo sido planejada de modo a contemplar atividades antes, durante e depois da leitura, as quais foram desenvolvidas sob a mediação da professora que a aplicou com os estudantes da 3ª série do Ensino Médio Profissionalizante de uma escola paranaense. Tendo em vista a impossibilidade de descrever todo o trabalho realizado de forma detalhada no espaço deste texto, de modo sintético, no primeiro momento, a professora apresentou à classe a proposta de leitura a ser feita, explicando as linhas gerais do trabalho a ser desenvolvido, justificando a necessidade e importância de aplicação, bem como fazendo com os estudantes alguns acordos. Um deles é que os alunos deveriam seguir as orientações da docente ao longo de todo o processo de desenvolvimento da SD. Para acompanhar todo o percurso realizado, a docente solicitou que produzissem um diário de leitura, confeccionado com folhas de sulfite, em que todos deveriam registrar alguns momentos da SD, durante as etapas de tarefas antes, durante e depois da leitura. Dos 23 alunos integrantes da turma, dezessete entregaram os diários de leitura. Abaixo, segue uma foto com algumas capas dos diários produzidos: Fonte: arquivo da autora.
Antes da leitura do texto, a professora solicitou aos estudantes que
observassem a ilustração da capa e o título, com intuito de se levantar hipóteses acerca do tema e do enredo da narrativa sem realizar alguma pesquisa em livros e/ou na internet acerca da obra. Para tanto, foram utilizadas as seguintes questões: “O que o título diz para vocês?”, “O que a moça da capa parece estar fazendo?”,“o que a ilustração da capa pode dizer sobre o texto?”; “Sobre o que vocês acreditam que o texto tratará?”. A partir disso, os estudantes fizeram o primeiro registro no diário. Entre as hipóteses levantadas, estão as seguintes: aluno 1: “quando ouço o nome A hora da estrela, eu imagino uma bela moça em cima de um palco, dando um belo show, em uma noite com o céu todo estrelado”; aluno 2: “julgando o livro pela capa, a primeira impressão que tive ao pegar o livro em mãos, foi de que seria uma leitura complicada. Acredito que o livro se trata de uma história de amor, não sei ao certo se será uma história de final trágico ou feliz, mas espero gostar do que está por vir”; aluno 3: “O livro em si passa a impressão de ser algo mais romântico, mas também com relação ao título A hora da estrela, deve passar no cenário mais a noite, e a minha opinião é que é sobre duas pessoas que se apaixonam, mas não podem ficar juntos”; aluno 4: “julgando o livro pelo título dele, acho que será um livro de romance proibido ou algo do tipo. Ou até mesmo um ‘romance’ Romeu e Julieta. Além de escrever em seus diários, os alunos também puderam oralizar as suas hipóteses, compartilhando e confrontando-as com as de seus colegas. No segundo momento, foi solicitado a eles, com o prazo de uma semana, a realização da leitura individual e silenciosa do romance como tarefa de casa, cuja obra é composta de 80 páginas. Importa informar que os estudantes tiveram acesso ao PDF da narrativa e a oito exemplares. Tendo em vista a preferência da maioria dos alunos em realizar a leitura do livro de forma impressa, foram necessárias três semanas para que todos os estudantes pudessem ter tido a oportunidade de ler o texto em sete dias. Nessa etapa, eles foram orientados a registrar, em seus diários, todas as informações consideradas importantes a respeito do processo de leitura: dúvidas; hipóteses levantadas acerca do tema, enredo, personagens; hipóteses confirmadas, refutadas, reformuladas; impressões de leitura, enfim, todas as considerações pertinentes.Vale notar que, nesse momento, a professora também solicitou aos estudantes que não fizessem pesquisa prévia sobre o texto, uma vez que, para o sucesso da SD, os registros deveriam ser originais e pessoais. Os registros deixam clara a dificuldade de compreensão do texto em razão da linguagem e estrutura complexas da obra, o que, aparentemente, foi responsável por certo desinteresse despertado nos estudantes. Ilustram essa constatação as seguintes respostas: aluno 1: “ um livro que não foi feito para qualquer leitor”; aluno 2: “No início, li algumas páginas e não consegui entender muita coisa, primeiramente pela linguagem ser muito complexa. Outro fato que fazia o livro ficar mais ‘difícil’ era que o narrador parecia enrolar para contar a história, e o mistério das falas do narrador com a Macabéa estava deixando a história um tanto quanto confusa; aluno 3: “bom, sobre esse livro, tenho pouco a falar, porque lendo sozinha achei muito maçante, muito complexo. A história rodeia muito para falar algo que ela deixa ‘explícito’.” Apesar da complexidade da obra escolhida, as impressões de leitura dos alunos também evidenciam que alguns foram capazes de compreender o texto, como se percebe neste quarto exemplo, em que se nota que a estudante parece ter compreendido o texto, mas não apreciou o desfecho, ao mesmo tempo que sentiu certo estranhamento diante da obra. Assim ela escreve: “não gostei (do livro). Me senti muito angustiada refletindo sobre a realidade do mundo, e este final foi como um choque, mas também aliviante. Na minha opinião, a autora foi insensível. E por isso ganhou tanto prestígio. Insensível e fora da realidade de qualquer outro livro que eu já tenha lido.” Embora todos os estudantes tenham tido a oportunidade de ler o livro, nem todos o fizeram, sob a alegação de que desistiram da leitura em razão da complexidade da obra. Tal atitude já era esperada pela professora, daí que, no planejamento inicial, o terceiro momento da SD foi marcado pela leitura compartilhada. Nesse instante, o texto foi retomado e todos os que desejaram puderam fazer a leitura oral dele. Importa informar que a maioria alegou não se sentir à vontade para oralizar o texto escrito, pois consideraram o vocabulário bastante rebuscado, com palavras difíceis de serem pronunciadas. Assim, na maior parte das vezes, a professora leu a parte do narrador, e os estudantes leram as falas das personagens. Nesse sentido, nessa etapa, a docente, igualmente, teve a oportunidade de oferecer aos alunos um modelo de fluência para a leitura oral, lendo para e com a classe. Para a realização dessa atividade, foram usados tanto o PDF do livro quanto os exemplares impressos, os quais foram lidos em duplas, o que estimulou a troca de impressões mais imediatas acerca da obra. No total, foram utilizadas seis aulas para ler todo o romance, o equivalente a três semanas, já que, no curso técnico, a grade curricular é composta de duas aulas semanais de Língua Portuguesa. Nessa etapa da leitura compartilhada, a leitura oral foi intercalada com conversas sobre o texto, as quais se deram de acordo com as necessidades da docente e dos estudantes que sempre tinham algo a comentar sobre determinada passagem lida. Convém mencionar que, nessa altura da SD, os alunos já puderam, caso quisessem, pesquisar a respeito da obra e da autora. A própria docente, à medida que a leitura compartilhada foi se desenvolvendo e, estimulada pelos apontamentos e dúvidas surgidas, apresentou informações contextuais diversas acerca da obra. Ao final de cada aula, os alunos deveriam registrar suas impressões de leitura compartilhada em seus diários. A título de ilustração, sobre o fluxo de consciência, tão presente na obra em questão, um aluno escreveu: “Descobri que este é um livro psicológico, onde o escritor narrador fica divagando e falando dele ao invés de falar sobre sua personagem.” Um outro escreveu: Na minha opinião, esse cara (Rodrigo S.M.) é bipolar, pois em um momento a xinga (Macabéa) e a maltrata, e no outro diz que a ama”. Uma outra redige: “ Ela (Clarice Lispector) usa o escritor narrador para falar que mulher não pode escrever romance, pois se escrevesse seria um livro clichê. Foi uma crítica, pois quando ela escreveu o livro foi em um tempo bem machista, não que hoje em dia tenha mudado muita coisa.” O terceiro exemplo evidencia que, a partir do texto literário, a estudante consegue refletir sobre assuntos subjacentes à tessitura social, como é o caso do preconceito com a escrita feminina no momento em que Clarice Lispector produziu A hora da estrela, estabelecendo relações com o contexto social atual, no qual a própria aluna está inserida. Tal constatação fica explícita na afirmação feita por ela sobre o fato do machismo perpetuar-se na sociedade. Outros apontamentos feitos pelos estudantes evidenciam, apesar da complexidade da obra, as ideias de Candido (1972) a respeito da força humanizadora da comunicação literária, como texto que revela todas as contradições humanas. Terminada a leitura compartilhada, foi feita uma roda de conversa para discutir todo o percurso feito ao longo da SD. Nessa etapa, os alunos fizeram um resumo oral da narrativa, puderam realizar uma autoavaliação de como se deu o seu processo de leitura individual, considerando as atividades antes e durante a leitura, da mesma forma que refletiram sobre a leitura compartilhada. Por fim, igualmente, registraram as impressões dessas atividades em seus diários, as quais apontam para a importância da experiência vivenciada. Para ilustrar, seguem alguns trechos extraídos dos diários dos estudantes:
Aluno 1: “ junto com meus colegas, apesar de ainda ser complicada,
foi mais fácil de perceber alguns pontos sobre o livro que antes eu não havia pensado. O fato de compartilhar ideias e ver outros pontos de vista, tornou o texto mais compreensível e mais interessante. Afinal, acredito que esse livro seja mesmo para ler em grupo”; Aluno 2: “Minha leitura sobre a leitura compartilhada foi bem interessante, gostei muito de saber coisas que meus amigos descobriram conforme a leitura. Gostei muito de ter lido este livro dessas duas maneiras (individual e a compartilhada) porque deu para entender coisas bem diferentes. Lendo sozinha entrei meio que no mundinho do meu jeito de ler, da minha maneira de tentar entender. Lendo compartilhada teve mais conclusão, entendimentos mais avançados, pois teve mais amadurecimento na leitura. Sendo assim, posso dizer que essas duas formas de ler foram boas, entendi palavras bem diferentes. Foi uma ótima sensação para mim, percebi que tenho entendimentos bem diferentes dos meus colegas, é legal porque depois podemos conversar sobre o entendimento de cada um.”
Um estudante também afirmou: “A leitura compartilhada me ajudou a
entender algumas coisas que eu não tinha entendido durante a leitura individual. Com ela, também pude ver diferentes pontos de vista sobre o livro.”; já uma outra reitera a importância da leitura compartilhada: “Eu não gosto nenhum pouco de ler, mas com a leitura compartilhada foi bem mais interessante do que ler sozinha.”
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos apontamentos feitos pelos estudantes, é possível concluir que a
proposta de Isabel Solé para desenvolver a competência leitora é relevante e pode dar bons frutos. Mediante textos complexos e desafiadores, como A hora da estrela, a leitura compartilhada pode ser uma metodologia capaz de desenvolver, nos alunos, os procedimentos de leitura necessários para a formação de um leitor autônomo e proficiente. A constância dessa atividade em contexto escolar pode viabilizar o tão almejado letramento literário. Faz-se importante enfatizar que não basta ao professor solicitar a leitura do texto para depois avaliar se os alunos entenderam a obra ou não, com vistas a atribuir uma nota; é imprescindível ensiná-los as estratégias de leitura necessárias, para que, aos poucos, possam se constituir leitores proficientes, capazes de usufruir do ato de leitura de maneira mais significativa, nos moldes propostos por Frank Smith (1999). Importa salientar que muitos alunos solicitaram à docente mediadora que fossem realizadas a leitura de outros textos literários considerados clássicos de forma compartilhada. Por fim, vários estudantes também declararam, em seus diários, não se considerarem leitores, no entanto, por meio da SD desenvolvida, afirmaram estar dispostos a se tornarem leitores mais ativos. A passagem abaixo, extraída do diário de uma estudante,cujo registro se insere nas atividades depois da leitura, ilustra muito bem essa constatação:
Eu não me considero uma pessoa que gosta muito de ler, mas eu me
esforço para querer ler, ultimamente eu li um livro e pela primeira vez eu gostei. Quando a professora nos solicitou para fazer a leitura, eu até que senti vontade, e li, primeiro porque eu queria ser uma boa aluna, tirar notas boas, até porque nunca fui boa em português, não sentia vontade de fazer as coisas, mas agora eu sinto mesmo sem eu não entender eu tento, segundo porque quando a professora disse que iríamos produzir diário em relação ao livro eu senti muito mais interesse e gostei. Em relação à leitura compartilhada, eu gostei muito, por conta de que deu para perceber que meus colegas sentiram mais interesse, mesmo que a leitura seja difícil, foi bem legal, eu senti muito amadurecimento em relação a compartilhada e pode contribuir para novos leitores, vai que eu seja uma delas. Eu percebo muito machismo em relação ao que o narrador diz sobre Macabéa. Diz muitas palavras ofensivas. Este livro é assim porque na época os escritores homens eram mais vistos e naquela época as mulheres sofriam demais, então por esse motivo a escritora fez um narrador homem dentro deste livro para as pessoas sentirem mais interesse.
Os apontamentos da estudante, sem dúvida, confirmam os resultados
positivos obtidos com a implementação da sequência didática, bem como a importância da mediação e das estratégias de leitura para viabilizar a formação de leitores proficientes de literatura. . REFERÊNCIAS
AMORIM, Cristiane. A hora da estrela: a face onipresente da morte. In: XI
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LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
O resgate da leitura prazerosa no Ensino Fundamental I: o incentivo da leitura através de projetos e práticas de vivência de diferentes gêneros textuais