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III Seminário de História e Cultura: Gênero

e Historiografia da Universidade Federal de


Uberlândia - Campus Santa Mônica
16 a 18 de setembro de 2015

ANAIS
ISSN: 978-85-69882-01-5

Universidade Federal de Uberlândia


Instituto de História
Programa de Pós-Graduação em História
Linha de pesquisa em História e Cultura

Uberlândia, MG
2015
Realização: Comissão científica:
Linha de Pesquisa em História e Cultura Adalberto Paranhos (PPGHI/INHIS/UFU)
Programa de Pós-graduação em História Alexandre de Sá Avelar
(PPGHI/INHIS/UFU)
Instituto de História
Ana Paula Spini (PPGHI/INHIS/UFU)
Universidade Federal de Uberlândia Cairo Mohamad Ibrahim Katrib
(FACIP/UFU)
Proponentes da Linha História e Cultura: Dulcina Tereza Bonati Borges
(PPGHI/INHIS/UFU) (NEGUEM/INHIS/UFU)
Maria Clara Thomaz Machado Florisvaldo Paulo Ribeiro Júnior
Mônica Chaves Abdala (PPGHI/INHIS/UFU)
Ivete B. S. Almeida (UNIMONTES)
Vera Lúcia Puga
Kátia Rodrigues Paranhos
(PPGHI/INHIS/UFU)
Organização dos anais: Marcelo Lapuente Mahl
Murilo Borges Silva (PPGHI/INHIS/UFU)
Maria Clara Thomaz Machado
Comissão organizadora: (PPGHI/INHIS/UFU)
Anderson Aparecido Gonçalves de Mônica Chaves Abdala
(PPGHI/INHIS/UFU)
Oliveira (DOCPOP/ INHIS/UFU)
Newton Dângelo (PPGHI/INHIS/UFU)
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib Vera Lúcia Puga (PPGHI/INHIS/UFU)
(FACIP/DOCPOP/INHIS/ UFU)
Dulcina Tereza Bonati Borges Apoio:
(NEGUEM/INHIS/UFU) Instituto de História
Ivete B. S. Almeida (UNIMONTES) Programa de Pós-graduação em História
Lucas Martins Flávio Universidade Federal de Uberlândia
(PPGHI/INHIS/UFU) PROPP
Lucas Henrique dos Reis PROEX
CAPES
(PPGHI/INHIS/UFU)
FAPEMIG
Maria Luzia Alves Brito DOCPOP
(PPGHI/INHIS/UFU) NEGUEM
Tadeu Pereira dos Santos DIRCO
(PPGHI/INHIS/UFU) FAU

ISSN: 978-85-69882-01-5
SUMÁRIO

Aline Ferreira Antunes; Beatriz Eugênio Maia; Regina Ilka Vieira Vasconcelos -
RELATO DE EXPERIÊNCIA: A HISTÓRIA ENSINADA NO CAMPO. ................... 6

Andrezza Braz B. Nunes; João Felipe P. Espindola; Tatiane Brito Martins; Gilma
Maria Rios - ENTRE ESPANADORES E CANETAS: TRABALHO E EDUCAÇÃO
NAS RELAÇÕES DE GÊNERO NA CIDADE DE ARAGUARI. .............................. 16

Arielle Farnezi Silva; Olávio Bento Costa Neto - UMA ANÁLISE DA


REPRESENTAÇÃO FEMININA E AS REFERÊNCIAS CULTURAIS NA SAGA
HARRY POTTER: QUANDO ATÉ MESMO A MAGIA DIALOGA COM A
REALIDADE ............................................................................................................. 27

Arthur Rodrigues Carvalho - DR. FANTÁSTICO E A IRONIA NA CONSTRUÇÃO


DA NARRATIVA HISTÓRICA – A REPRESENTAÇÃO DA MULHER ................. 36

Clarissa Monteiro Borges - A ESTREITA RELAÇÃO ENTRE PARTO,


SEXUALIDADE E AS OBRAS DE HELEN KNOWLES .......................................... 45

Cláudia Regina De Oliveira - PERFORMANCE, CORPO E GÊNERO: A


OPRESSÃO DOS CORPOS EM TRÂNSITO........................................................... 57

Diélen dos Reis Borges Almeida - MEMÓRIAS DE MULHERES: LIVRO-


REPORTAGEM COM PERFIS BIOGRÁFICOS DE FEMININOS MÚLTIPLOS ..... 72

Eduardo Nunes Alvares Pavão - O ASILO DE MENINOS DESVALIDOS E AS


SOCIEDADES ABOLICIONISTAS: A PARTICIPAÇÃO DOS INTERNOS NAS
FESTAS DA ASSOCIAÇÃO CENTRAL EMANCIPADORA, DA CONFEDERAÇÃO
ABOLICIONISTA E DO CLUBE DOS LIBERTOS DE NITERÓI ............................ 84

Gabriela de Araujo Oliveira - SE CORRER O BICHO PEGA, SE FICAR O BICHO


COME: HISTÓRIA E TEATRO NO BRASIL DOS ANOS 1960 ............................... 97

Genercy Maria da Costa Moraes; Fabiana Jordão - A ESTÉTICA VISUAL DO


CABELO AFRO FEMININO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA .................. 108

João Lucas França Franco Brandão - MY NAME IS BOND? UMA ANÁLISE DA


RECONFIGURAÇÃO DA MASCULINIDADE NO CINEMA A PARTIR DA
FRANQUIA 007: AS PERSPECTIVAS DE GÊNERO DA DÉCADA DE 1960 E O
QUE SE ESPERA NO NOVO MILÊNIO ................................................................. 121

Jorge Luiz da Silva Alves; Eliane Martins de Freitas - SANTIDADE E VIRGINDADE


NA LEGENDA MAIOR DE SANTA CLARA DE ASSIS ....................................... 129
José Paulo da Silva Rodrigues - FULLMETAL ALCHEMIST, O MANGÁ DE
HIROMU ARAKAWA, SOB O OLHAR DA HISTÓRIA ........................................ 142

Kauana Selmo Peruscello - FONTES PARA PATRIMÔNIO ALIMENTAR DA


CULTURA POLONESA: CASO COLÔNIA MURICI (1878-1960)......................... 155

Leandro Antônio dos Santos - OS CONTOS/CRÔNICAS DE NELSON RODRIGUES


E O IMAGINÁRIO FAMILIAR NA DÉCADA DE 1950 ......................................... 168

Lígia Martinelli Costa e Oliveira - O SEXO FEMININO: ATUAÇÃO FEMININA E


TENSÕES SOCIAIS, UMA BREVE ANÁLISE SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES
OCORRIDAS NO SÉCULO XIX NO BRASIL ........................................................ 180

Maria Carolina Rodrigues Boaventura - UM RETRATO DE FRIDA KAHLO:


NUANCES DE GÊNERO......................................................................................... 191

Minisa Nogueira Napolitano - O MÉDICO E A MULHER: HIGIENIZAÇÃO E


VÍCIOS .................................................................................................................... 201

Neiva Flávia de Oliveira; João Paulo Prudente Santana - RELAÇÕES AFETIVAS


PARALELAS: O AFETO COMO PONTO CENTRAL DA RELAÇÃO FAMILIAR E
A BUSCA PELA REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DAS UNIÕES
SIMULTÂNEAS ...................................................................................................... 216

Paulo Sérgio da Silva - SOBRE A CIDADANIA E OS DIREITOS E GARANTIAS


FUNDAMENTAIS NO BRASIL: O ―CASAMENTO‖ GAY. .................................. 225

Priscyla Kelly Vieira Abreu; Alexander Gaiotto Miyoshi - QUESTÃO DE GÊNERO


NOS MOVIMENTOS DE VANGUARDA: A INSERÇÃO DA MULHER NA ARTE E
A ROUPA COMO SUPORTE ARTÍSTICO ............................................................. 237

Rafael Colombo Martineli; Mônica Brincalepe Campo - MANGÁS E A


CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO DE UM CONHECIMENTO
REFERENCIAL ....................................................................................................... 248

Suelen Caldas de Sousa Simião - CONSTRUÇÃO DE MASCULINIDADES EM EL


HOMBRE DE AL LADO (2009): QUESTÕES DE GÊNERO ................................... 260

Suhellen Souza Martins - RÁDIO, HISTÓRIA E MEMÓRIA: REFLEXÕES SOBRE O


USO DE RELATOS ORAIS COMO FONTES NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA.
................................................................................................................................. 268

Suzana Rosa Arantes - A MULHER DE TPM: A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA E


DISCURSIVA DA MULHER NAS CAPAS DA REVISTA TPM1 .......................... 279

Thais Adriane Dalmolin; Maria Cecília Barreto Amorim Pilla - AS COLUNAS


―EVANGELHO DAS MÃES‖ E ―FALANDO ÀS MÃES‖ E A CONSTRUÇÃO DO
PAPEL MATERNO COMO AGENTE DA SEGURANÇA ALIMENTAR DOS
FILHOS, BRASIL (1950 -1960). .............................................................................. 293
Victor de Vargas Giorgi - CERVEJA NÃO É ―COISA‖ DE HOMEM: O CARÁTER
POLÍTICO DA PARTICIPAÇÃO FEMININA NO ATUAL CENÁRIO CERVEJEIRO
BRASILEIRO ........................................................................................................... 314

Vinícius Alexandre Rocha Piassi - MEMÓRIAS FEMININAS DA LUTA CONTRA A


DITADURA EM ―QUE BOM TE VER VIVA‖, DE LÚCIA MURAT ..................... 324

Vinícius Vieira Silva - RETRATOS DE UMA URBANIZAÇÃO: AS


REPRESENTAÇÕES IMAGÉTICAS FEMININAS, NO ÁLBUM ILUSTRADO DA
COMARCA DE RIO PRETO (1927-1929) ............................................................... 335

Viviane Pereira Ribeiro Oliveira - O ENSINO DE HISTÓRIA E A CULTURA


ESCOLAR: A LEI 10639/03 E SUAS PRÁTICAS ................................................... 348

Weyber Rodrigues de Souza - O TEATRO-FÓRUM COMO EXERCÍCIO DE


PENSAMENTO POLÍTICO: UM CAMINHO PARA DEBATER AS RELAÇÕES DE
GÊNERO .................................................................................................................. 359

Lucas de Carvalho Larcher Pinto - INVENTÁRIO DE COISAS E TRECOS OU ―POR


QUE SÓ DE AMOR?‖ – TEATRO, INFÂNCIA(S), JUVENTUDE(S) E TABU(S).. 374
RELATO DE EXPERIÊNCIA: A HISTÓRIA ENSINADA NO CAMPO
Aline Ferreira Antunes 1

Beatriz Eugênio Maia2

Regina Ilka Vieira Vasconcelos 3

Resumo : O presente texto apresenta o relato de experiência à docência proposta pela disciplina
Estágio Supervisionado no curso de História da Universidade Federal de Uberlândia –
INHIS/UFU -, contemplando observação e regência. As atividades foram realizadas na Escola
Municipal Leandro José de Oliveira, localizada na zona rural de Uberlândia. Inicialmente, a fim
de nos ambientarmos com a realidade desta escola, tomamos conhecimento do que seria
educação rural/do campo à luz da legislação vigente, além do próprio assunto a ser trabalhado
na regência cujo tema foi a Revolução Francesa, tendo como um dos destaques a luta das
mulheres e a sua participação neste contexto histórico. Propomos aqui uma breve análise do que
se entende por educação rural/do campo, além das escolhas metodológicas utilizadas para a
execução das aulas junto aos alunos do 8º ano desta escola cuja atividade final baseou-se na
representatividade da mulher no quadro La liberte guidant le peuple (1830), de Eugène
Delacroix (1798-1863).

Palavras-chave: Educação rural, Educação do campo, Mulheres na Revolução Francesa.

Introdução
Este relatório apresentará o relato de experiência à docência proposta pela
disciplina Estágio Supervisionado V no curso de História da Universidade Federal de
Uberlândia – INHIS/UFU -, contemplando observação e regência, cujas atividades
foram realizadas junto aos alunos dos 7º ano da Escola Municipal Leandro José de
Oliveira, localizada na zona rural de Uberlândia. Inicialmente, a fim de nos
ambientarmos com a realidade desta escola, fez-se essencial um conhecimento prévio
do que seria educação rural/do campo à luz da legislação vigente por ser esta uma
realidade diferente da qual estamos habituados, já que todos os estágios anteriores
foram realizados em escolas do perímetro urbano.
Neste sentido, buscamos entender a carga ideológica na construção do conceito
de Educação Rural no Brasil, de que estudar seria, inicialmente, uma necessidade
apenas dos habitantes das cidades, já que para os moradores das zonas rurais a educação

1
Discente do curso de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade Federal de Uberlândia –
INHIS/UFU. aline_robinha@yahoo.com.br
2
Discente do curso de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade Federal de Uberlândia –
INHIS/UFU. bia.biblio@yahoo.com.br.
3
Orientadora do trabalho e docente do curso de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade
Federal de Uberlândia – INHIS/UFU. reginailkavasconcelos@gmail.com.

6
formal não teria nenhuma serventia. Posteriormente, uma educação aplicada na zona
rural foi entendida como desconexa à realidade do campo, o que resultou em novas
discussões e rupturas dessa visão maniqueísta da cidade enquanto civilização e do rural
como sinônimo de atraso, resultando na necessidade em aplicar uma educação no/para o
campo, ao considerar culturas, saberes e valores específicos. 4
A próxima etapa da atividade de Estágio foi pensar a temática a ser abordada
durante a regência, cujo tema foi Revolução Francesa. Neste sentido, após consulta ao
livro didático adotado pela escola, escolhemos por direcionar a aula quanto aos
conceitos de Revolução e Liberdade à luz de charges e imagens contidas no livro
didático, além da ênfase, ao final, na participação das mulheres no contexto da
Revolução Francesa tendo como representação o quadro La liberte guidant le peuple
(1830), de Eugène Delacroix (1798-1863).
Mostraremos como foi possível abordar questões de gênero junto aos alunos ao
vislumbrar a participação das mulheres no contexto da Revolução Francesa, mas,
sobretudo, como o enfoque relativo aos acontecimentos históricos destaca apenas o
protagonismo masculino sem ao menos nos perguntarmos onde estariam as mulheres, as
crianças, os trabalhadores e tantos outros personagens que participaram da história,
direta e indiretamente. Diante disso, como não resgatar o poema do alemão Bertold
Brecht (1898-1956), ―Perguntas de um operário letrado‖:

―Quem construiu a Tebas das Sete Portas?


Nos livros constam nomes de reis.
Foram eles que carregaram as rochas?
E a Babilônia destruída tantas vezes?
Quem a reconstruiu de novo, de novo e de novo?
Quais as casas de Lima dourada
abrigavam os pedreiros?
Na noite em que se terminou a muralha da China
para onde foram os operários da construção?

4
SANTOS, Jânio Ribeiro dos. Da educação rural à educação do campo: um enfoque sobre as classes
multisseriadas. IV Colóquio Internacional ―Educação e Contemporaneidade‖. Laranjeiras, Sergipe:
setembro/2010, p.3. Disponível em: http://www.gepec.ufscar.br/textos-1/textos-educacao-do-campo/da-
educacao-rural-a-educacao-do-campo-um-enfoque-sobre-as-classes-multisseriadas/view. Acesso em:
08/maio/2015.
7
A eterna Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os construiu?
Sobre quem triunfavam os césares?
A tão decantada Bizâncio era feita só de palácios?
Mesmo na legendária Atlântida
os moribundos chamavam pelos seus escravos
na noite em que o mar os engolia.
O jovem Alexandre conquistou a índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha ao menos um cozinheiro consigo?
Quando a ―Invencível Armada‖ naufragou,
dizem que Felipe da Espanha chorou
Só ele chorou?
Frederico II ganhou a guerra dos Sete Anos.
Quem mais ganhou a guerra?
Cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes da vitória?
De dez em dez anos um grande homem.
Quem paga as suas despesas?
Tantas histórias.
Tantas perguntas.‖ ·.
Por fim, apresentaremos o resultado das atividades propostas aos alunos
contendo duas perguntas abertas sobre o que fora visto em sala de aula como forma de
avaliação.

Perspectivas sobre a escola rural:

Uma vez que nossa proposta de estágio era na escola rural, tornou-se necessário
um estudo prévio do que se entende por educação rural, educação no campo e quais as
especificidades deste modelo de educação. Para isto diversas leituras acadêmicas ou
legais foram necessárias. A partir delas percebemos por exemplo que a nomenclatura já
sofreu modificações inclusive refletindo uma ideologia de educação. Explicamos: de
educação rural para Educação do Campo (no campo e para o campo). Na perspectiva de
8
Guhur e Silva (2009)5 a troca de nomenclatura é dotada de significados na medida em
que a educação rural era entendida pelo Estado como uma forma de educação para os
trabalhadores, isto é, focada em uma instrumentalização da mão de obra, preparo para o
mercado de trabalho no campo. A educação no campo por sua vez visa uma educação
crítica, discutindo-se temas políticos, econômicos, sociais. Sobre isto, Ferreira (2011)
completa que a educação no e do campo está se contrapondo ao modelo urbano e
tecnocrata de educação (p. 3), isto é, atualmente, no Brasil, já há uma discussão sobre as
diferenças entre a educação no campo e a urbana.
Apesar de a maior parte da população residir na cidade, é preciso uma educação
que atenda às necessidades da população rural.

Segundo dados do censo populacional 2010 (IBGE, 2010), a população no


Brasil é predominantemente urbana. Embora esses dados aparentemente
sejam reais, podem ser questionados, pois milhares de municípios brasileiros
são de características predominantemente rurais e a educação oferecida nas
escolas públicas desses municípios – independente de onde estejam os
prédios – é, na sua maioria, uma educação elitista que não atende as
necessidades dos homens, mulheres e jovens que vivem e trabalham no
campo. Para os que residem no campo, presenciamos o transporte para se
estudar nas ―cidades‖. É a educação preparatória para o trabalho nos centros
urbanos, visando atender as necessidades. (FERREIRA, 2011, p. 5).

Para Santos, citando autores como Sérgio Leite (2002), Miguel Arroyo (2007) e
Munarim (2006), ―o campo sempre foi visto como lugar de atraso, uma realidade a ser
superada e, por esse motivo, as políticas sociais e educacionais não foram vistas como
prioritárias para esses povos.‖ (apud SANTOS, 2010, p. 2). Neste sentido, a educação
no campo não pode ser voltada à ideia de daí extrair benefício para a vida na cidade,
nem mesmo de urbanizar o espaço rural, ou ainda de formar mão de obra que deverá se
estabelecer na cidade, mas sim, uma educação focada nas necessidades e anseios dos
camponeses. Na compreensão de Caldart (2002), os povos do campo devem ser
atendidos por políticas de educação que garantam seu direito a uma educação que seja
No e Do campo. Conforme esclarece a autora: ―No: o povo tem direito a ser educado no
lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e
com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e
sociais‖ (SANTOS, 2010, p. 18).
A partir das leituras feitas pudemos observar a escola e também as aulas do
professor Diego Leão de maneira crítica e percebermos como estão articulados os
5
Apud OLIVEIRA; BOIAGO, 2012, p. 5.
9
componentes que devem compor a educação: o currículo, o próprio PPP (Projeto
Político Pedagógico) da escola, o corpo docente, a gestão escolar, a organização do
espaço físico, e mais os sujeitos que a compõem, sobretudo os alunos, conforme
destacamos na sequência.

Relato de experiência de estágio:


O estágio é um componente curricular obrigatório do curso de licenciatura e
bacharelado em História (INHIS/UFU). Desta maneira, sob as orientações da professora
responsável pela disciplina, pudemos (os estudantes da turma) optar por desenvolver
este estágio, em específico, em escolas que não fossem regulares, como por exemplo no
EJA, na escola rural ou mesmo na educação especial. Também foi possível fazermos
um trabalho em duplas.
Desta maneira, optamos pelo estágio de observação e regência na escola
municipal rural Leandro José de Oliveira com o acompanhamento de aulas do professor
Diego Marcos Silva Leão nos 6º ao 9º anos do ensino fundamental regular. A escola
está localizada na MG 497 que liga as cidades de Uberlândia e Prata, dentro do
munícipio uberlandense, sendo, portanto de responsabilidade desta prefeitura inclusive
o recolhimento e distribuição dos estudantes e professores em suas respectivas
residências e na escola.
Por se tratar de uma escola na zona rural, o horário de aulas também é diferente
das escolas regulares da zona urbana. Além disto, as salas não são superlotadas, mas
justamente o oposto: observamos em torno de dez alunos por sala e este número diminui
gradativamente do 6º ao 9º ano. Como a escola oferece somente o ensino fundamental,
não é possível que observemos se estes alunos dão continuidade ao ensino no nível
médio, na cidade, mas foi-nos informado pelos professores que o número de alunos que
dão continuidade ao ensino é drasticamente baixo.
Na imagem abaixo podemos ver a entrada da escola e os elementos ali presentes:
a frase no alto ―ler é muito bom‖, a presença do mural ao fundo à direita do PIBID
interdisciplinar que funciona na escola, parte das mesas do refeitório, as entradas (à
esquerda) para os banheiros) e no fundo algumas salas de aula, bem como a presença de
uma aluna demonstrando nossa preocupação em retratar os sujeitos ali presentes, que
são parte importante da construção do ambiente escolar.

10
FIGURA 1 – fotografia da fachada de entrada da escola.

Fonte: as autoras.

Nossa proposta neste estágio, inicialmente, era de montarmos aulas de


intervenção para o 9º ano, no entanto, por uma questão de praticidade e de organização
do espaço escolar, optamos por intervir no 8º ano dando continuidade ás aulas já
ministradas pelo professor Diego Leão.
Desta forma, o tema escolhido foi a Revolução Francesa e procurando ligarmos
às discussões anteriores feitas com o professor da turma, fizemos uma proposta de
iniciarmos pelo contexto histórico da França neste período, passando pelas defesas das
principais ideias da sociedade francesa do século XIX para, por fim, pensarmos o
desenrolar do conflito. As aulas foram expositivas e procuramos em nosso planejamento
deixar espaço para a participação dos estudantes e também conseguirmos articular a fala
das duas estagiárias de maneira que todos pudessem ter ―vez e voz‖ ao longo das aulas
ministradas6.

6
É importante ressaltar que a professora responsável pela disciplina esteve presente nas orientações de
planejamento das aulas de intervenção e também assistiu às mesmas, na escola rural, fazendo suas
observações e contribuições para um bom andamento da atividade.
11
Fizemos uso de estratégias durante as aulas tais como a utilização do livro
didático juntamente com os alunos, o uso de imagens, aula expositiva: roda de conversa
–estratégia para que os alunos possam construir a aula juntamente com as estagiárias –
para que eles pudessem perceber como se constrói um ambiente favorável para o
florescimento de ideias revolucionárias que irão guiar a Revolução Francesa.
Ao final da segunda aula os alunos foram convidados a fazerem uma atividade
que será exposta em seguida.

Estudo de gênero: a participação das mulheres na revolução francesa e o quadro la


liberte guidant le peuple (1830), de eugène delacroix (1798-1863).
Durante a regência do estágio utilizamos a seguinte passagem do livro didático
para tratar sobre a participação das mulheres no processo da Revolução Francesa.
Imagem e texto foram utilizados em sala de aula (retirados do próprio livro didático dos
alunos) para mostrar aos alunos que outros personagens além dos homens constroem a
história, porém, não aparecem ou não é dado o devido destaque. Nesse sentido, as
mulheres aparecem como aquelas que também fizeram parte desse processo que
propunha uma mudança radical da sociedade francesa, até o momento controlada por
um rei e um clero que ditavam as regras. Ao falarmos sobre essas mudanças,
encabeçadas por uma burguesia que também queria usufruir de regalias e privilégios, as
camadas mais pobres começaram a ser incluídas em um discurso que pregava liberdade
e igualdade de direitos para todos, slogans da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão.
Ao pensarmos em abordar questões de gênero em nenhum momento tentamos
tratá-lo sob o viés dos alunos, embora tenhamos percebido que durante as aulas houve
maior participação dos meninos do que das meninas. Apesar de estarmos em uma escola
do campo, esse mesmo comportamento foi identificado nos estágios anteriores nas
escolas da zona urbana.
Como complemento a participação das mulheres na Revolução Francesa
utilizamos ao final da aula o quadro abaixo de Eugène Delacroix, La liberte guidant le
peuple, de 1830, destacando os seguintes pontos:

12
FIGURA 2 - atividade desenvolvida com os alunos.

1) O que os alunos veem no quadro?


2) Qual o significado desta mulher seminua
carregando uma bandeira?
3) Que bandeira é essa?
4) Quem está ao redor dela na imagem?
5) Por que a mulher como representação da
Liberdade?

Fonte: as autoras.

Inicialmente esclarecemos que a mulher retratada na obra representava a


liberdade nua e crua. Segundo Leite (2014), ―A mulher que representa a Liberdade em
7
sua tela é uma mulher do povo, com o peito nu e os cabelos ao vento.‖. Ao carregar
consigo a bandeira da França e empunhá-la, este seria um gesto de convocação a
participação das pessoas em busca da liberdade tão desejada. A obra mostra homens e
crianças, armados ou não, entre vivos e mortos, sendo guiadas pela liberdade numa
tentativa de ilustrar um desejo coletivo que poderia custar a própria vida.
Explicamos que quase nada mudou na vida da população mais pobre na França
após a Revolução e, no caso específico das mulheres, apesar de sua participação muitos
dos direitos só foram concedidos posteriormente ao movimento, como por exemplo o
direito ao voto. Sobre isso, Soihet esclarece ao analisar a história das mulheres na
historiografia fazendo um contraponto entre representações onde as mulheres são
vitimizadas e outras em que aparecem como subversivas, sugerindo a busca de outros
valores.

Num outro tipo de abordagem, destacam-se aquelas obras que creditam


especial atenção ao movimento da Revolução Francesa, quando as mulheres
se vêem despojadas da cidadania por uma ordem que ajudaram a fundar. As
reivindicações se mantêm latentes, manifestando-se em outros momentos
críticos da história francesa, quando vislumbram a possibilidade de brechas
no sistema de poder. No tocante aos movimentos feministas da virada do
século, alguns autores ressaltam o seu moralismo, a diversidade de correntes,
suas aspirações em torno da igualdade de direitos, e, em especial, do voto. 8

7
LEITE, Mazé. A política e os artistas. 29/setembro/2014. Disponível em:
http://artemazeh.blogspot.com.br/search/label/Delacroix. Acesso em: 08 mai. 2015.
8
SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Campus, 1997, p. 408.

13
Considerações finais:
A partir da experiência deste estágio foi possível percebermos mais uma
possibilidade de trabalho do professor: o ensino em zona rural e como este deve se
estruturar. Além disto foi de extrema importância um estudo prévio sobre as
perspectivas governamentais de educação rural, partindo da nomenclatura. Para encerrar
este relato de experiência em estágio V, trazemos uma imagem, uma fotografia
retratando este espaço escolar à partir da porta da sala do 5º ano, com a presença da
professora e dos alunos, bem como a vista das janelas e porta.

FIGURA 3 – fotografia da vista de uma sala de aula a partir da porta.

Fonte: as autoras.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,


diversidade e Inclusão - SECADI. Educação do Campo: marcos normativos/Secretaria e

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,


diversidade e Inclusão - SECADI. Educação do Campo: diferenças mudando
paradigmas – Brasília: SECADI, 2007. 96 p

CALDART, Roseli Salete. Por uma Educação do Campo: traços de uma identidade em
construção. In: KOLLING, Jorge Edgar; CERIOLI, Paulo Ricardo; CALDART, Roseli
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – Brasília: SECADI,
2012. 96 p
14
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). SOIHET, Rachel. História
das Mulheres. In: ___________. Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

FERREIRA, F. de J.; BRANDÃO, E. C. Educação do campo: um olhar histórico, uma


realidade concreta. Revista Eletrônica de Educação. Ano V. No. 09, jul./dez. 2011.
Disponível em:
http://www.unifil.br/portal/arquivos/publicacoes/paginas/2012/1/413_546_publipg.pdf.
Acesso em: 08 mai. 2015.

LEITE, Mazé. A política e os artistas. 29 set. 2014. Disponível em:


http://artemazeh.blogspot.com.br/search/label/Delacroix. Acesso em: 08 mai. 2015.

OLIVEIRA, C. M.de; BOIAGO, D. L. Bases legais para uma educação do e no


campo e as experiências educativas de uma escola de agroecologia na região norte
do paraná, 2012. Disponível em:
http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/1788/
142. Acesso em: 08 mai. 2015.

SALETE. Educação do Campo: identidade e políticas públicas. Brasília: DF, 2002.

SANTOS, Jânio Ribeiro dos. Da educação rural à educação do campo: um enfoque


sobre as classes multisseriadas. IV Colóquio Internacional ―Educação e
Contemporaneidade‖. Laranjeiras, Sergipe: set. 2010, p.3. Disponível em:
http://www.gepec.ufscar.br/textos-1/textos-educacao-do-campo/da-educacao-rural-a-
educacao-do-campo-um-enfoque-sobre-as-classes-multisseriadas/view. Acesso em: 8
mai. 2015.

SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 408.
UBERLÂNDIA. Lei nº 11.444, de 24 de julho de 2013. Institui a rede pública
municipal pelo direito de ensinar e de aprender no município de Uberlândia e dá outras
providências. Diário Oficial do município, Uberlândia, MG, 26 de julho de 2013.

Sites consultados:
https://www.youtube.com/results?search_query=cantinho+da+hist%C3%B3ria+Revolu
%C3%A7%C3%A3o+Francesa
http://aprovadonovestibular.com/revolucao-francesa-%E2%80%93-causas-resumo.html
https://www.youtube.com/watch?v=6GeCxlSpJxk
http://www.brasilescola.com/historiag/revolucao-francesa.htm

15
ENTRE ESPANADORES E CANETAS: TRABALHO E EDUCAÇÃO NAS
RELAÇÕES DE GÊNERO NA CIDADE DE ARAGUARI

Andrezza Braz B. Nunes1


João Felipe .Espindola2
Tatiane Brito Martins3
Gilma Maria Rios4

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as construções de gênero que
contribuem para reforçar papeis sociais femininos ―próprios‖ para as mulheres, como
trabalho doméstico, cuidadoras e educadoras. A reflexão parte do diálogo realizado por
meio de entrevistas com trabalhadoras domésticas, cuidadoras no geral e educadoras do
ensino fundamental, residentes em Araguari, cidade do interior mineiro, moradoras de
bairros em que, os alunos do curso de medicina atuaram nos anos de 2014 e primeiro
semestre de 2015, bem como no debate com a bibliografia sobre o tema. Ao realizar a
revisão da literatura, observamos que o trabalho feminino, em geral, aparece no interior
dos estudos sobre as mulheres, especialmente na perspectiva das relações de gênero,
sendo que, as relações de gênero são fruto de um processo pedagógico que se inicia no
nascimento e continua ao longo de toda a vida, reforçando a desigualdade existente
entre homens e mulheres, especialmente em torno da sexualidade, da reprodução, e
divisão sexual do trabalho. Trata-se de uma tentativa de construir uma discussão das
relações de gênero nas perspectivas de gênero, trabalho e educação, percebendo
permanências e mudanças do papel das mulheres no mundo trabalho. Neste contexto as
imbricações entre teoria de gênero e trabalho feminino se faz presente na trajetória de
mulheres que se ocupam destes trabalhos como atividade principal. Não nos
esquecemos que a sociedade tem modelos ideais e espera que os sujeitos sigam estes
moldes, que reproduza estes papéis ideais ao reforçá-los e naturalizá-los, portanto não
tem um papel neutro nesse processo. Assim, trabalhar gênero, em um espaço específico
junto à educação e o trabalho torna possível ações mais efetivas na desconstrução de
modelos tão arraigados, construídos e estruturados em determinados momentos
marcados por relações de poder tanto no âmbito público como no privado.

Palavras- Chave: Gênero. Educação. Mercado de Trabalho.

Nas últimas décadas o Brasil passou por profundas transformações econômicas,


políticas, sociais e culturais, que marcaram a trajetória da saúde pública e mudanças

1
- Aluna do Curso de Medicina do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC.
2
- Aluno do Curso de Medicina do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC.
3
- Aluna do Curso de Medicina do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC.
4
- Professora Doutora em História e Coordenadora do Grupo de Pesquisa ―História, Gênero e Cotidiano‖
do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC. riosmaria@ig.com.br
16
radicais no estatuto social das mulheres. Com aumento expressivo da participação na
força de trabalho, queda da natalidade e relativo aumento do nível de escolaridade, mais
acesso à independência econômica e jurídica configuram novo quadro velado, que por
muitas vezes esconde uma outra realidade, que as estatísticas não apresentam. Uma vez
mais instruídas, as brasileiras vêm aumentando de forma significativa e constante sua
participação no mercado de trabalho; nesta década, ocorreu um incremento de 24% na
atividade feminina. O perfil da trabalhadora também mudou, a maioria é casada e tem
filhos. A maternidade já não é desculpa de afastamento do trabalho, para as mulheres,
sendo 44% da população economicamente ativa, continuam ativas na fase reprodutiva, o
que não ocorria anteriormente. Ao desenvolver o presente trabalho com o objetivo de
analisar as construções de gênero que contribuem para reforçar papeis sociais femininos
―próprios‖ para as mulheres, como trabalho doméstico, cuidadoras e educadoras em
Araguari, cidade do interior mineiro, onde prevalece a mão de obra assalariada no setor
primário e terciário para ambos os sexos. Porém, as desigualdades existentes na
sociedade brasileira e como não poderia deixar de ser em Araguari, refere-se às relações
de gênero, menos relacionada à questão econômica e mais ao ponto de vista cultural e
social, constituindo, a partir daí, as representações sociais sobre a participação da
mulher dentro de espaços variados, seja na família, na escola, igreja, nos movimentos
sociais, enfim, na vida em sociedade.
Em razão do avanço e crescimento da industrialização no Brasil, ocorreram a
transformação da estrutura produtiva, o contínuo processo de urbanização e a redução
das taxas de fecundidade nas famílias, acomodando a inclusão das mulheres no mercado
de trabalho. A partir da década de 70 até os dias de hoje, a participação das mulheres no
mercado de trabalho tem apresentado uma espantosa progressão. No entanto, o trabalho
das mulheres não depende tão somente da demanda do mercado e das suas qualificações
para atendê-la, mas transcorre também de uma articulação complexa de características
pessoais e familiares, como a presença de filhos, associada ao ciclo de vida das
trabalhadoras, à sua posição no grupo familiar como chefe de família devido à
obrigação de prover ou complementar o sustento do lar , são fatores que estão sempre
presentes nas decisões das mulheres de ingressar ou permanecer no mercado de
trabalho.
Para alcançar o objetivo proposto e resolver a problemática da pesquisa: O que
reforça o papel social das mulheres, em Araguari? elaboramos um questionário que
17
abordava inúmeros temas como remuneração, escolaridade, provedor familiar,
conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, desejo de fazer algum curso superior, entre
outras perguntas. Foram entrevistadas 60 mulheres sendo estas professoras do Ensino
Fundamental (41,6%), donas de casa (16,6%) e cuidadoras no geral (41,6%). Entre elas,
33,3% trabalhavam em casa, 47% trabalhavam fora de casa e 20% em ambos. 81,6%
recebiam algum tipo de remuneração, sendo que 58,3% recebiam em média dois
salários mínimos. 51,6% trabalhavam fora para sustentar a casa. 80% dessas conhecem
alguma mulher que exerce a mesma função de um homem e recebe menos. Mais da
metade das entrevistadas (57%) eram casadas e com idade entre 15 e 45 anos; 87%
possuíam filhos sendo 83,3% entre um a três filhos. 41,6% das casas o marido era o
provedor, sendo a mulher em apenas 26,6% dos casos. Entre as casadas, 61,6% tinham
alguma ajuda de terceiros nas atividades domésticas. Quanto ao grau de escolaridade,
28,6% possuíam ensino fundamental incompleto e 25% ensino superior completo.
73,3% dessas mulheres fizeram ou tem vontade de fazer algum curso superior sendo a
área de humanas a mais procurada (48,3%). 63,3% tiveram apoio nos estudos e 60%
nunca foram informadas ou instruídas sobre os benefícios de se estudar. 78,3% gostam
da atual profissão. Enquanto 80% ouviram falar ou mesmo sabem como funciona a lei
Maria da Penha, sendo 20% nunca ouviram falar.
A maioria das entrevistadas considera o trabalho remunerado fundamental em sua vida.
Entretanto, é possível afiançar, que na esfera da oferta de trabalhadoras, têm havido
significativas mudanças. No entanto, ainda há resquícios de continuidades que
dificultam a dedicação das mulheres ao trabalho ou fazem dela uma trabalhadora de
segunda categoria, uma vez que, as mulheres seguem sendo as principais responsáveis
pelas atividades domésticas e pelo cuidado com os filhos e demais familiares, o que
representa uma sobrecarga para aquelas que também realizam atividades econômicas.
Como exemplo dessa sobrecarga, vemos nitidamente a grande diferença existente entre
a dedicação masculina e a feminina aos afazeres domésticos.
Outro exemplo a ser considerado diz respeito à desigualdade dos rendimentos
femininos frente aos masculinos, traço persistente, seja qual for o ângulo sob o qual se
analise a questão. As mulheres ganham menos que os homens involuntariamente do
setor de atividade econômica em que trabalhem. No ramo da educação, saúde e serviços
pessoais, espaço de trabalho tradicionalmente feminizado,

18
Todas estas mudanças inserem-se em um contexto global de: privatização dos
serviços públicos, redução de direitos sociais e trabalhistas, políticas públicas mais
voltadas para os estratos mais pauperizados da população, flexibilização e precarização
das relações de trabalho, além de uma persistente taxa de desemprego. Isto gera um
contexto sócio histórico, marcado pela extrema concentração da renda e de
intensificação das desigualdades sociais, a mulher casada, com filhos menores na força
de trabalho, tentam se inserir no mercado de trabalho, chefiando muitas das famílias
brasileiras, conformando a chamada ‗feminização da pobreza‘ (BRITO, 2000). A
conjugação destes distintos fatores se insere no que vem se denominando ‗ajustes
neoliberais‘. Estudos apontaram, um contexto de crescente de precarização e
flexibilização das relações de trabalho, ocorre um incremento da inserção da força de
trabalho feminina no mercado de trabalho e maior vulnerabilidade das mesmas diante da
precarização das relações laborais (NOGUEIRA, 2006; ANTUNES, 1999). Este
processo teria como objetivo uma reorganização do sistema produtivo internacional, que
se aproveita dos baixos salários e da frágil regulamentação do trabalho em países em
desenvolvimento, com tendência de otimizar a superexploração da força de trabalho
feminina, como apontado por Brito (2000).

Aquino et al. (1995, p.283), apontou que:

[...] a influência do papel da mulher na reprodução social é tão grande, que a


própria escolha e a manutenção do emprego, da extensão das jornadas e dos
turnos de trabalho profissional incluem entre os critérios a possibilidade de
conciliação com o cuidado da casa e dos filhos (AQUINO, 1995,p 283).

Vários estudos têm revelado que a ―proximidade entre casa e local de trabalho é
um dos critérios fundamentais de escolha de emprego para as mulheres, mesmo em
detrimento de outros fatores, como o salário e a satisfação profissional‖ (AQUINO et
al., 1995). Para muitas estar próxima dos filhos é uma das principais justificativas para
manterem empregos precários e mal remunerados. A ‗qualificação de gênero‘, constitui-
se como expressão do ‗amor materno‘ ‗vocação natural‘, socialmente desvalorizada,
sendo essa uma das razões pelas quais as trabalhadoras continuam a receber menores
salários, mesmo com existência de discursos que alçam as mulheres a uma situação de
poder e igualdade.

19
Essa forma de representação social da divisão do trabalho entre homens e
mulheres, sempre foi marcada pela relação entre produção e reprodução, mesmo antes
do capitalismo. Entretanto com o desenvolvimento do capitalismo, a força de trabalho é
vendida como uma mercadoria e o espaço doméstico passa a ser uma unidade familiar
de domesticação e disciplinarização da força de trabalho necessária para produzir
riqueza para uma minoria. Segundo Kergoat(2002), podemos observar que a
―estruturação atual da divisão sexual do trabalho surgiu simultaneamente ao
capitalismo‖ (pg. 234) e que a relação do trabalho assalariado não teria podido se
estabelecer na ausência do trabalho doméstico. A conformação dessa divisão sexual do
trabalho evidencia que a nova ordem social, estabelecida por meio dos interesses do
capital, para reestruturação da dominação patriarcal.

A divisão sexual do trabalho é associada as relações que associam homens/


produção/esfera pública e mulheres/reprodução/espaço privado, conferindo a essas
associações, dentro do mesmo princípio hierárquico, uma qualificação da primeira como
sendo da ordem da cultura e da segunda como sendo da ordem da natureza. De acordo
com p pensamento de Hirata (1986), ―a divisão sexual do trabalho tem uma
consequência importante, na reprodução ampliada das diferentes instituições sociais‖.
Para a autora, essa divisão orienta a formação escolar, influenciando a linguagem que
nomeia os elementos do mundo do trabalho, defini o que é masculino e feminino, a
percepção sobre a família e sobre a política pública. Muitos estudos mostram dados
gritantes onde as mulheres além de trabalharem foram de casa, realizam os trabalho
doméstico sozinhas e não contam com qualquer ajuda masculina. Outros estudos trazem
a percepção de que as mulheres são as maiores, senão as únicas, responsáveis pelo
trabalho doméstico, e vem sendo apontada de longa data em estudos feministas.
Isso mostra uma realidade imune à mudança, em que as mulheres continuam
sendo as principais responsáveis pelos cuidados com a casa, com as crianças, com os
idosos e os doentes. Elas fazem as horas do seu dia se multiplicar e dedicam várias
horas por semana ao trabalho doméstico, serviço assalariado, mãe, esposa entre outros.
Como alguns estudiosos do assunto levantam:

O estado conjugal e a presença de filhos, associados à idade e à escolaridade


da trabalhadora, as características do grupo familiar, como o ciclo de vida
familiar em formação, com filhos pequenos, famílias maduras, filhos
adolescentes, famílias mais velhas, e a estrutura familiar - família conjugal,
chefiada por mulher, ampliada, presença de outros parentes - são fatores que
20
estão sempre presentes na decisão das mulheres de ingressar ou permanecer
no mercado de trabalho, embora a necessidade econômica e a existência de
emprego tenham papel fundamental (BRUSCHINI, 1998:4).

O trabalho doméstico sempre foi de responsabilidade das mulheres, para as


mulheres de todas as classes. Há, no entanto, uma desigualdade social histórica na
forma de enfrentar essa relação. No contexto atual, as mulheres estão cada vez mais
inseridas no mercado de trabalho, sem que isso signifique uma transformação na sua
relação com o trabalho doméstico. Temos aí uma contradição entre autonomia
financeira e sobrecarga de trabalho e de tempo de trabalho em decorrência de uma
jornada que compreende trabalho assalariado e trabalho doméstico não assalariado. Para
as mulheres que estão exclusivamente no trabalho doméstico não remunerado, a
contradição se coloca em outros termos, pois, nesse caso, a falta de uma renda própria é
um impedimento à autonomia das mulheres.

No século XX, o feminismo contemporâneo revelou, analisou e teorizou sobre


essa divisão, produziu-se avanços na teoria crítica e colocando em questão o conceito de
trabalho que ao longo do tempo foi referido apenas ao trabalho produtivo e tratado pelas
ciências sociais, pela economia, nos planos de desenvolvimento das políticas nacionais
e dos organismos internacionais. O trabalho reprodutivo ou trabalho doméstico, assim
definido no contexto da sociedade capitalista, esteve fora do conteúdo que dava
significado ao conceito de trabalho até muito recentemente. Segundo Bruschini,

Devido à ausência de um conceito que lhe desse visibilidade, o trabalho


doméstico permaneceu, por muito tempo, ignorado nos estudos sobre o
trabalho. Os estudos sobre a divisão sexual do trabalho, porém, não tiveram
dificuldade em mostrar o estreito vínculo entre trabalho remunerado e não-
remunerado. Esta nova perspectiva de análise, articulando a esfera da
produção econômica e da reprodução, permitiu observar as consequências
das obrigações domésticas na vida das mulheres, limitando seu
desenvolvimento profissional. Com carreiras descontínuas, salários mais
baixos e empregos de menor qualidade, as mulheres muitas vezes acabam por
priorizar seu investimento pessoal na esfera privada (BRUSCHINI, 2007, p.
10).

Essa visão da mulher, esses papeis, acaba por influenciar a forma como a mulher
se coloca no mercado de trabalho, a forma como os patrões e os homens em geral vão

21
tratar as mulheres. Essa visão vai influenciar tanto nas oportunidades de acesso ao
emprego, no tipo de trabalho, como nas condições em que se desenvolve o trabalho.
Conforme Bruschini (1998), a definição social dos papeis masculinos e
femininos no âmbito da família gera ―consequências diferenciais sobre um e outro sexo,
em sua participação no mercado de trabalho‖. A identidade da mulher como
trabalhadora, portanto, vai estar sempre associada a seu papel de reprodutora, originária
da mulher família, mãe, dona-de-casa vai estar sempre na frente. O trabalho, por
exemplo, é tratado no masculino e o trabalho produtivo é feito pelos trabalhadores. É ao
homem que se associa a imagem de trabalhador, de provedor da família. Essa imagem
da mulher vai trazer limitações a uma adequada colocação no mundo do trabalho,
mostrando no mercado a diferença de valorização, submetendo a mulher a maiores
jornadas de serviço com remuneração muitas vezes inferiores.
No campo produtivo, há uma concepção sobre o que é o trabalho de homens e o
trabalho de mulheres e há uma divisão de tarefas correspondente. Essa divisão incide
também sobre o valor do trabalho dos homens e das mulheres, expresso no valor
diferenciado e desigual de salários. Além disso, no trabalho produtivo há uma captura
das habilidades desenvolvidas no trabalho doméstico que, dessa forma, além de ser
apropriado como uma forma de exploração do trabalho das mulheres, e também
funcionar como meio de reafirmar a naturalização dessas habilidades, algo inerente à
concepção de um ser feminino e como justificativa da desigualdade salarial.
Essas imagens também influenciam às etapas iniciais da socialização dos
indivíduos e estão baseadas, entre outras coisas, na separação entre o privado e o
público, e na definição de uns como territórios de mulheres e outros como territórios de
homens. Por sua vez, essas ―imagens condicionam fortemente as formas (diferenciadas
e desiguais) de inserção no mundo do trabalho: tanto as oportunidades de acesso ao
emprego como as condições em que este se desenvolve‖ (ABRAMO, 1998:18).
A propósito de a imbricação entre relações de classe e relações de sexo, Kergoat
demonstra que não se pode tratar essas relações como hierárquicas, mas como
―coextensivas‖. Dito de outra maneira, isso significa que ―são conceitos que se
sobrepõem parcialmente, e não conceitos que se ‗recortam‘ ou que se articulam‖
(KERGOAT, 2002, p. 235). A coextensividade e a consubstancialidade das relações
sociais geram as relações sociais de raça, gênero e classe, se constituem em um
movimento marcado pelas contradições que formam a realidade social.
22
A divisão sexual do trabalho também aparece no interior da esfera do trabalho
reprodutivo através da distribuição desigual de trabalho entre mulheres e homens e de
uma diferenciação de tarefas, caracterizando outra consequência, a desqualificação do
trabalho da mulher. As habilidades manuais das mulheres reduziram-se a atividades
desvalorizadas e geralmente relacionadas a certos saberes femininos considerados
naturais, como, a destreza manual, a paciência para realizar tarefas monótonas e
repetitivas, e a atenção a detalhes. Essa visão é aproveitada pelos patrões que colocam
as mulheres em funções como, por exemplo montagem de peças miúdas e embalagens
na indústria eletroeletrônica, costura nos ramos têxteis, digitação nos bancos,
cuidadoras, educadoras, agentes comunitárias de saúde, entre outras.

É importante esclarecer que nem todas as mulheres têm ou desenvolvem essas


habilidades e características, mas como estão associadas à natureza feminina e ao
gênero feminino, é pressuposto que não precisam de treinamento, nem de capacitação.
Além disso, a desqualificação não é só porque o que as mulheres fazem é resultado de
habilidades naturais, mas também porque são discriminadas por serem mulheres. Por
definição elas não são reconhecidas como qualificadas e são consideradas cidadãs de
segunda categoria.

De acordo com o levantamento do salário recebido pelas respondentes do


questionário do estudo feito por nós, as mulheres são portadoras de uma força de
trabalho que vale menos no mercado, sendo que elas executam tarefas semelhantes ao
dos homens, como exemplo podemos citar a de cuidadora. A relação entre mulher,
corpo/reprodução e trabalho está nos fundamentos da dominação capitalista/patriarcal
materializada na divisão sexual do trabalho e reiterada na dimensão discursiva. Essa
relação ocorre a partir da capacidade reprodutiva associada à responsabilidade com a
reprodução social no cotidiano, não sendo um modelo que se dá de forma homogênea e
sua inserção varia significativamente de um setor para outro, de acordo com o modo de
inserção na economia mundial, e se a mão de obra é masculina ou feminina.

Conforme Harvey (1992), a acumulação flexível:

é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia


na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimentos de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de

23
inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível
envolve rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual tanto
entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto
movimento no emprego no chamado "setor de serviços", bem como
conjuntos industriais completamente novos em regiões até então
subdesenvolvidas (HARVEY, 1992:140).

É importante frisar que Harvey (1992) não concorda com a posição de que a
acumulação flexível já é totalmente hegemônica e tenha elementos novos que rompem
com antigos paradigmas da acumulação capitalista. Para ele a acumulação flexível deve
ser considerada uma combinação particular e, ser trabalhado elementos,
primordialmente antigos no âmbito da lógica geral da acumulação do capital.

Harvey ainda indica algumas das péssimas consequências da flexibilização,


como os níveis altos de desemprego estrutural, ganhos modestos de salários reais, a
rápida destruição e reconstrução de habilidades, o retrocesso do poder, e a redução do
emprego regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou
subcontratado, afetam principalmente as mulheres. Mesmo com a diminuição do poder
sindical, redução do poder dos trabalhadores brancos do sexo masculino do setor
monopolista, não é verdade que os excluídos desses mercados de trabalho - negros,
mulheres, minorias étnicas de todo tipo - tenham adquirido uma súbita paridade, exceto
no sentido de que muitos operários homens e brancos tradicionalmente privilegiados,
foram marginalizados unindo-se aos excluídos. A questão racial é também um
determinante do valor da força de trabalho e das oportunidades de emprego. No Brasil, a
estética branca, europeizada ou de herança europeia, é mais valorizada no mercado.

Assim sendo, um desafio a ser olhado com perspicácia, está o de incluir na


crítica ―aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho, o critério de boa presença
como um mecanismo que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres
brancas e negras‖ (CARNEIRO, 2005, p. 23).

Apesar do acesso de algumas mulheres a posições mais privilegiadas,


principalmente em postos tradicionalmente ocupados por homens, de maneira geral, as
novas condições do mercado de trabalho acentuaram a vulnerabilidade de grupos
tradicionalmente discriminados como as mulheres, e foi percebido pelos alunos à
necessidade de um estudo na cidade de Araguari, com mulheres de alguns bairros da
24
cidade (trabalhadoras domésticas, cuidadoras no geral e educadoras do ensino
fundamental). Uma vez que durante as atividades dos alunos os mesmos tiveram contato
com muitas mulheres que vivem realidade que os estudos apontam, não fugindo das
condições das mulheres do país, subsidiados ainda pela falta de estimulo e dificuldade
de inserção no mercado que cada vez exige mais e valoriza menos as mulheres.

Ao analisar os resultados do questionário foi possível levantar o perfil


preponderante das entrevistadas, onde apreende-se que são mulheres casadas, mães de 2
filhos, com idade maior que 45 anos, com ensino fundamental incompleto.

Mediante os resultados das entrevistas realizadas, chegamos à conclusão que as


mulheres percebem um salário inferior ao dos homens, apresentando um resultado
dominante de 2 (dois) salários mínimos. E que as mulheres contribuem
significativamente com os seus rendimentos no orçamento doméstico. Sendo que estas
labutam com o intuito de manter o lar e ou complementar a renda familiar.

A maioria não recebeu ou recebi incentivo para estudar, porém gostariam de


continuar os estudos embora a falta de apoio e incentivo familiar e comunitário seja um
fator impeditivo e ou desanimador.

Por fim, ficou claro que a falta de apoio e reconhecimento às mulheres no que
tange ao mercado de trabalho e educacional contribuem significativamente para que as
mesmas continuem subjulgadas. Fator imperioso, que não poderia deixar de ser citado é
o preconceito que ainda domina nossa sociedade, impondo as mulheres um papel
limitado e restrito ao espaço do lar e do cuidado para os familiares.

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25
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Trabalho e Gênero: Mudanças, permanências e desafios. GT População e Gênero
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NOGUEIRA, C.M. O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho e na
reprodução: um estudo das trabalhadoras do telemarketing. São Paulo: Expressão
Popular, 2006.

26
UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO FEMININA E AS REFERÊNCIAS
CULTURAIS NA SAGA HARRY POTTER: QUANDO ATÉ MESMO A MAGIA
DIALOGA COM A REALIDADE
Arielle Farnezi Silva1

Olávio Bento Costa Neto2

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar como as mulheres são representadas na literatura
contemporânea. Para tanto, foram utilizados os sete livros que compõe a saga Harry
Potter escrita por Joanne Rowling – publicados entre o final do século XX e início do
XXI. A narrativa se passa em 1990 na Inglaterra, num universo reservado aos bruxos,
onde não existe tecnologia e os ambientes nos remetem à era vitoriana. É possível
observar uma clara influência de elementos mitológicos e lendas antigas nas criaturas
presentes na história. No mundo paralelo àquele encontram-se os não-bruxos, chamados
muggles, que habitam uma Inglaterra moderna e invadida pela tecnologia. É importante
pensarmos que a série é um dos maiores sucessos literários do mundo, causando um
grande impacto cultural na sociedade contemporânea e dialogando com as referências
de arte popular, sendo na maioria dos casos o primeiro contato de crianças e
adolescentes com a literatura. No entanto, apesar das diferenças entre o mundo mágico e
o não-mágico, a série é composta por personagens que também enfrentam preconceitos
e dilemas morais, assim, nos deparamos com mulheres fortes e independentes. Além de
uma análise da representação feminina nesta obra, pretendemos observar de que
maneira essas personagens de destaque podem influenciar seus leitores e leitoras, nos
atentando também para as escolhas que a autora dos livros fez, como por exemplo,
escolher um personagem masculino para representar o herói da narrativa.

Palavras-Chave: Mulheres, Literatura e Harry Potter.

Introdução – O menino que sobreviveu

Em 1997 era lançado no Reino Unido o primeiro livro de uma série que, mais
tarde, se tornaria um fenômeno mundial. Intitulado ―Harry Potter e a Pedra Filosofal‖3,

1
Graduada em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: arielle.sh@hotmail.com
2
Graduando em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: olaviobis2@gmail.com
3
Os nomes utilizados no decorrer deste trabalho manterão a grafia da tradução brasileira da obra.
27
a obra conta a história de um garoto, Harry Potter, órfão, que vive com os tios, os quais
não dão à mínima importância para ele. Para surpresa de Harry, ao completar onze anos
de idade, ele descobre ser diferente de seus tios e primo, ele é, assim como seus pais,
um bruxo e possui uma vaga na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Nos dez anos
que se passaram a autora, J.K. Rowling, publicou outros seis volumes: ―Harry Potter e
a Câmara Secreta‖, ―Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban‖, ―Harry Potter e o Cálice
de Fogo‖, ―Harry Potter e a Ordem da Fênix‖, ―Harry Potter e o Enigma do Príncipe‖ e
―Harry Potter e as Relíquias da Morte‖ contando as aventuras do jovem e seus amigos
na imensidão do mundo mágico. Escrito, inicialmente, para crianças, os livros da saga
de Harry Potter se tornaram mundialmente conhecidos, foram traduzidos para mais de
60 línguas e conquistou fãs de todas as idades. Entre os anos de 2001 e 2011, os livros
foram adaptados para o cinema, em oito produções – o último livro, ―Harry Potter e as
Relíquias da Morte‖, foi dividido em dois filmes - de sucesso estrondoso, arrecadando
em todo o mundo cerca de 7,723 bilhões de dólares, tornando-se uma das franquias
mais lucrativas da história 4, ultrapassando grandes sucessos como ―Star Wars‖ e ―O
Senhor dos Anéis‖.

Harry Potter e gênero

Uma das propostas deste trabalho é analisar previamente como as personagens


femininas da série Harry Potter são representadas por J. K. Rowling. Para tanto, nos
utilizaremos de artigos que a própria autora da série disponibilizou em seu site
―Pottermore‖, onde encontramos textos mais aprofundados sobre cada personagem,
além das leituras dos sete livros que compõem a saga.

Estudos e análises sobre mulheres em obras literárias é enriquecedor quando


consideramos o legado que é deixado por tais livros e a influência que os mesmos
exerce sobre seus leitores. Aqui, temos uma das sagas de maior sucesso do mundo, que
alcança como público leitor, em sua maioria, crianças e adolescentes. Além do mais,
como vimos anteriormente, Harry Potter é, de acordo com várias pesquisas realizadas
por universidades inglesas e norte-americanas, o primeiro contato de crianças e
adolescentes com a literatura e, assim, são seus principais estimulantes e influentes.
Então, a maneira como Rowling coloca suas personagens femininas, além de outras

4
Dados referentes até o ano de 2014, recolhidos do site
http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-110358/.
28
questões, influenciam a mentalidade de seus fãs e podem refletir no comportamento dos
mesmos.

Na literatura clássica ou tradicional as mulheres são apresentadas de maneira


submissa e dependente das vontades dos personagens masculinos. Mesmo na literatura
contemporânea, principalmente na infanto-juvenil, as mulheres são meros personagens
passivos que se encantam pelo herói/príncipe da história que é sempre um homem.
Nesses romances, os homens aparecem como personagens especiais e cheios de
qualidades quase (e às vezes literalmente) sobre-humanas, enquanto as mulheres são
personagens que não possuem nada de especial além de uma baixa autoestima e que têm
a ―sorte‖ daquele homem se interessar por ela.

Em Harry Potter, temos personagens que nos fornecem uma análise rica,
destacamos as seguintes: Minerva McGonagall, Gina Weasley e Hermione Granger.
Minerva McGonagall – em uma análise superficial, é uma personagem tradicionalmente
típica na literatura infanto-juvenil contemporânea; é uma professora mais velha, leciona
transfiguração em Hogwarts, extremamente reservada que adota uma postura
conservadora e é bastante rigorosa, mas em contraponto é bondosa, inteligente e está
sempre à disposição para ajudar –, a personagem Gina Weasley – irmã do melhor amigo
de Harry, uma estudante que tem a primeira aparição na obra aos 11 anos de idade, no
início da narrativa Gina é uma menina tímida, mas ao desenrolar da história se
transforma em uma mulher forte e independente –, e Hermione Granger – melhor amiga
de Harry, no início da narrativa é considerada uma ―irritante sabe-tudo‖, mas no
decorrer do primeiro livro se mostra uma menina gentil e corajosa. Quando prestamos
mais atenção nessas personagens descobrimos que elas fogem da figura feminina
retratada de forma submissa presente em grande parte dos livros de literatura.

Antes de nos atentarmos as personagens femininas, é importante levantarmos


uma questão: por que a autora da série escolheu para personagem principal, o herói da
narrativa, um homem? Seria por medo de não fazer tanto sucesso sendo a protagonista
uma mulher? Essa questão se torna ainda mais emblemática quando tomamos
conhecimento da vida da autora. J. K. Rowling é um exemplo de mulher forte e
independente, que alcançou o sucesso com muito trabalho. Mãe solteira e vinda de
família pobre, teve que criar seus filhos sozinha sem a ajuda do pai das crianças. Apesar

29
de toda dificuldade conseguiu sozinha alcançar sucesso escrevendo uma das obras mais
lidas do mundo. Rowling acredita no feminismo e defende os direitos das mulheres em
campanhas e mostra sua opinião em redes sociais e entrevistas. Sobre a escolha do
protagonista da série, o que podemos dizer é que ela não colocou uma personagem
mulher no papel central da história, mas Harry Potter também não é o herói perfeito. O
personagem possui vários defeitos e dificuldades e na maioria dos casos precisa da
ajuda de sua melhor amiga Hermione Granger para sair de situações difíceis. Além do
mais, Harry é rodeado de mulheres fortes, inteligentes e independentes.

Quando fazemos uma comparação dos homens com as mulheres no decorrer da


história, fica nítida a preferência da autora em privilegiar as mulheres. Não podemos
deixar de lado o fato que os três bruxos mais poderosos de todos os tempos aparecem na
série como homens, são eles: Albus Dumbledore (diretor da Escola de Magia e Bruxaria
de Hogwarts), Tom Riddle (mais conhecido como Lorde Voldemord, o vilão da série), e
o próprio Harry Potter, porém, as qualidades que os tornam tão poderosos, é quase
equivalente aos erros que cometeram – aqui falamos especificamente de Dumbledore,
que na adolescência perdeu sua irmã mais nova por causa da sua ambição, e Lorde
Voldemort, que é o mais cruel de todos os bruxos, mas, também devido a ambição que o
cegou, acabou sendo derrotado por Harry Potter. Agora, quando as personagens Lilian
Potter (mãe de Harry Potter que foi assassinada por Voldemort quando o garoto ainda
era um bebê) é mencionada, Minerva McGonagall, Gina Weasley, Hermione Granger,
Luna Lovegood (amiga de Harry) aparecem na narrativa, a autora mostra exemplo de
força, coragem e determinação e, mesmo essas personagens não sendo as mais
―poderosas‖ da série, a autora deixa evidente na narrativa que elas são completamente
capazes de fazer o que Dumbledore, Voldemort e Harry fazem. Esses exemplos são de
mulheres extremamente inteligentes e sensatas, por isso a chance de cometerem algum
erro, como os de Dumbledore ou Voldemort, na história é mínima.

Um detalhe interessante que observamos durante toda a saga, é que os


personagens masculinos, sempre possuem uma forte personagem feminina ao seu lado,
sejam eles vilões ou heróis.

Para isso, destacamos, mais uma vez, Hermione Granger, melhor amiga da
Harry, melhor aluna da classe e, muitas vezes, apresentada como a bruxa mais

30
inteligente da sua idade. Ela esteve ao lado do melhor amigo durante todos os desafios,
sempre contribuindo para que ele se saísse bem e enfrentasse-os com êxito, pensando
em soluções que outras pessoas não pensariam.

Lorde Voldemort é visto sempre acompanhado de sua mais fiel seguidora,


Belatriz Lestrange, bruxa de extremo poder mágico, disposta a tudo para agradar seu
senhor. Ela, diferente das demais citadas anteriormente, é uma vilã, perversa e
apaixonada pelo sofrimento de seus rivais. Belatriz é vista sempre disposta a obedecer
com louvor qualquer ato de maldade a qual é notificada. A análise de tal personagem é
importante para vermos que, nos dois lados de uma mesma moeda, existem
personalidades fortes vindas das mulheres, boas ou más, mostrando que, seja qual for
seu lado, elas podem ser confiantes, sagazes e competentes.

É claro que Harry Potter não é uma série composta apenas de mulheres
―exemplos‖ e independentes, na história temos exemplos de duas mulheres que são
bastante parecidas com aquelas retratadas em romances tradicionais, são elas: Molly
Weasley (bruxa, mãe de Rony Wealey, melhor amigo de Harry) e Petúnia Dursley (tia
de Harry que não pertence ao mundo mágico). Porém, é interessante analisar o papel de
cada uma delas ao longo da série.

Molly Weasley é casada, mãe de 7 filhos e dona-de-casa, sempre que aparece


nos livros está cuidando dos seus filhos, arrumando a casa, cozinhando ou fazendo
compras para casa. É a típica dona-de-casa que aparenta ser submissa ao marido, porém,
quando o mundo mágico está em perigo, sua imagem modifica e Molly participa das
batalhas mostrando ser uma bruxa bastante poderosa, assim como é vista como uma
segunda mãe para Harry, se preocupando com sua vida e seu bem-estar. Petúnia Durley
é bastante parecida com Molly; é uma dona-de-casa que cuida perfeitamente do marido
e do filho, porém, ao contrário de Molly, Petúnia não demonstra suas vontades, acata
prontamente às ordens do marido e não existe na narrativa momento algum que mostre
sua emancipação. Outra diferença crucial entre as duas mulheres é que Molly é uma
personagem ―do bem‖ que tem a simpatia do público, já Petúnia, que maltratava Harry,
é uma espécie de ―vilã‖ que qualquer fã da saga detesta. Assim, mesmo não sendo essa
a intenção da autora, Petúnia é um modelo que os leitores da saga, principalmente as
crianças, não vão querer seguir.

31
Molly Weasley possui uma outra particularidade: é a única personagem – e aqui
falando em personagens femininos e masculinos – pertencente ao lado ―bom‖ da
história que efetivamente tira a vida de outra personagem que, não por mera
coincidência, é Belatriz Lestrange. Como dito, Belatriz tem prazer em fazer o mal,
prazer esse que supera até o de seu mestre. Molly, ao matar Belatriz, mostra que é capaz
de tudo para defender sua família e impedir que o mal assuma o controle. Para muitos
dos fãs, a batalha entre as duas é mais impactante do que a batalha entre Harry Potter e
Lorde Voldemort. As duas representam então o extremo mal e o extremo bem.

Na história, os personagens principais, os ―bonzinhos‖ são livres de preconceitos


raciais e de sexo, o que existe até hoje no mundo real. É claro que existem os
personagens mais conservadores como existem também as personagens mulheres
ligadas a papéis tradicionais como mostramos a pouco, mas, em relação a gênero e raça,
são raras as ocorrências de preconceitos. Quando aparece um personagem que é
machista, por exemplo, ele sempre é retratado como conservador e está vinculado a uma
imagem corrupta e cruel (como é o caso da família Malfoy, inimigos de Harry). É
interessante mostrar que isso é uma forma de dar ―bons exemplos‖ para as crianças e
adolescentes que compõem a maior parte do público leitor da saga. Essa metodologia de
colocar os personagens mais carismáticos, os que conquistam o público como o
exemplo de boas ações a serem seguidas é uma tática comum na literatura infanto-
juvenil e é onde encontramos indícios do que o autor da obra quer transmitir para seus
leitores.

Harry Potter nas telas do cinema

As adaptações cinematográficas em muito se diferem dos livros, mesmo que a


história siga a mesma linha. Não adentraremos mundo a fundo na análise filmes, mas é
importante saber que essas diferenças também estão presentes nas personagens
femininas que aqui buscamos compreender, e de uma forma bem mais impactante.

A escrita de um livro e a produção de um filme são processos diferentes, cada


qual com seu próprio objetivo. Um fenômeno literário, quando adapto para o cinema,
precisa, evidentemente, se manter fiel à narrativa, mas existem outras preocupações. Por
ser uma mídia visual, as produções cinematográficas precisam causar impactos visuais
com suas cenas, a fotografia precisa causar tanto sentimentos nos espectadores quanto o
32
texto de um livro. O problema é quando essas necessidades acabam modificando a
história original.

De uma maneira geral, nos filmes – e, como dito anteriormente, nos livros – que
possuem narrativas de ação e aventura, existe uma tendência por parte dos roteiristas em
colocar as personagens femininas em situações de risco, forçando essas mulheres
―indefesas‖ esperar serem salvas pelo herói do enredo. O impacto disso em uma
adaptação pode ser bem grande, principalmente quando as personagens femininas
possuem personalidades fortes e se tornam essenciais para a construção da narrativa.
Esse é exatamente o caso da saga Harry Potter.

No decorrer dos livros, as mulheres tiverem papéis de suma importância para a


história, sejam eles para o bem ou para o mal, e participaram ativamente nos
acontecimentos centrais. Agora, para olharmos os filmes, nos atentaremos a duas das
personagens citadas anteriormente, Minerva McGonagall e Gina Weasley.

Minerva se mantem dentro do estereótipo de professora mais velha, rígida e


conservadora, sem muito destaque até o último filme da saga, Harry Potter e as
Relíquias da Morte Parte II, onde assume papel ativo durante a batalha que mudaria o
rumo do mundo bruxo. Entretanto, durante os outros filmes, ela sempre esteve um
pouco mais forte do que as demais personagens femininas e, vez ou outra, era
protagonista de situações importantes.

O mesmo não acontece com a personagem Gina que, durante todas as oito
produções cinematográficas, permanece na sua condição passiva e incapaz de ação. As
mudanças construídas na personalidade dela são um dos maiores desapontamentos nos
fãs da saga, já que no livro a personagem é de extrema importância e constantemente
participante de todos os acontecimentos. O que, talvez, possa ter motivado essa bruta
mudança na personalidade da Gina nos livros e nos filmes, seria o fato de que, ao final,
ela seja o par romântico do protagonista Harry Potter. Levamos assim, como
possibilidade e não algo confirmado, que os produtores não quiseram correr o risco de
ter a imagem de herói, do personagem principal, apagada ou ofuscada por sua
namorada.

Nota-se que, na construção fílmica de todas as personagens mulheres, não houve


a preocupação de deixa-las ativas na trama, contrariando suas respectivas nos livros de
33
J.K. Rowling e, mesmo usando como exemplo apenas essas duas, temos em vista que as
demais personagens femininas também sofreram com as adaptações. Mesmo que o
impacto disso cause certa decepção, temos que entender que as duas representações da
história – livros e filmes – foram feitas com necessidades diferentes e visando objetivos
diferentes e que, se na literatura as protagonistas mulheres estão ganhando mais força
com o passar das décadas, isso acontece de forma mais vagarosa nas produções do
cinema.

Para finalizar, podemos perceber que as relações entre gênero e literatura podem
ser vistas de diferentes maneiras e seu estudo é de extrema importância, seja
academicamente ou socialmente, cheios de questionamentos e possibilidades para a
pesquisa. O impacto que a saga Harry Potter tem em jovens de todo o mundo é
relevante para mostrar que, independente das características que estamos acostumados a
ver, onde o homem é sempre o herói, as mulheres podem sim ter papéis importantes e
influenciadores para todas as gerações.

Fontes

POTTERMORE LIMITED. Disponível em: https://www.pottermore.com/. Acesso em:


15/10/2015.

POTTERISH NOTÍCIAS. Disponível em: http://potterish.com/. Acesso em:


15/10/2015.

ROWLING, J. K. Harry Potter e a pedra filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

_____________. Harry Potter e a câmara secreta. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

_____________. Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

_____________. Harry Potter e o cálice de fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

_____________. Harry Potter e a ordem da fênix. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

_____________. Harry Potter e o enigma do príncipe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

_____________. Harry Potter e as relíquias da morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

34
Bibliografia

BURKE, Peter. ―Origens da história cultural‖. In: Variedades de história cultural. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 10 – 37.

REVER, Jacques. ―Cultura, culturas: uma perspectiva historiográfica‖. In: Proposições:


ensaios de História e Historiografia. Rio de Janeiro: Edceerj, 2009. p. 97 – 137.

SCOTT, Joan Wallach. ―Gênero: uma categoria útil de análise histórica‖. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995.

35
DR. FANTÁSTICO E A IRONIA NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA
HISTÓRICA – A REPRESENTAÇÃO DA MULHER

Arthur Rodrigues Carvalho 1

Resumo:

Partindo de conceitos no estudo de história e cinema de autores como Michèle


Lagny e Robert Rosenstone, e daqueles na área da narrativa histórica com Hayden
White, pretende-se explorar, de forma geral, o uso do tropo linguístico da ironia no
filme Dr. Fantástico de Stanley Kubrick (1964), e como seu uso é pertinente à
construção da narrativa histórica a partir do mesmo.
Um aspecto mais específico a ser abordado no estudo é a representação da mulher
no longa, uma vez que o diretor opta por um elenco formado quase exclusivamente de
homens, com exceção de uma personagem, que só aparece uma vez, e na ocasião está
seminua em um quarto junto a um oficial do exército. Isso leva a questionar o papel da
mulher durante a Guerra Fria, assim como a sua representação estereotipada como
superficial e objetificada enquanto os homens são pintados como aqueles que deveriam
resolver todos os problemas, mesmo que devido ao contexto satírico eles também não
consigam chegar aos seus objetivos sem diversas complicações, o que é parte do humor
do filme.
Por ser um filme de 1964 e fortemente irônico, duas opções de interpretação se
fazem possíveis quanto à representação da mulher em Dr. Fantástico: Por um lado, à
época a questão do gênero ainda não era muito problematizada. Alguns anos teriam que
passar para que os movimentos de contracultura tomassem força e a revolução sexual se
fizesse mais presente, portanto a mulher seria construída no filme realmente como um
estereótipo que permeava a mente masculina daqueles tempos. Pelo outro lado, pela
grande carga de ironia apresentada pelo longa, pode-se dizer que a mulher aparece
representada dessa forma de modo irônico, como uma crítica ao que os filmes da época
faziam.
Palavras-Chave: Gênero, Dr. Fantástico, Ironia

Introdução

A sutileza – qualidade que o senso comum muitas vezes atribui ao sexo feminino
– é a principal marca de Kubrick quando o diretor representa as questões de gênero em
Dr. Fantástico (1964). Desde mensagens passadas de forma metafórica apenas por meio
de imagens e sons, se utilizando de todo o potencial de sua mídia, até detalhes de roteiro
como os nomes dados às personagens do longa são exemplos de como o fino humor
1
Graduando no curso de História da UFU, bolsista CNPq. Email: arcarvalho94@hotmail.com

36
crítico está entranhado na obra, requerendo atenção e inteligência por parte do
espectador, uma vez que assim como no xadrez, o movimento de Kubrick já foi
realizado e cabe agora ao público como em sua própria jogada, interpretá-lo.
Tal sutileza é composta pela grande carga de ironia que está presente no filme.

Nesse aspecto, os estudos feitos pelo historiador Hayden White e os conceitos por ele

utilizados servirão de base para uma análise no campo linguístico presente no longa. O

autor expõe o que é a ironia, qual o seu papel na história, e dialoga com os conceitos

conhecidos da mesma, levantando questões sobre a natureza de tal tropo linguístico

(como o próprio a classifica):

―Diz-se que a ironia é essencialmente dialética, visto representar um


uso auto-consciente da metáfora a serviço da auto-anulação verbal. A tática
figurada básica da ironia é a catacrese (literalmente ‗abuso‘), metáfora
manifestamente absurda destinada a inspirar reconsiderações irônicas acerca
da natureza da coisa caracterizada ou da inadequação da própria
caracterização. A figura retórica aporia (literalmente ‗dúvida‘), em que o
autor sinaliza de antemão uma descrença real ou fingida na verdade de seus
próprios enunciados, poderia ser considerada a fórmula estilística predileta da
linguagem irônica, tanto na ficção da espécie mais ‗realística‘ quanto nas
histórias que são moldadas num tom autoconscientemente cético ou são
‗relativizantes‘ nas suas intenções‖. (WHITE, 1973, p.50-1)

Assim, aquilo trabalhado por White no âmbito histórico-literário será aqui


utilizado para se fazer uma análise fílmica, a partir dos elementos já consolidados por
ele e outros trazidos à temática aqui explorada por outro historiador, Robert Rosenstone.
Esse último tem em sua tese a ideia de que os filmes podem (e devem) ser encarados
como documentos históricos, não cunhados na tentativa de se aproximar da verdade,
mas criando interpretações acerca do ocorrido, de forma consciente, como no caso dos
filmes históricos, ou não. Quando um filme é produzido, com ou sem a intenção do seu
diretor, ele acaba inserido na história de uma forma ou de outra, seja pelo modo como
ele representa os elementos da época na qual sua narrativa se passa, seja como o
contexto histórico no qual é produzido atua sobre ele mesmo.

O Gênero e o Cinema de 1930 a 1970

Durante os anos anteriores à produção do longa, uma certa imagem da mulher


foi construída por meio da propagação dos ideais masculinos e machistas pelo

37
tratamento dado à mulher, pela propaganda, pela ideologia patriarcal que permeava a
mentalidade da época, com seu auge nos anos 1930, sendo que em 1932 foi instaurado o
que ficou conhecido como Código Hays, que buscava moralizar a produção
hollywoodiana nos padrões impostos pela sociedade patriarcalista. Aquilo que
permearia com mais força principalmente os anos 1950, 60 e 70, os movimentos
feministas e dos direitos da mulher, combateria esse tipo de prática que até então era
considerado o normal e natural. Utilizando o panorama da década anterior à produção
de Dr. Fantástico, é possível encontrar tal imagem representada nos filmes, a qual sofreu
um processo de mutação enquanto o lugar da mulher na sociedade começava a mudar.
Nos últimos anos desse período, já próximos à década de 1960 – marcada pelos
movimentos de contracultura e pela revolução sexual – nota-se que, apesar da grande
opressão ainda vigente sobre a mulher, há certa abertura para discussão, como no filme
―Desk Set‖ (1957), que carrega uma das marcas dos filmes de seu tempo, a escolha dos
atores Spencer Tracy e Katharine Hepburn, que protagonizaram diversos longas juntos,
sendo a maioria deles constituído de comédias. Se durante os anos 1930 a 50 a mulher
era representada no cinema como o objeto de desejo do homem, antes disso os anos
1920 traziam a imagem da mulher com um grande poder sexual, o que viria a ser
retomado em meados de 1950, subvertendo a relação na qual a mulher era objetificada,
prática que se apoiava nas diretrizes do controle estabelecido pelo Código Hays.
Durante a década de 1960, na qual foi produzido o filme, os movimentos sociais
de contracultura tomaram força, como foi dito anteriormente. Com isso, é possível
perceber certos aspectos políticos desses movimentos permeando o longa, assim como
sua crítica virá a permear as mentes dos jovens que iam assistir a ele em sua estreia em
1964, instigando-os a promover questionamentos e tomar atitudes contra um sistema ao
qual não eram favoráveis. Como exalta James Boxen em seu artigo ―Just what the
doctor ordered‖:

Part of the cultural revolution of the 1960s was a purveyance of sexual


liberation. In this context the sexual imagery of Dr. Strangelove rises above
being merely "puerile" (Hartung 632) to become part of the purging process
itself, to link with the humour and terror in an orgasm [...]Susan Sontag's
review of a 1962 preview of the film (...): "Intellectuals and adolescents both
love it. But the 16-year olds who are lining up to see it understand the film
and its real virtues, better than the intellectuals, who vastly overpraise it" (qtd
in Hoberman 20-21). In the later part of the decade, these sixteen-year-olds
would become the university students who dominated the movement of
political protest and counter-culture lifestyle that resulted in the large anti-

38
war demonstrations in New York, Chicago, and Washington. (BOXEN,
1995)

Tanto em Desk Set como em diversas outras comédias protagonizadas por Tracy
e Hepburn, a mulher aparecia sempre poderosa, segura e com atitude, mas também com
uma representação do ―lado frágil‖ do sexo feminino, na medida em que no filme
citado, nas cenas em que a personagem Bunny Watson (Hepburn) encontrava o homem
pela qual havia se apaixonado, Richard Summer (Tracy), ela não se continha e caía de
amores por ele, saindo de sua posição de mulher poderosa – inclusive daquela
construída por sua posição empregatícia – e se transformava novamente na mulher que
poderia ser controlada e usada pelo homem, assim como o gênero era pintado 20 anos
antes. A mudança, e aí se insere a crítica feita de modo bem-humorado sobre toda essa
opressão, é que, vendo esse comportamento, uma das amigas de Bunny sempre goza
dela, apontando como seu comportamento era errado, e como agindo dessa forma ela se
fazia de ―estepe‖ para aquele homem.

Representações e Metáforas

Dr. Fantástico, de forma bastante crítica apesar de sutil alguns anos depois, tem
em si questionamentos parecidos com os do filme citado anteriormente, uma vez que o
diretor cria uma situação na qual os homens têm todo o poder do mundo em suas mãos e
mostra a fragilidade e a imaturidade masculina nesse contexto. Nele, o elenco é formado
basicamente por homens que são retratados de forma que é possível perceber suas
tensões e conflitos sexuais, pelo modo como se comportam principalmente em
discussões uns com os outros, pelos objetos fálicos que portam e manipulam, e através
dos nomes dos personagens principais.
Desde o grande charuto que quase não sai da boca do General Ripper até a
enorme bomba nuclear na qual o Major King (Kong) cavalga em direção a um final da
humanidade com características de um orgasmo, uma liberação de toda aquela
sexualidade reprimida durante todo o filme, os objetos manipulados pelos personagens
do longa remetem ao órgão sexual masculino, dando a ideia de que eles precisam
compensar alguma coisa, de que são inseguros consigo mesmos e que procuram se
reafirmar a partir dessa masculinidade exacerbada que têm em mãos. Aliado a isso, os

39
nomes dados a cada um dos personagens principais também são alusões sexuais, e
representam certos aspectos das características de cada um.
Anthony Macklin, crítico de cinema americano, escreve um artigo de 1965, um
ano após o lançamento do filme, tratando exatamente desse assunto. Tal artigo foi
enviado à Kubrick, no que ele respondeu em uma carta formal ter gostado muito de lê-
lo, e que achava que Macklin teria descoberto uma forma muito atraente de ver o filme.
O diretor mantém seus comentários nessa profundidade pois, diz ele na mesma carta,
prefere deixar com que seus filmes falem por eles próprios. Nesse artigo, alguns dos
personagens principais são elencados e é feita uma correlação entre seus nomes e suas
características, no cunho sexual.
Começando pelo General Jack D. Ripper, é dito que seu nome é uma alusão ao
assassino sexual inglês Jack o Estripador, do final dos anos 1880. A construção de um
personagem com um comportamento tenso, obsessivo, paranoico e frio pode ter em uma
de suas raízes elementos dessa interpretação. Durante todo o longa, ele aparece com um
grande charuto fumacento na boca, e em grande parte do tempo carrega uma grande
metralhadora, símbolos fálicos que lhe dão a sensação de poder, mesmo tendo perdido o
controle sobre a própria mente em meio a sua paranoia anticomunista.
O General Buck Turgidson tem em seu nome duas referências ao seu gênero.
Seu primeiro nome é uma gíria em inglês que remete à um homem viril, e seu
sobrenome significa ―inchado‖ ou ―túrgido‖, como o órgão sexual masculino quando
ereto. É o único homem a ter contato direto com uma mulher durante todo o filme, e é
representado como um adolescente que, mesmo em meio a um turbilhão tenso de
discussões e debates sobre a bomba atômica que ameaça cair e destruir o mundo, atende
à ligação da sua amante (que é também sua secretária) e fala sobre seu relacionamento e
o quanto de atenção ele dá a ela. Na cena, Turgidson sussurra ao telefone, como para
esconder o que fazia dos olhos do presidente, e quando desliga dá um olhar para ele
como se soubesse ter feito algo errado, mas que esperava não ser pego pela malcriação.

Dez mulheres para cada homem?

Ao final do filme as bombas nucleares explodem, acabando com o mundo como


se conhece, e assim que isso acontece, Dr. Strangelove propõe que para preservar a
sociedade, as pessoas teriam que viver em minas subterrâneas até que fosse possível
40
voltar para a superfície 100 anos depois. Durante esse século enclausurados, ele propõe,
além de outras medidas, que a razão entre os gêneros deveria ser de dez mulheres para
cada homem, sendo elas selecionadas por suas qualidades sexuais e beleza. Isso seria
necessário, segundo Strangelove, para que os homens se sentissem sempre atraídos, e
assim pudessem fazer com que a densidade demográfica voltasse a subir. Quando isso é
proposto, aqueles que o escutam, todos homens, ficam interessados nesse plano. Se esse
panorama interessa todos os homens, porque durante todo o filme essa mesma
proporção se dá em apenas uma mulher para muito mais de dez homens?
No já citado artigo de James Boxen, quando se analisa a questão sexual
intrínseca ao filme, o autor recorre ao diretor Peter Baxter, que discorre sobre Dr.
Strangelove sob a ótica dos empecilhos sexuais decorrentes na obra, afirmando que:

While the bomb is a masturbation tool for the characters, the film acts as a
device for the audience, the critics, and even Stanley Kubrick himself.
Psychoanalytically, as described by Peter Baxter in Wide Angle, the film
arouses a sexual desire in the viewer through the only scene that features a
woman, which is displaced onto the military-sexual images within the film
(35-40) (BOXEN, 1995)

Ao interpretar a única pessoa do gênero feminino do longa, com sua ação


reduzida a esperar seu homem voltar do trabalho para continuar lhe dando prazer, a
secretária/amante de Turgidson, Tracy Reed teve sua personagem denominada de ―Miss
Foreign Affairs‖, uma vez que sua foto aparece na revista Playboy lida por um dos
pilotos do bombardeiro B-52 no começo do filme, com suas partes íntimas cobertas por
uma edição da revista oficiosa ―Foreign Affairs‖, que tratava dos assuntos
internacionais dos Estados Unidos. Em entrevista a Anne Bergman em 1994, a atriz
comenta sobre sua experiência trabalhando como a única mulher no filme de Kubrick:

When asked if she has fond memories of working on Stanley Kubrick's "Dr.
Strangelove," Tracy Reed emphatically responds, "Oh yes, lots!". But Reed,
who played "Miss Foreign Affairs," Gen. Buck Turgidson's comely secretary,
concedes, in a phone call from London, that there were times on the set that
were "very alarming"."I was the only woman in it and I was wearing a bikini
the whole time," Reed remembers, and when Kubrick decided to open the set
to the press, "there were all these reporters staring at me. It was dreadful."
Reed landed the part after she met Kubrick with some friends at dinner. "We
chatted," she says, "and he asked me to do it." Despite overexposing her to
the media, Reed says Kubrick was "wonderful." George C. Scott, who played
Gen. Turgidson, was "a darling, absolutely sweet," and the film's star, Peter
Sellers, was "a sad man who never quite knew who he really was."
(BERGMAN, 1994)

41
Na única cena em que Reed aparece no filme (desconsiderando aquela na qual só
se ouve sua voz quando fala pelo telefone com seu amante) ela está, como a própria
disse, ―sempre usando um bikini‖. Além disso, outro fato em especial chama a atenção
ao espectador mais atento: em sua primeira cena, a atriz aparece de bruços em uma
cama, e quando o telefone toca, ela se levanta um pouco, apoiando-se em um dos
braços, fazendo possível notar a presença de óculos escuros. Quando assume essa
posição, que mantém por alguns segundos enquanto nota que Turgidson não pode
atender a ligação, percebe-se uma alusão à uma famosa cena cunhada pelo mesmo
diretor dois anos antes, em Lolita. O bikini, a posição do apoio em um só braço e os
óculos, aliados ao ângulo adotado pela câmera e o fato de ambos os filmes serem
filmados em preto e branco (no caso de Dr. Fantástico por escolha estilística),
constroem uma cena parecida demais com a do filme mais antigo para ser apenas uma
coincidência.
Lolita tem sua trama formada pela tensão sexual entre um professor de meia idade e
uma adolescente de 14 anos. As interseções entre a temática sexual e o conteúdo crítico
de Dr. Fantástico são inúmeras e estão embrenhadas durante todo o longa, além do caso
mais explicito da objetificação da única mulher do filme. Tais alusões servem, na maior
parte do tempo, para tornar imatura e satirizar a imagem do homem poderoso que toma
todas as decisões e está sempre certo adotada em tantos filmes, e claro, na sociedade em
si.

Conclusão

Analisando o panorama geral do longa, observa-se que o filme em sua totalidade


é uma grande sátira sexual, além de diversos outros aspectos críticos à sociedade. Se
observarmos seu início, podemos notar os créditos iniciais sobrepostos à cena de um
bombardeiro B-52 sendo reabastecido em voo, através de uma mangueira do avião-
tanque que paira acima dele, enquanto ao fundo pode-se ouvir a música ―Try a little
tenderness‖2 (experimente um pouco de ternura, em tradução livre). O movimento da
mangueira e do bombardeiro, em harmonia com a balada romântica dos anos 1930, já

2
Try a Little Tenderness (1932) de Harry M. Woods, Reginald Connelly, e Jimmy Campbell
42
demonstra a ironia que se seguirá no decorrer do filme, pois ilustra o contexto de um
ataque bélico como algo romântico, sutil e sexual.
Enquanto todo o filme retrata uma tensão com a iminente explosão das bombas,
tal sentimento também é sexual. A sensação de um aprisionamento claustrofóbico dos
sentidos paira durante todo o longa, tendo na imagem final da explosão atômica sua
liberação, seu orgasmo máximo, ao mesmo tempo que o personagem de Dr. Strangelove
se levanta da sua cadeira de rodas e grita ―Mein Fürher, eu posso andar! ‖, momento no
qual ele finalmente tem seus planos de caráter nazista com perspectivas de
consolidação.

Assim, pelo presente estudo, pudemos perceber a quebra de paradigma gerada


pelo longa de Kubrick, tanto no âmbito político quanto no social, quando se observa os
impactos causados pela obra cinematográfica ficcional, mas que constitui uma
interpretação própria acerca dos fatos que retrata, incluídos em seu próprio momento
histórico de produção de Dr. Strangelove. As alusões sexuais e a sátira do homem
imaturo e poderoso fermentaram diversos questionamentos nas mentes do público de
sua época, o que sem dúvidas repercutiu, ao menos um pouco, nos movimentos de
contracultura da época

Dr. Strangelove continua deixando impressionados os novos espectadores que


veem tal obra já com certo distanciamento histórico, uma vez que o período de guerra
fria chegou ao seu fim na década de 1980 e o medo diário, a paranoia e a obsessão
contra um grande inimigo já não mais existe, apesar da insistência de outros males que
assolavam aquele momento na contemporaneidade, mesmo que muito combatidos,
como o machismo opressor e a falta de credibilidade das mulheres, panorama que vem
mudando desde os anos 1950, e que tem ainda muito o que se transformar.

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WHITE, Hayden. Meta-História: A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo:
Editora da USP, 1995.

44
A ESTREITA RELAÇÃO ENTRE PARTO, SEXUALIDADE E AS OBRAS DE
HELEN KNOWLES

Clarissa Monteiro Borges1

Este trabalho busca desvendar quais os caminhos históricos que a sexualidade e o parto
tomaram, isto, com o objetivo de compreender algumas representações de parto e prazer
na Arte Contemporânea. A investigação inicia-se pelo levantamento de algumas
questões sobre parto e sexualidade, em seguida discutindo a relação entre parto e
orgasmo e por fim trazendo algumas representações de parto na Arte Contemporânea.
Tomando como base a História da sexualidade, de Foucault (1988) e o Processo
Civilizador, de Norbert Elias (1990), traçamos um caminho para entender como algumas
normas e procedimentos que encerraram a sexualidade sob a ótica da vergonha e do
silêncio, podem ter afetado nossa relação com o ato de parir. Verificaremos com o
estudo da história da sexualidade, por exemplo, como o corpo da mulher foi qualificado
e desqualificado como objeto saturado de sexualidade, e à partir desta elevada potência
sexual teve que ser contido e controlado, por vários agentes, inclusive a maternidade.
Considerando a produção em Arte Contemporânea, descobriremos que várias artistas
tem tratado o assunto do parto em suas obras, muitas delas já integrando acervos de
Instituições Culturais e Museus. Grande parte destas produções apresentam a mulher à
partir de aspectos de poder, segurança e força, e não mais imagens de uma maternidade
doce, amorosa e sutil. Finalmente, partindo das obras da artista Inglesa Helen Knowles,
seus depoimentos e comentários críticos publicados acerca de sua produção,
mostraremos como pode surgir uma nova imagem sobre o parto, uma imagem repleta de
prazer e poder. Por aproximações e distanciamentos entre a teoria e as obras de arte
tentaremos compreender esta nova perspectiva em relação ao parto e a sexualidade na
Arte Contemporânea.

Palavras-chave: Parto, Sexualidade e Arte Contemporânea.

Pretendemos neste texto analisar o distanciamento entre o parto e a sexualidade


feminina e como contraponto traremos imagens e entrevistas de artistas visuais que
propõe a aproximação entre o ato de parir e o prazer sexual. Neste sentido, tomaremos
como base a História da sexualidade de Foucault (1988) e o Processo Civilizador de
Norbert Elias (1990) para levantarmos questões sobre o afastamento entre a sexualidade
e o parto. A investigação inicia-se pelas seguintes questões: Como a arte tem
representado o parto? Qual a relação entre parto e sexualidade? Onde se encontram hoje
as discussões sobre sexualidade e parto? Porque é estranha a relação entre parto e

1
Docente da Área de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia, Mestre
em Arte (UnB), Doutoranda em História (UFU). e-mail: clarissa.m.borges@gmail.com
45
orgasmo? Será que as imagens e seu uso podem nos oferecer caminhos para investigar
estas questões?
Segundo Foucault, o assunto do sexo foi trancado no quarto do casal no séc.
XIX, mas o mesmo não aconteceu com o parto. Este, foi arrancado da casa, da
intimidade e levado para os hospitais. O parto se tornou asséptico, limpo, higiênico e
realizado por especialistas, os médicos, com a desculpa da segurança e do salvamento de
vidas. Se sobre o sexo ―O casal, legítimo e procriador, dita a lei.‖ (FOUCAULT, 1988,
p. 09), com o parto hoje quem manda é a medicina. A religião institui e indicou o que
deve ser sentido pela boa mãe em seu parto: a dor. Depois da dor o medo: da morte, do
corpo defeituoso, de sua própria fragilidade feminina garantida até por experiências
científicas. A mulher então sede, precisa de ajuda, não dá mais conta de parir, foi dito a
ela tantas vezes que é frágil, delicada e sensível que ela está convencida e já performa
como tal.
No campo dos estudos sobre a sexualidade FOUCAULT (1988) estabelece
quatro ―conjuntos estratégicos, que desenvolvem dispositivos específicos de saber e
poder a respeito do sexo‖ (1988, p.114). Um deles é a histerização do corpo da mulher,
―processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado e desqualificado –
como corpo integralmente saturado de sexualidade‖, este corpo com elevada potência
sexual teve que ser contido e controlado, pela medicina, pela sociedade, pela família e
pela maternidade. A maternidade seria uma das formas mais duradouras de conter o
corpo feminino, pois a vida que ela produz deveria também garantir, por uma
responsabilidade quase biológica, durante todo o período de educação da criança
(FOUCAULT, 1988, p. 115).
O convencimento e inabilidade de lidar com a sexualidade, e consequentemente
com o parto, está no cerne do processo civilizador. Segundo Norbert Elias (1990), o
silêncio sobre as sensações prazerosas do corpo é imposto na infância e segue
emudecido até a vida adulta, ele chama este processo de ―conspiração do silêncio‖. O
autor esclarece que em meados do século XVI era comum e natural falar a uma criança
sobre prostitutas e de sua função, cita inclusive materiais didáticos onde constam tais
conteúdos. Mas nos séc. XIX e XX ―é proibida a simples menção de tais opiniões e
instituições na vida social e referências a ela na presença de crianças são um crime que
lhes macula a alma ou, no mínimo, um erro muito grave de condicionamento.‖ (ELIAS,
1990, p. 176).
46
Enquanto o assunto da sexualidade é tratado com vergonha e embaraço, o parto é
completamente eliminado das discussões. Podemos observar isso pelas inúmeras
histórias criadas para tratar da chegada do bebê em casa. Na publicação ―A Educação
das meninas‖, de Von Raumer em 1857:

As crianças devem ser deixadas por tanto tempo quanto for possível na crença
de que um anjo traz para a mãe os bebês. Esta lenda, costumeira em algumas
religiões, é muito melhor do que a história da cegonha, comum em outros
lugares. As crianças, se realmente crescem sob os olhos da mãe, raramente
fazem perguntas a esse respeito... nem mesmo se a mãe é impedida pelo parto
de tê-las em volta de si... Se meninas perguntarem mais tarde como bebês
chegam ao mundo, deve-se responder que o bom Deus da à mãe o bebê.(...)
As meninas devem se contentar com essas respostas em cem casos, e constitui
dever da mãe ocupar os pensamentos das filhas de modo tão completo, com o
belo e o bom, que elas não tenham tempo para pensar nesses assuntos. (...)
Uma moça bem educada sentirá daí em diante vergonha ao ouvir coisas desse
teor. (RAUMER citado por ELIAS, 1990, p.179-180)

No caso acima, existe uma associação da chegada do bebê com o encontro do


divino, o corpo é substituído por um anjo, que entrega o bebê à mãe. Essa é a versão da
história considerada bela e boa pelo autor, podemos pensar então qual seria a versão
contrária. Em seu oposto, feio e ruim, são os partos feitos pelo próprio corpo? E destes,
as meninas devem sentir-se envergonhadas?
Os efeitos de tais embaraços e vergonha podem ser vistos até hoje. Com o parto
muitas vezes distanciado do ambiente familiar e hospitalizado quem irá esclarecer as
questões sobre a fisiologia do corpo é o médico 2. Ou deveria ser ele, mas inúmeras vezes
o próprio médico se nega em discutir o parto no início da gestação, com a desculpa que é
muito cedo, que a gestante deve se preocupar com outras coisas. A família e a sociedade
ajudam a mãe a se distrair quanto à chegada do bebê, imposta pelas inúmeras decisões
sobre milhares de itens de consumo que devem ser adquiridos. Continuamos então
substituindo informações por distrações, mantendo sigilo e voltando a instituir a
vergonha em falar sobre o parto e sua relação com a sexualidade. A ―conspiração do
silêncio‖ (ELIAS, 1990) continua extremamente ativa e atuante quando o assunto é o
corpo feminino, seus desejos e sua sexualidade.
Já o prazer no parto está fora do lugar e das discussões sobre sexualidade. De um
lado temos uma tentativa de reduzir todo sexo à sua função reprodutiva, onde o parto é

2
Este é o modelo que encontra-se em vigor em vários países como Brasil, França e Estados Unidos. Mas,
na Inglaterra por exemplo, o contato com o médico só é realizado se algo de errado acontece durante a
gestação ou trabalho de parto.
47
somente consequência. Do outro, sexo e prazer sem objetivos reprodutivos.
Provavelmente no primeiro grupo temos muitas mulheres parindo para reproduzir. No
segundo, muitas mulheres tranquilas com seu prazer e sexo, mas sem o objetivo
reprodutivo.
A situação é complexa, pois, aproximar o parto do prazer pode ser associado
também a uma visão da mulher como objeto sexual e impor uma nova sensação
obrigatória para o parto: o orgasmo. Mas, continua sendo muito curioso como o
contrário disto é facilmente aceito, o completo distanciamento do parto e da sexualidade
feminina é proposto, e muitas vezes imposto, pela substituição do ato de parir pela
cirurgia cesariana. No Brasil, onde a sexualização do corpo feminino é extremamente
valorizada, observamos um crescente aumento do número de cesarianas, que alcança
hoje mais de 50% das mulheres3.
Segundo a antropóloga Carmen Tornquist (2002) na década de 80, uma segunda
geração de obstetras que estudava parto sem dor, publicou livros que davam ênfase à
dimensão sexual do parto associando o momento de parir com o orgasmo. São eles:
Frederck Leboyer, Michel Odent e Moysés Paciornik. Suas obras ainda permanecem
dentro do ideário contemporâneo dos movimentos de Humanização do Parto, que vem
acontecendo em todo mundo e no Brasil especialmente desde a década de 80.
Outro aspecto ligado ao parto e que vem sendo citado pelo movimento da
Humanização do Parto, segundo Tornquist (2002), seria o resgate do instinto no ato de
parir, característica perdida da mulher, e que a aproximaria do animal. Neste sentido,
podemos voltar ao texto de Norbert Elias (1990) sobre o processo civilizatório e
encontraremos nele a descrição sobre como, e quais são, os agentes que promoverão a
eliminação do instinto no processo de civilização do impulso sexual:

O instinto é lento mas progressivamente eliminado da vida pública da


sociedade. Aumenta também a reserva que deve ser observada nas referencias
a ele. E esta limitação, como todas as demais, é feita cumprir cada vez menos
pela força física direta. Na verdade, é cultivada desde a tenra idade no
indivíduo, como autocontrole habitual, pela estrutura da vida social, pela
pressão das instituições em geral, e por certos órgãos executivos da sociedade
(acima de tudo pela família) em particular. Por conseguinte, as injunções e

3
Segundo matéria veiculada na BBC e Folha de São Paulo em abril de 2014: ―Com 52% dos partos feitos
por cesarianas – enquanto o índice recomendado pela OMS é de 15% -, o Brasil é o pais recordista desse
tipo de parto no mundo. Na rede privada, o índice sobre para 83%, chegando a mais de 90% em algumas
maternidade. A intervenção deixou de ser recurso para salvar vidas e passou, na prática, a ser regra‖
(Mariana Della Barba e Rafael Barifouse,
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/04/140411_cesareas_principal_mdb_rb.shtml)
48
proibições sociais tornam-se cada vez mais parte do ser, de um superego
estritamente regulado. (ELIAS, 1990, p. 186-187).

O processo de perda do instinto no parto faz bastante sentido se considerarmos,


por exemplo, as inúmeras ações comumente realizadas no corpo da mulher (às vezes
com seu consentimentos outras vezes sem) por médicos no ambiente hospitalar, como:
uso de ocitocina sintética para acelerar o trabalho de parto, proibição de ingerir
alimentos e água por muitas horas antes ou mesmo durante o parto, ruptura provocada da
bolsa, lavagem intestinal, raspagem de pêlos, medida constante de dilatação pelo toque,
corte com bisturi na vagina, empurrões sobre a barriga para expulsão do bebê e
imposição da posição deitada para dar à luz. Tais ações acentuam o distanciamento do
parto com o prazer ou da própria sexualidade, aproximando-o da violência e do estupro.
Não é de se espantar o pedido constante das gestantes pela cesariana agendada, pois, esta
condiz com a completa dessexualização do parto.
Como consequência encontramos o parto natural, ou seja, sem intervenções, sem
medicalização e em ambiente não hospitalar, como exceção na forma de se parir e como
tal, agora carregado de nojo e estranhamento. Estes, estão fora dos padrões sociais e
portanto, são anormais.
Nas Artes Visuais encontramos posicionamentos claros de artistas que trabalham
com imagens de parto, levando em conta que a produção do artista é também produção
de cultura e que revelam uma recente abordagem do parto como evento cultural (MOTT,
2009, p.399), seu texto Mott esclarece que:

Apesar de as mulheres darem à luz desde o início dos tempos e de seu corpo
estar programado para a reprodução da espécie, as práticas e os costumes que
envolvem o nascimento e o parto têm variado ao longo do tempo e nas
diferentes culturas. Como escreveu o historiador francês Jacques Gélis, o
nascimento não se restringe a um ato fisiológico, mas testemunha por uma
sociedade, naquilo que ela tem de melhor e de pior. Essa visão do parto como
um evento cultural – seja realizado entre tribos ditas primitivas, seja em uma
maternidade de ponta em uma cidade de Primeiro Mundo – é recente.
(MOTT, 2009, p.399)

Considerando a produção da Arte Contemporânea descobriremos que, muitos


artistas tem tratando o assunto do parto em suas obras artísticas, muitas delas já
integrando acervos de Instituições Culturais e Museus 4. A maioria delas apresentam a

4
Lembramos que em Artes Visuais, estes espaços/instituições são importantes agentes legitimadores.
Encontramos várias obras que refletem questões sobre o parto em coleções específicas de arte no Museu
da Maternidade em Nova Iorque e na Birth Rites Collection em Londres.
49
mulher à partir de aspectos de empoderamento, segurança e força, e não mais imagens
de uma maternidade doce, amorosa e sutil (BORGES; STRACK, 2002, p.109).
Podemos citar como exemplos o trabalho ―Yo mama‖ (1993) da artista Renée
Cox; a série fotográfica ―New Mothers‖ (1994) de Rineke Dijkstra; e as imagens do livro
de artista ―Kinderwunsch‖ (2008) da artista Ana Casas Broda; e mais recentemente o
trabalho a partir de apropriações de imagens ―Heads of Women in Labour‖ (2011) e
―Youtube Series‖ (2012) e de Helen Knowles.
A reunião entre parto e sexualidade pode ser observada principalmente nas obras
da artista Inglesa Helen Knowles. Vemos nestas obras imagens de partos orgásticos
apropriados pela artista, que além de atuar como artista visual, também é curadora da
única coleção de arte do mundo dedicada ao parto. Tal instituição é mantida pela Royal
College of Gynaecologists and Obstetricians em Londres e pela Salford University
Midwifery Department.
Encontramos na Inglaterra um espaço propício para que apareçam outros
aspectos da gestação e parto. Este é um país que ainda mantém como base do
atendimento ao nascimento a presença das enfermeiras obstétricas e não do médico.
Notamos inclusive que estas diferentes áreas de conhecimento mantém esta coleção de
arte, a escola de ginecologia e obstetrícia e o departamento de Enfermagem Obstétrica.
A presença desta coleção de arte e de uma curadora/artista como diretora, demonstra o
interesse do meio acadêmico e da Universidade nas possíveis relações entre parto e arte.
De alguma forma, parece-nos que aproximar o saber do parto com o saber artístico
estabelece também a aproximação do nascimento com a sensibilidade humana.
Neste sentido, notamos que a obra ―Heads of Women in Labour‖ (2011) de
Helen Knowles tenta aproximar o ato de parir com o ato sexual. O forma de produção
destas obras é um dado importante para estas imagens, a artista copia e recorta cenas de
vídeo do youtube, fotografando projeções ou captando a imagem diretamente da tela do
computador. Desta forma, reorganiza as imagens e acentua aquilo que já era evidente
nos partos: o prazer. Esta forma de produção da imagem assemelham-se com o que
Tadeu Chiarelli chamou de ―fotografia contaminada‖ onde ―artistas manipulam o
processo e registro fotográfico, contaminando-os com sentidos e práticas oriundas de
suas vivências e do uso de outros meios expressivos.‖ (CHIARELLI 1999).

50
Artista: Helen Knowles (London, b.1975) Artista: Helen Knowles (London, b.1975)
Título: ―Annabel‘s birth‖ Título: ―Youtube screen grab German birth vídeo‖
Série: Heads of Women in Labour Série: Heads of Women in Labour
Data: 2011 Data: 2011
Local: Inglaterra Local: Inglaterra
Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper. Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper.
61 x 61 cm. Edition of 2 61 x 61 cm. Edition of 2
Fonte: Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/work/he http://www.helenknowles.com/index.php/work/hea
ads_of_women_in_labour/ ds_of_women_in_labour/

Artista: Helen Knowles (London, b.1975) Artista: Helen Knowles (London, b.1975)
Título: ―Youtube screengrab ‗Chase Andrews Título: ―Youtube screen grab of ‗Shiloh‘s quick and
waterbirth‘‖ peaceful waterbirth
Série: Heads of Women in Labour Série: Heads of Women in Labour
Data: 2011 Data: 2011
Local: Inglaterra Local: Inglaterra
Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper. Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper.
61 x 61 cm. Edition of 2 61 x 61 cm. Edition of 2
Fonte: Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/work/he http://www.helenknowles.com/index.php/work/head
ads_of_women_in_labour/ s_of_women_in_labour/

51
Artista: Helen Knowles (London, b.1975)
Titulo: ‗A szülés természete‘ The natural
way of birth
http://www.youtube.com/watch?v=CH0s
RTYd17I‖
Série: Youtube
Data: 2012
Técnica: Four-colour screen-print on
Fabriano paper 101 x 148 cm Edition of 5
Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/
work/youtube_series/

Artista: Helen Knowles (London, b.1975)


Titulo: ―Shiloh‘s Quick and Peaceful
Water Birth
http://www.youtube.com/watch?v=3TL6
GsSb3-4‖
Série: Youtube
Data: 2012
Técnica: Four-colour screen-print on
fabriano paper, 97cm x 149 cm
Edition of 5
Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/
work/youtube_series/

Artista: Helen Knowles (London, b.1975)


Titulo: ―‗Раждане с оргазъм‘ Birth with
Orgasm II
http://www.youtube.com/watch?v=EDyU
bZW29ts‖
Série: Youtube
Data: 2012
Técnica: Four-Colour Screen-Print on
Fabriano paper, 95.5.cm x 146cm
Edition of 5
Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/
work/youtube_series/

52
Nas duas séries, Helen Knowles impõe modificações a estas imagens, uma delas
seria a transformação de vídeo em fotografia, que isola o personagem e o torna estático.
Desta forma, a artista seleciona aquilo que quer mostrar em sua obra, seu ponto de vista
sobre as imagens de parto postadas na internet. Para além do fato dos vídeos em sua
maioria mostrarem partos com orgasmo, as imagens acima mostram um momento de
imenso prazer que se assemelha as imagens de cenas de sexo.
O recorte da imagem proposto na primeira série ―Heads of Women in Labour‖,
nos distancia do que realmente está acontecendo: um parto. Vemos cabeças e rostos de
mulheres em êxtase, que dificilmente sem lermos o título associaremos ao parto. Pelo
exposto no início do texto, podemos afirmar que o processo civilizatório nos encheu de
vergonha quanto ao sexo e ao prazer. Mais difícil então seria associar a imagem da
maternidade; sempre doce, gentil e assexuada, com o gozo evidente das imagens em
preto e branco.
Para o filósofo francês Jean Baudrillard, em A Arte da Desaparição (1997), o
homem teria criado tecnologias para produção de imagens por causa do esvaziamento da
realidade. Segundo ele, as técnicas de captação de imagem foram criadas na era
industrial, que é o momento onde começa o desaparecimento do real. Dessa maneira a
realidade teria achado um meio de se transformar em imagem e não o contrário. Talvez
não foram as tecnologias e os meios (media) que causaram o famoso desaparecimento da
realidade. Pelo contrário, é provável que todas as nossas tecnologias surgiram pela
extinção gradual da realidade. (BAUDRILLARD, 1997).
Os procedimentos de captura e reapresentação da imagem nos trabalhos de Helen
Knowles tratam do ato de parir, evento fisiológico que vem se extinguindo por inúmeros
procedimentos médicos, e portanto podem demonstrar o que Baudrillard aponta, o
desaparecimento do real se transformando em imagem. Segundo a própria artista:
O trabalho apresentado em ‗Youtube Series‘ se apropria e re-apresenta as
experiências filmadas destas mulheres, conectando-as com uma preocupação
internacional maior, que considera a mídia social como ferramenta de
democratização de experiências que podem ser freqüentemente controladas e
censuradas. (KNOWLES, 2014)

As imagens fotográficas de mulheres parindo tem portanto a intenção de resgatar


este papel feminino e mesmo como imagens - dotadas de realidade própria - reapoderam
a mulher de um dos seus lugares de potência. Para além do fato de somente as mulheres

53
poderem parir, existe a necessidade de deixarem que ela conduza seu próprio trabalho de
parto, e de como a escolha pela via vaginal do parto é uma escolha de poder viver todos
os aspectos de seu corpo, incluindo sua sexualidade. Esta estratégia feminina é chamada
pela intelectual argentina Beatriz Sarlo (1997) de bricolage: ―produzindo novos assuntos
públicos a partir de antigos papéis e funções tradicionais. (...) Paixões e virtudes
privadas se tornaram a base da ação pública: o privado se torna público quando as
feministas reivindicam em todo mundo.‖ (SARLO, 1997).
Não podemos esquecer que estas obras de Helen Knowles carregam a referência
original de suas apropriações, tanto no título como na decisão de manter nas imagens
características visuais originais das imagens em vídeo com pouca resolução, ressaltando
portanto o local público de onde vem estas imagens, lugar acessível de qualquer lugar do
planeta, que torna o evento privado do ato de dar a luz em evento público.
Considerando que artistas são produtores de objetos culturais, Helen Knowles ao
capturar imagens públicas da intimidade do parto, pode estar defendendo a continuidade,
ou, a devolução da sexualidade ao parto, da potência da mulher para parir. Vemos as
ações das artistas também como uma postura política, já que este aspecto social tem sido
por longo tempo e ainda frequentemente colocado em dúvida pelos procedimentos
médicos e desvalorização do corpo feminino. Esta e outras artistas mostram um parto
que foge do estereótipo aceito da dor, da vergonha ou do completo silêncio. Mostram
mulheres que descumprem a imagem da mãe verdadeira, doce e gentil. Revelam então
uma mulher que, ao se tornar mãe, ao parir, está em tal poder e liberdade com seu corpo,
que consegue ter prazer. Mas será que assim seria se seus desejos não houvessem sido
reprimidos? Se o assunto não fosse velado provavelmente estas imagens não fariam
sentido, elas só tem potência porque mostram algo que foi proibido, negado e silenciado:
o conhecimento sobre nossa sexualidade.

54
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56
PERFORMANCE, CORPO E GÊNERO: A OPRESSÃO DOS CORPOS EM
TRÂNSITO

Cláudia Regina De Oliveira 1

"não se nasce mulher, torna-se...”

Simone de Beauvoir

Resumo
Esse trabalho de pesquisa e investigação do processo de criação em arte da
performance, desenvolvido para a apresentação da monografia de conclusão do Curso de
Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia, sob orientação da Profª M.
Clarissa Borges, aborda o assunto das violências veladas que a mulher sofre ao longo da
vida, nas relações de gênero marcadas por um domínio masculinista. O questionamento
feito na elaboração da pesquisa estabelece uma reflexão feminista e feminina sobre essas
relações de opressão que subordina o papel da mulher numa sociedade machista. Na
materialização do conceito de violência velada, trago o corpo como ferramenta da obra
de arte da performance, representando por meio das interferências sofridas, a violação,
as afetações e marcas de uma violência silenciosa e invisível.
Palavras-chaves: Performance; Violência Velada; Mulher

“Diga-me, quem te deu o direito soberano de oprimir meu sexo?”

Olympe Gounges

Considerando que a violência contra a mulher acontece numa sociedade machista


e opressora, o objetivo da pesquisa e dos trabalhos de performance visa uma reflexão
sobre o papel dessa mulher na sociedade, com um olhar especial para a privação de seus
direitos e autonomia frente aos espaços político-social, públicos ou privados. A pesquisa
desenvolvida se restringiu a um recorte a partir de relatos e notícias em sites específicos
e redes sociais na internet, observação empírica e conhecimento de mundo da autora.
Assim, a partir da internet se deu uma busca e coleta de dados, relacionados à mulher
contemporânea e as violências sofridas em seus variados aspectos, de forma a apontar

1
Universidade Federal de Uberlândia - Graduação em Artes Visuais. claudiasph0608@gmail.com
57
dando ênfase na recorrência das violências veladas, que muitas vezes se encontra
interligada intrinsecamente às violências explícitas.

O meu olhar para o tema das violências contra a mulher se justifica por minhas
vivências pessoais e subjetivas como mulher, e pela percepção do mundo exterior e
observações das relações em que nós mulheres estamos inseridas socialmente, nas
implicações desse contexto social e político que interioriza como cultura o sistema dessa
violência simbólica e dominação masculina.

Conforme o dicionário, violência é definida como ―(...) constrangimento físico


ou moral, uso da força, coação.‖ (FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Básico. P.
674) O termo velado está definido como ―coberto com véu; oculto, disfarçado,
dissimulado.‖ (id, p. 667)
Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (2012) existe basicamente duas formas
de violência, a física é aquela que pode matar, consistem ferimentos, crime, violência
sexual; e a violência simbólica, suave, insensível e invisível.

A minha concepção do conceito de violência velada contra a mulher, diz-se dessa


violência invisível, que está nas agressões psicológicas impregnadas de corpo e alma nas
relações sociais de gênero e opressão. Uma violência psicológica são os insultos,
humilhações, constrangimentos, desprezo, e a desvalorização culminante na submissão e
redução da autoestima da mulher. Essa violência não sendo física, pode causar danos
psicológicos e machucar sem se materializar, e por isso não tem sido dada maior
importância.
A mulher ao longo dos séculos carrega o fardo de ser mulher numa
sociedade onde as normas privilegiam o masculino. Aprisionadas a imposições morais
de mecanismos de controle, são sujeitas a relações de violência simbólica e submetidas à
normatividade de boa conduta, subserviência e abnegação.

Abaixo trago relatos que nos mostram a procedência recorrente de uma


verdadeira perseguição contra a ascensão social e profissional da mulher.

A estudante Dorothy Counts, ao tentar ingressar no colégio Harding, em Charlott,


nos Estados Unidos no ano de 1957, enfrenta uma resistência perante aos demais alunos
e a sociedade, era a primeira menina negra a tentar ingressar na escola. Por alguns dias
ela resistiu aos insultos, pedradas, cuspes, até a violência se tornar física e ela ter que
58
desistir da escola em autodefesa, se tornou uma das imagens mais poderosas na luta por
direitos civis.

Outra estudante a enfrentar tal desafio foi Malala Yousafzai que ao sair da escola,
a menina paquistanesa, à época com 15 anos, estava prestes a embarcar no ônibus de
volta para casa quando foi alvejada com tiros por membros do Talibã, grupo
fundamentalista que é contra a educação feminina. Malala foi escolhida como alvo, por
ser a autora do blog ―Diário de uma estudante paquistanesa‖. Ela publicava textos sobre
a sua vontade de estudar em um país onde, só por ser mulher, a dificuldade do acesso à
educação era ainda maior. (Veja, julho, 2013, PP.68/69)

A expressão ―Não queremos uma modelo desfilando na Prefeitura.‖, foi a


justificativa apresentada pelo conselho eleitoral de Qazvim, cidade a Noroeste de Teerã,
para cancelar os mais de 10.000 votos que a vereadora eleita Nina Siah Kali Moradi
recebeu em junho de 2013. Os Clérigos a achavam sexy demais. (Veja de junho, 2013,
p.68).

No cenário brasileiro, destaque para a agressão machista sofrida pela deputada Jandira Feghali.
De maneira ofensiva o deputado federal Alberto Fraga se dirigiu à deputada durante sessão que
votava medidas provisórias de ajuste fiscal, e declarou que ―quem fala como homem
deve apanhar como homem‖, referindo-se à postura altiva de Jandira frente à agressão
que sofreu do deputado Roberto Freire. Na sessão, Freire segurou e empurrou seu braço
numa típica postura autoritária e machista.

Em seu livro Sejamos Belas – compêndio de beleza e eugenia da mulher (1949),


Léa Silva aborda as virtudes, a partir das normas sociais e morais vigentes, o que se
espera da mulher ideal para o casamento e as relações sociais. De acordo com a autora,
―O jeito de andar revela, deve evitar o bamboleio excessivo dos quadris e
consequentemente os comentários dos transeuntes.‖ (Silva, p.239) Os atributos dessa
mulher são de um ―devotamento, espírito de sacrifício‖ e para ser merecedora de um
casamento que ―a esposa cujo temperamento é mais doce, sorriso, bom humor e graça de
se apresentar à sociedade. (...) delicadeza, gentileza, espírito de ordem e economia, são
virtudes de beleza feminina.‖ Segundo ela, o homem por condições peculiares de seu
gênero de vida, passando horas fora de casa, influenciado por amigos ou em más
companhias, exposto a tentações e desvios, cabe à mulher permanecer passivamente
59
meiga, e de santa aparência o considerar inocente para evitar atitudes severas. (Silva,
1949, p.240-241-242)

O trabalho intitulado ―Por ser menina no Brasil: crescendo entre direitos e


violências‖, investiga como uma criação e educação diferenciada entre meninas e
meninos vão demarcando um sujeito social. O estudo ouviu 1.771 meninas de 6 a 14
anos nas cinco regiões do país e constatou uma desigualdade gritante na distribuição de
tarefas domésticas entre meninas e meninos. A pesquisa teve como objetivo verificar o
contexto de direitos, violências, barreiras, sonhos e superações a partir do próprio olhar
das meninas. Os resultados acabaram trazendo à tona um contexto de gritantes
desigualdades de gênero, que prejudicam o pleno desenvolvimento das habilidades das
meninas para a vida. (PLAN-INTERNACIONAL, 2015)

Da mesma forma, no artigo ―Brincadeiras de meninas e de meninos‖, Jucélia


Ribeiro (2006) discute a socialização infantil em relação à construção da sexualidade e à
identidade de gênero reproduzida pelas crianças, apontando que a desigualdade de
gênero entre homens e mulheres se dá desde a infância na distribuição de tarefas
domésticas e educação diferenciada para meninas e meninos.

Desde cedo, as mulheres aprendem que as tarefas domésticas devem ser


realizadas por elas, e crescem cientes de que para entrar no mercado de trabalho terá
uma jornada dupla de trabalho. Os movimentos feministas buscam justamente
desnaturalizar esse lugar ou os papéis destinados ao universo feminino. A célebre frase
da autora e filósofa francesa Simone de Beauvoir (1970), ―não se nasce mulher, torna-
se‖ provoca uma reflexão sobre as representações de papéis sociais e aquilo
que definimos como atividades masculinas e femininas.

Percebemos nessa estrutura um sistema de uma aprendizagem social. A


domesticação e submissão da mulher vão sendo passada de geração em geração como
ética social e política nas sociedades, enquanto o homem também aprende como se deve
comportar um homem. A mulher não nasce submissa, mas aprende o que deve ser dentro
da estrutura de uma construção social que através de condutas impostas vão ceifando sua
naturalidade, permanecendo contida na ocupação dos espaços e na postura corporal
exigida pela sociedade a que faz parte. O espaço público e social difere para homens e
mulheres.

60
―Há milhares de anos, na esmagadora maioria das sociedades, as mulheres não
são iguais aos homens. Não ganham salário igual, e esse não é o maior problema.‖
argumenta o professor Renato Janine Ribeiro, titular de Ética e Filosofia na USP, escreve
na página do ZH caderno PrOA. Para apontar as diferenças de gênero implícitas nas
relações, ele conta a experiência impar da subjetividade de uma mulher que adentra um
botequim em determinada hora:

―Dia desses queria comprar um chiclete, o único lugar aberto era um


botequim. Entrei, em segundos notei que só havia homens presentes.
Automaticamente todas as medidas ‗protetoras‘ passaram na minha cabeça,
treinada que está por anos tendo que ‗me cuidar‘ por ser mulher, fugindo de
mãos, abraços, sussurros não pedidos. Com que roupa estou, não olhar muito,
também não baixar muito os olhos, andar pelo corredor, evitar qualquer
aproximação física, tentar ser invisível e quem sabe angariar a simpatia de
algum dos presentes. Atitudes normalmente inconscientes, no entanto
absolutamente presentes. Saí pensando que homem nenhum faz ideia do que
significa entrar num lugar e se sentir em ‗risco‘ por existir enquanto
representante de um gênero, que nenhum homem se questiona sobre a roupa
que está usando e suas respectivas conotações. Ele entra e compra a joça do
chiclete!...‖ (BRASIL, ZH, 2015)

E segue pontuando que não existe igualdade plena, mesmo salário, mesmas
chances de promoção, ou direito de ir e vir, apesar de ser este um direito reservado a
todos na Constituição desde 1891, não acontece de fato na realidade machista.
(BRASIL, ZH, 2015)

A Psicóloga Daniela Rozados, que faz parte de um grupo de estudos de gênero


da Escola Politécnica da USP, fala sobre como homens e mulheres se apropriam do
espaço público de forma diferente.

―O mapa mental da cidade da mulher é menor do que o mapa mental do


homem, o espaço público é extremamente condicionado ao gênero.
Horários, regiões da cidade, meios de transporte, pontes. Mulheres têm
medo de andar em pontes por causa das reiteradas histórias de estupro, por
exemplo. Deixam de aceitar trabalhos porque teriam que andar a pé à noite
ou pegar um ônibus em um lugar ermo‖.

Uma polêmica pesquisa do IPEA 2014, fala da percepção do brasileiro sobre a


violência de gênero. Segundo 65,1% dos entrevistados ―mulher que é agredida por
parceiro e continua com ele gosta de apanhar‖, enquanto 26% deles, e delas,
concordaram total ou parcialmente com que ―mulheres que usam roupas que mostram o
corpo merecem ser atacadas‖. Conforme 58,5% dos entrevistados, ―se as mulheres
soubessem se comportar, haveria menos estupros‖. (IPEA, 2014)

61
Os crimes de feminicídio têm devastado o Brasil. O estudo do Ipea revelou a
tragédia do machismo no Brasil2. Segundo o documento:
―A violência contra a mulher compreende uma ampla gama de atos, desde a
agressão verbal e outras formas de abuso emocional, até a violência física ou
sexual. No extremo do espectro está o feminicídio, a morte intencional de uma
mulher. Podem-se comparar estes óbitos à ―ponta do iceberg‖. Por sua vez, o
―lado submerso do iceberg‖ esconde um mundo de violências não declaradas,
especialmente a violência rotineira contra mulheres no espaço do lar. A
obtenção de informações acuradas sobre feminicídios é um desafio, pois, na
maioria dos países, os sistemas de informação sobre mortalidade não
documentam a relação entre vítima e perpetrador, ou os motivos do
homicídio.‖ (IPEA, 2014)

Os tipos de violência segundo o Mapa de Violência contra a mulher, a violência


física é a preponderante, englobando 44,2% dos casos, a psicológica ou moral representa
acima de 20%, e a sexual 12,2%. Os números registrados apontam apenas a ponta do
iceberg das violências cotidianas que efetivamente acontece, um grande numero nunca
alcança a luz pública por não serem reconhecidos ou registrados. Nesse contexto a
violência invisível se torna mais perigosa porque é socialmente aceitável e tolerada em
nossa cultura, e agravada pela dificuldade em ser detectada.

Violência esta que se esconde por trás de procedimentos que marginalizam de


forma distorcida os valores da mulher, através das dominações psicológicas e ameaças
físicas que nos impedem de realizarmos como sujeito pleno. Apesar da mulher se
encontrar em todos os espaços sociais, percebemos uma resistência barrando seu acesso
em posições de níveis mais elevados. Porque incomoda a mulher no poder. Nunca vimos
na história da democracia um Presidente ser chamado de boi ou vagabundo como o
fazem nas redes sociais com a Presidenta Dilma Rousseff, chamando-a de vaca e
vagabunda, numa desvalorização do feminino. Mesmo as próprias mulheres,
condicionadas pela criação a que estamos subordinadas, atravessadas pela alienação do
machismo social nosso de cada dia – entendendo-se que a violência simbólica nem

2
A pesquisa Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil, coordenada pela técnica de Planejamento e
Pesquisa do Instituto Leila Posenato Garcia. De acordo com os dados da pesquisa, A taxa corrigida de
feminicídios foi 5,82 óbitos por 100.000 mulheres, no período 2009-2011, no Brasil. Estima-se que
ocorreram, em média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano.
62
sempre está em um nível consciente, tratamos da manutenção desse sistema na criação e
educação dos nossos filhos e alunos.

Bourdieu trata a questão da ―dominação masculina‖ principalmente a partir de


uma perspectiva simbólica. Segundo ele, ―O poder simbólico é um poder de construção
da realidade que tende a estabelecer uma ordem, um sentido imediato do mundo, e em
particular, do mundo social.‖( Bourdieu, 1989, p.9)

Ele vai nos dizer que a ordem social se estrutura como um mecanismo de uma
grande máquina simbólica que tende a legitimar a dominação masculina sobre a qual
se baseia: a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades
atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos. É a
estrutura do espaço, opondo o lugar de político e de negócios, reservados aos homens,
e o ambiente doméstico, reservado às mulheres, que no caso todo o trabalho de
socialização tende, por conseguinte, a impor-lhes limites. E traz o exemplo da jovem
cabila, ―que interioriza os princípios fundamentais da arte de viver feminina, da boa
conduta, inseparavelmente corporal e moral.‖ (Bourdieu, 2012, p.37) O comportamento
de submissão imposto às mulheres cabilas segundo o autor, representa o limite máximo
da que até hoje se impõe às mulheres como o sorrir, baixar os olhos, aceitar ser
interrompida. Como se assumir-se feminina pudesse apequená-la, as mulheres
permanecem encerradas em uma invisibilidade, enquanto os homens tomam maior lugar
com seu corpo, sobretudo em lugares públicos. (id, p. 38-39)

Por outro lado, também existe a construção social do macho. O homem tem que
assumir essa postura de virilidade, na necessidade de exercer e exibir uma
masculinidade para ser aceito no mundo macho que o rodeia. A virilidade, assim como
a dominação masculina é uma construção social contra a feminilidade, numa certa
repulsa e medo do feminino, construída dentro dos seres, muitos homens sofrem e são
oprimidos pelo próprio machismo.

O movimento feminista rompe com as tradicionais políticas que tratavam com


neutralidade o espaço doméstico, ao afirmar que o sexo é político, pois, traz em si as
relações de poder, e aponta que as relações entre homens e mulheres não estão inscritas
na natureza, mas, dessa construção social dos sexos, portanto, existe a possibilidade
política de sua transformação. De acordo com o Dicionário Crítico do Feminismo

63
(2009), esse movimento coletivo parte do reconhecimento das mulheres como específica
e sistematicamente oprimidas.

No livro O que é o feminismo (1985) encontramos esse trecho escrito por


Xenofonte: ―que viva sob uma estreita vigilância, veja o menor número de coisas
possível, ouça o menor número de coisas possível, faça o menor número de perguntas
possível.‖ Na época, (séc. IV a.C.) a crença era de que os deuses criaram as mulheres
para as funções domésticas, assim, sobre a educação destinada às mulheres e meninas.
(ALVES e PITANGUY, 1985, p.12)
A chamada caça às bruxas, na Idade média Séc XVI, foi um verdadeiro genocídio
contra o sexo feminino na Europa e nas Américas, dada pela Inquisição da poderosa
Igreja católica em perseguição às mulheres suspeitas de possuírem poderes e sabedorias
com certos tipos de ervas e em relação aos partos, ou simplesmente por serem mulheres.

―Se hoje queimamos as bruxas, é por causa do seu sexo feminino‖, diz Jacques
Sprenger, inquisidor e teórico. No ano de 1515, a cidade de Genebra queimou em apenas
três meses, nada menos que quinhentas mulheres, na Alemanha o Bispado Bamberg
queima de uma só vez seiscentas, e o de Wurtzburgo, novecentas. As confissões eram
extraídas sob tortura. (id, p. 24-25)

―Existe, nessa perseguição às ―feiticeiras‖, um elemento claro de luta pela


manutenção de uma posição de poder por parte do homem: a mulher, tida
como bruxa, supostamente possuiria conhecimentos que lhe confeririam
espaços de atuação que escaparam ao domínio masculino.‖ (id, p.21)

Muitas religiões ao longo dos séculos continuam apregoando que as mulheres


devem submeter-se ao governo dos homens, pois, são naturalmente ineptas para exercer
cargos políticos. A ordem natural é que o homem é o ser político por excelência, e que as
escrituras nos demonstram que a mulher deverá ser sempre o apoio dos homens
pensador provedor e fazedor, nada mais que isso. Ou seja, que a mulher deveria sujeitar-
se à sombra do sujeito masculino poderoso e soberano, condenada à invisibilidade do
ambiente doméstico.

Jean Jacques Rousseau, ideólogo da Revolução Francesa, segundo suas crenças


de que o mundo exterior era masculino, e que ―natural‖ para a mulher é ser educada para
servi-los, resume assim a participação das mulheres nos espaços públicos.
―Toda a educação das mulheres deve ser relacionada ao homem. Agradá-los,
ser-lhes útil, fazer-se amada e honrada por eles, educá-los quando jovens,
cuidá-los quando adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida útil e
64
agradável- são esses os deveres das mulheres em todos os tempos e o que lhes
deve ser ensinado desde a infância.‖ (ROUSSEAU. In: ALVES;
PITANGUY.1981. p. 35)

Em seu livro ―A mística feminina‖, Betty Friedan (1971), psicóloga e escritora,


denuncia a manipulação da mulher americana pela sociedade de consumo e nomeia a
situação de ―o problema sem nome‖:

Mas, se não estou enganada, é esta primeira jornada que contém a pista de
muita coisa que vem acontecendo à mulher desde então. E' uma estranha
cegueira da psicologia contemporânea não reconhecer a realidade do
entusiasmo que levava aquelas mulheres a deixarem o lar, em busca de uma
nova identidade, ou, caso permanecessem, ansiarem amargamente por algo
mais. Seu gesto foi um ato de rebeldia, uma violenta negação da mulher como
era então definida. Foi a necessidade de uma nova personalidade que
conduziu as feministas a abrir trilhas inéditas para a mulher. Alguns desses
caminhos eram excessivamente árduos, outros não tinham saída e outros ainda
talvez tenham sido falsos, mas era autêntica a necessidade da busca. O
problema de identidade era então novo para a mulher. As feministas foram
pioneiras na própria vanguarda da evolução feminina. Precisam provar que a
mulher era humana. Precisavam despedaçar, com violência se necessário, a
estatueta de porcelana que representava a mulher ideal do século passado.
Precisavam provar que ela não era um espelho vazio, passivo, uma decoração
inútil, um animal sem inteligência, um objeto a ser usado, incapaz de interferir
no próprio destino, antes de começarem a combater pelo direito de igualdade
com o homem.‖ (Betty Friedan, 1971, pp.71-72) ―foi a busca de uma nova
identidade que lançou a mulher, há um século, nessa impetuosa, criticada e
mal interpretada viagem para fora do lar. Tornou-se moda nos últimos anos rir
do feminismo, considerando-o uma das piadas da história, e caçoar daquelas
mulheres ridículas que lutavam pelos direitos de seu sexo, a uma educação
superior, ao voto e à vida profissional. Eram vítimas neuróticas da inveja do
pênis, querendo ser iguais ao homem, é o que agora se diz. Na luta pelo
direito de participar de tarefas importantes e tomar decisões na sociedade ao
mesmo nível que seu companheiro, elas negavam a própria natureza feminina,
que só encontra a sua realização através da passividade sexual, da aceitação
do domínio masculino e da maternidade.

Ela aborda a problemática que a mulher norte-americana vinha sofrendo, e o


desenvolvimento disso em função da falta de autonomia da mulher. O livro teve uma
grande repercussão nos Estados Unidos, influenciando a cabeça de muitas mulheres que
estavam engajadas para as mudanças sociais.

A escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1970),


vai dizer que não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas, de tornarem-se
seres humanos na sua integridade. Para Beauvoir, dentro desse contexto social a mulher
está submetida a uma pesada desvantagem em relação ao homem. Para ela, ―o mundo
sempre pertenceu aos machos.‖ (Beauvoir, 1970, p.81)

65
―Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala;
os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda
hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado
handicap. Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e
muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os
direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que
encontrem nos costumes sua expressão concreta. Economicamente, homens e
mulheres constituem como que duas castas; em igualdade de condições, os
primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores
possibilidades de êxito que suas concorrentes recém-chegadas. Ocupam na
indústria, na política etc, maior número de lugares e os postos mais
importantes. (...) O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará,
nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como
sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço
necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e
porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.‖ (Beauvoir, 1970,
p.14-15)

Beauvoir nos sugere que a existência precede a essência, e, portanto, segundo


ela, "não se nasce mulher, torna-se uma". Sua análise se concentra na construção social
da Mulher como o outro, que ela identifica como sendo fundamental à opressão da
mulher. Ela diz não acreditar que existam qualidades, valores, modos de vida
especificamente femininos, seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer
dizer, aderir a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres na sua
condição de oprimidas.
(...) ―Tomás de Aquino, entretanto, mantém uma igualdade teórica entre o
homem e a mulher, observando que, se Deus quisesse fazer da mulher um ser
superior ao homem, ele a teria criado de sua cabeça e, se decidisse fazer dela
um ser inferior, ele a teria criado de seus pés. Ora, ele a criou do meio de seu
corpo para ressaltar sua igualdade.‖ (Le Goff, Jacques,
2006, p. 53-54)

Por essa concepção do sexo na construção da identidade binária de sexo, gênero


e corpo, em seu livro Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da
identidade (1990) Judith Butler aponta que:
―a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, inclusive a problemática
distinção natureza/cultura, foi apropriada por algumas teóricas feministas para
dar suporte e elucidar a distinção sexo/gênero: a suposição de haver um
feminino natural ou biológico, subsequentemente transformado numa mulher
socialmente subordinada, com a consequência de que o sexo está para a
natureza ou a matéria-prima assim como o gênero está para a cultura ou o
fabricado‖. (Butler, 1990, p.65)

Para a autora, localizar o mecanismo mediante o qual o sexo transforma-se em


gênero é pretender estabelecer, em termos não biológicos, não só o caráter de construção
do gênero, seu status não natural e não necessário, mas também a universalidade cultural
da opressão. Ela considera que o feminismo tinha cometido um erro ao tentar afirmar
66
que as mulheres eram um grupo com características e interesses comuns. Para ela essa
abordagem, realizou uma regulação inconsciente e retificação das relações de gênero,
reforçando uma lógica binária de gênero e excludente, no qual os seres humanos são
divididos em dois grupos bem definidos, mulheres e homens. Segundo ela, o nosso
corpo natural também é uma construção social cultural, que ofusca as diversidades das
identidades sexuais e de gênero. O gênero se constitui de atos cotidianos repetitivos,
como o gesto, modos de falar e de se conduzir. Ser homem ou mulher a partir de atos do
cotidiano. Para ela, as identidades estabelecidas são, portanto, excludentes das outras
sexualidades.

Como vemos a trajetória da mulher na história e hoje na contemporaneidade


consiste na reivindicação de seus direitos e igualdade para se colocar nos espaços
político, cultural, social e profissional. Contudo, acreditamos que na busca de sua
autonomia, ela precisa atuar no seio dos movimentos políticos e sociais não como
vítimas, mas como causadoras e apoiadoras das pautas feministas. Lembrando que
aquilo que, na história, aparece como legítimo, não é mais que o produto de um trabalho
de eternização que compete a instituições interligadas na construção social dessa
dominação masculina. A manutenção desse machismo social, agravado por tradições
religiosas e conservadoras que legitimam as relações de poder exercidas pela
dominação patriarcal, tem mantido por milênios a mulher nessa condição social de
desvantagem, condenada desde o pecado original a carregar a culpa e viver à sua sombra
do homem. O mito da inferioridade das mulheres é tido como uma verdade, e banalizado
nas atitudes oriundas de velhos preconceitos.

―Não posso ser justa em relação aos livros que tratam da mulher como mulher.
Minha ideia é que todos, homens e mulheres, o que quer que sejamos, devemos ser
considerados seres humanos.‖ Dorothy Parker (Beauvoir, 1970, p. 8)

Mediante esta pesquisa teórica e inspirada por essa igualdade defendida por
Dorothy Parker, empreendo na criação do meu trabalho de performance um ato de
resistência e denúncia para incomodar o outro daquilo que está posto socialmente,
provocando reflexões das relações que vivemos, conscientizando sobre violências que
muitas vezes passam despercebidas numa alienação do contexto social que nos rodeia.
Na construção temática da performance relaciono teoria e prática na materialização

67
conceitual do trabalho de arte. Tenho a necessidade de apontar por meio da arte a
afetação daquilo que me atravessa pelas discriminações sofridas por nós mulheres nas
relações de desigualdade, machismo e violência. Nas performances criadas uso o corpo
como elemento potencial na expressão das violências sofridas, sobretudo as violências
veladas que habitam o cotidiano da mulher.

Em anexo imagens dos trabalhos de performance.

68
Cláudia Regina, “Aquilo que está velado”, 2014, Cláudia Regina, “O que está oculto por trás do
Performance visível”, 2014, Performance
Fonte: Acervo da autora Fonte: Acervo da autora

Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão
dos corpos em transito”, 2014 dos corpos em transito”, 2015, Entrecorpos
Performance Performance
Fonte: Acervo da autora Fonte: Acervo da autora

Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão
dos corpos em transito” Parte 2, 2015, dos corpos em transito” Parte 2, 2015,
Performance Performance
Fonte: Acervo da autora Fonte: Acervo da autora

69
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Artigo
RIBEIRO, Jucélia Santos B. “Brincadeiras de meninas e de meninos: socialização,
sexualidade e gênero entre crianças e a construção social das diferenças”, Cadernos
Pagu (26), Janeiro-junho de 2006: pp. 145-168.
SAFFIOTI, H. Violência de gênero no Brasil atual. Revista Estudos Feministas
2(2):443-61, 2º sem./94.

70
SOIHET, Rachel. Violência Simbólica: saberes masculinos e representações
femininas. Estudos Feministas, v.5, n.1, p.7-29, 1997.

Dissertação de Mestrado
GUERRA, Cláudia Costa. Descortinando o poder e a violência nas relações de
gênero: Uberlândia (1980-1995), 1998, 203 f. Dissertação (Mestrado em História),
USP, São Paulo, 1998.
ROSA, Juliana de Almeida F. Estudos da performance, Ética e Pedagogia:
Desconstruindo a Lei do Pai. Dissertação (Universidade Federal da Bahia) 2008.

Endereços Eletrônicos
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, item: Tolerância Social à Violência
contra Mulheres, pesquisa realizada em maio/junho2013, divulgada em março de 2014 e
revisada e corrigida devido a erro de troca de gráficos em abril 2014. Disponível em: <
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=19873 > acesso em
10/01/2015
Pesquisa "Por Ser Menina no Brasil: Crescendo entre Direitos e Violências". Disponível
em: < https://plan-international.org/where-we-work/americas/brazil/sobre-a-plan-no-
brasil/pesquisaporsermenina/ >Acesso em11/03/2015

RIBEIRO, Renato Janine. Nem mais um minuto. Disponível


em:<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2015/03/renato-janine-ribeiro-nem-
mais-um-minuto-4713285.html >Acesso em: 08/03/2015

UNESCO. A Violência de Gênero em escolas impedem milhões de alcançar potencial


acadêmico. Disponível em: < http://nacoesunidas.org/unesco-violencia-de-genero-em-
escolas-impede-milhoes-de-alcancar-potencial-acad/ >Acesso em: 14/03/2015
MAPA DA VIOLENCIA 2012. Disponível em <
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf >
acesso em 14/03/2015
POSENATO, Leila. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_lei
lagarcia.pdf

71
MEMÓRIAS DE MULHERES: LIVRO-REPORTAGEM COM PERFIS
BIOGRÁFICOS DE FEMININOS MÚLTIPLOS

Diélen dos Reis Borges ALMEIDA1

Resumo
Este trabalho relata o processo de produção do livro-reportagem Memórias de
Mulheres: perfis biográficos de femininos múltiplos. Parte-se do seguinte problema:
como o protagonismo feminino se constrói ao longo da história? Apresenta-se como
referencial epistemológico o materialismo histórico e como referencial teórico os
estudos culturais britânicos. Adota-se o gênero como categoria de análise e revisa-se a
literatura sobre feminismo e história das mulheres, especialmente no que se refere à
educação, à comunicação e às tecnologias. A metodologia contempla técnicas da
história oral para apuração das memórias das fontes e do jornalismo literário para a
redação do livro-reportagem. São entrevistadas quatro mulheres com diferentes
características e trajetórias de vida: Zélia, de 54 anos, vítima de diferentes formas de
violência que sustentou a si e as filhas por meio de trabalhos braçais; Bruna, de 20 anos,
estudante e militante feminista da Marcha das Vadias; Beatriz, de 62 anos, professora
com receio de aposentar-se, que optou por não casar nem ter filhos e mantém um
namoro há 32 anos; Carol, de 31 anos, adotada quando menina, sacerdotisa que cultua a
Deusa e o sagrado feminino. A narrativa dos quatro perfis é perpassada por uma quinta
narrativa autorreflexiva, a da autora. Conclui-se que o protagonismo das mulheres se
constrói por meio de um feminino múltiplo.

Palavras-chave: Mulheres. Memórias. Jornalismo literário.

Introdução

A ideia sobre o que é ser mulher modificou-se ao longo do tempo e do espaço,


embora tenha pairado sobre as diferentes sociedades um discurso universal eurocêntrico
que tipificou um padrão feminino. Mas como o protagonismo feminino se constrói? Em

1
Jornalista e mestra em Tecnologias, Comunicação e Educação pela Universidade Federal de Uberlândia,
email: dielenrb@yahoo.com.br.

72
palavras mais analíticas, a questão que norteia esta pesquisa é: de que modo a mulher
escreve sua própria história, em um contexto rançoso de valores machistas e patriarcais?
Este estudo foi feito no Mestrado Profissional Interdisciplinar em Tecnologias,
Comunicação e Educação, em que há a possibilidade de o mestrando desenvolver uma
dissertação ou um produto. Optamos pelo segundo e definimos que nosso objetivo seria
produzir um livro-reportagem com perfis biográficos de mulheres.

A história das mulheres

―Ninguém nasce mulher: torna-se mulher‖. A famosa frase de Simone de


Beauvoir abre o clássico O Segundo Sexo, no qual a filósofa discorre sobre a construção
de uma representação da mulher como ser inferior ao homem.

Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina.


Sua cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a
embalam são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a
Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que
descobriram a terra e inventaram os instrumentos que permitem
explorá-la, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros
e de livros. (BEAUVOIR, 1949, p.30).

A autora que inspira gerações de feministas defende que submissão e fragilidade


não são atributos natos às mulheres, mas sim, moldados pela sociedade, a começar pela
família. Beauvoir (1949, p. 493), mais de 60 anos atrás, falava de uma mulher
―esquartejada entre o passado e o futuro‖. Outra referência na temática do feminino é a
historiadora francesa Michelle Perrot. Ao relatar sua experiência na pesquisa que deu
origem ao livro Histórias das Mulheres no Ocidente, ela indica o que há de especial no
estudo sobre as mulheres:

Escrever uma história das mulheres é um empreendimento


relativamente novo e revelador de uma profunda transformação: está
vinculado estreitamente à concepção de que as mulheres têm uma
história e não são apenas destinadas à reprodução, que elas são
agentes históricos e possuem uma historicidade relativa às ações
cotidianas, uma historicidade das relações entre os sexos. Escrever tal
história significa levá-la a sério [...]. também significa criticar a
própria estrutura de um relato apresentado como universal, nas
próprias palavras que o constituem, não somente para explicitar os
vazios e os elos ausentes, mas para sugerir uma outra leitura possível.
(PERROT, 1995, p. 9).

Contar a história das mulheres é um desafio. O relato histórico tradicional


prioriza os feitos dos heróis, quase sempre homens. As mulheres tiveram acesso tardio à

73
escrita e deixaram poucos registros. As palavras também não favorecem:
gramaticalmente, ―eles dissimula elas‖ (PERROT, 2007, p. 21). Perdia-se o sobrenome
a partir do matrimônio, o que dificulta reconstituir linhagens femininas. Falava-se muito
sobre as mulheres – na literatura e outras artes –, mas quem falava eram os homens.
Muitos vestígios delas, como diários e cartas, eram destruídos. O discurso religioso de
Paulo e o filosófico de Aristóteles reforçaram a ideia de superioridade masculina e
condenação da mulher ao silêncio (PERROT, 2007).
Desde o nascimento, a menina é menos desejada, a ponto de haver um
verdadeiro infanticídio de meninas na Índia e na China, países com graves problemas de
densidade demográfica. O Ocidente, se não mata as recém-nascidas, as comemora de
forma distinta. O filho varão é uma conquista maior. Na adolescência, a vigilância é
maior sobre as meninas, sob o temor da violação. ―Preservar, proteger a virgindade da
jovem solteira é uma obsessão familiar e social‖ (PERROT, 2007, p.45).
O ápice do ―estado de mulher‖ é o casamento, com enorme apoio da Igreja que o
institui como sacramento. O bom exemplar de mulher casada se caracterizava como
dona-de-casa, dependente jurídica, sexual e economicamente, que pode receber
―corretivos‖, mas que dispõe de influência na economia familiar, maternidade e
harmonia do lar. Por séculos, o casamento foi ―arranjado‖ pelas famílias, sob critérios
socioeconômicos, mas a modernidade trouxe outros parâmetros: ―o casamento por amor
anuncia a modernidade do casal, que triunfa no século XX. Os termos da troca se
tornam mais complexos: a beleza, a atração física entram em cena. [...] Os encantos
femininos se constituem um capital‖ (PERROT, 2007, p.47).
O sexo das mulheres é um mistério, sobre o qual pouco de fala. As que não
freiam a sexualidade são consideradas perigosas. A maternidade, porém, é o grande
caso das mulheres, fonte de identidade, fundamento da diferença reconhecida, mesmo
não vivida. Celebra-se o Dia das Mães, venera-se a Virgem Maria, mãe de Deus, e
pune-se o aborto. Tal é a relevância da maternidade como definidora do que é ser
mulher que Perrot (2007) considera a livre contracepção como o acontecimento que
mais abalou a relação entre os sexos, começando a dissolver a hierarquia entre eles.
É um equívoco, porém, considerar que todas as mulheres estiveram excluídas do
mundo do trabalho, conforme nos indica Saffioti:

A mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de


bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e
lugares tem ela contribuído para a subsistência de sua família e para
criar a riqueza social. Nas economias pré-capitalistas [...] a mulher das
camadas trabalhadoras era ativa: trabalhava nos campos e nas
manufaturas, nas minas e nas lojas; nos mercados e nas oficinas, tecia

74
e fiava, fermentava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas.
(SAFFIOTI, 2013, p. 62).

A menopausa sinaliza que a vida das mulheres dura pouco. É o fim da


feminilidade, maternidade, sexualidade e sedução. A velhice, hoje, é feminina. A
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2009) revelou que as mulheres representam 55,8% da população
brasileira com 60 anos ou mais.
Com as religiões, as relações são ambivalentes e paradoxais: as religiões são poder
sobre as mulheres e poder das mulheres. Segundo Perrot (2007, p. 84), ―as mulheres
fizeram a base de um contra-poder e de uma sociabilidade. A piedade, a devoção, era,
para elas, um dever, mas também compensação e prazer. [...] A Igreja oferecia um abrigo
às misérias das mulheres, pregando, entretanto, sua submissão‖. O poder religioso está
com os homens: ―A Idade Média é ‗máscula‘‖ (PERROT, 2007, p.151). O Deus dos
judeus, dos cristãos, dos islâmicos é um pai.
O significado do que é ser mulher mudou ao longo do tempo, como também
mudou a sociedade. Entre as diferenças mais significativas está o nível de escolaridade:
após séculos de conhecimento científico construído e partilhado apenas entre homens, os
anos mais recentes trouxeram uma escola mista, legalmente obrigatória para meninos e
meninas, atingindo uma surpreendente maioria feminina na contemporaneidade.

A história das mulheres mudou. [...] Partiu de uma história do corpo e


dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história
das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da
guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para
chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que
provocam a mudança. Partiu de uma história das mulheres para tornar-
se mais especificamente uma história do gênero, que insiste nas relações
entre os sexos e integra a masculinidade. (PERROT, 2007, p. 15-16).

A autora associa as principais transformações históricas femininas, no contexto


da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos dos anos 1960 e da França da década de 1970, a
fatores científicos (renovação das questões ligadas à crise dos sistemas de pensamento,
como marxismo e estruturalismo, à modificação das alianças disciplinares e à
proeminência da subjetividade, além da redescoberta da família), sociológicos (presença
das mulheres na universidade) e políticos (movimento de liberação das mulheres).

Gênero como categoria de análise

Narrar histórias de mulheres é pesquisar gênero, que está mais para um lugar de
intenso debate – político, inclusive – do que de certezas, como atesta Joan Scott:

75
É esta luta política que eu penso que deve comandar nossa atenção,
porque gênero é a lente de percepção através do qual nós ensinamos os
significados de macho/fêmea, masculino/feminino. Uma ―análise de
gênero‖ constitui nosso compromisso crítico com estes significados e
nossa tentativa de revelar suas contradições e instabilidades como se
manifestam nas vidas daqueles que estudamos. (SCOTT, 2012, p. 332).
A autora argumenta que, embora gênero esteja diretamente ligado à esfera
social, o objeto de análise desse campo de pesquisa, que são as relações históricas entre
os sexos, está conectado à esfera psicossexual. Assim, gênero seria ―sempre uma
tentativa de amenizar as ansiedades coletivas sobre os significados da diferença sexual‖
(SCOTT, 2012, p. 346). Em nosso trabalho, mais importante que definições precisas
sobre gênero é a concepção da experiência plural. Scott nos alerta que gênero é uma
questão eternamente aberta e que, se a considerarmos resolvida, é porque estamos no
caminho errado. Todavia, temos algumas propostas de direcionamento. Judith Butler
desarticula o binômio sexo/gênero e indica que o gênero tem um significado flutuante:

Originalmente concebida para contestar a formulação biologia-é-o-destino,


a distinção entre sexo e gênero serve ao argumento de que tanto faz o que a
insociabilidade biológica do sexo pareça ter, o gênero é construído
culturalmente: daí, o gênero não é nem o resultado causal do sexo nem
aparentemente fixado como sexo. A unidade do sujeito é, portanto, já
potencialmente contestada pela definição de gênero como uma
interpretação múltipla do sexo. (BUTLER, 1990, s.p., tradução nossa).

A proposta de Teresa de Lauretis (1994) é pensar gênero a partir de uma visão


foucaultiana, que entende a sexualidade como uma ―tecnologia sexual‖. Assim, o
gênero, como representação e autorrepresentação, ―é produto de diferentes tecnologias
sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas
institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana‖ (LAURETIS, 1994, p.
208). Gênero não existe a priori nem é propriedade de corpos, e sim, engloba os efeitos
de uma complexa tecnologia política em corpos, comportamentos e relações sociais.
Lauretis (1994) apresenta quatro proposições acerca de gênero: é uma
representação; a sua representação é sua construção; a sua construção se efetua na
família, na mídia, nas escolas, nos tribunais, entre os artistas e intelectuais e até
feministas; a sua construção também se faz por meio da sua desconstrução em discursos
que enxerguem o gênero apenas como representação ideológica falsa.

O livro-reportagem Memórias de mulheres

Perfis biográficos de femininos múltiplos: assim subtitulamos o livro-


reportagem Memórias de Mulheres, sinalizando na capa do que é feito o produto que

76
desenvolvemos. São 115 páginas que contam as histórias de quatro mulheres,
perpassadas pela autonarrativa da autora. O texto verbal é integrado ao não verbal por
meio de 25 fotografias, sendo três de arquivo pessoal e as demais produzidas
especialmente para o livro-reportagem. Durante a apuração, utilizamos alguns preceitos
da história oral para a coleta de dados: no caso, o relato das memórias das entrevistadas.
A redação dos perfis segue as características do jornalismo literário. Esses métodos e
técnicas são descritos na sequência deste relatório.

Jornalismo literário e livro-reportagem

O jornalismo literário, também chamado de literatura de não ficção e de


jornalismo narrativo, é uma especialista ou estilo jornalístico que utiliza as técnicas da
literatura para relatar a realidade. Conforme Felipe Pena, jornalismo literário:

Significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites


dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da
realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes
burocráticas do lead, evitar os definidores primários e, principalmente,
garantir perenidade e profundidade aos relatos. No dia seguinte, o texto
deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na
feira. (PENA, 2006, p. 13).

Nos Estados Unidos, esse tipo de jornalismo emergiu nos anos 1960, com o
nome de New Journalism. Um expoente desse contexto é Tom Wolfe, que explica como
se aproveitou das técnicas da literatura para fisgar a atenção do leitor:

O que me interessava não era simplesmente a descoberta da


possibilidade de escrever não-ficção apurada com técnicas em geral
associadas ao romance e ao conto. Era isso – e mais. Era a descoberta
de que é possível na não-ficção, no jornalismo, usar qualquer recurso
literário [...] para excitar tanto intelectual como emocionalmente o
leitor. (WOLFE, 2005, p.28).

O livro-reportagem é um formato que rompe os limites do jornalismo diário e


mergulha profundamente em fatos, personagens e situações, por vezes, com abordagens
criativas e originais (BELO, 2006). Conforme Lima (1995), ―é o veículo de
comunicação impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude
superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalística periódicos‖.
Nosso livro-reportagem é composto por quatro reportagens, escritas na forma do gênero
jornalístico-literário perfil, sobre o qual falaremos a seguir.

77
Perfis biográficos

Nenhuma história prescinde de personagens e há sempre um momento na


narrativa em que se interrompe a ação para que se faça a descrição deles, como afirmam
Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari (1986). E há um tipo de texto jornalístico em que o
foco é o personagem, do anônimo à celebridade: o perfil.
O perfil caracteriza-se pela linguagem narrativa, em que se conta uma história
sob a ótica de um personagem humanizado em um determinado contexto. É uma
narração biográfica sem ser uma biografia. O produto que propomos é o que Edvaldo
Pereira Lima (1995, p. 45) classifica como livro-reportagem-perfil, ―obra que procura
evidenciar o lado humano de uma personagem pública ou de uma personagem anônima
que, por algum motivo, torna-se de interesse‖. O autor comenta que, no segundo caso,
as características e circunstâncias de vida fazem com que a pessoa represente um
determinado grupo social e personifique a realidade desse grupo. É o que ocorre em
Memórias de Mulheress.
No perfil humanizado escrito para livro-reportagem, a entrevista tem a
possibilidade de alcançar dimensão superior ao que é praticado nos veículos periódicos,
espacialmente limitados. Ainda que exista a pauta, é possível abandoná-la em algum
momento em prol da empatia com o entrevistado e da emoção. Contar histórias de vida
em um livro-reportagem é tarefa que pode ser feita na forma de diálogo entre
entrevistador e entrevistado, ou de depoimento direto, ou de uma mescla em que se
combinam primeira e terceira pessoas, como fizemos. As entrevistas biográficas
resgatam a oralidade e contribuem para reproduzir idiossincrasias de algumas culturas e
relações sociais (LIMA, 1995). Um bom perfil requer uma apuração aprofundada. Por
isso, tomamos emprestado dos historiadores uma proposta metodológica coerente com
nossos objetivos: a história oral, sobre a qual discorremos na sequência deste texto.

História oral

A história oral ―é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida
para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos
não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo‖ (THOMPSON,
1992, p. 44). Essa metodologia é adequada aos nossos objetivos, pois propicia o
trabalho com a memória e foco no sujeito, fundamentais para a construção dos perfis.

78
Com o uso da entrevista, é possível agora desenvolver uma história
muito mais completa da família através dos últimos noventa anos, e
estabelecer seus padrões e mudanças principais no correr do tempo, de
lugar para lugar, durante o ciclo de vida e entre os sexos. [...] E, dada a
predominância da família na vida de muitas mulheres, pelo trabalho
em casa, pelo serviço doméstico e pela maternidade, verifica-se um
alargamento quase equivalente do campo de ação da história da
mulher. (THOMPSON, 1992, p. 28).

Segundo Pollak (1989, p. 2), a história oral evidencia uma memória coletiva
subterrânea da sociedade civil dominada, que se distingue de uma memória coletiva
organizada imposta por uma sociedade majoritária ou pelo Estado: ―essas memórias
subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase
imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados‖.
Karam propõe uma abordagem jornalística da memória coletiva, na busca pelo presente:

Segundo Halbwachs, o passado é aquele lugar onde o pensamento dos


grupos atuais já não mais se estende. É o lugar onde é preciso ir
buscar informações. Ora, isto vale também para o presente, à medida
em que o limite dos testemunhos diretos e cotidianos, por um
indivíduo, é bastante nítido. Isso envolve as histórias que nos contam
no trabalho, em casa, nas ruas. Não testemunhamos tudo, mas o
conjunto de testemunhos forma também a memória coletiva. A
multiplicidade de memórias coletivas e testemunhos dão uma certa
duração coletiva aos eventos sociais, compartilhados mesmo por quem
não os vivenciou imediatamente. (KARAM, 199-, p. 7).

Sabemos que, para os historiadores, a história oral requer uma série de


procedimentos que devem ser rigorosamente seguidos para que se reconstitua o passado
por meio da oralidade. Para nós jornalistas, contudo, a história oral convém como
metodologia que permite contar uma história do tempo presente, combinada com
critérios editoriais. Thompson (1992, p. 104) cita os jornalistas, os sociólogos e os
antropólogos como estudiosos que adotam a história oral e afirma: ―todos eles podem
estar escrevendo história; e, sem dúvida, estão provendo à história‖. A história das
mulheres também é lembrada pelo autor como assunto pouco explorado pela história
documental e caracterizada como tema a ser desvelado pela história oral.
Fizemos, também, a opção editorial de trabalhar com a história oral narrada por
cada mulher perfilada, sem depoimentos complementares de outras fontes que
pudessem narrar e descrever a protagonista de cada história. Segundo Maurice
Halbwachs (1990, p. 27), ―para confirmar ou recordar uma lembrança, as testemunhas,
no sentido comum do termo, isto é, indivíduos presentes sob uma forma material e
sensível, não são necessárias‖. Apenas no primeiro perfil, a filha de Zélia nos auxiliou a

79
entender a linha cronológica de alguns acontecimentos, pois a mãe tem lapsos como
sequelas do acidente vascular cerebral; um comentário que essa filha fez durante a
entrevista foi registrado na narrativa.

Relato do desenvolvimento do trabalho

Estávamos em busca de mulheres que subvertiam a hierarquia de gênero, a


ordem machista, patriarcal, misógina, que estabelece a elas padrões de comportamento
discutidos anteriormente neste texto: delicadeza, beleza, casamento, maternidade,
submissão e outros. A informação que buscávamos estaria com elas, as nossas fontes,
escolhidas com base em critérios editoriais que talvez destoem do engessamento
científico, mas que são cotidianos para os jornalistas: a observação atenta das pessoas,
de forma rotineira, em qualquer saída pela cidade; o questionamento à rede de contatos:
―você conhece alguém que...?‖; a pesquisa na internet com foco em um tema e outros.
Foi desse modo que chegamos a quatro mulheres que se relacionavam ao nosso tema:
a) Zélia, de 54 anos, vítima de diferentes formas de violência, que sustentou a
si e as filhas por meio de trabalhos braçais, predominantemente o de
borracheira;
b) Bruna, de 20 anos, estudante e militante feminista da Marcha das Vadias;
c) Beatriz, de 62 anos, professora com receio de aposentar-se, que optou por
não casar nem ter filhos e mantém um namoro há 32 anos;
d) Carol, de 31 anos, adotada quando menina, sacerdotisa que cultua a Deusa e
o sagrado feminino.

Definidas as fontes, procedemos à apuração. Foram três encontros com Zélia;


quatro com Bruna; dois com Beatriz e três com Carol. Fizemos cada perfil de uma vez,
seguindo a sequência: contato e convite, elaboração do primeiro roteiro de entrevista,
primeiro encontro com a fonte, transcrição da primeira entrevista, análise das
informações apuradas, elaboração do segundo roteiro de entrevista, transcrição da
segunda entrevista, análise das informações apuradas, novos encontros (conforme a
necessidade) e redação do perfil. Nessas fases, utilizamos métodos e técnicas da história
oral e do jornalismo literário, conforme apresentado anteriormente. O registro
fotográfico foi feito pela estudante de jornalismo Letícia França.
Com as histórias apuradas e os textos em processo de construção, paralelamente
aos estudos teóricos que vínhamos fazendo, percebemos que as histórias das mulheres
extrapolavam a ideia de subversão. Eram mais do que isso. Na verdade, estávamos

80
diante de memórias de mulheres muito diversas que constituíam femininos múltiplos. É
certo que há pontos de convergência entre elas, mas que não configuram nem um
padrão a ser seguido nem a ser subvertido. Elas são várias. A partir desse momento,
começamos a enxergar o fio condutor entre as histórias, a multiplicidade do feminino,
com uma inclusão mais profunda da narradora nos perfis relatados, construindo uma
autonarrativa entrelaçada às outras quatro narrativas.
Com os textos redigidos e revisados, selecionamos as fotografias e
encaminhamos o material para a construção do projeto gráfico e a diagramação, que
ficaram a cargo da jornalista Elisa Chueiri. A Imagem 1 apresenta a capa do livro:

Imagem 1 – Capa do livro-reportagem Memórias de Mulheres

Fonte: A autora

O livro totalizou 115 páginas e cinco capítulos: Nós, em que a autora introduz
seu perfil, a ser desenvolvido no decorrer da obra; quatro capítulos com o nome de cada
mulher perfilada – Zélia, Bruna, Beatriz e Carol – e Memórias, de conclusão.

Considerações finais

As páginas derradeiras deste trabalho trazem memórias, reflexões e


preocupações. Fosse este um estudo das ciências exatas, teríamos meia dúzia de linhas
apresentando a conclusão da pesquisa. Objetiva, certeira e sintética. Mas o assunto aqui
é gênero, memória, histórias de mulheres... É fluido demais. O que foi que apuramos?
Voltemos ao nosso problema inicial: como o protagonismo feminino se constrói ao
longo da história? De que modo a mulher escreve sua própria história?
O mesmo discurso hegemônico eurocêntrico que colocou no proscênio da
história da humanidade o homem branco ocidental forjou um conceito de feminino
subalterno ao masculino e fabricou uma hierarquia de gênero útil à configuração social

81
e política tecida ao longo dos séculos. As mulheres, contudo e obviamente, também têm
uma história. Ainda que o machismo, o patriarcado e a misoginia tenham perpassado as
mais diferentes épocas e geografias, as protagonistas das memórias de mulheres são elas
próprias, que construíram seu feminino, cada qual, à sua maneira e conforme seus
contextos de existência.
Fizemos um recorte espaço-temporal que contemplou quatro (ou cinco, com a
narradora) mulheres de Uberlândia que, em 2014, narraram suas memórias –
lembranças que iam de vinte a sessenta anos. Múltiplas que são, apresentaram traços
convergentes e divergentes. Em comum, notamos, por exemplo, a necessidade de, em
algum(ns) momento(s) de suas vidas, romper com determinada ordem: Zélia deixou a
família e o marido para escapar da violência e da humilhação; Bruna afastou-se do pai
para libertar-se de uma ideologia machista e também violenta que chocava com a dela;
Beatriz terminou um noivado, recusou o casamento e priorizou uma vida em busca do
conhecimento; Carol deixou o esposo em prol do sacerdócio. São memórias de
mulheres imersas numa contemporaneidade que ainda lida de modo problemático com o
gênero, essa fosca categoria de análise. Memórias de um ―ser mulher‖ complexo,
disperso, difuso. Múltiplo.
A partir desse estudo, percebemos que uma definição sobre o ―ser mulher‖ seria
uma falácia, uma generalização estabelecida a partir de uma visão binária sobre
feminino e masculino que, na verdade, refutamos. Afinal, o feminino é múltiplo e o
gênero é plural. Já não falamos que ―a mulher isso ou aquilo‖, mas sim, falamos de
mulheres, com a flexão de número, a fim de contemplar a complexidade.
Por ser um trabalho desenvolvido no âmbito de um mestrado profissional,
pudemos escolher entre a dissertação tradicional ou a elaboração de um produto – e
decidimos pela segunda opção como forma popularizar o conhecimento acadêmico,
fazendo-o chegar ao público. A dissertação iria para a gaveta e, ainda que publicada,
provavelmente seria acessada apenas por outros pesquisadores e pesquisadoras – afinal,
o tema precisa desdobrar-se. O livro, esperamos que chegue aos mais múltiplos leitores
e leitoras, para que seu sentido, enfim, se complete. Um estudo dessa natureza envolve
sua pesquisadora, sua orientadora e seus colaboradores num sentido muito além do
trabalho a ser desempenhado. É uma experiência inevitável de resgate de memórias, de
análise sobre a sociedade à qual pertencemos e de reflexão sobre si.

Referências
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: A experiência Vivida. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1949.

82
BELO, Eduardo. Livro-reportagem. São Paulo: Contexto, 2006.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York:
Routledge, 1990. Disponível em: <https://goo.gl/bI92Hs>. Acesso em 23 dez. 2014.

COSTA, Lailton Alves da; LUCHT, Janine Marques Passini. Gênero interpretativo. In:
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83
O ASILO DE MENINOS DESVALIDOS E AS SOCIEDADES
ABOLICIONISTAS: A PARTICIPAÇÃO DOS INTERNOS NAS FESTAS DA
ASSOCIAÇÃO CENTRAL EMANCIPADORA, DA CONFEDERAÇÃO
ABOLICIONISTA E DO CLUBE DOS LIBERTOS DE NITERÓI

Eduardo Nunes Alvares Pavão 1

Resumo: A formação do Asylo de Meninos Desvalidos do Rio de Janeiro criado pelo


decreto nº 5532 de 24 de janeiro de 1874, sendo inaugurado no dia 14 de maio de 1875,
com 13 meninos, pelo então Ministro do Império João Alfredo Corrêa d‘Oliveira, que o
regulamentou por decreto nº5849 de nove de janeiro de 1875 estava relacionada com a
formação de uma mão de obra especializada par ao mercado de trabalho após a abolição
da escravidão ou estava inserida num movimento de constituição da noção de cidadão?
O objetivo desse trabalho é analisar o projeto pedagógico dessa instituição, atentando-se
ao projeto de transformar estes sujeitos ―desvalidos‖ em ―corpos úteis‖. Analisar não
apenas a formação de mão de obra, mas, sobretudo, à constituição desses indivíduos
dispostos a contribuir para as novas noções de nação e cidadania a ser forjado no último
quartel do século XIX. A instituição era indicada para meninos órfãos e pobres, entre
seis e doze anos de idade e uma vez no asilo, tendo terminado a educação de primeiro
grau e instrução em algum ofício, eram obrigados trabalharem três anos nas oficinas da
escola. Através da análise dos impressos, das fotografias, dos regulamentos, dos
relatórios ministeriais e das informações prestadas pelos diretores do Asylo de Meninos
Desvalidos é possível se compreender as concepções de cidadão presentes nos debates
realizados por sociedades abolicionistas. A formação dessa instituição decorreu de
projetos sociais que conformam a relação entre os poderes público e privado em fins do
século XIX, ela era mantida com a subvenção do Governo Imperial e, em grande
medida, através de doações feitas por particulares.

Palavras-chave: Desvalidos; Sociedade; Abolicionista.


A atuação dos internos do Asilo de meninos desvalidos se trata de uma questão
de gênero, pois o Governo Imperial ao decretar que o internato se tratava de uma
instituição para meninos órfãos a partir de seis anos idade e vedar a admissão de
meninas desvalidas não desenvolveu políticas públicas para as meninas órfãs, filhas de
escravas ou da população empobrecida. Além disso, nos regulamentos, nos relatórios
dos diretores do internato ao Ministério do Império, nas teses da Faculdade de Medicina
poucas foram as referências feitas à necessidade de se criar uma instituição asilar para
as meninas desvalidas. Inventaram-se masculinidades e se criaram instrumentos de
exclusão das meninas desvalidas.

1
Doutorando em História Política pela UERJ. Email: enap2010@yahoo.com.br

84
Os médicos determinavam os espaços de uso da infância, assim como
participação e divisão das horas de sono, alimentação, higiene, estudos e brincadeiras.
Além disso, eles preconizavam vigília, controle das atividades escolares, religiosas,
sociais e culturais das crianças no dia a dia, com premiações e punições aos
comportamentos ditos ―imorais‖.
Diversos cenários foram utilizados pelos médicos para a divulgação das normas
e orientações educativas das crianças. As teses das faculdades de medicina do Rio de
Janeiro e da Bahia, as conferências pedagógicas, os jornais e as revistas, as visitações
dos médicos às instituições de atendimento e assistência às crianças desvalidas
preconizavam as diretrizes e a intervenção do governo imperial no Asilo de meninos
desvalidos.
Ainda trazendo à tona, algo que estava submergido, Arriès, em História Social
da Criança, no século XIX, afirma que: ocorreu uma mudança do que é ser criança,
vista até então como ―adulto em miniatura‖ essa vai começar a ser pensada como um
ser diferente, específico, que requer tratamento e atenção diferenciada. Como mostra o
autor:

Os hábitos das classes dirigentes do século XIX foram impostos às crianças


de início recalcitrantes por precursores que os pensavam como conceitos, mas
ainda não os viviam concretamente. Esses hábitos no princípio foram hábitos
infantis, os hábitos das crianças bem educadas, antes de se tornarem os
hábitos da elite do século XIX, e, pouco a pouco, do homem moderno,
qualquer que seja sua condição social. A antiga turbulência medieval foi
abandonada primeiramente pelas crianças, e finalmente, pelas classes
populares: hoje, ela é a marca dos moleques, dos desordeiros, últimos
herdeiros dos antigos vagabundos, dos mendigos, dos ―fora da lei‖, dos
escolares do século XVI e início do século XVIII (ARRIÈS, 1981, p.185).

Não mais como reprodução do adulto, mas com vontades e necessidades


próprias, por isso mesmo esta deveria ser protegida, cuidada, amparada, assistida desde
a mais tenra idade, afinal de contas se torna uma ―riqueza da nação‖, algo de ―extremo
valor‖. Concomitantemente há o aspecto civilizacional, era contraprocedente uma nação
civilizada possuir uma população ―miserável‖, ―pauperizada‖, ―analfabeta‖, ―não
civilizada‖, e é dentro deste aspecto que é preciso considerar a importância dada à
questão da criança desvalida. Os discursos destacavam a necessidade de dotar o Brasil
de homens ―honrados‖ e ―civilizados‖, com ―corpos robustos, espíritos esclarecidos e
almas virtuosas‖.

85
Para compreender como se estruturou a assistência, tive que compreender as
condições e possibilidades de constituição da política de assistência aos desvalidos,
mais precisamente 1850. Estabeleci este limite em virtude da reforma de ensino de
Couto Ferraz que regulamentou o ensino primário e o ensino secundário, através dos
decretos nº630, de 17 de setembro de 1851, e nº1331-A, de 17 de fevereiro de 1854,
visto a sua relação possível ao decreto de nº 5532 de 24 de janeiro de 1874, que
estabelece a criação do Asilo dos Meninos Desvalidos do Rio de Janeiro, que foi
regulamentado pelo decreto nº 5849 de nove de janeiro de 1875, pelo Ministro do
Império João Alfredo Corrêa d‘Oliveira Andrade e inaugurado no dia 14 de maio de
1875, além de outras escolas de primeiras letras. Pois, com a consolidação do Estado
Imperial, a questão das crianças, e, sua educação passou a envolver diferentes setores da
sociedade. O artigo 57, do decreto de 1854, determina a admissão de ―alunos pobres‖
em escolas da rede particular, mediante pagamento por parte do Governo, assim como a
implantação de medidas, quando estiverem pelas ruas em estado de ―pobreza‖ ou
―indigência‖. A estes ―se fornecerá igualmente vestuário decente e simples, quando
seus pais, tutores, curadores ou protetores o não puderem ministrar, justificando
previamente sua indigência perante o Inspetor Geral, por intermédio dos Delegados dos
respectivos distritos‖ (VOGEL, 1995, p. 306).
A partir de 1850 são regulamentadas as leis acerca de escravos e seus filhos. A
chamada ―Lei do Ventre Livre ou dos Ingênuos‖, Lei de n2.040 de 28 de setembro de
1871, declarava livres os filhos de mulheres escravas nascidos após esta data.
Estipulava obrigações para os senhores de escravos e para o governo, proibia a
separação dos filhos menores de 12 anos do pai ou da mãe. Para Abreu & Martinez
(1997), a lei de 1871, incide sobre o futuro dos descendentes de escravos, tônica dos
debates públicos da época. A Lei 2040 ordenava os senhores a criarem os filhos das
escravas até a idade de oito anos, após este período poderiam receber uma indenização
do Estado ou os usarem como trabalhadores até a idade de 21 anos. Numa economia
agroexportadora, escravista e monocultora, o discurso dos senhores de escravos tinha
muitos defensores. Após 1871, descendentes de escravos libertos menores, filhos de
imigrantes e mestiços se tornaram objeto de discursos da elite no Brasil. A partir desse
período, os discursos dos homens públicos, dos reformadores e dos filantropos
propunham:

86
Fundação de escolas públicas, asilos creches, escolas industriais e agrícolas
de cunho profissionalizante, além de uma legislação para menores. Buscava-
se inserir nas práticas jurídico-policiais o encaminhamento para Casas de
Educação, Educandários e Reformatórios ―para os chamados menores
abandonados e delinquentes‖ (ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 25).

A fim de transformar as crianças em futuros adultos ―úteis a si e à sociedade‖ o


discurso médico indicava o trabalho como elemento educativo, ―moralizador‖ e
―higienista‖. O horário de funcionamento das oficinas, o mestre ―ideal‖, o ofício a ser
aprendido, o controle das visitas, o professor a ser contratado, o rendimento nas aulas, a
produção realizada e o comportamento dos internos era mensurado, medido e
comparado. Já para as meninas desvalidas era sugerido o casamento, a vida religiosa, ou
então aprenderem o ofício de corte e costura.
Na primeira metade do século XIX a infância pobre era assunto de polícia. Em
1836 Euzébio Coutinho Mattoso de Queirós - Chefe de Polícia da Corte - intencionava
mobilizar a polícia para ―caçar‖ crianças ―pobres‖, ―vadias‖ e ―vagabundas‖ e
encaminhá-las aos Arsenais de Marinha e Guerra e às Casas de Correção (ABREU &
MARTINEZ, 1997, p. 22). A política do governo imperial para a infância estava dentro
do discurso da construção dos projetos políticos que visavam definir o futuro da nação.
Essas perspectivas haviam sido formuladas nos Anais da Assembleia Constituinte, de
1823, no Rio de Janeiro.
Para disseminação da educação pública primária o Governo Imperial criou
internatos, como se pode perceber na seguinte passagem:

Para remover esta dificuldade lembra o inspetor geral da instrução dar a estas
escolas uma organização mais acomodada às necessidades da população: uma
espécie de internato; o Estado não teria grande acréscimo de despesa, porque
continuaria como até agora a instrução gratuita, e as famílias que não fossem
indigentes pagariam uma módica retribuição para o sustento dos internos.
Está tentando um destes internatos na ilha do Governador. (MOACYR, 1937,
p.57).

Pela leitura dos projetos de reforma educacional, identifico um jogo político


entre as câmaras municipais e o poder central, sobre a legislação e os encargos de
implantação de normas de funcionamento do ensino público gratuito e de mudanças às
existentes. Entre as diversas disposições e liberações por parte da Câmara Municipal
destaco o direcionamento de recursos para ―fornecer aos meninos pobres o auxílio de
livros, calçado e roupa‖ (MOACYR, 1937, p.124).

87
A referência à necessidade de investimento no professorado é uma constante, no
entanto, ao longo dos anos pouca coisa muda, sendo a profissão vista como ―árdua,
modesta e de verdadeira dedicação‖ (idem), porém pouquíssimas ações são
efetivamente executadas justificando para a falta desta a carestia de recursos do erário
público.
Tratando da relação disciplinização e controle dos corpos segundo o discurso
médico a formação da compleição física e intelectual do indivíduo era dependente da
ancestralidade moral dos seus genitores (GOMES, 1852, p. 2). A conformação física e
intelectual da criança é precedida por aspectos de conduta moral dos pais. Isto é, antes
mesmo do nascimento a criança ocorria o desenvolvimento das suas características
físicas e morais influenciadas pela falta de virtude ou pela exacerbação das paixões dos
seus ancestrais. Os discursos médicos higienistas ordenavam os meninos desvalidos
nomeando uma série características físicas e morais.
Quanto à questão do controle, vigilância e disciplina desse alunato a reforma de
ensino proposta pelo deputado Luiz Pedreira do Couto Ferraz dispunha que:

Os meios disciplinares para os meninos serão os seguintes: a) repressão; b)


tarefa de trabalho fora das horas regulares; outros castigos que excitem o
vexame; d) comunicação aos pais para castigo maiores; e) expulsão da
escola. O inspetor geral, ouvido o conselho diretor, expedirá instruções para o
emprego destes meios disciplinares. A pena de expulsão só será aplicada aos
incorrigíveis que possam prejudicar os outros por seu exemplo ou influência,
depois de esgotados os recursos do professor e da autoridade paterna, e
precedendo autorização do inspetor geral (Couto Ferraz apud MOACYR,
1937, p. 26).

Nos discursos médicos a atuação dos pais, ausência de uma higiene do corpo
percebida através das roupas sujas e falta de asseio pessoal, atraso da sua educação,
condições insalubres de habitação em localidades mais expostas aos ―miasmas‖, hábitos
alimentares ―reprováveis‖ à idade, ―excesso‖ de tempo livre, agitação, magreza, falta de
comedimento nos gestos, nas falas e nas atitudes eram associadas à pobreza.
Não obstante, ao se falar em criança desassistida, é preciso cuidado para não
uniformizar tal categoria, nomeada como criança pobre, pois assim feito ocorre um
reducionismo e empobrecimento dessa questão. De acordo com Costa (1865, p. 28):

Há no Rio de Janeiro, como em todo o Brasil, duas classes que merecem o


nome de pobres; a primeira constituída, como em todos os países do mundo
pela gente de baixa condição social, a quem a fortuna não sorriu, e que exerce
diversos ofícios, tais como: empregos públicos subalternos, agências
particulares de todos os gêneros, profissões mecânicas, agrícolas, comerciais,

88
industriais, etc.; Segunda, a verdadeira excrescência de nossa sociedade,
classe realmente digna de lástima, é a dos escravos, que muitas vezes,
arrastando uma vida de misérias, formam o contraste o mais perfeito com a
vida faustosa, que passam seus opulentes senhores. Se quisermos estudar bem
estas classes em todas as suas necessidades, em todos os seus sofrimentos, se
quisermos bem apreciar as circunstâncias em que uma se acha, é preciso que
as consideremos separadamente.

A Igreja foi pioneira no trato com a pobreza, dos expostos ou dos enjeitados.
Desde o século XV, com a atuação das Santas Casas de Misericórdias portuguesas para
onde eram enviados os indesejáveis, fosse através da Roda dos Expostos ou criação dos
órfãos. Segundo Correia:

Devido a múltiplos esforços e dedicações, no século XV, na Europa, havia


por toda a parte estabelecimentos de proteção aos expostos. Na Espanha e em
Portugal houve-os também desde longa data. As crianças em geral eram
abandonadas às portas das igrejas. Algumas vezes, porém, eram entregues
pessoalmente às claras, em pleno dia, nos hospícios. As rodas não foram
adotadas antes do século XVI. Pelo menos não há documentos que provem
que eram nelas abandonadas crianças (CORREIA, 1944, p. 2003).

No Rio de Janeiro a ação dos jesuítas tem prosseguimento com a Santa Casa da
Misericórdia. Neste período, o recolhimento de crianças e órfãos, amparados pelo
discurso jurídico e política, tem ainda sua tônica atravessado pelo discurso religioso, e
pelas práticas caritativas e de assistência religiosa da Igreja Católica.
O ―lugar de fala‖ é importante, assim como é relevante descrever os espaços de
circulação, de sociabilidade dos indivíduos inseridos em uma determinada cena
discursiva, de uma cidade, de um país. Na década 60, do século XIX, Rufino Augusto
de Almeida foi diretor da casa de correção de Recife. Sua passagem por esta instituição
foi motivo de notas na imprensa, debates na Câmara e acusação de enriquecimento
ilícito. Na década de 70, do mesmo século, vai ocupar o cargo de diretor de uma
instituição de internação de meninos desvalidos e modifica parte do regulamento da
instituição para ―dirigir a educação dos meninos‖.
No primeiro relatório do diretor do Asilo, ao Barão de São Felix, Diretor Geral
da Instrução Pública do Município da Corte, já relata uma série de modificações por ele
realizadas, alterações essas que diferenciavam consideravelmente das disposições do
regulamento nº5849. Segundo Rufino Augusto de Almeida os asilados sendo pobres
não seria lógico possuírem serviçais e deveriam executar todas as tarefas pertinentes a
um homem que vive à custa dos seus próprios proventos:

89
Criado este Asilo para abrigar e educar meninos desvalidos ou entregues à
miséria por extrema pobreza de seus pais, a mim parece que se deve prestar
muita atenção às vocações ou aptidões destes meninos, e habilita-los a
viverem à custa de seu próprio trabalho. Assim, o menino que por falta de
desenvolvimento intelectual não possa ser um homem de letras ou um bom
artista, façamo-lo um bom agricultor, um horteleiro, um jardineiro, ou
simplesmente um bom trabalhador de enxada, ou mesmo um bom criado de
servir, etc. No sentido de levar a efeito esta salutar ideia tenho procurado
dirigir a educação dos meninos, apesar da repugnância e desgosto dos
parentes de alguns asilados, que sentem a pobreza de seus antepassados
ofendida, porque pretendo criar homens para o trabalho, não fidalgos e
candidatos aos empregos públicos (BRAGA, 1925, p.34).

Por que a criação de um Asilo para meninos desvalidos na cidade do Rio de


Janeiro em finais do século XIX? Quem eram os meninos, como eram e de onde
vinham os asilados admitidos naquela instituição? Quais eram os critérios usados para a
classificação de um menino como desvalido? Depois de admitidos no Asilo, como era o
cotidiano dos meninos? E mais, o Asilo seguia o seu objetivo explícito de educar os
meninos desvalidos e inseri-los no mercado de trabalho ou atendia a outros interesses
como: o projeto de higienização dos espaços públicos e controle social na cidade do Rio
de Janeiro no último quartel do século XIX?
As estratégias de poder utilizadas e funcionamento no cotidiano, assim como, a
possibilidade de contra poderes por parte dos asilados, manifestos através de
resistências, indisciplinas e formas sutis, como processos de somatização são algumas
das preocupações dessa pesquisa.
Os meninos do Asilo de Meninos Desvalidos não são meninos anônimos, muito
menos vítimas ou heróis, são: Raul Villa-Lobos, Paulino do Sacramento, M. J. da Silva
Telles, Lima Coutinho, Luiz Moreira, Francisco Braga, Francisco Izidro Monteiro, João
Batista da Costa. São sujeitos de suas histórias, possuem trajetórias, nomes. Não
estavam à margem, faziam sim parte de toda a engrenagem da organização da sociedade
fluminense nos séculos XIX e XX.
Vida e glória de Baptista da Costa de Carlos Rubens, mandado publicar pela
Sociedade Brasileira de Belas Artes nas oficinas da Tipografia Mercantil em 1947, foi
uma obra de 1.200 exemplares. Seu autor já havia falecido quando do término da
impressão do livro, o que não o impediu de assinalar que:

Baptista da Costa não se afastou jamais do Asilo de Meninos Desvalidos, que


o acolhera em 1877. Assim é que dele foi inspetor de alunos de fevereiro a
setembro de 1886; professor adjunto em 1893; de desenho em 1894, com 29
anos, licenciando-se em 1896, quando embarcou para a Europa,

90
permanecendo no antigo estabelecimento educacional até morrer (RUBENS,
1961, p.138).

Lima Coutinho era o Nº 6, Paulino Pinto do Sacramento era o Nº 21, Raul Villa-
Lobos era o Nº 38, Francisco Braga, o Nº 59, Luiz Moreira o Nº 65 e João Baptista da
Costa o Nº 88. Portanto números, formas de objetivação, ou de despersonalização da
pessoa, pois o indivíduo ao ser identificado por um número, sobrenome, ―nome de
guerra‖, apelido, marca, tatuagem, deficiências caracteriza formas de desconstituição da
identidade. As diferenças e as desigualdades eram normalizadas pela entrada e
consequente internação que eram submetidos os asilados quando adentravam no Asilo.
Porque é importante situar o lugar de fala de cada um deles? Por que João
Batista da Costa, o Nº 88 no Asilo de Meninos Desvalidos, órfão de pai e mãe aos oito
anos, nascido em Itaguaí aos 24 de novembro de 1865, tem importância como sujeito
que entrou no Asilo de Meninos Desvalidos aos onze anos e que ―fazia-se
encadernador, enquanto outros frequentavam as oficinas de alfaiate, marceneiro,
sapateiro‖.
A História é o que transforma os documentos em monumentos e que
desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava
reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que
deverão ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados,
organizados em conjuntos (SILVA, 2007/2008, p.124).

Ao se referir à vida que João Baptista da Costa levava no Asilo de meninos


desvalidos RUBENS (1961) afirmou que:
E parecia que não era infortunado. No Asilo, a vida corria como numa
grande família. Os alunos eram obedientes e amigos, os mestres afetivos, os
diretores boníssimos. Encontravam ordem e disciplina. Do amanhecer à
noite, da hora matinal do banho à da prece e do recolhimento, ouviam as
badaladas que convidavam aos afazeres e iam contentes à ginástica, às aulas,
ao trabalho, às refeições e ao recreio, no ambiente onde tudo era limpo,
fraternal e confortador. Além das vezes que saiam a tocar em festas públicas
(e a banda dos ―meninos desvalidos‖ fez época!), tinham divertimento no
próprio Asilo, dos quais se destacava o teatro (RUBENS, 1961, p.12).

Já Villa-Lobos, ou melhor, Raul Villa-Lobos, era ―tocador de requinte e


violoncelo e depois professor de corografia‖, foi funcionário da Biblioteca Nacional e
autor de livros como A Revolta da Armada de 6 de Setembro de 1893, sob o
pseudônimo de Epadimondas Villaba. Segundo Amaral (2009) Heitor Villa-Lobos
aprendeu com Raul, seu pai, ―violoncelo e um pouco de clarineta, amante de música,

91
violoncelista e clarinetista amador, que morreu cedo, deixando a família com parcos
recursos‖.
Os internos participaram em diversos eventos cívicos do calendário histórico e
político nacional. O processo de abolição da escravidão, comemoração da
Independência do Brasil e a indicação de políticos para o Ministério do Império contou
com a participação dos meninos da banda como se pode observar nas seguintes
passagens:

Os festejos de hoje
Anteontem deu-se, na sala onde funciona a aula noturna gratuita da
Sociedade Propagadora da Instrução às classes operárias da freguesia da
Lagoa, a posse da nova diretoria, com uma sessão solene e que se tornou
brilhante por muitos motivos.
Antes de ser aberta a sessão, tocou a banda dos meninos desvalidos
do asilo de Vila Isabel, assim como durante a cerimônia com a proficiência
que já todos conhecem e sob a direção do hábil mestre o Sr. Francisco
Martins.
Comparecendo o Exmo. Snr. Conselheiro Dr. Carlos Leôncio de
Carvalho, ministro do Império, que foi recebido por toda a diretoria, pouco
depois começaram os trabalhos, sendo o Sr. ministro convidado a ocupar a
cadeira presidencial.
Ainda uma vez a ilustre diretoria quis dar outra prova de elevação de
seus sentimentos, fazendo à banda do asilo dos Meninos Desvalidos um
mimo delicadíssimo, que constou de uma bonita coroa de louro com fitas
verdes e amarelas, nas quais se liam os nomes da associação aos meninos
desvalidos.
Em nome do órgão do partido democrático enviamos aos seus
promotores as mais cordiais felicitações (A Reforma, 17/12/1878, p.2). 2

Realizou-se anteontem o festival abolicionista com que a


Associação Central Emancipadora comemorou a chegada do Sr. Dr.
Joaquim Nabuco, deputado por Pernambuco.
A concorrência foi numerosa e a festa foi esplendida.
Uma grande banda de 200 músicos executou a marcha do 2º ato da
Ainda e duas composições do professor Ciriat, que foi entusiasticamente
aplaudido.
Fizeram-se ouvir os professores Cernichiaro, Guzman e Queiro,
Viriato e Horacio Fluminense, no violino, piano, flauta e violoncelo.
A Exª. Sra. D. Julia Regadas cantou uma ária da opera Roberto do
Diabo.
A banda dos Meninos Desvalidos executou finalmente um pot-
pourri do Guarany.
Além da parte musical, provocaram aplausos estrepitosos os discursos
dos Sr. Dr. Vicente de Souza, saudando o Sr. Dr. Joaquim Nabuco, e o
proferido pelo ilustre deputado, agradecendo à Associação Central
Emancipadora, e definindo a sua posição no partido abolicionista. O último
saiu da tribuna coberto por uma aclamação prolongada.
Foi lida pelo Sr. Dr. Vicente de Souza uma carta de liberdade
concedida pelo Sr. Dr. Ladislau Netto ao seu último escravo (Gazeta de
Noticias, 23/5/1881, p. 1). 3

2
Grifos meus.
3
Grifos meus.

92
A Associação Central Emancipadora realizou anteontem ao meio
dia a sua matine musical, conforme noticiamos, no Recreio Dramático.
Duas bandas de música, a dos Meninos Desvalidos e a do Recreio de
S. Domingos, abrilhantavam a festa.
Começou esta pela execução de um pot-pourri da opera Guarany, pela
banda dos Meninos Desvalidos. Em seguida o Sr. Dr. Nicolau Moreira em
breve discurso, que foi muito aplaudido, declarou aberta sessão.
Sócios honorários, Exª. Sras. D. Maria Clapp, D. Amélia Coutinho, D.
America Clapp, D. Evangelina Accioly, D. Luiza Regadas, D. Ludovina
Cunha, D. Honorina Ferreira, D. Luiza Malli, D. Maria Magdalena Vigier e
D. Eugenia Baldraco, e os Srs., Normando Borges de Faria, João Carlos,
João Duarte, João Rodrigues Cortez, Norberto de Carvalho, João Baptista
Martini, Dr. J. J. Pizarro, Alfredo Gitahy, Ernesto Nazareth, Arthur
Fluminense, Adão de Oliveira, Francisco de Carvalho, J. P. Normandia,
Henrique Canongia, Calixto Cruz José Cerqueira, F. A. Borges de Faria e J.
J. de Oliveira (Diário do Brazil, 27/9/1881, p.1). 4

Efetuou-se anteontem, no hotel do Globo, o banquete da


Confederação Abolicionista, a fim de solenizar o aniversário da proibição
do tráfico africano, no Brasil.
A fachada do edifício estava toda iluminada a gás, com a inscrição 7
de Novembro formada a copinhos de cores, e a sala do banquete ricamente
decorada com um estandarte de numerosas sociedades abolicionistas,
bandeiras e figuras alegóricas à lei da repressão do tráfico.
Durante o ato tocou a banda dos Meninos Desvalidos.
O banquete foi presidido pelo Sr. João Cispp, presidente da
Confederação, erguendo-se diversos brindes, em que oraram os Srs. Clapp,
José do Patrocínio, Julio de Lemos, Joaquim Serra, Drs. Paulo de Frontin,
José Agostinho, Campos da Paz, Julio Gêraud, capitão Rosa de Senna, Dr.
André Rebouças, Michele Napoli, Dr. Américo dos Santos, Candido
Pamplona, Silvestre de Lima, Duque Estrada, Drs. Agra, Antonio Gomes,
João Villanova e outros.
O serviço foi profuso e abundante.
Fizeram-se representar o Jornal do Commercio, Gazeta de Noticias,
Rio News, Méssager du Brésil, Gazeta da Tarde, Mequetrefe e a Folha Nova
(A Folha Nova, 9/11/1883, p. 2). 5

Clube dos libertos de Niterói


Foi uma festa imponente na sua singeleza, a abertura das aulas do
Clube dos Libertos de Niterói e a distribuição dos prêmios aos alunos que
mais se distinguiram durante o último ano letivo.
Viam-se ali reunidos representantes de todas as hierarquias sociais,
desde a primeira autoridade da província até o infeliz escravo. Aquela
multidão imensa que enchia o edifício do Clube, não era ali chamada
unicamente pelo espírito de curiosidade; um fim mais nobre a levava aquele
lugar: - manifestar a sua adesão a uma causa que hoje pode considerar-se
vencida, - a libertação dos escravos.
A sessão foi presidida pelo Sr. Dr. Godoy Vasconcellos, presidente da
província, notando-se entre as pessoas presentes o Sr. Dr. chefe de policia,
oficial de gabinete do presidente da província, major Sergio Ascoly, capitão
de fragata Guillobel e sua família, Drs. Daniel de Almeida, Aydano de
Almeida, Augusto Duque Estrada, Julio Calvet, Aquino Fonseca, Domingos
Maria Gonçalves, representantes da imprensa e comissões de sociedades
abolicionistas, literárias e beneficentes.

4
Grifos meus.
5
Grifos meus.

93
Aberta a sessão, o Sr. João Clapp, fundador do Clube e prestimoso
chefe do partido abolicionista, leu uma breve alocução, cabendo em seguida
a palavra ao Sr. Dr. Ennes de Souza, que em um notável discurso, tratou da
libertação do escravo. O orador, com grande elevação de ideias, encarou o
problema pelo lado do direito e pelo lado financeiro, mostrando que da sua
solução resultaria não a ruína do país, mas a sua prosperidade.
Ao terminar foi o ilustrado preletor saudado com uma prolongada
salva de palmas.
A tribuna foi depois ocupada por diversos oradores.
Terminou a solenidade com a distribuição dos prêmios aos seguintes
alunos: Domingos José da Silva Castro, A. Granado, Jorge A. de Azevedo
Fontoura, Guilherme Fontoura, Gentil Guinot, Adeodato Rosa, Henrique,
Felippe Dantas, João Joaquim Vieira, João Martins de Barros, Adolpho
Machado e Roque A. da Flor.
Durante a festa tocou a banda de música do asilo dos meninos
desvalidos.
Ao retirar-se, foi o Sr. Dr. Ennes de Souza alvo de uma esplendida
manifestação por parte dos alunos do clube (Gazeta de Noticias, 10/3/1884,
p.2). 6

Nas suas atividades cotidianas os asilados ―encontravam ordem e disciplina‖.


Isto é, desde o horário matinal até ao início da noite, do se banhar ao se recolher,
passando pelo horário da reza, tudo era regrado pelo toque dos badalos, eles tinham o
horário da ginástica, do trabalho, das refeições e do recreio. Tudo ordenado, disposto de
forma organizada. Mas às vezes ―saiam a tocar em festas públicas‖. Os asilados
segundo RUBENS:

Representavam ali França Júnior e mais comediógrafos do tempo. O


cenógrafo era um deles: Francisco Izidro Monteiro. Na falta de elemento
feminino, fácil se afigurava a Francisco Braga aparecer em travesti e fazer
sucesso. E as representações tinham a frequência do monarca democrata e de
elementos da sociedade carioca, que também iam assistir às missas que
Monsenhor Venerando da Graça celebrava na capela (RUBENS, 1961, p.
13).

É por demais ―ler resistência nessa figuração‖? Segundo Louro (2009, p.138)
―normas regulatórias têm um caráter performativo, quer dizer, sua citação e repetição
fazem acontecer, isso é, produzem aquilo que nomeiam‖ (LOURO, 2009, p.138). Onde
se encontra a figura feminina? Ela está presente nas fotos e nas pinturas. O regulamento
do Asilo de Meninos Desvalidos estabelecia como sendo uma instituição restrita ao
sexo masculino, mas a figura feminina se encontra neste espaço masculino através do
relatório do diretor do Asilo Jurandir Rufino, nas fotografias que Malta, assim como nas
peças de França Júnior e nas comédias ―do tempo‖, nas missas celebradas pelo
Monsenhor Venerando da Graça que eram assistidas pelo ―monarca democrata‖ e por

6
Grifos meus.

94
―elementos da sociedade carioca‖. No recorte anterior a representação do ―elemento
feminino‖ por Francisco Braga possibilita problematizar a questão de gênero e as artes,
como no teatro grego os papeis serem interpretados/representados exclusivamente por
homens.
No Império são traçadas metas para a formação da nacionalidade, calcadas em
padrões europeus, numa ordem científica. Corrigindo tudo aquilo ou todo aquele que
divergisse da ordem estabelecida e considerada condição sine qua non para o
desenvolvimento de uma nação moderna e civilizada.

Referências Bibliográficas

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RIZZINI, Irene (ORG.). Olhares sobre a Criança no Brasil – séc. XIX e XX. Rio de
Janeiro: Petrobrás-BR: Ministério da Cultura: USU Ed. Universitária: Amais, 1997, pp.
19-37.
A Folha Nova, Rio de Janeiro. 9/11/1883, p. 2.
A Reforma, Rio de Janeiro: Tipografia da Reforma, 17/12/1878, p.2.
ARRIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC,
1981.
BRAGA, Theodoro de Medeiros. Subsídios para a Memória Histórica do Instituto
Profissional João Alfredo: desde a sua fundação até o presente (1875—14 de Março de
1925). Rio de Janeiro: Estabelecimento Gráfico Santa Cruz, 1925.
CORREIA, Fernando da Silva. Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas;
Estudos sobre a História da Assistência. Lisboa: Henriques Torres – Editor, 1944.
COSTA, Antonio Corrêa de Sousa Costa. Qual a alimentação de que usa a classe
pobre do Rio de Janeiro e sua influencia sobre a mesma classe. Rio de Janeiro: 1865.
COUTINHO, Cândido Teixeira de Azevedo – Esboço de higiene dos colégios, tese á
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1857.
Diário do Brazil. Rio de Janeiro: Tipografia do Diario do Brazil, 27/9/1881, p.1.
Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 23/5/1881, p. 1.
GOMES, Antonio Francisco. Influência da educação física do homem. Rio de Janeiro:
Empresa Tipográfica Dois de Dezembro, 1852.

95
LOURO, Guacira Lopes. Foucault e os estudos queer In: Rago, Margareth; VEIGA
NETO, Alfredo (ORG.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009,
pp. 135-143.
MOACYR, Primitivo. A instrução e o Império (Subsídios para a História da Educação
no Brasil), São Paulo: Ed. Nacional, 1937.
RUBENS, Carlos. Vida e glória de Baptista da Costa. Rio de Janeiro: Tipografia
Mercantil, 1961.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira. Carceralização da Escravidão no Rio de Janeiro: A
Emergência de um problema. In: Maracanan/Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Programa de Pós-Graduação em História – n.4, 2007/2008, Rio de Janeiro:
UERJ, 1999, pp. 107-134.
VOGEL, Arno. Do Estado ao Estatuto. In A arte de governar crianças. Rio de Janeiro:
Editora Universitária Santa Úrsula, 1995.

96
SE CORRER O BICHO PEGA, SE FICAR O BICHO COME: HISTÓRIA E
TEATRO NO BRASIL DOS ANOS 1960

Gabriela de Araujo Oliveira 1

Resumo

Este trabalho tem como objetivo entender a importância histórica da peça teatral
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (1966) de Ferreira Gullar e a mesma
como fonte para o historiador. A peça foi escrita pós 1964, aborda questões políticas e
sociais que o Brasil estava vivenciando, como exemplo, a ditadura militar. A peça
teatral é uma resposta política à situação que o país vivia. A moral e os bons costumes
era algo que o governo militar buscava, ou seja, a ordem. A ordem social, portanto, está
intimamente imbrincada na peça. Dessa forma, a literatura popular se torna importante,
revelando importantes acontecimentos sobre o período, a partir do drama, da comédia,
relacionada a imaginação, consegue, enfim, causar encantamento ao público, como foi o
caso da peça. O que mais chama atenção na peça, é a transformação dos personagens
em face a sua realidade, além de uma contradição. Portanto, analisar a peça teatral e o
seu período, especialmente refletindo sobre que contexto e o porquê a obra foi escrita,
podendo fornecer informações de como a mesma foi recebida pela crítica.

Palavras-chave: Ferreira Gullar, Peça Teatral, Pós-1964.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come: história e teatro no


Brasil dos anos 1960

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come foi escrita por Oduvaldo Vianna
e Ferreira Gullar na década de 1960. Foi encenada pelo Grupo Opinião no Rio de
Janeiro e conquistou alguns prêmios. Escrita em literatura de cordel, narra a história de
um camponês, Roque, que possuía várias maneiras de sobrevivência contra os
poderosos, ou seja, a elite e os governantes. A política é um tema que está presente na

1
Graduanda em Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
Bolsista do CNPQ, com orientação da professora Drª Kátia Rodrigues Paranhos.

97
peça teatral, política esta da ditadura militar no Brasil. A peça teatral possui diversas
canções, e foi escrita em versos.

No primeiro ato, peça teatral inicia com um questionamento sobre o que é o


bicho, se é um homem ou vários homens. Na fala de Brás das Flores, quando ―briga‖
com a terra pelo pequeno algodão que produziu, ele cita o Nordeste, podendo ser assim,
o cenário e espaço da peça, além de ser em uma fazenda o primeiro cenário. Roque
chega a Brás das Flores para dizer que estava despedido, a mando do seu patrão, porque
Brás vendeu o algodão para ajudar nas dividas do barracão com outro, o Joca Ramiro,
só que este último não levou a culpa em nada porque foi ele quem denunciou para
escapar do que poderia acontecer.

Depois que Brás vai embora, fica Coronel e Roque. Em uma das partidas de
dama, o Coronel diz que encontrou Roque e o criou, ele prefere pessoas que sejam
submissas. Há também uma tristeza em relação ao sertão que é muito pobre em
recursos, como água, luz, chuva. Mocinha e Bizuza entram em cena, onde há um
comando do Coronel para a mulher buscar cigarro e licor, e a mesma vai sem dizer
nada, demonstrando assim, o patriarcalismo. Algumas compras chegaram na fazenda, e
o Coronel vai ver. Umas das coisas é uma escritura de 2 apartamentos que ele comprou
no Rio de Janeiro. Mocinha tinha um noivo, o Mendes Furtado que chegava da cidade,
filho de um Senador. Furtado chega com novidades, só que diz ao Coronel que eles
devem ir para a cidade, senão não ganham a eleição. Só que o Coronel diz que apoia a
eleição, mas não quer ir para a cidade porque se sente um lavrador. Furtado diz que seu
pai conseguiu o dinheiro para o açude da fazenda, só que o Governador não libera o
dinheiro. Em uma das conversas sobre a eleição, o Coronel e Furtado dizem que o
presidente ajuda todos os lados, que é imparcial, mesmo parecendo estar do lado deles.
Furtado pede para que o Coronel seja o aliado dos ricos, porque possui dinheiro e sabe
falar. Um outro personagem entra em cena, o Nei Requião que estará nas eleições, com
isso, o Coronel aceita ir para a cidade, principalmente para fazer o que Requião
prometeu e não cumpriu.

Em outra cena, Roque está esperando Mocinha perto no banheiro. Depois de


esperarem o Coronel dormir, Mocinha e Roque dormem juntos. Roque se ―arrepende‖,
mas acaba feliz. Roque queria ficar calado, mas precisava contar a alguém o acontecido.

98
Assim, contou ao burro Cirino. Só que o burro acaba contando ao outro burro. Joca
Ramiro vai conversar com o Coronel porque ouviu rumores de que Roque estava todo
feliz falando de Mocinha, onde contou ao Coronel que os dois se encontraram no
banheiro durante a noite. Roque havia fugido, e o Coronel pede para chamar um
Matador. Coronel se preocupa com o casamento da filha, e que também gostava de
Roque, mas que como mexeu com a filha, não podia deixar passar. Furtado acredita que
isso não passa de falatório, Coronel chama Mocinha e ela diz que é mentira. Para que os
rumores não aumentem, Furtado sugere que eles se mudem para a cidade, para parar
com o falatório, onde poderiam também cuidar da eleição.

Em outra cena, alguns personagens estão conversando sobre a seca que rola
sobre o Livramento, e que o Coronel é uma espécie de satanás, que não possui mais
plantação, apenas a terra. O Prefeito aparece em cena e vai até José Porfírio, que cuida
da propriedade de Nei Requião. Ele aparece como uma ajuda aos pobres, que dará
emprego na Usina. Na cidade, Roque e Brás acabam se encontrando, os dois fingiam
que eram cegos para poder roubar carteiras. A cidade percebe que os dois não são
cegos, e querem dar uma surra. Entra em cena o Matador. De início, o Matador defende
Roque por este estar apanhando. O Matador diz que está procurando Roque, Roque diz
que não conhece ninguém com esse nome. Só que Brás das Flores acaba dizendo que
ele é o Roque. O Matador então pede para se levantarem, porque não mata ninguém
deitado e começa a contar até 10. Nesse tempo, Brás foge, e Roque tenta persuadir o
Matador dizendo que não possui arma, assim, ele estaria sendo injusto. Em meio a
alguns tiros, Roque é acertado. O Padre entra em cena, e diz que era dia de Natal, que o
dia deveria ser respeitador e ninguém deveria morrer, já que tinha outros dias para isso.
Roque e o Matador param, e desejam feliz natal um ao outro. O sino tocou, e o dia de
natal acabou. Assim, o Matador diz que voltara a seu serviço, que as balas acabaram e
que matara Roque com faca. Roque diz que os dois viraram amigos, pela conversa que
tiveram e que o Matador deveria ter respeito. O Matador diz que precisa pegar o
dinheiro do serviço para comprar óculos. Roque diz que podem assaltar um armazém,
mas o Matador diz que nunca fez isso. O Matador erra o alvo, e ele cai, pedindo para
morrer logo, dizendo que se chama Quinca Bonfim, e que Roque deveria falar para todo
mundo que ele o tinha matado. Ao dizer o nome, Roque descobre que o Matador é seu
pai. Os dois se abraçam.

99
No Segundo ato, em uma conversa de Nei Requião, Desembargador e
Zulmirinha, onde estão viajando. Nei Requião diz que Zulmirinha é muito caridosa, e
este é seu problema, considerada um problema quando ajuda demais o povo. Outra
coisa que eles reclamam é que sua plantação não dá rendimentos, e o dinheiro que tem,
emprestam ao Coronel para entregar ao Senador, que é o candidato dele. Nei Requião
diz que elegeu o governador, onde tinham medo do sindicato, dos funcionários e dos
pobres. Nei Requião diz que o hotel de Vespertina está mal frequentado, e o Coronel
concorda dizendo que há ladrão de Estado. Chega Roque e Brás das Flores com
embrulhos da Zulmirinha, os mesmos tentam se esconder do Coronel que os vê. Os dois
fogem e o Coronel tenta ir atrás deles. Roque, posteriormente, quando está fora do
hotel, quer voltar e ver Mocinha, Brás das Flores o aconselha a não ir. Só que quando
Mocinha vai abrir a porta, Furtado aparece e Roque precisa se esconder e Mocinha fala
algumas palavras carinhosas pensando que era Roque. O Coronel aparece e Furtado
tenta disfarçar e diz que estava à procura do Coronel por causa de uma dor. Nesse meio
tempo, o Coronel se encontra com Roque como se nada tivesse acontecido, ajuda
Furtado, dizendo para ele ir ao banheiro. Roque consegue entrar no quarto de Mocinha,
onde Bizuza também está dormindo e fica com sua amada.

Em outra cena, quando estão na Usina, Roque descobre que o dono da usina
rouba Nei descaradamente. Em uma conversa entre Delatorzinho e José Porfirio, o
primeiro diz que chegou gente na Usina para trabalhar em troca de comida. De fora da
usina, os camponeses dizem que ninguém entra e ninguém sai, que ninguém vai roubar
o emprego deles, que é melhor irem para a cidade. Aparece Roque, os camponeses
querem bater nele. Só param porque Brás chega, e diz que ele é o famoso Roque que fez
Mocinha mulher e que matou Quinca Bonfim. Um dos motivos que bateram em Roque,
alegaram que as pessoas que ficam sem trabalho em outras regiões, vão para o Nordeste
trabalhar na cana para receber comida, tirando o emprego de quem já estava por lá. Em
uma cena eles furtam um barracão de comida, para se alimentarem, e fogem da polícia.
No meio da confusão, Roque é preso.

No terceiro, a cena inicial é na cadeia, onde Roque está preso. O Carcereiro usa
Marx para dizer que é um alienado da sociedade. Brás das Flores entra em cena e
conversa com Roque, disse que conseguiu mudar de vida na grande cidade, e que Roque
está conhecido por toda parte, e do lado de fora da cadeia, o povo grita por sua

100
liberdade, que segundo Bras da Flores se passa antes da Revolução, e que Requião irá
perder a eleição porque mandou prender Roque. Também diz que se algum candidato
for a favor de Roque, ganha fácil a eleição, pois o povo abalou sentimentalmente com a
história de Roque, como exemplo de candidato, Jesus Glicério. Furtado está em
primeiro lugar, depois vem Jesus Glicério e Requião. Brás das Flores explica que
ganhou dinheiro porque escreveu a história de Roque e acabou virando livro e vendeu
muito, em formato de cordel.

Brás das Flores explica que o Coronel e Requião estão pagando algumas coisas
para Roque. Só fizeram isso porque Jesus Glicério, que apoia a liberdade de Roque
estava subindo no ranque das eleições. Mocinha vai encontrar Roque e diz que se o
Senador ganhar as eleições, Roque poderá ser seu amante sem nenhum problema, e
Mocinha passa a noite com Roque no quarto. O Coronel chega no outro dia de manhã
para conversar com Roque todo carinhoso. Requião também aparece em cena todo
carinhoso com Roque. Nisso, Roque troca de quarto em quarto para conversar com os
dois, sem saber que ambos, Requião e o Coronel estavam próximos. Ambos falam sobre
a Revolução de 1930, Manifesto dos Mineiros. Ambos também chamam Roque para
participar da campanha e ele aceita sem dizer não para outro. Roque diz que em troca
quer um cargo no exército, além de alguns diplomas como o de médico. Na Assembleia
em que marcaram com Roque, Jesus Glicério chega com uma passeata, onde Roque se
encontrava no meio da multidão. Muda de cena, e Roque se encontra na cadeia
novamente. Pouco tempo depois Roque é solto novamente, e há uma conversa em que
devem colocar outra pessoa para chamar mais atenção que Roque, como o
Desembargador. Nei Requião que solta Roque e diz para ele ajudar Jesus Glicério, caso
não ocorra isso, e Roque fuja ele o buscara aonde quer que esteja.

Em uma conversa com Furtado, Coronel diz que não possui mais nenhum
dinheiro. Furtado termina o noivado com Mocinha por descobrir que a mesma dormiu
com Roque. Roque quer fugir com Mocinha e Brás das Flores, mas eles não querem ir
com Roque. Roque leva alguns tiros a queima roupa. Em outra cena, Coronel diz a
Bizuza que está morrendo, porque o Desembargador é pau mandado de Nei Requião, e
pergunta se Roque está morto. Roque aparece em cena, e ele diz que não morreu porque
é personagem principal. Coronel deixa as terras para Roque, e diz que não pode se casar

101
com Mocinha, pois ela pode ser sua irmã. Bizuza diz que Mocinha é filha do
Desembargador, e não do Coronel. Assim morre o Coronel.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come escrita em 1966 por Ferreira
Gullar e Oduvaldo Viana no Grupo Opinião, teve como direção de Gianni Rattoe foi
encenada pelo Grupo Opinião no Rio de Janeiro. Inicialmente foi escrita por Oduvaldo
Vianna e João das Neves, Ferreira Gullar só colocava o texto em versos. Em um
desentendimento, João das Neves deixa o texto, então Ferreira Gullar assume o papel de
escritor junto a Oduvaldo. A ideia da peça surge a partir do filme Tom Jones (1963), os
mesmos queriam escrever uma peça no mesmo molde do filme. No final, João das
Neves recusa a assinar a autoria junto aos outros dois. O texto foi escrito em formato de
literatura de cordel e narra a história de um camponês bastante esperto, que com
estratégias de sobrevivência vence algumas dificuldades,

―mostrando que a engenhosidade popular é capaz de resistir aos


golpes dos poderosos. Ou seja, fazendo da política regional um
emblema dos impasses políticos da ditadura, os autores propõem ―um
voto de confiança no discernimento político do povo‖, como dizem no
prefácio da peça[...]‖2

A peça é recebida positivamente pela crítica, recebendo o Prêmio Moliére de


Autor no Rio Janeiro e o Prêmio APCA em São Paulo, sendo também grande sucesso
em público. Contudo, a crítica criticou a peça porque utilizavam como tema a
malandragem. Bissett analisa em seu texto, que o Grupo Opinião rompe a partir dessa
peça a tradição de textos nacionais. Para ela, a peça é uma reação contra a burguesia que
comandava o país naquele período, além de mostrar a falência do mundo rural
nordestino.

Dias Gomes diz que o título do livro nasce a partir do nordeste do país,
tornando-se lema para todo o país, principalmente para os mais pobres que ficam cada
dia mais pobres, e os ricos que ficam mais ricos, e o governo não sabe coordenar esse
problema. Os dois autores segundo Dias Gomes, utilizam do teatro popular, que parte
de uma crítica ao momento político do período, alcançando o social do país. Uma das
características segundo Dias Gomes, é que o Grupo Opinião diz que a peça mostra a

2
KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Opinião: para ter opinião. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Prefeitura, 2001, p.94.

102
realidade do país que não é divulgado para fora, ou seja, é uma aparência falsa. Assim
como Bissett, o Grupo Opinião utiliza Brecht.

O livro utilizado faz parte da Coleção Teatro Hoje: Séries de autores nacionais
da editora Civilização Brasileira, sendo este o volume 1. A editora justifica que o
volume 1 desta coleção ser esta peça não é por acaso, ela possui algumas características
que orientam a coleção. O que os interessa é o teatro brasileiro, porque a maioria das
peças que serão colocadas nessa coleção possuem uma causa. Eles acreditam que estão
dando voz aos autores e diretores por reviverem uma revolução que se iniciou na década
de 1950, onde o alternativo colocava na balança o autêntico. O público também é um
ponto fundamental destacado, onde este deve participar desse movimento. Contudo,
como é um período de censura, os artistas em geral estão sendo barrados para apresentar
e fazer o que querem. Como a peça remota a década de 1950, a nota diz que só pode
surgir dentro da realidade brasileira, que somente a análise crítica dessa realidade
poderá realmente fundar a dramaturgia brasileira autêntica.

A peça foi escrita sob pressões políticas. O Bicho é uma ―resposta‖ à situação
brasileira do período. O governo atual utiliza a política de casta, o que significa que
algumas pessoas ou classes da sociedade/país podem governar e outras não, ou seja, elas
tem o direito de governar. Segundo essa nota, o povo não é capaz de julgamentos
políticos imediatos, somente julgamentos políticos-morais, onde a eleição pelo voto é
quantitativo e não qualitativo. O bicho assim, nasce para ser contrário a isso, onde a
população possui o mesmo nível e são iguais do ponto de vista moral. O moral só será
conquistado quando os seus direitos e princípios políticos forem conquistados. A
população nesse momento não possui meios para impor a sua política, assim, a moral é
transigente na política.

O governo confunde ordem social com quietismo social, onde ordem social vai
além, há ações sociais por meio dela que acarretará a um desenvolvimento social. Sua
justeza só se concretiza quando há liberdade de manifestação e organização. O Bicho
assim, é contra o quietismo social. Os personagens são fundamentais para mostrar a
existência, ou seja, manifestar. As ―muvucas‖ não são o ponto forte para configurar a

103
ordem social, é a ordem social que controla a existência da ―muvuca‖. O Bicho assim,
―[...]pretende fixar uma realidade que é, ela mesma, subvertida‖ 3.

Segundo Dias Gomes, o voto do governo se baseia na desconfiança do povo


brasileiro. Assim, o Bicho, é o voto de confiança do povo. O discernimento entra nessa
questão quando Roque conquista o que deseja e acaba tendo um final feliz.

―O BICHO é também um voto de confiança no povo


brasileiro porque procura suas forças nas nossas tradições,
porque utiliza os versos, as imagens, o sarcasmo, a desilusão,
a ingenuidade e a feroz vitalidade que a literatura popular,
durante dezenas de anos vem criando‖4.

A fonte assim é a literatura popular, há os acontecimentos e sua análise. O modelo é


o filme Tom Jones. Esse tipo de literatura popular, segundo a nota, possui
características da arte dramática que desperta encanto. É nesse contexto que entra
Brecht, com o encantamento da literatura dramática, onde mostra um homem cheio de
invenções. Encantamento esse com a realidade do espectador que é igual. O Grupo
Opinião diz que suas obras estão sendo feitas a partir de documentos, sendo elas
realistas.

Além do político, o Bichopoder ser uma tentativa de organizar o real com a


realidade brasileira, onde transformação na consciência e transformações institucionais
lentas são características disso. O econômico também é fundamental. Um exemplo: as
pessoas são coisas, e como coisas estão enquadradas em algo e dificilmente irão sair e
ficar, assim, segundo esta nota, se tentarem sair o bicho pega, e se tentarem ficar, o
bicho come. Se todos puderem agir igualmente, estes serão livres, e essa questão todos
sabem que é difícil de acontecer. É nesse sentido que a peça está escrita em comédia,
pois só assim se consegue diferenciar os personagens e eles mesmos serem diferentes.
Assim, o bicho é o impasse.

Segundo Bissett, o Grupo Opinião tentou adaptar à realidade brasileira a Brecht.


Segundo ela, ―Em Bicho encontramos os elementos da literatura de cordel utilizados

3
GULLAR, Ferreira (1966). Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (em parceria com Oduvaldo
Vianna Filho). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.11
4
Op. Cit. p.11

104
juntamente com outras técnicas inspiradas pela teoria teatral de Brecht e que têm como
propósito conseguir o distanciamento do público‖5. Os três finais da peça são
importantes, pois todos possuem um caráter crítico. Final 1: Roque e Mocinha estão
juntos com 13 filhos cuidando da terra, com Brás das Flores como Capanga. Final 2:
Roque divide as terras com lavradores, e Brás das Flores diz que não vai fazer o que
quer, e que reabrirão o processo. Final 3: ele diz que esse final é bem brasileiro. Jesus
Glicério é o novo governador, Roque será chamado para ajudar na Reforma Agrária.
Brás das Flores entra em cena e diz que Dom Requião, restaura a monarquia no país.
Em relação aos atores da peça, Bissett diz que todos configuram uma imagem de
poeta popular (as vezes param e conversam com o público), em que as vezes conta a sua
própria história, canta e fala ao mesmo tempo,

―Em geral, em Bicho, quando o coro ou os personagens cantam,


desempenham a mesma função do poeta no momento em que deixa de
cantar para comentar os acontecimentos. A música também quebra a
ação da peça, enquadrando-se dentro da teoria de Brecht, destruindo
qualquer ilusão e fazendo uma pausa para que o público possa
refletir.6

Ao analisar a peça, Fernando Marques 7 diz que em 1966 Oduvaldo Vianna e


Ferreira Gullar condenaram a ―concepção moralista da política‖, ou seja, quem
comandava o país naquele momento, criticando esperançosamente que a ditadura civil
militar duraria por pouco tempo, segundo a nota do grupo. Contudo, para Marques, essa
visão dos autores estava errada, pois a ditadura civil militar durou por muito tempo,
tirando o direito de voto da população brasileira.

Para Marques, uma das coisas importantes na peça é o conceito de encantamento


que a mesma transmite,

―Os autores cumprem o que prometem: a ação comicamente


vertiginosa do Bicho imita e faz a sátira da volubilidade com que se
muda de partido, a sátira do comportamento interesseiro e da

5
ISHMAEL-BISSETT, Judith. Brecht e cordel: distanciamento e protesto em ―Se correr o bicho pega.‖
Latin American Theatre Review, Kansas, v. 11, n. 1, 1977. p. 61.
6
Op. Cit. P.62.
7
MARQUES, Fernando. Por um teatro político e popular: manifestos do musical brasileiro – 1966-1983.
2005. p.15.

105
facilidade com que se cometem crimes durante uma eleição no Brasil.
A música deve mimetizar e apresentar, no plano puramente sensorial,
o esquema relativo a esse caos que, por paradoxo, constitui a ordem –
a ordem vigente‖8

A peça teatral possui canções por todo texto. Como escrita em 7 sílabas, tendo
como eixo norteador a literatura de cordel. Dessa forma, há um jogo entre as músicas e
as conversas pelo corpo da peça. Segundo Bôas9, a peça possui uma característica
heroica interpretada por Roque, ―[...]pela cumplicidade entre atores e espectadores
calcada na imagem do artista que ousa, na medida em que apresentar uma peça contra o
arbítrio, assim como assisti-la, constituí-se, para eles, num ato de contravenção à ordem
estabelecida‖10. Para ele, Roque, o personagem principal seria um anti-herói, pois ao
mesmo tempo que causa ordem, causa a desordem. Ao fazer a leitura de Maria Silvia
Betti, Bôas diz que a peça pega como tema as negociações e a corrupção do Parlamento,
pois a democracia não existia ali por causa da ditadura civil militar. Betti assim analisa
que a classe mais pobre é a principal arma para derrubar o governo vigente e
transformar o país. Assim, Roque ganhando no final um caráter de herói popular, ajuda
nas eleições para um candidato populista que seria Glicério. Segundo Bôas,

―enquanto a peça nos permite assistir de camarote às tramas dos


poderosos, não vemos contraponto da parte dos explorados. Os
procedimentos épicos são aplicados aos exploradores, e na contraparte
temos um personagem popular, construído com procedimentos da
drama realista e da farsa, que lentamente toma consciência individual
da exploração, mas que pelos próprios limites estéticos que lhe dão
sustentação, não avança para uma compreensão e tomada de
11
providência coletiva.‖

Podemos concluir que Betti analisa que a peça somente se efetiva quando se
encontra com público que vivencia a ditadura civil militar, contudo, a classe baixa está
bastante distante na peça, o que mais está em foco é a classe média.

8
Op. Cit. p.16.
9
BÔAS, Rafael Litvin Villas. Teatro Político e questão agrária, 1955-1965: contradições, avanços e
impasses de um momento decisivo, UnB, Brasília, 2009, disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4435/1/2009_RafaelLitvinVillasBoas.pdf
10
Op. Cit. p.192.
11
Op. Cit. p. 210.

106
Vale ressaltar, que a peça, com cunho político propõe mudanças, e uma delas é
incluir e mostrar o lado mais pobre da população brasileira, onde o sentimento de
transformação política está de início ao fim da peça, mostrando através do personagem
Roque as maneiras de escapar do poder dos ―poderosos‖.

Bibliografia

BENTLEY, Eric (1969). O teatro engajado. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.


BETTI, Maria Silvia. Vianinha. São Paulo: Edusp, 1997.
BÔAS, Rafael Litvin Villas. Teatro Político e questão agrária, 1955-1965:
contradições, avanços e impasses de um momento decisivo, UnB, Brasília, 2009,
disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4435/1/2009_RafaelLitvinVillasBoas.pdf

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KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Opinião: para ter opinião. Rio de Janeiro:
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Paulo: ANPUH-SP/Internet: 2014. Disponível em
<http://www.encontro2014.sp.anpuh.org/site/anaiscomplementares#K>.

107
A ESTÉTICA VISUAL DO CABELO AFRO FEMININO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA

Genercy Maria da Costa Moraes1 - gcostamoraes@gmail.com


Fabiana Jordão2 (Orientadora) - fabiana_jordao@yahoo.com.br
Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola – GDE
Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão – Polo São Simão

Resumo:
O referido artigo parte da intenção de refletir sobre a importância da estética visual do cabelo da
mulher negra na sociedade contemporânea influenciada pelo discurso hegemônico da supremacia
branca. Ativistas do feminismo negro apontam a necessidade de ―enegrecer‖ o feminismo a partir
de condutas antirraciais através das políticas públicas e apropriações dos direitos de visibilidade. O
conceito de interseccionalidade explicita que ações e políticas específicas constituem desigualdade
que geram opressões estigmatizantes. A mulher negra utiliza-se do visual do cabelo como afirmação
identitária e militância política para a conquista de empoderamento no enfrentamento do
preconceito e discriminação. A prática de alisamento do cabelo crespo define a luta das mulheres
negras submetidas ao padrão de beleza estabelecido pelo cabelo liso. Outrossim, na
contemporaneidade, o cabelo afro natural é símbolo de ato político, liberdade e autoestima. A
fundamentação trouxe as teóricas feministas: (SPIVAK, 2010); (CARNEIRO, 2003; 2011);
(HOOKS, 2005); (HARAWAY, 2004); (CRENSHAW, 2002); (GOMES, 2003; 2010) e outros
autores que subsidiaram a pesquisa. E, também, uma conceituação sucinta de imagem e significados
e, uma reflexão sobre estética entre o belo e o feio. As imagens apresentam a transitoriedade dos
diferentes estilos adotados para os cabelos e, todas retratam a beleza negra na sociedade
contemporânea.

Palavras-chave: Cabelo Afro. Estética Visual. Feminismo Negro.

Introdução

É inegável a luta pela hegemonia entre as diversas classes sociais, numa


determinada sociedade. Essa luta, entre outros atributos, tem a imagem que cada indivíduo
reflete de si mesmo e, de certa forma, implica na imagem adversária. Pressupõe-se que as

1
Pós-graduada em Gênero e Diversidade na Escola – GDE - Catalão/UFG (2014/2015); Licenciada em Artes
Visuais (FAV/UFG, 2011); Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas (IdA/UnB, 2012).
gcostamoraes@gmail.com
2
Doutora em Ciências Sociais (Unicamp, 2009); mestra em Antropologia Social (Unicamp, 2003) e bacharel
em Ciências Sociais (Unicamp, 1999). Professora efetiva da Universidade Federal de Goiás, campus de
Catalão. Orientadora do TCC – Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola.
fabiana_jordao@yahoo.com.br

108
imagens hegemônicas de beleza em nossa sociedade se referem a brancos, para os negros, o
cabelo crespo é um dos elementos mais visíveis sendo usado como uma estratégia que retira
o negro do lugar da beleza.
É indiscutível que em pleno século XXI, o cabelo crespo ainda seja motivo de
estudos e curiosidades, visto que é um dos referenciais da origem africana e, portanto,
decisivo no reconhecimento da identidade negra. Em razão dessa afirmativa, o presente
trabalho busca compreender a influência das imagens hegemônicas sobre o visual do
cabelo, que interferem na aparência da mulher em nossa sociedade e suas implicações nas
relações de poder marcadas pela diferença. Nessa perspectiva, aponta a necessidade de
esclarecer as seguintes questões:
Que tipo de influência as imagens hegemônicas de beleza exercem sobre mulheres
negras, mais especificamente, sobre a questão do cabelo?
As imagens de beleza dirigidas às mulheres negras tangem à questão do cabelo
como símbolo de afirmação identitária e valorização da autoestima no enfrentamento à
estigmatização?
Acredita-se que o acesso ao conhecimento sobre os valores étnico-raciais da
cultura negra possa explicitar as consequências que causam transtornos e interferem na
condição social da mulher no que se refere à estética do cabelo. Acredita-se também que os
fatores que justificam a descriminação e o preconceito em relação à estética do cabelo afro
permitem elucidar questões de como a opressão em face à estética branca hegemônica e,
mais contemporaneamente, sua apropriação como símbolo de luta política e de resistência.
O processo de valorização da estética da mulher negra tem contribuído para enfrentamento
dos padrões hegemônicos europeus, visando dissipar as concepções esterotipadas
construídas ao longo do tempo.
O texto coloca em pauta as vozes de ativistas do feminismo negro – No tópico -
Enegrecendo o feminismo e interseccionalidade: vozes de mulheres negras procurou-se
desenvolver a importância de ―enegrecer‖ o feminismo, uma vez que, para a mulher negra
prevalecia o silêncio e a invisibilidade, enquanto, o preponderante se refere ao discurso
feminista da supremacia branca por questões histórico-culturais e político-ideológico. A
pauta da interseccionalidade conduz o entendimento sobre o entrelaçamento entre

109
desigualdades múltiplas nas distintas categorias sociais a despeito de gênero, raça, etnia e
classe. As quais geram opressões, no caso da mulher negra constituem-se em
desempoderamento.
O assunto do tópico - O cabelo da mulher negra e transitoriedade estética –
traz uma reflexão sobre a estética do cabelo afro feminino de acordo com as modificações e
suas interferências na sociedade. Ressalta a importância dada ao visual do cabelo como ato
político e resistência, afirmação identitária, aceitação e autoestima. Aborda a
transitoriedade do crespo submetido ao alisamento e o retorno às origens adotando o visual
natural. O tópico – Feminismo Negro e o cabelo afro – conduz à uma reflexão dos pontos
comuns nas falas das ativistas negras sobre os aspectos discorridos que ressalta a
importância da pesquisa através dos discursos intelectuais. As falas complementam o
discurso hegemônico do feminismo e sua influência na tendência atual para os cabelos
afros femininos.
Em – Imagens – Configurações visuais e estéticas do cabelo afro – o texto
aborda conceitos de imagem e estética e suas influências de acordo com as visualidades e
temporalidades. Apresenta imagens fotográficas de distintas configurações visuais e
estéticas do cabelo afro. Enfim - Considerações finais – traz uma sucinta reflexão sobre a
produção do trabalho e a trajetória da pesquisa.

Enegrecendo o feminismo e interseccionalidade: vozes de mulheres negras

Compreende-se por manifestações que defendem o feminismo, todo discurso


intelectual, filosófico e político que objetiva acabar com as diferenças entre gêneros. As
diferenças culturais existem em qualquer grupo social a partir das características étnicas e,
essencialmente as de gênero. A questão étnica é um dos aspectos imbricados também na
questão de gênero, os quais são preponderantes para definir as diferenças, sendo estas
produtos histórico-culturais e político-ideológico.
No período pós-guerra que as teorias feministas pronunciaram sobre gênero e sua
relação sexo-gênero como forma de opressão das mulheres, e por uma questão cultural
afirma a existência dessa opressão relacionada ao meio social em que vive. Em seus
estudos, Haraway (2004) apresenta vários conceitos constituídos sobre gênero, mas o

110
discurso da diferença entre sexo e gênero inicia-se nos anos de 1950 e 1960, porém, é no
final dos anos de 1970 que distintos discursos são criados com intuito de um debate político
e científico e à ―crítica ao ―determinismo biológico‖ e a ciência sexista, especificamente, a
biologia e a medicina.‖ (HARAWAY, 2004. p. 22).
Os movimentos feministas desde o início de suas manifestações intensificaram-se
pela ampliação e reconhecimento dos direitos das mulheres, porém, as mulheres negras, por
diversas circunstâncias não se incluíam na pauta política dos espaços conquistados,
reivindicados e liderados pelas mulheres brancas de tal modo que a mulher negra tinha sua
identidade anulada na sociedade.
Na sociedade brasileira, os movimentos de referência eram apenas do feminismo
europeu e visionavam a categoria mulher como homogênea e universal. Contudo, segundo
(CRENSHAW, 2002, p. 184), ―nenhuma sociedade pode, verdadeiramente, reivindicar-se
como homogênea.‖ É perceptível que os preconceitos estigmatizantes sempre foram
arraigados em uma sociedade desigual, a exemplo da brasileira. ―Assim, nenhuma
sociedade é imune ao racismo ou a intolerâncias correlatas; consequentemente, o
imperativo de considerar a interação do racismo ou de outras intolerâncias com o sexismo
continua sendo válido (Idem).‖
Kimberlé Crenshaw é uma das pioneiras do feminismo negro e preconizou a
metáfora da interseccionalidade:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma com
ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW,
2002, p. 177).

É portanto, nas concepções do feminismo negro que se tem formulado o conceito


de interseccionalidade, a teoria desenvolvida fala como os diferentes tipos de discriminação
se interagem. Mais do que uma metáfora de intersecção, a autora faz uma analogia entre os
vários eixos de poder, tais como, raça, etnia, gênero e classe, os quais constituem e se
encontram estruturados nos terrenos sociais, econômicos e políticos.

111
Historicamente, no Brasil foram construídas as relações de dominação de brancos
sobre negros, assim como a recorrência da prática social do racismo. O movimento negro se
apropria do conceito de hegemonia branca para expor as relações vigentes de dominação e
imprimir suas vozes na imprensa escrita e de cunho acadêmico. Objetivando se apropriar
dessas vozes cabe apontar Sueli Carneiro como uma das ativistas mais importantes do
movimento negro brasileiro, com inúmeros artigos publicados. Em seu artigo, intitulado
―Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de uma
perspectiva de gênero‖ (2011), ela reflete sobre a militância da mulher negra, que se difere
da mulher branca:
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente,
demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão
racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na
caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do
conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência
sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; [...] instituir
a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a ―boa
aparência‖, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres
brancas e negras (CARNEIRO, 2011).

Todavia, ―enegrecer‖ trata-se de um movimento feminista como um todo na


proposta de Sueli Carneiro fazendo-se necessário para que as mulheres sejam representadas
e ouvidas, não apenas na luta por igualdade, respeito e dignidade, mas, colocar em pauta a
discussão da população afrodescendente e, sobretudo, da mulher negra. Por questões
culturais, as mulheres negras pereceram no silenciamento de suas próprias vozes submissas
ao patriarcalismo e exclusas nos espaços públicos, por não lhes serem condicionadas as
oportunidades de atuação, já que estes eram um privilégio apenas da classe masculina. É
perceptível a necessidade de ―enegrecer‖ o feminismo viabilizando uma perspectiva negra
que emerge da condição específica de ser mulher.
Se por um lado, por questões socioculturais, a mulher é subordinada à dominação
masculina, apenas por ser mulher, por outro, aquela que conduz o referente negro na pele é
inferiorizada e discriminada. Se avançar mais nas categorias, a mulher negra de classe
social baixa expõe-se a todas as formas de exclusão e opressão por ser considerada negra e
subalterna. Na definição de Spivak (2010), o sujeito subalterno é aquele pertencente ―às
camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos

112
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros
plenos no estrato social dominante‖ (SPIVAK, 2010, p. 13/14).
Os espaços de falas desenvolvidos pelo trabalho das intelectuais do feminismo
negro propiciam mudanças que permitem a conscientização e o respeito das origens
afrodescendentes e, possibilita a resistência política mediante aos discursos hegemônicos. A
sociedade que solidifica as relações étnico-raciais através do conceito de cidadania e da
educação escolar propõe combater a desigualdade estabelecida pelas hierarquias sociais.
Isso viabiliza também a luta feminista a partir de uma posição crítica e contrária às práticas
baseadas nas hegemonias racistas, classistas e sexistas.

O cabelo da mulher negra e transitoriedade estética

Eminentemente o Brasil é um país formado por uma população miscigenada que


carrega uma herança com a indicação de uma estética branca hegemônica como ideal de
beleza que sempre se fez presente nos cuidados com a imagem percebida pelas
características naturais dos brancos, e dentre elas está o cabelo. Pressupõe-se que
socialmente o padrão aceitável e valorizado é a imagem do cabelo liso e, nesse sentido, as
mulheres negras na sua maioria preocupam-se com os padrões estéticos estabelecidos e
adotam a técnica do alisamento do cabelo, de modo a parecer menos crespo para fugir das
opressões de uma sociedade segregacionista. Hooks (2005) enfatiza a importância que era
dada aos rituais de alisamento e a luta das mulheres negras para se tornarem supostamente
mais atrativas através do cabelo liso. Assim subscreve:

Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado


racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa
obsessão pelo cabelo. Mesmo sabendo que as mulheres negras com cabelo liso
eram percebidas como mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo e/ou
encaracolado, isso não era abertamente relacionado com a ideia de que as
mulheres brancas eram um grupo feminino mais atrativo ou de que seu cabelo
liso estabelecia um padrão de beleza que as mulheres negras estavam lutando
para colocar em prática (HOOKS, 2005, p. 2).

Na sociedade brasileira, o tipo de segregação racial é velado tendo como referente


determinadas características físicas e, um dos elementos é a estética dos cabelos. De acordo

113
com as leituras no site Blogueiras Negras3, a estética dos cabelos afrodescendentes é
submetida a modificações desde o período escravocrata da história do Brasil. Em
consequência do trabalho escravo exercido, o cabelo era mantido curto, pois os negros não
tinham tempo para se arrumar e, portanto, a estética do cabelo crespo era a marca da
diferenciação social e educacional. No começo do século XX se popularizou o ferro ou
chapinha, uma espécie de pente ou chapa feito de ferro esquentado a fogo. Trata-se de um
utensílio precursor das chapinhas e pranchas modernas que alisam os fios de cabelo
temporariamente. Depois, passaram a utilizar-se da química, porém, na atualidade aponta
para a expressão de um amadurecimento político, o Movimento Natural em que as
mulheres negras optam pela estética do cabelo crespo natural em que se valoriza o cabelo
como identidade, aceitação e autoestima.
Embora cresça entre as mulheres negras a adoção pelo cabelo crespo natural como
símbolo de luta política e resistência de um sistema racista e sexista, ainda prevalece a ideia
do alisamento dos cabelos. Hooks (2005) afirma que apesar das diversas mudanças na
política racial, às mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o
alisamento ainda é considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da insegurança
que as mulheres negras sentem com respeito a seu valor na sociedade de supremacia
branca:
O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam
mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade
de ter a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo,
está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco (HOOKS, 2005, p.
04).

Na contemporaneidade, devido ao mundo globalizado e o acesso fácil às


ferramentas tecnológicas, tem se ampliado, consideravelmente, a discussão nos espaços de
fala através das redes sociais e, é muito comum encontrar coletivos e grupos de mulheres
que trabalham em prol do empoderamento da mulher negra colocando a estética como fator
de militância política. Os veículos de interatividade on-line são ambientes em que cada vez
mais a discussão sobre as demandas específicas da população negra e feminina têm se

3
Blogueiras Negras - E viva o (tardio) Movimento Natural! Por Mabia Barros - mai 14, 2013. Blogueiras
Negras é uma comunidade de mulheres comprometidas com as questões afins à negritude e ao feminismo
interseccional. http://blogueirasnegras.org/2013/05/14/movimento-natural-cabelo-crespo/> Acesso em:
04/05/2015.

114
proliferado através de sites, blogs, YouTubes e outros canais de informação que oferecem
produções as quais contribuem para novas representações da mulher negra que se ocupam
do papel de falantes de si próprias, de suas questões e desejos, sendo o cabelo crespo a
ferramenta que contribui para essa visibilidade.
Dessa forma, as ações mobilizadas nas redes sociais caminham na contramão da
invisibilidade das mulheres negras, estas, celebram a conquista de uma comunicação
alternativa e democrática em que desenvolvem discussões e contribuem coletivamente com
a troca de experiências (re) conceituando valores e significados. A exemplo disso, destaca-
se a comunidade - No e Low Poo Iniciantes4 - formada por mulheres que interagem e se
apropriam de informações de produtos farmacológicos e naturais para os cuidados com a
saúde dos cabelos, não apenas os crespos, mas todos os tipos de cabelos, inclusive lisos e
ondulados com a utilização da técnica do No/Low Poo5.
Para as crespas, romper com o reinado da chapinha no processo de transição que
libera o cabelo das químicas e do alisamento, associa-se, não apenas com um ato político de
visibilidade, mas com a libertação e o empoderamento através do pressuposto Movimento
Natural. Trata-se de um recente movimento que propõe reafirmação identitária e aceitação
social, mas, sobretudo, liberdade e autoestima.

Feminismo Negro e o cabelo afro

A pesquisa apresenta a herança cultural e histórica como fatores das origens e da


dimensão política estabelecidas nas relações sociais que marcam a diferença e geram
desigualdade. No âmbito dessa questão encontra-se a mulher submetida às opressões étnico-
raciais, de gênero e de classe social. Os discursos das intelectuais feministas através da
produção de conhecimento possuem pontos convergentes no sentido de debater sobre a
condição mulher e, sobretudo, a negra. Sob a perspectiva da interseccionalidade, autora

4
No e Low Poo Iniciantes – Comunidade do Facebook. A referência não teve o propósito de um recorte para
o texto, apenas uma exemplificação. NO/LOW POO - Iniciantes:
https://www.facebook.com/groups/noelowpooiniciantes/
5
O No/Low Poo - são técnicas para cabelos cacheados, crespos, mas também servem para qualquer tipo de
cabelo especialmente seco ou frágil e couros cabeludos sensíveis a tensoativos agressivos. No Poo = No = não
- Poo = shampoo * No Poo = Sem Shampoo; Low Poo = Pouco Shampoo.

115
Kimberlé Crenshaw (2002) atenta para a dupla forma de opressão exposta à mulher negra
pelo binarismo de gênero e raça.
A pesquisadora Sueli Carneiro (2011) revela a insuficiência teórica e prática para
integrar as diferentes expressões do feminismo construídos em sociedades e plurais e, sob a
perspectiva da pluralidade coloca que o feminismo brasileiro não contemplou as mulheres
negras e alerta para a necessidade de ―enegrecer‖ o feminismo.
Jarid Arraes6, ativista contemporânea, afirma que há uma cisão, um tanto difícil
das mulheres negras com o movimento feminista hegemônico, visto pelas disparidades
entre mulheres brancas e negras. Diz não há porque manter uma falsa impressão de
homogeneização e, sim, a necessidade de reconhecer e respeitar as diferenças das mulheres
que fazem a luta feminista. Inclusive, contra o racismo, a valorização do cabelo crespo.
As ativistas negras foram as que deram maior importância à estética visual do
cabelo utilizando-o como símbolo de luta e militância política. Antes havia uma
preocupação em alisar os cabelos crespos para serem aceitas na sociedade pelo medo
enraizado nos sentimentos de baixa auto-estima. Hooks (2005, p. 05) afirma que o
alisamento é reflexo da opressão racial e que ―dói perceber a relação entre a opressão
racista e os argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não
somos belos ou aceitáveis como somos‖.
Nas pesquisas em redes sociais nota-se que houve uma recente mudança que afasta
a ideia de alisamento do cabelo priorizando à estética do natural. A observação na página
do Facebook No/Low Poo Iniciantes, percebe-se que as mulheres se interagem com as dicas
para se libertarem das químicas, a partir do processo de transição para deixar os cabelos
naturais e saudáveis, a preferência são os cacheados.
Entretanto, Jarid Arraes traz como verdade que a liberação racial contemplada em
nossa sociedade não passa de uma cortina de fumaça para disfarçar o racismo impregnado.
São poucas as pessoas que aceitam os crespos e são poucos os tipos de cachos que são
elogiados. Admite celebrar os cabelos cacheados, mas não deixar que as diversas texturas
dos fios negros sejam invisibilizadas e, literalmente, podadas por conceitos racistas de
beleza.

6
Jarid Arraes, ativista contemporânea autora de Feminismo Negro: minorias dentro da minoria. 2014. <
http://jaridarraes.com/tag/jarid-arraes-feminismo-negro/ > Acesso em 16/05/2015.

116
Imagens – Configurações visuais e estéticas do cabelo afro

Segundo Joly (2010), o termo imagem (imago) vem do latim e designa máscara
mortuária. Pode significar ainda, representações mentais; mensagem visual composta de
diversos tipos de signos e ferramenta de expressão e de comunicação. Referente à imagem
e ao psiquismo, a autora relaciona o conceito de imagem a relações individuais com o
próprio corpo, à capacidade associativa e analítica por via da criação e contextualização em
espaços surreais, tais como o universo onírico ou nossas impressões frente a diversos
estímulos. As imagens gravadas/registradas se assemelham ao que representam, no caso da
imagem/foto considera-se perfeitamente semelhantes e confiáveis por partirem da própria
coisa, o modelo retratado.
Noronha (2008) em estética visual apresenta conceitos, entre eles, o belo e o feio.
São as diferenças nos contextos de tempo e espaço das variadas culturas e etnias existentes
que se possa definir o que é belo e o que é feio. Dentre as conceituações que se possa ter
encontra-se o conceito do belo funcional, ―o belo tem uma finalidade (pedagógica, moral,
política, religiosa, ideológica). Fixam suas normas e medidas através dos critérios que
dependem de suas finalidades‖ (NORONHA, 2008, p. 24).
A imagem fotográfica como elemento representativo de beleza inclui-se no
contexto do belo funcional. A apresentação do cabelo crespo modificado ou não, veiculadas
pelas imagens, estabelece compreensão ―através das sensações e da produção do sentido, do
sensível e do inteligível‖ (Idem). Para Noronha (2008, p. 19), ―no conflito entre o Belo e o
Feio subjaz um conflito entre modos de pensar, sentir, valorar e compreender a vida.‖
As imagens fotográficas estão dispostas em: figura 01 optou-se por um recorte da
Revista Fórum Semanal via web da matéria – Cabelos crespos como ferramenta política 7 –
A figura 02 fez um recorte no portal - GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra8 – retrata o
―antes‖ e o ―depois‖ do processo de transição dos cabelos alisados ao retorno do crespo
natural. As figuras 03 e 04 publicadas na página do Facebook - No/Low Poo Iniciantes –

7
Revista Fórum Semanal – Cabelos crespos como ferramenta política.
<http://revistaforum.com.br/digital/166/cabelos-crespos-sao-ferramenta-politica/> Acesso em: 17/05/2015.
8
GELEDÉS < http://www.geledes.org.br/transicao-do-alisamento-para-o-cabelo-natural-pode-ser-feita-sem
traumas6/#axzz3aRErbH5D > Acesso em 17/05/2015.

117
são fotografias artísticas de Maria Cláudia Reis – PROJETO RAÍZES 9 - que retratam o
empoderamento das crespas.

Figura 01 Figura 02

Figura 03 Figura 04

Descrição das figuras:


Figura 01 - Karen Porfiro, Miss Minas Gerais 2014, é a candidata a Miss Brasil mais celebrada pelos
movimentos de mulheres negras este ano. Isso acontece porque a representante de Minas Gerais possui o
cabelo crespo e volumoso, de cachos muito pequenos, que sai quase completamente do padrão – até mesmo
para os cabelos cacheados.
Figura 02 - GELEDÉS - Elas abandonaram o alisamento de cabelos. 08/11/2014.
Figura 03: PROJETO RAÍZES
Laura Abreu, 23 anos. ―Hoje eu me sinto mais bonita, mais mulher, mais poderosa, mais feliz. Eu gosto de
valorizar minhas características, eu AMO ser negra, eu amo o meu cabelo, eu AMO o meu cabelo, se tem uma
coisa que eu amo é o meu cabelo‖.
Figura 04: PROJETO RAÍZES - Thamara Luiza, 21anos. ―Hoje eu sinto que o meu cabelo me deu poder pra
tudo, ele me dá respaldo pra mostrar o que eu sou e de onde eu vim‖

Considerações finais

9
PROJETO RAÍZES - Fotografias de Maria Cláudia Reis.
<https://www.facebook.com/groups/noelowpooiniciantes/> Acesso em: 26/05/2015.

118
O trabalho teve como pressuposto averiguar as possibilidades de respostas dos m
questionamentos a despeito do objeto de estudo – a estética visual do cabelo afro feminino.
O questionamento partiu de como as imagens de beleza dirigidas às mulheres negras no que
tange à questão do cabelo possa representar símbolo de afirmação identitária e valorização
da autoestima no enfrentamento à estigmatização. Na perspectiva de encontrar as respostas,
tornou-se necessário adentrar nas pesquisas a partir de leituras de livros e visitas em sites e
blogs percorrendo trilhas até então desconhecidas. Os caminhos perpassaram por diversos
referenciais, entre eles, as intelectuais ativistas do feminismo negro e, outros a fim de
sustentarem a proposta.
Dessa forma tornou-se possível averiguar as causas e consequências que
influenciam as mulheres negras a modificarem seus cabelos, com opção pela beleza do
natural como ferramenta política no enfrentamento às opressões estigmatizantes e,
sobretudo, como expressão de liberdade. Os registros fotográficos retrataram a estética
visual do cabelo afro feminino na sociedade contemporânea, ora pela preferência do
alisamento, ora ao retorno às suas origens e aceitação dos crespos. Assim, o sentido de
empoderamento se constituiu com mais força no enfrentamento às opressões
estigmatizantes mascaradas pelo racismo.

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de estética. Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Artes Visuais. Licenciatura em
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carneiro/17473 suelicarneiro-enegrecer-o-feminismo-a-situacao-da-mulher-negra-na-
america-latina-a-partirde-uma-perspectiva-de-genero>. Acesso em 02/04/2015.

119
CRENSHAW, Kimberlé. Revista Estudos Feministas - Documento para o encontro de
especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem.
vol.10 no.1 Florianópolis Jan. 2002 http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf >. Acesso em: 05/04/2015.

HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma


palavra. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n22/n22a09.pdf>. Acesso em
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HOOKS, Bell. Alisando o nosso cabelo. Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y
Artista de Cuba, janeiro-fevereiro de 2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos.
Retirado do blog coletivomarias.blogspot.com/.../alisando-o-nosso-cabelo.html. Disponível
em: <http://criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf >.
Acesso em 27/03/2015.

JOLY, Martine (1994) — Introdução à Análise da Imagem. Lisboa, Ed. 70, 2007 -
Digitalizado por SOUZA, R. E - Mail: comunicacao.social@hotmail.com. 2010.
Disponível em: <http://flankus.files.wordpress.com/2009/12/introducao-a-analise-
daimagem-martine-joly.pdf >: Acesso em 21/10/2014.

120
MY NAME IS BOND? UMA ANÁLISE DA RECONFIGURAÇÃO DA
MASCULINIDADE NO CINEMA A PARTIR DA FRANQUIA 007: AS
PERSPECTIVAS DE GÊNERO DA DÉCADA DE 1960 E O QUE SE ESPERA
NO NOVO MILÊNIO

João Lucas França Franco Brandão 1

Resumo: A historicizada narrativa da franquia cinematográfica 007, principalmente nos


filmes lançados até os anos de 1980, corroboram com estereótipos e continuidades de
uma tradição marcada pelo culto a figura dominante – os filmes do agente secreto James
Bond deixam claro qual é o herói que toda pátria deveria ter: branco, pertencente da alta
sociedade, culto e, especialmente, homem e heterossexual. E é sobre essa designação
conceitual (e cultural) de gênero, que diz respeito a (hiper-) masculinidade como
característica marcante do protagonista da franquia, por vezes até considerado como o
modelo ideal de homem, que este artigo pretende dialogar. Aqui, será compreendido
dois filmes com atuação de Sean Connery, 007 contra o satânico Dr. No (Terece
Young, 1962) e 007 contra Goldfinger (Guy Hamilton, 1964), justamente para analisar
esses traços de masculinidade ―perfeita‖, que preconizava atender a uma estratificação
machista do ser masculino e do ser feminino: o homem retratado como a figura
dominadora e a mulher como submissa e passiva as decisões do dominante. Também é
mote para este artigo compreender como o agente secreto está sendo representado
atualmente nos cinemas pelo ator Daniel Craig, que atua desde 2006 no papel – por uma
rasa percepção desses novos filmes, percebemos uma clara mudança nas características
clássicas da personagem e também da narrativa e, compreendê-las, portanto, é
fundamental para analisarmos as terminações históricas pelas quais James Bond foi
forjado, bem como os anseios da contemporaneidade nesta discussão de gênero.

Palavras-chave: Cinema e gênero; Masculinidade; James Bond;

O cinema hollywoodiano, que prosperou em um terreno determinantemente


marcado pelo patriarcado, a partir de um modelo considerado conservador quando

1
Graduando em História, pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: joao.franco94@hotmail.com

121
travamos discussões sobre gênero, até hoje mantem resquícios de produções que vêm
para confirmar um modelo machista de superioridade do homem, protagonista das ações
do enredo, em detrimento da mulher, figura coadjuvante e de menor destaque. Essa
diferenciação entre o masculino e o feminino dentro do cinema ainda ganha força
quando analisamos o que é considerado por muitos especialistas como a maior
premiação de filmes, que é o Oscar. Dentro da Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas, os votantes dos prêmios são compostos, de acordo com um
levantamento publicado pelo ―Los Angeles Times‖, por mais de 6 mil membros, os
quais 94% são brancos, 77% são homens e 86% têm mais de 50 anos. 2 Tal fato
corrobora com o ainda destaque de uma ala mais conservadora dentro do cinema norte
americano, cuja compatibilidade com ideais retrógrados, que exprimem certo tratamento
diferenciado a grupos femininos e também negros, é refletido quando analisamos os
prêmios do próprio Oscar, os salários dos atores, bem como os enredos e o teor das
histórias que são levadas as salas de cinema.

É certo que a ênfase a essas escolhas narrativas perdeu muito fôlego ao longo da
história, principalmente com o advento e proliferação de movimentos sociais – daremos
destaque ao feminista – que ao longo de anos lutaram por mais igualdade e
representação. Tal luta, que é válida, soou na sociedade, e hoje, já na segunda década do
novo milênio, produções que corroboram, mesmo que minimante, com algum tipo de
preconceito que tentam ilegitimar essas conquistas ou a atuação desses sujeitos no
cotidiano, são rechaçados e criticados por boa parte do público. Mesmo que ainda tenha
pessoas que concordam com um modelo já ultrapassado de sociedade, e não acham
válido a mulher ter destaque em um filme de ação, por exemplo, ou não concordam com
um negro ser protagonista de certa produção fílmica, é importante ressaltar que essa luta
ajudou até mesmo a remodelar uma franquia, a qual nos atentaremos nesse artigo, que
desde de seu primeiro filme reforçavam estereótipos de masculinidades quase que
irreais, e de situações de extremo caráter machista.

A franquia em questão é 007, cujo protagonista dos (até então) 24 filmes


produzidos é James Bond, um agente secreto inglês que a serviço de sua majestade tem
2
Dado retirado da matéria ―Falta de diversidade entre indicados ao Oscar 2015 causa discussão”, de
Letícia Mendes para o site G1 (20/01/2015).
<http://g1.globo.com/pop-arte/oscar/2015/noticia/2015/01/falta-de-diversidade-entre-indicados-ao-oscar-
2015-causa-discussao.html> Acessado em 17/10/2015.

122
que defender a honra de seu país. A premissa dos filmes, desde 1962 – o personagem
fora criado em 1953 por Ian Fleming – é muito simples e fora copiada dentro da própria
série e serviu de inspiração para muitos outros filmes: há a figura de um herói, há o
vilão (muitas vezes ―megalomaníaco‖, com o plano de destruir o mundo), e temos a
―mocinha‖, personagem feminina que na maioria dos casos está lá para ser salva e servir
de troféu para a conquista do herói. O caráter da franquia é de uma ―historitização‖ sem
igual, sendo que tais filmes de espionagem refletiam muito os anseios, os dilemas e as
perspectivas de cada época de produção: se tínhamos na década de 1960/70 inimigos
correspondentes ao lado oriental do mundo, visando o embate entre capitalistas versus
socialistas, ao final da década de 1990 até o último filme lançado - 007: Operação
Skyfall (Sam Mendes, 2012) – a preocupação já é com terroristas, sejam eles hackers ou
não.

Essa historicidade acompanha também os dilemas do gênero. Durante toda a


franquia sete atores viveram o personagem nesses mais de 50 anos desde o primeiro
filme: Sean Conney, George Lamzeby, Roger Moore, Timonthy Dalton, Pierce Brosnan
e Daniel Craig; cada qual com sua particularidade, mas nunca sem perder a essência da
elegância e da conquista às mulheres, características marcantes quando falamos de
James Bond. Com isso, cada história por trás da luta entre ―o bem e o mal‖, tinha a dose
de sensualidade, do apelo a bebida, do charme do terno: 007 vai além de uma história de
espionagem e cai como um estilo de vida a cultura pop, principalmente no que se diz
respeito a construção de masculinidade e virilidade do homem que vai ao cinema para
acompanhar os prazeres de uma vida que ele não pode alcançar, mas que é de desejo, a
partir da edificação do que seria o ―homem ideal‖.

Exemplificando melhor esses aspectos posteriormente, o intuito deste artigo é


justamente analisar essas premissas sobre a masculinidade, da construção do que é ser
homem, pelo cinema. Para isso, compreenderemos duas temporalidades: a década de
1960, que marca o início da franquia e o auge de um discurso mais machista; e os anos
de 2010, cuja abordagem mais recente dos filmes do agente secreto é marcada como
uma ruptura a esse modelo tão cultuado no século XX. Não seguindo uma linha
cronológica de análise, entretanto, faremos primeiro uma abordagem do personagem
construído por Daniel Craig, em sua quadrilogia vivendo o espião, com ênfase nos
filmes Cassino Royale (Campbell, 2006) e Skyfall, para depois retomarmos a década na

123
qual o personagem fora vivido por Sean Connery, dando destaque para os filmes 007
contra o satânico Dr. No (Terece Young, 1962) e 007 contra Goldfinger (Guy
Hamilton, 1964), justamente para analisar esses traços de masculinidade ―perfeita‖, que
preconizava atender a uma estratificação machista do ser masculino e do ser feminino: o
homem retratado como a figura dominadora e a mulher como submissa e passiva as
decisões do dominante.

Ao final dessas análises espera-se verificar como e quais mudança ocorreram em


James Bond nesses anos todos da franquia 007, percebendo quais traços são destaques e
quais são entendidos como continuidades ou rupturas (se é que podemos afirmar que
existe tal dualidade). Deixando claro a estrutura, seguimos com a análise.

My name is Bond?

Daniel Craig estrelou quatro filmes como o agente secreto britânico. Seu
primeiro filme, em 2006, Cassino Royale (Martin Capbell) fora bem recebido pela
crítica e marcou um reinicio a série: aqui, somos apresentados a primeira missão de um
James Bond ainda iniciante, sem a alcunha do título de um ―00‖, na qual uma das
características é a ―licença para matar‖. Entretanto, no que se diz respeito a construção
do personagem, certo público não encarou de forma positiva a encenação de Craig,
alegando que Bond não era baixo e muito menos loiro. De certo o tipo físico desse mais
recente 007 fugia do comum já estabelecido pelos anteriores: esse tem um corpo mais
atlético e mais musculoso, que o faz perder a elegância dos outros (há uma cena em
Cassino Royale que o espião é confundido com um manobrista de carro, fato que
reenterra a crítica de que este não preenche o requisito de um típico lord inglês).

A primeira crítica dos que não gostaram desse James Bond do novo milênio se
diz respeito ao caráter ―brucutu‖ que o personagem apresenta: a ignorância, a explosão
de emoções e certa violência deliberada em alguns momentos servem de argumento a
uma possível descaracterização do personagem original, que culmina com a segunda
crítica - esse outro argumento parte da observação da relação que o agente mantem com
as mulheres. A arte da conquista, se comparada com os outros filmes, está presente de
forma mais discreta, a ―bond girl‖ (como são chamadas as mulheres que se envolvem
com o agente) dessa película, Vesper Lynd, interpretada por Eva Green, ainda continua
sendo um objeto sexual, desejo alcançado por Bond. Porém, em Cassino Royale, o

124
personagem de Craig se apaixona por Lynd, e no desenrolar da narrativa tem que sofrer
as consequências pela traição e suicídio da amada, demonstrando toda uma fragilidade
emocional e vulnerabilidade que em filmes anteriores seria improvável de acontecer.

A crítica então persiste na dúvida da real virilidade deste personagem, virilidade


essa que, como já dito, já foi cultuada por muitos homens: as incertezas persistem na
constatação de que James Bond, em 2006, já não é o ―macho alfa‖ que é a essência do
personagem na década de 1960. A perda do glamour e a seguinte traição de sua amada
(a mulher aqui não se tornou uma recompensa ao final do filme) fizeram fãs ficarem
desconfiados do que estaria por vir com a sequência da franquia e a remodelagem
dessas já marcantes características do espião. Desta forma, o suprassumo que atingiu os
espectadores mais conservadores da série veio em 2012 com uma cena de Operação
Skyfall.

O vilão homossexual Silva, interpretado por Javier Bardem, faz com que James
Bond caia em uma armadilha, o amarrando sentado em uma cadeira. Certa conversa
clichê entre herói e bandido acontece antes do diálogo que marca um momento inédito
para a franquia: a insinuação de que o agente secreto poderia ter tido uma relação
homossexual. Isso acontece quando Silva começa a passar suas mãos sobre as coxas de
Bond e o lança a seguinte pergunta: ―O que será que o MI6 [órgão do governo para qual
o agente trabalha] acharia dessa situação inusitada [sobre tal insinuação sexual]? ‖, o
espião então responde: ―quem disse que é a primeira vez que isso acontece? ‖.

Se procurarmos por fóruns e


artigos de debate produzidos pelo público
geral podemos encontrar até mesmo falas
homofóbicas criticando a cena, usando
novamente o argumento de
descaracterização do personagem. O fato é
que essa cena só foi possível por causa das
conquistas dos movimentos sociais, que
delegam a possibilidade de até mesmo um
personagem considerado como exemplo de
Silva [a direita] lança uma cantada a James
virilidade receber uma cantada de um Bond. (Skyfall, Mendes, 2006)

125
homem e responder à altura, sem preconceitos e lançando a possibilidade de
imaginarmos que o personagem (mesmo com sua hipermasculinidade) pode ser também
homossexual, isso sem alterar em nada em suas ações.

Contudo, se fãs alegam que a virilidade de James Bond nesses novos filmes se
perdeu, Dominique Kalifa, em seu artigo Virilidades Criminosas? poderia discordar.
Para o autor, o primeiro elemento marcante no arquétipo do homem é seu vigor e
aparência física, pois em uma sociedade e em relações interpessoais de competição
dominado pela violência, força, potência e músculo constituem atributos maiores.

―Um homem é, em primeiro lugar, um forte, um braçudo, um


parrudo, um musculoso, como testemunham os numerosos
pseudônimos forjados sobre tais competências. Silhuetas,
fisionomias singularizam-se, frequentemente caracterizadas por uma
forte animalidade. O tamanho e a corpulência pesam obviamente,
mas é, sobretudo no pescoço, no torso ou nos braços que o olhar se
fixa. O verdadeiro forte é geralmente um indivíduo atarracado, de
pernas curtas, porém com mãos e braços potentes; ele tem o sangue
quente e o temperamento sanguíneo.‖ (KALIFA, 2013:304)

Portanto, é assim que se forja o James Bond de Daniel Craig: aberturas podem
ter sido dadas em relação a direitos das mulheres, e até mesmo homossexuais, entretanto
a masculinidade é somente ainda mais reforçada com essas características que prezam
pelo homem dominador, que ainda quer submeter a mulher a dominação social e sexual,
por mais que na película isso seja demonstrado de forma mais sutil. Segundo Kalifa, a
construção e o reforço de tais características ao homem correspondem a um sistema de
desqualificação constante do feminino, com realmente uma relação sexual animalizada:
restrita ao ato de penetração, ―a sexualidade é considerada uma manifestação de força,
expressão de uma dominação. A mulher (igualmente como o homossexual passivo)
deve sofrer, supostamente a potência e a força do homem‖. (KALIFA, 2013:314)

My name is Bond, James Bond

Desta forma, se verificamos que o Bond de Daniel Craig ainda sofre de uma
exacerbada masculinidade que tende para um machismo conservador e perigoso, o Bond
de Sean Connery é a representação de uma sociedade retrógrada que buscava dar uma

126
resposta a gênese dos movimentos sociais, de emancipação feminina na sociedade. É
complicado fazer afirmações, mas parece que os primeiros filmes do 007 vinham em
contraponto a chamada ―crise da masculinidade‖. Ambra escreve que na passagem do
século XIX para o século XX – contexto de emergência da psicanálise – tal crise
emerge justamente nos Estados Unidos e na Europa. A emancipação feminina, através
da educação e de uma reinvindicação de direitos cada vez mais intensificada, faz os
homens se sentirem cada vez mais ‗ameaçados em sua nova identidade por esta nova
criatura que quer fazer como eles, ser como eles. (AMBRA, 2013:8)

Assim, para reforçar caráter antigos, contra essa luta dos movimentos sociais,
Sean Connery encena na década de 1960 um James Bond cínico, mulherengo,
sofisticado e implacável, que conquistaria a mulher que quisesse com sua masculinidade
segura e inquestionável em anos de gênese da revolução sexual. Desta forma, embora
fosse verificado uma constante degradação as mulheres, seja fisicamente ou
moralmente, Bond tinha o público feminino aos seus pés e mesmo que sem
consentimento, elas também se apaixonavam.

Em suma, o 007 de Sean Connery, tinham as mulheres realmente como mero


objeto sexual para realizar seus desejos, sendo tratadas apenas como prazeres
descartáveis que passavam longe de despertar no agente alguma afeição ou sentimento.
Essa relação se assemelha muito com o que foi descrito por Kalifa no que se diz respeito
a relação de dominador e subordinado, prevalecendo o ideal patriarcal, que nos remete
muito a uma influência do século XIX e a masculinidade conferida pelos homens do
surgimento dos Estado-nação. O ideal de virilidade conferia o espírito patriótico de
defender a nação, bem como aponta Ambra (AMBRA, 2012:86), do homem olhar para
trás visando encontrar no herói nacional um projeto visando o horizonte da nação. Esses
homens são astutos, enganam a morte e conseguem prolongar a vida – no XIX temos o
auge da virilidade, do homem que se enquadra com o projeto de nação e se torna tão
imperialista quanto. O James Bond, tal como esse homem representa o ―poder, a
potência e a posse‖. (OLIVEIRA apud CAMARGO, 2008:4)

Conclusão

Se a nação voltou a se materializar no corpo do homem, na segunda metade do


século XX, a influência dessa masculinidade, através do cinema, perpetuou anos para

127
frente e esse mesmo arquétipo se repetiu na franquia pelo menos até os anos de 1990,
tendo influências até hoje na construção da narrativa dos filmes do 007 e tendo uma
influência determinante no pensamentos dos fãs da franquia, que por muitas vezes
reproduzem falas que por vezes já estão ultrapassadas por serem consideradas
machistas, racistas ou homofóbicas. As próximas notícias são de que o próximo ator a
viver James Bond será negro, e inquietações a respeito disso já estão presentes nos
comentários de internautas.

Essa nova guinada pode ser interessante a série, pois, pelo que podemos
perceber, uma mentalidade atrasada, que começou ainda na década de 1960, que
realmente era conservadora e ia de encontro as propostas de emancipação dos
movimentos sociais, ainda perpetua em nossa sociedade contemporânea: o machismo, a
submissão e o preconceito pouco mudaram nos filmes de James Bond, e mesmo que
temos uma ―descaracterização‖ do personagem, por meio de atos e consequências a ele,
que por vezes corroboram com o fim de uma perspectiva machista, sempre presente na
série, a presença do homem alfa, que está acima de todos (e principalmente das
mulheres) ainda é marcante. Portanto, é importante para uma melhor igualdade de
gênero a desconstrução de certos paradigmas.

Bibliografia

AMBRA, Pedro Eduardo Silva. A noção de homem em Lacan: uma leitura das formas
de sexuação a partir da história da masculinidade do ocidente. Tese de mestrado, São
Paulo, 2013

CAMARGO, Felipe Côrte Real de. ―Nobody does it better‖: James Bond e as
masculinidades. IN: Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25
a 28 de agosto de 2008, p. 4

CECÍLIA, Almeida Rodrigues Lima. A representação arquetípica das bond girls nos
filmes de 007. IN: Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder - Florianópolis, de 25 a
28 de agosto de 2008

KALIFA, Dominique. Virilidades criminosas?. IN: História da virilidade, volume III.


Org: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLo, Georges – Petrópolis,
RJ: Vozes, 2013.

128
SANTIDADE E VIRGINDADE NA LEGENDA MAIOR DE SANTA CLARA DE
ASSIS

Jorge Luiz da Silva Alves1


Eliane Martins de Freitas2

Resumo: Este texto tem como finalidade analisar a Legenda de Santa Clara Virgem, escrita por
Thomás de Celano entre 1254 a 1257. Para isso levamos em consideração o contexto histórico e
a situação das mulheres na sociedade da época. Na análise da legenda buscaremos expor como
foi retratada a vida de Santa Clara de Assis, desde seu nascimento até sua santificação. A leitura
desse documento buscou compreender as virtudes, milagres e virgindade, como categorias
fundamentais para a compreensão da construção de um dado ideal de feminilidade presente nas
hagiografias dos séculos XIII a XIV.

Palavras-chave: Santidade. Virgindade. Clara.

1. Introdução

O presente texto busca compreender, a partir da Legenda Maior de Santa Clara


Virgem, a construção do ideal de feminilidade presente nas hagiografias dos séculos
XIII a XIV, período no qual a Europa passou por várias transformações. Dentre elas
destacamos o ingresso de leigos e mulheres na religiosidade urbana (LE GOFF e
SCHIMITT, 2006).
Vauchez (1989, p. 219) afirma que entre o final do século XII e começo do
século XIII, o papado tomou para si como direito exclusivo a estipulação de normas
para o reconhecimento da santidade. Passou a existir assim um ―(...) controlo sobre as
virtudes e os milagres dos servidores de Deus (...)‖. Estabelecendo-se duas
características em torno da santidade: uma que dizia respeito aos santos reconhecidos
pela Santa Sé e que recebiam todos os privilégios e, outra, que dizia respeito aos que
não tinham esse reconhecimento e eram venerados apenas localmente.
A Idade Média também viveu mudanças em outros seguimentos. O século XIII:
―foi marcado pela expansão da vida urbana, maior volume de riqueza circulante (...);
nascimento de um novo ideal de vida religiosa (...)‖ (SILVA, 2008). Interessa-nos
pensar esse novo ideal de vida religiosa e as novas concepções de santidade, visto que
os santos tornavam-se alvos de imitação. Isso nos permite pensar, por um lado, o lugar
das mulheres nessa sociedade, e, por outro lado, como as relações de gênero se tornaram

1
UFG/RC; Graduando em História; email: jorgeluizdasilvaalves@gmail.com
2
UFG/RC; Doutora em História; email: emartinsdefreitas@gmail.com

129
importantes agentes na criação dos novos modelos de santidade construídos para a
contenção dos fiéis.
As mulheres foram durante a Idade Média minoria dentre os merecedores do
título de santos. Situação que se altera por volta do século XIII, neste século houve um
enorme crescimento da santidade feminina, e é nesse contexto que se insere Santa Clara.
Considerando que a santidade é uma construção social, um ideal que se
desenvolve historicamente e que, portanto, diferentes pessoas são reconhecidas como
santas em diferentes contextos, entendemos que pensar a hagiografia de Santa Clara à
luz dos estudos de gênero se configura como possibilidade para a compreensão desse
caráter transitório da santidade.

2. Idade Média Central

O período compreendido entre os séculos XI e XIII, também conhecidos como Idade


Média Central, foi um período em que a sociedade ocidental conheceu várias mudanças
em torno da economia, política, religiosidade, bem como o surgimento de novas
profissões e grupos sociais, que surgiram com uma sociedade mais urbanizada e que
vivia a difusão de novas ideias sobre a salvação (FRANCO JUNIOR, 1996).
Esse é o momento da discussão em torno da reforma da Igreja, marcado por um
movimento de regresso à vida apostólica. O movimento reformista era liderado pela
Ordem Religiosa do Mosteiro de Cluny, que tinha como objetivo restaurar a autoridade
moral da Igreja que havia se perdido por vários motivos, um deles era a riqueza
adquirida que provinha em sua maior parte do estado, e, outro motivo, seria o
comportamento da comunidade eclesiástica diante da sociedade. As ideias reformistas
foram ganhando espaço dentro da Igreja levando à eleição do papa Gregório VII, em
1073. Iniciou-se então a reforma Gregoriana que ―fortaleceu o poder papal e das
instituições eclesiásticas, em boa parte, graças ao direito romano e ao direito canônico‖
(DUARTE, 2010).
Essa reforma, entretanto, não satisfez as expectativas populares uma vez que
reduziu-se ao caráter burocrático. Foi posteriormente com a vita apostólica que as
expectativas populares foram entendidas e concretizadas. No século XII grupos de
leigos que se organizaram em movimentos a favor da reforma da Igreja alimentavam o

130
desejo de retornar as origens do Cristianismo, ou seja, regressar à vida apostólica – um
estilo de vida baseado na vida de Cristo e seus apóstolos (BOLTON, 1983).
Para esse retorno a vida apostólica se estabeleceram três princípios básicos: a
imitação da Igreja primitiva, pela imitação de Cristo e dos apóstolos, através do
sofrimento, da espiritualidade e da penitência; o amor por Deus e pelo próximo através
do cumprimento literal dos Mandamentos; e, a obediência à exortação de Cristo para a
prática da vida de pobreza, de trabalho manual e de aceitação de esmola (BOLTON,
1983).
Dentre os que desejavam participar dessas novas formas religiosas estavam
também as mulheres, pois esses movimentos laicos possuíam seguidores de ambos os
sexos. Entre as ordens religiosas criadas para receber mulheres temos: as Beguinas, as
Cistercienses, as Valdenses e as Beneditinas.

3. Movimento Franciscano

O Movimento Franciscano nasceu em Assis em meio a uma sociedade feudal e


não foi praticado em meio às camadas menos favorecidas, mas sim entre grupos como a
burguesia e a nobreza. De acordo com Frohlich o movimento ―Teve origem no despertar
da consciência de uma pequena parcela de pessoas com boa condição financeira.‖
(FROHLICH, 2001, p. 16).
O fundador do movimento foi Giovani di Pietro di Bernardone que ficaria
conhecido depois como Francisco. Ele nasceu em Assis por volta de 1181 e 1182, era
filho de um próspero mercador de tecidos, logo provinha de uma classe abastada.
Porém, por volta de 1206, Francisco tem alguns problemas com seu pai por conta de um
dinheiro que ele havia doado a uma igreja, é nesse momento que Francisco se despe
totalmente de suas vestes, simbolizando o seu rompimento com os bens materiais.
Usando, a partir daí, apenas uma túnica rústica amarrada na cintura, abandonando a vida
de riquezas, vivendo entre os leprosos e trabalhando na reconstrução de igrejas.
Para Frohlich, foi por volta de 1208 que Francisco ―percebe que precisa seguir
Jesus na prática‖ (2001). As ideias da prática da fraternidade e da pobreza remetem à
vita apostólica ressuscitada neste período por movimentos religiosos laicos. A partir
disso se deu de maneira espontânea a formação de um novo movimento religioso em
torno de Francisco.

131
Esse movimento fugia da realidade medieval da época já que os franciscanos
eram peregrinos, ou seja, não possuíam um convento ou mosteiro, porém fossem em
grupos pequenos ou grandes, a intenção era levar as ideias de fraternidade e pobreza a
todos os lugares possíveis.
Por volta de 1212, de acordo com Frohlich, Chiara de Favarone (depois Clara de
Assis) dirige-se à Porciúncula ―após fugir de casa para juntar-se ao movimento [liderado
por Francisco], estabelecendo-se por fim em São Damião e dando início à primeira
ordem franciscana feminina a ordem das Clarissas.‖ (FROHLICH, 2001).
Nesse processo Francisco teria procurado o Papa para a aprovação de seu modo
de vida religioso, não obtendo de imediato a aprovação. Foi por volta de 1216 que o
Papa Honório III permitiu oficialmente o estabelecimento da nova ordem. Após isso o
movimento ainda passou por crises que aos poucos foram sendo resolvidas. Francisco
morreu em 1226, não demorando muito sua canonização, que ocorre por volta de 1228.

4. As Mulheres na Idade Média

De acordo com Casagrande:


Não sei em que medida as mulheres do Ocidente medieval se
mantiveram quietas e silenciosas entre as paredes das casas, das
igrejas e dos conventos, ouvindo homens industriosos e eloquentes
que lhes propunham preceitos e conselhos de toda a espécie. Os
sermões dos pregadores, os conselhos paternos, os avisos dos diretores
espirituais, as ordens dos maridos, as proibições dos confessores, por
mais eficazes e respeitáveis que tenham sido nunca nos restituirão a
realidade das mulheres às quais se dirigiam, mas com toda a certeza
faziam parte dessa realidade: as mulheres deveriam conviver com as
palavras daqueles homens a quem uma determinada organização
social e uma ideologia muito definida tinham entregue o governo dos
corpos e das almas femininas. Uma parte da história das mulheres
passa também pela história daquelas palavras que as mulheres
ouviram ser-lhes dirigidas, por vezes com arrogância expedita, outras
vezes com carinhosa afabilidade, em qualquer caso com preocupada
insistência. (CASAGRANDE, 1990, p. 99).

Durante toda a Idade Média foi assim, as mulheres tinham que seguir modelos
de comportamentos criados para a repressão dos copos femininos. A maioria dos
escritos da Idade Média dirigidos às mulheres, sejam eles religiosos ou didáticos, foram
escritos como manuais de comportamentos femininos, ou seja, ditando qual seria o
modelo perfeito do feminino. Essas mulheres por sua vez tomaram caminhos diferentes
de acordo com a hierarquia social e assumiram diversos papéis nas famílias como os de
esposa, filhas e mães (CASAGRANDE, 1990).

132
Esses textos voltados para a criação de um modelo de comportamento feminino
que perdurasse, foram escritos do final do século XI ao início do XIII. As diferenças
religiosas e sociais das mulheres influenciaram e muito na elaboração de tais textos,
fossem os pastorais ou os didáticos. Em meio a essa construção de modelos femininos
que deveriam guiar ou não as mulheres, foi criado inicialmente a seguinte divisão: de
um lado as luxuriosas detentoras do pecado, e, de outro, as castas, símbolo da virtude.
Passa-se a se dirigir ao feminino como mulheres e não mulher levando em conta
que cada uma passa a ter suas particularidades e pluralidades. Em meio a essas
diferenças as mulheres passam a aparecer com mais frequência nos textos pastorais e
didáticos onde é tentado estabelecer um modelo unanime para classificar o público
feminino.
Vários autores e pastores deixam claro em seus escritos a divisão feita entre as
mulheres ao deixar as meretrizes de fora dos escritos, por exemplo, alegando que essas
não seriam dignas de serem nomeadas. Outro critério utilizado na divisão do grupo
feminino foi o de idade que dividia as mulheres em jovens e velhas.
Nessa divisão as mulheres mais velhas ficaram com os piores papéis já que
foram nomeadas como alcoviteiras e feiticeiras que teriam poder sobre as mais jovens.
Em vários escritos foram tidas como agentes do mal e como criaturas viciosas e
perigosas.
As mulheres desse período, como em vários outros, se depararam com o
problema de sua inserção na sociedade, ou seja, de se tornarem visíveis aos outros, coisa
que só poderia ocorrer se elas entrassem para alguma família. Entre todo esse ritual as
mulheres foram novamente divididas dessa vez levando em consideração a sua posição
social. (CASAGRANDE, 1990).
Rainhas, princesas e damas faziam parte da nova divisão utilizada para a criação
e reforço de modelos femininos a serem seguidos, essas mulheres de posição social
elevada por sua vez deveriam servir de exemplo já que por vontade divina essas
ocupavam local de destaque e respeito ou seja quanto maior a posição social maior o
compromisso e responsabilidades com o modelo feminino a ser seguido. Elas deveriam
atuar e desenvolver seus papeis com todo o cuidado possível para que quem as visse
seguisse o exemplo.
Dentre esses papeis distintos encontramos três que formavam outro grupo de
mulheres: as virgens, viúvas e casadas. Dentro do grupo existia uma hierarquia que era

133
estabelecida de acordo com a abdicação dos desejos da carne. A virgem era a mais pura
já que de livre e espontânea vontade havia aberto mão dos desejos pecaminosos por
completo tanto no corpo quanto na mente. A viúva ocupava o segundo lugar já que esta,
por ventura de algum acontecimento perdeu o esposo e desde então decidira renunciar
os desejos do corpo. As casadas ocupariam o terceiro lugar já que essas faziam o uso do
corpo mesmo que somente para procriação. Nesses exemplos podemos ver três formas
distintas de utilização do sexo. Segundo Casagrande: ―A virgem tem na hierarquia
moral fundada na castidade o mesmo papel que tem a rainha na hierarquia social figuras
portanto inatingíveis pelo nível de excelência e de superioridade em que são colocadas.‖
(CASAGRANDE,1990, p. 113).
Esses modelos, encarnados pela virgem e pela rainha, são os modelos morais
perfeitos a serem seguidos por todas as mulheres, de acordo com as condições de cada
uma. Na divisão feita a partir da idade as mulheres jovens não ficaram livres dos
ataques dos textos didáticos e pastorais. A não ser nesses modelos citados as mulheres
jovens eram tidas por muitas vezes como perigosas já que ao sair de casa poderia
provocar fosse na igreja, praça, rua, festa ou qualquer outro lugar um sentimento de
luxuria nos homens fazendo com que fosse despertado em algumas vezes o lado animal
dos homens, o que poderia resultar em uma violência, infortúnios entre outras atitudes
que sempre recaíram sobre essas mulheres ―vagabundas‖. Essas mesmas mulheres que
são comparadas a animais segundo Casagrande nos informa a partir de Gil de Roma,
―animais selvagens que, habituados à companhia do homem se tornam domésticos e se
deixam tocar e acariciar‖. (CASAGRANDE, 1990, p. 121). Essa citação se refere a
mulher que possua vida social mesmo sendo negado isso a ela.
Essas nomenclaturas são dadas as mulheres desde Eva que é vista como a
mulher que queria conhecer o bem e o mal e, portanto, induziu Adão a comer o fruto
proibido, porém o que ninguém lembra muito é que Eva foi criada segundo a Bíblia
depois que Deus havia dito para Adão não comer do fruto proibido, porém mesmo
assim desde esse fato as mulheres são questionadas e tidas como homens inacabados.
Por conta disso elas não possuem racionalidade, discernimento entre outras coisas que
somente os ―homens possuem‖ o que as deixam com algumas ―debilidades‖, logo
precisam ser guardadas, protegidas de si mesmas.
A palavra custodia aparece com frequência nos textos pastorai e didáticos
dirigidos às mulheres. Uma das formas de custodiar as mulheres seria a vergonha, por

134
meio dessa seria possível proteger a mulher tanto dos outros quanto de si próprias, já
que elas seriam mais perigosas para si mesmas do que qualquer outra coisa: ―a vergonha
custodia a mulher porque a afasta da comunidade social, a remete para o espaço fechado
e protegido da casa e do mosteiro, preserva-lhe a castidade, relega-a para uma louvável
animalidade‖. (CASAGRANDE, 1990, p. 121).
Esses modelos sempre chamados na literatura pastoral e didática da época
traziam a tona o quanto era necessário estabelecer modelos que dessem conta de
abranger o maior número de mulheres possíveis e para isso era utilizado até mesma a
inferioridade feminina explicada na Bíblia de acordo com alguns teólogos.
As mulheres deveriam fiar, bordar e no máximo saber administrar a casa. As
mulheres envolvidas com a escrita na Idade Média foram as integrantes do mundo
religioso que tinham acesso a educação. Foi no domínio religioso que as mulheres se
fizeram mais presentes inclusive a partir dos movimentos da vita apostólica quando elas
ganham mais força para entrarem na vida religiosa.

5. Hagiografia e a Legenda de Santa Clara

A Legenda de Santa Clara Virgem foi escrita por Thomás de Celano não se sabe
ao certo o ano, julga-se que possa ter sido escrita entre 1254 a 1257, período em que o
escritor já se encontrava bem estabelecido e possuía renome. As informações a respeito
de Thomás de Celano também oscilam, a respeito de seu nascimento trabalha-se com as
datas de 1190 a 1200. Nasceu na comuna italiana de Celano na região de Abruzos, foi
um frade católico medieval da Ordem dos Franciscanos além de poeta e escritor
hagiógrafo, já que é autor de três obras biográficas sobre São Francisco de Assis. Entrou
para a Ordem Franciscana por volta de 1215, já em 1257 assumiu o posto de diretor
espiritual do convento das Clarissas em Tagliacozzo, onde morreu entre 1260 a 1270.
A referida legenda é composta por 63 Páginas que estão divididas em Introdução
e duas partes. A primeira parte é formada por 29 subtítulos que abrangem o nascimento,
a vida na casa paterna, a amizade com Francisco, sua conversão, o embate com os
parentes, sua determinação e seus milagres. A segunda parte, composta por 11
subtítulos, aborda os milagres de Santa Clara depois de sua morte e sua canonização.
Iniciando a legenda Thomás de Celano deixa claro na introdução a necessidade
por parte do sexo ―débil‖, ou seja, o feminino, de receber ajuda, em um momento onde
para a Igreja a sociedade passava por tentações e vícios, o mundo escurecia com toda

135
essa falta de luz e virtudes, então Deus teria suscitado novas Ordens Santas a partir de
sua piedade, e teria providenciado por elas uma nova base para a fé e uma reforma dos
costumes, logo não poderia faltar ajuda para as mulheres. ―E não convinha que faltasse
ajuda ao sexo débil, pois, colhido no abismo da concupiscência, não era atraído ao
pecado por menor desejo.‖ (CELANO, 1254/1257).
A partir disso e das discussões feitas a cerca das mulheres na Idade Média é
perceptível a utilização da santidade enquanto modelo imposto às mulheres da
sociedade medieval ocidental: ―as mulheres imitem Clara, vestígio da mãe de Deus e
nova guia das mulheres.‖ (CELANO, 1254/1257).
A primeira parte da legenda busca construir uma linearidade para a vida de
Clara, cujo ―nascimento foi bastante esperado‖, pois durante a gravidez sua mãe foi
avisada durante uma oração que daria à luz a uma ―luz‖ ainda mais clara que a própria
luz, por conta disso ela teria dado o nome de Clara para a filha a fim de que se
cumprisse a vontade divina. Isso nos leva a pensar que a legenda mostra que Clara já
nasceu predestinada a alguma coisa grandiosa.
Da infância piedosa, passando pela decisão de manter-se virgem para Deus,
somos informados da vida de Clara, e de seu encontro com Francisco, quando ―passou
do século a religião, o que gerou uma revolta de sua família‖ já que Clara deixou tudo
de sua vida mundana para trás inclusive sua família e casa, além de ter doado toda sua
herança. Atitudes imputadas pelo hagiógrafo à influência de Francisco sobre Clara: ―O
pai Francisco exortava-a a desprezar o mundo, mostrando com vivas expressões que a
esperança do século é seca e sua aparência enganadora.‖ (CELANO, 1254/1257).
Após sua conversão teve de ser firme em relação a repressão violenta de seus
parentes que insatisfeitos com suas escolhas tentaram impedi-la:
Mal voou a seus familiares a notícia, e eles, com o coração dilacerado,
reprovaram a ação e os projetos da moça. Juntaram-se e correram ao
lugar para tentar conseguir o impossível. Recorreram à violência
impetuosa, ao veneno dos conselhos, ao agrado das promessas,
querendo convencê-la a sair dessa baixeza, indigna de sua linhagem e
sem precedentes na região. (CELANO, 1254/1257).

Apesar de tudo isso ela deu início à Ordem das Mulheres Pobres, que obteve
certo êxito já que mulheres eram atraídas pela ―pré santificação‖ feita a respeito de
Clara, que ocorreu por meio dos rumores de suas virtudes e vida dedicada ao Senhor.
Tantas mulheres atraídas para os mosteiros causou uma reviravolta na época. A notícia a
respeito da bondade de Clara, segundo Celano, se espalhava e chegando a lugares

136
remotos e logo, ela passou a ser imitada e se tornou ainda mais um referencial poderoso
com a ajuda de sua santa humildade, porém não alcançou sua independência: ―Por fim
obrigada por São Francisco assumiu o governo das senhoras. Dai brotou em seu coração
temor e não enchimento, crescendo no serviço e não na independência.‖ (CELANO,
1254/1257).
Mesmo à sombra de Francisco, Clara queria a autonomia e o título de pobreza
para a sua ordem. Clara solicitou então ao Papa Inocêncio III o privilégio da pobreza já
que ela tinha uma enorme ligação com essa pobreza voluntária.
Clara teve também fora a suas virtudes, vários milagres atribuídos a ela antes e
depois de sua morte. Como por exemplo, o do pão, o do azeite, milagres atribuídos a
santa durante a sua vida, o que nos mostra que o milagre feito em vida atrairia mais
pessoas ainda para o modelo de vida de Clara principalmente mulheres, pois a visão a
respeito de milagres as pessoas mais boas de coração e tementes a Deus, logo essas
pessoas seriam a conexão entre Deus e o restante dos fiéis. Outra questão bem resolvida
por parte de Clara era a mortificação da carne que se tornava leve por meio do amor que
possuía em seu coração: ―Por isso, podemos ver claramente que a santa alegria que lhe
sobrava dentro extravasava fora, porque o amor do coração tornava leves os castigos
corporais.‖ (CELANO, 1254/1257).
Poderia dizer-se que esse amor se dava em prol da conexão entre Clara e Deus já
que de acordo com Celano ela era entregue a prática da oração. Porém durante esses
momentos era tentada várias vezes por forças contrárias. Esse poder da oração, atribuído
pelo hagiógrafo expressa-se na conversão de sua irmã Inês:
De fato, não devemos sepultar no silêncio a eficácia admirável de sua
oração que, ainda no começo de sua consagração, converteu uma alma
para Deus, e a protegeu. Tinha uma irmã jovem, irmã na carne e na
pureza. Desejando sua conversão, nas primeiras preces que oferecia a
Deus com todo afeto, insistia nisso: que, assim como no mundo tinha
tido com a irmã conformidade de sentimentos, assim agora se
unissem, ambas, para o serviço de Deus em uma só vontade.
(CELANO, 1254/1257).

Inês também sofreu com a repressão familiar, sendo vítima de ataques violentos
de seus familiares onde podemos enxergar melhor as relações de poder usadas como
arma poderosa de intimidação nesse momento. No entanto Inês não amoleceu em seu
compromisso e com a ajuda da oração de Clara saiu vitoriosa. ―Clara prostrou-se numa
oração em lágrimas, pedindo que a irmã mantivesse a constância e suplicando que a

137
força daqueles homens fosse superada pelo poder de Deus.‖ (CELANO, 1254/1257).
Mais uma vez fica claro a ideia do poder da oração de Clara.
Em meio a toda sua trajetória Clara fica bastante enferma e pede a confirmação
do seu privilégio da pobreza e o tem concedido. Após isso, Clara morre e as virgens de
Cristo vêm busca-la. A notícia de sua morte abalou toda a cidade e muitos a
proclamaram Santa o que gerou pode-se dizer uma ―canonização antecipada‖. Várias
pessoas começaram a recorrer ao túmulo de Clara louvando a Deus e fazendo orações a
ela. Pouco tempo depois Inês também faleceu e se juntou a sua irmã em ―glória eterna‖.
Após a sua morte foram atribuídos vários outros milagres à Clara dentre os quais
tiveram: expulsão de demônios, cura de cegos, enfermos entre outros. De acordo com
Celano: ―Quando se espalhou a notícia desses milagres e a fama das virtudes da Santa
começou a se propagar cada vez mais amplamente, [...] Todo o mundo já esperava com
grande desejo a canonização de tão insigne virgem.‖ (CELANO, 1254/1257). Dois anos
depois de sua morte Clara foi canonizada o que todos já ansiavam com fervor. Ela foi
inscrita no catálogo dos Santos e foi decretado que ―em toda Igreja se celebrasse
solenemente a sua festa.‖ (CELANO, 1254/1257).

6. A canonização de Santa Clara

Como dito antes, a virgindade se torna na Idade Média um meio de controle da


sexualidade feminina. No caso da Santa Clara a virgindade foi uma escolha pessoal que
partiu dela mesma, pois ela queria se guardar para Deus isso fica mais claro na Legenda
de Santa Clara Virgem e em suas cartas para Inês.
A legenda de Santa Clara Virgem nos traz a virgindade sempre tida como uma
virtude que deveria fazer parte do imaginário cristão feminino daquele momento
começando pelo nome da Legenda. Durante o processo de canonização de Santa Clara
foram entrevistadas 20 testemunhas sendo 15 as ―sorores‖ e as restantes pessoas leigas
(BARTOLI, 1998, p. 15). A partir dos relatos das testemunhas a santidade de Clara ia se
constituindo, ou seja, a santidade seria o resultado de suas virtudes que eram trazidas a
tona pelos depoentes que iriam formar as qualidades morais para que se pudesse
santificar Clara. De todas as virtudes chamadas pelos depoentes a mais enfatizada
desde a infância de Clara foi a virgindade. O conceito de virgindade havia passado por
várias ressignificações, porém na Idade Média a virgindade possuía uma dimensão
enorme. Daí a oficialização da santidade de Clara, pois com ela se teria um modelo a ser

138
seguido pelas fiéis. Segundo Casagrande, as ―virgens não maculadas [eram]
completamente dedicadas à vida da alma (...)‖ (CASAGRANDE, 1990, p.116).
Outras virtudes também foram trazidas pelos depoentes como a piedade,
honestidade, bondade entre outras. A pobreza com certeza foi uma das coisas mais
presentes na vida de Clara, porém, tomou maior força após sua conversão, já que de
livre e espontânea vontade ela escolheu esse caminho ao doar toda sua herança e abrir
mão do matrimonio. Segundo Brenda Bolton essa pobreza estava ligada aos
movimentos da vita apostólica, que se espalhavam desde o século XII que estava
bastante relacionada com a imitação de Cristo.
Clara não foi somente modelo de santidade a ser seguida ou foi utilizada
somente para oprimir, mais também sofreu com a repressão e violência de sua família.
A família de Clara não aceitava o fato de ela ter vendido sua herança e doado tudo sem
contar o fato dela ter se recusado a se casar e ainda ter ido embora de casa para viver em
pobreza mesmo porque o casamento, sobretudo entre as famílias poderosas era um
negócio utilizado como forma de controle para manter a riqueza das famílias. Clara foi
vítima de uma raiva familiar enorme e sofreu agressões de vários tipos inclusive físicas
por parte de seu tio que zelava por sua família já, no lugar do pai falecido e na ausência
filho homem para assumir o controle da família (CELANO, 1254/1257).
Percebemos aí então a questão das relações de poder estabelecidas a partir do
gênero. Dentro dessas relações de poder se percebe que o discurso masculino é
construído a partir de uma suposta fragilidade feminina que vinha legitimar o poder de
controle e posse sobre as mulheres. O domínio dos homens sobre o corpo das mulheres
está ligado com certeza a virgindade que era a base para que um pai pudesse estabelecer
um ―negocio‖ com outras famílias, para isso esse pai propunha o casamento de sua filha
virgem ou seja vendendo-a. Todo esse processo vem nos mostrar e evidenciar que as
mulheres não possuíam poder sobre seu corpo e que este pertencia aos homens.
Clara também quebrou outra relação importante até então, a da Igreja com as
famílias, isso ao se desfazer de toda sua herança em prol da pobreza. Entretanto, pode-
se perceber na leitura que o papado fez dos depoimentos dados para o Processo de
Canonização de Santa Clara, a supervalorização dada à virtude da virgindade, como fica
explicito na Bula de Canonização da Santa (DUARTE, 2009, p. 168).
Isso nos mostra que as outras virtudes chamadas também no processo de
canonização de Clara como virtudes auxiliares da virgindade, por exemplo, sua

139
benignidade e outras virtudes foram postas com um valor inferior diante da virgindade,
que para Clara ultrapassava os limites do corpo.
O processo de canonização de Santa Clara foi formalizado com velocidade
maior em relação a outros processos de canonização feios pela Cúria Romana. Isso nos
leva a pensar que o papado teve uma forte vontade de oficializar a santidade de Clara,
pois, através dela poderia afirmar um novo modelo de santidade, para ser seguido pelos
fiéis, principalmente, as mulheres porque era preciso fixar a ideia de que uma vida
religiosa só poderia se construir a partir da virgindade.
Depois de toda essa leitura da Legenda de Santa Clara Virgem, podemos
concluir que esta foi uma poderosa arma para o reforço da ideia de que o sexo ―débil‖
precisaria de ajuda e por isso a necessidade de se criar um modelo feminino ―perfeito‖ a
ser seguido pelas mulheres e isso com certeza é realizado a partir das noções de
virtudes, virgindade, temor a Deus e castidade, trazidas por essa Legenda.

Referências Bibliográficas

BARTOLI, Marco. Clara de Assis. Petrópolis: Vozes, 1998.

BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70. 1983.

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Edições Afrontamento, p. 99-141, 1990.

CELANO, Tomás de. Legenda de Santa Clara virgem. Disponível em:


http://www.centrofranciscano.org.br/index.php?option=com_fontes&view=leitura&id=
951&parent_id=950 Acesso em 17 de Julho de 2014 às 16:00.

DUARTE, Teresinha Maria. As virtudes de Santa Clara no seu processo de


canonização. Caminhos. Goiânia, v.7, n.2, p. 157-173, jul./dez. 2009.

DUARTE, Teresinha Maria. Os séculos XI, XII e XIII ou a Idade Média Central.
Texto inédito. Catalão: UFG/CAC/Depto de História e Ciências Sociais, 2010.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva barbada. Ensaios de mitologia medieval. São


Paulo: EDUSP, 1996.

FROHLICH, Larissa Fabricio. O movimento franciscano e seu contexto histórico.


(2001). Disponível em
http://sites.unifra.br/Portals/35/Artigos/2001/edi%C3%A7%C3%A3o%20
especial/movimento.pdf. Arquivo capturado em 17 de julho de 2014.

140
LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
Bauru: EDUSC, 2006.

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da (Org.) Hagiografia e História: reflexões


sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central. Rio de Janeiro: HP
Comunicações, 2008.

VAUCHEZ, A. ―O Santo‖. In. LE GOFF, J. (Dir.). O homem medieval. Lisboa:


Presença, 1989. pp. 211-230.

141
FULLMETAL ALCHEMIST, O MANGÁ DE HIROMU ARAKAWA, SOB O
OLHAR DA HISTÓRIA

José Paulo da Silva Rodrigues1

Resumo: Os mangás, nome dados as histórias em quadrinhos japonesas, estão cada vez
mais presentes no mercado editorial brasileiro. Impressos em preto e branco e em papel
jornal, suas páginas são recheadas de diversos temas e assuntos, voltados a agradar
todas as faixas etárias. Para além do reconhecimento dos mangás como um
entretenimento barato, buscou se discutir nesse artigo, a possibilidade de analisá-los
como documentos históricos. Tendo em vista que, diversos autores recorrem a temas
históricos como pano de fundo para construir a trama de suas obras. Para uma análise
detalhada desta questão, elegemos como corpus documental Fullmetal Alchemist,
mangá de autoria de Hiromu Arakawa. Portanto, o objetivo desse artigo foi analisar em
que medida a Segunda Guerra Mundial estava representada em meio ao enredo do
mangá. Utilizando não apenas os volumes do mangá, editados no Brasil, mas também
os três volumes; o Fullmetal Alchemist – Guia Completo, o que possibilitou o acesso a
informações, curiosidades, e entrevistas até então inéditas. Assim, a partir das análises
da obra, juntamente com o cruzamento de conteúdos no guia completo da série, com
entrevista da autora, foi possível constatar que, embora, Arakawa, busque inspirações
em temas do passado, esse passado está sempre em diálogo com o contexto em que a
autora está inserida. Há sempre representações do mundo em meio ao fantasioso
universo de sua obra.

Palavras chaves: Mangás, Representação, História.

O presente artigo tem por objetivo, com base na história cultural, trazer
discussões acerca do conceito de representações e assim, traçar relações com a obra
Fullmetal Alchemist e os temas aos quais a autora buscou retratar.

Assim, inicialmente, faz-se necessário discorrer sobre a História cultural que,


segundo Chartier, tem por objetivo principal identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler.
Para resolver essa tarefa, conforme acrescenta o autor, há vários caminhos: o primeiro
diz respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do
mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real.

1
Graduado em Licenciatura em História, pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Email: Jpaulo.09@terra.com.br

142
Desse modo, as representações do mundo social são sempre determinadas pelos
interesses de grupos que as forjam.

Em relação ao conceito de representações, Chatier afirma que há a tensão entre


duas famílias de sentidos: por um lado, a representação como dando a ver uma coisa
ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é
representado; por outro, a representação como exibição de uma presença, como
apresentação pública de algo ou de alguém. Desse modo, acrescenta o autor:

No primeiro sentido, a representação é instrumento de uma


conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através de sua
substituição por uma <imagem> capaz de o reconstruir em memória e de o
figurar tal como ele é. Algumas dessas imagens são bem materiais e
semelhantes, como os bonecos de cera, de madeira ou de couro, apelidados
justamente de <representações>, que eram colocados por cima de féretro real
durante os funerais dos soberanos franceses e ingleses e que mostravam o que
já não era visível, isto é, a dignidade imortal perpetuada na pessoal mortal do
rei. Outras, porém, são pensadas num registro diferente: o da relação
simbólica que, para Furetière, consiste na <representação de um pouco de
moral através das imagens ou das propriedades das coisas naturais (...) O leão
é o símbolo do valor; a esfera, o da inconstância; o pelicano, o do amor
paternal>. (CHARTIER, 1988, p. 20)

A relação de representação é compreendida como uma correlação de uma


imagem presente e de um objeto ausente, um valendo-se do outro. Chatier (1988)
acrescenta ainda que há uma necessidade de se fazer a distinção entre representação e
representado, entre signo e significado, que é pervertida pelas formas de teatralização da
vida social do antigo regime.

Desse modo, o conceito de representação é visto por Chartier como um dos


conceitos mais importantes para compreender o funcionamento da sua sociedade ou
definir as operações intelectuais que lhes permitem apreender o mundo, pois,
possibilitam articular três modalidades da relação com o mundo social, conforme
acrescenta o autor:

Em primeiro lugar, o trabalho de classificações e de delimitação que produz


as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as
práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma
maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estratuto e
uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objectiva das graças às
quais uns <representantes> (instâncias colectivas ou pessoas singulares)
marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da
comunidade. (CHARTIER, 1988, p. 23)

143
As palavras de Chartier nos colocam inicialmente, diante de três questões
primordiais a serem encaradas ao tomarmos Fullmetal Alchemist como objeto desta
análise. Em primeiro lugar, temos que levar em consideração a intenção da autora, ou
seja, em quais temas Hiromu Arakawa baseou para construir o enredo de sua obra. Em
segundo lugar, deve-se estar atento à relação passado/presente. Assim, quais seriam as
inquietações do presente que levou a autora a reinterpretar o passado e colocá-lo como
pano de fundo para ações de seus personagens? Por último, não se deve perder de vista
o processo de recepção da obra a qual está intimamente ligada ao contexto que a
recepciona, assim a mesma está sempre aberta a múltiplas e variadas interpretações.

Desse modo, faz se necessário uma breve apresentação da autora de Fullmetal


Alchemist. Hiromu Arakawa é uma japonesa que nasceu no dia 8 de maio em 1973, na
ilha de Hokkaido, região norte do Japão e foi criada em uma fazenda de gado leiteiro de
sua família. Em entrevistas, a autora afirmou que a sua infância influenciou muito em
suas obras e na sua forma de pensar o mundo. Contou ainda que, desde muito nova, já
era fascinada por histórias em quadrinhos, sobretudo de mangás de estilo shounen. Suas
revistas de mangás favoritas eram a Shounen Jump e a Shounen Sunday. Dentre suas
coisas favoritas, Arakawa afirma que estão: comédia, China e monstros o que através de
uma observação mais profunda, pode ser encontrada em sua obra. Apesar de a autora ser
uma moça simples e criada no interior, a mesma já afirmou ser apaixonada por leitura e
estudos. Apesar da fama, a mangaká mostra-se bastante reservada. Grande parte do que
se sabe sobre a autora e de seus trabalhos vem por meio de suas poucas entrevistas e de
seus comentários extras escritos no final dos volumes, os chamados omakes.

Hagane no Renkinjutsushi, como é conhecido no Japão ou Fullmetal Alchemist,


é um mangá desenhado por Hiromu Arakawa serializado na revista mensal Shonen
Gangan desde 2001. O sucesso da obra foi tanto que logo recebeu uma versão em animê
para TV e, posteriormente, um longa-metragem. No entanto, a versão animada seguiu
caminho distinto da obra original, visto que a autora ainda não havia concluído sua
obra. Em 2009 o estúdio Bones, responsável pela primeira versão da série, decidiu
lançar outra versão a qual fosse mais próxima da história original. Assim, foi lançado
Fullmetal Alchemist Brotherhood. Todas as séries citadas acimas foram veiculadas aqui
no Brasil, o que demonstra o sucesso do título.

144
A trama da obra se passa em um mundo, que embora se mostre plenamente
diferente desse, possuem alguns traços que remetem a esse mundo. O principal
conhecimento desenvolvido por esses povos é a alquimia. A história se desenvolve em
torno de dois irmãos: Edward Elrick e Alphonse Elrick os quais após verem a morte da
mãe tentam por meio da alquimia, trazê-la de volta à vida. No entanto, a transmutação
humana é algo proibido e ambos pagam por esse ato. Alphonse perde seu corpo e Ed
perde sua perna. Edward troca seu braço para fixar a alma de Al em uma armadura,
utilizando-se da teoria da troca equivalente. Por essa razão, Edward possui uma perna e
um braço de metal e Alphonse é, literalmente, uma armadura vazia. A partir desse
acontecimento os irmãos iniciam uma busca pela pedra filosofal com o intuito de
recuperarem seus corpos através dela.

O tema central da obra gira em torno da alquimia, a qual se apresenta como um


conhecimento científico. Ao longo da série, essa questão filosófica da busca pelo ser
perfeito fica evidente com a aparição de novos personagens os quais querem a todo
custo obter esse poder. Mas, antes de chegar a esse ponto, torna-se imprescindível
adentrarmos ao universo da alquimia em Fullmetal Alchemist.

A alquimia é uma técnica que altera a composição e o formato de uma


substância para criar outra. O fundamento dela é a ‗troca equivalente‘. A
matéria geradora e a substância resultante da transmutação precisam manter a
mesma massa (lei de conservação de massa) e não é possível criar ferro a
partir da água pura (lei dos princípios naturais). (ARAKAWA, 2012, p. 20)

Assim, não se pode criar algo do nada e nem tão pouco desrespeitar a lei
fundamental da ―troca equivalente‖, ou seja, é preciso dar algo do mesmo valor para
obter algo em troca. Além disso, para a realização de uma transmutação alquímica é
preciso utilizar um círculo no qual a matéria prima é colocada no centro para ser
transmutada. Edward Elric e seu irmão Alphonse acreditavam que por meio desse
procedimento poderiam trazer sua falecida mãe novamente a vida. No entanto, eles
quebraram o maior tabu da alquimia: o de que não se pode realizar uma transmutação
humana, visto que não há algo de igual valor a se pagar pela alma de alguém. Como não
obtiveram êxito na experiência, os dois decidem procurar pela pedra filosofal, não para
tentar trazer sua mãe novamente à vida, mas sim para tentar recuperarem seus corpos.

Para superar a falta de uma perna e de um braço, Ed utiliza uma prótese


conhecida como automail. ―Automail é um nome generalizado das próteses feitas de

145
aços. É usado principalmente no lugar de braços e pernas. Depois de conectá-los aos
terminais nervosos, é possível movê-lo livremente de acordo com a vontade do
usuário.‖ (ARAKAWA, 2012, p. 45). Durante a jornada da dupla, aparecem vários
personagens que por motivos variados necessitaram implantar um automail.

A ideia dos automails não veio do nada. A autora inspirou-se em cenas diárias
do seu cotidiano, de pessoas que necessitavam utilizar próteses para superar a ausência
de um membro. Arakawa então decidiu colocar em sua obra, não somente as próteses
mecânicas, mas também o tema das pessoas que não se abatem pela falta de um membro
do corpo e que conseguem continuar suas lutas diárias com o auxílio de próteses.
Pessoas que mesmo com a perda conseguem enxergar que ganharam coisas em trocas.
―Quando eu pensava em acrescentar algo além da alquimia ao protagonista da história,
eu estava em um de meus empregos temporários de controle de tráfego diante de um
centro de reabilitação e vi uma pessoa retirar a prótese e andar com ela amarrada e
pendurada na cintura. Foi daí que tive a ideia. Ver uma prótese presa ao quadril deve ser
uma cena marcante.‖ (ARAKAWA, 2012, p. 165)

Por imprudência, os irmãos Elrics perderam a forma original de seus corpos,


mas compreendem que deviam continuar lutando diariamente para conseguir se
superarem. Assim, iniciam a busca pela famosa Pedra Filosofal a qual acreditavam que
poderiam trazer seus corpos de volta sem a necessidade de obedecer à lei da ―troca
equivalente‖ e a utilização do círculo de transmutação.

Após ficar sabendo da existência de dois jovens irmãos que detiam o


conhecimento da alquimia, o coronel Roy Mustang, conhecido como alquimista das
chamas, convida-os para serem alquimistas federais. Edward resolve se tornar parte do
exército após saber que esse cargo daria total liberdade para as suas pesquisas e, com a
proteção do cel. Mustang e equipe, os dois irmãos partem na jornada em busca da pedra
filosofal com o intuito de recuperarem seus corpos.

Grande parte da história de Fullmetal Alchemist, tanto no mangá quanto na


adaptação para o anime, se desenrola em Amestri. Um país que é marcado por ser
tecnologicamente e cientificamente avançado. Há uma imensa área deserta que o separa
do país oriental Xing. Curiosamente, Amestri tem formato de um círculo e ao centro se

146
localiza a Cidade Central que além de ser a sede do governo, conta ainda com a Corte
Marcial, laboratórios de alquimia e a biblioteca nacional.

Embora seja um país de uma riqueza cultural abundante, o mesmo não se


desenvolveu pacificamente, visto que o poder está na mão do exército. A priori, Amestri
se caracterizava por ser um país fraco e pequeno, até o poder ser tomado por Bradley
que para ampliar suas fronteiras, iniciou a invasão de países vizinhos. Um fato que nos
chama atenção diz respeito às características físicas das pessoas que habitam o país, ou
seja, que possuem traços europeus.

Outro país que tem destaque na trama é Ishibal. Este país, diferente de Amestri,
é habitado por pessoas de pele morena clara, olhos vermelhos e cabelos cinza e são
devotas da religião local. ―A maioria dos amestrinos é da raça branca, na sequência têm
os negros e os da raça amarela, mas os ishbalianos não se enquadram em nenhum deles,
possuindo uma pele morena‖. (ARAKAWA, 2012, p. 90)

A religião de Ishival considera a alquimia um pecado, com isso uma guerra


surgiu entre os dois países. Amestri para ganhar a guerra, recrutou os melhores
alquimistas existentes fornecendo-lhes a patente de alquimistas federais do exército.
Detentores de diferentes poderes, sobretudo poderes sobre-humanos, os alquimistas
destruíram Ishbal em poucos instantes.

Além desses eventos referentes à invasão e extermínio dos habitantes de Ishibal,


existem diversos acontecimentos que não seguem uma cronologia linear na trama do
mangá. Assim, tais informações vão sendo descobertas pelos dois jovens viajantes no
decorrer de suas jornadas. O universo de Fullmetal Alchemist é cheio de revelações do
passado e reviravoltas.

Assim por trás desse extermínio, que aparentemente seu deu por conflitos de
interesses e divergências religiosas, existe um segredo muito maior. É nesse ponto que a
história começa a apontar diversos segredos existentes por trás da alquimia e da pedra
filosofal e o verdadeiro significado da invasão e extermínio de Ishbal.

Para entender esses segredos é preciso voltar-se ao passado, nas proximidades de


Ishbal onde existem ruínas de um país chamado Xerxes. Este país teria sido destruído
em apenas uma noite. Regido por um sistema monárquico no qual o rei vivia em um

147
templo e dominava a política e o povo de forma forte, mas por realizar um bom
governo, tinha a confiança de seus súditos. Com o passar do tempo o rei envelheceu, e
decidiu buscar a imortalidade. Como o conhecimento sobre alquimia no país já havia
obtido bons resultados a ponto de produzir uma forma de vida que vivia em um frasco
chamado de ―homúnculo o homenzinho do frasco‖, o rei deixou- se levar pela ambição
e aceitou a proposta do homúnculo de construir um enorme círculo em volta de Xerxes
como parte do procedimento para se chegar à imortalidade, a qual seria concedida ao rei
após o sacrifício da vida de todos os habitantes do país.

Porém, o ―homenzinho do frasco‖ havia arquitetado outro plano. Após fazer


amizade com um escravo deu um nome deu a ele e passou a chama-lo de Von
Hohenheim. Então, o homúnculo enganando o rei, criou a pedra filosofal a partir do
sacrifício de todas as vidas dos habitantes de Xerxes, exceto de Hohenheim. Assim, os
dois sobreviventes: o homúnculo e Hohenheim tiveram suas almas fundidas à pedra
filosofal conquistando um corpo imortal.

A ambição do antigo homúnculo não parou por aí. Após esse trágico episódio,
ele passou a se chamar ―Pai‖. Sua ambição passou a ser a de se tornar um ser perfeito.
Para tanto, com o poder da pedra filosofal em seu corpo, criou os homúnculos que eram
seres humanos artificiais com surpreendentes poderes. Ao todo eram sete criaturas e
cada uma tinha seu nome derivado de um pecado capital. Os sete pecados aqui
representam o desprendimento do ―Pai‖, dos sentimentos que poderiam atrapalhá-lo a se
tornar um ser perfeito. Assim esses sentimentos foram materializados para realizar suas
vontades arquitetando seu plano.

Voltando ao caso de Ishbal, todo o plano de invasão e extermínio foi arquitetado


pelo próprio ―Pai‖. O homúnculo ―Inveja‖, que tem o poder de mudar sua aparência, se
fez passar por um oficial do exército e assassinou uma criança ishbaliana, dando início a
uma guerra civil. Somente após sete anos de intensa guerra que King Bradley decide
convocar o exército e por fim ao conflito. Bradley, na verdade é o homúnculo ―Ira‖, que
se diferencia dos demais por ter sido criado a partir da realização de inúmeros
experimentos nos quais tentavam fixar a pedra filosofal ao corpo de humanos, sendo o
único candidato a suportar o poder da pedra.

148
Durante o extermínio de Ishbal, novamente o poder da pedra filosofal foi
colocado à mostra que fora criada pelo exército por meio do sacrificio de vários
prisioneiros. Foi a partir deste poder que se conseguiu aniquilar quase toda os
ishbalianos. No entanto, o verdadeiro objetivo era promover o ódio e deixar marcado de
sangue o país. Antes mesmo de Bradley chegar ao poder, os homúnculos já realizavam
experimentos humanos que recrutavam alquimistas que se deixavam levar pelo poder e
esqueciam dos aspectos éticos e da utilização do conhecimento alquimico para o bem da
humanidade. Mas quando estes falhavam, se tornavam mátéria prima para os
experimentos, evitando assim, o possível vazamento de informações.

Como foi descrito anteriormente, para se realizar uma transmutação é necessário


a utilização de um ―círculo‖. Assim como foi criado um círculo em Xerxes, em Amestri,
que já possuía o formato circular, foi cavado um túnel subterrâneo ligando os pontos
onde houve derramamento de sangue nos países vizinhos. Com esse círculo, o ―Pai‖
pretendia novamente promover o sacrifício de inocentes para finalmente, se tornar um
ser perfeito, visto que a pedra filosofal que ele criou em Xerxes, há 300 anos com a vida
de mais de um milhão de pessoas, não se encontrava perfeita, sendo consumida
conforme fosse utilizada.

Para realizar tal feito, o ―Pai‖ aguarda o ―dia prometido‖ no qual a terra e a lua
se alinhariam formando um eclipse. Assim ele pretendia conquistar a perfeição
absorvendo o poder de ―Deus‖ para ele. Para por fim ao plano do ―Pai‖, os irmãos Elrics
se unem ao exército que se rebelaria e arquitetam um plano juntamente com Hohenheim
e vários outros personagens encontrados ao longo da série e partem para a luta final.

Como se observou, o enredo de Fullmetal Alchemist é complexo e aborda


diversos temas que não foram mera obra do acaso, muito pelo contrário, a autora
pesquisou vários assuntos que lhes serviram como pano de fundo para as ações de seus
personagens.

Apesar de Arakawa criar um novo mundo em sua trama, ou seja, um universo


ficcional pode-se observar que há várias semelhanças com alguns lugares reais. Desse
modo, o mundo de Fullmetal Alchemist se passa no período da Revolução industrial
européia do século XIX, considerado o século das ciências. Esse fato fica evidente

149
devido às características que remetem a esse período e se confirma com a afirmação da
própria autora:

Outro tema que chama muito atenção nesse mangá é a guerra entre os dois
países que acontece antes da trama linear da obra, ou seja, antes da jornada dos irmãos
Elrics. Este se torna o tema chave para a conclusão da série, sendo dedicado a ele um
volume inteiro da versão japonesa (dois volumes da edição brasileira). O que se vê
nesse volume, são os combatentes que estiveram no campo de batalha lamentando pelo
sangue derramado de inocentes, pessoas que foram manipuladas pelo exército e tiraram
a vida de milhares. Personagens estes que carregam o trauma deixado por uma guerra
injusta.

Há uma cena impactante em que o alquimista federal, major Armstrong pega


uma criança ishbaliana morta nos braços e questiona o porquê de continuar com aquela
guerra. Essa cena revela muito da intenção da autora, que ao buscar referências sobre
guerras não se limitou apenas à livros e vídeos sobre o assunto, mas conversou
diretamente com veteranos que estiveram em batalha durante a Segunda Guerra
Mundial, assim ela revela que:

Antes de desenhar este número, eu conversei com diversos veteranos que


conheceram a frente de batalha durante a Segunda Guerra Mundial. As
histórias que eles me contaram tinham muito mais impacto e clareza do
qualquer livro ou vídeo que eu tenha lido ou visto. Mas, no meio de todas as
declarações, aquela que me marcou mais foi quando um deles abaixou os
olhos em direção à mesa e murmurou: ‗Essas coisas, como filmes de guerra,
eu nunca assisto‘. (ARAKAWA, 2008, p. 86)

Assim, fica evidente a relação entre a trama de Fullmetal Alchemist e a Segunda


Guerra Mundial na qual diversas vidas foram tiradas em função da ambição humana de
conquistar poder a todo e qualquer custo, julgando e dizimando povos e culturas.
Percebe-se a intenção da Arakawa em humanizar seus personagens que por imposição
de um governo manipulador foram levados ao campo de batalha, mas que diante das
atrocidades promovidas pelo poder da alquimia foram capazes de enxergar o valor da
vida humana e questionar o verdadeiro papel de um líder e do próprio exército.

Em outra cena de forte impacto e comoção, o líder Ishbaliano Rogue Lowe, ao


perceber que não haveria nenhuma chance contra o poder ofensivo do exército
amestrino, decide se render e para poupar a vida de seu povo dirige pessoalmente até
King Bradley, pedindo o cessar fogo e oferecendo sua vida em troca da preservação da

150
vida dos ishbalianos restantes. No entanto, o que ele recebe em troca é um não e a
afirmação de que a vida de um homem não vale mais do que uma vida, independente do
que ele represente.

O universo de Fullmetal Alchemist é regido pela alquimia, no entanto a autora


não se embasou na alquimia apenas como uma ciência que busca a transformação de
metais em ouro. Suas palavras deixam claro sua intenção de trazer para sua obra, o lado
cientifico e filosófico da alquimia.

Nesse sentido, a Alquimia vem carregada de conotações filosóficas que, em


alguns casos, faz com que esta acabe por ser reduzida ao status de ocultismo ou mera
feitiçaria. Ainda que a autora acrescente algo de magia à forma de se enxergar a
alquimia, ela busca sempre bases sólidas dessa ciência para criar a sua obra, fazendo
questão de apontar aos seus leitores, parte de seu conhecimento sobre o
desenvolvimento da alquimia ao longo da história humana, segundo ela:

... a alquimia foi além da sabedoria prática e evoluiu, se tornando um estudo


em busca da verdade. O mais famoso e mais antigo documento alquímico é a
‗Tábua de Esmeralda‘, escrita por volta do século II~IV por Hermes
Trismegisto. Na Tábua de Esmeralda há escrito o mais importante conceito
de alquimia: ‗tudo é um‘. (ARAKAWA, 2012, p. 139)

Esse conceito apontado pela autora como mais importante dentro da alquimia,
foi explorado por ela no enredo de Fullmetal Alchemist no momento em que os irmãos
Elrics passam por um teste proposto por sua futura mestra e que os solta em uma
floresta e pede para que eles tragam o significado da frase: ―Um é tudo e tudo é um‖.
Assim, eles chegam à conclusão de cada ser vivo é um, mas fazem parte de um todo
maior, ou seja, ninguém está sozinho no mundo, sendo responsáveis por suas ações
diárias na luta pela sobrevivência e construção de um lugar melhor.

Para construir esse pensamento e traduzi-lo para o mangá, a autora não se


limitou apenas nas concepções do pensamento alquímico, mas ampliou suas referências,
traçando assim, uma aproximação entre a Cabala Judaica e a alquimia. Para tanto,
Arakawa aponta que:

Na alquimia, acreditava-se que antes do mundo se subdvidir em ‗tudo‘ que


existe, ele era feito de alguma matéria primordial. E isso era a tal ‗primeira
matéria‘. O filósofo grego Aristóteles dizia que a primeira matéria gerou os
quatro principais elementos: fogo, ar, água e terra; e que todo o resto foi

151
criado adicionando um ‗espírito‘ a esses elementos, ou à combinação deles.
(ARAKAWA, 2012, p. 140)

A Cabala é mencionada pela autora como um ensinamento secreto do judaísmo


que deram origem ao cristianismo. Nela está escrito, em forma de códigos, a sabedoria
de Deus, sendo necessário decifrá-los para se chegar a tal conhecimento.

Com isso, no entendimento da autora, a alquimia não deve ser compreendida


apenas como um conhecimento científico voltado para a transformação de matérias.
Mas é preciso que o alquimista purifique sua alma com o conhecimento. Isso nos ajuda
a compreender melhor o enredo de sua obra e a mensagem a qual ela deseja transmitir
para seus leitores. Ainda, em suas palavras, fica evidente que mesmo buscando
referências nos conceitos alquímicos e cabalísticos do passado, a autora quer que seus
leitores compreendam que esses conceitos precisam fazer sentido no presente, melhor
dizendo, no Japão. Assim, para facilitar a explicação ela relaciona a purificação da alma
com as artes japonesas, apontando que as mesmas não têm como isso um objetivo final.

Em suma, Fullmetal Alchemist, embora seja uma obra de ficção, percebe-se que
a autora se embasou em vários temas e assuntos e, como ela própria disse, deu seu toque
especial e criou o mangá.

Sob o olhar do historiador, o que não se pode perder de vista ao analisar o


enredo desta obra, é a relação passado/presente, visto que ambos estão interconectados.
Com isso, os temas do passado estão vivos no presente.

Sendo assim, ao relacionar a alquimia do passado com as ciências modernas fica


evidente a crítica que a autora faz àquilo que os cientistas deixaram de lado visando
apenas o enriquecimento a todo e qualquer custo. Neste sentido, ao buscar o cenário da
Revolução Industrial como pano de fundo do desenrolar do enredo de sua obra, a autora
não fala somente desse passado, mas sim da sua relação com o presente. Aquilo que a
Revolução Industrial trouxe de inovações tecnológicas deveriam servir ao bem da
humanidade assim os automails que são as próteses usadas pelos personagens da obra e
que foram inspirados em cenas do cotidiano da autora. Cenas de pessoas comuns que
por uma fatalidade necessitam utilizar uma prótese mecânica para continuar suas lutas
diárias. É isso que a autora acredita: os conhecimentos científicos e tecnológicos sendo
utilizados para o bem da humanidade.

152
Ampliando essa discussão, o massacre de Ishbal representa a forma como o
conhecimento científico foi utilizado para construir armas de destruição em massa,
durante o século XX, principalmente no caso da Segunda Guerra Mundial em que a
Alemanha Nazista exterminou milhares de judeus por serem julgados como inferiores
em relação aos alemães. A apropriação, por parte do exército de Amestri do
conhecimento intelectual dos alquimistas, revela bem esse caráter de como o
conhecimento científico, que a autora acredita que deveria ser utilizado para se chegar
mais próximo da perfeição da humanidade, acabou por ser utilizado para por fim as
vidas humanas.

Esse diálogo entre passado e presente é tão importante na obra, principalmente


no que diz respeito ao tema da Segunda Guerra Mundial, que a autora não se limitou a
resgatá-lo em livros e vídeos indo ouvir daqueles que estiveram no campo de batalha
suas experiências, haja vista, que o Japão carrega as marcas desse passado até hoje em
sua memória. O país é a prova viva do que acontece quando a ciência não está a serviço
dos interesses da humanidade, mas sim aos anseios dos líderes políticos que almejavam
permanecerem no poder. Resgatar esse passado, ouvindo os que lá estiveram, é
demonstrar para os leitores que esse passado está vivo e ele deixa marcas visíveis até
hoje.

Referências Bibliográficas

ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – Guia Completo - vol. 1. São Paulo: JBC, 2012.

ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – Guia Completo - vol. 2. São Paulo: JBC, 2012.

ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – Guia Completo - vol. 3. São Paulo: JBC, 2012.

ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – vol. 29. São Paulo: JBC, 2012.

ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – vol. 30. São Paulo: JBC, 2012.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2º Ed. Lisboa:


DIFEL, 1988.

153
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto
Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002.

154
FONTES PARA PATRIMÔNIO ALIMENTAR DA CULTURA POLONESA: CASO
COLÔNIA MURICI (1878-1960)

Kauana Selmo Peruscello 1

RESUMO

A história da alimentação abrange diversos aspectos da cultura da humanidade. A presente


pesquisa: Fontes para patrimônio alimentar da cultura polonesa: caso colônia Murici
(1878-1960) utiliza como metodologia a oralidade e cadernos de receitas como fonte
primária para o estudo da cultura alimentícia dos descendentes dos primeiros imigrantes
poloneses da colônia Murici em São José dos Pinhais, Paraná. O recorte de tempo atribuído
é contemplado da suposta data de criação da Colônia Murici, até a data de nascimento dos
descendentes, os quais apresentam conhecimento e preservação da cultura. Ao salientar as
tradições alimentícias, percebem-se a gama de informações a ela atribuídas, como hábitos
religiosos, a agricultura e os laços familiares. Para a construção dessa identidade cultural é
necessário o fortalecimento das tradições, hábitos e comportamentos sociais desta
comunidade, afim da preservação de uma cultura pautada nas memórias e tradições para a
permanência da identidade cultural dos colonos. Este trabalho foi motivado com a proposta
da patrimonialização da cultura polonesa. Com isso, é muito importante a manutenção das
tradições alimentícias por terem apenas permanecido nas lembranças das antigas
moradoras e, como afirmado pelas mesmas, pelo desinteresse da população mais jovem em
preservar estes pratos, abre-se precedente para as tradições caírem no esquecimento com o
passar das próximas gerações.

Palavras-chave: Alimentação. Tradição. Memória. Cultura.

Introdução
A alimentação além de uma necessidade fisiológica é um ato de demonstração
cultural que norteia particularidades para a formação da identidade de um povo. Festas,
tradições e a comensalidade, marca importante da construção da história da alimentação.

A comensalidade é a prática de comer junto, partilhando (mesmo que


desigualmente) a comida, sua origem é tão antiga quanto à espécie humana, pois
até mesmo espécies animais a praticam. (...) A comensalidade ajuda a organizar
as regras da identidade e da hierarquia social (...). (CARNEIRO, 2005, p. 2)

1
Graduada em Licenciatura em História pela PUC-PR. E-mail: kau_sp@hotmail.com

155
Como proposta de estudo da história da alimentação, essa pesquisa está pautada nas
tradições alimentícias preservadas pelos imigrantes poloneses na Colônia Murici na cidade
de São José dos Pinhais, Paraná. Uma das formas da perpetuação destes hábitos está
vincula à memória, pois não há grande quantidade de relatos escritos que adentram o
universo da alimentação. Desta forma, utilizou-se da oralidade para a formulação de
fontes. Esta oralidade que transmitida entre as gerações é acumuladora de saberes e
valores. A sociedade dá continuidade ao legado deixado pelos antepassados, garantindo a
herança cultural da humanidade, contando com diferentes experiências. Com isso, foi
necessária a utilização de entrevistas de moradoras - que de uma forma ou de outra - estão
ligadas aos alimentos, a preparação e comercialização, as quais também são responsáveis
pela perpetuação destas tradições.
Além de fontes orais, a consulta em cadernos de receitas, objeto recente utilizado
ao estudo de história, também traz a tona informações sobre costumes e formação da
identidade de determinado grupo social.

A alimentação como estudo de história e sua preservação como patrimônio histórico.

Ao salientar a alimentação como estudo histórico, percebe-se que ao longo da


história, essa ação pertencente à rotina da vida cotidiana, vai além do fato de alimentar-se,
como forma biológica, mas ressalta a idéia de que alimentar-se, estar à mesa e preparar os
alimentos, engloba muito mais que apenas suprimir uma necessidade fisiológica, mas um
ato social. Ao sentar à mesa, as pessoas estão reunidas em volta do alimento e neste
momento há a interação social, a troca de informações, as relações interpessoais, a partilha
e a comensalidade. A partir deste pressuposto, o estudo da história da alimentação entra em
cena como foco das transformações históricas no processo civilizador da sociedade, como
pontuado por Norbert Elias, ―(...) devemos remontar à história como objeto de encontrar a
situação da qual ela é resultante.‖ (ELIAS, 1974, p.72)
O questionamento sobre o que é história, como se faz o estudo de história e o que
engloba o mesmo, fez vários estudiosos colocarem em pauta estas novas abordagens
históricas, capazes de trazer a alimentação como ponto de estudo.
A partir do século XX, a historiografia passou por modificações, novas formas de
ver e escrever a história. No ano de 1929, surgiu na França, um grupo de estudiosos que
publicaram uma revista intitulada Annales d‘Histoire Économique et Sociale, fundada por

156
Lucien Febre e Marc Bloch, que tinham como proposta a interdisciplinaridade, com novos
objetivos e novas problemáticas. Segudo Reis: Para os Annales, o homem não é só sujeito,
consciente, livre, potente criador da história; ele é também, e, em maior medida, resultado,
objeto, feito pela história. (...). (REIS, 2000, p. 21)
Na segunda geração ―de Annales, Fernand Braudel desenvolve o conceito da
cultura material, que abrangeu aspectos imediatos da sobrevivência humana: a comida, a
habitação e o vestuário. Neste contexto, a história da alimentação passa a ser foco de
estudo para a construção de identidade de uma sociedade. Desta forma, a alimentação e
suas correlações ganharam destaque em obras de autores renomados.
O alimento presente nas atitudes de comportamento humano esmiúça formas e
ações em diversos âmbitos que o alimento é incluso. ―A alimentação é um fenômeno cujo
estado foi estabelecido nos últimos séculos a partir de quatro diferentes enfoques: o
biológico, o econômico, o social e o cultural. (...)‖ (CARNEIRO, 2003, p. 3) Partindo do
pressuposto que a alimentação é uma forma de expressar a cultura de um povo, por
exemplo, a caça como forma de manifestação das civilizações antigas (expressada por
pinturas rupestres), a formação dos banquetes no período medieval com influências sócio-
econômicas, passando pelos alimentos industrializados e enlatados que facilitavam a
alimentação de soldados nos períodos de guerras mundiais, até os fast-foods, tão presentes
no cotidiano do século XXI, mesmo assim, o estudo da história da alimentação ainda é
pouco pesquisado e valorizado. Ao considerar estas influências, percebe-se a ligação do
alimento à história e à memória. Esta memória que perpetua por meio de gerações, conta a
história e constrói a identidade de uma nação, etnia ou grupo social.

Considerando que a alimentação se situa no coração das nossas preocupações,


como um gênero de fronteira, um definidor da nacionalidade, como uma
integração federativa de caráter interdisciplinar, constata-se que daí emerge os
marcos que permitem fazer através da comida uma reflexão sobre o próprio
significado e evolução da sociedade. (SANTOS, 1995,p.1)

Os fatos que envolvem a historiografia da alimentação vão além do alimentar-se,


pois: a produção, o preparo, o armazenamento, as receitas, a etiqueta à mesa, a família
reunida, enfim, são hábitos e costumes que fixam um ―modo de ser‖ de um grupo de
pessoas. Sendo assim, há a necessidade da transmissão e perpetuação destes hábitos, sendo
preciso envolver políticas públicas de proteção a esses costumes para haver a preservação

157
do que envolve a alimentação, para permanecer na história e na memória, possibilitando a
inserção na patrimonialização 2 de uma cultura.
Sendo assim, a construção da identidade cultural da nação brasileira é influenciada
por diversas inserções na sociedade que contemplam o patrimônio com: as tradições,
culturas orais, manifestações artísticas, religiosas, hábitos alimentares e festividades
tradicionais.
Conquanto, percebe-se que as memórias dos grupos sociais abrangem questões
relacionadas ao passado estão presentes no cotidiano do século XXI na busca pelas raízes
étnicas culturais, desmemoriadas e com rupturas interferindo no processo de construção da
identidade do povo brasileiro.
Coadunado com a patrimonialização, as tradições e as memórias são responsáveis
pela manutenção desta preservação, ou seja, a transmissão de costumes, comportamentos,
lembranças, rumores, crenças, lendas, alimentos e preparo de alimentos, enfim, uma gama
de fatos e ações que formam a cultura de uma comunidade, relacionado a cedência destes
aspectos por intermédio da hereditariedade.
Isto posto, a tradição inserida em uma sociedade é transmitida através dos tempos e
influencia diretamente a construção de uma identidade. Contar a história de um povo, de
uma comunidade, remontar o passado baseado em suas memórias remete às tradições orais,
que permanecem anos em manifestações culturais de uma civilização, ou seja, uma
memória pronunciada.

Da formação da colônia Murici à preservação das tradições polonesas

Ao considerar a cultura de um povo, é indispensável reconhecer questões relativas à


alimentação como um patrimônio histórico e uma tradição vinculada à memória. Estas
tradições podem ser passadas de diversas formas e uma delas é por intermédio da
oralidade. Com a história oral, vinculada a uma tradição, é permitida a permanência desta

2
A patrimonialização é tida como um mecanismo, uma forma de afirmação e legitimação da construção da
identidade de um determinado grupo social, atribuído a valores, significados, memórias e tradições. ―A
patrimonialização ganha força após as duas Grandes Guerras Mundiais, pelo desejo das nações de preservar
os restos de um passado materializado em seus territórios e, ainda, não devastados. O ato de consagração
patrimonial é orquestrado, assim, pelas potências estrangeiras, onde, a partir das catástrofes mundiais (duas
Grandes Guerras), temos o marco simbólico de uma nova ordem de transmissão cultural‖. (COSTA, 2010, p.
136)

158
memória por séculos e se mantém assim presente no cotidiano dos descendentes dos
imigrantes poloneses que residem na região de São José dos Pinhais.
A região de Curitiba cresceu economicamente no final do século XIX,
principalmente com a Erva-mate. Este mercado espalhou-se para outras regiões devido à
proximidade com o Porto de Paranaguá e também com a estrada da Graciosa 3. Como
consequência deste comércio, houve a expansão territorial e aos poucos a região da atual
cidade de São José dos Pinhais revigorou-se. Neste período havia carroças4 todos os dias
transitando entre os dois polos.
Com a produção do mate e a política de imigração e colonização, o governo da
Província, após perceber a experiência bem sucedida nas colônias polonesas em Curitiba,
adquiriu áreas para a formação de quatro colônias. Estas eram: Colônia Zacarias, Inspetor
Carvalho, Coronel Accioly e Murici. Formadas a partir da terceira etapa da colonização
polonesa no Paraná. Segundo Romário Martins, ―Murici, a 6 quilômetros da sede do
Município, foi criada em 1878 e já no ano seguinte emancipada, com uma população de
357 polacos galicianos e silesianos, (...) Prosperou rapidamente‖. (MARTINS, 1995,
p.360).
Colnagui, Magalhães, Magalhães Filho (1992) afirmam que a erva-mate foi sem
dúvida a principal razão para a implantação dessas colônias em São José dos Pinhais.
Dentro dessas colônias, destaca-se a Colônia Murici, segundo documentos oficiais,
fundou-se em 1878.

Para criá-la, o Governo adquiriu as terras do então proprietário Veríssimo


Pereira. A data exata da fundação da colônia foi muito discutida, isto devido a
diferentes informações existentes da época. Segundo a maioria dos documentos
oficiais, o mais provável teria sido abril de 1878. (MAROCHI, 2013, p. 58)

3
Sobre a história da estrada da Graciosa ler: FERRARINI, Sebastião; GERUM, Gotardo Ângelo;
ZANDONÁ, Norma da Luz Ferrarini. História de Quatro Barras. Curitiba: Editora Universitária
Champagnat, 1987; MOREIRA, Júlio Estrela. Caminhos das Comarcas de Curitiba e Paranaguá: até a
emancipação da província do Paraná. Curitiba: Imprensa oficial, 1975.
4
Vale ressaltar, que muitas das carroças foram implantadas conforme o modelo dos poloneses. A carroça
representou um ciclo intermediário entre o transporte em lombo de burro e o transporte ferroviário e
rodoviário. Estas carroças polonesas auxiliaram no percurso da erva mate. ―Sua aceitação e difusão no sul do
Brasil, excluindo-se os estados meridionais, notadamente o Paraná, foi de uma maneira abrupta lançado na
era do muar, do transporte em lombo de burro (...) graças á carroça, a evolução dos transportes foi de certa
forma parecida com a ocorrida no continente europeu (...).‖ (WACHOWISKI, 1981, p. 115)

159
Essa Colônia foi dividida em 73 lotes, no primeiro momento em sua maioria com
imigrantes poloneses e italianos, mas esses com o passar dos anos foram se retirando para
outras colônias e a Murici ficou sendo um reduto polonês.
Antes mesmo de habitarem as terras brasileiras, os poloneses enfrentaram
dificuldades na Europa, o que em muitos momentos os levaram a migrar de seu país de
origem -a Polônia - para outros. Um dos fatores relevantes para essas migrações foram
principalmente os confrontos que acarretaram na perda de parte de seu território para a
Rússia, Império Austro-Húngaro, e para a Prússia, episódio que fomentou no
empobrecimento deste povo. Além de Revolução Industrial, que os levou a opressões5 e
inúmeros confrontos na Europa por disputas territoriais resultantes do domínio
imperialista.6Com a dificuldade encontrada na Polônia e com políticas públicas de
incentivo a imigração no Brasil, esse povo viu uma oportunidade de crescimento e um
local para recomeçarem suas vidas. As políticas públicas de incentivo ao imigrante foram
decorrentes de várias medidas e transformações que ocorreram no cenário do país no final
do século XIX.
A escolha por imigrantes europeus estava vinculada a políticas de incentivo a não
miscigenação, ou seja, tornar o Brasil um país de raça branca e não com misturas raciais
com negros. Assim, o incentivo a imigrantes europeus casou com a política de
branqueamento7, acelerando o processo de imigração. As elites com estratégias pautadas
no incentivo e promessas aos emigrantes europeus pretendiam modificar as influencias
étnicas no Brasil. Os primeiros imigrantes poloneses no Paraná tiveram dificuldades, pois
as promessas que lhe foram dadas antes de embarcarem rumo ao Brasil não se
concretizaram. ―Ao chegarem à ―terra prometida‖ tiveram uma desilusão. O primitivismo,
em que se encontraram, chocou até aquelas simples e rudes criaturas. (...) As matas eram

5
―Ao final do século XVIII, as autocráticas Rússia, Prússia e Áustria não podiam tolerar a polônia liberal em
suas fronteiras e se uniram para exterminá-la. Em meados do século XX, a Alemanha nazista e a Rússia
comunista olharam desconfiadas para o surpreendente progresso de uma Polônia livre e manobraram para
concluir um novo desmembramento.‖ (MICHENER, James. Polônia. Rio de Janeiro: Editora Record, 1983,
p. 432) Sugestão de leitura sobre principais aspectos da Polônia e também HOBSBAWM, E. J. A era das
revoluções: 1789-1848. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
6
Política de expansão e dominação de uma nação sobre outras.
7
O ideal de branqueamento foi uma ideologia que surgiu no processo pós-abolição, com pretextos racistas e
que foi disseminado por pensadores, político, escritores. Esta teoria consistia em fazer crer a toda a sociedade
que o problema étnico-racial do Brasil poderia ser solucionado com a imigração européia. Sendo assim, o
sangre ―branco‖ purificaria e gradativamente o povo brasileiro se tornaria homogêneo e civilizado. ―O
branqueamento foi uma pressão cultural exercida por uma hegemonia branca, para que o negro negasse a si
mesmo, no corpo e na mente, como uma espécie de situação para se integrar na nova ordem social.‖
(BENTO; CARONE, 2002, p. 98).

160
densos pinheiros. Para obter um pedaço de terra para plantações, era necessário fazer
derrubadas e queimadas. (TURBANSKI, 1978, p18; 21)
Além do processo para deixar o solo propício demandar tempo, também foi
necessária a construção de casas e a ampliação das mesmas. Lentamente a produção
agrícola começou a dar frutos. Um dos fatores importantes para esta produção é o fato de
os poloneses possuírem técnicas de plantio diferenciadas e assim transformarem as matas
em terras produtivas. Não tiveram orientações sobre a forma de cultivo nas terras
paranaenses, mas conseguiram conquistar o reconhecimento por estas modificações da
mata para a cultura do plantio. ―Os brasileiros reconheciam perfeitamente os méritos dos
poloneses na agricultura. Também reconheciam que os imigrantes poloneses eram os
melhores para promoverem o desmatamento das selvas para fins agrícolas.‖
(WACHOWICZ, 1981, p. 117). Foram reconhecidos pela introdução de instrumentos
como o arado, a carroça, técnicas de semeadura, que fizeram das terras paranaenses seus
lares e ampliaram a produção de subsistência no Brasil.
Mesmo contando com a persistência e o conhecimento de técnicas de produção
agrícola, foi necessário buscar novas sementes para os plantios, pois havia falta dos
alimentos que estavam acostumados a ter em seu país de origem. Sofreram as mudanças na
alimentação e tiveram que incluir em seus hábitos determinados alimentos nativos, como
por exemplo, os pinhões.

Para muitos imigrantes, nesses primeiros tempos os embaraços para dominar os


padrões locais de alimentação significava ―quase morrer de fome‖. Muitos deles
chegavam a sair das colônias e caminhavam por longas distâncias para se
abastecerem do que desejavam comer. Aos poucos, o cultivo de alimentos como
centeio, batata e repolho, básicos na alimentação dos imigrantes poloneses no
país de origem, tomaram a paisagem dos núcleos coloniais paranaenses. Nas
cozinhas dos ―colonos‖ esses alimentos conhecidos se mesclavam aos pinhões e
outros ingredientes da flora e fauna das florestas de araucária. (TELEGISNKI,
2014).

No ano de 1879 os colonos já possuíam uma ampla produção de cereais. Suas


plantações continham principalmente centeio, milho, batatas, feijão e fumo. Com o cultivo
destes cereais conseguiam se aproximar da sua alimentação de origem. A batata muito
utilizada na cultura polonesa permanece nas plantações até os dias de hoje e nos pratos dos
descendentes. Como disse em entrevista Nélia Lipinski de Oliveira (2015) ―sem batata o
polonês não vive (...) a batatinha é bastante usada, né, de tudo que maneira feita porque é
uma tradição (...)‖.

161
No ano de 1886 foi realizado um mapa contendo a produção das colônias agrícolas
e percebe-se que os imigrantes poloneses da Colônia Murici além da dedicação ao cultivo
dos produtos citados, dispuseram-se a criação de animais.
Mas a falta de incentivo do governo fez com que os poloneses se sentissem isolados
e desatendidos em relação às solicitações. Tinham por objetivo manter a sua cultura e não
aceitavam muitas das imposições do governo, pois queriam garantir o modo de viver que
possuíam.
Tiveram dificuldades em preservar sua cultura, inclusive a alimentação, que
restringiu os seus paladares e reorganizou seus hábitos com inserção de produtos regionais.
Apesar dos obstáculos, os poloneses mantiveram traços de sua cultura e por meio de
tradições religiosas houve a permanência da memória e tradição. A tradição e os pratos
típicos estão presentes nas festas tradicionais de cunho religioso e também nos seus
preparativos e decorações. Como, por exemplo, no casamento. As festas de casamentos
tinham a duração de vários dias, ou enquanto duravam os alimentos. Toda a comunidade
era envolvida no processo do casório, desde os preparos da decoração aos preparos dos
alimentos, incluindo a doação de ovos, galinhas e verduras de suas plantações. Essa
tradição ao longo do processo de aculturação se perdeu, mas permanece viva na memória.
Segundo entrevistas com a senhora Aurélia Burakowski Sary (2015) ―No meu tempo,
então, a família da noiva, da noiva levava um cesto bem bonito, cuque já cortado e
distribuia na frente da igreja para cada um, depois foi caindo, caindo (...)‖. Vale ressaltar a
tradição ter permanecido por vários anos, mas perdeu-se com o passar dos tempos, e
apenas na oralidade e nas memórias permanece como visto em depoimento de uma
moradora da Colônia Murici com 85 anos.

As festas de casamentos faziam parte das antigas tradições vindas com os


imigrantes. Nos primeiros anos, para comemorar um casamento, praticamente
todas as outras atividades eram paralisadas. Quase todos, senão todos os
moradores, parentes ou não dos noivos, eram envolvidos nos preparativos e nos
festejos. (...) (MAROCHI, 2013, p. 84)

A alimentação aparece em outras festas religiosas como o Natal, Páscoa, Quaresma,


demonstrando a tradição polonesa. Os costumes alimentares em diversas etnias têm ligação
com a religiosidade, segundo Carneiro, ―A identidade religiosa é, muitas vezes, uma
identidade alimentar.‖ (CARNEIRO, 2005, p.2) e essa combinação de elementos nos
reporta a permanência e preservação da cultura, memória e tradição.

162
Dessa forma, a comensalidade está presente nas famílias polonesas, o que de fato
marca a permanência das tradições, mesmo após várias gerações dos primeiros imigrantes,
além da religiosidade ligada à Igreja Católica a qual perpetua na Colônia. Muitas festas
religiosas ou atreladas ao espaço físico da Igreja são mantidas, além das já citadas
anteriormente, existem também: a Festa da Colheita, Dia do Padroeiro e a Festa da Wodka.
Segundo a senhora Aurélia Burakowski Sary (2015) ao relatar sobre a festa da colheita,
fala com muita satisfação da prática tradicional. ―(...) este ano tinha, já passou (...) é uma
festa boa, grande, também cantam em polonês, alguma coisa em português e enfeita a
Igreja com verdura, com abobrinha pequena, grande, de tudo (...).‖ e segundo a senhora
Nélia Lipinski de Oliveira (2015) expõe sobre a Festa da Wodka, a qual acontece todos os
anos no mês de julho e retrata uma tradição. Nesta festa há uma garrafa de Wodka para
cada quatro pessoas, e serve sopa na broa, ou seja, uma sopa dentro da própria broa, em
que a casca do pão é utilizada como vasilha e serve-se no jantar o Pierogui. Afirmou que o
grupo folclórico permanente da colônia auxilia na manutenção das festas tradicionais.
Além das festas, há também a forte tradição nos produtos alimentícios de
fabricação artesanal. A tradição alimentar está presente no cotidiano dos descendentes
poloneses como forma de manifestação cultural e na permanência dessa cultura. Outra
tradição duradoura da cultura polonesa é a agricultura, a maioria dos moradores direta ou
indiretamente estam atrelados à roça. Jovens, adultos e idosos vivem da colheita e
comercialização da lavoura no século XXI. O que se relaciona ao propósito brasileiro do
século XIX da vinda destes imigrantes, que era a manutenção da alimentação da população
residente no Brasil. Mais de dois séculos se passaram e a cultura das plantações dos
primeiros agricultores poloneses permanece. Como afirmou a senhora Amélia Burakowski
Sary (2015) que o sustento da família vem das plantações.
Outro fator importante de destaque é como são mantidas as tradições culinárias. Em
todos os depoimentos ao questionar como foram repassadas as receitas da cultura e
tradição polonesa, as respostas remeteram-se a memória, pois as mulheres aprenderam
vendo suas mães e avós cozinhando e guardaram como lembrança como afirma à senhora
Ines Terezinha Mikos (2015): ―(...) eu faço broa no forno ainda, forno a lenha, é que eu
também aprendi com a minha vó lá, a maioria.‖ Por conseguinte, o aprendizado repassado
de geração em geração é posto à tona na tradição oral. Os cadernos de receitas pouco
existiram e os quais foram confeccionados no passado pouco se preservou. A senhora Ines
Terezinha Mikos tem a posse de um caderno de receitas de sua sogra que foi passado a

163
limpo na década de 90, e possui duas receitas diferentes do Pierogui, e pela forma escrita,
percebe-se ser uma cópia de um caderno datado anteriormente - pela regra de língua
portuguesa na qual está escrita - por exemplo, rasas com a letra s e não z, supostamente
data o escrito antes da Lei 5.765 de 18 de dezembro de 1971.8
Desta forma, as receitas também são documentos importantes no processo da busca
de fontes para a formulação de uma pesquisa sobre a história da alimentação inserida na
cultura dos descendentes poloneses na Colônia Murici.

Considerações finais

Ao considerar os vários aspectos em que a alimentação está enredada, percebe-se a


trajetória dos seres humanos atrelado aos costumes que passam de geração em geração. A
preservação das origens, das receitas típicas, transfere à posteridade as tradições e faz o
legado permanecer na formação identitária de um povo. Neste contexto as políticas
públicas de valorização da subsistência destas culturas é presente no processo de
patrimonialização.
Os cadernos de receitas e as memórias são fontes importantes para o estudo da
História da Alimentação, visto que estas revelam as transformações e as permanências das
tradições na sociedade. Percebe-se então, que a memória gustativa e as anotações
culinárias possibilitam a demonstração da cultura.
No entanto, a perpetuação destas culturas alimentícias dos descendentes de
poloneses na Colônia Murici parece não ter expectativas de preservação, pois a população
mais jovem não mantém cadernos de receitas e muitos não guardam na lembrança as
mesmas. Entretanto a salvaguarda destas tradições se mantém por intermédio da
religiosidade.
A história da imigração polonesa na Colônia Murici tal como sua cultural imaterial,
em especial a alimentação, pode ser vista como patrimônio imaterial, por possuir
permanências das tradições dos primeiros imigrantes poloneses na região.

8
Disponível no site oficial da academia de Letras.
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=2453&sid=19

164
Referências

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PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio Cultural: preservação e conservação.
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Casa Romário Martins, 1981.

Entrevistas não publicadas

LIPINSKI, Olga. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de preparo e cultura.


São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 7: 11 min. Entrevista cedida a Kauana Selmo
Peruscello.

MIKOS, Ines Terezinha. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de preparo e


cultura. São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 6: 29 min. Entrevista cedida a
Kauana Selmo Peruscello.

OLIVEIRA, Nélia Maria Lipinski de. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de
preparo e cultura. São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 10: 56 min. Entrevista
cedida a Kauana Selmo Peruscello.

SCARCETTO, Guiomar. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de preparo e


cultura. São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 8: 03 min. Entrevista cedida a
Kauana Selmo Peruscello.

166
SARY, Aurélia Burakovski. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de preparo
e cultura. São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 22: 52 min. Entrevista cedida a
Kauana Selmo Peruscello.

SARY, Amélia Burakovski. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de preparo


e cultura. São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 16: 27 min. Entrevista cedida a
Kauana Selmo Peruscello.

167
OS CONTOS/CRÔNICAS DE NELSON RODRIGUES E O IMAGINÁRIO
FAMILIAR NA DÉCADA DE 1950

Leandro Antônio dos Santos1

Resumo: Nelson Rodrigues é o escritor-jornalista que problematizou a sexualidade do


brasileiro é a formação da nacionalidade por esse prisma da família brasileira.
Representante da cultura urbana em transformação transformou a maneira da sociedade
de olhar para a família brasileira na década de 1950 pautada por códigos de moralidade
advindos do padrão burguês de família. A década de 1950 é marcada pelo início dos
Anos Dourados em que se inicia no Brasil uma série de mudanças nos padrões de
moralidade e sexualidade. Nelson Rodrigues por meio dos seus escritos jornalísticos
interfere de maneira decisiva descontruindo o imaginário familiar. Instaura uma fissura
da modernidade ao tocar num assunto muito censurado e negligenciado: o adultério
feminino. Seu objetivo através dos contos/crônicas está em ficcionalizar o real
refletindo sobre os caminhos em que a moralidade, família e a sexualidade culminaram
no Brasil em um clima de transformação das relações amorosas e conflitos. Trata-se de
pensar essa investigação dentro da perspectiva da Nova História Cultural, na
perspectiva de Roger Chartier em torno das representações e práticas sociais que
procura colocar em evidência abordagens que incorporam a temática da família,
sexualidade e moralidade de uma determinada realidade social e cultural. O percurso
metodológico estará em torno do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg que entende
que a narrativa historiográfica direciona ao encontro das pistas, indícios e sinais que
estão por sua vez negligenciados pelo cotidiano, mais que cabe ao historiador apontar
seus mecanismos de produção, circulação e recepção na sociedade nesses fragmentos de
leitura do passado que a fonte literária proporciona.

Palavras – chave: Família. Moralidade. Gênero.

Ao tratar com afinco das questões que afetam a vida privada do brasileiro
Nelson Rodrigues não ficou imerso no ―mundo da casa‖. Propôs reflexões que
desembocaram no ―mundo da rua‖, conduzindo o leitor pela dinâmica dos assuntos
relacionados à esfera pública. Privilegiando o comportamento sexual como inerente e
produtor de afetos e desafetos no universo dos leitores, produziu uma forma de tratar
assuntos banais em fatos considerados de utilidade pública.
O que enfatizo e proponho edificar a partir das fontes (os contos-crônicas de ―A
vida como ela é...‖) a serem inquiridas está na edificação de um projeto de
1
Mestrando em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista CAPES. Email:
leandrosantoshis@gmail.com.
168
representação da nacionalidade brasileira a partir do prisma da família nacional, mesmo
que parta da concepção carioca. A tentativa de interpretação da sociedade brasileira no
que ela tem de mais sensível e latente se faz presente na busca de identificar a formação
do brasileiro na maneira da nação estruturar um dos seus elementos mais definidores: a
sua relação com o ambiente privado, as relações íntimas, localizadas pelo ―buraco da
fechadura‖. A modernidade nacional, o desenvolvimento do país nesse contexto de
formação da República ainda têm conferido a família o lócus de instituição civilizadora
capaz de dotar os indivíduos de padrões burgueses e cristãos. Esses discursos
atravessaram o tempo refletindo na década de 50.
Os contos-crônicas podem ser visualizados de diferentes aspectos é um deles é
sob o ponto de vista de Nelson Rodrigues sobre o triângulo amoroso envolvendo
mulheres adúlteras. Três personagens se destacam nesse aspecto como Solange e Jupira.
Mulheres que carregam consigo as contradições de sua época, os desejos, paixões e
amores que fizeram parte da geração dos anos dourados no Brasil.
No conto-crônica ―Casal de Três‖ relata a existência de um triângulo amoroso
entre Filadelfo, Jupira e Cunha. Numa conversa com seu sogro Dr. Margarão Filadelfo
se abre diante do comportamento agressivo de sua mulher, tinha um gênio muito forte.
Entraram num pequeno bar e o sogro lhe disse as seguintes palavras: ―você, meu caro,
desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e
neurastênica‖ (RODRIGUES, 1992, p. 27) Filadelfo ao ouvir o que o sogro disse caiu
por terra não querendo desconfiar da esposa. E o sogro continuou:

- Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi
uma que traía o marido com a metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo! –
Espalmou a mão no próprio peito, numa feroz satisfação retrospectiva: -
Também comigo! E tratava o marido assim, na palma da mão!
(RODRIGUES, 1992, p. 27).

Depois dessa conversa Filadelfo saiu mais preocupado diante da situação, aliás,
o sogro tinha aberto os olhos para a sua vida. Sua vida conjugal era de tamanha
infelicidade que já era preocupante, mesmo ―após três anos de experiência matrimonial,
ele já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não compreendia
que Jupira, amabilíssima om todo mundo, fizesse uma exceção para ele, que era,
justamente seu marido‖ (RODRIGUES, 1992, p. 28).
Faltava-lhe beijos, afagos, caricias, faltava-lhes tudo que uma agradável esposa
poderia conceder ao marido. Nem mesmo um simples beijo era coisa rara entre os dois,

169
quase inexistente. O que mais lhe incomodava era ―a negligência da mulher no lar. Não
se enfeitava, não se perfumava. Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembrando-se
da teoria do sogro: - Será que a esposa honesta também precisa cheirar mal?‖
(RODRIGUES, 1992, p. 28).
Depois de um mês houvera uma grande reviravolta no comportamento de Jupira,
sempre perfumada e maquiada e mais amável com o marido. Filadelfo ficou surpreso
com as novas atitudes da mulher. Nas conversas com o sogro, o mesmo advertia para
não buscar motivos para uma mudança tão brusca de comportamento e,

tratou de extrair o máximo possível da situação, tanto mais que passara a


viver num regime de lua de mel. Dias depois, recebe uma minuciosíssima
carta anônima, com dados, nomes, endereços, duma imensa verossimilhança.
O missivista desconhecido começava assim: ―Tua mulher e o Cunha... [...] A
carta anônima dava até o número do edifício e o andar do apartamento em
Copacabana onde os amantes se encontravam. Filadelfo lê aquilo, relê e
rasga, em mil pedacinhos, o papel indecoroso‖ (RODRIGUES, 1992, p. 29).

Um ponto importante a se refletir está na forte presença de cartas anônimas nos


contos-crônicas de Nelson Rodrigues que aparecem com muita frequência. Elas são o
significado que terceiros estão preocupados com a situação amorosa de casais, mas que
não querem se envolver com esses casos. Esse fato demostra a importância de uma
sociedade que de forma implícita e silenciosa controla os padrões sociais dos outros em
sua volta.

As cartas anônimas, demonstram que a sociedade estava atenta à vida íntima


de um casal e que as traições diziam respeito a toda uma rede de amigos e de
sociabilidades. Estes elementos demonstram a eficácia do sistema de controle
que se formava no meio urbano, onde de certa forma a vigilância era mais
difícil e exigia olhos atentos e dispostos à denúncia (ZECHILINSKI , 2007,
p. 417).

O Cunha que ―é solteiro, simpático, quase bonito e tem bons dentes‖


(RODRIGUES, 1992, p. 29) se torna da noite pro dia seu maior inimigo e chega a
conclusão que ―sua felicidade conjugal, na última fase, e feita a base do Cunha.
Filadelfo continuou sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Jupira revivia,
agora, os momentos áureos de lua-de-mel‖ (RODRIGUES, 1992, p. 30).

Certa vez jantavam os três, quando cai o quardanapo de Filadelfo. Este


abaixa para apanhar e vê, insofismavelmente, debaixo da mesa, os pés de
Cunha, numa fusão nupcial, uns por cima dos outros. Passa-se o tempo e
Filadelfo recebe a notícia: O Cunha ficaria noivo! Vai para casa,
preocupadíssimo. E lá, encontra a mulher de bruços, na cama, aos soluções.
Num desespero obtuso, ela diz e repete: - Eu quero morrer! Eu quero morrer!
Filadelfo olhou só: não fez nenhum comentário. Vai numa gaveta, apanha o
170
revólver e sai a procura do outro. Quando o encontra, cria o dilema: - Ou
você desmancha esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro!‖
(RODRIGUES, 1992, p. 30).

Muito inusitado o desfecho do conto-crônica no qual Cunha desiste de seu


casamento frente às pressões de seu amigo, pois ele satisfazia sua esposa,
consequentemente a ele mesmo. Além de exigir de Cunha que vá jantar na casa do casal
todas as noites, para alegria de Jupira.
Os maridos são frágeis, sinal de decadência do poder patriarcal, os amantes são
fortes, revelam as possibilidades existentes na cidade. Significa que a casa e lugar da
tirania, da oposição, e a rua o lugar da liberdade e da transgressão. A região de
Copacabana mais uma vez aparece no conto como lugar do pecado, das traições e
desvirtuamentos.
Como exemplo de imagens de personagens masculinos fragilizados (na maioria
das vezes maridos) e amantes tidos como fortes e robustos, temos ao mesmo tempo um
interessante tipo de conto-crônica que traz essas duas representações: ―Uma Senhora
Honesta‖. Além do mais em particular e apresentada uma representação feminina tida
para a época como ―séria‖ (um tipo social raro nas representações do autor), mas que
não está imune as investidas de um outro homem.
A personagem Luci ―era muito virtuosa e, mais do que isso, tinha orgulho, tinha
vaidade dessa virtude. Casada há seis meses com Valverde (Márcio Valverde), ouvia
muita novela de rádio. E se, por coincidência, a heroína da novela prevaricava, ela não
podia conter sua indignação‖ (RODRIGUES, 1992, p. 112). Abominava o assunto da
traição. Sempre ficava a espreita de suas amigas principalmente as casadas para
observar possíveis situações de traição. Ficava raivosa se visse algo que desapontasse.
O marido, tinha asma, era ―mirrado, com peito de criança, uns bracinhos finos e longos
de Olívia Palito – o pobre-diabo não tinha a base física de coragem‖ (RODRIGUES,
1992, p. 113).
A virtuosidade de Luci, era incontestável, vivia de vaidade dessa sua qualidade
para as visitas. Trabalhava de funcionária pública, o marido não ganhava muito. Pagava
de mulher séria para todos na repartição. Qualquer olhar enviesado era reprimido.
Começou a suspeitar do vizinho que ficava olhando sair de casa e na hora de chegar.
Depois de muito pesquisar sobre tal pessoa, soube que ―era moço (teria seus trinta e
poucos anos) vivia ás custas de uma velha rica. Sofria desfeitas, humilhações da megera
que chorava cada tostão [...] Tinha braços fortes e bonitos, o que não era de admirar,
171
dado que, aos domingos, o cínico jogava voleibol na praia‖ (RODRIGUES, 1992, p.
115-116).
Valverde sempre fazia suas reflexões pessoais e numa dessas pensou que ―tinha
um amigo que era traído da maneira mais miserável. Apesar disso ou por isso mesmo a
mulher o tratava como um príncipe‖ (RODRIGUES, 1992, p. 115). Luci pegou uma
gripe, ficou em casa, num dia qualquer chegou uma caixa de orquídeas em sua casa,
sem nenhuma menção de remetente. Mais tarde Valverde chega em casa dizendo ter
ganhado no jogo do bicho. Luci não estava nem aí, sua mente estava impregnada de
orquídeas. Na verdade foi um presente de seu marido que tinha ganhado no jogo do
bicho. Ela ficou indignada pelo fato do marido presenteá-la com flores e estava
enfurecida. Salientou que fora uma piada, então Valverde ―sem compreender, ele
pensou na esposa do colega, que era infiel e, ao mesmo tempo, tão cordial com o
marido‖ (RODRIGUES, 1992, p. 117).
No caso peculiar deste conto-crônica a personagem Luci traz a luz a questão da
presença do rádio no Brasil. A importância simbólica desse veículo de comunicação era
fundamental no começo dos anos 50, advento da cultura de massas no Brasil. Eram
realizados concursos como o de ―Rainha do Rádio‖ importante para a consolidação da
carreira de cantora. O papel desempenhado pelo rádio e fundamental nesse contexto de
crescimento dos grandes centros urbanos. Tinha variadas funções, como proporcionar
lazer as pessoas ao mesmo tempo sendo fonte de informação. Todas as classes sociais se
beneficiavam com esse formador de opinião coletiva.

Até o final dos anos 1950, ele era uma peça obrigatória em quase todos os
lares, dos mais ricos aos mais pobres. Fenômeno de massa desde os anos de
1950, base da expansão da rica cultura musical brasileira, a radiodifusão
sofreu um grande processo de massificação a partir do final da Segunda
Guerra Mundial. Na segunda metade dos anos 1940, o rádio se consolidou
como fenômeno cotidiano, ligado à cultura popular urbana, veiculando
principalmente melodramas (novelas) e canções (NAPOLITANO, 2001, p.
13).

Paralelo ao rádio a TV também começou a se tornar um importante meio de


comunicação de massa. Foi ―através dela as imagens dos fatos podiam ser vistas ao
mesmo tempo, em lugares diferentes, por milhares de pessoas, permitindo a rápida
atualização e a perpetuação na memória, o que dá ao espectador a sensação de ser
participante dos acontecimentos‖ (RODRIGUES, 2010, p. 11).

172
A questão da fidelidade para Nelson Rodrigues é algo pensando nas
conveniências e circunstâncias de um casal. No caso de Luci, mesmo com a vocação
para ser boa esposa, se desequilibrou com a chegada de um presente que não estava
acostumada a receber. Pensou de imediato que não veio do marido. Quando descobre a
origem, fica surpresa, pois pensará que viesse de seu admirador, seu vizinho e seu
emocional se reveste para uma frustração. Como se nada de novo a tivesse acontecido, o
presente do seu vizinho teria impactado muito mais. Conclui-se neste caso a mulher
quer ser fiel ao marido, mas por outro lado e infeliz, precisa de estímulos novos, o
presente, foi um deles, mas veio do próprio marido, o que não teve efeito sobre seus
afetos.
A presença da figura do amante se nota bastante atuante nas relações amorosas,
estes tipos são vistos de forma diferente pelo autor, não decadentes como os maridos e
seu poder de mando, mas esses ―ao contrário, são descritos como belos, fortes e com
boa saúde‖ (ZECHILINSKI, 2007, p. 420). Por isso:

A figura do amante representa o ideal masculino, de força e virilidade, e a


importância dessas características se confirma pela atração que ele exerce
sobre a mulher. Assim, esta imagem positiva do homem, associado ao
amante, é contraposta a imagem negativa do amante nos contos
(ZECHILINSKI, 2007, p. 420).

No conto-crônica ―O Canalha‖ podemos nos ater a maneira de compor o


personagem que representa o desviante (amante) na figura de Dudu. O personagem
Lima ao saber que sua noiva estava viajando em uma lotação ao lado com o Dudu,
começa a ficar nervoso e a pedir favores a Cleonice para que não desse moral para esses
tipos de pessoas. Ele indagou que ―Dudu era um cínico, um crápula, um canalha abjeto.
Um sujeito que não respeita nem poste e que e capaz até de dar em cima de uma
cunhada. O simples cumprimento de Dudu basta para contaminar uma mulher‖
(RODRIGUES, 1992, p, 48). Ao saber das imoralidades de seu amigo mais próximo,
Cleonice se assusta diante das afirmações do marido. Volta e meia o Dudu ia se
tornando uma pessoa inimiga para Lima, algo abominável. Para ele, esse tipo de pessoa
nunca deveria visitar se quer uma casa de família decente. Numa festa familiar em que o
casal fora convidado

―Dudu estava lá! Junto de uma janela, com o seu bonito perfil, fumando de
piteira, pálido e fatal, atraía todas as atenções. Lima aperta o braço da noiva.
Diz, entredentes: ―Vamos embora‖. Ela, espantada, pergunta: ―Por que?‖. O
noivo a arrasta: - O Dudu está aí. E não convém, ouviu? Não convém!

173
Imagina se ele tem o atrevimento de tirar para dançar. Deus me livre!
(RODRIGUES, 1992, p . 50).

Lima se considera um homem respeitador, honesto e não buscava amores às


escondidas. Seu ódio em relação ao Dudu era pelo fato de sempre roubar suas
namoradas, pelo seu álibi de conquistador. O final surpreendente revela o resultado da
insistência em afastar um amigo próximo:

Quase à meia noite, estão os dois sozinhos, face a face, no apartamento que
seria a nova residência. Ele nervosíssimo, baixa a voz e pede: ―Um beijo!‖.
Ela, porém, foge com o rosto: ―Não! Lima não entende. Cleonice continua: -
Falaste tanto e tão mal do Dudu que me apaixonei por ele. Eu não trairei o
homem que eu amo nem com o meu marido. Lima compreendeu que a
perdera. Sem uma palavra deixa o quarto nupcial. De pijama e chinelos veio
para a porta da rua. Senta-se no meio-fio e põe a chorar (RODRIGUES,
1992, p. 51).

Nessas histórias o amante está muito próximo das mulheres, sejam casadas ou
não. Estes personagens tem influência direta sobre as relações amorosas de Nelson
Rodrigues. O amante exerce o papel de detonador dos conflitos entre a casa e a rua.
O universo da casa e da rua aqui nesta investigação são intensamente
explorados e diagnosticados com precisão. São espaços de interpretação da sociedade
brasileira que foram alvo de reflexão de Nelson Rodrigues. Concomitante a essas duas
realidades soma-se a dinâmica do público e privado que fizeram parte da evolução da
família nacional e na formação da nacionalidade brasileira. Então,

Ou seja: o que temos aqui é um espaço moral posto que não pode ser definido
por meio de uma fita métrica, mas - isso sim - por intermédio de contrastes,
complementaridades, oposições. Nesse sentido, o espaço definido pela casa
pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de
oposição ou de contraste (DA MATTA, 1997, p. 15-16).

A casa estabelece uma relação de complementariedade com a rua, mas ao


mesmo tempo de oposição, opondo-se aos valores construídos dentro da esfera íntima e
privada, essa relação se configura na realidade nacional com um clima de tensão e
acirramento quando a imersão das sociabilidades urbanas e da dinâmica da sociedade
interfere diretamente nesse equilíbrio. Esse contraste entre a casa e a rua não deixa
também de se tornar uma relação de poder. Estas vão se tornando mais tênues na
medida em que os costumes sociais vão se relativizando no transcorrer do tempo.
Resulta

que quando a casa é englobada pela rua vivemos freqüentemente situações


críticas e em geral autoritárias. Situações onde momentaneamente se faz um
174
rompimento com a teia de relações que amacia um sistema cujo conjunto
legal não parte da prática social, mas é feito visando justamente a corrigi-la
ou até mesmo a instaurar novos hábitos sociais (DA MATTA, 1997, p. 18).

Nelson Rodrigues faz parte de uma geração de pensadores que cada um a seu
modo tentaram explicar a realidade nacional a partir de seus problemas e fragilidades.
Inserindo temas caros na formação da nacionalidade e que contribuíram para fortalecer
o sentimento de entender o caráter nacional. As tentativas fizeram efeito e se tornaram
grandes clássicos do pensamento social como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e
Sergio Buarque de Holanda. Cada qual formularam suas ideias acerca do que é ―ser
brasileiro‖ na maioria das vezes envolto sobre uma capa de erotismo e sexualidade.
Considerada muitos anos um tema difícil de ser explorado no Brasil a
sexualidade foi aos poucos se tornando um tema passível de ser abordado e tomou
densidade na maneira de tratar assuntos delicados na esfera do íntimo. A excessiva
carga de moralidade camuflou a imersão do erotismo e da sexualidade junto à opinião
pública. As práticas amorosas ficavam retidas no domínio do privado, sobre quatro
paredes, sob o buraco da fechadura.
A ficção rodrigueana foi a primeira a evidenciar de forma ―nua e crua‖ a
participação dos dilemas amorosos na vida dos brasileiros no domínio da rua. Antes
eram tratados assuntos relacionados à família, a moralidade, ao privado com uma visão
bastante idealista e carregada de puritanismo e atravessado pela moral. Com os contos-
crônicas de Nelson Rodrigues os assuntos ligados aos desejos inconfessos, às atitudes
desenfreadas, os desvios familiares se tornaram palco do noticiário público pela cidade.
A visão desnudada do escritor transforma sua escrita em um lugar de práticas sociais
bastante distorcidas para os padrões da época.
Os contos-crônicas de ―A vida como ela é...‖ é a máxima expressão de fissura
da modernidade promovida por Nelson Rodrigues em toda a sua trajetória jornalística.
Assunto recorrente na coluna é a temática do adultério. Pela obsessão ao tema, tão
banal, escreveu mais de duas mil histórias que reproduzia a linguagem nua e crua do
cotidiano das ruas.
A infidelidade nos anos 50 não era um assunto muito discutido. Era quase
―escondido‖, escamoteado e considerado um tabu social pela opinião pública. A
infidelidade da mulher, então, era abominada, pois jamais deveria acontecer; enquanto a
capacidade do homem de ter relação com outras mulheres era considerada como normal
e natural do instinto masculino. Ambos os contos-crônicas retratam os conflitos dentro
175
do ambiente doméstico e citadino. Mulheres que sentem desejos por outros homens que
não os seus maridos e vão procurar outra relação fora de casa, cometendo adultério.

Assim, pode-se dizer que os anos 50 se encontraram plenos de ambiguidades:


embora, ainda marcados pela naturalização de papéis – à mulher a
maternidade e a casa e aos homens o sustento financeiro -, já mostram claras
alterações, como o aumento crescente da presença feminina no mercado de
trabalho e certa liberalização das manifestações de seus desejos e
expectativas (MATOS, 1997, p. 101-102).

O Código Civil de 1916, expressa o pensamento acerca do adultério feminino e


suas implicações dentro da esfera das relações íntimas, como a punição diante da prova
ou mesmo da suspeita do fato. No tocante aos homens, a natureza de suas relações
extraconjugais ou mesmo ―sua relação física com outras mulheres pouco significava
perante a lei, mas a manutenção da concubina poderia significar a transgressão do seu
papel de chefe de uma única família‖ (ZECHILINSKI, 2007, p. 414).
A criação literária de Rodrigues coloca em cena valores tradicionais e liberais no
que se refere às práticas afetivas experimentadas por homens e mulheres. Num cenário
de transgressões e desníveis, choques de representações de gênero se elevam e trazem à
tona uma reconfiguração de relações pessoais desgastadas, gerando dado
redimensionamento dos mesmos por meio de situações da esfera do banal e do
cotidiano.
Pode-se falar de um autor-ator em sua visão existencial, que marcou sua vida e
se fez presente em suas obras sustentadas pela presença marcante de sua própria
subjetividade. Sua estética ficcional releva a inversão de sua própria vida presente e
recupera reminiscências do passado, articulando-se com a cosmovisão de ser carioca e
do próprio homem brasileiro. O ―texto literário do jornalista, cronista e escritor Nelson
Rodrigues é um precioso laboratório para se tentar apreender a origem de alguns traços
da subjetividade deste autor‖ (MARIANI, 2009, p. 95).
Se o século XIX experimentou um ambiente de intensa remodelação da esfera
familiar por meio de processos de intimidade e privacidade, num contexto de abandono
de costumes coloniais, superados pelo programa urbano civilizador direcionado para a
renovação da cidade, não deixou de lado as alterações da esfera do íntimo e as propostas
de reformulação urbana numa perspectiva europeia. Aos poucos no decorrer da segunda
metade do século XX, o abismo social se rompe e as mulheres se inserem na vida

176
social, muito mais condicionadas pelas circunstâncias históricas do que as próprias do
seu lugar de ocupação doméstica.
Como a maciça presença da sua mão de obra nas fábricas de armamentos,
principalmente durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), recolocando suas
expectativas numa ótica do mundo do trabalho e refletindo tensões no retorno ao lar, no
constante agravamento de fissuras em relação aos sexos. A valorização do trabalho
feminino foi decisiva no rompimento do espaço privado, pois nas ―primeiras décadas
deste século, época de transição de valores, assistem à passagem da estrutura patriarcal
para uma nova ordem econômica e social, onde as ideologias de cunho individualista
marcam presença‖ (TRIGO, 1989, p. 89).
A família passou por um processo de pulverização e adaptação das novas formas
de sociabilidades. O modelo de família que herdamos do século XIX esfacelou-se,
resultado do individualismo moderno do século XIX, da recusa de uma estrutura
extremamente rígida e normativa. Nesse movimento o espaço resguardado do lar não
ficou imune: ―a casa, protegida pelo muro espesso da vida privada que ninguém poderia
violar - mas também secreta, fechada, exclusiva, normativa, palco de incessantes
conflitos que tecem uma interminável intriga, fundamento da literatura romanesca do
século‖ (PERROT, 1993, p. 78). Nesse sentido, ―o século XX veria se generalizar
lentamente em toda a população uma forma de organização da vida com dois domínios
opostos e claramente distintos: o público e o privado‖ (PROST, 2009, p. 16).

Desta forma, o confronto entre o mundo da casa e o mundo da rua aparece


constantemente nas histórias contadas por Nelson Rodrigues, em ―A vida
como ela é...‖. Ele apresenta o conflito das personagens que não conseguem
perceber as fronteiras entre a casa e a rua. Pelo fato de o universo familiar,
escondido nas paredes da casa, passar a ser mostrado, no espaço público –
apesar de bastante lida e com longa duração (dez anos) –, ―A vida como ela
é...‖ rendeu a Nelson Rodrigues a fama popular de ―tarado‖ (PARENTE,
2012, p. 4).

Partindo do olhar cotidiano dos leitores da coluna, as histórias refletiam as


cenas do imaginário social, a preocupação diante da temática do adultério e dos assuntos
recorrentes à esfera do privado, da casa, sendo livremente recriadas no espaço da rua.
Nelson legou-nos uma ―pintura‖, um olhar ―etnográfico‖ e social sobre a cidade, num
incessante diálogo com as normas que regiam a sexualidade de seus habitantes.

177
REFERÊNCIAS

DA MATTA, Roberto. A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.


São Paulo: Brasiliense, 1997.

RODRIGUES, Nelson. A Vida Como Ela é...: o homem fiel e outros. Seleção Ruy
Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

RODRIGUES, Marly. O Brasil na década de 50. Editora Memória: São Paulo, 2010.

NAPOLITANO, Marco. Cultura Brasileira e Massificação (1950-1980). São Paulo:


Contexto, 2001.

MARIANI, Luiza. Aproximações: Nelson Rodrigues, subjetividades e escrita literária.


Revista Contemporânea, n.12, p. 94-103, 2009. Disponível em: <
http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_12/contemporanea_n12_09_luiza.pdf>.
Acesso em: 01 de Out. de 2015.

MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: experiências em Copacabana nos
anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

PARENTE, Tiago Coutinho. Os conflitos da casa e da rua nas crônicas de ―A vida


como ela é...‖. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 29, Brasília.
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.
Brasília: UnB, 2006. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/43811654/a-vida-como-
ela-e>. Acesso em: 12 Nov. de 2012.

PERROT, Michelle. O Nó e o Ninho. Veja 25 anos: reflexões para o futuro. São Paulo:
Abril, 1993.

PROST, Antoine. Fronteiras e espaços do privado. In: História da Vida Privada, 5: da


Primeira Guerra a nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

TRIGO, Maria Helena Bueno. Amor e casamento no século XX. In: D‘INCAO, M. A.
Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.
178
ZECHILINSKI, Beatriz Polidori. ―A vida como ela é...‖: imagens do casamento e do
amor em Nelson Rodrigues. Cadernos Pagu, v. 29, jul. dez. 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332007000200016&script=sci_arttext>.
Acessado em: 11 de Nov. de 2011.

179
O SEXO FEMININO: ATUAÇÃO FEMININA E TENSÕES SOCIAIS, UMA
BREVE ANÁLISE SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NO
SÉCULO XIX NO BRASIL

Lígia Martinelli Costa e Oliveira 1

RESUMO: O presente trabalho propõe apresentar um estudo sobre O Sexo Feminino,


semanário publicado e editado inicialmente na cidade de Campanha-MG no século XIX
por Francisca Senhorinha da Mota Diniz. Este periódico foi criado visando a educação e
instrução da mulher, porém abarcou outros temas ao longo da sua trajetória.
Apresentaremos o jornal em sua estrutura delineando sua trajetória e seus assuntos ao
longo do nosso recorte temporal(1873 a 1876) ressaltando os temas que mais aparecem
como educação e instrução da mulher, literatura, casamento e o comportamento das
mulheres da época. A imprensa do século XIX de modo genérico propiciou grandes
discussões sobre as esferas pública e privada. Ao momento em que Senhorinha Diniz
defendia a posição da mulher como esposa, mãe, boa filha e zeladora do ambiente
doméstico, em contrapartida defendia a atuação da mulher na esfera pública em relação
a educação, instrução e também as possibilidades de formação acadêmica da mulher.
Para além do século XIX, O Sexo Feminino ainda se apresenta como periódico que
coloca questões muito importantes para a atualidade como a educação e instrução da
mulher, o protagonismo feminino perante a sociedade, a inserção de mulheres no
mercado de trabalho e a dualidade entre o casamento civil e o casamento religioso.

PALAVRAS-CHAVE: Imprensa Feminina – O Sexo Feminino – Francisca Senhorinha


da Mota Diniz.

Introdução

Temos o periódico O Sexo Feminino como objeto e fonte de pesquisa. A intenção é


a de questionar as participações femininas e a abordagem de temáticas supostamente
voltadas para o público leitor feminino na imprensa imperial brasileira e também as
medidas políticas adotadas que se mostravam como de suma importância para a maior
informação e instrução da mulher.

Pesquisamos este tema por causa da crescente importância que o mesmo tem
ganhado dentro da nossa historiografia. Além disso, esse tema nos possibilita abarcar a
trajetória do movimento das mulheres no Brasil, apresentando de forma simplificada as
tensões sociais existentes e salienta a importância da imprensa feminina para o período
em questão, desmitificando então desta forma o imaginário da época de uma mulher

1
Graduada em História pela UFU - Universidade Federal de Uberlândia e Graduanda em Pedagogia pela
UFU – Universidade Federal de Uberlândia. Email: ligia.martinelli@yahoo.com.br
180
fadada somente à maternidade e à educação dos filhos, inferior e sem capacidade
intelectual para os estudos de nível universitário.

Nota-se que o século XIX é caracterizado por intensas tensões na sociedade


tanto no campo político, social e público. O Sexo Feminino foi publicado no momento
que antecedeu a proclamação da República e de várias outras transformações, como
aquelas ocorridas nos setores econômico, eleitoral, educacional, político, social e
artístico. Foi um período delicado, sendo que temas jamais discutidos no espaço público
vêm à tona como o divórcio, o voto e a sexualidade.

Senhorinha Diniz, a editora do periódico, procurava destacar em seu jornal a


importância da conscientização da mulher para o melhor nível de educação das mesmas,
para que as mulheres brasileiras pudessem almejar posições sociais mais elevadas.
Através de seu periódico, Diniz procurava despertar as brasileiras para seus direitos
perante a sociedade, através de uma atividade de autoconsciência e reflexão, incluindo
também ideias como igualdade perante o sexo oposto em postos de trabalho e cargos de
chefia.

O Sexo Feminino: A Origem

O jornal O Sexo Feminino teve seu primeiro número publicado em 7 de


setembro de 1873 na cidade de Campanha, localizada ao sul do estado de Minas Gerais
e tendo como sua editora e redatora D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz, esposa,
mãe de família e professora normalista. Posteriormente, O Sexo Feminino transfere-se
para o Rio de Janeiro sendo editado de 1875 até o ano de 1877, retomando sua
publicação na década seguinte, de 1887 a 1889 e, com a República proclamada, com
maior engajamento político, edita quinzenalmente O Quinze de Novembro do Sexo
Feminino, sempre demonstrando espírito comprometido com os interesses femininos.

Embora O Sexo Feminino não seja um jornal ligado intimamente com a


imprensa educacional, possui vínculo no entorno educacional. Francisca Senhorinha,
além de professora da escola prática, anexa a Escola Normal de Campanha, era casada
com o advogado Dr. José Joaquim da Silva Diniz, redator do jornal O Monarchista, de
Campanha, também professor de Pedagogia da escola normal, onde estudavam as filhas

181
do casal, Albertina e Amélia Diniz, que por sua vez, eram colaboradoras de O Sexo
Feminino.

Senhorinha Diniz procurava destacar em seu jornal a importância da


conscientização da mulher para o melhor nível de educação das mesmas, para que as
mulheres brasileiras pudessem almejar posições sociais mais elevadas. Através de seu
periódico, Diniz procurava despertar as brasileiras para seus direitos perante a
sociedade, através de uma atividade de autoconsciência e reflexão, incluindo também
ideias como igualdade perante o sexo oposto em postos de trabalho e cargos de chefia.

Embora seja bastante conhecida pelas suas publicações nas Minas Gerais, pouco se
sabe sobre a vida de Francisca Senhorinha Diniz, sabe-se apenas que nasceu em São
João Del Rei depois se mudou para Campanha, lecionado e atuado fortemente na
imprensa local.

O Sexo Feminino: O periódico em foco

Publicado originalmente no ano de 1873 e com estreia no dia 07 de setembro na


cidade de Campanha – Minas Gerais com o nome de O Sexo Feminino e com subtítulo
Semanário Dedicado aos Interesses da Mulher continha sempre no seu cabeçalho a
frase de Aime Martin :“É pelo intermédio da mulher que a natureza escreve no
coração do homem”2. O jornal se configura em um folheto de 4 páginas, com
formatação simplificada e texto dividido em duas colunas, direcionadas ao leitor, de
modo que raramente se encontram gravuras em suas páginas. O Sexo Feminino tinha
periodicidade semanal e a sua obtenção deveria ser feita através de assinatura anual de 5
mil réis e semestral de 2 mil e quinhentos réis. O jornal é escrito em sua maior parte por
D. Francisca Senhorinha, porém aceitava colaborações de homens e mulheres, contando
que versassem sobre o tema da educação e instrução da mulher e tivessem a ver com o
perfil do jornal. No ano de 1873, o jornal tinha como colaboradoras fixas D. Narcisa
Amália, poetisa residente da cidade de Resende, Amélia e Albertina Diniz, filhas da
redatora.

O periódico dividia-se basicamente em editorial que aparecia sempre nas duas


primeiras páginas, constituindo-se em longos textos sobre educação e instrução da

2
Aime Martin foi um escritor e filósofo francês que nasceu em Lyon e se mudou posteriormente para
Paris.
182
mulher, sempre assinados por Francisca Diniz. A seção sobre literatura vinha em
seguida e se organizava em textos traduzidos do francês por Amélia e Albertina Diniz,
no entanto não foi possível saber a autoria original daquelas narrativas. A parte de
colaboração geralmente falava sobre os acontecimentos da escola normal de Campanha
e poderia ter também textos de outras colaboradoras. Os avisos eram sobre
acontecimentos locais. O noticiário continha assuntos voltados à atualidade, como
notícias sobre conquistas de mulheres ao redor do mundo. A seção variedades, como
seu nome indica continha artigos diversos, desde charadas e enigmas até o aviso de
permutas que eram realizadas entre diferentes jornais.

O jornal teve como editora D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz, esposa, mãe
de família e professora normalista. Ela era a responsável e idealizadora do semanário e,
segundo Cecília Nascimento e Bernardo Oliveira, contava com colaboradoras diversas
dentro e fora de Campanha 3 que se correspondiam através de cartas com a redatora do
jornal.

Além da redatora do jornal, responsável pelo editorial, e as colaboradoras que


geralmente contribuíam nas seções opinativas e de literatura, Amélia e Albertina Diniz,
filhas da idealizadora do jornal também contribuíam. Suas contribuições se faziam em
textos autorais e também em traduções de textos do francês para o português.

A distribuição do primeiro número do jornal foi feita da seguinte maneira: a


primeira edição do jornal foi enviada a pessoas previamente selecionadas. Não foi
possível saber como ocorreu esta seleção, mas é possível aventar que foram aquelas
escolhidas entre as pertencentes à classe média de Campanha e ainda pessoas letradas e
ligadas à educação. Nesse primeiro número, havia um aviso para que as pessoas que não
desejassem assinar o jornal deveriam devolvê-lo no escritório da redação. O número do
jornal não era vendido separadamente, sua obtenção poderia ser feita apenas através de
assinatura semestral ou anual. No exemplar de 11 de outubro de 1873 a redatora do
jornal anuncia aos assinantes uma nova colaboradora, Sra. Narcisa Amália residente da
cidade de Resende, que posteriormente se tornaria colaboradora fixa da seção de
literatura:

3
NASCIMENTO, C. V. ; OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de . O Sexo Feminino em Campanha pela
emancipação da mulher. Cadernos Pagu (UNICAMP. Impresso), v. 29, p. 431, 2007.
183
―Aos nossos assinantes, uma grata notícia. – Este periódico tem o
indizível prazer de scientificar aos seus leitores que vai enumerar
como colaboradora uma das penas mais hábeis que tem apparecido na
imprensa diária da corte, A Ex.ª Sr.ª D. Narcisa Amalia, poetisa
distincta, literata não vulgar, talento transcendental, está acima de
qualquer elogio que a pena mais bem aparada possa tecer. Sua aurea
inteligência se desenha no artigo com que mimoseou o Sexo
Feminino, e que vai publicado no lugar competente‖. 4

O Sexo Feminino se configura como periódico feito por mulheres e para


mulheres, atendendo aos interesses das mesmas, porém no período histórico em questão
é sabido que poucas mulheres tinham acesso à instrução, tema que é um dos pilares do
jornal. Desse modo, Gerlice Teixeira Rosa faz um apontamento sobre a tiragem do
jornal no ano de seu lançamento em 1873:

―A tiragem do jornal era de 800 exemplares, número


significativo se levar em conta a baixa escolaridade da população
nesse período e o grande número de analfabetos do país‖. 5

Retomando aos autores Cecília Nascimento e Bernardo Oliveira, eles afirmam


que:

―De 20.071 habitantes à época, apenas 1.458 mulheres sabiam


ler e escrever em 1872, ou seja, cerca de 7% da população total
(número um pouco superior à diminuta média nacional – 5,5% do total
da população, segundo dados do Recenseamento daquele ano.‖6

Segundo a afirmação dos autores acima, podemos perceber que, embora não
fosse o foco do jornal atingir apenas uma determinada classe social, ele atingia uma
parcela pequena de mulheres se restringindo às classes mais altas da sociedade.
Na data de 15 de novembro de 1873, apenas 2 meses após sua primeira
publicação O Sexo Feminino anuncia a reimpressão dos jornais de números de 1 a 10
em 4 mil exemplares por motivos de permuta, envio para assinantes recentes e também
distribuição do periódico no Rio de Janeiro.

4
O Sexo Feminino, 11/10/1873. Número 6. Página 04. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
5
ROSA, Gerlice Teixeira. Ethos e argumentação de Senhorinha Diniz em O Sexo Feminino. Dissertação
de Mestrado. UFMG.2011.
6
NASCIMENTO, C. V. ; OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de . O Sexo Feminino em Campanha pela
emancipação da mulher. Cadernos Pagu (UNICAMP. Impresso), v. 29, p. 432, 2007.
184
Como já apresentado anteriormente, O Sexo Feminino teve seu primeiro número
publicado em 7 de setembro de 1873, esse número se faz especial tanto por ser o
lançamento do periódico quanto pelo seu conteúdo em questão. No editorial, a editora
ressalta um dos objetivos principais do jornal:

―O seculo XIX, seculo das luzes, não se findará sem que os


homens se convenção de que mais da metade dos males que os
oprimem é devida ao descuido que elles tem tido da educação das
mulheres‖. 7

E ainda complementa, ao ressaltar a importância da educação da mulher para


além da educação referente aos cuidados da casa:

―Em vez de paes de família mandarem ensinar suas filhas a


coser, engomar, lavar, cosinhar, varrer a casa etc., etc., mandem-lhes
ensinar a ler, escrever, contar, grammatica da língua nacional
perfeitamente, e depois, economia e medicina domestica, a
puericultura, a litteratura ( ao menos a nacional e portugueza), a
philosophia, a historia, a geografia, a physca, a chimica, a historia
natural, para coroar esses estudos a instrucção moral e religiosa...‖8

Retomando ao assunto da independência, Francisca Diniz relaciona a


independência do Brasil com a independência da mulher:

―Feliz coincidência! Há 51 annos que se quebrarão os ferros


de nossa escravidão ao jugo colonial, que se libertou o brasileiro do
despotismo de um homem que d‘alem do Atlantico, nos impunha sua
vontade de ferro; há 51 annos em fim que soou o grito de nossa
independência.
Pois bem, este dia marcará também em nossa historia patria
uma época não menos memorável – a independência da mulher, cujo
echo se faz ouvir na imprensa por um órgão – O Sexo Feminino‖. 9

Sabemos que o editorial configura-se como a parte mais importante de um


jornal, seja ele escrito para qualquer finalidade, e por esse mesmo motivo o editorial
sempre se encontra nas primeiras páginas do jornal e com O Sexo Feminino não seria

7
O Sexo Feminino 07/09/1873. Número 1. Página 01. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
8
O Sexo Feminino 07/09/1873. Número 1. Página 01. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
9
O Sexo Feminino 07/09/1873. Número 1. Página 02. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
185
diferente. O editorial como parte de peso de um jornal sempre é escrito por um editor
que possui mais domínio nos assuntos tratados, por isso em todos os números d‘ O Sexo
Feminino Francisca Senhorinha Diniz se encarrega de tal seção.
De modo genérico os editoriais possuíam como objetivo estabelecer um debate
mais profundo com o leitor, levando o mesmo à reflexão. Como o foco do periódico era
a educação e instrução da mulher, todos os editoriais sempre apresentavam estes
assuntos relacionando-os com a existência e importância d‘O Sexo Feminino.
O segundo editorial do jornal afirma o que explicitamos acima:

―Prepare-se o futuro pela educação e intrucção do sexo fragil.


Formem-se as mãis de família, que por seu turno vão erguer
escolas e colégios, nos campos, nas villas e nas cidades; que ensinem
à mocidade de ambos os sexos os sãos princípios de uma instrucção
moral e religiosa, e a face da sociedade se há de mudar.
Mãis de família assim formadas prepararão a mocidade que
futuramente possa ornar as diversas carreiras a que póde aspirar um
moço ou uma moça desde a mais alta escala social até o mais modesto
emprego official.‖10

Além do anseio da educação e instrução da mulher, Francisca Diniz ainda


desejava a igualdade perante o sexo oposto e destacava no seu jornal conquistas de
mulheres no ramo profissional.
A literatura possui importância dentro do jornal. Depois do editorial essa era a
parte que possuía mais destaque dentro do periódico. A seção de literatura em geral era
composta por textos que exaltavam a beleza da mulher, continha poesias sobre o cortejo
com o sexo feminino, músicas e ainda textos sobre amor, religião e a infância.
Ao se tratar do perfil desta seção, podemos defini-la, segundo Dulcília Buitoni,
que diz:
―...reconhecemos que existem alguns temas de grande
interesse para o público feminino e que gozam de uma certa
unanimidade na imprensa de todo o mundo.‖11

Desta forma a seção literatura d‘O Sexo Feminino se apresentava de acordo com
o interesse das mulheres da época, delineando assim o perfil das leitoras e também
representando a mulher da época em seus gostos e interesses.

10
O Sexo Feminino 14/09/1873. Número 2. Página 01. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
11
BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa Feminina. 2ª edição. Editora Ática, 1990.
186
Conclusão

Neste trabalho ressaltamos a importância d‘O Sexo Feminino como veículo de


educação e instrução feito por mulheres e para mulheres ainda no Oitocentos,
ressaltando ainda a vida e obra de Senhorinha Diniz, redatora e editora do jornal.
Através da bibliografia temática estudada percebemos que O Sexo Feminino e
Francisca Senhorinha Mota Diniz foram estudados por pessoas de diferentes áreas do
conhecimento como História, Pedagogia, Letras e Jornalismo. E assim podemos ver as
múltiplas possibilidades de estudo que esse periódico apresenta. Como O Sexo
Feminino se configurou como periódico de longa publicação e que embora tivesse como
tema central a educação e instrução da mulher, ainda contava com temas diversos que
dão margem a múltiplas interpretações e abordagens.
A imprensa do século XIX de modo genérico propiciou grandes discussões sobre
as esferas pública e privada. Ao momento em que Senhorinha Diniz defendia a posição
da mulher como esposa, mãe, boa filha e zeladora do ambiente doméstico, em
contrapartida defendia a atuação da mulher na esfera pública em relação à educação,
instrução e também as possibilidades de formação acadêmica da mulher.
Acreditamos que O Sexo Feminino se configura como periódico que possui uma
identidade e forma de comunicação próprias, que conferiu ao periódico o respeito da
classe redatora da época assim como atraiu a atenção de leitores diversos, chegando a
ser reimpresso pela sua demanda de leitura. Para além do século XIX, O Sexo Feminino
ainda se apresenta como periódico que coloca questões muito importantes para a
atualidade como a educação e instrução da mulher, o protagonismo feminino perante a
sociedade, a inserção de mulheres no mercado de trabalho e a dualidade entre o
casamento civil e o casamento religioso.

Fontes

O Sexo Feminino (Acervo dos anos de 1873 a 1876) retirado do Arquivo Público do
Estado de São Paulo.

187
Bibliografia

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190
UM RETRATO DE FRIDA KAHLO: NUANCES DE GÊNERO

Maria Carolina Rodrigues Boaventura1

Resumo

Na tentativa de tentar estreitar algumas relações entres as temáticas de gênero e arte,


este trabalho aponta algumas perspectivas de gênero presentes na obra da artista
mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Muitas e relevantes questões circundam a vida e
obra desta pintora, uma delas é a sutil indagação de como a pintora, retratara em suas
telas todo o sofrimento físico de 29 anos devido a graves problemas de saúde e, ainda;
como revelara sua condição feminina perante a uma sociedade de intensos conflitos
políticos e ideológicos e; categoricamente, masculina. Isto é, a consagrada pintora
mexicana, em suas palavras, quase assassinada pela vida, forjou na própria carne
dilacerada, seu estilo de ser e sua transcendência; não sendo impossível reconhecer em
sua obra a legitimação de sua sofrida existência reinventada pictoricamente. Assim de
modo a exprimir suas ideias e sentimentos, Frida desenvolveu uma linguagem pictórica
pessoal com vocabulário e sintaxe próprios, que neste trabalho se fundamenta através
das questões de gênero. Assim, através de uma análise iconográfica da obra
Autorretrato com cabelo curto de 1940, se delineia esta relação através dos
apontamentos teóricos de autoras como Joan Scott e Teresa de Lauretis.

Palavras –chave: tecnologia do gênero, retrato, representação

Um retrato de Frida Kahlo

Frida nascera em 06 de julho de 1907 em Coyoacán, hoje um subúrbio da


Cidade do México; porém a pintora decidira que ela e o Novo México nasceram ao
mesmo tempo, já que não escondia sua identificação com a Revolução Mexicana (1910-
1920), e suas frescas lembranças da Decena Trágica, episódio em que os camponeses
de Zapata lutavam contra os Carrancitas. A pintora de descendência índia e alemã
aprendera com o pai, fotógrafo e entusiasta artista amador, as primeiras técnicas de
pintura ao acompanha-lo nos seus passeios, como pintor, pelas zonas campestres locais.
Aos seis anos de idade, Frida teve paralisia infantil, e ao passar por nove meses de
convalescença, ainda lhe restara uma sequela que lhe atrofiara a perna direita e seu pé
esquerdo, cabendo a ela neste momento um rótulo: ―Frida da perna de pau‖. Mais tarde,

1
Licenciada em Ciências Sociais e Mestre em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia.
marolaventura@hotmail.com
191
em 1925, um violento acidente de ônibus a tornou semi-inválida e ainda, a submeteu a
inúmeras cirurgias e já no fim da vida, à amputação de uma perna. Toda essa dor foi
claramente reconhecida por ela ao referir-se ela própria ao acidente: ―(...) e a sensação
que desde então nunca mais me deixou é a de que meu corpo concentra em si todas as
chagas do mundo‖.
Até 1925, seus dotes artísticos tinham sido encorajados somente pelo pai e pelo
respeitável tipógrafo Fernando Fernandéz e foi durante a recuperação do trágico
acidente que Frida começou a pintar, ou seja, como um modo de evitar a dor e o
aborrecimento e, estando privada da liberdade dos movimentos corporais; a pintora
iniciara sua vida artística em cima de uma cama e de maneira um tanto quanto
improvisada, visto que para que ela pintasse fora colocado um espelho que cobria a
parte inferior de sua cama de modo que a pintora podia se ver e ser seu próprio modelo,
o que justifica a existência dos seus inúmeros autorretratos: ―Eu pinto-me, porque estou
muitas vezes sozinha e porque sou o tema que conheço melhor.‖ (KETTENMANN,
2006, p.18).
Em 1928, Frida se junta a um círculo de artistas e intelectuais que ao sentirem
uma degradação da antiga imitação convencional de modelos europeus procuravam uma
arte mexicana independente, livre de qualquer academicismo e; defendiam o regresso às
raízes da nação e ao restabelecimento da arte popular mexicana. A este movimento
denominou-se: Mexicanismo, o qual encontrara sua primeira e maior expressão nas
pinturas de murais que eram patrocinadas pelo Estado a fim de contar ―didaticamente‖ à
maioria da população analfabeta do campo a história de sua nação. Neste mesmo ano,
Frida aderiu ao Partido Comunista Mexicano (PCM), ao qual já demonstrara seu apreço
quando ainda cursava a Escuela Nacional Preparatoria em 1922. Foi através do
interesse pelo comunismo que a artista foi apresentada a Diego Rivera, ilustre muralista
mexicano e também revolucionário. Rivera e Frida se casaram em 1929, e ela via em
Rivera um incentivo a sua feminilidade, uma vez que neste momento já não abusava
tanto das vestes masculinas como fizera noutros tempos, para adquirir aspecto de
mulher invulgar e independente; e sim de longos vestidos tehuanos, usados pelas
mulheres de Tehuantepec (região sudoeste do México, onde as tradições matriarcais
ainda hoje estão vivas e, portanto, sua estrutura econômica reflete o papel predominante
da mulher) e; de altivos colares e brincos pré-colombianos. Cabendo dizer que, estas

192
vestes estavam perfeitamente de acordo com o crescente espírito de nacionalismo e com
o interesse revivalista pela cultura índia.
Entretanto, o casal de pintores não viveu só anos de felicidade e entre várias
―idas e vindas‖ entre México, Estados Unidos e Europa, eles se separaram e se casaram
novamente. E foi neste trânsito, que Frida estreitou laços de amizade e amorosos com
intelectuais, artistas e outra mulheres, dentre estes estão Leon Trotsky, revolucionário
russo com o qual teve um caso e, André Breton, crítico e escritor francês que
interpretara o trabalho de Frida Kahlo como surrealista e, intermediara a primeira
exposição da artista na galeria Julien Levy, em Nova York. Em 13 de julho de 1954, na
Casa Azul (casa do casal em Coyoacán) morre Frida Kahlo.

Pensando a questão de Gênero na obra de Frida Kahlo

Frida abordou em suas telas, temas que revelavam sua dor física e seus caminhos
ideológicos, isto é, temas que eram amplamente recorrentes em sua vida e que eram
pictoricamente transpostos a uma dimensão artística; assim não é de se estranhar suas
obras com temas como: do seu acidente em 1925, dos seus camaradas comunistas, do eu
grande amor Diego Rivera, dos abortos que sofrera e tantas outras que narravam um
pouco da sua realidade. A artista dotava suas telas de uma ―beleza terrível‖, mas bela
ainda assim na sua verdade reveladora e corajosa, no limite máximo do humor e do
trágico, da irreverência e do compromisso com projetos ideológicos e amorosos.
Recusava-se veemente classificar-se como pintora surrealista, afirmando que: ―não sou
surrealista, pinto a minha própria realidade‖.
Ao analisar a obra de Frida pelo viés da categoria de gênero, percebe-se que em
muitas telas a artista representava sua condição feminina (aquela convencionada
socialmente na época) e em outras renegava. Para tal análise, deve-se conceituar o
conceito da categoria de gênero, para que se possa levar a cabo a hipótese de que várias
relações de gênero são formalizadas na obra de Frida Kahlo. Segundo a historiadora,
Joan Scott, o conceito de gênero surge como uma categoria útil de análise do social,
sendo que esta, distintamente da categoria sexo, é um fator cultural e não um dado
biológico. Na sua utilização mais recente, ―gênero‖ parece ter feito sua primeira
aparição entre as feministas americanas nos anos 60, as quais se respaldavam no fato de
que:
193
(...) inscrever as mulheres na história implica,
necessariamente, a redefinição e o alargamento das noções tradicionais
daquilo que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência
pessoal e subjetiva quanto as atividade públicas e políticas. (SCOTT, 1990, p.
6).

Por gênero, entende-se, portanto, uma maneira de indicar ―construções sociais‖,


ou seja, uma maneira de se refletir as origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas dos homens e das mulheres sendo esta, uma categoria imposta sobre um
corpo sexuado. Ideia reforçada por Teresa de Lauretis (1987, p. 208), quando afirma
que a existência de um sujeito constituído no gênero através de códigos linguísticos e
representações culturais, ou seja, um sujeito ―‗engendrado‘ não só nas experiências de
relação de sexo, mas também nas de raça e de classe: um sujeito, portanto, múltiplo em
vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido‖.
Assim se deve pensar a categoria de gênero a partir de uma visão teórica, que vê a
sexualidade como uma ―tecnologia sexual‖; ou seja, o gênero não é uma propriedade de corpos
e nem algo existente a priori, mas assim como nas palavras de Foucault (apud LAURETIS,
1987, p. 209), é ―o conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações
sociais‖.
E ao analisar a obra de Frida por este viés, se percebe que em muitas de suas
inúmeras telas, ela se identificava na condição de uma mulher convencional para sua
época, isto é, se mostra como parte integrante de uma família, devota ao amor do
marido e até se despia da pintora que era para dar lugar à figura do marido; como no
quadro Frida e Diego Rivera de 1931 (figura 1), no qual o atributo artístico (a palheta) é
reconhecido apenas em Rivera, ela aqui é apenas a mulher que o acompanha.

194
Fig. 1 - Frida Kahlo, Frida e Diego Rivera , 1931, óleo sobre tela, 100 x 79 cm;
San Franciso Museum of Modern Art, São Francisco; doado por Albert M. Bender.

Condição essa percebida também na tela O Hospital Henry Ford ou A Cama


Voadora de 1932 (figura 2), quando ela descreve seus sentimentos após ter perdido um
filho devido sua incapacidade orgânica de sustentar uma gravidez, assim escreveu mais
tarde: ―Pintar completou minha vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas, que
teriam preenchido minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo isso.
Creio que trabalhar é melhor‖ (da autobiografia da pintora datada de 1953).

195
Fig. 2 - Frida Kahlo, O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora, 1932, óleo sobre metal,
30,3 x 38 cm; Cidade do México; Coleção Dolores Olmedo.

Porém, quando Frida descobre que está sendo traída pelo marido com a própria
irmã, a relação de Frida com a representação do seu corpo se transfigura, assim como
pintara na tela Autorretrato com cabelo curto de 1940 (figura 3).

196
Fig. 3 - Frida Kahlo, Autorretrato com cabelo curto, 1940, óleo sobre tela, 40 x 27,9 cm;
The Museum of Modern Art, Nova York; doado por Edgar Kaufmann Jr.

No contexto deste autorretrato, Frida estava recentemente separada do seu


marido, assim em vez das roupas muitos femininas com que surge na maioria dos
autorretratos anteriores (figura 4), aparece vestida com um largo terno de homem de
cores escuras. A artista acabara de cortar seus longos cabelos, como se quisera lhe
arrancar sua própria feminilidade e também, na parte superior do quadro, Frida escreve
―Mira que si te quise, fué por el pelo/ Ahora que estás pelona, ya no te quiero.‖ (Olha,
se te amei foi pelo teu cabelo; agora que estás careca, já não te amo).‖, verso de uma
canção mexicana dos anos 40 (figura 5), o qual apontaria para a razão do seu ato de
―automutilação‖ na época (já que o corte de cabelo curto era próprio do universo

197
masculino, e muitos biógrafos consideram o fato que o cabelo de Frida encantava a
Rivera): a separação do marido de quem tanto gostava.

Fig. 4 - Frida Kahlo, Autorretrato dedicado al Doctor Eloesse, 1940, óleo sobre masonite, 59,5 x 40
cm; coleção particular.

Fig. 5 - Detalhe da parte superior do quadro Auto-retrato com cabelo curto (figura 3)

Isto é, Frida renunciara aos atributos femininos que chamavam a atenção do


marido (cabelo e vestes tehuana), demonstrando que não queria ser amada apenas por
estes atributos. E é dessa maneira que diversas vezes se vestiu antes de se casar com
Rivera, na tentativa de se mostrar uma mulher independente, inerte às peças que o
destino lhe pregara, isto é, forte, revestida de atributos mais duros, rígidos com sua
própria existência.

198
Considerações Finais

Nesta perspectiva, conclui-se que Frida caminhou entre o masculino e o


feminino em diversas épocas de sua vida, desde a aspiração à maternidade ao corte de
cabelo curto reverenciando o mundo masculino, como tentativa de renegar sua
verdadeira dor e os verdadeiros sentimentos causados pelo homem que amava. E de
forma bastante reveladora cabe dizer que Frida talvez não percebesse tantos argumentos
(talvez errôneos) sobre a teoria de gênero em sua obra, o que a artista talvez quisesse,
como relatara Rivera, era ser

―A primeira mulher na história da arte a tratar, com absoluta e


descomprometida honestidade, podíamos até dizer com uma crueldade
indiferente, aqueles temas gerais e específicos que apenas dizem respeito às
mulheres.‖ (KETTENMANN, 2006:19).

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HOLLANDA, Heloísa (Org.). Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da
cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

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Porto Alegre, Volume 16 (nº2), jul/dez 1990, p. 5 – 22.

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<http://www.antroposmoderno.com/textos/FridaKahlo.shtml>. Acesso em:
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Olympio, 1997.

ZIMMERMANN, Tânia Regina; MEDEIROS, Márcia Maria de. Biografia e Gênero:


repensando o feminino. www.uems.br. Disponível em: <

199
http://www.uems.br/site/nehms/arquivos/53_2014-11-06_17-34-43.pdf >. Acesso em:
05/07/2015.

200
O MÉDICO E A MULHER: HIGIENIZAÇÃO E VÍCIOS

Minisa Nogueira Napolitano 1

Resumo

O discurso inquisitorial a respeito das práticas comportamentais e sexuais entre


mulheres deixaram de fazer parte do rol de interesse daquelas no século XVII. Tais
discussões vão aparecer novamente, aqui no Brasil, a partir do século XIX com a
fundação das Faculdades de Medicina no Rio de Janeiro e em Salvador, quando
médicos higienistas se preocupam com o comportamento feminino dentro de casa e na
sociedade, pois enxergam na mulher uma aliada da medicina para intervir nas famílias e
na sociedade. Após os médicos proporem normas de comportamentos sociais, morais e
sexuais para as mulheres, faremos uma análise daquilo que foi catalogado pela medicina
como desvios comportamentais, como a prostituição, a ninfomania, a histeria, o
alienismo, o onanismo, o tribadismo, o safismo e o lesbianismo, procurando entender a
abrangência desse tema na sociedade do Rio de Janeiro do século XIX.
Palavras-chave: Sodomia feminina, higienização das famílias, vícios femininos.

As relações sexuais entre mulheres confundiram e enganaram aqueles que, nos


séculos XVI e XVII, na América Portuguesa, tentaram penetrar em seus domínios,
domínios até então desconhecidos, na medida em que, nesta época, tais condutas
constavam no rol de "pecados" da Inquisição e esta nunca chegou a um consenso a seu
respeito. Quando abordadas, as relações entre mulheres eram sempre vistas com base na
anatomia masculina, pois não havia estudos específicos sobre a anatomia da mulher. A
falta desse consenso, de uma opinião comum entre inquisidores e teólogos, somada ao
pouco interesse social que o tema despertava, fez com que as infrações cometidas entre
as mulheres, no campo da sexualidade, deixassem, já no século XVII, de fazer parte das
heresias punidas pela Santa Inquisição.

Desde então, ao que parece, as relações sexuais femininas deixaram de ser


discutidas no Brasil, e pouca atenção foi despendida a elas até o século XIX, quando,
com a ascensão da classe médica, voltaram a ser tema amplamente discutido pela

1
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, graduada em História pela
Universidade Estadual Paulista e mestre em História pela Universidade Estadual Paulista. E-mail:
minapolitano@hotmail.com
201
sociedade, sobretudo em razão das teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e,
também, da literatura desse período.

Devido à falta de conhecimento da anatomia do corpo feminino e de uma


terminologia mais específica e adequada para se referir às partes do corpo da mulher e à
sua sexualidade, os estudiosos dessa época assemelhavam o corpo feminino ao
masculino. A mulher não era vista em sua especificidade anatômica, ao contrário, era
compreendida através da anatomia masculina, propiciando assim controvérsias e
dúvidas a respeito de sua sexualidade, pelos inquisidores.

Na discussão sobre a sodomia cometida entre mulheres, em 1646, o Inquisidor


Álvaro Soares de Castro e Sebastião da Fonseca concluíram que, entre mulheres, só
poderia haver penetração através de instrumentos e, mesmo com seu uso, seria
impossível derramar semente, relegando assim tais atos à molície.

Diante disso, os atos ditos torpes praticados entre mulheres, caso não
cumprissem os requisitos para serem qualificados como sodomia, eram tidos
por molície, caracterizada por toques, abraços e beijos entre pessoas do
mesmo sexo, assim como masturbação, felação e outros atos que não tinham
a gravidade da sodomia. (BELLINI, 1987, p. 68)

Além da mulher não ser tratada em sua especificidade física e biológica e ser
analisada sob o parâmetro do sexo masculino, principalmente no que se refere às
relações sexuais com outras mulheres, não havia ainda uma terminologia específica
nessa época que tratasse desse tipo de relação, daí essas mulheres serem sempre
mencionadas como se assumissem um papel masculino.
Em seu estudo sobre a sodomia feminina, Ronaldo Vainfas elabora
considerações sobre alguns motivos pelos quais os inquisidores faziam vistas grossas a
esse pecado. As mulheres, de acordo com o autor:
―seriam bem mais discretas em suas relações sexuais se comparadas aos
homens. Pelo fato das mulheres chamarem bem menos atenção do povo, e
serem menos motivos de comentários do que os homens, talvez os
inquisidores se ativessem mais na busca de desvios sexuais masculinos, pois,
uma das grandes preocupações era não deixar que esses casos de sodomia se
tornassem públicos‖. (VAINFAS, 1987, p. 157)

Houve uma grande tendência em punirem-se os homens com muito mais rigor,
em comparação às punições determinadas às mulheres, essas pareciam não despertar
tanto o interesse na sociedade da época se comparadas aos homens, sua sexualidade,

202
suas relações sexuais entre pares iguais eram bem menos importante e não havia a
preocupação em se punir com tanto rigor como se cuidava em punir homens que
praticassem a sodomia entre si ou com mulheres.
Deixando de se tornar uma preocupação apenas de ordem religiosa, para se
configurar, sobretudo, como um problema social a ser diagnosticado e tratado, as
relações sexuais entre mulheres, até então chamada de sodomia feminina, devido às
transformações ocorridas na sociedade em geral, tomaram outro caráter e passaram a
ser tratadas de uma maneira mais específica. De um conjunto de práticas, a sodomia
feminina, agora, no século XIX, denominada de safismo, tribadismo e, posteriormente,
de lesbianismo, passou a se referir a uma categoria mais precisa de pessoas.
Com a instalação da corte portuguesa no Brasil, em 1808, e com a abertura dos
portos, a cidade do Rio de Janeiro passou por grandes transformações políticas, sociais
e culturais, diretamente perceptíveis na vida cotidiana da população, sobretudo das
classes mais abastadas. O novo contingente populacional vindo da Europa, o
crescimento do comércio, a formação de uma burocracia estatal, o casamento entre
europeus e brasileiros, a difusão das modas europeias – desde as roupas ao mobiliário
das casas, passando pelo comportamento dos indivíduos, enfim, a nova cultura que
entrava no país, gradativamente, alterou a paisagem carioca e a forma de vida de seus
habitantes. O modelo europeu se impôs como modelo de civilização por excelência, e
tudo o que resistia a tal modelo era considerado ultrapassado, fora de moda.
A partir desse ponto, vamos nos ater à análise das ações de um dos principais
agentes dessa mudança: os médicos, que, em seu esforço higienizador, atuaram no
sentido de estudar e catalogar os comportamentos sociais. Tendo por alvo principal a
família de elite, eles esforçaram-se por diagnosticar, e tratar, tudo aquilo que escapasse
ao que entendiam por normal – desde hábitos pouco civilizados, pouco europeus, até os
ditos vícios da população (prostituição, onanismo, alcoolismo, pederastia, tribadismo,
safismo, ninfomania, alienismo, etc.), passando pela constante desordem da cidade,
causa de muitas doenças. Destarte, sugerindo mudanças nos hábitos comportamentais e
alimentares de toda a família, como também no vestuário, na educação das crianças, na
arquitetura e no cotidiano da casa, na disposição dos seus móveis, nas relações entre
marido e esposa e nas relações do casal com os empregados; os médicos atuaram no
sentido de construir um novo cidadão, um cidadão civilizado, patriota e, é claro,
normatizado.
203
Se até o século XIX a sexualidade interferia muito pouco sobre a estabilidade do
casal, a partir de então, ela será de suma importância para a harmonia de toda a família.
Ao marido de sexualidade sadia cobrava-se que evitasse as prostitutas e que se
prevenisse das doenças venéreas e, de seu consequente flagelo, os filhos sifilíticos; à
mulher, por sua vez, dedicou-se um cuidado todo especial, pois a sua negligência no
cuidado da prole ou sua debilidade comprometia a saúde física e moral do casal. O
amor equilibrado e companheiro tornou-se imprescindível na união, e, ainda mais
importante, imprescindível era a procriação, o principal objetivo do casamento. Aliás,
era com essa finalidade que, aos olhos médicos, um homem e uma mulher se uniam
matrimonialmente, para gerar e criar filhos para a nação. Logicamente, todo o
comportamento social que fugisse a essas regras era veementemente combatido, como,
por exemplo, o comportamento dos homossexuais, das prostitutas, dos celibatários, nas
ninfomaníacas, dos alcoólatras, dos libertinos, dentre muitos outros.
―Essas anormalidades sexuais foram definidas como focos privilegiados de
contaminação das moléstias venéreas. Para mais, a prostituta, o libertino, o
celibatário e o homossexual são o contraponto do homem-pai e da mãe-
higiênica, criados a partir dos padrões da normalidade médica. O contato da
população da cidade com esses indivíduos portadores de hábitos devassos,
obscenos e pervertidos, era uma fonte importante de contaminação moral,
também causadora da desagregação da família‖. (ENGEL, 1988, P. 84-87)

Diagnosticando todos os comportamentos considerados desviantes, o saber


médico passou também a se ocupar com o que, antes do século XIX, era de
competência dos religiosos, como por exemplo, as aberrações sexuais. Todavia, os
sodomitas masculinos e femininos, agora denominados de pederastas, tríbades, safistas
ou lésbicas, se para a Igreja eram pecadores que atentavam contra as leis de Deus –
pecadores horrendos e merecedores de punições e até mesmo do fogo do inferno, para
os médicos, tais indivíduos eram desviantes, eram portadores de uma doença moral que
mereciam diagnóstico, profilaxia e tratamento.
Paralelamente à posse do exercício da medicina, o médico com seus projetos de
higienizar as famílias, as cidades, os hábitos e os costumes do povo, tomaram o meio
social e suas instituições como objeto de análise – as escolas, as penitenciárias, os
internatos, as ruas, as praças públicas, as casas de moradias, os bares, os bordéis, os
bailes, os teatros e até mesmo o clima e a atmosfera, enfim, a sociedade em geral e tudo
o que fazia parte dela, dos espaços físicos da cidade aos hábitos da população –, nada
deixando escapar ao seu olhar clínico e analítico.
204
O Dr. Heredia de Sá (1845, p. 14) atenta para a total falta de saneamento básico
no Rio de Janeiro, referindo-se à falta de esgotos e aos pântanos mal aterrados na
cidade, responsáveis pela elevada temperatura e pelas exalações de miasmas
respectivamente, alertando para os males que isso acarreta. Por fim, ele se revolta com
a falta de cuidado e conhecimento da higiene pública, lamentando que isso ocorra em
uma cidade tão bela. Torna-se, assim, perceptível uma preocupação constante, por parte
dos médicos, já na primeira metade do século XIX, com o espaço físico da cidade
carioca; afinal de contas, era da desorganização dela e do seu clima extremamente
úmido e quente que advinha grande parte dos problemas sociais, desde as epidemias e
doenças até os distúrbios físicos e morais, ou seja, a composição climática, atmosférica
e espacial da cidade estava intrinsecamente ligada à formação educacional, moral e
física de seus habitantes:
O programa de intervenção na sociedade, proposto pelos médicos do século
XIX, via na mulher uma mediadora das relações entre médico/filho e médico/marido;
por isso ela foi o alvo privilegiado das normas médicas, normas para a criação dos
filhos, para a relação com o marido e, sobretudo, para a sua própria conduta em
sociedade. Portanto, ela passou a ser um dos objetos principais do discurso médico
oitocentista, pois, tornando-a sua aliada, ficaria mais fácil para o médico penetrar e
intervir na vida íntima da família. À mulher, de acordo com os médicos, cabia zelar pela
saúde e pela conservação da espécie, como explica o Dr. Barros,

―Pareceria que a natureza na mulher se esmerou em fazer tudo para as graças e


deleites, se não soubéssemos que ella devia ter em vista um objecto mais
essencial e mais nobre, que he a saúde do individuo e a conservação da
espécie‖. (BARROS, 1845, P. 4-5)

Os médicos também se atentavam para a educação que a mulher deveria


receber, pois a educação representa o preparo desta para exercer uma função
moralizadora na sociedade, sobretudo no papel de mãe de família, tendo em vista o
cuidado com a prole e com o marido, ficando as ciências, as artes, a meditação,
relegadas somente ao homem. As atenções precisariam recair sobre as mulheres, afinal
de contas, elas eram o meio pelo qual se moralizaria a sociedade – o cuidado com a
educação das mulheres era também o cuidado com a educação dos outros; ou seja, a
salvação da sociedade estava nas mãos das mulheres.
Consequentemente, o médico, ao lado da mulher, aos poucos foi se inserindo no
seio familiar, adquirindo prestígio junto à sociedade, promovendo a figura de sua aliada
205
por meio da valorização do seu papel como mãe/educadora e mulher/esposa,
conseguindo a adesão feminina aos seus programas higiênicos. Uma vez instalado na
vida doméstica, o profissional da medicina remodelou tanto o interior das casas – pois é
o local onde se forma o caráter das crianças, ―futuro da nação‖ – como a distribuição
dos espaços, dos móveis, e do lugar de cada membro da família, redefinindo o papel
social de cada um deles. À mulher, estava reservado o papel doméstico e, ao que parece,
os médicos foram unânimes em defender que elas deveriam evitar todo o trabalho e
atividade que não fosse relativo à casa.

Uma considerável parte das teses médicas da época, sobretudo da segunda


metade do século XIX, se dedicou ao estudo do corpo feminino juntamente com suas
moléstias, dos hábitos saudáveis que as mulheres deveriam seguir e também dos vícios,
ou seja, do que deveria ser evitado pelas mesmas. Teses dissertando sobre a
menstruação e suas consequências, sobre a anatomia do corpo feminino, sobre doenças
mentais, sobre a histeria – doença própria ao sexo feminino –, sobre o cuidado com os
filhos e o marido, sobre amamentação, sobre todas as suas fases na vida, desde a
infância até a menopausa. Nada referente à mulher e ao seu ambiente escapou ao olhar
médico oitocentista.
Havia uma extrema preocupação, compartilhada por outros médicos, com o
ciclo menstrual das mulheres, de acordo com o Dr. Maia (1897, pp. 8-28) a sua
irregularidade, o excesso ou a falta de sangue tinha uma grande influência sobre a saúde
feminina, e isso poderia causar várias doenças como o histerismo, perversões morais,
sexuais, perturbações intelectuais e até mesmo causar a completa alienação mental.
Nesse sentido, em relação aos distúrbios mentais femininos, os médicos
oitocentistas afirmavam que o momento mais propício para sua manifestação está ligado
ao ciclo menstrual, ou seja, manifesta-se entre o início e o fim do período da
menstruação; a mulher estaria mais próxima da loucura do que o homem por ser mais
impressionável e possuir uma estrutura física e mental mais sensível. Todos os desvios e
distúrbios mentais, morais e sexuais femininos estariam totalmente relacionados ao
fluxo menstrual.
Além de a menstruação colaborar para o aparecimento de distúrbios mentais,
outro fator que merece destaque entre as causas do aparecimento desses distúrbios de
acordo com o Dr. Urbano Garcia (1901, p. 22), são as afecções ginecológicas, ou seja,

206
qualquer lesão ou enfermidade nas partes da geração poderia levar a mulher à alienação
mental.
Assim, vai se tornando nítida a relação intrínseca que esses médicos
estabeleceram entre as afecções dos órgãos da sexualidade da mulher e os seus
distúrbios mentais. À medida que as descobertas sobre o corpo e o comportamento
feminino foram desvinculando a mulher do estereótipo de ser assexuado e associando o
seu sexo a um sexo lascivo, cheio de pontos erógenos e passíveis de todas as tentações
carnais, nenhuma análise médica escapou a essa associação.
As mulheres histéricas eram consideradas mais vulneráveis, mais inconstantes e
possuíam uma imaginação superexcitada, estavam mais susceptíveis às perversões do
instinto sexual, aos coitos exagerados, característicos das mulheres degeneradas, como
nos mostra o Dr. Luiz de Paula:
―Quanto às perversões sexuaes, a masturbação, a inversão do senso genital,
o amor lésbio, etc, são muito mais freqüentes nas hystericas, cuja imaginação
é desregrada e superexcitada, como em todos os outros degenerados; a
necessidade do coito normal póde também ser exagerada, e vê-se então as
raparigas ou mulheres casadas tornarem-se verdadeiras messalinas‖.
(PAULA, 1900, p. 6)

Dessa forma, mais uma vez é explícita a associação feita pelos médicos do
oitocentos entre os distúrbios mentais e os desvios sexuais, tanto uns quanto os outros
podendo ser causa e consequência reciprocamente; ou seja, as histéricas poderiam
apresentar distúrbios mentais, assim como as degeneradas poderiam ficar histéricas.
Como prevenção, além da boa educação, outra via para evitar todos esses males,
considerados devassos, era o casamento, tão exaltado e recomendado pelos médicos de
então. Talvez a instituição mais defendida por esses médicos tenha sido o matrimônio;
afinal de contas, ele era o espaço da sexualidade permitida e sadia, era através dele que
se reproduziam os indivíduos saudáveis e bem educados, além do mais, todas as
relações sexuais exercidas fora dele não estavam de acordo com os padrões higiênicos
propostos pela medicina.
Outro tipo de vício feminino retratado pelos médicos – e quando estes se referem
aos vícios, estão se referindo às anomalias sexuais – era a chamada ninfomania, que se
dava por meio da excitação sexual durante a menstruação e consistia na entrega da
mulher a todo o tipo de desejos sexuais imorais e antinaturais. Também causava o
aparecimento do vício da ninfomania, de acordo com os médicos do século XIX, as

207
afecções nos órgãos sexuais da mulher, podendo levá-la a todo o tipo de perturbações
morais.
A masturbação ou onanismo era tida como causa dos mais diversos males, tanto
físicos como morais e resultava, entre outros fatores, da ausência ou precariedade da
vida sexual, do contato entre as crianças no colégio, de leituras estimulantes, teatros, da
vida social agitada e desregrada, da alimentação inadequada, de práticas esportivas que
provocassem a excitação dos órgãos sexuais (como a equitação), da ociosidade, da
riqueza, de imagens indecentes, enfim, eram inúmeras as causas que levavam ao vício
da masturbação. O Dr. Alexandre Camillo ainda definiu três tipos de onanismo
(masturbação): o clitoriano, o onanismo vulvo-vaginal e o onanismo anal, bucal ou
mamaria.

―O onanismo clitoriano a dois é constituído pela titilação do clitóris por mão


estranha; pela passagem de uma vulva sobre a outra, o que se chama
tribadismo; pela sucção feita pelo homem ou mulher, o que constitue o
saphismo, ou pela língua de um cãozinho ou gato, o onanismo bestial.
O onanismo vulvo-vaginal a dois é constituído pela introdução do pênis,
retirando-o antes que o sêmen seja derramado em sua cavidade, o que constitue
o crime de Onan e pela excitação vaginal provocada ainda pela introdução do
clitóris de outra mulher, constituindo o clitoridismo. O onanismo anal, buccal
ou mamaria é o acto pelo qual a mulher pela boca, anus ou mama, determina
sensações voluptuosas nos órgãos que lhes são apresentados. D‘estas três
formas d‘onanismo, só o buccal pode ser praticado por um ou outro sexo.‖
(CAMILLO, 1886, p. 14-19)

Essa definição de vários tipos de onanismo nos mostra que o onanismo


clitoriano está ligado a outros dois vícios que abordaremos com maiores detalhes mais à
frente, o tribadismo e do safhismo que, segundo o Dr. Alexandre Camillo, é um tipo de
masturbação. Porém, de acordo com essas definições, evidencia-se que já em fins do
século XIX, existia a discussão em torno das relações sexuais entre mulheres por parte
da medicina.
O Dr. Pires de Almeida também define outra forma de clitorismo, o praticado
por duas mulheres; as praticantes, não encontrando meios suficientes para suprir os seus
desejos sexuais, procuram satisfazê-los através do safhismo e do tribadismo, sem que,
para isso, corram o risco de perder a virgindade:

―o clitorismo quando não solitário, faz-se sempre acompanhar dessa


embriaguez que tanto excita a imaginação nos climas tropicaes; e – quando
entre duas mulheres, o que é mais commum – os excitamentos crescem de
ponto, porque o organismo não mais podendo acudir aos repetidos appêllos
sexuaes para vencer o orgasmo, as môças, lábios contra lábios, seios contra
seios, pelle contra pelle, com os olhos lânguidos e o peito arquejante, procuram

208
successivamente recurso, ou no saphismo ou no tribadismo: e isso, sem nunca
invadir a vagina, - tendo sempre por único campo de operações o clitoris. A
clitorista póde, portanto, conservar indemne, em si, e na paciente os attributos
materiais da virgindade‖. (ALMEIDA, 1906, p. 196-197)

Analisando cada detalhe do corpo e do comportamento feminino, seja sexual ou


social, nada parece ter escapado ao olhar médico. Todos os distúrbios mentais
femininos, desvios de conduta ou vícios sexuais foram sendo mapeados pela medicina
do século XIX. No que se refere aos vícios femininos, o Dr. Pires de Almeida (1906),
dentre todas as teses médicas que analisamos, parece ser o que abordou mais de perto e
com maior riqueza de detalhes esse tipo de comportamento das mulheres. Em seu livro,
que talvez seja pioneiro no Brasil sobre o tema, ele trata muito especificamente, e às
vezes com visão única, das relações sexuais entre mulheres, chegando até mesmo a
admitir relações afetivas estáveis entre elas e, não raras vezes, a existência de
sentimentos "normais" em ambas – como se fosse entre um homem e uma mulher.
Traçando uma linha entre a enfermidade e o vício, de acordo com esse médico,
existiam aquelas que se entregavam ao prazer sexual excessivo, seguindo os processos
comuns – o que ele define como prostituição, a chaga social –, e aquelas que
procuravam no desconhecido das anomalias a satisfação dos seus desejos sexuais –
essas representam um mal ainda maior, a prostituição da prostituição –, categoria que
alberga os invertidos de todos os sexos.
No que se refere ao comportamento sexual entre mulheres, o Dr. Pires de
Almeida fez um detalhado e interessante estudo a respeito desse assunto, analisando
casos de masculismo, erotismo, safismo, tribadismo, ninfomania, clitorismo (como já
analisado) e lesbianismo. Mas, interessa-nos sobremaneira o ponto em comum entre
esses vícios, as relações sexuais entre mulheres. A seguir, analisaremos cada um dos
vícios mencionados.

Sobre o masculismo, que consiste na masculinização do comportamento da


mulher, o Dr. Pires de Almeida atesta que aquelas que sofrem desse mal se comportam
e se vestem como homens e, se pudessem, virariam homens por completo:

―Algumas há, entretanto, que se desvanecem com esse enxerto de virilidade


na feminilidade; si em seu poder estivesse, ellas completariam o desvio da
natureza, tornando-se completamente homens; essas tais envergam com certo
orgulho um fraque, que lhes cae sobre a saia; deixam bem aberto o peito da
camisa reluzente de gomma, enfeitando o collarinho com uma gravata à
moda do homem; e cobrem o sinciput com uma meia quartola de abas lisas,

209
sem adornos; e, de quando em quando, tiram do bolso do collete um relógio:
dir-se-hiam, effectivamente, homens ... si não foram as saias‖. (ALMEIDA,
1906, p. 101)

O discurso médico estabelecido a respeito do lesbianismo no século XIX


procurou enquadrar as praticantes desse vício em duas categorias, a das safistas e a das
tribadistas. O tribadismo era característico das moças virgens – até porque não
representava risco nenhum à sua virgindade – e o safismo das mulheres mundanas,
prostitutas, que buscavam novos meios para satisfazer seus desejos. Em qualquer dessas
categorias, contudo, de acordo com o Dr. Pires de Almeida (1906), houve casos de
mulheres que chegaram a se apaixonar por outras mulheres e, quando foram
correspondidas, houve até a formação de lares e a coabitação. Porém, nesse caso, a
categoria que predominava era a das safistas, quando uma mulher exercia o papel de
ativa e a outra o papel de passiva:

―Assim como succede entre os uranistas, também entre as sectárias dos gozos
lesbianos há mulheres que se apaixonam por outras mulheres, inteiramente,
doudamente, até ao escandalo. Em taes circunstancias, quando a paixão é
correspondida, os mútuos votos são muitas vezes satisfeitos com a formação
de um lar em que há plena e inteira convivência marital. E‘neste lar
unissexual que predomina a forma lesbiana chamada saphismo. Ahi, cada
qual exerce invariavelmente o mesmo papel: só uma funccina com os lábios,
e é a esta que os auctores attribuem o papel de activo, enquanto que chamam
á outra passiva‖. (ALMEIDA, 1906, p. 154)

Em sua tese, o Dr. Augusto Barros menciona um delírio de atração pelo sexo
semelhante, tanto entre homens quanto entre mulheres, e afirma que tal delírio é
resultado de uma inversão congênita:

―O professor Westphal de Berlim descreve um delírio muito curioso sob a


denominação de die croutare sexualempfinduny, isto é, attração dos dois
sexos semelhantes ou instincto sexual invertido. Considera este estado
psychopathico como uma perversão congênita do instincto sexual; que uma
mulher nestas condeções é physicamente mulher mas psychicamente homem,
que o homem procura indivíduos de seu proprio sexo, como a mulher
abandonando o homem procura as suas semelhantes para realizar os prazeres
sexuais.‖ (BARROS, 1883, p. 36)

A falta de conhecimento a respeito das relações entre pessoas do mesmo sexo


era tal que as práticas "anormais e desviantes das leis da natureza" eram tratadas, sob a
ótica médica, com a adoção do mesmo modelo ativo e passivo das relações
heterossexuais, dando a entender que, ao assumirem essas posições, estariam também
assumindo as formas de comportamento masculino e feminino. Fica, portanto, evidente
210
a falta de uma nomenclatura específica para designar as relações homossexuais ainda no
século XIX, gerando toda uma confusão sobre tais práticas. Isso explica o fato desse
tipo de relação ser discutida e entendida segundo os padrões das relações
heterossexuais. O conhecimento que se tinha das práticas sexuais entre pessoas do
mesmo sexo era sempre em termos comparativos e aproximativos ao tipo de
relacionamento sexual aceito pela sociedade, isto é, o heterossexual. Essas relações
eram também descritas como uma forma de prostituição, ou seja, não havia uma
definição específica para o relacionamento sexual entre mulheres, já que as adeptas do
safismo eram, em sua maioria, de acordo com os médicos, prostitutas.
Outro estudioso que abordou esse tema foi o jurista Viveiro de Castro que, em
sua obra Attentados ao Pudor, fez uma discussão sobre se determinadas aberrações
sexuais deveriam ser consideradas doenças ou crimes. Para Viveiros de Castro (1894, p.
195-196), o tribadismo era atribuído à falta de exercício, à vida sedentária, ao
aborrecimento, à negligência das mães, como também poderia ser resultado do
desequilíbrio mental e da inversão sexual, um dos sintomas da loucura.
Viveiros de Castro (1894, pp. 285-292), ainda enumerou uma série de outras
causas para o tribadismo, como: o desprezo pelo homem (sofrido pelas prostitutas
devido às humilhações a que são submetidas); o receio da gravidez; as agitações do
mundo e a literatura moderna; a influência de uma menina contaminada com esse mal
em internatos para moças; o clima quente; os temperamentos; as bebidas alcoólicas; a
menstruação desregulada ou a menopausa; o onanismo (que é uma das causas mais
influentes das perversões genitais); as impressões morais que a criança recebe na sua
infância; a miséria que obriga a acumulação forçada dos membros da família no mesmo
quarto, onde a falta de espaço propicia a promiscuidade dos sexos; a falta de uma
religião que se imponha como freio moral.

A respeito do tratamento destinado a essas mulheres, tais estudiosos são


unânimes em afirmar que antes é preciso separar o criminoso do degenerado, pois o
primeiro deve ser punido e o segundo é irresponsável pelos seus atos. Para Viveiros de
Castro (1894), o papel da justiça, nesses casos, deveria ser a investigação mais completa
e minuciosa do estado mental desses indivíduos, pois se o degenerado for condenado
como criminoso, sem tratamentos e sem cuidados higiênicos, a pena não o regenera, ao
contrário, seu mal se agrava e ele sai da prisão mais degenerado e mais perigoso. Porém,

211
se for recolhido em um hospício e submetido ao tratamento adequado – aplicações de
hidroterapia, de eletricidade e de sugestão hipnótica – pode vir a ser curado e
restabelecido à sociedade.

Para o Dr. Pires de Almeida (1906), esses vícios podem tanto ser inatos à
criança como podem ter sido transmitidos por influência do meio; portanto, era preciso
definir quem era invertido e quem era pervertido, pois, segundo ele, nem todos esses
indivíduos eram doentes e nem todos eram criminosos. Como forma de tratamento, o
médico receita dois "medicamentos": a educação – quando a educadora precisa lançar
mão de meios para convencer a sua educanda das vantagens sociais da vida em família,
de ser esposa e mãe – e a sugestão mental por meio da hipnose.

Assim, o século XIX caracterizou a homossexualidade como um exercício


anormal da sexualidade, oscilando em enquadrá-la ou como crime ou como doença.
Ora tratadas como doentes, ora associadas a criminosas, as mulheres desviantes
estiveram à margem da sociedade, exatamente por não se enquadrarem naquilo que esse
século entendia ser o caminho de todo indivíduo sadio: o matrimônio totalmente
voltado para a procriação. Impossibilitadas de gerar filhos e de terem um
comportamento sexual de acordo com os padrões sociais aceitos, as tríbades, as safistas
e as lesbianas, sobretudo na segunda metade do século XIX, foram alvo de discussões
médicas e jurídicas, sempre na tentativa de descrever e traçar um tipo de
comportamento comum entre elas.

Dessa forma, a medicina oitocentista traçou uma genealogia da perversão e da


degeneração, configurada na díade doentes e criminosos. A medicina não mediu
esforços para identificar uns e outros e se empenhou em uniformizar esses desvios para
então prescrever condutas sociais, morais e sexuais a serem seguidas. Foi separando o
normal do patológico que os médicos de então puderam traçar suas normas de
higienização das famílias.

Referências:

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215
RELAÇÕES AFETIVAS PARALELAS
O AFETO COMO PONTO CENTRAL DA RELAÇÃO FAMILIAR E A BUSCA
PELA REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DAS UNIÕES SIMULTÂNEAS

Neiva Flávia de Oliveira1


João Paulo Prudente Santana2

RESUMO: À época do Código Civil de 1916, apenas a família matrimonizalizada era


vista como entidade familiar. Com o advento da Constituição Federal de 1988, foram
reconhecidas como entidades familiares a união estável e as famílias monoparentais.
Ocorre que este rol trazido pela Carta Magna não deve ser tido como taxativo pelo
Direito, que já reconhece diversas outras entidade familiares, norteado pelo princípio da
afetividade e busca da felicidade. O referido princípio, segundo Paulo Luiz Neto Lobo
(2002), consagra a família como unidade de ralações afetivas em detrimento da família
patriarcal, hierarquizada e patrimonializada do diploma cível de 1916. Assim, é possível
dizer que todos os modelos familiares que vem sendo reconhecidos pelo Direito
convergem-se em um mesmo ponto: o afeto como centro da relação entre os integrantes
da família. A título de exemplo destas novas entidades é possível citar as famílias
anaparentais, as homoafetivas, as pluriparentais, e a paralela, e é especificamente sobre
esta última que se pauta o presente trabalho. A discussão sobre as chamadas uniões
simultâneas ou paralelas é tema bastante atual e nos últimos anos tem sido palco de
diversas discussões no Poder Judiciário, que, conforme se verá, não encontrou consenso
em suas decisões sobre a matéria. Porém, não é recente o fato de pessoas desenvolverem
ao mesmo tempo mais de uma família, com pessoas diferentes. A simultaneidade de
relacionamentos existe em nosso meio, mas ainda não são acolhidas pelo Direito de
Família como verdadeira relação familiar afetiva. Isto se dá em virtude de que tais
relacionamentos vão de encontro a toda cultura monogâmica já enraizada na sociedade
brasileira e priorizada pelo próprio ordenamento jurídico pátrio, por isso, as famílias
simultâneas não são vistas com bons olhos por boa parte da doutrina. Faz-se necessário
então desmitificar a monogamia como base formadora da família bem como relativizar
o dever de fidelidade entre os cônjuges, pautando-se na relação afetiva entre as pessoas
que integram a entidade familiar e não em modelos familiares previstos pelo
constituinte originário. Recentemente, a rua e o judiciário foram palco dos debates a
respeito das relações homoafetivas. O reconhecimento da união estável homoafetiva
fortificou ainda mais a tese aqui defendida, constituindo uma mudança de paradigma, no
qual as uniões se davam apenas entre pessoas de sexos diferentes. A realidade social fez
o judiciário perceber que a união não se dava entre sexos, mas no afeto entre os
companheiros, fazendo prevalecer a relação afetiva ao preconceito. A análise da relação
afetiva entre concubinos nos dias atuais será ponto fundamental deste trabalho, tendo
em vista que as entidades paralelas são tidas pelo direito das famílias como
concubinato. O que se busca com o presente estudo não é incentivar a prática adulterina
1
Professora na Faculdade de Direito Prof. ―Jacy de Assis‖, da Universidade Federal de Uberlândia,
avenida João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Uberlândia-MG, 38400-902. Endereço
eletrônico: flaviaufudireito@gmail.com. Orientadora do presente trabalho.
2
Graduando na Faculdade de Direito Prof. ―Jacy de Assis‖, da Universidade Federal de Uberlândia,
avenida João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Uberlândia-MG, 38400-902. Endereço
eletrônico: jpprudentesantana@gmail.com. Orientando.
216
ou a poligamia. Porém, tais relações fazem parte do cotidiano brasileiro e não podem ser
simplesmente ignoradas pelo direito. São necessárias novas discussões acerca da
natureza do concubinato, que coloquem o afeto, ponto central nas relações familiares,
acima do juízo prévio de reprobabilidade formado pelo principio da monogamia e da
fidelidade, superando os conceitos morais já ultrapassados, mas que continuam vigendo
no direito das famílias. Neste esteio, a presente pesquisa tem como objetivo o estudo
das relações concubinas bem como de sua regulamentação pelo direito brasileiro,
visando apresentar argumentos para a atribuição de direitos às uniões paralelas,
notadamente à chamada ―união estável putativa‖ e ao ―concubinato consentido‖.
Entendemos, contudo, que somente será possível atribuir efeitos jurídicos às relações
paralelas quando exista boa-fé de pelo menos um dos concubinos. Por isso, trabalhar-se-
á com estes dois novos institutos referidos acima, nos quais o princípio supra mostra-se
presente. Queremos demonstrar que o afeto, a boa-fé, a eticidade e todos os demais
princípios que possam reger as relações afetivas paralelas devem superar o modelo
monogâmico da sociedade brasileira, devendo as uniões simultâneas, nas circunstâncias
aqui defendidas, serem reconhecidas como união estável, com todas as suas
consequências, e amparadas pelo direito das famílias.

Palavras-chave: Famílias paralelas, Afetividade, Poliamor.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em um passado não tão distante, a única forma de constituição de uma família
era através do casamento. O matrimônio, por muito tempo, foi o berço da família
patriarcal, onde a mulher era submissa ao homem em vários aspectos da vida civil,
caracterizando a família como unidade econômica e de reprodução.
As constantes mudanças na sociedade fizeram com que a família ganhasse novos
contornos pelo Direito, que abandonou o matrimonio como única forma de ralação
familiar passando a valorizar os laços afetivas que unem um casal, possibilitando assim
o reconhecimento de novos arranjos familiares.
Neste cenário, algumas relações que, muito embora existam já algum tempo e
sejam de amplo conhecimento da sociedade, encontravam-se às margens de qualquer
direito, buscam o seu reconhecimento como verdadeiras entidades familiares. Dentre
elas, destacam-se as famílias paralelas.

O AFETO COMO PRINCÍPIO JURÍDICO


Com o advento da Constituição Federal de 1988, o afeto surge como ponto
central das relações familiares ganhando verdadeiro status de princípio norteador do
direito das famílias. A afetividade ―se traduz no respeito de cada um por si e por todos
os membros - a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade

217
perante o corpo social‖ (SIMÕES, 2015, p. 19). Nesse sentido Maria Berenice Dias
leciona:
Nos dias de hoje, o que identifica a família não é nem a celebração do
casamento nem a diferença do sexo ou o envolvimento de caráter sexual. O
elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a
presença de um vinculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos
de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo (DIAS, 2011,
p. 28).

Paulo Luiz Netto Lôbo (2002, p. 97) elenca alguns artigos da Constituição
Federal que conduziriam ao princípio da afetividade, sendo eles: (i) a igualdade entre os
filhos qualquer seja sua origem (art. 227, § 6º); (ii) a adoção, como escolha afetiva com
igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); (iii) a comunidade formada por qualquer dos
pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma
dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §§ 3º e 4º); (iv) o fim da
indissolubilidade do casamento, sendo o casal livre para extinguir o casamento ou a
união estável, sempre que a afetividade desapareça (art. 226, §§ 3º e 6º).
Com a constitucionalização do direito civil, notadamente do direito das famílias,
o afeto ganhou posição de destaque em detrimento da família como núcleo econômico e
de reprodução. Ao conceber a união estável como família a Constituição reconheceu
que a relações de afeto e solidariedade entre seus membros bastariam para caracterizar
uma unidade familiar, não sendo necessário o casamento. Ainda, ao estabelecer a
possibilidade do divórcio (ou a livre dissolução da união estável), a Carta Magna deixa
claro que apenas a afetividade mantém unidas essas entidades familiares, e não a lei.
Pode-se concluir então que onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços
de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família (LÔBO, 2002,
p. 97).
Deste modo, para parte da doutrina como Maria Berenice Dias (2011, p. 72), a
afetividade conquistou status de princípio norteador do direito das famílias, atribuindo-
se valor jurídico ao afeto. Assim, se o elemento que caracteriza uma unidade familiar é
o afeto, conclui-se que as famílias podem se apresentar sob tantas e diversas formas
quantas forem as possibilidades de se relacionar, ou melhor, de expressar amor, afeto
(ROSENVALD; FARIAS, 2013, p. 41). Surge então a ideia de um pluralismo familiar,
outro princípio que permeia as famílias contemporâneas.
Neste esteio, muitos autores acreditam que o conceito trazido no caput do artigo
226 da Constituição é plural e indeterminado, incluindo-se como família toda unidade
218
formada por afeto. Trata-se, portanto, de uma cláusula geral de inclusão e não um rol
taxativo de possíveis núcleos familiares, onde o cotidiano, as necessidades e os avanços
sociais se encarregarão da concretização de novos arranjos de família – como já o
fizeram com as uniões homoafetivas – que merecerão, igualmente, proteção legal
(ROSENVALD; FARIAS, 2013, p. 84).
Desdobrando o artigo 226 da CRFB o autor Paulo Luiz Netto Lôbo chega à
conclusão de que o rol de modelos familiares trazidos pela Carta Magna de fato não é
taxativo:
No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao
âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer
referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições
brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução ―constituída pelo casamento‖
(art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra,
pôs sob a tutela constitucional ―a família‖, ou seja, qualquer família. A
cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a
tipos determinados, para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não
significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a
locução ―a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela
comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos‖. A interpretação de
uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos
comuns, restringindo direitos subjetivos (LÔBO, 2002, p. 94).

Para LÔBO (2002, p. 91) são consideradas entidades familiares as que


preencham os requisitos de afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com
desconsideração do modelo econômico; estabilidade, excluindo-se os relacionamentos
casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; e ostentabilidade,
que pressupõe uma unidade familiar que assim se apresente publicamente. Assim,
qualquer modelo familiar onde estejam presentes tais requisitos merecerá proteção
constitucional, com a guarida do direito das famílias.
Diante de todas estas mudanças no núcleo familiar, o direito tem sido
diariamente interpelado a respeito dos novos arranjos familiares que se espalham pela
sociedade, assim como aconteceu no caso das uniões homoafetivas. Hodiernamente, as
chamadas famílias paralelas tem sido o grande alvo de discussões nos tribunais
brasileiros, que, até o momento, têm caminhado na contra mão de toda esta longa
evolução pela qual passou a família.

FAMÍLIAS PARALELAS E A BOA-FÉ


Em uma definição simples, deve-se entender como relações paralelas aquela
onde existam arranjos familiares simultâneos em que haja um membro comum entre

219
ambos, seja um casamento e uma ou mais uniões estáveis ou duas ou mais uniões
estáveis. É certo que na maioria dos casos que batem a porta da justiça, o sexo
masculino é este denominador comum, embora não deva se omitir a existência de
uniões simultâneas onde a mulher faça esse papel (VERAS, 2014, p. 84).
Assim, diante da constitucionalização do direito das famílias, arrisca-se dizer
que se há uma relação extraconjugal lastreada na afetividade entre os seus membros,
existe a possibilidade do reconhecimento desta união com verdadeira família, com todos
os seus efeitos, como os benefícios previdenciários, alimentos e até a herança. Há,
porém, um forte entrave que permeia toda a sociedade ocidental, impedindo que estas
relações sejam reconhecidas pela direito das famílias. Trata-se da monogamia.
Para muitos doutrinadores considerada princípio jurídico ordenador do direito
das famílias, a monogamia tem sido o principal esteio dos juízes em impedir o
reconhecimento de uma família constituída simultaneamente a outra, ainda que goze de
afetividade, estabilidade e ostentabilidade. Assim, atualmente, as relações paralelas são
tratadas pelo direito como concubinato, não gozando de quaisquer direitos na seara
familiar.
Contudo, embora não se olvide a importância da monogamia como função
ordenadora do direito das famílias, não se trata de um princípio absoluto. Isto porque
existem outros princípios que norteiam as relações familiares que não podem ser
ignorados pelo Direito, como por exemplo a boa-fé.
Não se ignore, que a monogamia não pode se apresentar como valor superior
a outros identicamente merecedores de prestigio jurídico, exatamente como a
boa-fé. Assim, a boa fé afasta o caráter antijurídico do concubinato, porque
valoriza a dignidade dos componentes de todos os grupos familiares
concomitantes (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 543).

Com efeito, constatada uma colisão entre o princípio da monogamia e o


princípio da afetividade, a boa-fé cuidará de relativizar o primeiro, de modo que apenas
as uniões paralelas em que a boa-fé esteja presente, juntamente com a afetividade,
ostentabilidade e estabilidade serão reconhecidas pelo direito das famílias. Neste
sentido, há duas modalidades de uniões paralelas que merecerão tal tutela, quais sejam a
união estável putativa e o concubinato consentido.
Em primeiro lugar, a chamada união estável putativa surge por equiparação à
figura do casamento putativo prevista no artigo 1.561 do Código Civil, mais
especificamente em seu parágrafo 1º, que assim dispõe: ―se um dos cônjuges estava de

220
boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão‖.
Assim, estando o companheiro ou os companheiros de boa-fé a união produzirá seus
efeitos até o dia da sentença anulatória.
Neste sentido, Rolf Madaleno assevera que:
Desconhecendo a deslealdade do parceiro casado, instaura-se uma nítida
situação de união estável putativa, devendo ser reconhecidos os direitos do
companheiro inocente, o qual ignorava o estado civil de seu companheiro, e
tampouco a coexistência fática e jurídica do precedente matrimônio, fazendo
jus, salvo contrato escrito, à meação dos bens amealhados onerosamente na
constância da união estável putativa em nome do parceiro infiel, sem prejuízo
de outras reivindicações judiciais, como, uma pensão alimentícia, se provar a
dependência financeira do companheiro casado e, se porventura o seu
parceiro vier a falecer na constância da união estável putativa, poderá se
habilitar à herança do de cujus, em relação aos bens comuns, se concorrer
com filhos próprios ou a toda a herança, se concorrer com outros parentes
(MADALENO, 2008 apud GAGLIANO, 2008).

Assim sendo, se uma pessoa casada ou em união estável resolve se aventurar em


uma relação paralela, com laços afetivos entre os membros, e não esclarece para a
segunda companheira o seu estado civil ou a existência prévia de uma união estável,
induzindo-a a erro, provada a boa-fé, deverá ser reconhecida a união estável putativa
com todos os seus efeitos.
Em segundo lugar, outra relação paralela que merece a guarida do direito das
famílias é o chamado concubinato consentido ou poliamorismo. A família poliafetiva ―é
aquela em que há plena ciência e aquiescência de todos os seus integrantes, os quais
mantém relacionamentos afetivos recíprocos‖(HUDLER; TANNURI, 2014, p. 118 e
119), por isso são também denominadas de concubinato consentido.
O caso paradigma do poliamor ocorreu em Tupã-SP, onde, em meados de 2012,
foi lavrada uma escritura pública de união estável entre duas mulheres e um homem,
todos de comum acordo desejando viver em uma entidade familiar:
Foi divulgada essa semana uma Escritura Pública de União Poliafetiva que,
de acordo com a tabeliã de notas e protestos da cidade de Tupã, interior de
São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues, pode ser considerada a
primeira que trata sobre uniões poliafetivas no Brasil. Ela, tabeliã responsável
pelo caso, explica que os três indivíduos: duas mulheres e um homem, viviam
em união estável e desejavam declarar essa situação publicamente para a
garantia de seus direitos. Os três procuraram diversos tabeliães que se
recusaram a lavrar a declaração de convivência pública. ―Quando eles
entraram em contato comigo, eu fui averiguar se existia algum impedimento
legal e verifiquei que não havia. Eu não poderia me recusar a lavrar a
declaração. O tabelião tem a função pública de dar garantia jurídica ao
conhecimento de fato‖, afirma (IBDFAM, 2012).

221
Há ainda a hipótese em que a concubina sabe da existência da outra família,
porém a esposa ou a companheira não conhece a relação extraconjugal. Trata-se de
situação muita mais delicada que, ressalvado os entendimentos contrários, não merece
guarida do direito das famílias em face da ausência de boa-fé, diferentemente dos dois
núcleos familiares acima exemplificados. Acredita-se que, conforme os dizeres de Pablo
Stolze, ao não considerar a boa-fé como requisito para a caracterização das uniões
simultâneas, ―criaríamos uma ambiência propícia à autuação de golpistas e
aproveitadores, simuladores de relações de afeto‖ (GAGLIANO, 2008, p. 37).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez atribuído à afetividade o status de principio jurídico norteador do
direito das famílias, o surgimento de novos arranjos familiares é consequência lógica e
inevitável, não cabendo ao Direito condicionar ou impedir seu reconhecimento uma vez
presentes todos os requisitos para a constituição de uma relação familiar.
As visões preconceituosas, muitas vezes consequência de valores culturais
transmitidos de geração em geração na sociedade, como é o caso da heterossexualidade
e da monogamia, não deverão prevalecer diante da dignidade e da felicidade dos
membros que integram estes novos – embora muitos deles já existam bastante tempo –
arranjos familiares.
Neste sentido, ainda que se considere a monogamia como principio ordenador
das famílias, a afetividade juntamente com a boa-fé podem mitigá-la em certos casos,
como ocorre nas famílias poliafetivas e na união estável putativa. Deste modo,
ressalvados os casos em que a boa-fé inexiste, às famílias paralelas devem ser
concedidas o status de verdadeira entidade familiar, trilhando o mesmo caminho das
uniões homoafetivas, corroborando assim para um novo conceito de família.

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224
SOBRE A CIDADANIA E OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO
BRASIL: O “CASAMENTO” GAY.

Paulo Sérgio da Silva 1


Resumo

A promoção e a valorização da cidadania como norte de nossa organização


política foram essenciais para o desenho e a legitimação da nova ordem social e
jurídica brasileira, pós Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, conceitos como:
liberdade, igualdade e garantias fundamentais foram apontados como objetivos
primordiais na/para a sociedade, desde então.
Tal situação favorece discussões acerca dos aspectos, contornos e parâmetros
atribuídos ao exercício da liberdade sexual, na esfera de intimidade e, sobretudo, quanto
aos seus reflexos sociais, particularmente no domínio das garantias fundamentais e dos
direitos civis. Cabem indagações acerca da articulação efetiva entre os direitos
assegurados, a ordem social e política pretendida e a realidade vivenciada no país pelas
minorias sexuais, após a promulgação da nova Constituição, tanto no seu cotidiano
como no campo de suas demandas cidadãs. Nesse sentido, constitui-se como um lócus
privilegiado para conhecer e discutir tal embate, as lutas políticas e jurídicas
relacionados ao reconhecimento da união afetiva sexual entre pessoas do mesmo sexo.
Assim sendo, considerando-se a complexidade do assunto e a riqueza da
discussão esse texto, aliando pesquisa bibliográfica e a análise documental da
Constituição Federal da República Brasileira de 1988 e da Resolução 175/2013 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que impôs aos cartórios de registro civil as regras
para a habilitação, a celebração de casamento civil e a conversão de união estável em
casamento entre pessoas de mesmo sexo debaterá: o conceito de cidadania, definido na
e a partir da Constituição de 1988, os direitos e garantias fundamentais assim
estabelecidos, os aspectos, contornos e limites atribuídos ao uso e exercício da liberdade
sexual, discutindo, especificamente, quanto ao ―casamento‖ gay, os caminhos e os
descaminhos que marcam a tortuosa trajetória entre a liberdade sexual, os direitos civis
e sua efetiva fluência no Brasil, após 1988.

Palavras-chave: cidadania, direitos civis, casamento gay

Introdução

O direito é a forma habitual na/pela qual se dá a estruturação consciente dos


objetivos primordiais das comunidades políticas, exprime os seus princípios
elementares mediante um emaranhado de normas que não se dão em abstrato, mas sim
que são estabelecidas, desejadas e constituídas por sujeitos históricos. As leis são
expressões linguísticas que atribuem e estipulam condutas, discricionariamente

1
Docente da Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de História – Uberlândia/ Doutor em
História – paulounesp@yahoo.com.br
225
determinadas graças a atos de vontade de um ―ser‖ inserido e preso à realidade sócio
política e que são aplicadas como disposições obrigatórias ao conjunto de pessoas
residentes num dado território.
O arcabouço normativo não existe por si, nem sobrevive em si, mas subsiste em
função das especificidades do agrupamento social que o cria, mantém e sustenta num
dado contexto e em determinada época, fornecendo-lhe substância (HESSE, 1992, 35-36).
Traço comum a todos os ramos da ordenação jurídica, a historicidade encontra-se
destacada na gênese constitucional, ocasião primaz em que as mediações, valorações e
expectativas de comportamento veem à tona e são mediadas pelo poder político, no
transcurso da reconfiguração do jurídico.
Contemporaneamente, a Constituição é o estatuto organizativo das estruturas do
Estado (poderes, órgãos e competências, etc.) e da sociedade civil (formas de
representação, direitos e garantias, deveres, etc.), emergente e imersa no contexto
histórico político em que surge e no qual deve atuar. Trata-se de um conjunto sistemático
normativo racional de uma unidade política estatal no qual estão expressos a sua
estruturação primordial, os seus fins e a sua identidade (SILVA, 2008).
Ela é o resultado da vontade de um poder constituinte, cuja formação, extensão
e amplitude encontram-se vinculadas a questões reais de ―poder‖, de ―força‖ ou de
―autoridade política‖ relacionada a indivíduos ou grupos sociais em condições de, numa
determinada situação histórica, criá-la e garanti-la como nova lei fundamental da unidade
política, mediante a escolha e o estabelecimento de seus novos parâmetros legais.
(CANOTILHO, 1998, 59).
Em face do texto constitucional é possível, entre outras coisas, identificar os
parâmetros selecionados e estabelecidos, como pilares da ordem social, política e
econômica que se pretende delinear e até mesmo discutir e analisar as aproximações
e/ou os desvios aferidos na sua hermenêutica e na sua aplicação à realidade, ou seja,
avaliar as alternâncias entre o que se definiu constitucionalmente e aquilo que foi de
fato vivenciado.
Tal condição permite discussões acerca dos aspectos, contornos e parâmetros
constitucionais atribuídos ao exercício da liberdade sexual, seja na esfera de intimidade,
mas, sobretudo, quanto aos seus reflexos sociais, particularmente no domínio das
garantias fundamentais e dos direitos civis. Assim como, indagações acerca da
articulação efetiva entre os direitos assegurados, a ordem social e política pretendida e a
226
realidade vivenciada no país a partir da vigência da nova Constituição de 1988 pelas
minorias sexuais, seja no seu cotidiano e/ou nas suas demandas cidadãs.

A constituição cidadã: projeto sócio político e direitos e garantias fundamentais

A descompressão política iniciada no governo do General Ernesto Geisel,


responsável pela criação de uma nova base de permanência do regime militar, resultou
na transferência do poder aos civis, em 1985, com o início do Governo de José Sarney.
Efetivada a transição, o grande desafio da política foi o de consolidar e definir os rumos
do novo regime político e da sociedade nacional. Nesse sentido, a Constituição de 1988
tornou-se o paradigma do novo modelo sócio-político que se pretendeu instalar a partir
de então.
Inaugurando o novo desenho constitucional encontra-se o preâmbulo, cuja
análise mostra-se significativa. Embora não seja uma peça necessária, ele aparece como
um componente natural das constituições e o seu alcance político é evidente. Exprime,
entre outras coisas, o projeto político e social ao qual ela pretende dar corpo,
identificando os princípios fundamentais do ordenamento. Nesse sentido, torna-se
esclarecedor retomá-lo:

―Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia


Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL‖ (grifos do autor).

Percebe-se que o ideal definido para a estruturação e o funcionamento da


sociedade brasileira foi o de um Estado Democrático, em que fosse assegurado, entre
outras coisas, o exercício dos direitos individuais, garantindo-se como valores supremos
a liberdade e a igualdade de todos, de forma a construir uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.
Diante de tão nobre propósito cabe indagar: o novo projeto social e político
delineado para a sociedade nacional contemplava o reconhecimento, o acesso e a
proteção dos direitos e garantias individuais atinentes ao exercício da cidadania sexual
aos gays, lésbicas e/ou transgêneros? Subsidiariamente entende-se que sim, desde o

227
início, porém por aproximadamente vinte e cinco anos as práticas foram de reiteradas
negativas ao reconhecimento, o acesso e a proteção dos direitos e garantias individuais
relacionadas ao exercício da cidadania sexual de gays, lésbicas e transgêneros. Embora
voltada à garantia da igualdade a sociedade brasileira, por um longo período, tratou
parte dos seus cidadãos como indivíduos de menor categoria.
Independentemente de seu reconhecimento jurídico a homossexualidade
acompanha a humanidade há milhares de anos. Na atualidade não é mais tipificada
como patologia pela Organização Mundial da Saúde, sendo que no Brasil o Conselho
Federal de Medicina não a considera doença e o Conselho Federal de Psicologia, por
intermédio da Resolução 01/99, afastou quaisquer procedimentos com a finalidade de
curá-la (LOREA, 2006, 491-2).
Como justificar, portanto, que gays, lésbicas e transgêneros tenham permanecido
juridicamente marginalizados e que suas relações afetivas sexuais, tenham sido
insistentemente tipificadas como de menor categoria diante da heteronormatividade?
Na ausência de expressa menção constitucional os relacionamentos entre as
pessoas de mesmo sexo foram interpretados, prioritariamente, pelos juízes e tribunais de
maneira dogmática, vedando-lhes o acesso ao ―casamento‖, tido como incompatível
com as relações homossexuais (MEDEIROS, 2007, 14), mediante ao recorrente
argumento de que era necessária a aprovação de uma lei específica para regulá-lo entre
parceiros homossexuais (LOREIA, 2006, 493). Ressalta-se o fato de que aqui o termo
―casamento‖ reporta-se ao registro em cartório da união afetiva sexual entre duas
pessoas de mesmo sexo, capaz de lhes garantir uma série de obrigações e direitos
reciprocamente estabelecidos no âmbito civil e previdenciário, típicos a tal vinculação,
sem nenhuma referência, portanto, a qualquer celebração de cunho religioso.
Não se contestou, em momento algum, a proteção constitucional às relações
heterossexuais, via casamento ou união estável, apontadas no art. 226, o que se
pleiteava era a extensão de suas garantias e obrigações às relações afetivas sexuais
firmadas entre pessoas do mesmo sexo.
A leitura dogmática revelou-se inadequada para lidar com a crescente
complexidade e com as transformações sociais, notadamente as dimensões afetivas e
sexuais envolvidas nas relações entre duas pessoas de mesmo sexo, a revelia da lei esse
tipo de relacionamento foi tornando-se cada vez mais comum, adquirindo visibilidade e
colocando a justiça os seus pleitos pelo sua aceitação e proteção.
228
Como não identificar que a negativa ao reconhecimento e amparo jurídico das
relações afetivas sexuais entre pessoas de mesmo sexo no sistema sócio, político e
jurídico brasileiro não era uma afronta o mandamento do artigo 3.º da Constituição
Federal, que diz que o fundamento do Estado é o de ―promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação‖. Um insulto ao artigo 19, que prevê ser ―vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] criar distinções entre brasileiros ou
preferências entre si‖ e um ultraje ao caput do artigo 5º, da Constituição Federal:
―Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza‖.
Acertam todos aqueles que disseram e que até hoje sustentam que sempre foi
equivocada a exigência de um regramento específico para que se pudesse configurar o
reconhecimento, o acesso e a proteção jurídica das relações afetivas sexuais entre
pessoas do mesmo sexo. Não existia a necessidade de novas regras, bastaria a aplicação
efetiva dos princípios constitucionais, notadamente os da dignidade humana e da
igualdade (MEDEIROS, 2007, 25-26).
A negativa do acesso pleno aos direitos e garantias fundamentais aos gays,
lésbicas e transgêneros implicava em evidente discriminação por orientação sexual. A
essas pessoas, civilmente capazes, não se permitia o exercício integral da cidadania
(LOREA, 2006, 490). A vedação de seus acessos ao casamento civil – capaz de conferir
a proteção aos afetivos e as relações patrimoniais erguidas no âmbito de uma relação
conjugal –, resultavam na ―perda de auto respeito e da capacidade de se referir a si
mesmo como um igual dentro da interação social‖. Diminuía-lhes tanto o exercício de
suas autonomias privadas, mediante a limitação de seus campos de atuação, como a
autonomia pública, rotulando-os de inferiores, como ―parceiros de menor valor na
interação existente dentro de uma sociedade de coassociados pelo direito‖
(MEDEIROS, 2007, 21-22).
Na propalada democracia brasileira, por vinte cinco anos, persistiu a inquietante
situação de que os direitos e garantias individuais e os princípios da dignidade da pessoa
humana e da igualdade, constitucionalmente estabelecidos como pilares da sociedade
nacional, não eram condizentes com o reconhecimento e a proteção jurídica das relações
homoafetivas.

Dignidade da pessoa humana e igualdade


229
Inaugurando o texto constitucional, como um dos fundamentos da República
Brasileira, encontra-se a menção a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Embora
possa ser considerada como inerente à essência de cada cidadão, é no contexto social
que a dignidade se expressa e é vivenciada, mediante o respeito às ações e os
comportamentos individuais. Portanto, somente haverá respeito à dignidade da pessoa
humana quando e somente quando a cada brasileiro for assegurada a fruição no campo
social, político e jurídico do respeito e da garantia a sua liberdade, imagem, intimidade,
consciência. Ela somente se efetiva com e pelo gozo de todos os direitos e garantias
individuais que estão indicados no art. 5º e seus incisos e de outros espalhados pela
Constituição, entendidos como irrenunciáveis, intransferíveis, inegociáveis, inalienáveis
e imprescritíveis (LOPEZ, 2005, 78).
O caput do art. 5º informa que ―todos são iguais perante a lei sem distinção de
qualquer natureza‖, sendo, portanto, dever de todos e direito de cada um, o tratamento
isonômico. Gays, lésbicas e transgêneros iguais a todos os demais brasileiros perante a
lei? Às vezes sim, outras, nem tanto.
Evidentemente, encontra-se constitucionalmente preservado o foro intimo das
simpatias e antipatias, mas está proibida toda e qualquer discriminação que advenha da
vontade de diferenciar, preterir, desprezar, negar ou obstaculizar pretensão
juridicamente legítima por motivações vinculadas a preconceitos de cor, sexo, religião,
orientação política, etc. A ninguém é vedado ser indiferente ou desacorde as causas,
lutas e/ou ao comportamento de gays, lésbica e/ou transgêneros. Contudo, a alguém
antipático a tal segmento sexual não é dado o direito de expressões públicas de desprezo
e, tampouco, o direito de adotar contra eles qualquer medida e/ou ação de modo a
diferenciar, preterir, desprezar, negar, obstaculizar os seus acessos a bens, serviços e/ou
direitos que estejam assegurados a todos, indistintamente de orientação sexual.
Uma interpretação sistêmica da Constituição de 1988 indica os dados
impeditivos do tratamento desigual, no art. 7º, XXX, aponta-se ―motivo de sexo, idade,
cor e estado civil‖, no art. 5º, XLII, há referência a ―pratica de racismo‖, assim como no
art. 3º, fala-se em ―preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação‖ (LOPES, 2005, 78). Consta-se, expressamente, na vedação de
tratamento desigual as motivações vinculadas a sexo (gênero), aplicáveis às relações
privadas e/ou públicas, quer dos brasileiros entre si ou entre o Estado e os cidadãos.

230
Assegurar igualdade implica em tê-la mantida sob duas dimensões: ―igualdade
perante a lei‖ e ―igualdade na lei‖. Por um lado, há que se garantir a todos,
indistintamente, a idêntica aplicação do direito, de modo que estejam sujeitos aos
mesmos efeitos jurídicos das leis estabelecidas. Por outro, deve existir a igualdade de
tratamento dos casos similares pelas normas jurídicas, admitindo-se apenas
diferenciações em face de situações restritas (RODRIGUES, 2008, 67-69), unicamente
com a finalidade de equilibrar situações de desigualdade reais, por exemplo, no caso das
chamadas políticas afirmativas.
Garantir a igualdade não indica perseguir a homogeneização, mas assegurar o
respeito às diferenças, pressupondo-se que a sua promoção encontra-se baseada no
respeito ao pluralismo (MEDEIROS, 2007, 23-24). Nesse sentido, como aceitar as
visões que se atinham ao reconhecimento jurídico unicamente de relações afetivas
sexuais de orientação heterossexual?
A negativa de direitos a gays, lésbicas e transgêneros somada à manutenção do
status quo tratava-se de uma ofensa ao regime democrático de iguais direitos, sob o
silêncio do sistema político e jurídico cultivou-se a intolerância, por um longo período.
Numa ordem efetivamente democrática, toda e qualquer discriminação sexual é
juridicamente ilícita (LOPES, 2005, 78).
A dissonância entre a ordem constitucional e a realidade prática fez com que, no
Brasil, por muitos anos, se impusesse a gays, lésbicas e transgêneros o conjunto de
deveres, mas não na mesma ordem, a plenitude dos direitos. Nesse sentido, o
reconhecimento e a proteção das relações afetivas e sexuais ficaram presos aos gostos e
ao arbítrio de decisões judiciais, não raras vezes conflitantes entes si, sendo aceitas e
contempladas por alguns e rejeitadas por outros.

Entre contradições e avanços

Em janeiro de 2005 observou-se uma situação emblemática, na cidade de


Taubaté, São Paulo, o procurador do Ministério Público Federal entrou com ação civil
pública pedindo liminar para permitir o casamento entre homossexuais em todos os
estados e no Distrito Federal. Sua pretensão foi negada pelo Tribunal Regional Federal
sob o argumento de que não seria adequado o tratamento de tal tema mediante uma
decisão de caráter liminar (provisório), esquivando-se o órgão jurisdicional, no entanto,
de realizar a análise de mérito do pedido.
231
Naquele mesmo ano e mês, o Tribunal Superior Eleitoral impugnou a
candidatura de Eulina Rabelo ao cargo de prefeita do município de Viseu, no Pará, sob
o argumento de que ela mantinha, à época, relacionamento estável com a prefeita
daquela localidade, sendo sentenciada a sua inelegibilidade em virtude do vínculo
afetivo sexual que mantinha. A manifestação do Ministro Gilmar Mendes foi
reveladora, deu-se nos seguintes termos: ―Os sujeitos de uma relação estável
homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e
de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7°, da
Constituição Federal‖ (MELLO, 2006, 499-500).
Em decisões de segunda instância, paradoxalmente, o judiciário, por um lado
negou liminarmente provimento a pretensão de acesso ao casamento, reconhecimento e
a proteção jurídica das relações afetivas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, fugindo a
uma efetiva análise de mérito. Por outro, no domínio das vedações legais a este mesmo
tipo de relacionamento reconheceu-se às restrições impostas às relações heterossexuais.
A prevalecer tal entendimento, pareceu que nas relações afetivas sexuais entre pessoas
do mesmo sexo prevaleciam as obrigações, mas não as garantias atinente ao campo
normativo.
De sorte que a impugnação de Gilmar Mendes trouxe, ainda que implicitamente,
pela primeira vez o reconhecimento jurídico dos laços homoafetivos equiparando-os,
em termos obrigacionais a união estável e/ou ao casamento entre pessoas de sexo
distinto, estava aberto o caminho para a correção de uma distorção que se mantivera
desde 1988.
Seis anos depois, em 2011, no Supremo Tribunal Federal, em julgamento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI – nº 4.277) e na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF – nº 132) o ministro relator Carlos
Ayres Brito indicou em seu voto que ―o sexo das pessoas, salvo expressa disposição
constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica‖.
Reconheceu-se que a discriminação em razão do sexo confrontava-se com o propósito
constitucional de promover o bem de todos e com a defesa do pluralismo sócio-político
cultural, fundamentos da República Federativa do Brasil. Assentou-se que a formação
da família não se encontrava atrelada aos requisitos da heteroafetividade e que nela
deveria a partir de então ser reconhecida como lócus de fluência dos direitos
fundamentais de intimidade e da vida privada (art. 5º, X), concluindo-se, nos termos do
232
ministro relator que: ―a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente
amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço
ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de
índole privada‖ (BUNCHAT, 2012. 136-138).
Acompanharam o voto do relator os ministros: Celso de Mello, Cesar Peluso
Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Marco Aurélio de Mello e Ricardo
Lewandowsky e as ministras Carmem Lucia Antunes Rocha e Ellen Gracie. Ou seja,
por unanimidade o Supremo Tribunal Federal reconheceu a procedência no julgamento
dos pedidos atribuindo-lhes efeito vinculante (todas as decisões da justiça brasileira
deveriam acompanhar a interpretação do STF a partir dali) excluindo-se, a partir de
então qualquer interpretação do artigo 1723 do Código Civil que inviabilizasse o
reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar (BUNCHAT, 2012, 136-
138).
Vinte e três depois da promulgação da Constituição de 1988 reconheceu-se,
formalmente, que todos os brasileiros deveriam ser considerados de fato iguais perante a
lei e que na pluralidade dos comportamentos sexuais e afetivos, gays, lésbica e
transgêneros deveriam ter reconhecido e garantido o exercício de sua cidadania sexual,
de modo a preservar e fluírem de sua dignidade de pessoa humana.
Consolidada a prevalência do entendimento de que à união homoafetiva estava
assegurada o reconhecimento como entidade familiar, carecia garantir os meios para as
sua concussão protocolar, seguia em aberto a questão do registro da relação afetiva
sexual entre pessoas do mesmo sexo, ou seja, faltava definir os meios de acesso ao
―casamento civil‖ pelas pessoas de mesmo sexo.
Anos antes, em 2004, no campo administrativo, financeiro e fiscalizatório do
Poder Judiciário, a Emenda Constitucional nº 45 criou o Conselho Nacional de Justiça,
que se tronou um importante órgão de integração do sistema jurisdicional nacional. Na
sua tarefa de sistematizar o funcionamento da justiça o CNJ tem o poder de editar
resoluções, imperativas aos demais órgãos a ele subordinado (BOCHENEK, 535-40).
Assim sendo, o último passo na trajetória aqui abordada veio, em maio de 2013
quando o CNJ editou a Resolução 175. Finalmente, conferiu-se as pessoas de mesmo
sexo interessadas em assegurar as suas relações afetivas sexuais o reconhecimento, o
acesso e a proteção jurídica as regras para a habilitação, a celebração de casamento
civil, ou de conversão de união estável em casamento.
233
Determinou-se que a partir de então ficava vedada a autoridade competente
(cartórios de registros civis) a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de
conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo (art. 1º). Sendo
que em caso de recusa, deve se proceder a imediata comunicação ao respectivo juiz
corregedor para as providências cabíveis (BRASIL, 2013).
Finalmente, vinte e cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988, o
desigual tratamento às relações afetivas sexuais entre pessoas do mesmo sexo foi
afastado. Ao reconhecimento pelo Supremo de que às relações homoafetivas aplicava-se
o conceito jurídico de família somou-se a adoção de mecanismos institucionais capazes
de garantir a celebração do casamento civil e da conversão de união estável em
casamento, entre as pessoas de mesmo sexo.

Considerações finais

Num efetivo Estado Democrático de Direito a discussão dos direitos e obrigações


relacionadas às questões afetivas e sexuais deve adstringir-se, unicamente, ao campo
normativo. Não cabe nesse quesito preceitos de ordem moral e/ou religiosa, há que se ter
em conta, fundamentalmente, que:

―Os preconceitos não são razões validas (acreditar que os


homossexuais são inferiores porque não realizam atos heterossexuais não se
justifica como julgamento moral de superioridade ou inferioridade); o
sentimento pessoal de nojo ou repulsa não é razão suficiente para um
julgamento moral; o julgamento moral baseado em razões de facto, que são
falsas ou implausíveis, não é aceitável (por exemplo, é factualmente incorreto
dizer que os atos homossexuais debilitam, ou que não há práticas
homossexuais na natureza – ou seja, em outras espécies animais sexuadas) e
que o julgamento moral baseado nas crenças alheias (―todos sabem que a
homossexualidade é um mal‖) também não está suficientemente justificado‖
(LOPES, 2005, 69-70)

Uma sociedade só é de fato democrática quando garante o tratamento igualitário, o


respeito à dignidade da pessoa e à liberdade e assegura o exercício e o reconhecimento
pleno das cidadanias sexuais. Argumentar que as relações afetivas sexuais entre pessoas de
mesmo sexo não devem ser reconhecidas e ter amparo jurídico incide em defender que o
Estado deve aplicar a todos, coercitivamente, um dado conjunto de convicções morais e/ou
religiosas. Trata-se de uma afronta à liberdade, só merece ser considerada livre aquela
sociedade em que na pluralidade dos comportamentos, ações, interesses, gostos e condições
a cada um é dado o direito de buscar seu próprio bem, à sua maneira, sem prejuízo dos
demais, mediante a harmonia social.

234
Na sociedade brasileira, planificada pelos constituintes em 1988, pretendida como
fraterna, pluralista e harmônica, por vinte e cinco anos aos gays, lésbicas e transgêneros
foram atribuídos indistintamente os deveres, mas negada a plenitude dos direitos.
Enquanto perduraram as restrições no reconhecimento, acesso e amparo jurídico aos
laços afetivos e sexuais estabelecidos entre pessoas do mesmo sexo perpetuou-se o fato
de que na ―democrática e igualitária‖ sociedade nacional alguns eram mais ―iguais‖ que
outros. Por que não dizer alguns eram de primeira categoria e outros de segunda e/ou
terceira quanto ao exercício pleno da cidadania e aos direitos e garantias fundamentais,
sobretudo no que diz respeito às vivências da afetividade e da sexualidade.
De recentíssima leitura e viabilização o reconhecimento como entidade familiar
das relações homoafetivas e o acesso ao casamento civil constituem-se em objeto de
permanente interesse e vigilância a todos aqueles interessados, de fato, na construção e
manutenção de uma sociedade, efetivamente, democrática, igualitária, fraterna e
pluralista, contra a qual não faltam ameaças. Vide-se, por exemplo, as contraposições a
esses entendimentos no Congresso Nacional promovidas pelas bancadas religiosas,
partidos políticos e grupos homofóbicos nas discussões do estatuto da família.
A cidadania e os direitos fundamentais reportam-se a uma temática atinente aos
estudos sobre gênero, à medida que permite a sua abordagem num domínio social e
político essencial que é o normativo constitucional e de sua exegese, cuja característica
principal é a imperatividade, a capacidade de validar práticas e/ou preconceitos ou, na
outra ponta, de consolidar avanços diante das novas demandas sociais. Nesse sentido, a
análise e a discussão sobre o ―casamento‖ gay é capaz de revelar as contradições, as
transformações e os desafios rotineiramente colocados ao permanente tabuleiro em que
se constrói, referencia e garante a igualdade de gênero e a cidadania sexual.

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SILVA, Paulo Sérgio. A constituição brasileira de 10 de novembro de 1937: um retrato


com luz e sombra. São Paulo: Ed. UNESP, 2008.

236
QUESTÃO DE GÊNERO NOS MOVIMENTOS DE VANGUARDA: A
INSERÇÃO DA MULHER NA ARTE E A ROUPA COMO SUPORTE
ARTÍSTICO

Priscyla Kelly Vieira Abreu1


Alexander Gaiotto Miyoshi2

Resumo: Pretende-se desenvolver neste artigo uma reflexão sobre a questão de


gênero na arte europeia do final do século XIX e início do XX. Será feita uma análise à
produção da artista russa Alexandra Exter, que usa a roupa como meio para a inovação
artística, influenciada pelo cubo-futurismo. Na história da arte sobre aquele período,
nota-se uma quase completa exclusão de mulheres entre os artistas mais referenciados,
embora houvesse uma presença feminina de relevância. O construtivismo russo, do qual
Exter foi membro integrante, se diferenciou de outros movimentos de vanguarda pelo
envolvimento fundamental de mulheres artistas. Abordaremos os figurinos de Exter
para a peça Salomé, de Oscar Wilde, detendo-nos particularmente nos desenhos feitos
por ela para a personagem principal. Por meio de uma análise comparativa com outras
representações visuais de Salomé, observamos que Exter constrói uma nova concepção
dessa figura feminina, no momento de sua dança.

Gênero. Arte. Vanguarda.

Este artigo busca inserir-se em uma nova historiografia da arte que se dispõe a
rever o lugar e o papel das mulheres artistas, 3 bem como de sua produção. Abordaremos
o trabalho de uma artista russa participante de um movimento de vanguarda, o
Construtivismo, que foi em si excepcional por ter dado espaço e valor a mulheres
artistas como em nenhum outro movimento de vanguarda, nas duas primeiras décadas
do século XX.

1
Mestranda em Artes Visuais no PPGA-IARTE-UFU. E-mail: priscila.vabreu@gmail.com.
2
Professor de Teoria, Crítica e História da Arte no IARTE-UFU. Mestre e Doutor em História da Arte
pelo IFCH-UNICAMP, com Pós-Doutorado em Artes Plásticas pela ECA-USP. E-mail:
alexmiyoshi@hotmail.com.
3
Nesse empenho destaca-se o trabalho de NOCHLIN (1971), entre outros.
237
Alexandra Exter (1882-1949) foi uma importante artista no construtivismo
russo.4 Desenvolveu trabalhos notáveis em pintura, tendo também uma produção
relevante de cenários, marionetes e figurinos de teatro. Quando residiu em Paris, de
1910 a 1914, adotou princípios estéticos do cubo-futurismo. Participou das primeiras
exposições de arte moderna em Moscou, entre 1915 e 1917, tendo criado ainda a
cenografia e os figurinos da peça Famira Kifared em 1916 e de Romeu e Julieta em
1920, bem como do filme de ficção científica Aelita, de 1924.

Seus trabalhos para o teatro são marcados por formas e materiais ousados para a
época. Trataremos aqui dos figurinos desenvolvidos por Exter para a peça Salomé
(figura 1), de Oscar Wilde, encenada no Teatro Kamerny de Moscou no outono de
1917, com direção de Alexander Tairov. A montagem parece ter sido

tão bem recebida nos círculos artísticos em Moscou que foi vista como mais importante
que eventos políticos a exemplo da chegada ao poder da facção bolchevique, cujas
consequências históricas não eram fáceis de avaliar em outubro de 1917. Dada a familiaridade de
Exter com as novas ideias em design de cenários, apresentadas pelo ballet Diaghilev em Paris,
entre 1910 e 1913 ... , ela trouxe um sopro de inegável novidade a Moscou, prolongando a onda
inovadora com suas próprias invenções radicais.
Sua grande inovação foi desmaterializar o cenário ao substituir os painéis fixos de cena
por pura construção de luz, cuja lógica espacial era tão rigorosa quanto dinâmica. Em outubro de
1917, a estrutura brilhante e austera de Salomé marcou o nascimento do Teatro Construtivista. A
encenação foi um triunfo. Por meio da desmaterilização do cenário, Exter dilatou, de modo não-
objetivo (abstrato), a austeridade dramática do cenário monumental de Gordon Craig, então bem
conhecido e apreciado na Rússia.5

Tentaremos demonstrar que, para além da inovação artística, a abordagem


gráfica de Exter para a personagem Salomé escapa da figuração que lhe é frequente, de
mulher perversa e sensual, a quem os homens sucumbem. A personagem se tornou um
tema recorrente nas artes e na literatura no final do século XIX.6 Analisaremos diversas
representações visuais de Salomé e de outras personagens em comparação com a de
Alexandra Exter. O intuito é observar, no caso da artista russa, a construção de uma
forma renovada para essa figura feminina, sobretudo positiva, ligada a uma referência
célebre da história da arte que, no entanto, representa corpos de homens, não de
mulheres. Nossa abordagem metodológica se pauta em análises comparativas de

4
Sobre a obra de Exter, ver HUNT (2011).
5
Tradução nossa. Disponível em <www.alexandra-exter.net/en/biographie.php>. Acesso em 15/09/2015.
6
Ver DIJKSTRA (1986), p.376-401.
238
imagens na linha do que propõe pesquisadores como Carlo Ginzburg e Jorge Coli,
retomando a prática celebrada dos estudos de Aby Warburg. 7

A história de Salomé faz parte do Velho Testamento e repercutiu profusamente


na literatura e nas artes. Na passagem do século XIX para o XX a personagem foi uma
das favoritas a diferentes pintores, desde os ligados à Academia, como Henri Regnault,
até aos proponentes de uma nova arte, como Franz von Stuck. A Salomé de Regnault
(figura 3), exposta no Salão de Paris em 1870, foi elogiada pelo que seria uma
fidelidade aos aspectos orientais.8 A bandeja e a espada caracterizam a personagem,
assim como as vestes, com um olhar firme a quem a observa. A Salomé de Von Stuck
(figura 2), por sua vez, não nos encara nem tem a espada, mas exibe a cabeça de João
Batista, que fora pedida por Salomé, em troca de que ela dançasse para Herodes. Os
momentos são distintos: um, o da dança, posterior à decapitação; o outro, antecedendo-
a, mostrando a resolução inabalável da mulher que se sentira desafiada pelo homem. Em
ambas, os cabelos escuros volumosos, os elementos selvagens e a voluptuosidade se
articulam para configurar a imagem reincidente da personagem.

Exter representou também o momento da dança (figura 1), contudo de forma


menos sensual, 9 talvez porque encenar a obra inflamável de Wilde fosse também incitar
a censura num país como a Rússia. Mas Exter não deixa de sintetizar aspectos
recorrentes da personagem, como uma espécie de exotismo na tiara, a face confiante e
os movimentos delicados do corpo, que se sustenta na ponta dos pés. No entanto, ao
invés de explorar formas curvilíneas como frequentemente ocorre em representações
visuais de dançarinas, Exter aplica mais retas, restringindo o uso de curvas a partes do
ombro e dos braços, bem como ao caimento dos tecidos transparentes numa das pernas.
A redução das curvas ocorre mesmo em relação a figurinos anteriores da artista, para
produções nas quais a dança é componente central.

A ênfase nas linhas retas na representação da Salomé de Exter, portanto, é


excepcional em meio às representações visuais da personagem, o que inclui figurinos de
dança do início do século XX como os de outro artista russo, Leon Bakst (figuras 4, 5 e

7
Ver COLI (2010), GINZBURG (2014) e WARBURG (2013).
8
DIJKSTRA, p.382, e COOKE (2007), p.528-9, 536.
9
É necessário frisar que o desenho de Exter, de dimensões mais reduzidas, é instrumental, voltado para a
confecção de figurino de teatro, não de um quadro para expor em salões ou museus. Portanto, o status
artístico desse trabalho é menor, o que também concedeu à artista maior liberdade de expressão.
239
6). Nelas, os movimentos de corpos e tecidos são ondulantes, ressaltando-se o volume e
a sinuosidade carnais, bem como a variação de poses e ações que as danças exóticas
possibilitam, provocantes ao observador. Os corpos rechonchudos, por sua vez,
estimulam o toque, e os olhares, quando voltados para nós, raramente deixam de ser
sedutores (na figura 4, o detalhe da sapatilha que se solta do pé, para além de um
símbolo usual da perda de inocência, é também um reforço da sedução). Uma exceção
dentre essas imagens de mulheres é a de um homem que dança (figura 5), com gestos
delicados. Mas a exceção confirma a regra dos preconceitos, já que o homem, no caso, é
negro, o que se articula a outro senso do período: de que determinados povos
considerados inferiores (judeus, negros e orientais) deviam sua condição ao fato de ser
naturalmente efeminados.10 As teorias raciais, como sabemos, afirmavam a
superioridade dos brancos na exibição de caracteres de virilidade, constituindo um
elemento a mais a reverberar na construção da imagem que irmana mulheres e raças em
seres degenerados.

O dançarino de Bakst compartilha um gesto com a Salomé de Exter: as duas


mãos flexionadas para cima, acentuando a leveza de suas danças. O gesto se repete em
outros desenhos de Bakst, para figurinos de diferentes espetáculos, embora com
variações. É possível percebê-lo também na Salomé de Robert Henri (figura 7), que
compartilha ainda com a de Exter a pose dos pés e a transparência da saia. Porém, a
Salomé de Henri tem traje tradicionalmente usado na dança dos sete véus, ricamente
adornado por joias, evidenciando partes do corpo (o ventre despido), bem como a face
erguida que encara o espectador como a desafiá-lo e, ao mesmo tempo, seduzi-lo. A
Salomé de Exter, por outro lado, tem a cabeça e o olhar apontados para baixo,
aparentemente sem a pretensão de provocar quem a observa. Além disso, o figurino de
Exter propõe uma linearidade, uma geometrização das formas do corpo, atenuando,
assim, a sexualidade.

Na pintura, os trabalhos que talvez tenham sido os mais importantes no culto a


Salomé são os quadros do simbolista Gustave Moreau, muito influentes mesmo para o
romance decadentista A rebours, de 1884, de Joris-Karl Huysmans, e para a peça
Salomé de Oscar Wilde, de 1892.11 As composições de Moreau são originais, nas

10
DIJKSTRA, p.211-2; 220-1; 278
11
DIJKSTRA, p.385-6; 396-8 e COOKE (2011), p.214-8.
240
palavras do pesquisador Peter Cooke, devido ao ―êxtase hierático‖ de sua pose. Os
esboços de Moreau (figuras 9 e 10) mostram Salomé um tanto irreal, semelhante a uma
deusa, sendo que em um deles há uma evidente inspiração na arte hindu. As Salomés de
Moreau se aproximam das de Exter pelas formas retilíneas, sobretudo a aquarela
L‘apparition (figura 10), que mostra braço e perna estendidos em linha reta, formando um
esquadro apoiado obliquamente ao solo, com o dedo da mão apontado para a cabeça
sobrenatural do Batista.

Essa composição de geometria extraordinária ressoa, como Cooke afirma, a pose


dos guerreiros horácios do célebre quadro de Jacques-Louis David (figura 11). Cooke
observa também a subversão quanto às formas que representam os gêneros, promovida
de um para o outro quadro: se a pintura de David imputa passividade às mulheres,
representando-as cabisbaixas e lamuriosas, a de Moreau toma a composição retilínea
dos homens e a aplica na mulher, resultando em uma exceção formal às Salomés do
período.

Curiosamente, o gesto do braço esquerdo da Salomé de Moreau acabou


transfigurando-se não na Salomé de Exter, mas em seu João Batista (figura 1), que
também evoca o quadro de David. Mas há um ponto em comum entre a Salomé de
Exter e os horácios de David: a posição das pernas abertas em compasso, formando um
triângulo que estrutura firmemente as figuras, em apoio às suas decisões.

A Salomé de Alexandra Exter pode ser comparada, enfim, com a que fez um
artista genial do século XX, notório defensor de causas políticas e sociais. Picasso
gravou uma Salomé (figura 12) igualmente decidida, com as linhas retas aplicadas ao
corpo, que, no entanto, abre as pernas e exibe o sexo à visão de Herodes. Nem mesmo
Picasso escapou de fazer uma Salomé com algo de convencional, malicioso e vulgar, o
oposto do que fez Exter em sua singela representação. Pois a Salomé de Exter, assim
como a de outra pintora, Ella Ferris Pell (figura 13), lembrada pelo pesquisador Bram
Dijkstra como uma das representações pictóricas de mulher mais extraordinariamente
dignas do início do século XX, 12 são ambas respostas visuais engenhosas de mulheres
artistas a demandas profissionais e artísticas.

12
DIJKSTRA, p.390-3.
241
Tanto Ella Ferris Pell quanto Alexandra Exter compuseram Salomé como
mulher empoderada,13 consciente de sua condição e do mundo à sua volta, sem a
crueldade e a malevolência das incontáveis Salomés do entresséculos. Podemos
acrescentar que ambas as imagens, sobretudo a de Pell, talvez guardem algo de
melancólico, dada a condição à qual a personagem foi condenada: a ser algoz de um
homem santo, espécie de alegoria de todos os bons homens do mundo. Salomé, para as
duas artistas, cumpre um papel amargo, sem no entanto perder a compostura.

Por fim, vale mencionar a mórbida correlação identificada por Dijkstra quanto
ao fascínio, amor (e ódio) a Salomé, no início do século XX, bem como à outra
personagem bíblica que decapitou um homem, Judith (figura 14). Ambas, não por
acaso, são judias. Isso permite aproximar dois termos, um deles, ao que parece,
inexistente na língua portuguesa, ginocídio – isto é, feminícidio, extermínio de mulheres
– com genocídio. 14 Os anos de perseguição aos judeus e às outras etnias não deixam,
verdadeiramente, de corresponder às obsessões em torno a tais imagens.

1. Alexandra Exter, reprodução fotográfica dos desenhos para figurinos de Salomé; à


esquerda Jokanaan (João Batista), ao centro Salomé e à direita Herodes. Fonte: Wikimedia
Commons. In: SAYLER, Oliver M. The Russian Theatre. New York: Brentano‘s, 1922.

13
Na falta de um termo melhor, usa-se aqui a expressão ligada a empoderamento de forma
voluntariamente anacrônica.
14
DIJKSTRA, p.400-1.
242
2. Franz von Stuck, Salome, 1906, óleo 3. Henri Regnault, Salome,
sobre tela, 115,5 x 62,5 cm, Städtische 1870, óleo sobre tela, 160 x
Galerie, Lenbachhaus. Fonte: 102,9 cm, MoMA, Nova York.
Wikimedia Commons. Fonte: Website do MoMA.

4. Leon Bakst, figurino para 5. Leon Bakst, figurino 6. Leon Bakst, figurino
odalisca em Scheherazade, para personagem de para Salomé, 1908,
4. Alexandra Exter, figurino para
1910, desenho. Fonte: Scheherazade, 1910, desenho. Fonte: Wikimedia
Salomé, 1917, 66,5 x 52,6 cm,
Wikimedia Commons. desenho. Fonte: Commons.
Moscow Museum of Modern Art.
Wikimedia Commons.

243
7. Robert Henri, Salome, 8. Gustave Moreau, L‘apparition, 1876,
1909, óleo sobre tela, 197 aquarela, 106 x 72,2 cm, Orsay, Paris.
x 94 cm, Ringling Museum Fonte: Website do Musée d‘Orsay.
of Art, Sarasota. Fonte:
Website do Ringling
Museum.

9. Gustave Moreau, Salomé, 60 x 36 10. Moreau, Estudo para Salomé,


cm, carvão sobre papel, Musée Moreau, 56,3 x 43,4 cm, grafite sobre papel,
Paris. Fonte: COOKE (2011). Musée Moreau, Paris. Fonte:
COOKE (2011).

244
11. David, O juramento dos Horácios, 1784, óleo sobre tela, 330 x
426 cm, Louvre, Paris. Fonte: Website do Louvre.

12. Pablo Picasso, Salomé, de La Suite des Saltimbanques,


ponta seca, 1905 (publicado em 1913), 40,6 x 34,9 cm, Museu
245
de Israel, Jerusalém. Fonte: Website da Christie‘s.
13. Ella Ferris Pell, Salome, 1890, 14. Gustav Klimt, Judith I, 1901,
óleo sobre tela, 129,5 x 86,4 cm, óleo sobre tela, 84 x 42 cm,
coleção particular. Fonte: Website Osterreichische Galerie
Ocean‘s Bridge. Belvedere,Viena. Fonte:
Wikimedia Commons.

Referências bibliográficas

COLI, Jorge. O corpo da liberdade: Reflexões sobre a pintura do século XIX. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.

COOKE, Peter. ―Gustave Moreau‘s Salome: The Poetics and Politics of History
Painting‖. The Burlington Magazine. Vol. 149, Nº 1253, Painting and Sculpture in
France, p. 528-536, 2007.

COOKE, Peter. ―‗It isn‘t a Dance‘: Gustave Moreau‘s ―Salome‖ and ―The Apparition‖‖.
Dance Research: The Journal of the Society for Dance Research. Vol. 29, Nº 2, p. 214-
232, 2011.

DIJKSTRA, Bram. Idols of Perversity: Fantasies of Feminine Evil in Fin-de-Siècle


Culture. Nova York: Oxford University Press, 1986.

246
GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: quatro ensaios de iconografia política.
São Paulo: Cia. das Letras, 2014.

HUNT, Laura A. From Performer to Petrushka: A Decade of Alexandra Exter‘s Work


in Theater and Film. Dissertação de mestrado. Atlanta: Georgia State University, 2011.

KUTERMANN, Udo. ―The Dance of the Seven Veils. Salome and Erotic Culture
around 1900‖. Artibus et Historiae. Vol. 25, Nº 53, p. 187-215, 2006.

LANGFORD, Rachael. Depicting Desire: Gender, Sexuality, and the Family in


Nineteenth Century Europe: Literary and Artistic Perspectives. 2005.

MEYER, Annie Nathan. ―The Art of Léon Bakst‖. Art and Progress, Vol. 5, No. 5,
Mar. 1914, p. 161-165.

NEGINSKY, Rosina. Salome: The Image of a Woman Who Nerver Was. Cambridge
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Artists? (eds. HESS, Thomas B.; BAKER, Elizabeth C. (ed.). New York: Macmillan,
1971. Disponível em:
<http://davidrifkind.org/fiu/library_files/Linda%20Nochlin%20%20Why%20have%20t
here%20been%20no%20Great%20Women%20Artists.pdf>. Acesso em 15/09/2015.

WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã: Contribuições científico-


culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto / MAR,
2013.

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Association Alexandra Exter: www.alexandra-exter.net

Hammer Museum (sobre a exposição ―A Strange Magic: Gustave Moreau‘s Salome‖,


de 2012): http://hammer.ucla.edu/exhibitions/2012/a-strange-magic-gustave-moreaus-
salome/

247
MANGÁS E A CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO DE UM
CONHECIMENTO REFERENCIAL

Rafael Colombo Martineli1


Mônica Brincalepe Campo 2

Resumo

Por meio de mangás, animês, histórias em quadrinhos, e da produção cinematográfica


japonesa, seria possível nos aproximar e receber uma visão histórica que alimenta uma
memória e suscita a curiosidade sobre esta outra civilização? Há um crescente consumo
da cultura oriental nas gerações atuais, com maior atenção à japonesa. A ocidentalização
do Japão pode ser uma hipótese a indicar uma das causas da circulação das mídias
(mangás e animês) no Brasil e no mundo como um todo. Buscando um dialogo com a
análise teórica proposta por Henry Jenkins sobre a manifestação de uma transmidia,
discutindo como o fluxo de bens asiáticos foi moldado no mercado ocidental, é possível
elaborar uma justificativa para as causas dessa circulação, em especial, aqui no Brasil,
tendo em vista a maneira como estes mangás hoje possuem uma imensa penetração e
repercussão, e têm sido referência para gerações nas últimas décadas.
Mangás são produtos da mídia cultural japonesa, são praticamente histórias em
quadrinhos. Os mangás se diferenciam dos quadrinhos ocidentais não só pela sua
origem, mas principalmente por se utilizar de uma representação gráfica completamente
própria. O próprio alfabeto japonês, por exemplo, é composto de ideogramas que não só
representam sons, mas também ideias. Assim, em um mangá, principalmente as
onomatopeias, fazem parte da arte. A ordem de leitura também se dá de uma forma
diferente da ocidental, da esquerda para a direita, que estamos acostumados. Um livro
japonês começa pelo que seria o fim de uma publicação ocidental, sendo assim, sua
leitura se dá a partir da direita para a esquerda. Os mangás são publicados em volumes
de aproximadamente 200 páginas cada, o que permite aos autores criar histórias mais
longas e aprofundadas. Por isso, é comum ver várias páginas só de imagens, sem
diálogos, e também ações que se desenrolam por muitos quadrinhos e abordadas por
diferentes pontos de vista. Outra característica própria do mangá é a disposição dos
quadrinhos em uma página, numa disposição diferente daquela que se costuma ver num
comic americano, que costuma ter 3 ou 4 fileiras de quadrinhos por páginas. Os
mangakás (nome dado aos autores de mangás), portanto, dispõem de um espaço maior
para contar sua história, também podem empregar um número menor de quadrinhos por
página – não é difícil ver página até sem quadrinhos, com uma única imagem estourada.
Também é característica serem feitos completamente em preto-e-branco e em papel
jornal, o que torna o produto mais barato e faz com que ele seja consumido por todas as

1
Graduando em História pela Faculdade Federal de Uberlândia. Email: rafaelc.martineli@gmail.com
2
Professora Doutora do Instituto de História da Faculdade Federal de Uberlândia. Email:
monicacampo10@gmail.com
248
esferas da sociedade, sendo lidos por crianças, estudantes, executivos, donas-de-casa. O
principal é a capacidade que eles têm de encantar pessoas do mundo todo. Ler um
mangá pode se tornar uma experiência única. É como mergulhar em um mundo próprio,
cheio de ação, emoção, heróis, criaturas mágicas. Essas características, dentre outras,
cativam e despertaram o interesse por esse produto de mídia japonesa.
Assim, creio que estes produtos de cultura de mídia nos informam e permitem a
aproximação sobre assuntos dos mais diversos, abordando desde a cultura, seus hábitos
e costumes, como ainda sua organização social, e até mesmo curiosidades outras, como
sua arquitetura, alimentação, etc, construindo pontes e intermediando nossas realidades
neste mundo globalizado. O fato é que já é possível perceber que eles contribuíram para
a formação de um conhecimento referencial sobre a cultura japonesa entre jovens
consumidores, justamente devido à capacidade que o mangá tem em trazer todas as suas
referências culturais particulares, despertando o interesse e a curiosidade sobre um
determinado grupo, bem como sua organização cultural e sua história.

Palavras-chave: mangá; mídia cultural; história

Introdução

O Brasil possui a maior comunidade nipônica fora do Japão e seus colonos


conservaram a tradição de ler as revistas de quadrinhos japonesas, assim o Brasil
tornou-se um país pioneiro na leitura desse produto midiático. Essas histórias em
quadrinhos são conhecidas como mangás, e hoje representam um fenômeno de
comunicação de massa atingindo tiragens milionárias em seu país de origem3, além de
hoje serem consumidas indiscriminadamente por diversos outros países no mundo, com
consumidores das mais diferentes origens culturais, mas que se encontram neste amor
ao produto ali divulgado.

Este artigo pretende fazer um esboço dos possíveis motivos que contribuíram
para o sucesso dos mangás no mundo ocidental. Para isso, abordaremos discussões
culturais que ocorreram no Japão e foram responsáveis por darem suporte para uma
política oficial que busca promover o Japão, social e culturalmente, vendendo e
rotulando, como uma marca, sua cultura. Num segundo momento será realizada uma
rápida contextualização de como os mangás se consolidaram no Japão e finalmente
ganharam o mundo. Buscamos apontar o caso brasileiro e sua particularidade, a
perspectiva para o fenômeno através do olhar da transmidia, teoria proposta por Henry
Jenkins. Na parte final deste trabalho elencamos os consumidores desses produtos

3
LUYTEN, Sonia. O fantástico e desconhecido mundo das H.Q.s japonesas. Quadreca. São Paulo: Ed.
ComArte. 1978.
249
midiáticos nipônicos e a capacidade dos mangás de construírem um conhecimento
referencial.

A mercantilização da “cultura” japonesa

O Brasil é considerado um dos maiores consumidores da cultura japonesa. Por


outro lado, podemos destacar que houve uma política a qual buscou expandir os bens
culturais do Japão, tendo por característica a exportação dos seus mangás. Essa política
é proveniente de discussões acerca da cultura que vinham desde o pós-guerra no Japão,
procurando reformular as concepções de cultura japonesa. Após o boom econômico
japonês, posteriormente à reconstrução realizada após a Segunda Guerra Mundial, e
com amplo apoio norte-americano, a economia precisava se sustentar através das
especulações imobiliárias, originando uma bolha de dependência que não tardaria a
estourar.

―Se, de um lado, a economia japonesa foi capaz de superar a crise do petróleo


na década de 1970 e continuar se fortalecendo na década seguinte, a base
dessa força, de outro lado, começou a se distanciar do setor real da economia,
passando a depender cada vez mais de especulações no mercado imobiliário.
Assim, embora a economia permanecesse ativa, seu suporte dependia,
perigosamente, de uma enorme bolha financeira que não tardaria em
estourar.‖ (ODA, 2010, p. 109)4.

Com o advento da crise, a visão confiante de cultura que havia sido construída
nas décadas anteriores, intimamente ligadas ao crescimento econômico, passou a ser
cada vez mais problemática. É neste momento, com o aumento da desconfiança, que
começam a manifestar-se novas ideias sobre a cultura japonesa. Os autores, sob forte
influência do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, não se concentravam mais em
investigar as características, os méritos ou os deméritos da cultura japonesa. Em vez
disso, eles propuseram a desconstrução da própria ideia de cultura japonesa, negando a
existência de qualquer característica essencial, e denunciando as relações de poder por
trás desse tipo de discurso (ODA, 2010).

―Os questionamentos da noção de cultura japonesa estiveram presentes não


apenas entre os intelectuais, mas também de maneira mais difusa na
sociedade em geral. Como apontam vários observadores, durante a década de
1980 o apego à tradição e a afirmação de uma identidade japonesa perderam
muito de seu terreno para novos ideais cosmopolitas‖ (ODA, 2010, p. 110).

4
ODA, Ernani. Interpretações da ―Cultura japonesa‖ e seus reflexos no Brasil. Revista Brasileira de
Ciências Sociais - VOL. 26 N° 75, São Paulo, 2011.
250
Porém, essa nova tentativa de abordar a cultura japonesa sofreria mudanças a
partir da década de 1990. A discussão voltou às raízes, reabrindo os debates
provenientes da modernização do Japão no final do século XIX. De um lado existiam
aqueles que preferiam uma maior abertura e interação com a comunidade internacional
como solução para a crise e, do outro, muitos culpavam a globalização e a
internacionalização por todos os problemas, e argumentavam que ―a sociedade
japonesa só poderia sobreviver se retomasse um projeto de fortalecimento interno,
resgatando suas tradições culturais e seu orgulho nacional‖ (ODA, 2010, p. 110).
Dessa discussão surgiram duas correntes: o globalismo e o nacionalismo.

Não cabe, nesse artigo, entrar em uma discussão mais profunda sobre as duas
vertentes, visto que o intuito é explorar a capacidade dos mangás em contribuir para a
formação de um conhecimento referencial sobre a cultura japonesa e o seu consumo no
Brasil. Mas é interessante abordar, mesmo que minimamente, os processos de discussão
sobre cultura no Japão que possibilitaram uma política de expansão dos seus bens
culturais.

Para o nacionalismo ou ―neonacionalismo‖ atual, a cultura japonesa funcionou


como uma marca ou rótulo ―que pode em princípio ser estampado em qualquer prática
ou discurso, o que, ademais, explica seu enorme alcance e sua popularidade‖ (ODA,
2010, p. 112). Dessa forma, a cultura japonesa passou a ser entendida cada vez mais
como um produto a ser consumido de acordo com os interesses do poder vigente. E,
portanto, como todo objeto de consumo, foi inserida em um mercado global.

―Ela deve, portanto, ser atraente não somente ao consumidor interno no


Japão, mas também a outros países, cuja aprovação passa a ser determinante
para o status e o valor dessa ―cultura japonesa‖. Daí a necessidade paradoxal
de construir um nacionalismo que precisa ser reconhecido em escala global.
Por isso mesmo, a mídia japonesa não se cansa de realizar reportagens sobre
a disseminação da cultura japonesa no mundo por meio da literatura, das
histórias em quadrinhos, dos desenhos animados, ou do cinema, que são
apontados como sinal do vigor da cultura e da sociedade japonesas‖ (ODA,
2010, p. 112).

Entendendo como essa política de exportação está ligada fortemente com as


discussões sobre a cultura japonesa, podemos traçar um panorama sobre os aspectos que
fazem com que essa cultura de mídia, os mangás, seja um fenômeno de circulação,
imensa penetração e repercussão, e têm sido referência para gerações nas últimas
décadas. Nesse ponto seria interessante uma abordagem historiográfica sobre o
251
momento em que os mangás se firmam como um produto consumido em larga escala
pela sociedade japonesa.

A consolidação do mangá no Japão

Com a economia crescendo, inflação estabilizada e o aumento do consumo


possibilitaram ao Japão uma era do consumo de massa, conhecido pelos japoneses como
a era do lazer5.

―E os meios de comunicação também não ficaram alheios a essas


transformações. [...] No campo de revistas e livros, em 1980, atingiu-se o
volume de 4,3 bilhões de livros e revistas produzidos, dos quais 27 por cento,
ou seja, 1,16 bilhão, destinava-se a publicações de histórias em quadrinhos –
os mangás. E, se há muitas explicações para a passagem da era da pobreza
para a da prosperidade econômica no Japão, as cifras altíssimas de vendagens
de histórias em quadrinhos seguiram também um caminho paralelo na
evolução dos acontecimentos‖ (LUYTEN, 2012, p. 16-17)6.

O gosto popular por mangás é recorrente desde 1920, quando os desenhistas


japoneses começaram a ganhar mais destaques e estabelecerem sua independência das
produções ocidentais, ocasionando numa diminuição das publicações do estilo norte –
americano de histórias em quadrinhos. Isso está relacionado com a própria tradição de
ilustração japonesa e na capacidade que tiveram de adaptar o conteúdo das histórias
para o gosto local. Nessa época, os quadrinhos apareciam no formato de tiras com
quatro ou oito desenhos, nos diários ou nas edições coloridas dominicais, destinados
com mais exclusividade ao mercado adulto. As revistas infantis começam a tomar forma
por volta dos anos 1930.

Quando a Segunda Guerra Mundial se fez presente, os desenhistas se dividiram.


O nacionalismo exacerbado junto ao militarismo levaram vários artistas a se exilarem
ou trocarem de atividade. Outra parte foi responsável por promoverem uma política e
propagandas oficiais. Com o fim da guerra, muitos voltaram para seus antigos postos e,
mesmo com a censura imposta pelo governo norte americano que ocupava a ilha,
condições favoráveis surgiram, possibilitando uma renovada atividade dos mangás. A
autora aponta que os motivos para esse renascimento foi devido ao fato de que o povo
japonês, derrotado pela guerra, queria apagar os traços da vigência de outros ideais.

5
LUYTEN, Sonia M. Bibe. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. (3ª edição) São Paulo: Ed. Hedra,
2012.
6
Idem, p 16-17
252
Sendo assim, a temática abordada agora para as histórias eram os esportes. Esse tema
servia para canalizar a agressividade em esportes, sendo que o boxe e a luta livre eram
mais propícios a essa descarga de hostilidade.

Além disso, o pós-guerra é caracterizado por uma pobreza generalizada e era


preciso meios de diversão que fossem baratos. ―E os quadrinhos representavam
exatamente isso: muitas páginas de diversão (e esquecimento) a baixo custo‖
(LUYTEN, 2012, p. 19). Os mangás, para serem baratos, eram impressos em papel
jornal, utilizados em revistas, visto que, nos primeiros anos do pós-guerra, era
extremamente difícil conseguir papel. Essa característica de impressão é mantida até
hoje, mesmo com a mudança da economia.

Para Sonia Luyten, ainda existem dois fatores que contribuíram para o
aparecimento do grande volume de mangás. Um deles foi o aparecimento de
publicações do tipo underground, conhecidas como akai hon (livros vermelhos), mas
diferente da modalidade americana não apresentava conteúdo político-erótico.

―Essas revistas eram publicadas em Osaka, o grande centro tradicional rival


de Tóquio, e vendidas nas ruas por ambulantes. Esse tipo de publicação deu
oportunidade a muitos desenhistas, especialmente Tezuka Ossamu, que, na
época estudante de medicina, editou seus primeiros trabalhos, passando a ser
conhecido. Hoje Tezuka é um dos quadrinistas mais famosos do Japão‖
(LUYTEN, 2012, p. 19).

Outro fator importante para o sucesso dos mangás, segundo a autora, é a


importância da escrita japonesa. Baseada na escrita chinesa, os japoneses
desenvolveram uma escrita que representasse a sua linguagem oral. Em um primeiro
momento surgiu um silabário simplificado com 50 caracteres para representar a fala,
denominado hiragana. Isso contribuiu para o desenvolvimento considerável da literatura
japonesa. Ainda existe um sistema mais simplificado o katakana, um tipo de letra de
imprensa igualmente formado por 50 sílabas.

―Constamos que a própria história da escrita japonesa tem essa abstração de


traços de figuras reais, isto é, signos que representam e expressam
visualmente a ideia das palavras, diferentemente da escrita alfabética, que
não transmite sensorialmente nenhum sentido. Para entendê-la, é preciso
decodificar as palavras em conceitos para se obter o sentido desejado‖
(LUYTEN, 2012, p. 20-21).

Portanto, essa relação entre escrita e imagem esta intimamente ligada, visto que
os ideogramas estão sempre relacionados à visualidade das palavras que não só

253
representam sons, mas também ideias. Assim, em um mangá, principalmente as
onomatopeias, fazem parte da arte.

―Entre essa sequência de imagens significativas (que é a escrita japonesa), há,


portanto, uma continuidade: o mesmo traço de tinta e o mesmo deslocamento
linear do olhar à linha da narrativa. Dessa maneira, os japoneses se
acostumaram a visualizar muito mais as coisas do que nós ocidentais. A
aproximação entre abstrações de figuras e figuras propriamente ditas é muito
sensível, fluindo de um antigo costume de se fazer a junção de ambas‖
(LUYTEN, 2012, p. 21).

Realizada essa pequena contextualização historiográfica sobre a popularização


dos mangás no Japão, cabe agora tentar entender os processos que fizeram deste um
fenômeno no Brasil e no mundo como um produto de cultura de mídia.

O mangá no Ocidente

O marco do conhecimento dos mangás fora do Japão ocorreu através do


desenhista norte-americano Frank Miller, que foi inspirado pelas histórias de caráter
heroico japonesas, em 1983 ele lança Ronin, que conta a saga de um samurai sem amo,
uma obra narrada em quase 300 páginas que viria a revolucionar o mercado. Com o
sucesso obtido pela história, começaram a tradução de outras histórias, como Lobo
Solitário (1987), o que originou um acordo entre as editoras Eclispse Comics e a
Editora Kodansha. Outros autores japoneses também ganharam o mercado europeu,
dentre eles Tezuka Ossamu, considerado o pai do mangá moderno. Alfóns Moliné
(2006)7 aponta que a penetração na Europa foi mais lenta no início e levemente
diversificada de país para país. Os animês começavam a fazer sucesso a partir de 1975
na Espanha,

―na Itália, que na época era o único país europeu a possuir redes de televisão
privadas, aconteceu uma invasão de desenhos japoneses de vários gêneros e
épocas: somente entre 1978 e 1983 o país assistiria a 183 séries de animes.
No norte da Europa, em lugares como a Alemanha, Holanda e Grã-Bretanha,
o fenômeno teve um impacto bem menor do que na Europa mediterrânea, por
ser menor a quantidade de animes exibidos pelas TVs desses países. [...]
Paralelamente à penetração do anime, têm lugar as primeiras tentativas de
introduzir o mangá para adultos no velho continente‖ (MOLINÉ, 2006, p.
58).

Portanto, o que difundiu de fato o conhecimento sobre os mangás foram os


desenhos animados, os animês, penetrando através da TV e posteriormente pelo cinema.

7
MOLINÉ, Alfons. O grande livro dos mangás. 2. ed. São Paulo: JBC, 2006.
254
Os estúdios de cinema e animação começaram a fazer contratos em grande escala com
vários países ocidentais, assim como as editoras japonesas.

A transmidia: a procura por outras plataformas midiáticas

O aumento da procura por mangás devido à chegada dos animês e filmes


japoneses pode ser explicada segundo a teoria de transmidia proposta por Henry
Jenkins (2008). Segundo ele, ―o fluxo de bens asiáticos no mercado ocidental foi
moldado por duas forças concorrentes: a convergência corporativa, promovida pelas
indústrias midiáticas, e a convergência alternativa, promovida por comunidades de fãs
e populações de imigrantes‖ (Jenkins, 2008, p. 150)8. Segundo essa lógica, a transmidia
é o movimento que ocorre levando o fã a consumir não só o animê, por exemplo, mas
também sua versão cinematográfica, além do próprio mangá, ou mais ainda, conhecer as
músicas que tocam nas aberturas dos animês. O interesse é despertado através do
contato com a mídia cultural japonesa e, dessa forma, existe uma maior demanda e
procura pelos diversos produtos de diversas plataformas. A comunidade de fãs, segundo
Jenkins, teve um papel fundamental para a afirmação e expansão dos animês, em todos
os territórios em que estes foram divulgados. Foram os fãs os responsáveis por veicular
episódios em suas versões sem cortes ou censuras, disponibilizando as versões originais
e legendadas. A criação de clubes de dublagem, as fansubbing, tiveram fundamental
importância para manter vivas essas mídias, desde a década de 1970 e com maior
atuação a partir dos anos 90. ―Se não fossem as exibições dos fãs do final dos anos 1970
e início dos anos 1990, não haveria o interesse pela animação japonesa inteligente e
‗intelectual‘, como existe hoje‖ (JENKINS, 2008, p. 212).

O caso brasileiro

No Brasil, os mangás já eram abundantemente lidos pela comunidade de


descendentes japoneses antes do advento de Ronin, de Frank Miller. Os mangás eram
importados e distribuídos por distribuidoras especializadas, geralmente situadas no
bairro da Liberdade, na cidade de São Paulo, além de responsáveis por reenviar para as
colônias japonesas em outras localidades do Estado de São Paulo e também do Paraná.
Esse processo era repetido com os animês e os filmes, vinculados com alguns cinemas,

8
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

255
como no caso o Cine Niterói, também situado na Liberdade. Já na Tv Brasileira, desde a
década de 1970 os heróis japoneses eram conhecidos. Ultraman na TV Tupi e
posteriormente, nos anos 1980, foi para o SBT, Fantomas na TV Record, Princesa
Safire e Jaspion na TV Manchete e Candy Candy, na TV Record anos 1980.

A leitura de mangás para a comunidade japonesa tinha dois fatores culturais


fundamentais. O primeiro era a manutenção da língua e o outro era o aprendizado ou a
readequação de novos termos, principalmente os incorporados da língua inglesa. Ou
seja, tinha a função de manter a língua coloquial viva para os que estavam fora do
Japão. Além do mais, essa influência cultural proposta por esses produtos de mídia,
desenvolveu nos descendentes dos japoneses o interesse em desenhar mangás aqui no
Brasil, se tornando um país pioneiro tanto na leitura quanto na produção de mangás fora
do Japão.

Mas o interessante é que essa influência não se manteve exclusiva das


comunidades nipônicas. A partir da década de 1990, com as aquisições da TV Manchete
de produtos midiáticos japoneses, como animês (Cavaleiros do Zodíaco, DragonBall,
Yu Yu Hakusho, etc) e séries sentais (jiban, Esquadrão Relâmpago Changeman,
Comando Estelar Flashman, Jaspion, etc), o público passou a se tornar mais
heterogêneo, agradando não somente os descendentes japoneses, mas sim, o público
televisivo em geral.

Os descendentes de japoneses trouxeram em sua bagagem cultural o hábito pela


leitura dos mangás e, no momento em que essas mídias culturais eclodem no mundo
ocidental, esses mesmos descendentes foram os responsáveis, significativamente, pela
expansão que ocorreu aqui no Brasil. Em meio a essa comunidade nipônica surgiram os
primeiros trabalhos de mangás editados em solo brasileiro, editoras começam a abrir as
portas e os fãs, assim como Jenkins aponta, tiveram seu papel em criar os clubes de
dublagens de animês que não eram transmitidos na TV brasileira.

Outro fator responsável por esse fenômeno mundial e, em especial, no Brasil, é a


firmação da internet. São inúmeros sites e associações que transmitem e abrigam os
animês e mangás de forma online. Com a internet, as pesquisas e o contato com essas
culturas de mídia e a própria cultura japonesa se tornou mais fácil e acessivo. A internet
se tornou um fórum de troca de informações, ―a produção de legendas se espalhou, e os
256
clubes passaram a utilizar a internet para coordenar suas atividades, distribuindo as
séries a serem legendadas e recorrendo a uma comunidade maior de candidatos a
tradutores‖ (JENKINS, 2008, p. 213).

Os consumidores

O fato é que, como trabalhado neste artigo, a noção de ―cultura japonesa‖ se


tornou objeto de consumo disponível dentro de um mercado global e, portanto, o Brasil
também se apresenta como um dos consumidores desse tipo de ―produto‖. Segundo Oda
(2010), o Brasil é um país que compra a cultura japonesa, pois são poucos os trabalhos
de caráter crítico que foram elaborados sobre a construção dessa cultura. O que ele
ressalta é que os trabalhos existentes dialogam com aquela vertente nacionalista, que
busca legitimar ideologias desenvolvimentistas e modernizantes que estavam em
discussão na época. Ele vai tecendo seus argumentos e usa como exemplo a
comemoração do centenário das imigrações, em 2008, criticando o fato dos brasileiros
realizarem cerimônias de culto à bandeira e ao hino japonês, duramente criticados pelos
intelectuais japoneses e as minorias (chineses, coreanos), como sendo um símbolo do
militarismo e colonialismo realizado no Sudeste Asiático nos fins do século XIX e
primeira metade do XX. Isso ocorre justamente pela falta de uma criticidade sobre as
discussões conscientes das transformações e das contradições sociais da sociedade e
cultura japonesa. Os poucos que possuem uma visão mais crítica sobre esses fatos são
os brasileiros dekasseguis, pois vivenciaram de perto os conflitos e as contradições da
sociedade japonesa e por serem vítimas de preconceito desenvolveram uma visão mais
crítica com relação à ideia de cultura japonesa. Ou seja, não apenas os imigrantes
japoneses e seus descendentes, mas também a sociedade brasileira em geral tende a
adotar uma postura conservadora e acrítica em relação à ―cultura japonesa‖. Portanto,

―Creio que só podemos compreender o real alcance do fenômeno atual se


levarmos em consideração a situação atual do debate no Japão. Como já
vimos, a década de 1990 marcou o início de uma era de recessão e de grande
instabilidade social na sociedade japonesa. Como resposta a essa situação,
surgiu um curioso amálgama de ideais globalizantes e neonacionalistas em
que a cultura japonesa, a fim de reunir força suficiente para desempenhar o
papel de resgatar o orgulho nacional, precisa ser reconhecida, admirada e
consumida em escala global‖ (ODA, 2010, p. 113).

Mas por que consumimos esses produtos culturais de maneira acrítica? A


sociedade brasileira pode ser percebida como de uma cultura autoritária, que busca
enaltecer aquilo que vem da Europa, Estados Unidos e, agora, do Japão. Aquilo que não
257
é proveniente desses países é rejeitado e/ou desqualificado. O consumidor não é
passivo, o ato de consumir esses produtos está associado a algo que é inerente à nossa
cultura: a relação estabelecida com outros países e a necessidade de perceber como nós
somos vistos e concebidos por eles está no bojo deste consumo cultural. Por haver uma
idealização da cultura japonesa o consumo da mesma acontece de maneira acrítica, visto
que a visão que possuímos desse povo é pautada na projeção da alteridade no exótico,
sem atentar para os sérios conflitos políticos que este tipo de perspectiva oculta.

Através desses trabalhos científicos passamos a compreender que a rotulação da


cultura japonesa como uma marca a ser comprada vem de um jogo de políticas
expansionistas endossadas nas falas de grupos intelectuais que veem como forma de
promover a cultura japonesa através do mercado e, dessa forma, transmitir valores e
uma dada visão da cultura japonesa como totalidade homogênea, imutável e exótica.

Dessa forma, os mangás e animês são produtos responsáveis por formarem um


conhecimento referencial sobre o Japão, pois as características presentes na construção
das tramas, bem como os enredos abordados, estão dentre elas a natureza, história,
religião, mitos e crenças populares presentes no cotidiano e tradição japonesas. São
produtos que cativam justamente por contarem como é a vida desse povo e não o
contrário, sobre os ocidentais, por exemplo, daí a curiosidade é alimentada pela
alteridade, formando um elo evidente entre os leitores ocidentais, educando, divertindo,
acusando ou alienando (LUYTEN, 2005)9.

Conclusão

Produtos da mídia cultural, os mangás e animês atingiram o ocidente,


promovidos por uma política expansionista japonesa, que busca divulgar, através do
mercado, a cultura e o povo japonês. Com esse discurso, os consumidores compram
essa ―cultura‖ japonesa e adquirem um conhecimento referencial sobre esse país,
considerado, muitas vezes, equivocado e acrítico. Mas é justamente por despertar o
interesse que ocorre esse consumo em massa no Ocidente. Através do consumo e do
interesse, adquirindo produtos de outras plataformas, trabalhos acadêmicos começaram
a ser elaborados buscando explicar esse fenômeno do mundo globalizado,
possibilitando adquirir uma formação crítica e elaborada, reconstruindo o conhecimento

9
LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.). Cultura Pop Japonesa – Mangá e Animê. São Paulo: Hedra, 2005.
258
referencial outrora formado. Assim, creio que estes produtos de cultura de mídia nos
informam e permitem a aproximação sobre assuntos dos mais diversos, abordando
desde a cultura, seus hábitos e costumes, como ainda sua organização social, e até
mesmo curiosidades outras, como sua arquitetura, alimentação, etc, construindo pontes
e intermediando nossas realidades neste mundo globalizado. O fato é que já é possível
perceber que eles contribuíram para a formação de um conhecimento referencial sobre a
cultura japonesa entre jovens consumidores, justamente devido à capacidade que o
mangá tem em trazer todas as suas referências culturais particulares, despertando o
interesse e a curiosidade sobre um determinado grupo, bem como sua organização
cultural e sua história.

Bibliografia

BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo, Perspectiva, 1972.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.). Cultura Pop Japonesa – Mangá e Animê. São Paulo:
Hedra, 2005.

LUYTEN, Sonia M. Bibe. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. (3ª edição) São
Paulo: Ed. Hedra, 2012.

LUYTEN, Sonia M. Bibe. O fantástico e desconhecido mundo das H.Q.s japonesas.


Quadreca. São Paulo: Ed. ComArte. 1978.

MOLINÉ, Alfons. O grande livro dos mangás. 2. ed. São Paulo: JBC, 2006.

ODA, Ernani. Interpretações da ―Cultura japonesa‖ e seus reflexos no Brasil. Revista


Brasileira de Ciências Sociais - VOL. 26 N° 75, São Paulo, 2011.

259
CONSTRUÇÃO DE MASCULINIDADES EM EL HOMBRE DE AL LADO
(2009): QUESTÕES DE GÊNERO

Suelen Caldas de Sousa Simião 1

Resumo: O presente trabalho tem como intuito elencar algumas questões para se pensar
a construção das masculinidades em El hombre de al lado, de Mariano Cohn e Gastón
Duprat (2009). O filme argentino conta a história de dois vizinhos, Leonardo e Victor, que
acabam se desentendo em virtude da abertura de uma janela, por Victor, na medianera que
daria diretamente para a casa de Leonardo, a casa Crutchet, única edificada por Le
Corbusier na América Latina (1955). O percurso teórico-metodológico do trabalho passa
pela análise do filme a partir dos estudos de gênero e sexualidade, e como o filme se utiliza
de imagens do masculino e ao mesmo tempo questiona a ideia de masculinidade
hegemônica. Nesse sentido, as análises passam pela composição da carga simbólica e física
da corporalidade expressa na película, assim como, pela ideia de construção social dos
gêneros. Construção que passa também pelas relações sexualizadas ou não sexualizadas que
as personagens estabelecem com diversos objetos que aparecem na obra cinematográfica, e
que se apresenta, além disso, mediante a elaboração de atividade/passividade nas relações
sexuais representadas.

Palavras-chave: masculinidades, cinema, sexualidade

Porco do mato marinado, por Víctor Chubello


Você corta o porco em pedaços e deixa-o em vinho branco, muito
alho cortado e louro durante a noite. No outro dia frite-o com
cenouras picadas, cebolas e pimentas pretas a seu gosto. Então
acrescente um vidro de escabeche e um copo de vinagre branco, e
cozinhe-o por um tempo mais. Oh, e um pouco de limão. Finalmente
ponha tudo em uma jarra e ponha tudo numa geladeira.

Introdução

Uma imagem em plano fechado é partida ao meio, de um lado toda branca, do


outro escura. O título da película aparece em letras garrafais El hombre (na imagem
branca) de al lado (no canto escuro). Nos próximos segundos vemos alguém quebrar
com uma marreta a parte escura. Trata-se de uma parede. Aos poucos o buraco feito
nela invade o lado claro da tela. Raios de luz submergem timidamente na parede escura.

Essa é a primeira tomada de El hombre de al lado, filme argentino de Mariano


Cohn e Gastón Duprat (2009). Na tomada seguinte vemos um homem e uma mulher
1
Mestranda em História na área de Política, Memória e Cidade na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), email – suelen_caldas@hotmail.com
260
dormirem. O barulho das marretadas o incomoda e ele se levanta para ver do que se
trata. Acompanhamos a personagem passar por cômodos de uma casa toda iluminada,
aparentemente de dois andares. A personagem vai até o quintal. De lá avista um buraco
na parede diretamente ao lado de sua casa. Volta correndo, sobe os andares e se
posiciona na janela que dá para a parede do vizinho, na qual está se abrindo o buraco.

Nos primeiros segundos do filme fomos colocados diante de uma medianera. As


medianeras são as paredes divisórias de um terreno que podem encontrar as paredes do
terreno ao lado, mas não podem interferir, pela legislação, na salubridade deste. Desde a
metade do século passado até os dias atuais, as medianeras são características marcantes
da urbanização argentina e são bastante evidenciadas em revistas como a da CPAU -
Consejo Profesional de Arquitetura y Urbanismo, aparecendo também no Código Civil
da República Argentina, em 8 artigos.2
Assim podemos resumir a película: Em El hombre de al lado temos dois vizinhos,
Leonardo e Victor, que acabam se desentendendo em virtude da abertura de uma janela,
por Victor, na medianera que daria diretamente para a casa de Leonardo, a casa
Curutchet, única edificada pelo arquiteto Le Corbusier na América Latina (1955).
Leonardo (a personagem que vimos na segunda tomada), morador da Casa Curutchet
(lugar iluminado que percorremos), não aparece quase em nenhuma cena fora do seu
local de conforto, a casa. As cenas em que a personagem Victor tenta estabelecer
contato com ele são tratadas de maneira profundamente irônica por Leonardo que
―nega‖ ao vizinho a qualidade mais presente em sua casa: a presença de luz solar,
pressuposto bastante defendido por Le Corbusier e tema de numerosos congressos. 3

2
―El Consejo Profesional de Arquitectura y Urbanismo (CPAU) es un organismo creado por el Decreto –
Ley 17.946/1944 para regular la práctica profesional. Junto a los Consejos de Ingeniería y Agrimensura
forma la Junta Central de los Consejos Profesionales creada por Decreto – Ley 6070/1958, ratificado por
la Ley 14.467. Su ámbito de acción es la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y los lugares sujetos a la
jurisdicción nacional‖ Disponível em: <http://www.cpau.org/institucional/que-es-el-cpau>, Acesso em:
27 de abril de 2015.
A questão das medianeras, a discussão jurídica que regulamenta as construções, aparece no Código Civil
da República Argentina em 8 artigos, por exemplo, nos artigos 2621., 2745., 3054. O código civil foi
aprovado em 1869 e sofreu quatro alterações até 1921, quando passa a incorporar pela primeira vez
tópicos diretamente relativos às medianeras ou divisórias entre propriedades. Disponível em:
<http://www.oas.org/dil/esp/Codigo_Civil_de_la_Republica_Argentina.pdf>. Acesso em 27 de abril,
2015.
3
Como os CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), iniciados em 1928, e no âmbito da
América Latina os Congressos Panamericanos de Arquitetos, iniciados em 1920.
261
Os temas do filme poderiam ser percorridos sob diversos aspectos: a questão das
medianeras e as soluções negociadas à parte da legislação, a possível falha na casa
projetada pelo arquiteto modernista com o intuito de aproximar o homem da cidade, a
entrada de luz solar como condição ―essencial‖ para a vida, a dificuldade de
relacionamento dos vizinhos em uma cidade extremamente planejada (La Plata, onde se
passa o filme), dentre outros. Nesse texto optaremos pela diferenciação entre as
personagens a partir da composição da carga simbólica e física da corporalidade
expressa na película.
Para isso, o percurso teórico-metodológico do trabalho passa pela análise do filme
a partir dos estudos de gênero e sexualidade, e como o filme se utiliza de imagens do
masculino e ao mesmo tempo questiona a ideia de masculinidade hegemônica, passando
assim pela ideia de construção social dos gêneros. Construção expressa também a partir das
relações sexualizadas ou não sexualizadas que as personagens estabelecem com diversos
objetos que aparecem na obra cinematográfica, e que se apresenta, além disso, mediante a
elaboração de atividade/passividade nas relações pessoais e sexuais representadas.
Para percorrer tal intuito escolheremos algumas cenas não para ― interpretar o filme a
fim de encontrar nele sua suposta verdade (referência), mas criar, a partir de um
diálogo, pontos de ligação e de tensão que permitam indagar e recriar significados,
problematizando-os a partir de categorias‖ (BESSA, 2012, p.321), ligadas a questões de
gênero e sexualidade, como escreve Karla Bessa em análise ao filme Avant que j‘oublie
(2007).
Construção de masculinidades em El hombre de al lado como questões de gênero

Quando a crítica feminista incorpora a categoria de gênero, que procura pensar o


sexo a partir das construções culturais e sociais e não a partir da sexualidade biológica,
sobretudo a partir dos anos 80 com autoras como Joan Scott e Judith Butler, uma nova
gama de estudos se soma a já existente no que se refere aos trabalhos com sexo,
corpo/corporalidade, desejo/prática sexual, etc. Margareth Rago a esse respeito escreve
que:

A superação da lógica binária contida na proposta da análise relacional do


gênero, nessa direção, é fundamental para que se construa um novo olhar
aberto às diferenças. Entendo também que a categoria do gênero não vem
substituir nenhuma outra, mas atende à necessidade de ampliação de nosso
vocabulário para darmos conta da multiplicidade das dimensões constitutivas
das práticas sociais e individuais. (RAGO, 1998, p. 93)

262
Nesse sentido há a incorporação de estudos ligados a masculinidades, que para
Raewyn Connel, ―é uma configuração de práticas em torno da posição que os homens
ocupam nas relações de gênero, isto é, práticas que os constroem enquanto homens
dentro de uma estrutura que atribui significados distintos àquilo que se entende como
masculino ou feminino‖, como assinala Adriano Senkevics (2015, s/p). 4

Falar sobre masculinidade enquanto prática se liga a ideia de ações reais, pensadas
a partir da racionalidade proposital da formação do masculino que tem um sentido
histórico definido, além disso, a categoria trabalhada pela perspectiva das questões de
gênero impele que usemos masculinidades no plural, como assinala Fernando Botton
em análise à obra de Connel (BOTTON, 2007, p. 116).

Nesse sentido, é importante encaramos as imagens que compõem a película El


hombre de al lado, a partir dessa perspectiva plural que se articulará, em nossa análise,
através de um questionamento feito em relação à masculinidade hegemônica, que de
maneira resumida se trataria de um ―tipo masculino‖ criado a partir da oposição ao
feminino e de supressão das demais formas de representação do homem.

Comecemos a análise a partir de algumas cenas e falas e da postura de Leonardo.


Anderson dos Reis, em seu texto A América negociada e os homens ao lado, escreve em
relação à contenda desenvolvida pelos dois vizinhos que:

A simplicidade dos argumentos de Victor, que alega precisar de um pouco de


sol, somada a sua expressividade captada pelo enquadramento frontal se opõe
ao discurso normativo de Leonardo, que se torna menos tragável à medida
que ele se esquiva da câmera e se esconde parcialmente de nós. Nesse caso, a
câmera constrange Leonardo, que por diversas vezes abaixa a cabeça ao
perceber de soslaio a sua (nossa) presença. Essa forma de filmar os diálogos
permite aos diretores evidenciar a personalidade do designer e sua
dificuldade (quase covarde) de assumir uma posição na contenda que não
seja fundamentada em desculpas. (REIS, 2010, p. 248)

Essa posição é importante para avaliarmos a figura de Leonardo. Diante da mulher


Leonardo se apresenta como alguém que colocou Victor ―em seu lugar‖. Como no
seguinte diálogo, em relação ao pedido de fechamento da janela recém-aberta:

- Ele vai pintar também, certo? (diz Ana, a esposa)

4
Disponível em < https://ensaiosdegenero.wordpress.com/category/masculinidades/ > Acesso em 15 de
outubro de 2010.
263
- Sim. Mas eu tive que levantar a minha voz.
- Ouvi.
- O que você espera? Se ele quiser fazer-se de louco, eu serei mais louco.
- Ele tem que deixar tudo como estava antes.
- Sim, sim. Eu disse-lhe assim. Pobre cara, ele pareceu ter ficado assustado.

A mulher então sorri e pede-lhe um beijo. Durante essa conversa não vemos o
rosto de Leonardo, escondido atrás de um armário da cozinha. A atitude ―machona‖ da
personagem diante da mulher não corresponde à sua postura perante Victor. No diálogo
travado entre os dois, o que acontece é uma série de pedidos de desculpas de Leornardo,
afirmando que o vizinho não pode abrir a janela, seguido de uma série de por favores.
Em outros momentos do filme isso também ocorre. Em certo momento, Leonardo ao
passar por Victor de carro se assusta e quase bate o automóvel.

Em outra cena Victor desse de sua van e acena para o designer que graças à
arquitetura da Casa Curutchet está visível no segundo andar.

- Você tem um segundo? Quero falar sobre a reforma. (ele diz)


- Oh, certo, Diga-me.
- Não, não aqui. Vamos a um bar e conversaremos como amigos.
- O fato é que estou trabalhando agora.
- Você esteve cochilando no computador durante meia hora. Dá um
descanso, Leonardo. Vamos lá.
- Okey, Okey, dê-me cinco minutos. Que tal o bar da esquina?
- Aquele bar é cheio de caipiras rurais brancos. Vamos lá.
- Certo, uh...
- Estou meio ocupado, realmente. Que tal me contar aqui mesmo?
- Leonardo, você pode vir aqui embaixo?
- Okey, espere um segundo.

A câmera posicionada no ombro de Leonardo faz com que tenhamos uma visão
completa de Victor no jardim de frente da casa. A personagem fala de modo rude (uma
característica sua durante todo o filme). Quando Leonardo decide descer e encontrar o
vizinho a câmera permanece no mesmo lugar e vemos Victor passar os pés na grama e
bufar, em semelhança a um animal selvagem, figura interessante se nos lembrarmos que
na cena final, enquanto sobem os créditos do filme e após a morte da personagem,
temos uma receita de porco do mato marinado, ditada por ele mesmo.

Leornardo só levanta a voz com quem aparentemente parece inferior a ele: o tio
de Victor para o qual diz aos berros:

264
– Por favor, a minha paciência esgotou-se, isto é o fim, okey? Você entende o
que estou dizendo? Entende a gravidade disso que estou dizendo? A falta de
respeito? A invasão da merda... que você está criando aqui? Diga-lhe que
esta é a última chance. Que está acabado. Chega de foder a vida, chega de
palhaçadas.

Momento em que Leornardo está dentro da casa de Victor, o que não acontece
quando o mesmo está lá. Quando o vizinho fica sabendo do ocorrido encara frente a
frente Leonardo, obrigando-o que lhe peça desculpas. Leornardo como em outros
momentos da película está visivelmente acuado e com medo. O enquadramento da
câmera, que o constrange reforça a ideia, e a personagem quase não diz nada. Postura
diferente quando está diante da mulher e do grupo de amigos, momentos em que faz
questão de frisar a imagem caipira e violenta do vizinho, construção que faz com que
mulher e amigos concordem com suas opiniões ridicularizando este homem ao lado da
casa curutchet, também a partir de um ponto de vista social, quiçá intelectual. A
masculinidade hegemônica facilmente identificada na figura de Victor é questionada
nesses momentos, aos olhos de muitos essa figura não é tão imponente, chegando
mesmo a soar ridícula.
Sobre a janela: ela torna-se interessante em três momentos voyeurísticos da
película, na cena sexual interpretada por Victor e uma mulher, e observada por
Leonardo e Ana, e em dois teatros de dedos feitos por Victor e observado pela filha do
casal. Em ambos o apelo sexual da composição das cenas é evidente. No teatro os dedos
calçados com botas texanas se lambuzam em meio a alimentos como uma mortadela,
que serve de tapete, e uma banana.
Em relação ao apelo sexual, sempre representado pela figura de Victor temos um
presente dado por ele a Leonardo, uma escultura feita com rifles velhos, canos e balas e
que formam uma vagina. Leonardo se constrange diante do presente, e a mulher mais
tarde encara-o com de um mau gosto extremo, quando o marido diz ser presente de um
aluno, e chegando a ficar chocada, quando descobre seu real remetente.
Janice Theodoro Silva em análise ao filme escreve que Victor é representado
como um homem com emoções à flor da pele e próximo do estado de natureza ―Capaz
de reconhecer as emoções em sua primeira dimensão, tanto em si mesmo como no
próximo, capaz de ter prazer, de se comunicar com qualquer pessoa, buscando, à sua
maneira, adequar-se à linguagem do outro. Um homem que sabe ver, ouvir, tocar e
265
falar, que sabe, em suma, amar.‖ (SILVA, 2013, p.195) Enquanto Leonardo só obtém
uma imagem marcante diante de pessoas consideradas por ele como subalternas.
Escreve ―A pseudo-racionalidade e propriedade da argumentação de Leonardo se
manifestam especialmente entre pessoas que ocupam um lugar subalterno: seus alunos.
Leonardo usa da sua condição de professor para exercer seu poder. Ele sente prazer em
construir a diferença pelo menosprezo do outro.‖ (SILVA, 2013, p.197) Chega a propor
de maneira fria e calculista, sexo com uma aluna, sendo rejeitado.
Podemos elencar ainda outro ponto para se pensar as masculinidades construídas
no filme. Botton em análise a obra de Connell escreve que quando a autora ―se refere a
‗posição dos homens‘ se refere às relações sociais, mas também corporais, não
excluindo a carga simbólica e física da corporalidade dos homens na formação da
masculinidade‖ (BOTTON, 2007, p. 116). Nesse sentido a imagem de uma
masculinidade viril de Victor é representada por sua carga corporal de homem grande e
forte, enquanto Leonardo apresenta-se como frágil e quase feminino.

Considerações Finais
Outras categorias poderiam ser somadas e esse estudo, pensadas de maneira mais
detalhada em relação às questões ligadas a classe social e intelectualidade. No momento
foi possível apenas esse pequeno mapeamento de algumas falas, gestos e cenas que
compõem as masculinidades presentes no filme. A masculinidade hegemônica e a
masculinidade de Leornardo, portanto, as masculinidades expressas na película, ainda
se apresentam em oposição ao feminino, fazendo com que possamos nos remeter à
leitura de Lacan quando o autor afirma que o masculino se impõe em relação ao falo.
As figuras femininas representadas são quase sempre passivas, na interpretação
dos dois vizinhos, embora Leonardo apresente uma postura diferente diante da mulher,
que por vezes nega fazer sexo com ele, assim como sua aluna. Leonardo diante da aluna
afirma ―Provavelmente você está perdendo a oportunidade mais interessante da sua
vida‖. Victor, ainda que Janice Theodoro o tenha elencado como uma personagem
capaz de amar, também não deixa de reinterar a imagem objetificamente da mulher. Em
conversas com Leonardo, talvez na tentativa de impor sua masculinidade, sempre se
refere às mulheres como prêmios ou conquistas. Mas podemos pensar ainda, que
embora tenhamos essa imagem masculina e viril de Victor é ele que tem a maior

266
aproximação com as personagens de sexo feminino que aparecem no decorrer da
película, como é o caso da filha de designer.
Portanto, pensar as representações do homem, no caso das duas personagens
principais do filme, implica que pensemos em múltiplas masculinidades e em suas
construções enquanto questões de gênero, uma vez que a própria masculinidade de cada
personagem é composta mas também colocada em cheque durante diversos momentos
da narrativa. Entender essas representações é entender como as imagens do masculino
são postas e também relativizadas de acordo com os lugares de fala, e portanto, a partir
das interações entre as personagens na película.

Filme
COHN, Mariano; DUPRAT, Gastón. O homem ao lado (2009). Título Original: El
hombre de al lado. Argentina, cor,110 min.

Bibliografia
BESSA, Karla. Cinema e projeção de eus: estética, política e subjetividade queer na
cena urbana contemporânea. In: NAXARA, Márcia R. C; MARSON, Izabel A.;
MAGALHÃES, Marion Brepohl de (Org.). Figurações do outro na história.
Uberlândia: edufu, 2009. P.286-306.
_______. Cinema e história: das migrações das imagens à narratividade dos universais.
In: SEIXAS, Jacy; CERASOLI, Josianne; NAXARA, Márcia. (Org.) Tramas e dramas
do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012. p.317-341.
BOTTON, Fernando Bagioto. As masculinidades em questão: Uma perspectiva de
construção teórica. Revista Vernáculo,n. 19 e 20, 2007.
CONNELL, Robert. Políticas da Masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre.
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LACAN, Jacques, ―A Significação do falo‖ In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
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REIS, Anderson Roberti. A América negociada e os homens ao lado. Revista Territórios
e Fronteiras, Cuiabá, vol. 5, n. 2, jul-dez., 2012.
SILVA, Janice T. Menos é mais. O homem ao lado. Revista territórios e fronteiras,
Cuiabá, vol. 6, 2013.
267
RÁDIO, HISTÓRIA E MEMÓRIA: REFLEXÕES SOBRE O USO DE
RELATOS ORAIS COMO FONTES NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA.

Suhellen Souza Martins1

Resumo:

Este artigo pretende suscitar algumas questões sobre o uso de relatos orais no fazer
historiográfico, explicitando quais os limites e problemas, bem como a sua utilidade
para o historiador e seu oficio. Os trabalhos que possuem como objeto de pesquisa o
rádio enfrentam como principal problema o caráter efêmero de suas fontes. A produção
radiofônica durante a chamada ―Época de Ouro do Rádio‖ possuía um caráter
imediatista. Os programas eram realizados ao vivo e, salvo raras exceções, não existem
gravações dos mesmos. Também são poucos os documentos escritos que trazem à tona
elementos que contribuam para uma possível construção de uma história do rádio. Uma
alternativa para pesquisas sobre a temática consiste na utilização de relatos orais, tanto
dos profissionais que participavam da sua produção, quanto de seus ouvintes. Estes
relatos permitem aos pesquisadores o acesso aos aspectos cotidianos dos indivíduos
envolvidos pelo ambiente radiofônico, suas experiências socioculturais, a dinâmica das
relações entre este meio de comunicação e seus ouvintes, a elaboração dos programas, a
participação nos programas de auditórios, a relação entre os artistas e seus fãs, dentre
outros. Todavia, faz-se necessária uma reflexão crítica sobre o uso da história oral como
método de pesquisa válido para a produção de conhecimento histórico.

Palavras-chave: história oral – história do rádio – memória

Introdução

As décadas de 1940 e 1950 são frequentemente denominadas como a ―Época de


Ouro‖ do Rádio no Brasil. Foi o período em que os programas de auditório eram lotados
e as emissoras promoviam grandes espetáculos musicais. Época dos programas de
calouros que revelavam novos talentos, dos concursos que elegiam a ―Rainha do
Rádio‖, do sucesso inigualável das radionovelas.

O rádio foi o grande meio de comunicação de massa no Brasil até os anos de


1950, exercendo importante papel social, político e cultural no país. Em Uberlândia o
fenômeno da radiodifusão chegou em 1939, com a fundação da Rádio Difusora, que se
manteve única na cidade até 1952, quando fundada a Rádio Educadora. A presença
1
Mestranda em História Social (UFU). E-mail: suhellen_martins@hotmail.com
268
deste meio de comunicação no interior das relações sociais é notória. O rádio - e sua
inerente oralidade - conseguia através de sua programação diária atingir os mais
variados públicos, com suas ainda mais variadas formas de recepção e apropriação das
mensagens radiofônicas.

As pesquisas sobre os meios de comunicação de massa começaram a ganhar


força no campo historiográfico somente na década de 1990. Todavia, os estudiosos que
voltam sua atenção para o rádio, possuem um grande desafio: o caráter efêmero de seu
objeto de pesquisa.

As emissoras de rádio, em geral, não se preocuparam com a preservação de


documentos e materiais diversos que pudessem trazer à tona suas histórias. Lia Calabre
lembra que o rádio era feito praticamente ao vivo, com tarefas centradas no dia-a-dia,
com o objetivo de manter e ampliar os índices de audiência, apesar de ter uma
programação mais elaborada que a dos dias atuais, envolvendo um grande número de
profissionais. Entretanto, a autora ressalta que, mesmo diante da escassez de registros
formais, a reconstituição da história do rádio é viável. Para ela, as ―informações sobre o
ambiente radiofônico, sua relação com os ouvintes, as práticas profissionais do setor,
podem ser resgatadas através de inúmeros relatos de profissionais e de ouvintes que
viveram a Era do Rádio.‖ (CALABRE, 2003, p.1)

A partir dos relatos daqueles que vivenciaram experiências radiofônicas, como


profissionais ou ouvintes, entende-se que é possível (re) construir uma história do rádio.
Os depoimentos orais contribuem para reflexões que vão além dos eventos si mesmos,
mas dos significados, das representações formuladas através da relação que se
estabelecia entre ―rádio‖ e seu público ouvinte.

Este artigo pretende suscitar questões relevantes para pesquisas que se valem da
história oral como metodologia. Neste viés, compreendendo que a história oral como
método que remete ora a uma dimensão teórica, ora a uma dimensão técnica, importa
aprofundar e compreender as discussões conceituais e metodológicas sobre o trabalho
com relatos orais na pesquisa historiográfica.

O trabalho com história oral não deve consistir em mera gravação e entrevistas e
sua transcrição. É necessário discutir sobre a natureza destas fontes, quais são seus
limites e problemas, bem como a melhor forma de utilizá-las.

269
História oral: um método ou uma “outra história”?

Muito se discute sobre qual seria o status da chamada ―história oral‖. Seria uma
simples técnica, uma disciplina, ou uma metodologia de pesquisa que possui tanto
aspectos teóricos quanto práticos?

Reduzir a história oral a uma simples técnica seria praticamente limitá-la a


questões procedimentais pra melhorar a qualidade e conservação das gravações e
transcrições dos depoimentos. A ―faceta técnica‖, como uma modalidade de prática da
história oral e característica principal dos arquivistas, preocupa-se principalmente em
criar e organizar os arquivos advindos das entrevistas para uma exploração futura. Seu
objetivo não é analisar e compreender a história, mas acumular dados orais.

Tampouco elevar a história oral ao status de uma disciplina autônoma parece


uma alternativa. Considerá-la como um novo campo de conhecimento seria conferir a
ela um conjunto específico de técnicas, metodologia e conceitos, sendo difícil tal
delimitação. Ela é incapaz de solucionar questões teóricas por si, valendo-se da teoria da
história para buscar soluções e explicações sobre seus problemas. Relaciona-se ainda
com os campos teóricos de outras disciplinas, como a filosofia, a sociologia e a
psicanálise em busca de estabelecer reflexões sobre, por exemplo, a complexa relação
existente entre história e memória.

Resta, portanto, a defesa de que a história oral é uma metodologia de pesquisa.


Assim, entende-se que a história oral:

―[...] como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos


de trabalho – tais como os diversos tipos de entrevista e as implicações de
cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de
depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o
historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre o
seu trabalho –, funcionando como ponte entre teoria e prática. Esse é o
terreno da história oral – o que, a nosso ver, não permite classificá-la
unicamente como prática. Mas na área teórica, a história oral é capaz apenas
se suscitar, jamais solucionar questões; formula perguntas, porem não pode
oferecer as repostas.‖ (LAZANO, 2006, p. xvi)

A história oral, enquanto método de pesquisa, apesar de aparentemente ter se


firmado no meio historiográfico a partir da década de 1990, ainda é alvo de críticas de
pesquisadores que insistem em sustentar uma visão tradicional, positivista e historicista,
que perdurou fortemente até o início do século XX, grande parte sob o argumento da
270
subjetividade excessiva presente nas fontes orais. Nesta perspectiva, as fontes orais não
seriam confiáveis para a pesquisa historiográfica, limitada à investigação de fontes
escritas.

Na segunda metade do século XX, especialmente a partir da década de 1970, a


crescente abertura do campo historiográfico para novos temas e abordagens abriu portas
para a utilização de testemunhos orais utilizados nos primórdios da disciplina por
Heródoto e Tucídides. Segundo Philippe Joutard, a progressiva aceitação da história
oral nas academias está ligada a influência dos Annales sobre o crescente interesse pela
história dos excluídos, como a história das mulheres, dos trabalhadores operários, das
comunidades rurais, dos fluxos migratórios, das experiências de guerra, etc. Aliás, para
o autor, esta seria a inspiração original da história oral: ―[...] é preciso saber respeitar
três fidelidades à inspiração original: ouvir a voz dos excluídos e dos esquecidos; trazer
à luz as realidades indescritíveis, quer dizer, aquelas que a escrita não consegue
transmitir; testemunhar as situações de extremo abandono.‖ (JOUTARD, 2000, p. 34)

De fato, o uso de testemunhos orais permite ao historiador obter informações


para sua pesquisa que muitas vezes são inacessíveis por meio de outras fontes. No caso
do rádio, como já ressaltado anteriormente, poucos são os registros escritos que
demonstram a influência exercida por este meio de comunicação no cotidiano dos
indivíduos, seja para fins de obter e transmitir informações, seja como forma de lazer.

Todavia, é preciso reconhecer as implicações e os limites da utilização dos


depoimentos orais na pesquisa histórica. É de extrema pertinência a qualquer pesquisa
que se faça com o uso dos relatos orais a reflexão crítica sobre aspectos como a
subjetividade dos relatos, a relação entre pesquisador e entrevistado no momento da
entrevista, bem como a forma como o pesquisador utilizará as informações colhidas
durante a fase escrita de seu trabalho.

O “problema” da subjetividade dos depoimentos orais

A utilização de relatos orais na pesquisa historiográfica enfrenta sua maior


crítica por pesquisadores mais tradicionais que, preocupados em estabelecer uma
espécie de verdade dos fatos que ocorreram no passado, alegam que a memória não é
271
uma fonte histórica confiável, uma vez que apresenta versões distorcidas, influenciadas
por aspectos físicos, psíquicos e sociais nos quais os indivíduos não possuem controle.
De fato, como ensina Alessandro Portelli, as fontes orais ―contam-nos não apenas o que
o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa
que fez.‖ (PORTELLI, 1997, p. 31)

Em resposta às críticas elaboradas pelos historiadores tradicionais, os


pesquisadores que defendiam o uso da história oral ao longo das décadas de 1970 e
1980, além de ressaltar que os documentos escritos não estavam isentos de seleção e
elaboração tendenciosa, buscavam meios para atestar a confiabilidade dos testemunhos
orais. Assim, no diálogo com a psicologia demonstravam a possibilidade de identificar
as lacunas e criações imaginosas da memória, além de criar mecanismos de cruzamento
dos depoimentos orais com outras fontes que já possuíam status de confiáveis junto à
historiografia tradicional.

A preocupação em comprovar a confiabilidade dos testemunhos afastou os


historiadores de uma percepção importante: no diálogo com os relatos orais, o mais
importante não é atestar se aquilo que o indivíduo narra é fiel ao que de fato ocorreu em
determinado evento do passado. Mais do que verificar tal veracidade, importa
compreender os processos de rememoração, as formas como os indivíduos constroem
seus discursos sobre determinado evento, porque determinados eventos são lembrados
da forma como são e porque outros são esquecidos. Em síntese, as distorções
produzidas pela memória, antes de ser um problema, pode ser um recurso para a
pesquisa do historiador.

Segundo Alistair Thomson, somente no final da década de 1980 os historiadores


orais passaram a uma compreensão mais profunda destes aspectos da memória e da
subjetividade dos depoimentos, criando métodos de análises e entrevistas que se
fundamentam em um entendimento mais complexo da memória e da identidade,
buscando explorar as relações entre as reminiscências individuais e coletivas. Para ele,
―frequentemente estamos tão interessados na natureza e nos processos da rememoração
quanto no conteúdo das memórias que registramos.‖ (THOMSON, 2006, p. 69)

Nesta perspectiva de análise, a memória deve ser pensada como instância


criativa, como uma forma de produção simbólica, como dimensão fundamental que
institui identidades e com isto assegura a permanência de grupos. A Memória, portanto,
272
já não pode mais ser associada metaforicamente a um ―espaço inerte‖ no qual se
depositam lembranças, devendo ser antes compreendida como ―território‖, como espaço
vivo, político e simbólico no qual se lida de maneira dinâmica e criativa com as
lembranças e com os esquecimentos que reinstituem o indivíduo em suas relações a
cada instante. (BARROS, 2009, p. 37)

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Henry Rousso define a memória como


uma ―reconstrução psíquica e intelectual, que acarreta de fato uma representação
seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um
indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional.‖ (ROUSSO, 2006, p. 94)

Estas considerações sobre a compreensão da memória como instância criativa e


seletiva não significam que o historiador oral deva desconsiderar os elementos factuais
presentes no discurso do entrevistado. Obviamente, ao longo de sua pesquisa o
historiador que utiliza relatos orais fará uso de outras fontes que permitirão tal
cruzamento, verificando assim as aproximações e distanciamentos dos relatos em
relação a outros documentos de representação do passado.

Reconhecer a subjetividade do entrevistado, bem como a própria subjetividade


do historiador não significa abandonar todas as regras de um método de trabalho crítico,
que confronta os documentos, que adota determinada perspectiva da análise. Significa,
antes, reconhecer que cada depoimento oral representa uma versão do passado, assim
como a versão do passado que será construída pelo próprio historiador em seu ofício.

Outra importante consideração a ser feita sobre a questão da subjetividade do


indivíduo diz respeito à temporalidade do depoimento. Os relatos orais, em regra, são
feitos a posteriori, o que significa dizer que o indivíduo, ao falar sobre algo que ocorreu
no passado, não se desvincula do tempo presente. Mesmo que o indivíduo relate
espontaneamente sua experiência no passado através da publicação de suas memórias,
ou que seja interpelado pelo historiador através de uma entrevista, o entrevistado ―não
falará, senão do presente, com as palavras de hoje, com a sua sensibilidade do momento,
tendo em mente tudo quanto possa saber sobre esse passado que ele pretende
recuperar.‖ (ROUSSO, 2006, p. 98)
O tema da subjetividade das fontes orais foi brilhantemente abordado por
PORTELLI (1996) em seu artigo intitulado ―A Filosofia e os Fatos: Narração,
interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais‖. Para o autor, a ilusão de
273
que os testemunhos seriam responsáveis somente por relatar os fatos ocorridos e que
estes seriam interpretados pelo historiador de forma objetiva, não passa de uma grande
utopia. O grande paradoxo da história oral e das memórias, dirá o autor, é de que as
fontes são pessoas, não documentos, e que nenhuma pessoa aceita reduzir sua
experiência de vida a um conjunto de fatos que fique à disposição de interpretação de
outros que, na verdade, não teriam condições de fazê-lo. A própria motivação em narrar
uma memória já consiste em expressar os significados de determinada experiência
vivida no passado:
―A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem
o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si
mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a
subjetividade como se fosse somente uma fastidiosa interferência na
objetividade factual do testemunho quer dizer, em última instância, torcer o
significado próprio dos fatos narrados.‖ (PORTELLI, 1996, p. 60)

Mas se os relatos orais são subjetivos e individuais, seriam eles representativos?


Em que medida a subjetividade dos narradores pode contribuir para a compreensão de
uma subjetividade mais ampla, coletiva? Segundo Portelli, as palavras de um discurso
individual se caracterizam pelos procedimentos narrativos e simbólicos utilizados e que
são socialmente compartilhados, como a simbologia da identidade local, o ponto de
vista circunscrito, o relato da iniciação, o uso da digressão e da repetição. Assim, a
representatividade das fontes orais e das memórias se mede, no plano textual, pela
capacidade de abrir e delinear o campo das possibilidades expressivas, enquanto no
plano dos conteúdos, ―pelo delinear da esfera subjetiva da experiência imaginável: não
tanto o que acontece materialmente com as pessoas, mas o que as pessoas sabem ou
imaginam que possa suceder.‖ (PORTELLI, 1996, p.66)

Ademais, a grande contribuição dos relatos orais é, enquanto fontes de


representação de fatos passados, privilegiar os aspectos qualitativos dos processos
histórico-sociais, em detrimento dos aspectos quantitativos. Calcados nas experiências
individuais dos atores sociais, os historiadores orais desempenham importante papel,
destacando em sua análise a visão e a versão daqueles sobre sua própria história de vida.

Assim, conclui-se que os relatos orais e as memórias dos indivíduos


entrevistados não têm por finalidade garantir à pesquisa histórica um esquema de
experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, que podem
ser reais ou imaginadas. Cabe ao historiador enfrentar às dificuldades para organizar

274
estas possibilidades em esquemas compreensíveis, que possuam sentido. Os indivíduos
são, de fato, diferentes, mesmo em suas semelhanças. Reconhecer a subjetividade
enquanto um recurso, e não como um problema, é o caminho mais coerente para os
historiadores orais.

A utilização dos relatos orais na escrita historiográfica sobre o rádio

Como os relatos orais podem contribuir para uma pesquisa historiográfica que
tem como objeto os meios de comunicação de massa? Como dito na introdução deste
artigo, ao delimitar o estudo de mídias, especialmente o rádio, o historiador se depara
com o problema da falta de documentos escritos sobre a produção radiofônica, uma vez
que seu conteúdo e objetivo tem por característica central o imediatismo.

No caso da produção radiofônica na cidade de Uberlândia em sua ―Época de


Ouro‖, os pesquisadores devem buscar vários tipos de fontes a fim de recompor a
trajetória deste meio de comunicação, seus mecanismos de interação com o público, as
experiências dos profissionais faziam parte do universo de produção dos programas e as
vivências e cotidiano daqueles que faziam do rádio sua principal forma de interação
social e de lazer.

Dentro do corpus documental disponível para os pesquisadores, o Acervo da


Rádio Difusora e da Rádio Educadora disponibilizados no CDHIS, bem como o Acervo
Dantas Ruas localizado no Arquivo Público Municipal contribuem para que os
historiadores tenham acesso a diversos jingles (anúncios cantados), scripts de programas
radiofônicos e cartas de ouvintes que servem de resgate e ajudam a compreender o
ambiente radiofônico uberlandense. Outra fonte de pesquisa a ser considerada são os
jornais e revistas com publicação no período a ser pesquisado.

Todavia, o uso de relatos orais torna-se extremamente importante para a análise


do historiador, uma vez que permite a ele o acesso a memórias de ouvintes e
profissionais do rádio, que podem revelar, mais que fatos, um conjunto de percepções e
representações inacessíveis quando da análise de um documento escrito. A necessidade
de se construir uma relação entre o campo de estudos da história dos meios de

275
comunicação de massa e a história oral enquanto uma metodologia de trabalho precisa,
portanto, ser estabelecida.

Segundo CALABRE (2008), a história oral pode ser útil nos estudos sobre o
rádio em três principais campos. O primeiro diz respeito à história do cotidiano, onde as
entrevistas de história oral permitem reconstituir processos e práticas diárias que não se
encontram registradas em outras fontes. Neste caso são objeto de investigação do
historiador as formas de ouvir rádio, as relações que se estabeleceram entre os ouvintes
e o meio e a formação de novas práticas culturais. Um segundo campo seria na
perspectiva da história das instituições, permitindo a reconstrução da composição dos
trabalhadores, as formas de funcionamento, a construção da programação, o conteúdo
dos programas e a estrutura da emissora. Por fim, as biografias auxiliam na
reconstituição das trajetórias de vida que se deseje recuperar e estudar.

Um aspecto importante para a análise destes relatos orais é considerar que eles
são constituídos, segundo PORTELLI (2010, p. 24), de três modalidades que se
combinam durante a narrativa, mesmo que de forma desordenada. A modalidade
institucional é normalmente narrada de modo impessoal ou em terceira pessoa, com
referentes espaciais relativos à esfera pública. Uma segunda modalidade, ―comunitária‖,
é narrada na primeira pessoa do plural, e diz respeito a referentes espaciais relativos à
comunidade, à coletividade no qual está inserido o narrador. Por fim, quando a narrativa
se dá na primeira pessoa do singular, trata-se da modalidade ―pessoal‖, e seus referentes
sociais e espaciais dizem respeito à vida privada do indivíduo.

Considerando a premissa de que tanto a produção textual quanto as narrativas


orais são carregadas da subjetividade daquele que as produz, mas que possuem também
uma dimensão social, coletiva, uma vez que o sujeito que narra está inserido em um
contexto de tensões sociais que o influenciam nas suas percepções individuais, cabe ao
historiador a tentativa de interpretar como tais modalidades, que ora versam sobre a
instituição, ora versam sobre o coletivo ou sobre o individual, interagem ao longo da
construção narrativa e criam representações do passado através da elaboração de
memórias.

Acredita-se que a chamada ―busca pela verdade‖, já se encontra superada. A


relativização do conceito de verdade na pesquisa histórica, todavia, não afastou o
compromisso ético do historiador em buscar ―alguma verdade‖. Significa dizer que ao
276
lidar com a análise dos depoimentos orais, cabe ao pesquisador sempre lembrar que
aquela narrativa é uma versão do passado constituída a partir de lembranças e
recordações que são construídas de forma performática. Assim como na análise de
documentos escritos, que também representam uma versão do passado, o processo de
interpretação e de análise das fontes empreendida pelo historiador deve ser pautado pela
crítica e compromisso ético, principalmente no que se refere às formas de utilização das
informações prestadas pelos entrevistados.

Considerações Finais

Este artigo pretendeu contribuir para a reflexão sobre o uso de relatos orais na
pesquisa historiográfica, defendendo a utilização da história oral como um método que
permite ao historiador estabelecer o contato com fontes que podem ser úteis para o
desenvolvimento de sua pesquisa.

Sobre a utilização das narrativas orais como fontes para pesquisa sobre o rádio,
percebe-se que sua utilidade é indiscutível. A entrevista com profissionais do ambiente
radiofônico e seus ouvintes podem proporcionar o acesso aos aspectos cotidianos e às
representações que não são encontrados nos documentos escritos.

A particularidade das fontes orais recai no fato de que estas são construídas
através de um processo complexo, da interação entre historiador e narrador, e que revela
aspectos subjetivos que não devem ser desconsiderados. Todavia, tal subjetividade não
exclui a utilização das fontes orais, apenas estabelece alguns cuidados e limites para seu
uso.

Assim, procurou-se o estabelecimento de alguns parâmetros para a utilização


deste método, principalmente no que se referem à subjetividade presente nos relatos, e
de alguns procedimentos a serem observados para a realização das entrevistas, bem
como aspectos que devem ser considerados no momento de análise e interpretação
destas fontes, no momento da escrita do historiador.

As discussões sobre a história oral e sua utilização na pesquisa


historiográfica não se findaram. Tampouco os elementos suscitados neste artigo dão
conta de todos os aspectos que estão no cerne destas questões teóricas e metodológicas.

277
Todavia, espera-se contribuir com as reflexões e, de alguma forma, orientar os
primeiros passos de historiadores que busquem a utilização de fontes orais em suas
pesquisas.

Referências

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278
A MULHER DE TPM: A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA E DISCURSIVA DA
1
MULHER NAS CAPAS DA REVISTA TPM1

Suzana Rosa Arantes2


Universidade Federal de Uberlândia-UFU

RESUMO

O presente trabalho analisa como a mulher é representada nas chamadas e fotos de capa da
revista TPM (Trip Para Mulher) da edição de maio de 2012, para identificar simbolicamente
qual e como é a mulher de TPM. Para isso, buscou-se compreender o interdiscurso presente
no espaço e no campo discursivo feminino deste periódico, que tem em sua linha editorial o
objetivo de representar a mulher de forma diferente das revistas femininas convencionais. A
identidade, o gênero, a imprensa feminina e a análise do discurso francesa são os alicerces
teóricos dessa pesquisa.

Palavras-chave: Gênero. Imprensa. Discurso.

1. INTRODUÇÃO

Ao longo dos séculos, muita coisa mudou na vida das mulheres. Hoje a mulher
participa ativamente da vida social, política e econômica do país. Mas para a pesquisadora
francesa Michellet Perrot (2007), mesmo diante das transformações e conquistas que a mulher
contemporânea alcançou (e ainda alcança), ainda temos o ―modelo triunfante‖ de mulher, ou
seja, aquela que lava, passa, cozinha, que é excelente esposa, mãe, cuida bem da casa, dos
filhos etc. E com a contemporaneidade, a mulher, ainda com suas atividades profissionais, não
deixou de desempenhar o seu papel de mulher na esfera privada.
A mídia contribui para que certos valores e costumes sejam transmitidos e
absorvidos pela sociedade. De acordo com Wolf (2002), quanto mais dura e complicada é a
vida moderna, mais as pessoas se sentem tentadas a agarrar-se a clichês que parecem conferir
uma ordem àquilo com que, de outra forma, seria incompreensível. Ainda segundo Wolf
(2002), a cultura de massa forma um sistema de cultura, constituindo-se como um conjunto de

1
Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social: habilitação em Jornalismo da Universidade Federal
de Uberlândia, no ano de 2013, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Marques Araújo.
2
Graduada em Letras (2003-2007) e em Comunicação Social: habilitação em Jornalismo (2009-2013) pela
Universidade Federal de Uberlândia-UFU. E-mail: suzanaarantes27@gmail.com
279
símbolos, mitos e imagens que dizem respeito, quer à vida prática, quer ao imaginário
coletivo.
Esta pesquisa investiga a revista TPM (Trip Para Mulher), da TRIP Editora, para
verificar como a mulher é representada por essa publicação nas chamadas e fotos de capa da
edição de maio de 2012. A linha editorial dessa revista tem como propósito representar a
mulher de forma diferente das revistas femininas convencionais, para não ficar restrita ao que
Buitoni (1990) identificou como trio de sustentação das publicações para mulheres – moda,
casa e coração. Assim, para compreender a construção da identidade social da mulher e
discutir a sua representação midiática, será observado quais são as características da imagem
da mulher contemporânea construída pela publicação.

2 MÉTODO
A análise do discurso será feita sobre a edição do mês de maio de 2012 da revista
TPM. Tal época foi escolhida para a demarcação dessa pesquisa por se tratar de um período
conhecido como o ―mês das noivas‖, em que acontecem muitas cerimônias de casamento, e
por ser o mês das mães.
A TPM é uma publicação criada no ano de 2001 pela TRIP Editora para ser uma
revista diferente das revistas convencionais; para representar a mulher de forma diferente.
Mas qual é essa mulher? Para fazer essa análise foram formadas matrizes constituídas
referentes à terceira fase da Análise do Discurso (AD3), que correspondem aos seguintes
campos: representação da mulher, campo, espaço e posicionamento discursivo, interdiscurso,
heterogeneidade, deslocamento e apagamento e dialogismo. partir dos estudos de Pêucheux,
segundo Fernandes (2005), a AD tem três fases. A AD1, a AD2 e AD3. E é a terceira fase da
Análise do Discurso, a AD3, que este estudo foi alicerçado.
Para Fernandes (2005), o fato discursivo implica uma exterioridade à linguagem,
devendo ser apreendido no social, colocando em evidência aspectos ideológicos 3 e históricos
próprios à existência dos discursos nos diferentes contextos sociais. O autor refere-se a
aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas.

3
Ideologia é sinônimo ao termo ideário, contendo o sentido neutro de conjunto de ideias, de pensamentos,
de doutrinas ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e,
principalmente, políticas. Segundo Mikhail Bakthin, no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, de 1979, tudo
que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é
ideológico é um signo, e sem este não há ideologia.
280
A AD3 é o momento em que opera-se a desconstrução da noção de ―maquinaria
discursiva fechada‖. Aqui, há o ―reconhecimento da não neutralidade da sintaxe; a noção de
enunciação passa a ser abordada e as reflexões sobre a heterogeneidade enunciativa levam à
discussão sobre o discurso outro‖. (FERNANDES, 2005, p. 83 apud PÊCHEUX, 1990b, p.
315). Assim, o terceiro momento da AD é o que nos interessa, isto é, este momento da AD é
onde esta pesquisa está alicerçada. Para isso, tratar de formações discursivas faz-se
necessário, pois, de acordo com o autor, a identidade do discurso se constrói na relação com o
outro, esteja esse outro marcado ou não linguisticamente.
Teóricos da contemporaneidade, tais como Guiddens (2002), Hall (2004) e Kellner
(2001) comprovam que as identidades são construídas nas e pelas múltiplas relações que
indivíduos e grupos estabelecem com diversos contextos sociais e culturais que, nos tempos
de hoje, envolvem também os produtos culturais que circulam na mídia, na qual o sujeito se
inspira para construir sua narrativa biográfica, sendo que mídia e sociedade se refazem
constantemente, uma transformando a outra e vice-versa.
Na modernidade, segundo Kellner (2001), há uma estrutura de interação com papeis,
normas, costumes e expectativas socialmente definidos e disponíveis; e que ―precisamos
escolhê-los e reproduzi-los para obtermos identidade num processo complexo de
reconhecimento mútuo‖ (KELLNER, 2001, p. 296).
Para Guiddens (2002), as instituições modernas diferem de todas as formas
anteriores de ordem social quanto a seu dinamismo, ao grau em que interferem com hábitos e
costumes tradicionais e a seu impacto global.

A modernidade deve ser entendida num nível institucional; mas as


transformações introduzidas pelas instituições modernas se entrelaçam de
maneira direta com a vida individual e, portanto, com o eu. Uma das
características distintivas da modernidade, de fato, é a crescente
interconexão entre os dois ―extremos‖ da extensão e da intencionalidade:
influências globalizantes de um lado e dispositivos pessoais de outro.
(GUIDDENS, 2002, p. 9)

E quem construiu, estabeleceu o papel, a distinção entre o sexo feminino e o


masculino? De acordo com Lavinas (1997 apud BARCHET, 2010, p. 16), a concepção do
gênero como uma construção sociocultural é um sistema de representações que atribui
diferentes significados (identidade, valor, status dentro da hierarquia social e prestígio) a
indivíduos dentro de uma mesma sociedade.
281
Segundo Del Priore (1997), a ―todo-poderosa‖ Igreja exercia (e ainda exerce) forte
pressão sobre o ―adestramento da sexualidade feminina‖. O fundamento escolhido para
justificar a repressão da mulher, segundo a autora, era simples: o homem era superior e,
portanto, cabia a ele exercer a autoridade. O macho (marido, pai, irmão etc.) representava
Cristo no lar. A mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de
Eva, a primeira fêmea que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade
de gozar da inocência paradisíaca.
Del Priore (1997) diz que a retomada por um ―velho discurso‖ que tenta justificar as
teorias e práticas liberais – que, embora comprometidas com o princípio da igualdade,
negavam às mulheres o acesso à cidadania, através da ênfase na diferença entre os sexos –
seria revigorada a partir das descobertas da medicina e da biologia, que ratificavam
cientificamente a dicotomia: homens, cérebro, inteligência, razão lúcida, capacidade de
decisão versus mulheres; coração, sensibilidade, sentimentos. Dessa forma, a construção da
imagem feminina a partir da natureza e das suas leis implicaria em qualificar a mulher como
naturalmente frágil, bonita, sedutora, submissa, doce etc. ―Aquelas que revelassem atributos
opostos seriam consideradas seres antinaturais‖. (DEL PRIORE, 1997, p.334)
Além disso, a maternidade era considerada, nas perspectivas médicas e psicológicas,
como a verdadeira essência da mulher, inscrita em sua própria natureza. A mulher permanece
consumindo ideias e produtos que possam ajudá-la a parecer mais jovem. A submissão ao
homem deu espaço à submissão aos valores da beleza e da juventude.
Sabemos que muita coisa mudou na história das mulheres em relação a épocas
passadas. Mas, segundo Perrot (2007), mesmo com tantas conquistas e mudanças ao longo do
tempo, ainda encontramos o ―modelo triunfante de mulher‖. E isso será confirmado, ou não,
de acordo com a análise do discurso que será realizada a partir dos elementos discursivos das
chamadas e fotos de capa da TPM de maio de 2012. A TPM é uma revista que existe há treze
anos no mercado editorial brasileiro e tem o público feminino como foco.
Os autores Berger e Luckmann (1985), discutem como se dá a legitimação dos
padrões e dos modelos de sociabilidade seguidos pela sociedade. Para eles, a origem do
universo simbólico está relacionada à ―legitimação‖, processo este que ―não apenas diz ao
indivíduo por que deve realizar uma ação e não outra; diz-lhe também por que as coisas são o
que são‖ (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 129).

282
Para Thompson (2011), o desenvolvimento de uma variedade de instituições de
comunicação a partir do século XV até os nossos dias, os processos de produção,
armazenamento e circulação têm passado por significativas transformações, explicando que:
estes processos foram alcançados por uma série desenvolvimentos, as formas
simbólicas foram produzidas e reproduzidas em escalas sempre em
expansão; tornaram-se mercadorias que podem ser compradas e vendidas no
mercado; ficaram acessíveis aos indivíduos largamente dispersos no tempo e
no espaço. De uma forma profunda e irreversível, o desenvolvimento da
mídia transformou a natureza da produção e do intercâmbio simbólicos no
mundo moderno. (THOMPSON, 2011, p. 35)

Para Thompson (2011), uma grande variedade de instituições assume um papel


particular historicamente importante na acumulação dos meios de informação e de
comunicação. Estas incluem instituições religiosas que se dedicam essencialmente à produção
e difusão de formas simbólicas associadas à salvação, aos valores espirituais e crenças
transcendentais; instituições educacionais que se ocupam com a transmissão de conteúdos
simbólicos adquiridos e com o treinamento de habilidades e competências; e instituições da
mídia, que se orientam para a produção em larga escala e a difusão generalizante de formas
simbólicas no espaço e no tempo, sendo produzidas e distribuídas pelo mundo social.
Pinto e De Souza (2009) afirmam que os meios de comunicação (televisão, revista,
internet, rádio) detêm forte influência na formação da identidade, desempenhando um papel
fundamental para o encontro de culturas, sua apropriação e ressignificação, ao mesmo tempo
em que contribuem para moldar nos indivíduos as maneiras de apreender o mundo,
participando da estruturação da sociedade e sendo por ela estruturada.
De acordo com Debord (2006), ―muitos ritos já foram incorporados na cultura
popular, cujo processo de reconfiguração dos atos humanos implica dependência de
realidades espetacularizada‖ (DEBORD, 2006 apud PINTO; DE SOUZA, 2009, p. 130). E o
espetáculo (difundido pelos meios de comunicação) mantém a ordem vigente, ou seja, ―[...]
constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade‖. (DEBORD, 2006, p. 14 apud
PINTO; DE SOUZA, 2009, p. 131).

3 DESENVOLVIMENTO
Na etapa inicial foi realizar uma revisão bibliográfica acerca do assunto, bem como
um levantamento dos principais teóricos que abordam os seguintes temas: identidade, gênero,

283
a mídia revista e análise do discurso; para maior reflexão e embasamento teórico da referida
pesquisa.
A pesquisa se configura na segunda etapa do trabalho, em que será feita a análise de
discurso das chamadas e foto de capa da edição de maio de 2012 sob a forma de matrizes,
para percebermos como e de que forma a mulher é representada nas capa da revista TPM. O
terceiro momento da AD é o que nos interessa, isto é, a vertente francesa é onde as matrizes
discursivas estão alicerçadas.
Na matriz desenvolvida a seguir, com as análises dos elementos discursivos
elucidados, observaremos algumas questões que envolvem a representação da mulher na
sociedade e na mídia, principalmente na revista TPM. Dessa forma, temos a Matriz Discursiva
Referencial (1), A chamada selecionada para a análise está envolvidas por um quadro
retangular na cor azul.

284
Matriz Discursiva Referencial (1)
Corpus de Análise: Revista TPM
Ocorrência no Corpus: Capa Maio/2012

Enunciado Grazi gravidíssima – A estreia no cinema, a vida com Cauã, a chegada da


primeira filha: “É um medo gostoso, misturado com ansiedade e amor”

Representação da Mulher exemplar: mãe, profissional de sucesso, bonita, casada


Mulher
Campo Discursivo Discurso Feminino
Espaço Discursivo Discurso sobre o papel da mulher contemporânea
Formações Seguir o que foi “legitimado” para a mulher, como casar, ter filhos, ser boa
Discursivas esposa.

Interdiscurso Moral, religioso, familiar.

Heterogeneidade Heterogeneidade mostrada: “É um medo gostoso, misturado com


Mostrada ou ansiedade e amor”
Constitutiva Heterogeneidade constitutiva: O enunciado representa o modelo de
mulher mãe, bonita, de sucesso profissional e bem casada.

Posicionamentos Seguir o modelo de mulher construído ao longo do tempo


Discursivos

285
Deslocamento e Ser mãe, bonita, com sucesso na profissão e boa esposa. A mulher só tem
Apagamento uma escolha: ser mãe.

Dialogismo, A capa de Maio/2012 retoma outros discursos numa identidade dialógica


Imagem e Discurso que assevera posicionamentos discursivos que são contraditórios à linha
editorial da revista (são outros discursos retomados a partir da presença de
enunciados constitutivos de apagamentos e não ditos, entre falas entre
aspas, pronunciadas por mulheres bem sucedidas, autoridades femininas,
etc.). A imagem da foto de capa reflete os padrões que devem ser seguidos
pelas mulheres: ser bonita, se casar e ser mãe, o que implica em ser feliz e
completa. Assim, texto (discurso) e imagem se unem para desempenhar
essa função.

A matéria de capa da edição do mês de maio – este que é considerado o


Análise mês das noivas e no qual se comemora o dia das mães – representa a
mulher no seu papel mais tradicional e considerado natural: a mulher mãe;
ou seja, a mulher no ápice do seu “modelo triunfante”, de acordo com
Perrot (2007). Aqui, podemos fazer uma analogia com as publicações
femininas dos Anos 50, pois estas traziam em suas capas o modelo de
família (branca, de classe média, nuclear, hierárquica, com papeis
definidos), regras de comportamento e opiniões sobre sexualidade,
casamento, juventude, trabalho feminino e felicidade conjugal. Isso também
é visto nessa capa da revista TPM em análise, pois além de uma
brincadeira com o nome da atriz (Graziela – Grazi), aliado ao termo
“gravidíssima”, no superlativo, há um reforço à condição considerada
natural da mulher: ser mãe. A formação discursiva anuncia às mulheres
que sigam o que foi “legitimado” para elas, como casar, ter filhos, ser boa
esposa. Além disso, representa um modelo, um padrão da mulher
contemporânea aliada àquele modelo, àquelas representações
consideradas como "fundamental" para a mulher, ou seja, aquela que, além
de seu papel triunfante (mãe, dona de casa, esposa, etc.), agora trabalha
fora e dentro de casa, tendo que desempenhar o seu papel no espaço
privado e também no espaço público. A felicidade da mulher está
representada, contemplada, pois, além da beleza, do sucesso profissional,
o casamento e a chegada do primeiro filho, pode-se observar que o amor é
um atributo, uma condição inerente para a mulher. Isso pode ser visto na
heterogeneidade mostrada “É um medo gostoso, misturado com
ansiedade e amor”. A chamada da matéria de capa da referida edição
funciona como uma receita de como se deve fazer para ser o modelo de
mulher feliz, realizada (bonita, mãe, boa esposa, de sucesso profissional,
etc.). O posicionamento discursivo da chamada e da foto de capa dessa
edição retrata que ser mãe é uma obrigação a ser cumprida por todas as
mulheres. O apagamento discursivo sugere que a maternidade tem que
ser cumprida de qualquer forma pela mulher. Não ser mãe, assim como não
se casar, significa uma feminilidade incompleta e, de certa forma, um
fracasso social para a mulher. Também podemos observar que há a
confirmação da instituição família, que, para Perrot (2007), é a célula
elementar da sociedade.

Foto de capa – A foto de capa dessa edição, como sendo do mês de Maio,
representa o que uma mulher deve ser (mãe e esposa) e como ela deve se
comportar (religiosa, bem comportada), reforçando o padrão de mulher
criado e construído ao longo do tempo. Isso contradiz totalmente com a
linha editorial da revista, porque a TPM tem como foco representar a mulher
de forma diferente das outras mídias impressas voltadas para a mulher.
Dessa forma, pode-se constatar que tanto as mulheres quanto as mídias
que se propõem a ser diferentes, ainda continuam alicerçadas, seguem o
“modelo triunfante de mulher” e o modelo triunfante de atributos
286
considerados inerentes, naturais ao sexo feminino. Dessa forma, texto e
imagem representam harmonicamente a mulher no seu papel mais
tradicional.

3.1 Análise das regularidades

Com base na análise do discurso da chamada e foto de capa realizada, constatou-se


que o interdiscurso da revista TPM ainda tem e reflete uma formação discursiva do ―modelo
triunfante de mulher‖, postulado por Perrot (1997). Desta maneira, através dos apagamentos,
deslocamentos, do dito e do não dito, verifica-se certas regularidades discursivas que,
portanto, oferece essa constatação.
Os discursos do enunciado da revista TPM e a utilização da imagem feminina por
esta mídia trazem imbricadas a construção de novos comportamentos e atitudes que formatam
estilos de vida para as mulheres, mas refletindo o espaço subjetivo da família, da mãe, da
esposa, da mulher-bela e burra, da dona de casa, a partir da naturalização de estereótipos e
mitos, ao mesmo tempo em que imprime na mulher uma representação do estabelecimento de
novos padrões de comportamento e conduta, instigada pelo excessivo consumo,
reivindicações sociais e valores estéticos estereotipados.
A atriz Grazi Massafera aparece vestida com roupa de cor preta. Esta que é
a cor mais escura do espectro, definida como "a ausência de luz". O preto é a cor que absorve
todos os raios luminosos (todas as outras cores), mas não reflete nenhum. Por isso a cor preta
é considerada como desprovida de clareza. Além disso, a cor preta tem a simbologia do
mistério, do pessimismo, da maldade, da introspecção e sugere silêncio. Temos aqui o
interdiscurso religioso que permeia o espaço discursivo feminino, pois, segundo Del Priore
(1997), a mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a
primeira fêmea que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade de
gozar da inocência paradisíaca. E, na cultura ocidental, a cor preta está associada à morte, às
trevas, ao mal e outras conotações negativas, conotações estas que estão colocadas nas roupas
das mulheres que estampam as capas analisadas. Além disso, a cor preta, como sendo
considerada desprovida de clareza, cumpre também a função de reforçar a submissão da
mulher, desprovida de discernimento intelectual e protagonista apenas no espaço privado.
Portanto, sem voz, sem participação ativa nenhuma na sociedade. O preto também é visto

287
como uma cor que emagrece, considerada ―chic‖, clássica, elegante; atribuições estas –
emagrecer, ―chic‖, elgância – que estão ligadas à mulher, à beleza.
Outra regularidade encontrada é o fato de sua roupa – camisa aberta e biquíni –
deixar exposta determinadas partes do corpo, como coxas e pernas, o que maximiza, de certa
forma, a imagem da sensualidade. Assim, a emancipação feminina é evocada pela TPM, mas
na verdade trata-se de um processo que continua coisificando a mulher. Segundo Buitoni
(2009), podemos observar alguma evolução no processo metafórico em relação à forma da
expressão, mas a forma do conteúdo permanece a mesma, ou seja, a mulher de TPM está,
metaforicamente e metonimicamente, ligada aos seus papeis sociais básicos que ainda
persistem, tanto no imaginário social quanto no imaginário editorial da TPM.
A mulher de TPM se insere no que Buitoni (2009) postulou como um ―novo‖ que é,
na verdade, ―um simulacro da mudança‖. E em termos sociais, ainda segundo a autora, esse
―novo‖ só serve à manutenção dos sistemas vigentes. Para ela, o significado profundo desse
―novo‖ é conservador e apenas ajuda a manutenção do status quo; oculta a permanência.
As regularidades discursivas presentes nas chamadas e fotos de capa nos fornecem
resquícios implícitos e explícitos que muitas simbologias, mitos e representações sociais
criadas e construídas ao longo do tempo ainda têm grande força no imaginário social. ―Ainda
persiste o mito da feminilidade que vincula a ideia de mulher à da negação de mudança‖.
(MATTERLT, 1997, p. 34 apud BUITONI, 2009, p. 198)
Na TPM, a mulher é estimulada a ser independente (financeiramente, culturalmente,
esteticamente), mas continua a depender do olhar masculino. Para Buitoni (2009), algumas
normas com relação à moda e à beleza afrouxaram, em nome da liberdade e da diversidade,
mas principalmente porque favorecem o aumento do consumo.
A sigla TPM, Trip Para Mulher, refere-se também à tensão pré-menstrual, indicando
o tipo de público que a revista pretende atingir: mulheres ousadas, fortes, que se permitem ter
variações de humor – como acontece com a maioria das mulheres durante o período pré-
menstrual, que não se encaixam nos estereótipos femininos tradicionais, nem naqueles que as
outras revistas femininas propõem. Porém, as regularidades discursivas presentes em suas
chamadas e foto de capa possuem formações discursivas que refletem o ―modelo triunfante de
mulher‖, o que colabora para mitificação e a mistificação do ser feminino, ajudando a manter
padrões e representações da mulher (mãe, esposa, casamento, doce, bela e burra, frágil etc.).

288
Da mesma forma, o nome TPM é uma maneira de aprisionar a mulher a antiquíssimas
representações do feminino.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A TPM sempre que possível, procura deixar claro seu objetivo de não ser um manual
de auto-ajuda. A TPM apresenta matérias inteligentes e aprofundadas, ao lado das seções de
roteiro cultural e comentários humorísticos e propõe outras visões de consumo, embora dentro
de uma economia capitalista.
Para Buitoni (2009), a revista TPM é uma nova tendência no segmento feminino.
Para ela, é nesta revista que se encontra a preocupação da construção de uma visão crítica e da
politização feminina. A independência feminina só é possível ser encontrada nesta publicação.
A revista defende a ideia do bem-estar feminino acima de tudo. Sendo assim, a TPM
apresenta uma tendência que contradiz as críticas elencadas por Buitoni (1990) a respeito da
imprensa feminina. Agora, com esse aspecto crítico e sem estimular a dependência feminina
em relação ao homem, a TPM busca a construção de uma consciência crítica da leitora, sem
caráter alienador.
Muitos padrões de beleza feminina são quebrados nessa publicação. Mas a mulher de
TPM que estampa as chamadas e fotos de capa, realmente é livre de tudo o que foi imposto,
construído para ela? Essa mulher se sente livre e age livremente sem as imposições da
sociedade? Essa mulher se vê e se sente fora do padrão legitimado para ela? Não casar, não
depender de marido, não ter filho, não saber ou não gostar de cozinhar, passar roupa etc., traz
infelicidade para a mulher e é a antítese da feminilidade? Ser independente das normas e
legitimações impostas a elas é errado?
O caráter alienador das publicações femininas convencionais apenas é contado e
transposto de outra maneira pela revista TPM. Através das regularidades discursivas
observadas, a revista ainda reflete o ―modelo triunfante‖ de mulher, reproduzindo também o
mesmo triunfalismo das revistas femininas tradicionais. Os elementos principais do universo
feminino – moda, beleza, comportamento – ainda moldam o tripé de conteúdo da TPM.
Apesar de observarmos na contemporaneidade os casamentos por amor (e não mais aqueles
―arranjados‖ ou ―sem amor‖) e as mulheres fora do seu espaço privado (o lar, o ambiente
doméstico), ainda persiste a exigência do ―modelo triunfante‖ nessa mulher. Ela tem que ser

289
companheira, ter dupla jornada de trabalho (no espaço público e no espaço privado), estar
sempre sorridente, feliz, ser boa mãe e esposa, profissional exemplar, manter e cuidar da sua
beleza. A existência naturalmente aceita e rotinizada na sociedade com relação ao papel e a
representação da mulher parece não permitir uma ameaça mais aguda.
Alguns modelos acabam por tornar ―naturais‖ certas posições que são construídas
socialmente. E apesar dos avanços, a desigualdade ainda existe e há muitos obstáculos nos
caminhos da cidadania feminina. Mesmo depois de muitas lutas vencidas contra a dominação
masculina, a representação estereotipada das mulheres nas revistas parece não haver fim,
afirma Coutinho (2009). E isso fica visível nas regularidades discursivas das chamadas e foto
de capas registradas na revista TPM, que indicam caminhos para sua leitora ser uma mulher
independente, aventureira, descolada, diferente do ―modelo triunfante‖ de mulher.
Para Buitoni (2009), a imagem apresentada pela imprensa feminina inclui poucos
elementos de inovação; é uma tradição camuflada de nova. A transformação ocorrida com a
imagem da mulher nas revistas femininas é quase nula quando analisada em seus significados
mais profundos, pois não ultrapassa os limites de adaptação às normas vigentes. Isso é
observado na capa e chamadas de capa da revista TPM, que têm em sua linha editorial o
objetivo de representar a mulher diferentemente das revistas femininas tradicionais, mas não
consegue se desvencilhar desses padrões, recriando diferenças entre o discurso e a realidade
concreta.
A TPM representa uma nova mulher em suas chamadas e foto de capa. Uma mulher
ora contemporânea, ora triunfante, mas o seu discurso continua reproduzindo o mesmo
modelo de mulher construído à base de estereótipos e padrões criados para a mulher.

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Tradução de Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Mass Media: contextos e paradigmas, novas
tendências, efeitos a longo prazo, o newsmaking. 7ª ed. Lisboa: Presença, 2002.

292
AS COLUNAS “EVANGELHO DAS MÃES” E “FALANDO ÀS MÃES” E A
CONSTRUÇÃO DO PAPEL MATERNO COMO AGENTE DA SEGURANÇA
ALIMENTAR DOS FILHOS, BRASIL – (1950 -1960)

COLUMNS " GOSPEL OF MOTHERS " E " TALKING TO MOTHERS ' AND THE
ROLE OF CONSTRUCTION MOTHER AS AGENT OF FOOD SAFETY OF
CHILDREN
BRAZIL - (1950 -1960)

Autor: Thais Adriane Dalmolin1


Orientador: Profa. Dra. Maria Cecília Barreto Amorim
Pilla2

RESUMO

Os ―Anos Dourados‖ apresentava a mulher em diversos papéis: a ―moça de família‖, que era
aquela que desejava e fazia por merecer um casamento feliz e indissolúvel, a ―rainha do lar‖,
aquela que se realizava nos cuidados com a casa, o marido e os filhos, a ―boa esposa‖
amorosa, bonita e dedicada, e por fim a ―boa mãe‖, o papel que toda mulher deveria desejar.
A partir do papel de ―boa mãe‖, levando em consideração seus cuidados com o filho, em
especial com sua alimentação, surgem os seguintes questionamentos: quais as características
que identificavam a ―boa mãe‖ em relação à alimentação de seus filhos enquanto crianças?
Qual a importância dos cuidados maternos na garantia da segurança alimentar dos filhos? A
partir desses questionamentos, a pesquisa tem por objetivos: apresentar as principais e
essenciais características da ―boa mãe‖, relatar os cuidados maternos que garantiam a
segurança alimentar dos filhos e enfatizar como o papel materno tornou-se principal agente da
segurança alimentar dos filhos no período. Para responder aos questionamentos e atingir tais
objetivos, utilizou-se analisar as páginas da revista feminina Jornal das Moças, edições entre
os anos de 1950 a 1960, em especial dedicando a análise a duas colunas, sendo elas
―Evangelho das Mães‖ e ―Falando as Mães‖. Foi necessário fichamento de todas as edições da
revista entre os anos citados acima, e posterior análise do conteúdo presente nas colunas,
utilizando como base teórica os trabalhos de pesquisa de Carla Bassanezi Pinsky e Mary del
Priore, entre outros autores presentes na pesquisa. Após a análise do conteúdo presentes nas
revistas, foi possível perceber que os cuidados maternos no período estavam intimamente
relacionados ao conceito de segurança alimentar, que no período ainda estava em construção,

1
Mestranda em Direitos Humanos e Polícas Públicas na Pontifícia Universidade Católica do Paraná
2
Atualmente é professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, onde também é
Coordenadora do Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Tem experiência na área de
História, com ênfase em História Moderna, atuando principalmente nos seguintes temas: história da alimentação,
etiqueta, diferenciação social, boas maneiras à mesa, comportamento adequado e boas maneiras; alimentos,
símbolos, civilização e direitos humanos e patrimônio alimentar. Atualmente também é coordenadora do curso
de Especialização: História Social da Arte da PUCPR. Também atualmente é coordenadora de PIBID -
subprojeto em História na PUCPR.

293
e dessa forma o papel materno acabou por se tornar no período, o agente que garantia tal
condição ao filho.

Palavras-chave: Jornal das Moças. Segurança alimentar. ―Boa mãe‖.

ABSTRACT

The "Golden Years" showed the woman in several roles: the "family girl" was that girl who
wanted and did to deserve a happy and indissoluble marriage, the "queen of the home" was
the one who performed the care home, husband and children, the "good wife" amorous,
beautiful and dedicated, and finally the "good mother" that was the role that every woman
should want. From the role of "good mother", taking into consideration their care with the
son, especially with their food, the following questions appear: what characteristics identified
the "good mother" in relation the feeding of their children as children? What is the importance
of maternal care in ensuring food safety of children? From these questions the research aims
to: show the main and essential characteristics of "good mother", report the maternal care that
ensured food security for children and emphasize how the maternal role has become the main
agent of food safety of the children in the period. To answer the questions and achieve these
objectives, was analyzed the pages of women's magazine of the ―Jornal das Moças‖ editions
of the 1950s and 1960s, in especially dedicated to analysis the two columns, which were
"Evangelho das Mães" and "Falando às Mães". It was necessary to book report of all editions
of the magazine between the mentioned years, and further analysis of this content in columns,
using as a theoretical base the research work of Carla Bassanezi Pinsky and Mari del Priore,
among other authors present at the research. After analyzing the content present in the
magazines, it was revealed that maternal care were intimately related to the concept of food
security, which in the period was still under construction, and in that way the maternal role
turned out to be in the period the agent that guarantee such condition to the child.

Keywords: Jornal das Moças. Food security. "Good mother".

INTRODUÇÃO

Há alguns anos atrás a realidade feminina era bem diferente daquela que conhecemos
hoje. À mulher cabia a responsabilidade de administrar o lar, esperando-se que fosse uma boa
esposa e mãe. Essa atribuição dada às mulheres, fora bastante explorada e dissuadida, durante
o período conhecido no Brasil como ―Anos Dourados‖. Este está localizado entre os anos de
1945 à 1964, e é caracterizado principalmente pelo sentimento de otimismo pós-guerra, que
trazia consigo a esperança em um futuro próspero e moderno, traduzido especialmente no
american way of life. A família conjugal é o modelo dominante na época, e as leis da época
294
enfatizavam o papel feminino dentro do lar, como também a autoriade máxima do ―chefe de
família‖.
Como importante conselheira de esposas e mães inexperientes a imprensa feminina
ganha destaque. As revistas femininas traziam em seu conteúdo: dicas, orientações e
conselhos quanto ao que se refere à manutenção e cuidado com o lar e a família.
Quando o tema recai sobre a saúde e a nutrição da família, são as mulheres que
costumam ser as responsáveis pelo bem estar de seus demais membros, e entre eles ganham
destaque os filhos. As colunas ―O Evangelho das Mães‖ e ―Falando as Mães‖, que faziam
parte das edições do ―Jornal das Moças‖, tornam-se importante fonte de pesquisa, sendo a
intenção desse trabalho, responder aos seguintes questionamentos: quais características
indentificavam a ―boa mãe‖ em relação à alimentação de seus filhos enquanto crianças? Qual
a importância dos cuidados maternos na garantia da segurança alimentar dos filhos no
período?.
Então a partir da seleção e análise dos conteúdos presentes nas colunas, têm-se como
objetivos: apresentar as principais e essenciais características que indentificavam a ―boa
mãe‖, relatar os cuidados maternos que garantiam a segurança alimentar dos filhos enquanto
crianças e enfatizar como o papel materno tornou-se principal agente da segurança alimentar
dos filhos no período. Foi realizado o fichamento das fontes, onde utilizou-se coletar todas as
colunas publicadas nas edições da revista entre os anos de 1950 à 1960, e posteriormente a
análise das mesmas.
O aporte teórico tem como principais autores: Carla Bassanezi Pinsky, historiadora
com doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp, é autora e co-autora de vários trabalhos
relacionados a família brasileira e gênero, especialmente história das mulheres no Brasil, e
utiliza como fontes revistas femininas, incluindo o ―Jornal das Moças.‖ Desenvolveu também
trabalhos sobre como analisar e utilizar fontes históricas. Mary del Priore, historiadora, pós-
doutorada, possui vários livros publicados, e dedicou alguns deles a história da mulher
brasileira, como em ―Histórias e Conversas de Mulher‖, que descreve a história feminina
desde o Brasil Colônia até o século XXI.

295
UM NOVO PARÂMETRO DE FAMÍLIA – OS ANOS DOURADOS E O “LAR DOCE
LAR”

A partir do início do século XX, os valores patriarcais, que remontavam ao período


colonial, começaram a ser contestados. Com a abolição oficial da escravidão, e com o
nascimento da República, juntamente com a grande imigração e a disparada do processo de
urbanização e industrialização, ocorrem mudanças significativas no Brasil. O Brasil começava
a deixar para trás seu caráter agrário, e iniciava-se a preocupação em construir uma sociedade
―moderna e higiênica‖.
Nesse período um novo modelo de família começa a ser desejado. Nesse novo modelo,
a vontade dos indivíduos começava a ganhar espaço, deixando de estar totalmente
subordinada a do pai/marido. O amor romântico começa a ganhar relevância dentro do
casamento, e a intimidade passa a ser enaltecida.
A vida familiar ideal era agora aquela do ―lar doce lar‖, em que os membros da família
encontravam em casa a ―proteção‖, o ―aconchego‖ e a ―higiene‖ que contrastavam com as
―agruras‖ e a ―poluição‖ do mundo exterior (SCOTT, 2012).
Desde o final da Primeira Guerra Mundial vem ganhando força por toda a sociedade
brasileira a ideia de que a mulher deveria dedicar-se exclusivamente às tarefas domésticas,
incluindo aí os papéis de dona de casa e mãe. Segundo Matos e Borelli (2012, p. 133), desde
esse período, ―o trabalho feminino passou a encontrar maior oposição por parte de diferentes
grupos sociais e instituições, revestida de preocupações morais que se somavam e argumentos
religiosos, jurídico e higienistas‖.
Vale ressaltar que esses novos valores, não foram adquiridos na vida de todas as
famílias brasileiras. Embora não tenham sido adotados por toda a população, o ideal de
família, estimulado pelas classes dominantes, passou a ser o novo parâmetro.

OS ―ANOS DOURADOS‖ NO BRASIL

Para o período conhecido como ―Anos Dourados‖, considera-se seu início em 1945,
onde o Brasil ao escolher o lado vencedor na Segunda Guerra Mundial, passava por um
período de extremo otimismo e esperança de um futuro próspero e moderno, e seu término,
por assim dizer, em 1964, ano em que ocorre no Brasil o Golpe Militar.
296
O otimismo dos pós-guerra, as esperanças no futuro próximo e a sensação de
que o país alcançaria de vez a modernidade ainda hoje dão saudades a muita
gente. A nostalgia de uma época que teria sido ―dourada‖ também se
alimenta de lembranças (ou construções da memória) de romantismos
perdidos, de relacionamentos estáveis e de papéis sociais definidos e
seguros. (PINSKY, 2014, p.15)

Os anos de 1945 a 1964, são significativos para a história brasileira, em geral, e


também para a história das relações de gênero particularmente. Do ponto de vista econômico,
o Brasil em 1950 ingressou numa fase de desenvolvimento mais acelerado. Avançaram a
industrialização e a urbanização. A produção industrial passou a diversificar-se e inúmeras
transformações passam a ocorrem na infraestrutura e no cotidiano das cidades.

A economia e a sociedade brasileira tronam-se mais complexas. Ampliam-se


e sofisticam-se as relações capitalista. A influência do capital estrangeiro se
mais mais intensa, principalmente a partir do governo JK. Posições político-
econômicas adotadas pelo Brasil propiciam a crescente interferência dos
Estados Unidos nos assuntos internos brasileiros. (PINSKY, 2014, p.16)

A indústria pesada e de bens de consumo, incluindo a automobilística, ganham força


entre os anos de 1956 a 1962. Ocorre a implantação de novas empresas que acabam por
demandar novos setores produtivos e de serviços. Há o incremento da infraestrutura nas
cidades, com destaque para o fornecimento de energia elétrica, e o desenvolvimento do
trasnporte rodoviário e das comunicações.

Muitas das distâncias entre homens e mulheres diminuem com as


transformações urbanas: novas formas de lazer, novos pontos de encontro
surgem nas cidades. Modificam-se regras e práticas sociais que vão do
convívio nas ruas ao relacionamento familiar. (PINSKY, 2014, p. 18)

Apesar dessas mudanças, ainda prevalecem os aspectos tradicionais das relações de


gênero, como exemplo: distinções de papéis baseados no sexo, valorização da castidade
feminina e moral sexual diferenciada para homens e mulheres. A família conjugal, composta
por pai, mãe e filhos, é o modelo dominante, e em famílias de classe média, a prole é
reduzida. A autoriade máxima é conferida ao pai, considerado ―chefe da família‖, e a mesma
era garantida pela legislação da época.
297
Mesmo com chegando ao Brasil informações sobre a emancipação feminina a partir de
1960, com a difusão da pílula ainticoncepcional, a mesma não é vista com bons olhos por
todos.

Repercutem por aqui campanhas governamentais estrangeiras de incentivo


aos valores tradicionais da família, às virtudes da maternidade e à dedicação
exclusiva da mulher ao lar para que os homens reassumam seus pontos de
trabalho abandonados com o advento da guerra (ocupados, então, por
mulheres) e para que a sociedade ―volte a ser o que era‖. (PINSKY, 2014, p.
19)

A influência cultural norte-americana, teve como porta de entrada no Brasil,


principalmente o cinema e a música. Os Estados Unidos passa a ganhar prestígio entre os
brasileiros, e a influência europeia decresce, ―o american way of life torna-se modelo
invejável entre as classes médias braileiras e Hollywood inspira comportamentos e valores,
especialmente entre os jovens‖. (PINSKY, 2014).
Dentro do contexto da modernização, promovido principalmente pela urbanização, no
intuito de se estabelecerem como meios de comunicação de massa, desenvolvem-se o rádio, a
imprensa e o cinema no Brasil. Mesmo com o surgimento da TV, a mesma não consegue
competir com o rádio, revistas e jornais da época, levando em conta o público consumidor.

A imprensa moderniza-se, principalmente no que diz respeito às revistas


ilustradas. O vínculo entre imprensa feminina e consumo se intensifica
acompanhando o crecimento da indústria de bens ligados à mulher e à casa e
o aumento do poder aquisitivo de setores da população. (PINSKY, 2014, p.
19)

Mesmo sendo considerado ideal ―a mulher de prendas domésticas‖, sua rotina


doméstica passa a conhecer uma nova realidade, são incluídos na mesma os enlatados, os
eletrodomésticos e os descartáveis. As revistas, em destaque as femininas, tinham sua edições
repletas de propagandas de produtos de higiene pessoal e beleza, utensílios domésticos,
medicamentos. Anuncia-se o ―prático e simples‖, o que refletia a ―vida moderna‖.
As revistas femininas refletiam os padrões da época, enaltecendo sempre o papel
feminino dentro do lar, nos papeis de esposa e mãe

298
A CONSTRUÇÃO DA ―BOA MÃE‖

A felicidade conjugal parecia depender cada vez mais das atividades e cuidados da
mulher dentro do lar. Uma esposa que não soubesse cuidar corretamente da administração do
lar, como também da imagem do marido e dos filhos, corria o sério risco de não ter um
casamento feliz.

O amor entre os cônjuges é considerado um ingrediente importante, mas não


o suficiente para garantir um ―casamento harmonioso‖. E as revistas
direcionadas às mulheres trazem receitas prontas para o algo a mais que
sustenta os matrimônios dentro do ideal de felicidade proposto como único e
universal (BASSANEZI, 1993, p. 112).

Assim como as esposas-modelos, muito enaltecido era também o papel de uma ―boa
mãe‖. As revistas femininas reservavam um espaço especial em suas edições para aconselhar
as mães quanto aos cuidados com os filhos.
―Casamento leva a filhos, necessariamente. Esta verdade incontestável até meados dos
anos 1960 criava grande expectativa pelo nascimento de uma criança tão logo um jovem casal
se unia em matrimônio‖ (PINSKY, 2012, p. 491). Essa grande importância dada a
reprodução, não era por acaso. A chegada de um filho, era o que confirmava socialmente o
sucesso do casamento, como também garantia o êxito da mulher em ter cumprido seu ―destino
natural‖. Para a ordem social, o nascimento de um ou vários filhos, dentro do casamento,
significava mão de obra futuramente reposta, soldados para compor os exércitos, e a base que
iria garantir o movimento da economia.

Em geral, as mulheres davam à luz em casa, assistidas por uma parteira. A


partir daí, ingressavam no rol das mães, promovidas na sociedade Ocidental,
desde o século XVII, a seres amorosos por instinto e capazes de qualquer
sacrifício pela prole. A maternidade é uma ―sagrada missão‖ da qual não se
pode abrir mão. Em se tratando de mulheres casadas, não querer engravidar
é quase um ultraje. (PINSKY, 2012, p. 491)

Na segunda metade do século XIX, a maternidade era ―coisa natural‖, e ao final desse
mesmo século, passou a ser tratada como uma questão de ordem pública. Inicia-se um
processo para a implantação de medidas de proteção à gestação e ao parto, como também para

299
a diminuição da mortalidade infantil. Na busca por tal proteção das mães e seus filhos, inicia-
se uma revolução sanitarista no país.

A herança do colonialismo e da escravidão tinha de ser substituída pela


―modernidade‖. E o que significava isso? A transformação da mulher em
máquinas de fazer filhos, mas, sobretudo, cidadãos e soldados, para o bem
da pátria. (PRIORE, 2013, p. 133)

Surgia então a chamada ―maternidade científica‖, que era caracterizada pelo


acompanhamento médico desde a gestação até o nascimento, a inclusão da mamadeira como
utensílio auxiliar à amamentação, e tendo a mulher como importante colaboradora e auxiliar
dos médicos, na busca por uma sociedade mais saudável. É nesse momento que surgem as
palestras sobre higiene infantil e saúde pública, com o intuito de que a população brasileira
pudesse ascender física e moralmente.
Faz-se necessário observar, que todos esses cuidados e acompanhamentos não foram
adotados igualmente por toda a sociedade.
Ao ter filhos, os novos padrões higienistas, previam o cuidado pessoal dos mesmos. A
mãe deveria ter a obrigação e a total responsabilidade por seus filhos, e essa não deveria ser
repassada para outros. Inicia-se forte crítica as mulheres que optavam por deixar seus filhos
aos cuidados de babás. Surgem então as primeiras características, do que seria uma ―boa
mãe‖.
Ao colocar nas mãos das mulheres, enquanto mães, a responsabilidade de formar
cidadãos saudáveis fisicamente, intelectualmente e com um caráter moral, o Estado,
necessitou investir na melhoria da educação feminina: ―alguma instrução era necessária para
que as mulheres cumprissem bem esse seu papel público. A retórica da ―boa mãe‖ foi, aos
poucos, acompanhada pela expansão do sistema educacional e a escolarização das meninas.‖
(PINSKY, 2012, p. 492).
A expansão do sistema educacional e a escolarização das meninas, começa a ser
pensada como algo que facilitaria as tarefas femininas, como também permitiam as mulheres
que fossem letradas uma atuação mais eficiente nos papéis principais destinados a ela, ou seja,
esposa, dona de casa e mãe. Inicia-se também um pensamento sobre a atuação de mulheres
solteiras dentro da sociedade, quando estas tivessem tido acesso ao ensino.

300
Moças letradas e cultas podem ser donas de casa mais eficientes,
companheiras valorizadas em um trunfo para suas famílias, desde que não
queiram competir com os homens ou trocar de posição com eles. Mães com
alguma instrução podem cuidar melhor dos filhos. Solteiras qualificadas
podem ser professoras, secretárias, balconistas, ganhando honestamente seu
sustento ou contribuindo com o orçamento familiar. (PINSKY, 2012, p. 474)

A educação feminina possibilita que a mulher passe a ter acesso a informações


contidas em livros e revistas, ou em outros meios. Saber ler, como também calcular, passa a
auxiliar as mulheres em suas tarefas diárias.

Ser uma “boa mãe”

Nos anos de 1950, estavam em pleno vapor, as mudanças no tratamento das crianças.
Essas mudanças eram respaldadas pelo constante discurso de pediatras, higienistas, e
psicólogos, personagens esses que tornavam-se cada vez mais influentes nas definições da
―boa mãe‖. Era dever da ―boa mãe‖ manter-se sempre informada, e alguns médicos da época,
passam a considerar a maternidade como uma ciência, que deveria obrigatoriamente ser
aprendida e compreendida por todas as mães. Priore, cita em seu livro: Histórias e conversas
de Mulher (2013), p. 134, a fala do médico higienista da época, doutor Fontenelle, onde
segundo ele ―Já está absolutamente provado que a mais importante causa da mortalidade
infantil é a ignorância das mães‖.
O sentimento de amor materno sempre houve. Mas a queda da mortalidade
infantil nos finais do século XIX, graças ao progresso da higiene e da saúde
pública, mudou a relação de mães e filhos, tanto no que diz respeito aos
cuidados com a alimentação quanto as manifestações de afeto.(PRIORE,
2013, p.129).

A puericultura passa a ser moda, assim como, o ensino da higiene também. Pediatras e
higienistas passam a publicar livros e escrever para colunas de revistas femininas, que tinham
como temas: ―conselhos‖ e ―ensinamentos‖ sobre medicina doméstica e doenças infantis,
desmame e alimentos adequados.‖ (PRIORE, 2013, p. 134).
Torna-se comum anúncios em revistas femininas de alimentos destinados ao público
infantil,entre eles: a farinha láctea Nestlé e os mingaus Otker, e vários outros produtos. A
alimentação da do bebê e da criança, deve ser constantemente vigiada e monitorada pela mãe.

301
A mãe deve assegurar uma correta alimentação afim de garantir a saúde e o crescimento
saudável de seus filhos:

Viva a moderação! Pediatras ocupavam colunas em revistas femininas


lembrando mais uma vez que apenas a ―alimentação racional dos filhos‖ os
fazia ―fortes e sadios‖, concorrendo para ―elevar bem alto o nome de nossa
querida Pátria‖. O medo da morte dos pequenos e a alta mortalidade infantil
ajudavam a consolidar o papel da ―nova mãe‖. (PRIORE, 2013, p 135).

A autoridade dos médicos, com o passar do tempo vai sendo cada vez mais
consolidada, quando se refere a definir os cuidados de uma ―boa mãe‖ para com seus filhos.
Ser uma ―boa mãe‖ passa a significar, seguir rigorosamente as orientações de médicos das
mais variadas especialidades, inclusive quando se tratava da educação dos filhos
―especialistas se interpunham cada vez mais na relação entre mãe e filho. Deixar chorar ou
consolar? Dar uns tapas no traseiro ou passar a mão na cabeça?‖ (PINSKY, 2012, p. 494).
Deveriam também as ―boas mães‖ ignorar os ―conselhos das parteiras, das parentas ou
das vizinhas para prestar atenção ao que dizem os médicos e os jornais e revistas que
reproduzem suas opiniões‖. (PINSKY, 2012, p. 494).
As revistas femininas destacavam-se por conter em seus conteúdos os mais variados
assuntos do interesse feminino da época. Esses interesses apesar de se apresentarem variados,
tinham um tema principal que deveria ser considerado na vida da mulher: o casamento e a
maternidade.

Nessa época, a beleza integrava o campo de preocupações médicas e era


associada à posse de boa saúde, obtida e preservada por intermédio de
hábitos adequados de higiene, vida disciplinada, cuidados com a
alimentação, o corpo e a moradia, capazes de assegurar vigor físico,
aparência saudável e evitar enfermidades. Não admira que cosméticos e
remédios compartilhassem espaços muito próximos.[...] O casamento e a
maternidade eram tratados como os pontos culminantes da vida da mulher,
razão mesma da sua existência. (LUCA, 2012, p. 452)

Ao publicarem em suas páginas conselhos médicos, tais revistas faziam um apelo às


mães de submissão ao saber da ciência, representado por médicos e higienistas, para que se
encerra-se o uso de receitas caseiras de remédios, que muitas vezes eram repassadas pelas
avós ou parteiras. Porém tais conselhos ainda vinham de forma sutil acompanhadas de
concepções religiosas e morais.
302
Em geral a imprensa feminina, visa fidelizar um bom número de leitoras, e para isso
deve apresentar-se de uma forma diferenciada, e que permita a leitora sentir-se próxima da
realidade descrita nas páginas das revistas. Ao refletir ideias dominantes, e censo
considerados comuns, acaba por ―cristalizar‖ papeis femininos ideais como o da ―boa mãe‖.

O “Evangelho das Mães” e “Falando às Mães”

Uma característica sobre a imprensa feminina deve especialmente ser considerada: a


utilização de informações provindas das fontes mais variadas, ocasionando o grande número
de colaboradores e especialistas, em diversas áreas, na intenção de complementar o trabalho
do jornalista. Contribuiu para isso, a especialização da ciência, que aumentou a participação
de profissionais especialistas principalmente em assuntos relacionados à saúde.
Colocando em foco, a reprodução de conselhos médicos em revistas femininas, temos
como exemplos as colunas ―Evangelho das Mães‖ e ―Falando às Mães‖, a primeira foi
substituída pela segunda com o passar dos anos. Ambas eram publicadas nas edições do
―Jornal das Moças‖, que foi um periódico semanal produzido na cidade do Rio de Janeiro
entre 1914 e 1965, mas que teve circulação nacional. Saía toda quarta-feira e podia ser
comprado nas bancas ou por assinatura. Foi fundado por Agostinha de Menezes, e era
propriedade da Editora Jornal das Moças Ltda. Possuía por volta de 70 páginas e versava
sobre assuntos de interesse do público feminino de sua época.

FIGURA 01 – JORNAL DAS MOÇAS FIGURA 02 – EVANGELHO DAS MÃES.

(FONTE: Jornal das Moças, ed. 2333, 1955) (FONTE: Jornal das Moças, ed. 1864, 1951)
303
Cada nova coluna publicada, trazia preciosos conselhos de pediatras e outros
especialistas, que encontravam-se a disposição e ao alcance da ―boa mãe‖ que pretendia
manter-se informada e atualizada. Focando nos assuntos ligados aos cuidados da mãe com a
alimentação de seus filhos, os conselhos, encontrados nas colunas citadas, são muitos.
Nas primeiras edições do ano de 1950, ganha destaque na revista, como conselheira
das mães, a coluna ―Evangelho das Mães‖. Essa coluna apresentava em seu conteúdo os mais
variados conselhos sobre o cuidados com os filhos, desde a gestação, e sobre os mais variados
aspectos como alimentação correta, visitas ao médico e dentista, doenças, higiene, educação
entre outros. Porém é possível perceber que nessa coluna, os conselhos muitas vezes não era
assinado por um especialista.
No ano de 1951, na edição 1872, na página 82, é inaugurada a coluna ―Falando as
Mães‖. O Jornal da Moças, apresenta o seguinte texto, onde relata qual o objetivo da inclusão
da coluna na revista:

Ao inaugurarmos hoje esta seção, diremos, em rápidas palavras, que o seu


objetivo é o de ministrar, em linguagem simples ao alcance das mães, quase
sempre sem conhecimentos de puericultura, conselhos práticos que se
relacionem com o crescimento normal, a saúde do doente, envolvendo,
outrossim, regras gerais e, também, especiais, e, sobretudo, recomendar
certos cuidados que devem ser tomados, bem como salientar muitas
providências que, embora comumente adotadas pelas mães, aliás com as
melhores intenções, por prejudiciais ás crianças devem sempre ser evitadas,
ou, mais propriamente, nunca devem ser tomadas.

Essa coluna ficava por responsabilidade de Dr. Werther Leite Ribeiro, pediatra
conceituado da época, que colocava-se a disposição das mães, que desejassem sugerir
quaisquer assuntos sobre o cuidado com os filhos, para serem publicados, e que poderiam
fazê-lo através de cartas, ou ainda, era disponibilizado uma número para contato telefônico.

304
FIGURA 03 – FALANDO ÀS MÃES

(FONTE: Jornal das Moças, ed. 1910, 1952)

Após algumas edições é possível perceber a extinção da coluna ―Evangelho das


Mães‖, a mesma fora substituída pela coluna ―Falando às Mães‖.
A alimentação apropriada para garantir a manutenção da saúde dos filhos, era
colocada quase que totalmente sobre a responsabilidade da mãe, conforme vamos observando
o conteúdo das colunas. Uma criança que não tivesse uma alimentação correta corria certos
riscos, como exemplo: na edição de 26/04/1951, volume 1871, p. 59, em ―As mães não devem
esquecer que:‖, encontramos o seguinte conselho sobre a alimentação das crianças: ―as
crianças mal alimentadas pouco se desenvolvem, facilmente se fatigam, estão quase sempre
com sono, têm memória fraca, não podem fixar a atenção, ficam com os dentes cariados em
pouco tempo e são facilmente dominadas por qualquer doença‖.
A saúde dos filhos dependia também do cuidado da mãe com sua própria alimentação.
Esse cuidado deveria ser tomado em dois momentos em especial: a gestação e durante o
período em que estivesse amamentando. Seu cuidado não era destinado à sua própria saúde,
mas sim do filho. Encontramos na edição 1864, ano de 1951, p. 15, o seguinte conselho: ―a
futura mãe deve excluir de sua alimentação todas as bebidas alcoólicas.‖ Em outra edição,
1873, do mesmo ano, p. 13, na coluna ―Falando às Mães‖, o Dr. Wherter, dedica uma artigo à
mulher que amamenta, o mesmo possui o seguinte título ―Cuidados gerais da mulher que
amamenta: que deve comer a mulher que amamenta?‖. Nesse artigo, encontramos as
seguintes recomendações:
305
Outro cuidado importante para a mulher que amamenta é a sua alimentação:
este é então fundamental. Alimentos há que não devem ser ingeridos, porque
dão ao leite um odor ou sabor desagradável, tais como: alho, cebola, repolho,
couve-flor, aspargos, mariscos, constituindo, só por isso, um bom motivo
para que o bebê recuse o seio. Outros alimentos por sua indigestibilidade, ou
toxidez, provocam diarréias, cólicas e gases na criança, tais como frituras,
conservas, chocolate, crustáceos, e, por isso, devem ser evitadas.

No ano de 1952, edição 1957, em ―Falando as Mães‖, na forma de história em


quadrinhos, é apresentada a rotina de uma personagem que da forma colocada, deveria ser
adotada pelas mães:

FIGURA 04 – ZÉZINHO GOSTA DE MAMAR.

(FONTE: Jornal das Moças, ed. 1957, 1952).

Essa nova forma de apresentar conselhos é iniciada na coluna ―Falando ás Mães‖, p.


12, da edição citada acima, acompanhada do seguinte texto ―iniciamos, hoje, uma série de
interessantes conselhos, na forma de uma história em quadrinhos, que as leitoras poderão
colecionar.‖. Percebemos que as mães deveriam então ―colecionar‖ conselhos, afim de
exercer da melhor maneira o papel materno.

306
Mesmo no período de amamentação, segundo os conselhos encontrados nas colunas, à
mãe deveria iniciar na alimentação da criança, a introdução de outros alimentos. Em o
―Evangelho das Mães‖ edição 2060, do ano de 1954, p.15, é sugerido o seguinte:

Desde os primeiros dias, a criança deverá aprender a tomar água em


colherinha e sem açúcar à temperatura do ambiente em que está. [...]. Ao
segundo mês se deverá dar, com colherinha, suco de laranja diluído e pouco
a pouco mais concentrado, para introduzir o gosto ácido até então
desconhecido da criança. [...]. Ao terceiro mês suco de tomate puro
completará a experiência. Ao aproximar-se o quarto mês se deverá usar a
mamadeira. [...]. Em o quarto mês se deverá introduzir a consistência pastosa
mediante colherinhas de papinhas, progressivamente mais concentradas, e
depois o gôsto salgado, adicionando simplesmente sal à água comum ou
dando-lhe caldo coado. [...] ao sexto, um prato de sopa. Depois da sopa a
polpa de fruto e, ao sétimo, pão tostado ou biscoutos secos para os ensaios
da mastigação.

Mesmo introduzindo outros alimentos na alimentação da criança, a mãe continuaria


amamentando, e deveria ela, cuidar de alguns aspectos de sua rotina, para garantia da eficácia
nutricional do leite. Na coluna ―Falando às Mães‖, edição 2024, 1954, p. 15, Dr. Wherter
aconselha as mães, os seguintes cuidados:

Deve ser evitada, a todo custo, a fadiga física, sobretudo nas primeiras
semanas. As saídas diárias e o exercício moderado das mães são favoráveis
ao aleitamento, podendo submeter-se, desde o momento do parto, a um
plano metódico de exercícios, ensinados pelo médico. [...] Deve ter a mulher
grande cuidado com seu asseio pessoal, tomando banho diário com água
morna e sabão. [...] As festas noturnas que obrigam a tresnoitar são
prejudiciais à secreção láctea. A mulher que amamenta deve repousar, no
mínimo, 10 horas diárias. As emoções fortes e os aborrecimentos sempre
repercutem prejudicialmente sôbre a secreção láctea.

Depois de introduzir aos poucos outros alimentos à dieta da criança, a mãe deveria
iniciar o processo de desmame. Processo esse que não se apresentava na revista como sendo
fácil, porém seguindo algumas recomendações tornava-se mais simples. O desmame referia-
se à amamentação no seio, para introduzir a mamadeira. Utilizando-se mais uma vez de
história em quadrinhos, a coluna ―Falando às Mães‖, apresente referência ao tema, na edição
1959 de 1953, p. 10:

307
FIGURA 07 – DESMAMANDO O ZÉZINHO

(FONTE: Jornal das Moças, ed. 1958, 1953).

Conseguindo a mãe, depois de alguns meses após o nascimento da criança, desmamar


a mesma, iniciava-se o cuidado com a alimentação de forma correta, lembrando que mesmo
sendo amamentada, a criança já deveria ter assimilado à sua dieta alguns poucos alimentos de
sabor diferente ao do leite materno.
Após o desmame, a ―boa mãe‖, continuava a introdução dos mais variados alimentos à
dieta do filho. Na coluna ―Evangelho das Mães‖, edição 2062 de 1954, p. 20, encontramos o
seguinte conselho, quando da tentativa de oferecer novos alimentos à criança:

Frente ao alimento oferecido, a criança, qualquer que seja a sua idade, come
isso ou ao come nada; é essa uma conduta educativa, de modo que a
privação do alimento não deve ser acompanhada de reprimendas, nem, muito
menos de castigos.

Nesse pequeno trecho, já percebe-se que a mãe poderia encontrar alguns obstáculos,
na sua missão de administrar a alimentação do filho. A criança passaria a comer como um
adulto aos 2 anos de idade, porém a mãe deveria atentar-se a algumas condições, segundo
escreve Dr. Wherter em ―Falando às Mães‖, na edição 1891 de 1951, p. 16:

Aos 2 anos de idade, a criança passará a comer, como os adultos, os mesmos


alimentos, evitando naturalmente, os chamados ―condimentos‖, tais como
pimenta, mostarda, molhos aromáticos, etc, devendo a comida não ser mais
308
esfiapada, e sim cortada em pedaços. Outrossim, será a criança adestrada
nesta idade, no uso do garfo e da colher e sofrerá um aprendizado inicial de
regras de higiene – lavar as mãos antes de sentar à mesa, limpar o suor do
rosto, escovar os dentes após as grandes refeições – e de boa – educação –
sentar-se corretamente, com o tronco bem ereto, não encher a boca em
demasia, não tossir sôbre o prato dos outros, etc. etc.

Ao reparar na fala do Dr. Wherter sobre higiene, e levando em consideração a idade da


criança, notamos mais uma vez que esse fator fica por responsabilidade da mãe. Será a mãe
que irá ensiná-lo os primeiros cuidados higiênicos e dessa forma irá assegurar que o mesmo
não venha a adoecer. O cuidado com a higiene na alimentação, e em outros aspectos, mostra-
se intimamente ligado à prevenção de doenças. Na edição 1944 de 1952, novamente em
―Falando às Mães‖, p. 16, o Doutor, oferece às mães, 10 conselhos úteis sobre como evitar as
moléstias, alguns deles são:

[...] 2º) Respeitar todas as regras de higiene pessoal, banhos diários,


habitação limpa e ventilada, horas de sono normais, vida ao ar livre, banhos
de sol e o mais cuidadoso de todos os hábitos infantis – mãos limpas às
refeições. [...] 5º) Manter a máxima higiene possível na alimentação: água
filtrada, leite de vaca fervido e guardado em lugar fresco, ao abrigo da
contaminação exterior; objetos próprios para a alimentação bem limpos:
bicos de mamadeira, colheres, pratos, tudo muito limpo; alimentos crus
como legumes, frutas etc, devem ser guardados em saladeiras especiais pelo
espaço mínimo de 6 horas. [...] 9º) Não descuidar do mais leve distúrbio
alimentar ou afecção de qualquer natureza: vômitos, diarréias, resfriados e
ferimentos devem ser considerados na infância e tratados convenientemente.

A higiene mostra-se em todo o momento do texto do Doutor, como um fator essencial


à saúde da criança. E todos esses cuidados são tomados, ou deveriam ser tomados pela ―boa
mãe‖, que deseja ver o pleno desenvolvimento e a saúde de seu filho.
A inapetência, é um dos obstáculos mais difíceis para a ―boa mãe‖, que muito zela
pela correta alimentação de seu filho. Mas também era dever da ―boa mãe‖ saber contorná-lo.
Mais uma vez as colunas dirigidas as mães, no Jornal da Moças, expunham seus conselhos
para auxiliar as mães e principalmente aquelas inexperientes. Na edição 1837 de 1950, coluna
―Evangelho das Mães‖, p. 10, um conselho curioso para contornar esse problema é
apresentado;

Tanto quanto possível façamos com que as crianças não tomem


conhecimento de nossas contrariedades pessoais e dissabores. Não nos

309
esqueçamos de que eles não têm culpa disso e de que não o fazendo assim,
muito concorremos para seu mal. E, se assim deve ser em qualquer
momento, muito mais devemos esforçar-nos na hora destinada a suas
refeições; levemo-las à mesa sempre com um sorriso nos lábios e mesmo
com certo entusiasmo e encantamento, pois dest‘art muito concorremos para
que nas mesmas se realize o grande fenômeno natural da vida: o apetite.

Percebe-se por esse trecho que a atitude da mãe irá refletir no filho, e portanto a ―boa
mãe‖ deve estar atenta também aos seus costumes alimentares e sua postura diante da mesa.
Dr. Wherter, na coluna ―Falando às Mães‖, edição 1880 de 1951, p.18, oferece 5 conselhos
para combater à inapetência na criança, sendo os principais:

[...] 4º) não comer fora do horário traçado pelo médico: nos intervalos das
refeições, não dar absolutamente coisa alguma, inclusive pão, biscoito,
gulodices, e não ser suco de frutas. 5º) método de vida para a criança: hora
de comer com seus horários rigorosos, hora de brincar, hora de dormir, e
evacuar, de tomar banho, etc, sempre religiosamente seguido, só sendo
admitido um motivo para sua quebra: quando a criança estiver doente.

A persistência da mãe em manter a rotina e os horários das atividades da criança,


colaboravam para a alimentação de forma correta. Quem determina esses horários, segundo o
consultado na coluna, é o médico, a quem a mãe deveria recorrer e atender aos conselhos, se
quisesse manter seu filho saudável.
Depois de observar todos esses conselhos direcionados às mães no Jornal das Moças,
não fica tão difícil compreender a relação que se pode fazer entre o papel materno e os
aspectos envolvidos com a segurança alimentar. A mãe era quem cuidava da higiene da
criança, e principalmente aquela relacionada à alimentação, mantendo cuidados desde a
higiene pessoal da criança até mesmo com os utensílios utilizados pela mesma. Aconselhada
por um médico, ou guiada pelos conselhos de especialistas que publicavam seus
conhecimentos em revistas direcionadas ao público feminino, regrava os horários das
refeições, levando em conta quantidades e alimentos adequados de acordo com a idade de seu
filho, afim de garantir sua plena saúde e desenvolvimento. A mãe ao cuidar de seu filho
seguindo aquilo que lhe era solicitado, garantia ao mesmo, os três aspectos considerados para
a segurança alimentar de um indivíduo: qualidade, quantidade e regularidade. A ―boa mãe‖
torna-se então agente da segurança alimentar dos filhos.

310
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O papel de ―boa mãe‖ desempenhado pela mulher durante os ―Anos Dourados‖, foi o
núcleo dessa pesquisa. Segundo o conteúdo presente nas colunas ―Evangelho das Mães‖ e
―Falando às Mães‖, nem toda mulher poderia ser considerada uma ―boa mãe, para esse título
existiam pré requisitos bem definidos. Esses requisitos podiam ser encontrados no Jornal das
Moças, e toda mulher que almejasse ser intitulada uma ―boa mãe‖ deveria preocupar-se em
segui-los. Os pré-requisitos, referiam-se aos cuidados que toda ―boa mãe‖ deveria ter para
com os filhos, cuidados que deveriam ser tomados desde a gestação, e entre esses cuidados os
principais destinavam-se a manutenção e garantia da saúde da criança, além do seu perfeito
desenvolvimento. Intimamente ligada a esse objetivo estava o cuidado da mãe com a
alimentação, tanto a própria, quanto do filho.
Tendo consciência de que o conceito de segurança alimentar estava ainda em
construção no período analisado, foi necessário encontrar no conteúdo das colunas, os
aspectos essenciais para a garantia da segurança alimentar de um indíviduo, neste caso o filho,
e que deveriam ser garantidos por um agente, ou seja, nesse contexto, a mãe. Sendo os três
aspectos essenciais para a garantia da segurança alimentar: qualidade, quantidade e
regularidade, não foi tão complicado relacionar tal termo, com os cuidados exercidos pela
mãe, quanto a alimentação do filho.
A mãe sendo responsável por: armazenar de forma correta os alimentos, reconhecer
riscos de contaminação, saber prazos para o início da fase de apodrecimento do alimento, e
ainda, permitir ao filho a oportunidade de consumir o alimento de forma digna segundo as
normas tradicionais de higiene (utensílios e ambientes limpos), garantia um dos primeiros
aspectos para a Segurança Alimentar do filho: a qualidade. Encontramos nas colunas,
conselhos sobre a higienização da mamadeira e outros utensílios que viessem a ser utilizados,
sobre como analisar a qualidade do leite e outros alimentos, sendo ressaltado em muitos
momentos que todo alimento destinado à criança deveria estar fresco e em boas condições de
aramazenamento. Muitas doenças consideradas infantis, apresentadas nas colunas pelo Dr.
Wherter, podiam ser prevenidas apenas com cuidados de higiene, exemplo disso eram as
desinterias. Segundo Dr. Wherter, a criança deveria ingerir leite e água sempre fervidos, e no
caso de frutas e hortaliças essas deveriam ser sempre muito bem lavadas e higienizadas, assim
como outros alimentos sempre bem cozidos, pois isso evitava que a criança viesse a adoecer.

311
Os outros dois aspectos, quantidade e regularidade, são encontrados em muitos dos
textos das colunas. Sobre a quantidade, que deve suprir a necessidade básica de um indivíduo,
a coluna oferecia matérias sobre a alimentação da criança em cada idade, e estas eram
acompanhadas de tabelas, onde estavam relacionados todos os alimentos permitidos para a
idade da criança, a quantidade necessária de cada alimento, e os intervalos de cada refeição.
Quanto são apresentados os horários, percebe-se a presença do aspecto denominado
regularidade, uma criança que tivesse os horários de cada refeição demasiadamente
espaçados, provavelmente não teria um desenvolvimento pleno para sua idade. As
quantidades eram expressas em gramas ou militros, mostrando o cuidado que a mãe deveria
ter para se aproximar ao máximo possível do indicado nas tabelas. Os horários criavam uma
rotina, que não deveria ser alterada.
As colunas deixam claro que um filho doente, ou que facilmente adoece, é reflexo de
uma mãe relapsa e desleixada, que mostra-se o inverso da ―boa mãe‖ que tem um filho sadio,
e não permite com seus cuidados que o mesmo adoeça. Ao classificar dessa forma o papel
materno, a revista responsável pelas colunas, ignora qualquer diferença social que possa
haver, entre uma mãe de classe média e outra de classe social inferior. O título de ―boa mãe‖,
tão exaltado no período e nas páginas do Jornal das Moças, já tem destino certo, e os pré-
requisitos nem sempre são somente seus cuidados com o filho.
Dessa forma, mesmo sendo um conceito atual e em formação no período, pode-se de
certa forma relacionar o papel materno ao conceito de Segurança Alimentar, não somente em
relação aos filhos, mas também em relação à família. Através de seus cuidados com a
alimentação do filho, ela tornou-se o agente que possibilitou tal condição ao filho, sendo ela
―boa mãe‖, ou simplesmente mãe.

REFERÊNCIAS

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PAGU, Campinas, p. 112-147, 1993. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=49825. Acesso em: 17 jan 2014.

MALUF, Marina, MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: História da Vida
Privada no Brasil: República da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.

312
MATOS, Maria Izilda e BORELLI, Andréa. Espaço feminino no mercado produtivo. In.
Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.

SCOTT, Ana Silvia. O caleidoscópio dos arranjos familiares. In. Nova História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.

DEL PRIORE, Mary, PINSKY, Carla Bassanezi. História das Mulheres no Brasil. 2ª ed.
São Paulo: Contexto, 1997.

DEL PRIORE, Mary. História e Conversas de Mulher. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2013.

BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Imprensa Feminina. São Paulo: Ática, 1986.

BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de Papel: a representação da mulher pela


imprensa feminina brasileira. São Paulo: Loyola, 1981.

BELIK, W. Perspectivas para segurança alimentar e nutricional no Brasil. Revista Saúde e


Sociedade, v. 12, n. 1, p. 12-20, 2003. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v12n1/04.pdf. Acesso em: 08 abr 2015.

PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. São Paulo: Contexto, 2014.

313
CERVEJA NÃO É “COISA” DE HOMEM: O CARÁTER POLÍTICO DA
PARTICIPAÇÃO FEMININA NO ATUAL CENÁRIO CERVEJEIRO
BRASILEIRO

1
Victor de Vargas Giorgi

Resumo

A cerveja é a bebida alcóolica mais popular entre os brasileiros. Presente nos bons e
maus momentos, consumida em múltiplos espaços, a cerveja permanece diretamente
ligada às mais variadas práticas e representações sociais, sendo celebrada, cantada,
contada. No entanto, em um país onde o preconceito de gênero é escancarado, a cerveja
é significada por muitos como uma bebida destinada exclusivamente aos homens, como
diversas propagandas de grandes companhias fazem supor. Diante disso, recentemente
surgiu um movimento cervejeiro brasileiro com expressiva participação feminina que,
dentre outras discussões trazidas à baila, procura combater a ideia machista de que
cerveja ―é coisa de homem‖. Através da perspectiva de que além das distinções de
classe, os costumes à mesa também expressam diferenças e lutas por poder entre
homens e mulheres, analisamos neste trabalho as relações entre tal movimento e o
empoderamento das mulheres no cenário cervejeiro contemporâneo, investigando a
atuação de algumas personagens ligadas à produção e ao consumo de cervejas artesanais
e a ênfase dada por este movimento ao forte envolvimento das mulheres com a bebida
ao longo do processo histórico.
Palavras-chave: cerveja; empoderamento; gênero.

Assim como aponta Vera Lúcia Puga de Sousa (2002), a partir da década de
1980, em meio à ―invasão‖ das mulheres no mercado de trabalho e da atuação de
movimentos sociais pró-mudanças culturais (dentre eles o movimento feminista),
presenciou-se o surgimento da categoria de gênero. Além de evidenciar, por meio de
uma quebra de paradigma, que as noções de ―homem‖ e ―mulher‖ são constructos
culturais, destacando a pluralidade de identidades sexuais, psicológicas e políticas
verificadas na contemporaneidade, tal categoria, de acordo com a estudiosa, tornou-se
objeto de estudos fundamental para a compreensão das relações, comparações e
diferenças verificadas entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e
homens. Ademais, as mulheres, por muito excluídas da história, passaram a figurar
1
Licenciado em História pela Universidade Federal de Viçosa. Especialista em História, Cultura e
Sociedade pelo Centro Universitário Barão de Mauá de Ribeirão Preto. Mestrando em História pela
Universidade Federal de Uberlândia, Linha de Pesquisa História e Cultura. E-mail:
victorvgiorgi@gmail.com.
314
como importantes personagens das narrativas, inicialmente como vítimas do machismo
e do patriarcalismo, e depois como heroínas com amplas possibilidades de atuação,
capazes de oferecer resistências e transgredir o status quo. Em consonância com tais
ideias, Margareth Rago destaca a aproximação feita entre os estudos feministas e de
gênero e a Nova História Cultural, e enfatiza a proposta de tais abordagens:

(...) insiste-se em que consideremos as diferenças sexuais enquanto


construções culturais, desmontando e sexualizando conceitualizações que
fixam e enquadram os indivíduos, seus gestos, suas ações, suas condutas e
representações. Nega-se, portanto, que se parta de uma ―realidade objetiva‖,
onde os sujeitos localizados em classes sociais entrariam em cena, segundo
um procedimento metodológico homogeneizador e generalizante que visa
estabelecer continuidades no emaranhado dos fatos, e que entende que
interpretar significa recolher (e não atribuir) o sentido essencial ―oculto‖ na
coisa. Além disso, propõem-se pensar as relações de gênero enquanto
relações de poder, e nesse sentido, a dominação não se localiza num ponto
fixo, num ―outro‖ masculino, mas se constitui nos jogos relacionais de
linguagem (RAGO, s/d, p.10).

Após esta breve apresentação, podemos apreender que os estudos de gênero, que
estão em alta na atualidade, são fundamentais para romper estereótipos e preconceitos,
para desvelar dinâmicas sociais de poder e para endossar a luta por um mundo
igualitário. Diante de tais considerações, entraremos em nossa discussão propriamente
dita, enfatizando o caráter político da participação feminina na atual conjuntura
cervejeira nacional, investigando a atuação de algumas personagens ligadas à produção
e ao consumo de cervejas artesanais e a ênfase dada por este movimento ao forte
envolvimento das mulheres com a bebida ao longo do processo histórico.

É lugar comum a constatação de que o gênero feminino foi e permanece sendo


explorado nos comerciais de cerveja. Propagandas da primeira metade do século
passado já apresentavam mulheres apreciando a bebida, trajadas tipicamente como
europeias, como é o caso de algumas veiculações da Brahma, ou elegantemente segundo
a moda da época, como em produções da Antártica, estando elas sozinhas ou
acompanhadas de homens. Todavia, observamos que a partir do final do século XX, as
propagandas, então veiculadas de variadas formas e alcançando públicos mais amplos,
adquiriram uma conotação sexista brutal. As atrizes passaram a ser comumente
representadas como objetos erotizados, em muitos casos desprovidas de quaisquer
funções exceto a satisfação dos desejos masculinos, seja dos atores em cena, seja dos

315
consumidores. Em consonância com o hedonismo observado na contemporaneidade,
tais personagens são apresentadas com vestes sensuais, e não são raras as vezes que a
bebida propriamente dita fica em último plano, dado o caráter apelativo das campanhas
publicitárias. Por mais que algumas marcas estejam tentando mudar a forma como
apresentam a figura feminina em seus comerciais, colocando as mulheres em situações
menos ofensivas, a ligação das bebidas aos padrões de beleza impostos em nossa
sociedade permanece uma evidente estratégia mercadológica. Neste contexto, Letícia
Alves Lins (2004) nos oferece um quadro geral de tais propagandas:

(...) o cenário é tipicamente brasileiro, as histórias desenvolvem-se em sua


grande maioria em praias (algumas propagandas exploram as belas paisagens
do litoral brasileiro), bares na praia ou bares convencionais. O período do ano
lembra o verão, o que nos associa rapidamente a período de descanso,
viagem, fuga da rotina; ou a copa do mundo (futebol), traço marcante da
cultura brasileira e período em que aflora o pertencimento à nação. Este
cenário é ocupado por homens e mulheres (adultos na sua grande maioria)
que perfilam corpos perfeitos, envoltos em uma atmosfera paradisíaca. A
imagem de homem é associada à beleza, jovialidade, força, masculinidade,
sedução, conquista; este é um homem que se dá bem. Já as mulheres são,
além de belas, esculpidas; seu poder está nas formas que exibem. Essa
mulher é objeto de desejo e sedução, é o alvo de conquista. As relações entre
os personagens parecem fluidas, momentâneas; aparentemente não se trata ali
de nada mais profundo e nenhum valor mais sério a ser discutido. Os
personagens entram na relação para se divertir, gozar de bons momentos - o
que vale é propiciar o prazer individual - e, ao se relacionar,
consequentemente, o prazer é conjunto, mas esse é momentâneo, não parece
buscar construir nada de efetivo na relação. (...) No conjunto das propagandas
não há espaço para tristeza; as cenas evocadas nos remetem ao prazer, à
fantasia, ao sonho (LINS, 2004, pág.57).

FIGURA 1
316
Campanha publicitária ―Verão‖, recentemente lançada pela cerveja Itaipava. Apelativa e
claramente voltada ao público masculino heterossexual. Fonte: apublica.org

Tais comerciais e veiculações acabam por reforçar um preconceito já enraizado


no Brasil, de que cerveja ―é coisa de homem‖. Afinal, a própria expressão ―loira
gelada‖, utilizada para designar a cerveja, já denota a forma como a bebida em questão
é aqui significada. Ademais, diversas marcas possuem nomes que fazem alusão à
mulher de forma machista, como a Devassa, a Pr Øibida e A Outra. E é justamente neste
cenário que diversos sujeitos inseridos direta ou indiretamente no atual movimento
cervejeiro nacional têm atuado no sentido de romper tal construção. Acreditamos que
tais atuações estão imbuídas de um sentido político, à medida que estão inseridas em um
contexto mais amplo de luta pela igualdade de gênero.

Em um primeiro exemplo, como resposta à campanha publicitária da cerveja


Skol, que no carnaval do presente ano gerou uma grande polêmica ao lançar outdoors
que estampavam frases com dizeres como ―esqueci o ‗não‘ em casa‖ e ―topo antes de
saber a pergunta‖ (o que poderia estimular foliões a não respeitarem os limites dos

317
outros), as publicitárias Maria Guimarães, Thais Fabris 2 e Larissa Vaz criaram a Cerveja
Feminista. O manifesto divulgado por tais mulheres em um vídeo e aqui transcrito nos
dá mostras de suas principais intenções ao produzir a cerveja:

O machismo mata uma mulher a cada noventa minutos no Brasil, mas as


propagandas de cerveja ainda investem nisso. Nos ignoram enquanto
consumidoras. Quase não falam com a gente. Usam nosso corpo. Nos tratam
como objetos. Por isso, nós mesmas resolvemos colocar o assunto na mesa.
Criamos a Cerveja Feminista, uma cerveja que é um puxador de assunto.
Porque nós precisamos falar sobre feminismo. Falar sobre o que é importante
para a gente e para a sociedade. Sobre igualdade de gênero. Sobre conquistar
e garantir direitos iguais. Sobre como queremos ser tratadas pela publicidade.
Não queremos ser representadas como mulheres com pouca roupa servindo
um homem (...) (MANIFESTO CERVEJA FEMINISTA, 2015).

Torna-se evidente que o intuito das publicitárias envolvidas no projeto da


Cerveja Feminista é chamar a atenção da sociedade para a necessidade de se debater a
situação enfrentada pelas mulheres no país, utilizando, para tanto, a questão da
exploração de seus corpos nos comerciais de cerveja como um catalisador. Outra
questão por elas levantada é a da participação feminina no consumo de cervejas no
Brasil. Além da marcante presença em cervejarias e bares, além de restaurantes,
empórios e outros estabelecimentos, algumas pesquisas têm demonstrado que o
consumo de cerveja por mulheres está em franca ascensão. Um levantamento feito em
2011 pelo Painel Nacional de Domicílios da Kantar Worldpanel, que abrangeu 8.200
lares brasileiros, demonstrou que as jovens com até 35 anos bebem tanto quanto os
homens com mais de 35. A Sophia Mind Pesquisa e Inteligência de Mercado, por sua
vez, entrevistando mais de 2.800 mulheres em 2010, revelou que 47% das mulheres
consumem alguma bebida alcóolica, e dentre estas, 88% bebem cerveja. Na compra de
supermercado, 63% escolhem a marca de cerveja que irão comprar. Em relação às
opiniões sobre cerveja, 82% das entrevistadas discordam da afirmativa de que beber
cerveja não é feminino e 70% concordam que a propaganda de cerveja é machista.
Ademais, muitos especialistas em cerveja vêm afirmando que o crescente aumento do
2
Fabris também é idealizadora do projeto 65 / 10, que discute o papel da mulher na publicidade.
Enquanto o número 65 faz referência ao resultado de uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão que
aponta que 65% das mulheres não se identificam com a forma como são retratadas nas propagandas, o
número 10 representa o dado de que nas agências de publicidade somente 10% dos cargos na área de
criação são preenchidos por mulheres. Recentemente, um artigo intitulado Machismo é a regra da casa e
publicado pelo veículo Pública, destaca a denúncia feita por diversas publicitárias de que são vítimas de
abusos no trabalho, e que os anúncios que indignam as mulheres estão relacionados às relações de poder
internas das próprias agências, onde manifestações machistas são constantes.
318
consumo de cerveja por mulheres está ligado à sofisticação do mercado, com a
emergência de uma gama variada de cervejas artesanais, com sabores, aromas e cores
que chamam a atenção do público feminino.

Em relação ao consumo de cervejas artesanais, é interessante destacar o


crescente número de confrarias que vêm se formando no país, reunindo amigos ou
pessoas interessadas em degustar rótulos diversos, além de trocar experiências e
informações a respeito da bebida e sua história. Além disso, diversas confrarias também
acabam por produzir suas próprias cervejas. Dentre tais, a Confece, Confraria Feminina
de Cerveja, destaca-se por ser oficialmente a primeira do país a reunir somente
mulheres3. A descrição desta confraria demonstra que o seu surgimento, assim como no
caso da Cerveja Feminista, perpassa pela tentativa de se combater a ideia que atrela,
como algo exclusivo, o consumo de cerveja ao gênero masculino:

Nascida em Belo Horizonte no dia 08 de março de 2007, a primeira Confraria


Feminina de Cerveja do Brasil é fruto de uma degustação especial realizada
em homenagem às mulheres. A Confece veio provar que cerveja não é coisa
de homem. Muito pelo contrário. As integrantes da confraria buscam resgatar
o envolvimento feminino na história cervejeira, além de estimular o consumo
responsável, dirigindo os encontros para a qualidade da bebida. O grupo,
formado por 10 mulheres de diferentes idades e profissões, visa promover a
cultura cervejeira por meio da participação em eventos, da realização de
análises e harmonizações especiais, da divulgação de notícias, entre outras
ações. Para isso, realizam encontros mensais com temas previamente
definidos, o que possibilita um estudo aprofundado sobre a cultura, estilos,
ingredientes e processos de produção da cerveja (BLOG DA CONFECE s/d).

Mais que reunir mulheres com gostos afins para momentos de lazer e promover
degustações e brassagens (produções artesanais), a Confece, portanto, objetiva destacar
e revalorizar o envolvimento feminino com a cerveja ao longo do processo histórico,
realizando, assim, um trabalho de estudo e de rememoração que possui uma dimensão
política. Elas não estão desacompanhadas. Diversos cervejólogos brasileiros
enfatizaram em suas obras, escritas no atual contexto de efervescência da cerveja
artesanal no país, a importância da mulher na história da bebida.

Ronaldo Morado (2009), por exemplo, destaca que na Suméria e na Babilônia,


onde a cerveja provavelmente foi ―inventada‖, as mulheres cervejeiras (Sabtiem) tinham

3
Além da Confece, podemos apontar outras confrarias femininas de cerveja que são bastante populares
no atual movimento cervejeiro nacional, como a FemAle Carioca e a Maltemoiselles.
319
grande prestígio e eram consideradas pessoas com poderes próximos do sagrado. Dentre
os deuses do panteão sumério, é Ninkasi, a deusa da cerveja, que merece nossa maior
atenção. Arqueólogos traduziram um hino à ―dama que enche nossas bocas‖, presente
em um antigo tablete de saibro de quase quatro mil anos, que muitos concebem como a
primeira receita de cerveja da história. O fato de a divindade cervejeira suméria ser
representada por uma mulher é uma evidência do forte vínculo existente entre a bebida e
o gênero feminino. Ademais, Morado ressalta que por centenas de anos coube às
mulheres a tarefa de fazer cerveja na Europa, já que produzir cerveja era uma atividade
caseira, assim como fazer pão e cozinhar. Maurício Beltramelli (2012), por sua vez,
sublinha que ao longo dos anos, a cerveja passou por um processo de ―masculinização‖,
sendo apresentada como uma bebida destinada a ser ingerida aos litros pelos homens até
a embriaguez. Todavia, e em consonância com as ideias precedentes, o autor não só
afirma que foram as mulheres que descobriram a cerveja, como indica que quase a
totalidade das divindades relacionadas à bebida e das mestras-cervejeiras até a
industrialização foram do gênero feminino, e diante disso, ―o que realmente não se
entende é a associação que se faz, nos dias de hoje, da cerveja como sendo uma bebida
essencialmente masculina, especialmente no Brasil‖ (BELTRAMELLI, 2012, p.23).

No atual cenário cervejeiro nacional, observamos um ambiente ainda


predominantemente masculino. Todavia, diversas mulheres têm se destacado neste
movimento, como, por exemplo, Cilene Saorin, que além de consultora e beer
sommelier, é colunista e presidente da Associação Brasileira dos Mestres Cervejeiros.
Em entrevista concedida ao portal Madame Aubergine, Saorin ressalta que os motivos
que a levaram a ingressar nessa área foram trabalhar com o processo de fermentação,
para ela a ―alma da cerveja‖, o gosto pela tecnologia e pela bebida, capaz de exercer um
encantamento nas pessoas, e, por fim, o desafio de atuar numa área nova, com
pouquíssimas profissionais mulheres. Em matéria intitulada Cervejas no salto alto, a
profissional reafirma o importante papel que o gênero feminino desempenha para a
―cultura cervejeira‖, como consumidoras, produtoras e comunicadoras, tendo um
potencial transformador:

Já não é novidade por aqui que, nos últimos anos, os negócios ligados à
cervejas estejam vivendo um momento precioso, expandindo-se rapidamente
e ganhando holofotes em muitos e diferentes canais de comercialização e
comunicação. Nesse cenário favorável à cultura das cervejas, as mulheres
320
passam a ter um papel importante na construção desse novo comportamento
de consumo. (...) atualmente também é possível encontrar mais e mais
mulheres atuando profissionalmente na esfera das cervejas. Ainda seguem
sendo minoria, mas há muito tempo derrubaram qualquer sombra de
discriminação e aos poucos desmistificam o estereótipo de ―clube dos
homens‖. Trabalhando na produção ou comunicação das cervejas, são
mulheres movidas por paixão que abrem portas para outras tanta mulheres.
Do campo à mesa, seu poder de compra e de força de trabalho já é, sem
duvida, um dos melhores caminhos de crescimento no mercado cervejeiro
brasileiro. Elas certamente podem revolucionar a imagem da cerveja, apenas
imprimindo uma maneira diferente de ver e beber. Sempre com charme –
claro – nessa escancarada homenagem! (SAORIN, 2012, p.94).

Outro poderoso exemplo da participação feminina na produção cervejeira


nacional é o da Cervejaria Japas, fundada em 2014 por cinco garotas de ascendência
nipônica que já se destacavam no setor: Maíra Kimura, da Cervejaria 2cabeças;
Fernanda Ueno, da Cervejaria Colorado; Carolina Okubo, da Cervejaria Invicta;
Carolina Oda, sommelière e especialista gastronômica; e Yumi Shimada, publicitária,
designer de rótulos e sommelière. Criativas, elas produziram uma cerveja com um
ingrediente típico do Japão, o Wasabi, a qual ganhou grande repercussão entre os
―cultos em cerveja‖. Comentando a atuação das ―Japas Cervejeiras‖, o sommelière
Sérgio Soares Júnior utiliza do bom-humor para afirmar que:

Há muito a (desnecessária) soberania masculina no mundo cervejeiro foi


extinta. Ainda bem! A cultura cervejeira agradece! Existem mulheres tão
fodas ou mais que muito marmanjo cervejeiro, inclusive os mais ―bam-bam-
bans‖ do cenário nacional. Pois bem. Algumas dessas ―garotas cervejeiras
fodas‖ se uniram e montaram um time cervejeiro imbatível! 5 garotas, todas
envolvidas com o universo das cervejas artesanais, se conheceram entre os
diversos eventos cervejeiros que têm acontecido pelo país. Conforme foram
se entrosando, as brincadeiras foram inevitáveis, e passaram a se denominar
como o grupo das ―Japas Cervejeiras‖ (SOARES JÚNIOR, 2014).

Por fim, outro preconceito extremamente comum é o que atrela as bebidas mais
doces e fracas às mulheres, enquanto que as mais fortes e amargas são masculinizadas.
Um dos membros da confraria feminina Maltemoiselles, Tatiana Damberg, comenta
essa questão, ressaltando que as reuniões são feitas para tomar cerveja e produzi-la, e
que elas não acreditam em distinção de gênero quando o assunto é cerveja, mas em bons
exemplares: ―não produzimos para o paladar feminino, como muitos homens
acreditam‖.

321
Concluindo, procuramos, no presente trabalho, apresentar o caráter político da
participação feminina no atual movimento cervejeiro nacional, um interessante
microcosmo de uma luta mais geral que preconiza a equidade de gênero. As mulheres
inseridas em tal contexto, consumidoras, produtoras, especialistas, entre outras, apesar
de participarem de um universo ainda predominantemente masculino, atuam no sentido
de romper com as representações machistas que giram em torno da cerveja,
demonstrando seu empoderamento na contemporaneidade. A atuação destas
personagens, em última análise, também se dá pelo resgate da participação feminina na
produção de cerveja ao longo da história, ou seja, pela retomada de um lugar que
pertenceu às mulheres por milênios.

Referências
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desmistificar a bebida mais popular do mundo, São Paulo: Leya, 2012.

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FIGURA 1. Disponível em:< http://apublica.org/2015/03/machismo-e-a-regra-da-casa>.

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SOARES JÚNIOR, Sérgio Theophilo. Japas Cervejaria: soberania feminina e mestiça!


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Consumo feminino de cerveja. Disponível em:< www.sophiamind.com/wp-
content/uploads/SophiaMind_cerveja.pdf>. Acesso em 30/07/2015.

323
MEMÓRIAS FEMININAS DA LUTA CONTRA A DITADURA EM “QUE BOM TE
VER VIVA”, DE LÚCIA MURAT

Vinícius Alexandre Rocha Piassi1

Resumo: O filme Que Bom Te Ver Viva, lançado em 1989, foi o primeiro longa-metragem
produzido por Lúcia Murat. Dedicado a discutir a condição de mulheres sobreviventes das
sevícias da ditadura militar brasileira, o docudrama explora as memórias de suas experiências
por meio de depoimentos intercalados a um monólogo interpretado por uma atriz profissional.
Como essas memórias se manifestam e as possibilidades de elaboração do trauma que
representam são algumas das questões que se pretende analisar neste trabalho, bem como a
carga moral vinculada às experiências narradas e a imbricação entre as memórias pessoais e
as memórias compartilhadas reconstruídas. Desse modo, espera-se entrever o engajamento
subjetivo da cineasta na tematização de uma questão sensível como a tortura e ponderar sobre
a exclusividade de personagens femininas no filme, considerando as práticas sócio-cultuais
presentes na operação que constitui a memória.
Palavras-chave: cinema, memória, subjetividade.

Breve relato de uma experiência

O dia 31 de março de 1971 marcaria o início de um longo e penoso período na vida de


Lúcia Maria Murat Vasconcelos, quando foi presa por envolvimento em atividades de luta
armada contra o regime ditatorial brasileiro. Era sua segunda prisão, visto que havia passado
por essa experiência quando foi detida, juntamente com centenas de jovens, no XXX
Congresso da União Nacional dos Estudantes, em outubro de 1968, em Ibiúna, São Paulo.
―Fiquei cerca de uma semana na prisão e não fui torturada.‖, ela conta. 2

Lúcia Murat era, em 1968, vice-presidente do diretório estudantil da faculdade de


economia da UFRJ. ―Eu era ligada a um pequeno grupo estudantil chamado Dissidência
Estudantil da Guanabara. (DI-GB, uma dissidência do PCB), que mais tarde se auto-
denominou MR-8 [Movimento Revolucionário 8 de Outubro]‖ 3, ela diz. Após a primeira

1
Aluno do curso de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail:
viniciuspiassi@yahoo.com.br
2
Depoimento na íntegra de Lúcia Murat para Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. PCB – Partido
Comunista Brasileiro, 3 jun. 2013. Disponível em:
<http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=arti cle&id=6090:depoimento-na-integra-de-
lucia-murat-para-comissao-da-verdade-do-rio-de-janeiro&catid=64:ditadura>. Acesso em: 25 nov. 2014.
3
Revista Época. Entrevista com a cineasta Lúcia Murat. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR69481-5856,00.html>. Acesso em: 9 mai. 2015.
324
prisão, Lúcia entrou para a clandestinidade, quando, dois anos e meio depois foi encontrada
em um apartamento no Rio de Janeiro e levada para o Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna do Rio de Janeiro (DOI-CODI/RJ).
Nas suas palavras: ―A brutalidade do que se passa a partir daí confunde um pouco a minha
memória. Lembro como se fossem flashs, sem continuidade.‖ 4

Do DOI-CODI, foi levada em um avião da Força Aérea Brasileira para Salvador,


onde esteve em 1970 em companhia de um militante encarregado de organizar um setor da
DI-GB no estado da Bahia. Do quartel de Barbalho, onde recebeu tratamento médico para
uma flebite decorrente das sessões de tortura, foi transferida para a base aérea até ser levada
de volta ao DOI-CODI do Rio, onde passaria novamente por sessões de interrogatório, sendo
novamente torturada. ―A tortura era uma prática da ditadura e nós sabíamos disso pelo relato
dos que tinham sido presos antes. Mas nenhuma descrição seria comparável ao que eu vim a
enfrentar. Não porque tenha sido mais torturada do que os outros. Mas porque o horror é
indescritível.‖ 5, segundo conta. Sua família foi então avisada de sua detenção e conseguiu
que ela fosse apresentada a uma auditoria da marinha, após a qual sua prisão seria
oficializada. De volta ao DOI-CODI, Lúcia seria mandada para a Vila Militar.

Segundo sua avaliação, entre a data da prisão e o encaminhamento para a Vila Militar
se passaram quase três meses. Contudo, ao final de agosto do mesmo ano, voltaria ao DOI-
CODI para novos interrogatórios. Posteriormente, foi encaminhada ao Presídio Talavera
Bruce, em Bangu, onde ficou detida na Torre das Donzelas, como era chamado o pavilhão em
6
que ficavam as prisioneiras políticas. Lúcia Murat foi solta depois de três anos e meio de
prisão, em 1974. ―Continuei respondendo a processos em liberdade e [fui] perseguida por
grupos paramilitares durante algum tempo, mas não quis deixar o país. Fui anistiada em
1979‖ 7, ela conta.

Entre 1978 e 1979, Lúcia Murat iniciou sua produção cinematográfica na direção do
documentário de curta-metragem O Pequeno Exército Louco, filmado na Nicarágua durante a
Revolução Sandinista. Posteriormente, dirigiu o episódio Daisy das almas deste mundo, que

4
Depoimento na íntegra de Lúcia Murat para Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Op. cit.
5
Ibid.
6
Torre das Donzelas. Lúcia Murat. Disponível em: <http://www.torredasdonzelas.com.br/?page_id=530>.
Acesso em: 11 mai. 2015.
7
Depoimento na íntegra de Lúcia Murat para Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Op. cit.
325
integra o filme Oswaldianas, de 1992. Lúcia não teve, contudo, uma formação formal em
cinema. ―Eu sou geração dos 60 e minha formação se faz com a nouvelle vague, o cinema
novo e o neo-realismo italiano. Devo a eles minha escola de cinema. Estes os filmes que me
formaram.‖8, ela explica. Sua inserção no meio cinematográfico se daria, desse modo, através
da atividade jornalística desempenhada após sua segunda prisão e pelo contato com amigos
que trabalhavam na área.

De acordo com a cineasta, o interesse que a levou a produzir seu primeiro filme na
Nicarágua se relacionava a uma necessidade de compreender os acontecimentos que cercavam
sua geração na América Latina; processo a partir do qual ela descobriu na produção
cinematográfica um meio de discutir questões que lhe são caras. Assim, em 1988, Lúcia
Murat realiza seu primeiro longa-metragem, Que Bom Te Ver Viva. Lançado no ano seguinte
pela sua produtora, a Taiga Filmes e Vídeo, criada no início dos anos 80, este filme teria
surgido da ideia de lidar com o tema dominante da terapia psicanalítica que fazia desde o
início da década. Este é, portanto, um filme sobre a tortura, ou, mais especificamente, uma
tentativa de elucidar a questão da sobrevivência a essa experiência, na medida em que seus
personagens são, como ela, mulheres sobreviventes dessa prática, que se opuseram ao regime
ditatorial.

As representações subjetivas das experiências de sequestro, prisão e tortura


construídas pelos testemunhos dessas mulheres oferecem, assim, indícios de uma forma
específica de vivência de gênero e de seus significados. Os discursos enunciados no filme
possibilitam, desse modo, identificar questões de gênero envolvidas na violência política
praticada pelo aparelho repressivo do regime ditatorial brasileiro e formas de resistência
política especificamente femininas a essas condições.

“Um filme sobre tortura, sem cenas de tortura”

Em Que Bom Te Ver Viva, um monólogo interpretado pela personagem de Irene


Ravache, intercalado a depoimentos orais gravados em vídeo de mulheres que integraram
movimentos de resistência ao regime ditatorial, discute as chances de integração entre o
passado e o presente das histórias de vida marcadas pela experiência da tortura. Imagens de
arquivo como recortes de jornais e fotos em preto e branco que esboçam as situações narradas

8
Revista Época. Op. cit.
326
pelas depoentes e os personagens históricos a que se referem compõe a narrativa visual do
filme, e uma distinção nos suportes em que foram gravados os depoimentos dessas mulheres e
a encenação da atriz demarca uma diferença entre o ficcional e o real.

A tortura sexual é assunto recorrente nos diversos depoimentos e constitui a tônica do


monólogo, no qual se discute questões afins como a dificuldade dessas mulheres se
relacionarem sexualmente, tendo em vista a condição de mártir em que são colocadas
enquanto vítimas dessa prática. Dos depoimentos das mulheres entrevistadas, despontam
temas como o questionamento da própria sanidade e capacidade de controle durante a tortura,
a indescritibilidade de tais experiências e a luta pela sobrevivência durante as sessões. São
apontadas pelas depoentes, entre interrupções da fala pelo silêncio ou pelo choro, além da
tortura física, a tortura psicológica e a tortura com animais como práticas sistemáticas dos
agentes da repressão política e a degradação por elas provocada.

O que é dito nesses depoimentos esclarece o sentido traumático da experiência da


tortura. O trauma pode ser descrito, como o faz Caruth a partir da teoria freudiana, como ―a
resposta a um evento ou eventos violentos e inesperados ou arrebatadores, que não são
inteiramente compreendidos quando acontecem, mas retornam mais tarde em flash-backs,
pesadelos, e outros fenômenos repetitivos‖ (CARUTH, 2000, p. 111). As narrativas
testemunhais de eventos traumáticos, como as proferidas pelos depoimentos das personagens
do filme, contribuem, assim, para a liberação do reprimido e a expressão do inexprimível
associados a essas experiências. Como bem observa Calegari, em análise do filme,

―A tortura procurava não apenas produzir no corpo da vítima uma dor que a fizesse
entrar em conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que, ao favorecer o
desempenho do sistema repressivo, significasse sua sentença condenatória, ela
visava a imprimir às pessoas a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais.
Com isso, esses indivíduos ficavam marcados por sequelas físicas e psicológicas, e
perdiam, muitas vezes, por determinado tempo, os sentidos e as noções espaciais e
temporais. Em virtude de tais acontecimentos, depois e mesmo durante tal período,
surgem pessoas traumatizadas dispostas a relatar suas experiências, algo que passou
a ser chamado de « testemunho ».‖ (CALEGARI, 2013, s.p.)

Tendo em vista as implicações emocionais e físicas da tortura descritas pelas


depoentes, destaca-se dessa experiência sua dimensão traumática de desestruturação
psicológica, enquanto o testemunho constitui, por outro lado, uma possibilidade de
reestruturação, pelo indivíduo, de sua subjetividade e identidade, na medida em que oferece
condições para a elaboração do ocorrido. Elaborar, nesse sentido, trata-se de um ―processo de
327
assimilação psíquica de impressões e experiências‖ (ALBERTI, 2004, p. 49), como o define
Alberti, ou seja, uma forma de lidar com acontecimentos ou experiências passadas para
superá-las, semelhantemente ao que se dá em uma terapia.

O monólogo da personagem de Irene Ravache, por sua vez, intercalado às entrevistas,


discute temas como a apatia do sistema judicial brasileiro por não julgar os casos de violação
dos direitos humanos à época, e o alheamento ou apoio da sociedade civil em relação às
práticas inescrupulosas do regime militar. A interpretação do texto de Lúcia por Irene, com a
voz da atriz em off em alguns momentos, é utilizada como elemento de coesão do filme. Teria
sido a solução encontrada para a montagem dos depoimentos, assim como as imagens de
arquivo que compõe o longa, e a música Mulheres, de Fernando Moura, feita para o filme.
Esta estrutura seria coerente com o conceito que orientava a produção, segundo a diretora.

Para a realização do filme, ela declara ter assumido a impossibilidade de alcançar o


sentido da tortura, motivo pelo qual tentaria se acercar do tema indiretamente. Ela pretendia
―fazer um filme sobre tortura, sem cenas de tortura‖, de modo que ―a tortura é representada
por palavras e sentimentos‖, segundo afirma em comentários reunidos nos extras da edição do
filme em DVD. Veicular esses sentimentos, é, portanto, a função atribuída aos discursos
mobilizados. Uma boa saída para a problemática apresentada por Seligmann-Silva a respeito
da representação da experiência do trauma: ―Como dar testemunho do irrepresentável? Como
dar forma ao que transborda nossa capacidade de pensar?‖ (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.
83).

As imagens de arquivo servem à composição dessa representação, uma vez que a


imaginação, assim como a memória, constitui, como descreve Zylberman, uma faculdade de
tornar presente uma coisa ausente. No entanto, o autor considera que sua relação com o meio
audiovisual faz necessário o uso de estratégias para apresentar evidências. Desse modo, o uso
de imagens indiciais em produções cinematográficas é compreendido como uma articulação
possível entre a imaterialidade das recordações e a materialidade dos registros audiovisuais,
que produz efeito de verossimilhança (ZYLBERMAN, 2015, p. 100-127).

A combinação dos gêneros ficção e documentário também encontra significado na


construção de uma narrativa sobre o trauma. Sobre a proposta de articular ficção e

328
documentário, em comentários reunidos nos extras da edição do filme em DVD, Lúcia é clara
ao dizer:

Eu queria, de alguma maneira, tentar me acercar da questão da tortura. [...] Então a


ideia da ficção foi uma ideia de tentar fazer de uma maneira que eu achava que o
documentário não era suficiente. [...] Porque eu só tinha os dois extremos: eu só
tinha a pessoa que dizia, ou chorando pouco, mas sob controle, perfeitamente lúcida,
o que tinha acontecido, ou aquele que tinha enlouquecido inteiramente. Eu não tinha
esse meio termo, esse limite. E na ficção eu conseguia trabalhar esse limite.

É explorada, desse modo, a ideia do não lugar entre a sanidade e a loucura como
condição do sobrevivente da tortura. A esse respeito, o espectador é interpelado pela
personagem de Irene Ravache quando ela se dirige à câmera em momentos de sua
interpretação, indagando-o ou provocando-o, como ao dizer: ―Eu detesto fazer as denúncias,
mas não saberia viver sem fazê-las. Mas isso você não entende, não é?‖ (Figura 1).

Figura 1

Conforme bem observa René Gardies, esse recurso ao fora-de-campo rompe com a
homogeneidade diegética, pois ―o olhar na direcção do espectador instala uma relação forte
entre a pessoa no ecrã e o espectador, com os afectos e as ilusões que o acompanham‖
(GARDIES, 2008, p.33). Na cena mencionada, tal mirada sugere a dificuldade de
compreensão da personagem, e, além disso, a sua necessidade de falar sobre suas
experiências. Desse modo, a análise de Azevedo precisa claramente o papel que a encenação
do monólogo cumpre na narrativa:
O recurso ficcional à personagem Irene, a quem falta um interlocutor ―real‖, permite
a liberdade de falar o que para as entrevistadas esbarra em suas relações sociais: o
que os filhos, maridos, amigos, parentes e até os próprios amigos sobreviventes são
capazes de ouvir, de acordo com padrões de moralidade associadas ao parentesco e
329
ao sexo/gênero e com a delimitação cultural e política do que constituía socialmente
a violência. (AZEVEDO, 2013, p. 15).

A fronteira entre o ficcional e o real no filme, portanto, é mais tênue do que sugere a
distinção entre os suportes técnicos de gravação das entrevistas e da interpretação de Irene
Ravache, pois o monólogo interpretado pela atriz se aproxima dos relatos das mulheres
entrevistadas na medida em que faz referências às experiências de cela da própria cineasta.
Segundo a análise de Azevedo, ―a personagem é capaz de sobrepor os conflito e sentimentos
mais íntimos apresentados de forma individualizada nos testemunhos, associando-os em
performances que simbolizam um sujeito coletivo‖ (AZEVEDO, 2013, p. 15).

Se se pensar em termos psicanalíticos, pode-se entender o monólogo encenado como


um discurso que dá vasão a elucubrações inconscientes a respeito do passado narrado, e essa
personagem como o alter ego de Lúcia Murat e representação das demais mulheres, na
medida em que se compreende a experiência e a memória compartilhadas como uma
dimensão ―que transcende e, simultaneamente, porta a simples existência individual‖
(GAGNEBIN, 2004, p. 85).

Ademais, se trata de uma personagem anônima cujo discurso articula as experiências


coletivas narradas aos conflitos íntimos da cineasta, em um monólogo encenado no espaço
interno de uma casa, imagem do recôndito da intimidade pessoal, que alterna entre discursos
diretos e o uso de ironia, bem como entre momentos de sobriedade e outros em tom ébrio,
caracterizando um processo de delírio reflexivo. Este trabalho ao qual se dedica a personagem
pode ser compreendido como um processo de rememoração, o qual, descrito por Gagnebin em
termos benjaminianos, ―implica uma certa ascese da atividade historiadora, que, em vez de
repetir aquilo que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado,
para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à
lembrança nem às palavras.‖ (GAGNEBIN, 2004, p. 89).

Acerca da exclusividade de personagens femininas no filme, Lúcia afirma se tratar de


uma opção dramatúrgica, e não feminista, justificada pelo intuito de promover o
desdobramento circular das experiências íntimas relatadas, o que, segundo ela, a introdução
de outro gênero romperia. No entanto, sua produção dá margem a interpretações sob a
perspectiva de gênero, na medida em que oferece visibilidade à participação feminina na

330
resistência à ditadura; motivo pelo qual, inclusive, foi exibido na Edição 2014 do Festival
Internacional de Cinema Feminino, o FEMINA.

Nesse sentido, pode-se inferir, por exemplo, que o filme estabelece um contraponto à
―masculinidade revolucionária‖ que balizava a autoimagem dos militantes e as normas de
gênero dominantes entre as organizações de esquerda, ao apresentar exclusivamente
expoentes femininas da resistência armada à ditadura militar (Figura 2). A própria linguagem
cinematográfica opera nesse sentido, como analisa Danielle Tega: ―A forma fílmica escolhida
pela cineasta, que filma em close todos os depoimentos, coloca literalmente em primeiro
plano algo que, até então, não aparecia com a atenção merecida: a participação política das
mulheres na luta contra a ditadura militar‖ (TEGA, 2012, p. 130).

Figura 2: “Guerrilheira sem boina é o cartaz do Che Guevara sem o „Endurecer sem jamais perder a ternura‟
debaixo do peito”

Como observa James Green, ―o ethos da masculinidade revolucionária prevaleceu


como a personificação da própria revolução‖ (GREEN, 2012, p. 86), ideal inspirado,
inclusive, na imagem de Che Guevara. ―‗El Hombre Nuevo‘ (O Novo Homem) promovido
por Che e imitado por seus seguidores era viril, barbudo, agressivo‖, aponta Green, o que
estimulava uma tendência à masculinização das jovens revolucionárias, como forma de
adquirir legitimidade política dentro das organizações de esquerda.

Uma investigação das estratégias repressivas do regime ditatorial brasileiro, com


destaque para as questões de gênero envolvidas na violência política, como realizada por
Mariana Joffily em estudo sobre as ditaduras militares do Cone Sul, demonstra a existência de
um igualitarismo na função repressiva, mas considera ter havido também uma violência de

331
gênero na ditadura militar. Ao conservadorismo dos governos autoritários se deve a repressão
política de forma indiscriminada a homens e mulheres. Como afirma a autora:

―Os setores conservadores reservavam ao chamado ―sexo frágil‖ o espaço limitado e


confinado da esfera privada. No momento em que várias mulheres recusaram esse
papel e ingressaram nos partidos e nas organizações de esquerda – incluindo as de
luta armada –, a repressão política abateu-se sobre elas sem poupá-las. É nesse
sentido que se pode afirmar que a repressão política das ditaduras militares foi
igualitária‖ (JOFFILY, 2009, p. 2).

Modos de violência política específica de gênero são, por outro lado, ilustradas pelos
depoimentos das personagens do filme. Pupi conta, por exemplo, que sofreu tortura
psicológica na forma de uma paixão fingida de um torturador que se aproveitava da fraqueza
emocional decorrente da situação carcerária para confundir seus sentimentos e obter
informações. Regina, por sua vez, estava grávida quando foi presa e perdeu o filho nas
sessões de tortura. Ela passou também por uma situação degradante quando, ao ser presa, foi
revistada à procura de uma arma que sabiam não existir, somente para provocar a humilhação.

Em um esforço de sintetizar o drama de lidar com tais experiências e encarar os


desafios imputados pelo presente a essas mulheres, de modo a representar todas que
compartilham desse passado comum, o monólogo interpretado por Irene Ravache aponta para
o limite de superação alcançável em relação a esse passado:

Conviver com a dor, transformá-la em parte do dia-a-dia, algo administrável pra


quem tem que se preocupar com os três filhos, com os deveres da escola, comida,
empregada que faltou, a roupa que ficou sem lavar, o aparelho dos dentes do mais
velho, a fonoaudióloga do mais novo. Bom, e é claro, a militância no partido, o
grupo Tortura Nunca Mais, e quem sabe, até na festa pra rever o pessoal de 68. (O
grifo é meu).

Seguindo uma linha dramática progressiva, as últimas sequências do filme são


construídas pela montagem paralela de fragmentos dos depoimentos, compondo uma síntese
das ideias expressas sobre o passado e das experiências comuns a essas mulheres. Em um
plano-sequência ao final, a personagem de Irene Ravache se coloca atrás das grades de uma
janela, em clara alusão à situação de prisioneira, sugerindo a ideia de que ainda não se
libertou do jugo das experiências traumáticas sofridas (Figura 3). Uma dedicatória no último
plano dirige o filme ―Aos que foram torturados e romperam a barreira da sanidade‖.

332
Figura 3

Logo, o tom de denúncia do filme é marcante. Sua importância se assenta, desse


modo, na discussão que promove sobre a violência da ditadura, considerando que ainda não
havia à época espaços públicos de debate sobre o tema. Para a diretora, ainda hoje o caráter de
testemunho daqueles fatos justifica a relevância social do filme, como ela afirmou na sessão
de abertura da 9ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul, ocorrida em
2014, em que este foi exibido:

[...] a história está muito mal contada no Brasil. Quer dizer, o que foi a ditadura, o
que foi a tortura [...] E eu acho fundamental que a gente recupere a nossa história.
Então eu acho que tanto os depoimentos que foram dados para a Comissão da
Verdade, como os trabalhos da Comissão da Verdade, como esse filme estar
passando hoje, ele volta a mostrar o horror que foi aquele momento. 9

Ademais, percebe-se como Que Bom Te Ver Viva contribui para a reconstrução da
memória da ditadura militar no Brasil sob uma perspectiva de gênero, na medida em que
oportuniza a expressão de vivências específicas de mulheres em condições de violência e de
enfrentamento ao regime. Tendo em vista as relações de poder sócio-culturais entrevistas nos
discursos articulados a partir do resgate dessas memórias, compreende-se ainda que, como
disse Michelle Perrot, enquanto ―forma de relação com o tempo e com o espaço, a memória,
como a existência da qual ela é o prolongamento, é profundamente sexuada‖ (PERROT,
1989, p. 18).

9
Mostra Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul. 9a Mostra Cinema e Direitos Humanos no
Hemisfério Sul homenageia Lúcia Murat. 14 nov. 2014. Disponível em:
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334
RETRATOS DE UMA URBANIZAÇÃO: AS REPRESENTAÇÕES
IMAGÉTICAS FEMININAS, NO ÁLBUM ILUSTRADO DA COMARCA DE
RIO PRETO (1927-1929)

Vinícius Vieira Silva1

Resumo: Lima (1993) identificou que a produção de álbuns ilustrados, no Brasil,


tornou-se recorrente na segunda metade do século XIX, com objetivos de projetar, física
e simbolicamente, espaços urbanos, assim como para promover uma familiaridade com
a então dita nova ordem social, que, pela perspectiva de seus idealizadores, conduziria
ao progresso. Para tanto, eram utilizadas, em tais impressos, iconografias de certo
contexto sociogeográfico citadino, das quais as fotografias sobressaíam maciçamente,
sendo esta, conforme a mesma autora, a característica fulcral de tal gênero editorial.
Segundo Campos (2014), a elaboração e a circulação dessas obras tipográficas
intensificaram-se, no noroeste paulista, quando da chegada dos trilhos ferroviários, que
eram postos, à época, como símbolos diletos da modernização. Dentre essas, Valle
(1994) destaca o Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929), por conta dos
seus aspectos materiais, e, principalmente, por o seu conteúdo se constituir como uma
síntese da visão que as elites letradas locais tinham da civilização a ser alcançada por
toda a Zona Araraquarense. Das temáticas elencadas e ilustradas para tal fim, as
relacionadas às feminilidades estão presentes, principalmente, na seção intitulada de
―Rio Preto Feminino: galeria distincta consagrada à mulher rio-pretense‖, cujo teor se
circunscreve no âmbito da beleza. Assim, com base em Chartier (1990), Lipovetsky
(2000), Vigarello (2006), dentre outros, discutir-se-á, na presente produção textual, de
que forma essas fotografias representaram um perfil social de mulher, bem como quais
eram as vinculações existentes entre a beleza feminina e a da urbanização pretendida, já
que a mencionada subdivisão encontra-se no interstício da galeria destinada às
personalidades masculinas e da ocupada pelas crianças.

Palavras-chave: Álbuns Ilustrados. Cultura Visual. Gênero.

Apontamentos sobre a imprensa nos anos de 1920


No processo de (re)modelação do espaço urbano, a imprensa desempenhou um
papel distintivo, na medida em que era, a um só tempo, testemunha do veiculado, por
conta da proximidade temporal com a ocorrência da notícia, e produtora de uma
realidade, já que era um seleto grupo que a usava como canal de comunicação. Isso é
explicado, em partes, como Silveira (2008) apresentou: por aspectos materiais, já que
havia uma precariedade das máquinas de produção e reprodução existentes, decorrentes,

1
Graduado em Pedagogia (2015), pela Universidade Federal de Uberlândia, é, atualmente, aluno regular
do Mestrado Acadêmico em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação dessa instituição.
Endereço eletrônico: viniciusvieira@outlook.com. Agência Financiadora: Coordenação de
Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior.
335
por sua vez, dos altos custos para a aquisição de novos equipamentos; e por aspectos
profissionais, pois o campo da escrita não se apontava como suficiente em termos de
renda. Dessa forma, não é de se estranhar que notas, colunas, reportagens e matérias
fossem assinadas por sujeitos que tinham o campo das letras como um campo
secundário – mas, nem por isso, sem relevância – em sua atuação profissional, como
professores, padres, médicos e engenheiros, que compunham, assim, uma elite letrada.
Aliás, grande parte daqueles especialistas que ficaram responsáveis por planejar
as reformas urbanas integrava esse rol da elite letrada que atuava no campo da
imprensa, o que permite defender, referenciando Oliveira (2008), que aquela escrita
estava, de alguma maneira, atrelada ao projeto de progresso em curso. Portanto, se, para
Lorenzo (1997), as transformações ocorridas na década de 1920 são fulcrais para o
entendimento da modernização brasileira, a imprensa ascende como fonte preciosa para
a historiografia deste momento, por permitir perscrutar o campo de um grupo social cuja
emergência é fruto e produtora do mesmo. Ademais, para além do campo das
intencionalidades, faz-se mister atentar-se às condições técnicas que, tenuemente,
limitavam e possibilitam o discurso jornalístico, como dito no parágrafo anterior, bem
como à retórica característica deste meio de comunicação em massa.
Ao tratar do surgimento de um novo tipo empresário, que, via jornal, intentava
estimular a capacidade consumidora do seu leitor – o publicitário –, Mason (2003)
verificou que houve uma transformação na imprensa jornalística, com fins de alcançar
um público menos instruído: o advento de uma linguagem mais simples e acessível.
Essa diluição do conteúdo erudito se deu, basicamente, com a inserção de uma
pluralidade de notícias temáticas, e, prioritariamente, com o uso de bastante iconografia,
da qual a fotografia se destacava, justamente por ser o recurso de ilustração que era
julgado como o mais moderno à época. Deste modo, os registros fotográficos, por
promoverem certa acessibilidade aos gêneros textuais à população menos instruída,
assumiram uma função pedagógica, na medida em que, fundamentando-se em Chartier
(1990), contribuíam com o desenvolvimento de diferentes capacidades de leitura, ainda
que não fossem de letras propriamente ditas.
Neste processo de modificação do jornalismo, a fotografia ganhou, por sua vez,
contornos para além da diversão e das lembranças pessoais, ao ser uma das principais
formas de registro da Primeira Guerra Mundial, corroborando não só a sua característica

336
de ilustração moderna, como, também, a face negativa do progresso. Como discursos
interrompidos no tempo, o que os deixa em aberto, reticentes, as fotos deste conflito
armado podem ter fomentado as apreensões das proporções do mesmo, alimentando o
imaginário social, sendo, por consequência, recursos com informações próprias, e não
apenas complementares. Se há essa relação apresentada, e, para autores como
Hobsbawm (1995), o século XIX e o tempo das certezas se encerraram com a eclosão
da Primeira Grande Guerra, é lícito afirmar que o registro fotográfico está atrelado ao
surgimento da era moderna e do tempo das incertezas.
Segundo Lorenzo (1997), São Paulo, que já havia crescido durante os anos de
1914 e 1918, teve um crescimento significativo no período do pós-guerra, sobretudo no
âmbito da economia urbana, que fora impulsionado pela expansão simultânea da
urbanização na capital deste Estado, bem como nas cidades do seu interior. Na década
de 1920, já se apontava uma necessidade de crescimento do parque industrial desta
região e da nação, uma vez que as atividades não diretamente vinculadas à produção e
exportação do café, como, por exemplo, outros tipos de agricultura e o comércio,
compunham uma economia próxima à cafeeira. Com essas transformações ocorridas na
economia, na política e na cultura, São Paulo era posta como exímio exemplo de vida
moderna – urbana e industrial – a ser conquistada pelas demais localidades brasileiras, o
que, em certo sentido, promovia uma maior integração nacional, já que as referências
não estavam mais separadas por distâncias oceânicas.
Sob a crença de uma missão intrínseca aos projetos de civilização e de
construção da nação, as elites letradas, os intelectuais brasileiros, atuaram ativamente
nesta elaboração referencial, pois, para eles, a organização da pátria perpassava e
advinha da organização da cultura. No campo da imprensa, destacaram-se,
fundamentando-se em Lima (1993), álbuns ilustrados, comparativos ou não, que, além
de uma periodicidade definida por seus produtores, caracterizam-se pelo uso de
fotografias de uma dada urbe como a principal linguagem de socialização. A autora, ao
fazer a análise de 12 álbuns ilustrados produzidos em e sobre a capital de São Paulo,
averiguou que, dentre outras funções, objetivava-se, com tais, promover uma
familiaridade com a ordem urbana que estava a conquistar-se e com a que se intentava
consolidar.

337
Sobre o Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929)
Em torno das temáticas concernentes ao progresso, os discursos laudatórios não
se constituíram como uma constante irrevogável, senão efusões das elites letradas, uma
vez que, com base em Silveira (2008), foram estes grupos sociais que,
hegemonicamente, autoincumbiram-se de construir símbolos para criar e consolidar o
Brasil como uma nação moderna. No decorrer da década de 1920, as parcelas à margem
desse processo, alcunhadas, comumente, como índios, caipiras, selvagens, dentre outros
termos, passaram a integrar os projetos dos intelectuais, mais como emblemas de um
tempo prestes a ser desvanecido, do que como personagens de um percurso
contraditório e, até mesmo, excludente. Almejando o alcance a síntese dos elementos
mais genuínos da tradição brasileira, o direcionamento ao interior, mormente o paulista,
estimulou o estreitamento das distâncias geográficas e simbólicas entre os confins dos
sertões e São Paulo, reiterando, em certa medida e ao mesmo tempo, o modelo que esta
cidade era de civilização (OLIVEIRA, 2008).
Dentre essas terras longínquas, estava a atual São José do Rio Preto, que,
denominada de Rio Preto à época, tem o início do seu desenvolvimento mais intenso,
inclusive o urbano, datado de 1912, porque foi neste ano que os trilhos da Estrada de
Ferro Araraquarense chegaram ali (CAMPOS, 2004). Os enunciadores iluminados de
Rio Preto tentavam firmá-la no imaginário reinante de modernização, apreendendo as
mudanças mais externas da capital do Estado como passíveis de implementação, ainda
que a finalidade não fosse para superá-las; no muito, igualar-se. Assim, inúmeras ações
foram postas em prática por esses ―arautos dos novos tempos‖, especialmente a partir da
década posterior à da chegada do trecho da malha ferroviária, como, por exemplo, no
campo cultural, a escrita de textos das mais variadas temáticas nos jornais locais, e,
também, a produção de álbuns ilustrados.
Este gênero editorial, segundo Lima (1993), tornou-se presente, na capital de
São Paulo, desde a década em que o Estado passou a destacar-se no desenvolvimento
econômico do país, tendo sua narrativa tecida por meio de, precipuamente, registros
fotográficos do espaço geográfico local. No caso de Rio Preto, o primeiro impresso
desse estilo e de grande porte material foi o Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto

338
(1927-1929)2, cuja função explícita era a de fazer uma propaganda social da região,
ampliando a ideia daqueles que a conhecia, alcançando os que a desconhecia, e atraindo,
consequentemente, investimentos nos diversos setores do espaço retratado. Para tanto,
como possuía um viés mercadológico, e por a sua produção ter sido encabeçada por
aqueles que integravam o rol das elites letradas da época, a sua circulação foi
potencializada com a divulgação de notas, reportagens, apreciações de partes ou do
todo, bem como de outros gêneros textuais, nos jornais locais, como no A Noticia.
Para demonstrar o progresso, as três dimensões temporais – pretérito, presente, e
futuro – foram elencadas, ainda que haja certo destaque para as duas primeiras,
sobretudo para a segunda, o que se torna compreensível a partir das análises feitas por
Lima (1993). Segundo esta autora, a produção de álbuns ilustrados se tornou recorrente
no mundo ocidental, por volta da segunda metade do século XIX, especialmente para
dar destaque a um modo de vida urbano, não só para aferir os resultados já alcançados,
mas, também, para promover uma familiaridade com este novo modus vivendi,
contribuindo para a construção física e simbólica do espaço citadino. Com esta
finalidade geral, tais álbuns podiam assumir uma conotação comparativa, quando se
procurava ressaltar as diferenças de modernização em um dado espaço de tempo, ou
uma conotação contemporânea, quando se objetivava dar ênfase à civilização então
corrente.
Vale destacar que, assim como ressaltado nas apreciações publicadas no jornal A
Noticia, o Álbum possuía, no mesmo sentido assumido pelos cartões-postais, um viés de
comercialização (CAMPOS, 2014), indicando que, para além do comprometimento
histórico e social que seus idealizadores buscaram fazer, havia uma parcela de
entretenimento, possibilitando uma massificação do seu público. Tanto o foi que,
impressa na Casa Duprat-Mayença, em São Paulo capital, composta por 11533 páginas e
1261 fotografias, com todos os gastos custeados por Paulo Laurito, a primeira edição da
obra chegou aos 5 mil exemplares vendidos, o que era feito sob encomenda na Casa

2
Ainda que a primazia do Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto tenha sido na monumentalidade do
seu porte, o primeiro álbum produzido na cidade foi o Álbum de Rio Preto, no qual, sob a organização de
Raul Silva, foram abrangidos os anos de 1918 e 1919.
3
Em 1979, Roberto do Valle coordenou a reprodução do Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto, cuja
reimpressão se distingue da versão original por: conter um prólogo deste coordenador; estar paginada;
possuir lombada mais arredondada, para facilitar a leitura, bem como dificultar o desprendimento das
folhas; e indicar o nome do seu dono na capa, já que as vendas foram feitas por encomendas a priori da
impressão. Em termos de conteúdo, nada foi alterado.
339
Laurito e nas redações de jornais da região, com o preço unitário de 150 mil-réis.
Utilizando molduras em art nouveau, papel couché – que possui, dentre as suas
principais características, uma maior durabilidade às ações do tempo e do manuseio –, a
encadernação foi feita em brochura, com lombada ortogonal, e capa dura de cor
avermelhada e chumbo.
Em 21 capítulos, embora as localidades das cidades que compunham a Comarca
de Rio Preto estejam contempladas no documento ilustrado, é perceptível que a cidade
mais privilegiada na abordagem é a que dava nome à Comarca. Ainda assim, pelas
subdivisões de cada capítulo temático, fica-se evidente que o progresso a ser propagado
decorria-se de um contraditório desenvolvimento, com muito ainda a ser feito,
especialmente no campo social. No contexto político, Silva (2009) identificou a década
de 1920 como a principal para o entendimento das transformações nos grupos de poder
de São José do Rio Preto entre os anos de 1894 e 1930. Tal como Ghirardello (2002),
grafa que o município apresentou um rápido processo de desenvolvimento urbano,
potencializado pela expansão ferroviária e, consequentemente, pela expansão da
economia cafeeira.

Seção destinada à mulher rio-pretense


Das seções relacionadas à cidade sede da Comarca de Rio Preto, uma está
direcionada às mulheres que residiam em tal localidade, que, ocupando 6 páginas e meia
da obra tipográfica, foi intitulada de ―Rio Preto Feminino: galeria distincta consagrada à
mulher rio-pretense‖. Inserida no interstício da parte ocupada pelas personalidades
masculinas, que está na primeira parte do Álbum, e da reservada às crianças, posta na
terceira parte do impresso, a subdivisão feminina tem, no seu discurso, a predominância
da associação direta entre gênero de seus sujeitos e beleza, o que reforça as
considerações de Lipovetsky (2000) e Vigarello (2006). No texto de abertura de tal
porção, Abílio Cavalheiro, um dos organizadores do Álbum Ilustrado da Comarca de
Rio Preto, além de contemplar e exaltar a importância da beleza feminina, indaga-se e
ao leitor: ―Haverá, no idealismo criador do homem, alguma concepção perfeita, que não
tenha sido inspirada sob a influencia da belleza ou da virtude feminina?‖ 4.

4
Respeitando a grafia da época, a citação não contém a numeração da página de tal excerto, pois a 1ª
edição da obra, que foi fonte para o presente estudo, não a possuía.
340
Embora esta parte da obra imagética estivesse consagrada à mulher residente na
então Rio Preto, ela está ocupada por uma bem restrita quantidade de personagens, o
que é justificado, em partes, pelo custeio financeiro que se deveria ter para tal
divulgação fotográfica. Entretanto, aponta-se outro motivo para essa seleção, ao se
analisar as características das mulheres fotografadas: só há solteiras, cujas semelhanças
esbarram nos adornos, na indumentária e no penteado utilizados, e, até mesmo, na pose
fotográfica feita, nas suas virtudes e prendas. Dentre elas, apenas uma foge de alguns
destes aspectos: a professora, que, por ser uma profissional do extra-doméstico, suas
qualidades morais não estão atreladas ao nome de sua família, como se verifica na
maioria das suas companheiras de seção tipográfica.

341
Figura 1 - Snrta. Josepha Barretos - Um dos Figura 3 - Snrta. Orminda Romana - Dilecta
lindos ornamentos do nosso feminismo, e em filha do Dr. Eugenio Romano e precioso
cuja belleza resalta os preciosos dotes de sua ornamento da "elite" feminina rio-pretense.
bondade. Fonte: Album Illustrado da Comarca Fonte: Album Illustrado da Comarca de Rio
de Rio Preto, 1929. Preto, 1929.

Figura 2 - Snrta. Mariinha Jorge - Um dos mais


Figura 4 - Snrta. Nair Athayde Lopes -
bellos e preciosos ornamentos da elite feminina
Graciosa e gentilissa filha da Exma. Snra.
de Rio Preto, irmã do nosso conceituado amigo
Fausta Atahyde, Directora do Collegio 7 de
Snr. Frederico Jorge Sobrinho, Escrivão da
Setembro. Fonte: Album Illustrado da Comarca
Collectoria Federal, e distincto cidadão de Rio Preto, 1929.
residente entre nós. Para não enaltecermos
apenas a belleza physica de Mariinha Jorge,
registramos tambem a sua belleza de alma,
perfumada com as mais nobres virtudes onde se
reune a graça, á bondade e a jovialidade á sua
cultura-espiritual. Fonte: Album Illustrado da
Comarca de Rio Preto, 1929.

342
Figura 5 - Snrta. Sylvia Queiroz - Uma das Figura 7 - Snrta. Helena Demonta - "a belleza
mais lindas e encantadoras flores do feminismo alida á bondade" elemento querido do nosso
Rio-Pretense. Filha dilecta do Exmo. Snr. Dr. mundo social. Fonte: Album Illustrado da
Esperidião de Queiróz Lima. Além de sua Comarca de Rio Preto, 1929.
belleza physica reune tambem precidados de
nobreza, que a tornam tão estimada na nossa
sociedade, quanto é grande e gentil a sua infinita
jovialidade e perfeição de espirito. Fonte:
Album Illustrado da Comarca de Rio Preto,
1929.

Figura 8 - Prendada Snrta. Amelia Scaff - Um


dos finos ornamentos da nossa sociedade e um
Figura 6 - Snrta. Elza Mattos Pacheco - "a dos espiritos mais culturas. É filha do
graça concentrada n'uma forte expressão de importante fazendeiro e capitalista Snr. José
ternura". Fonte: Album Illustrado da Comarca Scaff. Fonte: Album Illustrado da Comarca de
de Rio Preto, 1929. Rio Preto, 1929.

343
Figura 9 - Snrta. Barthyra Viégas - Umas das Figura 11 - Snrta. Finizia Esposte, reunindo na
intelligencias mais robustas do nosso meio ternura expressa do seu olhar, a belleza e a
feminino, e um dos elementos mais queridos bondade que a caracterizam. É um dos belos
pela sua virtude e bondade, em todas as rodas ornamentos do feminismo Rio Pretense,
sociaes, sendo actualmente elemento de gozando de grandes sympathias em todas as
destaque no Gymnasio de Rio Preto. Fonte: rodas da nossa sociedade. Fonte: Album
Album Illustrado da Comarca de Rio Preto, Illustrado da Comarca de Rio Preto, 1929.
1929.

Figura 10 - Snrta. Lydia de Queiroz - Reunindo Figura 12 - Graciosa e prendade senhorita


n'um sorriso infinito a extraordinaria graça que a Djanira Ribeiro, altamente estimada em todas as
torna linda entre as mais lindas e singularmente rodas do nosso feminismo e singularmente
attrahente pela sympathia que irradia a sua sympathica pela expansão de sua jovialidade e
delicada e preciosa bondade. É filha do Snr. Dr. primorosa cultura de prendas domesticas. É
Espiridião Queiróz Lima, medico-chefe do filha do conceituado comerciante e proprietario
Posto de Hygiene, e elemento de destaque nas Snr. Antonio Ribeiro, elemento estimado em
rodas sociaes de Rio Preto, onde é altamente Rio Preto pela sua bondade característica e
estimado, bem como toda a sua Exma. Familia. capacidade ao trabalho. Fonte: Album
Fonte: Album Illustrado da Comarca de Rio Illustrado da Comarca de Rio Preto, 1929.
Preto, 1929.

344
Considerações Finais
A produção e a circulação do Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto (1927-
1929) estavam atreladas a um projeto de progresso social, do micro ao macroespaço
nacional, que, no Brasil, por meio de as elites letradas, ancorou-se na filosofia
positivista de Augusto Comte. Dessa forma, percebe-se que a representação feminina
está intimamente vinculada ao papel que este teórico atribuiu às mulheres, sobretudo no
âmbito da ordenação da sociedade, em busca de um, sempre ascendente, melhoramento.
Assim, buscando romper com a perspectiva da perfeição celeste, e da mulher como
fonte do mal, o gênero feminino passava a ser apreendido, em tese, como a encarnação
da perfeição, o que se manifestava em sua beleza pura – o que Lipovestky (2000)
designou de Segunda Mulher – e em na primazia do seu sentimento sobre a sua
inteligência.
Essa mulher bela e de sentimentos nobres, considerada como um símbolo da
República, tinha um papel fundamental na estruturação social urbana: intermediar o
papel masculino e o papel das crianças, por meio da educação, civilizando e mantendo a
ordem indispensável ao progresso da sociedade. Portanto, para que assim o fosse, seu
espaço de atuação ficava restrito ao lar, ou à educação formal, desde que, neste último,
o seu marido e seus filhos, quando casada, não ficassem comprometidos com o seu
trabalho extra-doméstico. A escola, então, como ambiente privilegiado de
desenvolvimento da educação formal, não era só um campo para o exercício
profissional de algumas mulheres, mas, também, especialmente para as solteiras, era um
local para manter a moral delas não muito distante daquilo que, na citada filosofia, era
posto como o ideal.
Nesse sentido, os limites da seção ―Rio Preto Feminino‖ não foram delimitados
somente por aspectos financeiros, mas, e principalmente, por uma questão de afinidade
ideológica, uma vez que a mulher de papel imprescindível ao estado positivo social era
a esposa e a professora que tivessem o que era, à época, considerado como idoneidade
moral. A beleza dessas mulheres, assim, ainda que tivessem ressaltadas algumas
características do seu físico, não era determinada pelo seu corpo; era, pelo contrário,
definida por aquilo que este aspecto concreto pudesse abrigar, como as suas qualidades
de bondade. Por isso, à luz das considerações de Vigarello (2006) e Lipovetsky (2000),
as fotografias da mencionada subdivisão do Álbum estão focadas apenas no rosto

345
feminino, pois, neste modelo de beleza, o olhar seria o principal mecanismo de
retratação da ternura, o que tornava desnecessária qualquer outra retratação da mulher.
Não é inócuo, diante disso, que uma das máximas do Positivismo de Comte
tinha o aspecto sentimental – o amor, no caso – como o princípio básico para o alcance
pleno do estado positivo, posto como o mais perfeito da evolução da humanidade.
Uníssono a essa lógica, Abílio Cavalheiro, respondendo a questão que abriu tal parte
destinada a algumas mulheres rio-pretenses, chega à conclusão de que não há nenhuma
obra perfeita que não tenha sido inspirada nas mulheres, pois, em palavras dele, ―[...] a
virtude da mulher é, pelo seu poder afetivo, um prolongamento do poder divino‖. Em
outras palavras, considerando as finalidades mais amplas da produção da obra
tipográfica ilustrada em análise, significa dizer que abarcar as mulheres, representando-
as conforme um determinado modelo, era uma condição importante à urbanização
objetivada, de tal forma que a beleza feminina impactaria, direta e indiretamente, na
beleza da urbe.
Todavia, essa afirmação não implica em uma ponderação de associação
harmônica, tendo em vista que o próprio objeto imagético impresso foi resultado de um
desenvolvimento civilizatório contraditório. Tal como defendeu Lipovetsky (2000),
concatenar gênero feminino com beleza possui, a um só tempo, aspectos limitadores e
libertadores, uma vez que as mulheres, ainda que cerceada e silenciada por
determinadas normas, nunca deixaram de ser um sujeito ativo em suas histórias, e na
própria história social. Contudo, a compreensão dessa outra face do processo torna-se
complicada, na medida em que os registros que perduram, concretamente e no
imaginário social, como o próprio Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto, são
justamente aqueles em que a participação feminina está circunscrita a um plano
secundário.

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347
O ENSINO DE HISTÓRIA E A CULTURA ESCOLAR: A LEI 10639/03 E SUAS
PRÁTICAS

Viviane Pereira Ribeiro Oliveira 1

Resumo
O presente trabalho apresenta parte de uma pesquisa, em desenvolvimento que busca
analisar o ensino de História e a Cultura Escolar de duas escolas públicas do município
de Ituiutaba antes e após a Lei 10.639/03 que alterou dispositivos da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 (LDBEN). Através de uma analise
bibliográfica/documental do tema. Analisando os documentos referentes à educação, e
a cultura afro-brasileira como leis e pareceres, percebendo como tratam a questão da
História da África e da cultura afro-brasileira. Além de um trabalho de campo, nas duas
escolas, onde tivemos contato até o momento com os diários dos professores, livros
didáticos e planejamentos anuais da disciplina de História.

Palavras-chave: Lei 10639; História; Cultura.

Introdução

Esse trabalho é parte de um projeto de pesquisa em desenvolvimento, no qual


nos propormos analisar o ensino de História em duas escolas públicas do município de
Ituiutaba antes e após a Lei 10.639/03 que alterou dispositivos da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 (LDBEN) e tornou obrigatório o ensino de
História da África e da cultura afro-brasileira em todas as escolas de ensino fundamental
e médio do Brasil, posteriormente, modificada pela lei 11645/08 que amplia dá a mesma
orientação quanto à temática indígena.

Uma pesquisa com esse tema se justifica pela extrema importância para
compreendermos os processos de implementação da legislação referida, as práticas
escolares em torno dos temas propostos, as condições de trabalho, as resistências. Além
disso, a pesquisa pode contribuir como material para os professores que estão atuando
na escola nas áreas de História e de outras disciplinas, e para novos pesquisadores que
venham trabalhar com essa temática.

1
Mestranda em História-UFU. vp.oliveira1980@bol.com.br
348
Como educadora da disciplina de História, percebo que a abordagem da História
e Cultura Africana e Afro-Brasileira é recebida com resistência pelos alunos. Segundo
SIMAN (2005, p.348-365) antes de nossos alunos entrarem na escola, eles já constroem
representações e experimentam formas de discriminação social e cultural dos diversos
grupos presentes na sociedade. Considera que as representações não devem ignoradas e
que os professores precisam conhecer essas representações.

Por isso, o debate em torno das diferenças culturais, se faz necessário dentro de
sala de aula para que sejam reconhecidas, respeitadas e valorizadas na escola e na
sociedade em geral. Essas questões devem estar no cotidiano da prática pedagógica dos
profissionais da educação, o que nos leva a buscar conhecimento, a relação conosco.
Pois, sem nosso interesse ativo, o conjunto passado das ações humanas nada mais é do
que um acervo morto. Sua transformação em história é sua vivificação pela atuação
direta do interesse racional presente MARTINS (2009, p.59)

Para percebermos como se tem desenvolvido o ensino de História e


implementação da lei 10639/03, devemos levar em consideração o espaço onde se dá
esse processo de aprendizagem. Segundo COSTA (2012, p. 218.), ficamos de 12 a 13
anos na escola para concluirmos a educação básica, de 4 a 5 horas por dia. O autor a
reconhece como espaço de socialização, no sentido de nos relacionarmos uns com
outros dentro da escola, onde se fazem as primeiras amizades, aprendemos a nos
organizar e equipe tem as sensações de sucesso e insucesso. Onde somos apresentados a
várias situações da vida social. A escola nos expõe as diferenças, é nesse ambiente que
necessitamos lidar com as diferenças.

Compreendermos que espaço escolar é o lugar mais adequado para ‗quebrarmos‘


os preconceitos e as discriminações, pois, esse deve ser o lugar da aprendizagem e do
conhecimento. É necessário que aprendamos que todos têm os mesmos direitos, mas
que somos diferentes quanto, à cor, religião, cultura e política.

Para percebermos se o tema da África e da cultura afro-brasileira são abordados


em sala de aula está sendo feito um trabalho de campo, em duas escolas públicas de
Ituiutaba, por ser a rede de ensino que abrange a maioria das crianças e adolescentes em

349
idade escolar, sendo uma estadual e outra municipal, percebendo se há diferença de
tratamento da temática aqui proposta, no ensino fundamental II de ambas.

As duas escolas públicas do município de Ituiutaba ficam na área urbana. Uma


delas fica na periferia da cidade, a Escola Municipal está localizada na avenida: Niterói,
nº 230, Bairro: Pirapitinga. Essa escola pertencia à rede estadual de 1967 até 1998,
quando passou a integrar a rede Municipal, oferece o ensino fundamental, em três
turnos, conta com 17 salas, funcionando 14 salas no turno matutino, 15 no vespertino e
seis no noturno, 340 alunos matriculados no ensino fundamental II no ano de 2013, uma
biblioteca, sala de informática, com acesso a internet, média de 60 professores, três de
História, quatro supervisoras, sendo duas no matutino e duas no vespertino, uma
secretária, pátio e quadra coberta.

A outra, que é estadual, fica próximo da área central, localizada na Rua Cônego
Ângelo Tardio Bruno nº 375. Bairro Platina tem 52 anos de funcionamento, oferece o
ensino fundamental e médio, em três turnos, conta com 17 salas, funcionando 17 salas
no turno matutino, 13 no vespertino e oito no noturno turno, 380 alunos matriculados no
ensino fundamental II no ano de 2013, uma biblioteca, sala de informática, o acesso à
internet, uma média de 60 professores, três supervisoras, uma secretaria, pátio e quadra
coberta.

Metodologia

No trabalho em desenvolvimento optaremos por realizar uma pesquisa de


natureza bibliográfica/documental. Os documentos a serem analisados se referem à
educação, a cultura afro-brasileira como leis e pareceres, notando como abordam tratam
a questão da História da África e da cultura afro-brasileira. Esses documentos serão
confrontados com intuito de perceber se o que se diz sobre a legislação e o que tem sido
proposto na prática.

Para percebermos se o tema da África e da cultura afro-brasileira são abordados


em sala de aula está sendo feito um trabalho de campo, em duas escolas públicas de
Ituiutaba, com o levantamento do projeto político pedagógico das escolas, bem como
dos planejamentos anuais dos professores, e materiais pedagógicos que utilizam, o livro
350
didático, diários e outros. Faremos também, entrevistas com os professores que
trabalharam na escola nas décadas pesquisadas.

PESAVENTO (2004, p. 63) nos fala da importância de um método que


possibilita ao historiador mostrar o caminho percorrido e as estratégias pelo para
analisar as fontes e construir seu texto.

Buscaremos nos apoiar no paradigma indiciário de GINZBURG (1991, p.149)


―um‖ método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre dados marginais,
considerados irrelevantes‖, para analisarmos os documentos e fontes relacionados com
o ensino de História e da História da África e da cultura afro-brasileira, procurando
perceber os vestígios deixados por quem os escreveu, procurando perceber o contexto
em que essa documentação foi escrita. Procurando notar os índicos, rastros, sinais mais
imperceptíveis para a maioria que possamos reconstruir esse processo histórico e
compreende-lo.

Por este método o historiador tem a sua função equiparada com a de um detetive,
pois terá que decifrar um enigma, pela explicação de enredo, e revelação de um algo
secreto, o historiador tem o desafio do passado a ser enfrentado com atitude dedutiva e
se move pela suspeita, em busca de traços e vestígios. Deve estar atento às evidencias,
que transparece, pois certamente o real dever ser interpretado. Ir além, do que esta dito
nas fontes analisar os detalhes mais despercebidos. O historiador também é comparado
ao médico, que busca os sintomas, dos fenômenos paralelos que dão sinais e sentido aos
sentidos. Como um crítico de arte, não deve se ater apenas a primeira aparência, mas
analisar a cena principal atento aos elementos secundários, que formam o conjunto da
obra em análise. Por esse método, segundo PESAVENTO (2004.p. 65) a ―História
atinge os sentidos partilhados pelos homens a de um outro tempo. ‖

Outro autor que nos auxiliará será MARC BLOC (2002) na maneira de como
poderemos analisar os documentos, ele nos diz de o documento não fala por si só, cabe
a nós pesquisadores sabermos como interrogar esse passado através das fontes,
procurando perceber o não dito, e o perceptível nas entrelinhas. Os documentos nos dão
pistas do passado, cabe o historiador saber usa-las para reconstruir o passado, pois o

351
mesmo não é algo morto e definido, mas se modifica a cada novo estudo. Para esse
autor, nossos questionamentos que delinearam os nossos trabalhos de pesquisa sobre
determinado assunto. Não importa o tipo do documento, todos tem o mesmo valor, pois
são vestígios do passado. O historiador precisa saber interrogar seus documentos, saber
ler nas entrelinhas, notar na fonte os reais, interesses, e visões de que as produziu.

O historiador não irá conseguir reconstruir o passado como ele acontecer, mas o
fará a partir dos vestígios do passado, que estão disponíveis ao pesquisador, portanto,
essa parte da história em analise não será uma descrição fiel do que aconteceu, mas uma
reconstrução ao que o historiador fará será uma visão sua, a partir do lugar que ocupa na
sociedade de onde fala.

PENSAVENTO (2004, p. 51) também nos coloca que os documentos são um


recurso que vão atestar a fala do historiador, quando a fonte é citada na pesquisa
demonstra que ele conhecer e participa do ―dialogo cientifico e acadêmico de sua época,
apresenta as tendências e debates de seu tempo‖. Para ela, o historiador pode narrar o
que o que ocorre um dia, ―mas que esse mesmo fato pode ser objeto de ser objeto de
múltiplas versões‖. O historiador deve ter em mente a verdade deve está na sua escrita
como algo a ser alcançado, mesmo sabendo que seu trabalho jamais será uma verdade
única. Pois, ―a História estabelecer regimes de verdade, e não certezas absolutas‖. Ou
seja, tudo pode ser contado de outra maneira, cabe ao historiador fazer um trabalho
plausível, verossímil. Para autora a História é sempre uma explicação sobre o mundo,
que é reescrita com novos questionamentos.

A cultura das escolas

Ao nos atentarmos de que as relações de socialização, convivência, são


produzidas no ambiente no escolar, consideramos que cada escola desenvolve a sua
própria cultura, conhecida como cultura escolar, na qual é possível perceber, como ela
se organiza se apropria e constrói o saber. Segundo BARROSO (2004, p. 1) esse
conceito é utilizado para colocar a escola como transmissora de um conhecimento
específico, de socialização e integração.

352
Dentro desse contexto temos do conceito de cultura escolar de JULIA que nos
coloca que

a cultura escolar como um conjunto de normas que definem


conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de
práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos; normas e práticas
coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas
(finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de
socialização). (JULIA, Dominique. 2001, p. 10-11).

Em relação à aproximação entre cultura escolar e História Cultural FARIA


(2004, p. 154) nos coloca que o tema de cultura escolar se dá ao mesmo tempo em que
se amplia o contato com a história cultural francesa. Considera, que ambas podem
contribuir para um lugar da educação na cultura, e nos estudos historiográficos.

A partir da década de 1990 houve um crescimento de pesquisas sobre o ensino


de História em que valorizava a cultura escolar, os saberes e as práticas desenvolvidas
pelos professores a outros envolvidos no processo de aprendizagem. Os autores SILVA
& GUIMARÃES (2010, p. 14) consideram essa mudança foi importante porque veio
reafirmar a concepção de ensinar História é também uma reprodução escolar, repetição
e reprodução de saberes eruditos produzidos fora da escola.

Dentro desta perspectiva temos os trabalhos de GUIMARÃES (2010, p. 401)


que utiliza o conceito de cultura escolar para analisar o ensino de História no país, ela
nos fala que devemos levar em consideração a cultura escolar no trabalho do professor.

Em um dos seus estudos para identificar os conteúdos que são ensinados na


disciplina de História, a autora optou pela análise do livro didático, um dos principais
veículos de disseminação da história na sociedade atual.

Dessa análise dos livros de História dos anos finais do ensino fundamental, a
partir do Guia 2008, percebeu as tendências e abordagens de história que eram adotados
nas escolas, das 19 coleções analisadas que foram agrupadas em e blocos, levando em

353
consideração a organização dos conteúdos: história temática; história integrada; história
intercalada; história convencional. As maiorias das coleções seguiram a organização
curricular dos conteúdos procuravam abordar a História da América, Brasil e História
Geral, uma metade pela História Integrada e outra pela História Intercalada.
GUIMARÃES (2010, p. 7).

A autora conclui que nos anos iniciais há uma diversidade maior de abordagens
com presença mais forte da história temática, já nos anos finais do ensino fundamental,
apesar de várias abordagens a predominância é da História Integrada, que apresenta um
critério temporal, linear, com base na cronologia da História europeia, que quando
possível aborda a História do Brasil, América e África. Revelando, o quanto está
concepção de História e organização curricular ainda predomina nas escolas. Segundo
ela, os autores que procuram trabalhar com a chamada história temática ainda são muito
poucos. A autora conclui que é os professores optam por trabalharem com a cronologia
ao invés da temática. GUIMARÃES (2010, p. 08).

SILVA & GUIMARÃES (2010, p. 27) consideram que o ensino se dá por


diversos caminhos além do livro didático, e que a produção dos materiais didáticos deve
ser descentralizada, e levar em conta as diferentes realidades de aprendizagem.

Os dados desse estudo nos levam a uma série de questionamentos. Qual tipo de
história tem sido praticada nas escolas de Ituiutaba? Será que é a convencional que
privilegia a abordagem europeia como a única teria contribuído para a identidade
nacional e construção da sociedade brasileira? Os materiais didáticos adotados pelos
professores são de qual base curricular? E os currículos privilegiam que tipo de
abordagem histórica? A lei 10639/03 teria provocado mudanças no ensino de História?
Há o cumprimento da legislação? Este seria apenas cumprimento formal ou de uma
maneira crítica e criativa?

Considerações Finais

Nosso intuito nessa pesquisa é compreender como se efetivam, no espaço


escolar, as determinações legais estabelecidas para o ensino da história e da cultura

354
africana e afro-brasileira, focalizando as práticas de ensino e aprendizagem nos cenários
de duas escolas do município de Ituiutaba no estado de Minas Gerais.

Perceber as mudanças e permanências no ensino de História, antes e após a lei


que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura africanas e afro–brasileiras.
Identificando como é trabalhada nas escolas públicas de Ituiutaba, se ela está presente
nos planejamentos e material de trabalho do professor.

Pesquisas e dados recentes demonstram que a população afro-brasileira é alvo de


discriminação e violência, no estudo WAISELFISZ (2012, p.7), evidencia uma triste
realidade no país, ele apresenta um mapeamento dos homicídios no Brasil e constata
que o número de homicídios entre as pessoas negras é maior do que entre brancos,
principalmente entre os jovens. Por isso, a luta dos movimentos negros pela educação
como forma de inclusão do negro, que exige cada vez mais qualificação profissional, a
educação é o caminho. Através dela, chega-se ao conhecimento e à valorização da
cultura afro para se extirpar o racismo ainda tão presente.

As nossas inquietações do presente que nos fazem retomar o passado para


compreendermos e darmos sentido às situações que vivenciamos hoje. No caso, o
racismo e a discriminação racial presente em nossa sociedade e no espaço escolar que
nos leva a fazer o retorno ao passado em que foi construída nossa cultura e residem
nossas origens. ―A História da África e a História do Brasil estão mais próximas do que
alguns gostariam. ‖ OLIVA (2003, p. 424).

Entendemos que a cultura afro-brasileira como é um dos valores fundamentais


da identidade dos afro-brasileiros, por isso o seu estudo é necessário para que se
conheça e valorize essa cultura, como meio de reconhecimento do seu papel na
formação do Estado brasileiro e caminho para a eliminação da discriminação racial em
nosso país.

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358
O TEATRO-FÓRUM COMO EXERCÍCIO DE PENSAMENTO POLÍTICO: UM
CAMINHO PARA DEBATER AS RELAÇÕES DE GÊNERO

Weyber Rodrigues de Souza1

Resumo: O presente texto tem por finalidade demonstrar a utilização do Teatro-Fórum de Augusto
Boal como possibilidade pedagógica para discutir a temática gênero. Por se tratar de um procedimento
didático-pedagógico que provoca a produção de pensamentos políticos, enxergou-se nesse técnica
teatral uma maneira de discutir questões que envolvem a temática gênero. Ainda, como proposta de
ensino de gênero, o artigo em questão apresenta uma peça teatral elaborada com propósitos voltados
para esse método. Com o intuito de evocar uma conscientização política nos sujeitos envolvidos/as, o
material em questão poderá ser utilizado por professores/as no trabalho com gênero na educação
básica.

Palavras-chave: Educação. Teatro-Fórum. Gênero.

Considerações iniciais
Não é de hoje que o Teatro, enquanto área do conhecimento, tem demonstrado
interesses por temas políticos e sociais. Seja na educação, na dramaturgia, na montagem
cênica e/ou performativa, a linguagem teatral é utilizada para abordar, analisar e criticar
diferentes concepções e conceitos presentes em nossa sociedade. Augusto Boal, autor de
grande referência na área teatral, desenvolveu várias propostas engajadas nessa concepção.
Dentre elas o Teatro-Fórum. Trata-se de uma ação estético-pedagógica capaz de permitir aos
sujeitos envolvidos a possibilidade de refletir sobre as cenas do espetáculo e intervir de
maneira crítica e reflexiva.
A partir desse princípio, surgiu a ideia de se pesquisar e discutir as possibilidades que
o Teatro-Fórum apresentam para promover debates sobre as relações de gênero, questões
estas consideradas importantes para o progresso científico, cultural, político e econômico da
humanidade. A decisão por essa temática decorreu por conta do grande número de casos de
desrespeito e preconceito de gênero que presenciei e presencio na condição de docente em
uma escola pública da rede estadual de ensino da região metropolitana de Goiânia-Go. Ainda,
estudos recentes realizados sobre o teatro do oprimido de Augusto Boal no curso de
graduação em Artes Cênicas, oferecido pela Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, e em

1
Graduado em Geografia pela PUC-GO e em Artes Cênicas pela UFG; Especialista em Gênero e Diversidade na
Escola UFG/Campus Catalão-Go - weyberucg@yahoo.com.br
359
um curso de atualização em 'Gênero no Ambiente Escolar', oferecido pela Faculdade de
Educação da UFMG, contribuíram consideravelmente para a escolha desse tema.
Ainda sobre isso, a busca pelo entendimento das contribuições do Teatro escolar para
a formação discente em gênero se intensificou com a minha inserção no curso de Gênero e
Diversidade na Escola, promovido pela UFG/Campus Catalão, momento pelo qual verifiquei
tamanha carência da temática gênero na literatura da pedagogia do Teatro. Vi, nesse percurso,
que o Teatro, assim como as demais disciplinas que compõem o currículo escolar, possui um
papel importante no combate à desnaturalização das desigualdades de gênero quando
trabalhadas sob essa ótica. E, sendo assim, deduzi que o Teatro-Fórum seria um procedimento
didático-pedagógico capaz de contribuir significativamente com o trabalho de professores/as
na escola rumo a construção de conhecimentos valorativos referentes aos conteúdos de
gênero.
Portanto, o que proponho, reconhecendo a complexidade dessa questão, é a
aproximação da temática gênero com as atividades teatrais desenvolvidas na escola. Assumir
isso implica em aceitar que o Teatro escolar se caracteriza como um grande facilitador
pedagógico junto aos alunos/as devido a sua capacidade de reinvenção e teor lúdico presente
nas diferentes propostas e atividades de ensino, assim como demonstram as principais obras
da pedagogia do Teatro em autores como: Japiassu (2001); Reverbel (2009); Cafe (2010);
Novelly (2012); Telles (2013); dentre outros.
No que tange aos procedimentos metodológicos, em primeira instância, realizei uma
pesquisa bibliográfica objetivando a construção de um referencial teórico consistente sobre
gênero e Teatro escolar. Averiguei conceitos, questionamentos e posicionamentos de
diferentes autores em livros, teses, dissertações e artigos preocupados em discutir o Teatro-
Fórum e as questões de gênero. Apesar da pequena existência de trabalhos que versam sobre
esse assunto, consegui absorver formas de se trabalhar a temática gênero dentro da proposta
de Augusto Boal, fato que me instigou e contribuiu para a escrita do texto teatral a qual se
refere o parágrafo seguinte.
Enfim, em decorrência desse trajeto, elaborei um texto dramático sugestivo que
poderá ser utilizado por professores/as para o trabalho com gênero na escola. A intenção, ao
disponibilizar o referido texto dramático, não é a de apresentar uma receita eficaz e apta a
solucionar todas as questões envolvendo gênero, mas sim de apontar caminhos, perspectivas e

360
possibilidades de um trabalho pedagógico que pode despertar resultados relevantes para a
construção de uma sociedade mais justa e respeitosa.

Teatro-Fórum e gênero: uma aproximação possível


Refletir sobre as questões que envolvem as relações de gênero tem se tornado uma
atividade útil e necessária para a construção de uma sociedade mais justa, a fim de evitar a
reprodução de pensamentos machistas e patriarcal tão presentes em nossa cultura. Por se tratar
de um tema abrangente, as relações de gênero tem ganhado lugar de pesquisa, investigação e
discussões em diferentes áreas do conhecimento.
Dentre essas áreas, por conta de sua capacidade de reinvenção e interação com os
sujeitos, o Teatro oportuniza a discussão de temas sociais e políticos bastante relevantes para
o exercício da cidadania. Trata-se de um fazer cênico engajado na ruptura de sistemas
impostos pelos grupos dominantes de nossa sociedade. Em meio a isso, Augusto Boal se
destaca entre os teóricos do Teatro preocupados em provocar debates no sentido de construir
uma consciência política e social com os sujeitos envolvidos/as no processo.
Em específico, Boal desenvolveu uma série de procedimentos, hoje conhecidos
mundialmente, para o trabalho de atores/atrizes e professores/as de Teatro com preocupações
voltadas para a libertação, a opressão, a repressão, a exploração e o questionamento do
sistema social vigente. Diante do exposto, nota-se possibilidades de o Teatro conjurar
intervenções cênicas para o combate à desnaturalização das desigualdades de gênero também
na escola.
Pautado nisso, o referente trabalho se debruçou sobre a teoria do Teatro-Fórum
desenvolvida por Augusto Boal, que consiste em um fazer teatral onde a relação palco e
plateia mudam completamente. Centrado em sua teoria, pode-se dizer que a principal
característica dessa forma de expressão teatral

[...] é a quebra dos limites entre palco e plateia, entre atores e o público, por meio da
possibilidade dos espectadores entrarem em cena no lugar dos personagens que eles
julgam oprimidos. A estrutura de uma peça de Teatro Fórum constitui-se na
configuração clara de uma situação de opressão. A apresentação serve para iniciar o
debate com a plateia sobre a situação de opressão apresentada. Os próprios
espectadores, dando sua opinião sobre a situação, entram em cena para interpretarem
o personagem oprimido e agem sugerindo estratégias para a solução dos problemas
de opressão enfrentados (MST, 2005, p.20).

361
É interessante notar, segundo essas formulações, que o Teatro-Fórum é um
instrumento que permite ao indivíduo vivenciar uma experiência de opressão e, a partir dela,
criar mecanismos para amenizá-la. E, numa perspectiva de aprofundamento de ideias e
análises das possibilidades que o Teatro-Fórum apresenta para a promoção de diálogos sobre
as relações de gênero, debrucei-me sobre duas das principais obras de Augusto Boal. A
primeira intitulada 'A estética do oprimido', publicada no ano de 2009, e a segunda
denominada 'Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas', publicada no ano de 2005.
Tão importante quanto essas ideias são as discussões realizadas por Grossi (2004) ao
analisar o conceito de gênero desenvolvido por várias autoras da vasta tradição dos estudos de
gênero em diferentes correntes de pensamento humano. Segundo Grossi (2004), as pensadoras
de concepções pós-modernas de gênero são mais abrangentes ao afirmarem que,

[...] o gênero pode ser mutável; e que existem múltiplos gêneros, e não apenas o
masculino e o feminino. Esta corrente tem estudado particularmente os indivíduos
que mudaram de sexo, os transgêneros, e tem refletido de forma sistemática sobre a
forma como indivíduos não-heterossexuais se vêem no mundo. Para elas, o fato de
haver machos e fêmeas biológicos é só uma questão de contingência, contingência
que pode ser mudada graças às novas tecnologias médicas que permitem subverter a
ordem "natural" deste corpo. Operações de mudança de sexo permitem tirar ou pôr
seios, fazer ou tirar um pênis, construir uma vagina, etc. Da mesma forma,
operações plásticas e ingestão de hormônios podem criar caracteres sexuados,
produzir homens e mulheres, mais ou menos femininos ou masculinos. (GROSSI,
2004, p. 05, grifo nosso)

Em concordância com a afirmação realizada pela autora, é válido frisar que as


questões de gênero envolvem não apenas os heterossexuais, mas também os homossexuais,
bissexuais, travestis, transgêneros, transexuais, entre outros. Trata-se, na verdade, de várias
relações humanas. Ainda sobre o assunto, Filho (2007) em seu texto intitulado "A resposta
gay" tece algumas reflexões pertinentes. Amparado em outros pensadores, o referido autor
salienta que

[...] "gênero" é uma construção histórica e social que se configura numa relação com
o que, em cada cultura e época histórica, se define como sendo a identidade sexual,
os papéis sexuais, ideias de masculinidade, feminilidade, etc. (...), e mais importante
ainda como adverte Judith Butler (2003), não se reduzindo o "gênero" nem o "sexo"
a apenas "dois", como se a "construção" cultural/social se desse sobre o "dado" pré-
existente, "fixo" e "imutável" dos sexos anatômicos "naturais". Nesses termos, uma
definição ainda prisioneira da ilusão binarista que separa os gêneros humanos em
apenas "dois", a partir de derivá-los do sexo biológico, pela "crença numa relação
entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito" (FILHO,
2007, p. 03).

362
No que diz respeito a ideia binária de gênero, é ainda comum encontrar tal
pensamento em nossa sociedade. Infelizmente, é perceptível a forma como esse conceito se
ampara em diferentes posicionamentos. Seja por tradição, por preceitos religiosos ou por
convicções pessoais, elas estabelecem regras e condutas do que é aceito e considerado
"normal". Desse modo, as diferenças assumidas por um indivíduo ou grupo se tornam fatores
de discriminação, preconceitos e desigualdades. Logo, os que fogem desse padrão social, de
forma geral, são marginalizados e excluídos. Contudo, enquanto instituição que promove a
formação de indivíduos para o exercício da cidadania, a escola precisa propor atividades
didático-pedagógicas que objetivam romper estereótipos e preconceitos relacionados à
temática gênero. Sem ressentimentos, é preciso que se diga que a escola não pode ser omissa
em relação a essas questões, tampouco ignorá-las, pois,

[...] a implantação de ações com vistas à promoção da equidade de gênero,


identidade e orientação sexual e ao enfrentamento ao sexismo e à homofobia
encontra respaldo nas propostas de ações governamentais relativas à educação,
conscientização e mobilização contidas no Programa Nacional de Direitos Humanos
II (de 2002), no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2004), no Programa
Brasil sem Homofobia (2004) e no Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (2006) gestados a partir de lutas e transformações que receberam maior
impulso desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2007,
p.22).

Tal descrição contribui para reforçar a necessidade e o amparo legal oferecido à


escola para o desenvolvimento de ações pedagógicas preocupadas em provocar debates que
norteiem a formação de uma consciência política e social no que tange às diferenças de
gênero. Sendo assim,

[...] se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos, nem mesmo
apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades étnicas,
de gênero, de classe; se reconhecemos que essas identidades estão sendo produzidas
através de relações de desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente
comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso
cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se acreditamos que a prática
escolar é historicamente contingente e que é uma prática política, isto é, que se
transforma e pode ser subvertida; e, por fim, se não nos sentimos conformes com
essas divisões sociais, então, certamente, encontramos justificativas não apenas para
observar, mas, especialmente, para tentar interferir na continuidade dessas
desigualdades (LOURO: 1997, p. 85, grifos da autora).

363
Como se vê, a narrativa de Louro (1997) demonstra preocupações intrínsecas ao
posicionamento político da escola e do professor/a em se tratando do ensino de gênero. De
todo modo, Bortolini et al. (2014) ao discutir sobre a atuação pedagógica de professores/as no
que tange às relações de gênero revela que

Grande parte das/os educadoras/es reconhecem um desconforto em si, uma sensação


de incapacidade (técnica e pessoal) em lidar com o tema, mas ao mesmo tempo
trazem a intenção de desconstruir alguns paradigmas próprios que percebem como
preconceituosos e querem buscar novas formas de compreender e de se relacionar
com esses sujeitos, transformando não só suas relações interpessoais, mas também
sua prática pedagógica (BORTOLINI et al., 2014, p.08, grifo nosso).

De fato, ocorre que essa realidade, a do desconforto, faz parte da cultura docente
mesmo daqueles/as que tiveram acesso a uma formação acadêmica em gênero e diversidade
na escola, pois, romper com elementos de uma cultura padronizada não é tarefa fácil,
principalmente porque desde os primeiros anos de vida somos instruídos a assumir um
determinado padrão de gênero, apreendendo o que é considerado "normal" e "aceito". Em
outras palavras,

[...] ainda pequenas, somos ensinadas a assumir as características de gênero, de


acordo com determinada concepção cultural. Bonecas, jogos de chá, estojos de
maquiagem e muitos tons de rosa para as meninas; armas, carros, bolas, cores fortes
e jogos agressivos para os meninos. Essa insistência na separação de meninos e
meninas não está só na ideia de que homens e mulheres são - e devem ser -
naturalmente diferentes, mas de que confusões nos gêneros possam provocar
confusões na orientação sexual (BORTOLINI et al, 2014, p.54, grifo nosso).

Como se vê, essa insistência social e, muitas vezes, escolar é fruto da visão binarista
de gênero. Como consequência, entende-se erroneamente que as atividades desenvolvidas
pelos indivíduos nos anos iniciais são responsáveis pela construção de masculinidades e
feminilidades. Louro (1997), já havia demonstrado preocupações referentes a isso. Segundo a
autora,

A separação de meninos e meninas é, então, muitas vezes, estimulada pelas


atividades escolares, que dividem grupos de estudo ou que propõem competições.
Ela também é provocada, por exemplo, nas brincadeiras que ridicularizam um
garoto, chamando-o de "menininha", ou nas perseguições de bandos de meninas por
bandos de garotos (LOURO: 1997, p.79).

364
Essa percepção é de fundamental importância para que se compreenda que as
desigualdades sociais presentes em nossa cultura são frutos de uma construção histórica
pautadas no âmbito biológico e sexual. Portanto, enquanto docentes que se preocupam com o
modo pelo qual as relações de gênero se estabelecem em nosso meio, devemos desmistificar
ideias engajadas em privilégios e preconceitos, objetivando amenizar os problemas
envolvendo violência de gênero, intolerância, desigualdades e práticas homofóbicas. Sobre
esse último, principalmente, é oportuno dizer que

Tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos,


ameaças e agressões físicas ou verbais tem sido uma constante na vida escolar e
profissional de jovens e adultos LGBT. Essas pessoas vêem-se desde cedo às voltas
com uma "pedagogia do insulto", constituída de piadas, brincadeiras, jogos,
apelidos, insinuações, expressões desqualificantes - poderosos mecanismos de
silenciamento e de dominação simbólica (JUNQUEIRA, 2009, p.17).

Em síntese, tenho convicções de que o Teatro possui um papel fundamental no


processo de conscientização política dos sujeitos envolvidos com essa área do conhecimento
humano. Seja na escola, através de suas atividades pedagógicas na promoção da educação
social, artística e estética, seja no palco, através de procedimentos didáticos de
(trans)formação dos sujeitos ou de encenações de performances cênicas, o Teatro apresenta-se
como um mecanismo de grande relevância na produção do saber e fazer humano, pois:

Quando o indivíduo, como sujeito, participa de atividades teatrais, adquire a


oportunidade de se reconhecer e se redescobrir dentro de um determinado grupo
social, de maneira responsável, criativa e humana. Nesse contexto, ele legitima os
seus direitos e estabelece relações entre o individual e o coletivo, aprendendo a
ouvir e acolher pensamentos alheios, bem como a desenvolver suas próprias
opiniões. Tudo isso precisa ocorrer, necessariamente, com o respeito às diferenças
culturais, sociais, sexuais e idiossincráticas (MAIA, 2010, p.79).

Somado a tudo que foi exposto, o trecho acima, de forma geral, retrata a visão de que
o Teatro-Fórum pode contribuir de forma significativa no processo de formação do
educando/a, sendo capaz de ampliar a percepção de mundo dos envolvidos/as em relação às
questões de gênero. Essa, de maneira geral, é a leitura que tenho feito acerca do Teatro e de
seu posicionamento político no espaço escolar na (re)construção de conceitos estereotipados
sobre gênero. Nesse sentido, entendendo a multiplicidade da temática em âmbito escolar,
reforço a importância desse saber e fazer humano como facilitador pedagógico para a
discussão das questões que envolvem as relações de gênero. Enquanto disciplina ou
365
procedimento metodológico, é dever dessa área do saber promover discussões pertinentes
para a construção de conhecimentos valorativos e, assim, revelar o seu papel intrínseco na
formação do cidadão/cidadã.

Teatro-Fórum na escola: uma proposta metodológica de estudo de gênero


Pensar a escola como um espaço da diversidade e local onde as manifestações das
diferenças se dão com maior intensidade nos coloca diante de um grande desafio. Digo isso
porque, enquanto docente e concluinte do curso de pós-graduação em Gênero e Diversidade
na Escola, ainda sinto certo desconforto ao trabalhar a referida temática na sala de aula.
Enfatizo isso porque entendo que não é tarefa fácil romper com os elementos tradicionais de
nossa cultura. Do mesmo modo, compreendo que não podemos cruzar os braços e fazer vista
grossa diante dos casos absurdos de opressão relacionados à temática gênero no ambiente
escolar.
De fato, desenvolver atividades didático-pedagógicas com vistas para a formação
em gênero e diversidade na escola é dever de professores/as comprometidos com um processo
de ensino-aprendizagem de maior significado social, no qual os envolvidos/as possam,
durante sua trajetória de vida, realizar escolhas de maneira responsável, respeitosa e apta ao
exercício da cidadania. Amparado nesses preceitos, descreverei nos parágrafos seguintes os
passos de uma proposta de ensino de gênero pautada no Teatro-Fórum de Augusto Boal e que
poderá ser utilizado por professores/as em suas atividades pedagógicas na escola. Como
docente de escola pública, entendo os desafios e limites da profissão na educação básica. E,
por isso, ao descrever a referida proposta pedagógica, levei em consideração os diversos
elementos, facilitadores e dificultadores, característicos da educação pública no mundo atual.
A princípio, elaborei e apliquei a referida proposta de ensino em turmas de segundo e
terceiro ano do Ensino Médio. A escolha por esse público se deu pelo fato de ser a faixa
estudantil com o qual trabalho há mais de seis anos. Ainda, em tons de esclarecimento, a
produção da peça teatral presente na proposta de ensino baseou-se em minha trajetória de vida
e de uma professora da escola a qual estou modulado. Eu, homossexual assumido apenas para
alguns amigos, colegas de trabalho e, agora, para os leitores desse artigo, enfrentei e enfrento
muitas dificuldades quanto à aceitação de minha orientação sexual. A referida professora e
colega de trabalho, residente desde a infância na cidade de Nova Fátima-Go, lésbica assumida
e a pouco tempo casada, foi inspiração para a criação de uma das personagens principais do

366
texto teatral da proposta em questão. Fundamentando-se nesses históricos de vida, a trama da
peça visa demonstrar momentos de opressão oriundas da cultura tradicional e binarista de
gênero.
Em se tratando da proposta pedagógica de ensino, enfatizo que o primeiro passo a se
fazer consiste em selecionar os alunos/as que desejam participar da montagem cênica e, em
seguida, apresentar-lhes o texto dramático. Após isso, recomendo ensaiar com os alunos/as as
três cenas que constituem a peça em um momento no contra-turno para evitar o conhecimento
antecipado e fragmentado da proposta pelos membros da comunidade escolar.
Mesmo que o professor/a não tenha o conhecimento das técnicas de encenação, é
válido lembrar que o objetivo maior da atividade não está na performance cênica. Tampouco
no julgamento das técnicas, mas sim em incitar uma discussão rumo à ampliação do olhar que
os alunos/as possuem acerca dos padrões estabelecidos em nossa sociedade no que tange às
questões de gênero.
Em continuidade, após os ensaios, o professor/a poderá apresentar a peça nas salas de
aulas ou propor um momento cultural no pátio da escola com convite estendido para todas as
turmas da unidade escolar. Isso vai depender da realidade da escola, do tempo disponível, do
espaço físico, da organização e planejamento do professor/a. Ainda, é importante salientar que
a terceira cena da peça não possui um 'final' com soluções prontas e acabadas, justamente para
atender ao conceito de Teatro-Fórum.
Em síntese, assim que a peça chegar no 'final', o narrador deverá entrar e congelar a
cena. A partir daí, a recomendação consiste em solicitar a participação da plateia/público na
solução do problema em questão. Ao fazer uso desse procedimento, o professor/a notará o
surgimento de diferentes posturas e concepções, algumas mais aceitáveis que outras. E, como
prática norteadora, é interessante o professor/a fazer o colhimento dessas ideias e ir, ao longo
da atividade, tecendo comentários a fim de mediar a discussão e partir para o diálogo aberto.
De modo geral, acredito que o texto dramático apresenta elementos importantes para
serem discutidos em sala de aula, como por exemplo: a padronização de jogos e atividades
escolares para meninos e meninas; a visão errônea de que meninos e meninas devam
desenvolver atividades destinadas a seus sexos para se evitar confusões na orientação sexual;
a homofobia e a violência; a heteronormatividade; as desigualdades nas relações de gênero; a
intolerância de gêneros; dentre outros. Enfim, com esses e outros propósitos, segue abaixo o
texto dramático em questão.

367
***************************************************************************

A CULPA É SEMPRE DOS INOCENTES

Personagens
ANINHA
CRISTINHA
JEFER
NARRADOR
PEDRO
TIELLY

PRÓLOGO
A cena se passa em um colégio público de uma cidade do interior de Goiás com pouco mais
de oito mil habitantes. Novos na pequena cidade, Aninha e Jefer, personagens principais
dessa trama, são impedidos pela escola de realizarem certas atividades pedagógicas por serem
considerados 'diferentes' pela comunidade escolar.

CORO
Entra as personagens batendo palmas, dançando e cantando a paródia da música 'Xote da
alegria' do grupo Falamansa.

Se um dia alguém falou


Para negar o que eu sou
Não sei se vão me aceitar
Pois não aprenderam o que é respeitar
E se acaso você diz
Que temos que seguir a matriz
Vê se fala sério
Pra que negar sua alma?
É só vivermos em harmonia
E deixe de lado a tirania
Dance o xote da minoria ha he he
Um dê run dê run dê

NARRADOR (em tons de mistério)


Narrador interrompe a apresentação, retirando todos/as da cena e começa a discursar.
Caras pessoas grandes e caras pessoas pequenas. Esta é uma história que aconteceu há muitos
anos, mas também é uma história que continua acontecendo todos os dias. A história daqueles
368
que são vítimas e daqueles que são praticantes. Prestem atenção, bastante atenção, pois você
pode ser a próxima vítima ou quem sabe é o praticante e nem sabe. Essa história aconteceu
em uma escola onde nem todos viviam felizes para sempre. Vou deixar que as personagens
contem essa surpreendente história. Se ajeitem nas cadeiras... respirem fundo e guardem os
celulares que a cena vai começar.

PRIMEIRA CENA - A TRISTEZA

ANINHA
Misericórdia, nem jogar bola com os mano eu posso. Tudo nessa escola só posso fazer o que
esse povo diz. (Imitando alguém) Isso não é coisa de menina... Você é mocinha e não pode...
(Irritada) Háaaaaaaa eu estou cheia disso viu.

JEFER
O que foi Aninha, você está tão pra baixo hoje. Alguém te maltratou?

ANINHA
É isso não Jefer, eu tô cansada das pessoas dessa escola. Nunca me aceitam do jeito que eu
sou. E o pior é que nem me deixam fazer o que eu gosto. Nem jogar futebol com os meninos
eu posso.

JEFER
É isso não Aninha, é que eles não querem que você saia correndo pela quadra da escola e
acabe caindo e se machucando.

ANINHA
Deixa de lero lero Jefer. Se fosse assim, os meninos nem poderiam jogar também porque
iriam se machucar. Eu queria estar na sua pele pra poder jogar e ser feliz sem ninguém ficar
me criticando ou me impedindo de fazer as coisas.

JEFER
Eu sei disso Aninha. Sou seu amigo e nós sabemos perfeitamente como é difícil ser diferente
num lugar onde nem tudo é aceito. Quem sabe um dia encontraremos um lugar onde
possamos ser aceitos do jeito que somos?

ANINHA
Éh, quem sabe?!

SEGUNDA CENA - ARMANDO A BATALHA


369
CRISTINHA
Ai que raiva daquela Aninha. Ela é toda machona... e ainda se acha a tal. Olhem lá pra ela
gente. É um horror!

PEDRO
Não é só ela não Cristinha. É ela e aquele tal de Jefer. Olha lá, o cara consegue ser mais
mulher que a Aninha... (Fazendo caras e bocas) 'Cê é louco cachoeira'.

TIELLY
Eu vou lá tirar satisfação com eles agora. Eles são a vergonha da nossa escola. Já estão até
falando em mandar eles embora da cidade. Minha prima é filha do pastor João, o vereador que
mora lá perto da sua casa Pedro.

PEDRO
Háaaa o João, eu sei quem é.

TIELLY
Então, ele falou que esses dois aí são coisas do demônio e que estão dando um jeito de tirá-los
da nossa cidade porque já tem gente até mudando daqui com medo deles influenciarem outras
pessoas.

CRISTINHA
Não, gente, calma. Vamos ficar quietos. O recreio já está acabando e a chata da coordenadora
está nos observando e pode nos dar advertência. Ela já não está muito boa com a gente tem
dias... Já sei, vamos deixar para o final da aula. Aí, a gente cerca eles lá na esquina perto do
bar do seu Zé. Aí, aproveitamos e ensinamos pra eles o que é ser homem e o que é ser mulher.

PEDRO
É isso aí galera. Boto fé que hoje esses dois viram gente ou vão morrer de apanhar. Eu vou
chamar toda a galera lá da minha sala pra ir também.

TIELLY
Fechou então, eu também vou chamar umas pessoas fortinhas para nos ajudar. Risos de
maldade.

TERCEIRA CENA - O CONFRONTO

NARRADOR

370
Embaixo de uma árvore, próximo do bar do seu Zé, a turma de Tielly esperam ansiosos por
Aninha e Jefer. Os dois caminham conversando desatentos sem perceber o que estaria por
acontecer. Quando menos esperavam bummmmmmmm.

TIELLY
Onde os esquisitinhos pensam que vão?

CRISTINHA
Passando a mão no cabelo de Aninha. Um esquisito de cabelo grande. Passando a mão no
cabelo de Jefer. E uma esquisita de cabelo curto.

PEDRO
Com um cassetete na mão. Eu tô achando que eles estão indo encontrar o pai deles.... o
tinhosooo.

ANINHA
O que vocês querem? Nos deixem em paz.

TIELLY
Em paz nós ficaremos quando vocês dois... as aberrações da cidade.... desaparecerem. E nós
estamos aqui para dar uma ajudinha nesse processo.

TODOS DO GRUPO DE TIELLY


Risos sarcásticos e maléficos.

JEFER
Mas pra que isso gente? Nunca fizemos nada com vocês, nem mesmo conversamos. Somos
inocentes de qualquer acusação, seja ela qual for.

TIELLY
Inocentes uuuuuuuuuuuu, pois bem, sabiam que A CULPA É SEMPRE DOS INOCENTES?

FINALIZAÇÃO/INÍCIO DO DEBATE
O narrador(a)/mediador(a) congela a cena e convida os espectadores para intervir nela
assumindo o papel das personagens oprimidas. A partir daí, o narrador(a)/mediador(a)
segue o trabalho de discussão e orientação à partir da interação da plateia/público.

***************************************************************************

Considerações finais

371
Como se viu no percurso desse trabalho, o Teatro-Fórum apresenta possibilidades
pertinentes para o trabalho pedagógico na escola com vistas ao desenvolvimento de uma
consciência política e social referente às questões de gênero. É válido que se diga, também,
que o papel social dessa área do saber e fazer humano é tão importante quanto as demais
disciplinas que compõem o currículo escolar ao passo que demonstra sua finalidade intrínseca
na formação do cidadão/cidadã rumo ao exercício da cidadania.
Em síntese, ensinar a pensar sobre gênero utilizando a linguagem teatral na escola é
um dos caminhos, entre tantos outros, que pode trazer resultados significativos para a
construção de uma sociedade mais justa. Como consequência disso, o simples fato de
demonstrar que sempre houve um determinado modelo, mesmo que de forma (in)visível
presente até nos livros didáticos e na cultura dita como 'universal' a ser seguida, se caracteriza
como um grande avanço no processo de ensino e aprendizagem escolar. Digo isso porque
entendo que esse exercício de reflexão se configura como o primeiro passo para a construção
de conhecimentos valorativos referentes a temática de gênero. E, sendo assim, atividades
pedagógicas consistentes e com propósitos específicos podem contribuir para desnaturalizar
algumas ideias engajadas em preconceitos, privilégios, diferenças e desigualdades. Tudo isso,
claro, objetivando demonstrar que as relações de gênero não se reduzem ao biológico, mas
exige pensar e questionar as relações de poder presentes em nossa cultura.
Por fim, tais discussões precisam ser realizadas nos espaços escolares a fim de
promover uma formação para a diversidade. Por envolver assuntos relacionados às questões
de gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais, a temática diversidade é,
ainda, considerada tabu por muitos que compõem a comunidade escolar. Como instituição
formadora, é dever da escola e das disciplinas que compõem o seu currículo propor ações que
intensifique o seu debate. Em específico às questões de gênero, a escola precisa criar ações
didático-pedagógicas que contribua para ampliar o olhar dos sujeitos sobre os padrões
estabelecidos para homens, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais,
transgêneros, entre outros. Contudo, acredito que é preciso encarar isso como parte de nossa
profissão como docentes e que a ausência dessa temática no currículo podem trazer
consequências danosas à comunidade escolar.

Referências
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372
_____________. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.

BORTOLINI, Alexandre; MOSTAFA, Maria; COLBERT, Melissa; BICALHO, Pedro Paulo;


POLATO, Roney; PINHEIRO, Thiago Félix. Trabalhando diversidade sexual e de gênero na
escola: currículo e prática pedagógica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.

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JAPIASSU, Ricardo Ottoni Vaz. Metodologia do ensino de teatro. Campinas: Papirus, 2001.

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TELLES, Narciso (org.). Pedagogia do teatro: práticas contemporâneas na sala de aula.


Campinas: Papirus, 2013.

373
INVENTÁRIO DE COISAS E TRECOS OU “POR QUE SÓ DE AMOR?” -
TEATRO, INFÂNCIA(S), JUVENTUDE(S) E TABU(S)

Lucas de Carvalho Larcher Pinto1

A presente comunicação tem como objetivo compartilhar alguns apontamentos sobre a


abordagem de temas tabus, com ênfase no(s) gênero(s), no Teatro Infantojuvenil atual,
através do relato de experiência do processo criativo (montagem e apresentação) do
exercício cênico Inventário de coisas e trecos ou ―Por que só de amor?‖, no contexto
da unidade curricular Teatro Infantojuvenil, ministrada por mim no 2º semestre de 2014
no curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Para isso, os
cadernos de criação, aqui chamados de diários de bordo, dos estudantes (artistas-
criadores) envolvidos no exercício supracitado serão acionados como fontes para a
experiência compartilhada. E, ainda, serão utilizados como referências teóricas escritos
sobre a abordagem de tabus no teatro para a infância e a juventude, assim como, textos e
materiais audiovisuais centrados nos estudos de gênero(s). Deste modo, pretendo
colaborar para o pensamento e a discussão sobre as (novas) possibilidades de
configurações morfológicas, sintáticas e semânticas no Teatro Infantojuvenil produzido
na atualidade.

Palavras-Chave: Teatro Infantojuvenil; Tabu(s); Gênero(s).

Dentre as atividades acadêmicas do Mestrado em Artes (PPGAR), do qual sou


discente, atuei como docente-estagiário da unidade curricular Teatro Infantojuvenil, no
curso de Teatro (licenciatura e bacharelado) da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), por meio do Estágio de Docência na Graduação (2014-2). Com a supervisão de
minha orientadora no referido Programa de Pós-graduação, Prof. Dr.ª Vilma Campos, e
em conjunto com um colega de classe, Ricardo Augusto - que, coincidentemente, possui
uma pesquisa com temática próxima da minha -, tive a oportunidade de
experienciar/experimentar o papel de docente no ensino superior em uma componente
do currículo daquele curso de graduação, por vezes, ainda pouco oferecida, dada a
especificidade de seu conteúdo programático.

1
Mestrando em Artes (Artes Cênicas) pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade
Federal de Uberlândia. Bacharel em Teatro pela mesma instituição, com bolsa de graduação sanduíche no
exterior (CNPq-CAPES) na Universidade de Évora (Portugal). E-mail: lclarcher@hotmail.com
374
Por se tratar de uma unidade curricular cuja ementa é ampla, e que permite
diferentes recortes, ajustando-se às particularidades dos docentes, assim como, aos
desejos dos discentes, Teatro Infantojuvenil foi ofertada, neste contexto, tendo como
foco as questões abordadas em minha pesquisa, e na de Ricardo. Ou seja, a linguagem
cênica - o conjunto de elementos expressivos utilizados na configuração de um
espetáculo – e os tabus – tudo aquilo que é considerado ―proibido‖, ―perigoso‖ e ―posto
de lado‖ em uma cultura por motivos morais, sociais, religiosos e/ou culturais - que vêm
caracterizando/se fazendo presentes (n)o Teatro Infantojuvenil da atualidade,
respectivamente.
Como é de praxe em uma unidade curricular optativa, os discentes matriculados
em Teatro Infantojuvenil eram oriundos de diferentes períodos do curso de graduação,
e, por isso, suas experiências, seus conhecimentos prévios sobre o assunto, assim como,
suas expectativas sobre o caráter de nossos encontros eram os mais variados possíveis.
Com um total de 8 estudantes (6 mulheres e 2 homens), a unidade foi ministrada nas
noites de quarta-feira, das 19h às 22:30h, na sala de Encenação do bloco 3M, UFU -
Campus Santa Mônica.
Em diálogo com algumas proposições relacionadas ao ensino-aprendizagem-
criação em artes2, eu e Ricardo sugerimos que a unidade curricular tivesse uma
configuração teórico-prática, com o intuito de borrar as fronteiras (imaginárias) que
teimam em separar a teoria e a prática no fazer teatral. Ou, ainda, o fazer-pensar/pensar-
fazer próprio da atividade artística-criativa. Desejávamos que as nossas provocações,
enquanto docentes, juntamente com as inquietações dos discentes, quanto às questões
abordadas em nossos encontros e suas atividades enquanto espectadores-fruidores de
Teatro Infantojuvenil, pudessem ser disparadoras de criações que resultassem em um
exercício cênico a ser apresentado no fim do semestre, e voltado (também) para o
público no qual estávamos focados.

II

2
Como, por exemplo, a Abordagem Triangular2 de Ana Mae Barbosa cuja proposta de ensino-
aprendizagem-criação tem como aspectos fundamentais e essenciais (não hierarquizados) em sua
constituição três pontos, que assim formam um triângulo. São eles: produzir, analisar/apreciar e
contextualizar.
375
Desde os tempos de estudante na graduação em Teatro, os diários de bordo
sempre me serviram como importantes aliados no registro, na documentação, assim
como, nas constantes avaliações e reflexões de minhas experiências enquanto artista-
criador. E, tendo a oportunidade de conduzir um processo de ensino-aprendizagem-
criação, achei por bem incentivar os envolvidos (discentes e docentes) em Teatro
Infantojuvenil a registrarem seus processos individuais, no contexto da unidade
curricular, por meio da ferramenta supracitada.
Ciente de que o termo diário de bordo remete às brochuras de viajantes do
período das Grandes Navegações, propus que, no contexto aqui relatado, tanto os
docentes, como os discentes, realizassem seus registros (escritos, ou não) através de
seus cadernos de criação, com a intenção de que os meandros do processo de ensino-
aprendizagem-criação individuais não se perdessem ao longo do tempo. À bordo, em
uma viagem em busca (da construção) do conhecimento, cada um de nós deveria dar
forma-conteúdo, ou materialidade, aos rastros da memória de nossos encontros. E,
ainda, unir a estes, relatos pensamentos, reflexões, devaneios...
Deste modo, os diários de bordo, no caso ao qual me refiro, podem ser
conceituados como a compilação de todas as anotações de um artista-criador fez durante
seus processos de ensino-aprendizagem-criação. Conforme aponta Cecília Salles em seu
livro Gesto Inacabado – Processo de criação artística (2009), no qual a autora fala
sobre os documentos dos processos criativos, os diários de bordo se configuram como
uma reunião de rastros, índices, vestígios e/ou pistas sobre o que foi um processo de
criação, e podem se fazer presentes no âmago do exercício de diferentes manifestações
artísticas. Sendo, então, um inventário de sentimentos, pensamentos, angústias,
conflitos... Para a pesquisadora:

Os documentos de processo são, portanto, registros materiais do processo


criador. São relatos temporais de uma gênese que agem como índices do
percurso criativo. Estamos conscientes de que não temos acesso direto ao
fenômeno mental que os registros materializam, mas estes podem ser
considerados a forma física através da qual esse fenômeno se manifesta. Não
temos, portanto, o processo de criação em mãos mas apenas alguns índices
desse processo. São vestígios vistos como testemunho material de uma criação
em processo. (SALLES, 2009, p. 21)

Assim, no decorrer do semestre letivo, pude perceber que os discentes


comprovaram que não existiam modelos a serem seguidos na elaboração de seus
376
registros. Cada diário de bordo apresentava uma forma-conteúdo diferente, que
revelava estas coleções de itens que acionam memórias de momentos importantes, ou
pequenos fragmentos do processo vivido, organizados de maneira peculiar por cada
artista-criador, refletindo as particularidades, ou as individualidades, de cada autor.
Ao longo dos encontros foi perceptível que os diários de bordo dos discentes
começaram a ganhar configurações, por vezes, surpreendentes, tanto para os docentes,
quanto para os próprios autores. Alguns deles se caracterizavam pelo forte caráter
textual, descrevendo com precisão os encontros em sala de aula e registrando as
diferentes opiniões expressas pela turma durante as discussões dos textos. Outros,
possuíam maior apelo visual, podendo um deles a ser encarado como um portfólio ou
livro-objeto. E, ainda, existiam aqueles que mesclavam diferentes materialidades ou
expressões de registro em sua constituição.
Com isto, pude identificar, mais uma vez, a riqueza desta ferramenta de registro
e documentação, uma vez que a mesma permite que aspectos intrínsecos ao processo
criativo possam ser acessados por meio de registros ou formas de apresentações não
realizadas necessariamente na linguagem utilizada na constituição do objeto artístico
que documenta a feitura. O que é recorrente nas produções cênicas. Trata-se, portanto,
de um acervo de possibilidades expressivas que revelam o itinerário de criações, em
contínuos movimentos tradutórios.
Esta profusa rede intersemiótica, como atenta Salles no livro já citado, pode
servir a diversos pesquisadores como material de investigação sobre diferentes
processos de criação, ou em criações artísticas específicas, como no caso abordado neste
artigo. De natureza fragmentária, os vestígios de uma criação ajudam-me a compreender
o pensamento dos discentes ou artistas-criadores, sem desconectá-los das circunstâncias
temporais, espaciais, sociais e econômicas que estão inseridos, e que se relacionam com
a obra gerada, contribuindo então para as reflexões que aqui começo a apresentar.

III

Como primeiro aspecto a ser destacado sobre o processo ensino-aprendizagem-


criação realizado em Teatro Infantojuvenil cito o desejo de nós, docentes, de que os
discentes assumissem (também) o compromisso de que eram corresponsáveis pela

377
construção do conhecimento acerca do nosso tema de estudo. Seguindo a proposição do
pedagogo Paulo Freire (2003, p. 47), de que "ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar as possibilidades para sua própria produção ou a sua construção", é que eu e
Ricardo estruturamos nossa proposta de ensino-aprendizagem-criação na unidade
curricular sobre a qual falo. Uma proposta cuja autonomia de cada estudante era
incentivada.
Centrados nesta ideia, no início do semestre, começamos a provocar os discentes
quanto a escolha da temática do exercício cênico que construiríamos na unidade
curricular. O que, posteriormente, poderia ter como matriz dramatúrgica um texto
teatral, ou não. Neste aspecto, após levarmos materiais de estímulo sobre temas tabus
que interessavam a nós, docentes, propomos que cada um dos estudantes deveria
compartilhar com a turma um tema que lhe interessava e lhe movia enquanto artista-
criador. Aquilo que desejava dizer em cena.
Neste ponto, acredito ser pertinente destacar a importância que a imagem da fita
de Mobius - espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita,
após efetuar meia volta em uma delas – simbolizava para mim durante este processo.
Representando um caminho sem início ou fim que, embora aparente ter dois lados,
possui apenas um, esta imagem servia-me como metáfora para nós, discentes/docentes
ou artistas-criadores, que, concomitantemente, como seres sensíveis e culturais3
levávamos nossas inquietações pessoais e sociais para nossa criação.
Muitas foram as temáticas abordadas, tanto por nós, docentes, como pelos
discentes nos encontros dedicados a escolha do tema sobre o qual trabalharíamos. Entre
estas destacam-se, por exemplo: o abuso sexual infantil, a morte, a necessidade de se ter
um final feliz em uma história infantojuvenil, a homossexualidade, o poliamor, a
fetichização da figura feminina na indústria de propagandas, entre outras. Esta
pluralidade de interesses nos fez deparar com a necessidade de escolher um único tema
de interesse comum à turma. E ele foi as estruturas familiares.

3
Terminologias que se referem às diferentes facetas que integram e constituem o ser humano, e utilizadas
neste texto a partir da leitura do livro de Fayga Ostrower indicado nas referências deste artigo.

378
Este tema, naquele momento tão explorado nas mídias 4, revelou-se, com um
olhar mais apurado, provocador e desafiante para uma criação artística que procurava
fugir de clichês sobre o assunto, e possibilitou que muitas discussões, no que diz
respeito à sua essência - as múltiplas configurações das famílias contemporâneas -, e às
questões que se desdobram de sua exploração – como, por exemplo, as questões de
gênero(s), que serão apresentadas neste texto – tomassem conta de nossos encontros em
sala de aula. Um tema que, tal como desejávamos no começo de nossas atividades do
semestre, mobilizava efetivamente os estudantes tanto em suas esferas sensíveis, quanto
culturais/sociais.
A respeito deste desejo, a fala de uma das discentes – Gabriela Neves - de
Teatro Infantojuvenil, registrada em seu texto de finalização do semestre, contido em
seu diário de bordo, torna-se importante ao revelar que o processo de construção do
conhecimento na unidade curricular atravessou ―os muros‖ do contexto acadêmico e se
expandiu-se para o seu cotidiano, invadindo o seu dia a dia. O que, revendo os diários
de bordo de outros estudantes ou artistas-criadores, parece ser uma constante. Nas
palavras de Gabriela:

Eu me envolvi muito, e como o tema era família eu envolvi minha família, eu


levei a família da irmã da minha mãe que é minha tia e madrinha e que eu
sou madrinha da filha mais nova dela, da Mari, que gosta de montanhas-
russas, que pediu uma arma de presente (assim como o irmão dela) e prefere
futebol ao balé, e ela e sofre algumas repressões por isso, tanto da família
quanto da escola. Eu levei o tabu pra mesa de almoço dos finais de semana.
(NEVES, 2015, não paginado)

IV

A proposta de investigação sobre os temas tabus no Teatro Infantojuvenil não


foi uma novidade inaugurada pela experiência de ensino-aprendizagem-criação que aqui
venho narrando. Trata-se de uma proposição da Associação Internacional de Teatro
para Infância e Juventude (ASSITEJ), a partir do trabalho desenvolvido pela finlandesa
Katariina Metsalampi a argentina e Maria Inês Falconi que integravam o Comitê
4
Na época de oferecimento da unidade curricular, a regulamentação ou reconhecimento de núcleo
familiar como estrutura formada não apenas por homem (pai), mulher (mãe) e filhos vinha sendo
discutida no Congresso Nacional, sendo a proposta posta em votação através de uma enquete pública no
endereço eletrônico deste órgão do governo.
379
Executivo desta associação, no ano de 2007. O desafio proposto por ambas era reunir
artistas de diferentes regiões e culturas numa oficina-laboratório de uma semana
dedicada à investigação sobre temas considerados difíceis em montagens teatrais para
criança e jovens, já que diferentes culturas têm diferentes maneiras de abordar estes
temas.
Há na(s) nossa(s) cultura(s) temas tabus? Quais são? Como Podemos abordá-
los no teatro voltado para as jovens gerações? Como apresentá-los? eram algumas das
perguntas cujas (novas) respostas caracterizavam-se como objeto de investigação de
participantes provenientes de contextos tão múltiplos, na oficina-laboratório ocorrida
em Caracas (Venezuela) em 2008. Além disso, estas mesmas interrogações começaram
a ganhar destaque nas proposições da ASSITEJ. Isto fez, por exemplo, com que os
textos oriundos do I Fórum Internacional de Investigadores e críticos de Teatro para
crianças e jovens (realizado em Buenos Aires em 2010), cuja temática eram os tabus no
Teatro Infantojuvenil, fossem publicados no Boletim dos representantes da associação
na Espanha.
Observando atentamente o processo criativo de Inventário de Coisas e Trecos,
ou ―Por que só de amor?‖, - nome escolhido pela turma para nosso exercício cênico -,
este se mostrou potente ao materializar as inquietações sobre o Teatro Infantojuvenil,
resultantes do encontro entre mim, Ricardo e os discentes. E, ainda, possibilitou, como
tão natural do fazer artístico, que refletíssemos sobre nossos próprios tabus, assim
como, a censura que exercemos sobre tudo aquilo que se relaciona às crianças e aos
jovens ao nos autocensurarmos. Ou seja: Pensarmos que determinado(a) assunto/forma
cênica não deve ser dito/apresentado(a) às jovens gerações.
A respeito da questão mencionada acima – a censura e a autocensura5 –, a
discente Katia Lourenço aponta em um trecho de seu diário de bordo que, durante o
semestre em que cursava Teatro Infantojuvenil, despertou para o fato de que durante
muito tempo a autocensura e a censura com relação ao que deve ser dito/apresentado às
crianças e aos jovens era tão habitual em seu cotidiano que nunca havia se atentado para
tal questão. E, consequentemente, refletido sobre a mesma. Para ela:

5
Vocábulos utilizados pela dramaturga canadense Suzanne Lebeau no artigo que compõe as referências
deste trabalho.
380
[...] eu não tinha ainda me dado conta que a questão do tema tabu na infância
é algo muito presente e inquietante artisticamente. Em minha vida, eu passei
depois de minha infância, pensando ou ouvindo o que poderia ser dito na
frente das crianças, mas isso é tão culturalmente intrínseco... (LOURENÇO,
2015, não paginado)

Para além do tema tabu estruturas familiares, percebo hoje que outros tabus tão
discutidos em sala de aula também foram para a cena em nosso exercício. E isto se
refere às configurações que quebram os cânones das produções voltadas para as jovens
gerações, no ocidente. Ou seja, a linguagem cênica também foi discutida no exercício
em questão em sua(s) constituição/forma-conteúdo, assim como, por meio das relações
formais que interligam os constituintes e os significados do espetáculo.
Conforme relata a americana Manon van de Water, uma das principais
pesquisadoras de teatro voltado para crianças e jovens no contexto internacional, em seu
artigo Tabúes en teatro para niños y jóvenes: una introducción, publicado no Boletín
Iberoamericano de Teatro para la infância y la juventude nº 9 (2011) – publicação da
ASSITEJ referida a pouco-, os tabus na cena infantojuvenil podem estar presentes na
própria morfologia, assim como na sintaxe e na semântica de uma produção. Para
Manon:

Os tabus podem se infiltrar no Teatro Infantojuvenil de várias maneiras: no


conteúdo, na forma e no estilo. Os tabus podem ser fáceis e ambíguos; sexo,
sexualidade, violência e linguagem ofensiva estão entre os tabus mais
comuns, e refletidos frequentemente em conteúdos ―seguros‖. Mas os tabus
podem ser ocultos e ideológicos. Teatro do absurdo para crianças e jovens,
finais abertos, tramas não lineares, imagens associativas e falta de
protagonistas ou personagens claros capazes de serem identificados são
muitas das vezes suspeitos. Nestes casos não está claramente diferenciada a
fina linha entre ―tabu‖ e ―polêmico‖ ou ―desafiante‖. (WATER, 2011, p. 36,
tradução nossa)

Deste modo, digo que ao elaborarmos um exercício cênico em que a não


linearidade, a não apresentação clara de um conflito, a ausência de cores primárias,
tanto nos figurinos, quanto na iluminação e no cenário, assim como, a proposição de
uma estrutura cenográfica não mimética se fazem presentes, conseguimos levar à cena,
grande parte dos aspectos discutidos em sala de aula. Em outras palavras: os tabus para
além das temáticas... agora infiltrados na constituição da linguagem cênica deste
exercício.
381
E, ainda, como me proponho a tratar, mesmo que brevemente, neste texto,
alguns aspectos intrínsecos à temática abordada – as (diferentes) estruturas familiares –
começaram a se fazer presentes em nossa criação com o desenvolvimento do processo
de construção do exercício cênico. Assim, alguns tópicos relacionados às questões de
gênero(s) ganharam significativa importância em nossa criação, conforme relato
adiante. Sendo, portanto, agora objetos dos quais tento me aproximar e sobre os quais
teço primeiros lampejos.

Inventário de Coisas e Trecos, ou ―Por que só de amor?‖ foi fruto de uma


criação coletiva da turma de Teatro Infantojuvenil, no qual discentes e docentes
experimentaram cenicamente seus questionamentos referentes aos tabus na cena
infantojuvenil atual. Estando os primeiros no papel de atores, e os segundos - eu e
Ricardo - de encenadores.
Partindo do tema estruturas familiares, tínhamos como objetivo não apresentar
didaticamente às crianças e aos jovens ―todas‖ as múltiplas formas de família existentes
em nossa sociedade, ou então, ―pregarmos a lição de moral‖ de que devemos respeitar
todas as famílias, independentemente de suas constituições, mas sim, possibilitar que
por meio da fruição do exercício teatral as crianças pudessem conhecer ou tomar
conhecimento de algumas das diferentes famílias que compõe nossa sociedade
atualmente, neste início do século XXI.
Duas foram as experiências de apresentação deste exercício cênico. Sendo a
primeira em sala fechada, no que denominamos como ensaio aberto para algumas
famílias convidadas6, e a segunda, no final do semestre – na semana de encerramento
das atividades do curso de Teatro -, aberta para toda a comunidade acadêmica, assim
como, para as famílias que haviam assistido ao exercício previamente. Durante a
realização do primeiro encontro com crianças e suas famílias, no meio do semestre

6
Por motivos de logística três foram as famílias convidadas. No entanto, apenas duas puderam estar
presentes. Sendo uma constituída por um pai, uma mãe e três filhos (duas meninas e um menino); e a
outra constituída por duas mães e um filho.

382
letivo, obtivemos - discentes e os docentes- alguns retornos sobre a criação, e, ainda,
pudemos nos questionar sobre o que vínhamos levando à cena.
Uma destas questões abordadas nesta conversa com o público após o ensaio
aberto foi a presença do amor, em sua acepção que evoca o relacionamento a dois -
encontro entre dois seres - e sexual, em todas as cenas que construímos – e daí vem a
interrogação que compõe o título de nossa criação: ―Porque só de amor?‖. Por que esta
abordagem, se nem sempre encontramos o amor em nossas vidas? Podemos ser felizes
e solteiros para sempre! foram uma das perguntas e uma das exclamações – expressa
em outras palavras – por uma das crianças em nosso primeiro encontro.
No entanto, as questões começaram a ficar ainda mais complexas adiante! Por
que todas as vezes que representávamos casais homossexuais, ou melhor, núcleos
familiares formados por homossexuais, recorríamos às Formas Animadas (em especial
aos objetos), enquanto que os casais heterossexuais ou os núcleos familiares formados
por heterossexuais eram representados diretamente pelos atores, sem intermediação de
objetos? foi a pergunta feita por uma das mães presentes neste encontro.
Durante certo tempo refleti sobre o porquê desta nossa atitude, por vezes
inconsciente, e que alteramos em cena para a apresentação final. Hoje, acredito que uma
possível resposta esteja em nossa autocensura enquanto criadores, tal como explicitado
neste texto mais acima. Como membros de uma sociedade em que, por vezes, o padrão
heteronormativo7 é inquestionado, o reproduzimos sem nos darmos conta. E, mesmo
evidenciando a possibilidade de existência de diferentes famílias – não constituídas
necessariamente por homoparentais ou por membros ligados por relações sexuais – de
certo modo, para nós artistas-criadores, era um tabu levar casais homossexuais à cena.
Como solução para a questão, propomos - eu e Ricardo - que todos os casais
apresentados durante o exercício fossem representados e apresentados por Formas
Animadas – ―coisas e trecos‖ – afim de que equalizar as diferenças entre casais
heterossexuais e homossexuais, sem que, no entanto, deixássemos de destacar as
particularidades e as diversidades que constituem os indivíduos que os formavam. Deste

7
Termo utilizado para se referir aos mecanismos por meio dos quais a norma heterossexual incide sobre
os sujeitos nas relações sociais, negando ou marginalizando a existência de múltiplas formas de
sexualidades, nas quais a heterossexualidade é uma das possibilidades. Sobre este tópico, o curta-
metragem Shame no more (1999), indicado nas referências deste trabalho constitui um interessante ponto
de partida para discussões sobre o tema.

383
modo, exploramos as possibilidades de constituição de famílias de objetos, através de
similaridades entre função, cor, tamanho, natureza do material constituinte e etc.,
conforme os espetáculos de Teatro de Objetos8 nos apresentam.
A respeito desta solução, cabe aqui destacar que na primeira cena do exercício
cênico, um casal de ―coisas‖ – dois seres representados e apresentados por uma atriz e
um ator metamorfoseados entre sacos de pano – contava a um entrevistador sobre seu
relacionamento, destacando como se conheceram, quais os planos para o futuro e etc.,
explorava o recurso de subversão da constituição dos gêneros9. Em outras palavras, não
nos apoiando na caracterização dos atores através de roupas – inseridas no contexto
binário masculino-feminino -, nem em gestos, olhares, ou estilística/estética corporal,
tentamos burlar o aprisionamento da representação do casal como homossexual ou
heterossexual, afirmando-o apenas como seres que se amam e escolheram estar juntos.

VI

Contudo, o caso relatado acima não foi apenas o único tabu – ligado às
questões de gênero – em nosso exercício e questionado em nosso primeiro encontro
com o público. Em outra cena, trabalhávamos com diferentes casais que constituíam
diferentes núcleos familiares. Para isso utilizávamos talheres (garfos para representar e
apresentar homens, e colheres para representar e apresentar mulheres). Logo no ensaio
aberto, uma questão sobre a manipulação destes utensílios domésticos nos foi colocada
por outra criança. E, esta se referia à necessidade de os atores ou as atrizes que
manipulavam os talheres serem do mesmo gênero que os objetos com os quais
trabalhavam, para que, assim, o espectador pudesse ter um maior número de
ferramentas que auxiliassem sua leitura.
Sendo assim, na cena, seguimos a recomendação de nosso espectador, e dois
atores passaram a manipular dois garfos, assim como, duas atrizes a manipular duas
colheres, estabelecendo relações entre si, e indicando a formação de dois casais

8
Para maiores informações sobre esta expressão teatral, consultar o artigo de autoria de Sandra Vargas
indicado nas referências deste trabalho.
9
Para maiores informações sobre questões de gênero(s), consultar o livro com organização de Guacira
Lopes Louro indicado nas referências deste trabalho.

384
homossexuais. Um formado por dois garfos, e outro por duas colheres, como é de se
supor. A respeito deste fato, a discente Roberta Liz evidencia em seu diário de bordo a
importância da troca de olhares entre as manipuladoras para que o estabelecimento da
relação amorosa entre as colheres pudesse ser convincente e clara em cena. O aspecto
que poderia parecer um tabu, à primeira vista, é tido como essencial para configuração
da poética da cena, tanto para o público, quanto para a discente. Para Roberta, ―o casal
homossexual não é claro. Se as duas manipuladoras se olharem na hora do ―namoro‖
talvez identifique esta leitura‖. (LIZ, 2015, não paginado).
Ainda a respeito desta cena, é interessante observar um trecho dos escritos do
diário de bordo da discente Giovanna Parra, referente à mesma cena, mas com relação
ao casal homossexual formado pelos dois garfos – manipulados por dois atores -, que,
em determinado momento, estabeleciam uma atividade sexual. Aos olhos da discente,
até a apresentação final do exercício, isto era um tabu. Sobre a cena, Giovanna tece esta
primeira consideração:

Acho super bonito o encontro deles e tudo mais, porém no momento em que
era pra ser o sexo o (nome do manipulador) bate os dois garfos para fazer o
barulho. Contudo é clara a imagem de um homem atrás do outro e do
movimento repetitivo. (PARRA, 2015, não paginado).

No entanto, ao perceber que a ato sexual apresentado de modo simbólico às


crianças e aos jovens durante o exercício cênico não tomou a proporção que imaginava,
a estudante revela em sua escrita – contida em seu diário de bordo – que seu receio
quanto à cena tratava-se, portanto, de uma espécie de autocensura. Ou ainda, uma
dificuldade em lidar com questões tabus, em especial de gênero(s), mesmo se
debruçando em uma criação que se propunha discutir tais aspectos.
Deste modo, torna-se evidente que muitas das vezes, se não, na maioria dos
casos, a indicação de um aspecto como tabu na cena infantojuvenil nada mais é do que
uma pré-analise realizada por um adulto sobre o que se pode dizer/apresentar às
crianças e aos jovens. E, em se tratando de questões de gênero(s) isto não é diferente.
Como pude narrar a pouco, para as crianças e os jovens o estabelecimento de uma
relação homossexual ou sexual cena, por exemplo, não era um problema ou algo jamais
visto.

385
Em tempos nos quais a informação não encontra barreiras para sua veiculação,
a criança e o jovem parecem não estarem excluídos deste contexto. Sendo assim, levar
ao teatro temas tabus, como as questões de gênero(s), não parece ser uma novidade, mas
sim, a possibilidade de que assuntos do cotidiano da sociedade como um todo –
crianças, jovens, adultos e idosos – sejam discutidos, pensados, repensados e
reformulados... E deixando de estarem à margem, não sejam mais tabus.

Referências:
BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

LEBEAU, Suzanne. De la censura y de la autocensura... . Boletín Iberoamericano de


Teatro para la infância y la juventude, ASSITEJ – Espanha, 2006, nº 7, p. 97-111.
(Tradução nossa)

LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo


Horizonte: Autêntica, 2000.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Imago


Editora, 1977.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado – Processo de criação artística. 4ª ed.


São Paulo: FAPESP – Annablume, 2009.

SHAME no more. Direção: John Krokidas. 1999. Filme disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=U37Zhut1ylM. Acesso em Outubro de 2015.

VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, ideias e reflexões. Móin-Móin:


Revista de estudos sobre Teatro de formas Animadas, Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC,
2010, Ano 6, nº 7, p. 27-43.

WATER, Manon van de. Tabúes en teatro para niños y jóvenes: una introducción.
Boletín Iberoamericano de Teatro para la infância y la juventude, ASSITEJ –
Espanha, 2011, nº 9, p.31-44. (Tradução nossa)

386

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