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ANAIS
ISSN: 978-85-69882-01-5
Uberlândia, MG
2015
Realização: Comissão científica:
Linha de Pesquisa em História e Cultura Adalberto Paranhos (PPGHI/INHIS/UFU)
Programa de Pós-graduação em História Alexandre de Sá Avelar
(PPGHI/INHIS/UFU)
Instituto de História
Ana Paula Spini (PPGHI/INHIS/UFU)
Universidade Federal de Uberlândia Cairo Mohamad Ibrahim Katrib
(FACIP/UFU)
Proponentes da Linha História e Cultura: Dulcina Tereza Bonati Borges
(PPGHI/INHIS/UFU) (NEGUEM/INHIS/UFU)
Maria Clara Thomaz Machado Florisvaldo Paulo Ribeiro Júnior
Mônica Chaves Abdala (PPGHI/INHIS/UFU)
Ivete B. S. Almeida (UNIMONTES)
Vera Lúcia Puga
Kátia Rodrigues Paranhos
(PPGHI/INHIS/UFU)
Organização dos anais: Marcelo Lapuente Mahl
Murilo Borges Silva (PPGHI/INHIS/UFU)
Maria Clara Thomaz Machado
Comissão organizadora: (PPGHI/INHIS/UFU)
Anderson Aparecido Gonçalves de Mônica Chaves Abdala
(PPGHI/INHIS/UFU)
Oliveira (DOCPOP/ INHIS/UFU)
Newton Dângelo (PPGHI/INHIS/UFU)
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib Vera Lúcia Puga (PPGHI/INHIS/UFU)
(FACIP/DOCPOP/INHIS/ UFU)
Dulcina Tereza Bonati Borges Apoio:
(NEGUEM/INHIS/UFU) Instituto de História
Ivete B. S. Almeida (UNIMONTES) Programa de Pós-graduação em História
Lucas Martins Flávio Universidade Federal de Uberlândia
(PPGHI/INHIS/UFU) PROPP
Lucas Henrique dos Reis PROEX
CAPES
(PPGHI/INHIS/UFU)
FAPEMIG
Maria Luzia Alves Brito DOCPOP
(PPGHI/INHIS/UFU) NEGUEM
Tadeu Pereira dos Santos DIRCO
(PPGHI/INHIS/UFU) FAU
ISSN: 978-85-69882-01-5
SUMÁRIO
Aline Ferreira Antunes; Beatriz Eugênio Maia; Regina Ilka Vieira Vasconcelos -
RELATO DE EXPERIÊNCIA: A HISTÓRIA ENSINADA NO CAMPO. ................... 6
Andrezza Braz B. Nunes; João Felipe P. Espindola; Tatiane Brito Martins; Gilma
Maria Rios - ENTRE ESPANADORES E CANETAS: TRABALHO E EDUCAÇÃO
NAS RELAÇÕES DE GÊNERO NA CIDADE DE ARAGUARI. .............................. 16
Resumo : O presente texto apresenta o relato de experiência à docência proposta pela disciplina
Estágio Supervisionado no curso de História da Universidade Federal de Uberlândia –
INHIS/UFU -, contemplando observação e regência. As atividades foram realizadas na Escola
Municipal Leandro José de Oliveira, localizada na zona rural de Uberlândia. Inicialmente, a fim
de nos ambientarmos com a realidade desta escola, tomamos conhecimento do que seria
educação rural/do campo à luz da legislação vigente, além do próprio assunto a ser trabalhado
na regência cujo tema foi a Revolução Francesa, tendo como um dos destaques a luta das
mulheres e a sua participação neste contexto histórico. Propomos aqui uma breve análise do que
se entende por educação rural/do campo, além das escolhas metodológicas utilizadas para a
execução das aulas junto aos alunos do 8º ano desta escola cuja atividade final baseou-se na
representatividade da mulher no quadro La liberte guidant le peuple (1830), de Eugène
Delacroix (1798-1863).
Introdução
Este relatório apresentará o relato de experiência à docência proposta pela
disciplina Estágio Supervisionado V no curso de História da Universidade Federal de
Uberlândia – INHIS/UFU -, contemplando observação e regência, cujas atividades
foram realizadas junto aos alunos dos 7º ano da Escola Municipal Leandro José de
Oliveira, localizada na zona rural de Uberlândia. Inicialmente, a fim de nos
ambientarmos com a realidade desta escola, fez-se essencial um conhecimento prévio
do que seria educação rural/do campo à luz da legislação vigente por ser esta uma
realidade diferente da qual estamos habituados, já que todos os estágios anteriores
foram realizados em escolas do perímetro urbano.
Neste sentido, buscamos entender a carga ideológica na construção do conceito
de Educação Rural no Brasil, de que estudar seria, inicialmente, uma necessidade
apenas dos habitantes das cidades, já que para os moradores das zonas rurais a educação
1
Discente do curso de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade Federal de Uberlândia –
INHIS/UFU. aline_robinha@yahoo.com.br
2
Discente do curso de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade Federal de Uberlândia –
INHIS/UFU. bia.biblio@yahoo.com.br.
3
Orientadora do trabalho e docente do curso de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade
Federal de Uberlândia – INHIS/UFU. reginailkavasconcelos@gmail.com.
6
formal não teria nenhuma serventia. Posteriormente, uma educação aplicada na zona
rural foi entendida como desconexa à realidade do campo, o que resultou em novas
discussões e rupturas dessa visão maniqueísta da cidade enquanto civilização e do rural
como sinônimo de atraso, resultando na necessidade em aplicar uma educação no/para o
campo, ao considerar culturas, saberes e valores específicos. 4
A próxima etapa da atividade de Estágio foi pensar a temática a ser abordada
durante a regência, cujo tema foi Revolução Francesa. Neste sentido, após consulta ao
livro didático adotado pela escola, escolhemos por direcionar a aula quanto aos
conceitos de Revolução e Liberdade à luz de charges e imagens contidas no livro
didático, além da ênfase, ao final, na participação das mulheres no contexto da
Revolução Francesa tendo como representação o quadro La liberte guidant le peuple
(1830), de Eugène Delacroix (1798-1863).
Mostraremos como foi possível abordar questões de gênero junto aos alunos ao
vislumbrar a participação das mulheres no contexto da Revolução Francesa, mas,
sobretudo, como o enfoque relativo aos acontecimentos históricos destaca apenas o
protagonismo masculino sem ao menos nos perguntarmos onde estariam as mulheres, as
crianças, os trabalhadores e tantos outros personagens que participaram da história,
direta e indiretamente. Diante disso, como não resgatar o poema do alemão Bertold
Brecht (1898-1956), ―Perguntas de um operário letrado‖:
4
SANTOS, Jânio Ribeiro dos. Da educação rural à educação do campo: um enfoque sobre as classes
multisseriadas. IV Colóquio Internacional ―Educação e Contemporaneidade‖. Laranjeiras, Sergipe:
setembro/2010, p.3. Disponível em: http://www.gepec.ufscar.br/textos-1/textos-educacao-do-campo/da-
educacao-rural-a-educacao-do-campo-um-enfoque-sobre-as-classes-multisseriadas/view. Acesso em:
08/maio/2015.
7
A eterna Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os construiu?
Sobre quem triunfavam os césares?
A tão decantada Bizâncio era feita só de palácios?
Mesmo na legendária Atlântida
os moribundos chamavam pelos seus escravos
na noite em que o mar os engolia.
O jovem Alexandre conquistou a índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha ao menos um cozinheiro consigo?
Quando a ―Invencível Armada‖ naufragou,
dizem que Felipe da Espanha chorou
Só ele chorou?
Frederico II ganhou a guerra dos Sete Anos.
Quem mais ganhou a guerra?
Cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes da vitória?
De dez em dez anos um grande homem.
Quem paga as suas despesas?
Tantas histórias.
Tantas perguntas.‖ ·.
Por fim, apresentaremos o resultado das atividades propostas aos alunos
contendo duas perguntas abertas sobre o que fora visto em sala de aula como forma de
avaliação.
Uma vez que nossa proposta de estágio era na escola rural, tornou-se necessário
um estudo prévio do que se entende por educação rural, educação no campo e quais as
especificidades deste modelo de educação. Para isto diversas leituras acadêmicas ou
legais foram necessárias. A partir delas percebemos por exemplo que a nomenclatura já
sofreu modificações inclusive refletindo uma ideologia de educação. Explicamos: de
educação rural para Educação do Campo (no campo e para o campo). Na perspectiva de
8
Guhur e Silva (2009)5 a troca de nomenclatura é dotada de significados na medida em
que a educação rural era entendida pelo Estado como uma forma de educação para os
trabalhadores, isto é, focada em uma instrumentalização da mão de obra, preparo para o
mercado de trabalho no campo. A educação no campo por sua vez visa uma educação
crítica, discutindo-se temas políticos, econômicos, sociais. Sobre isto, Ferreira (2011)
completa que a educação no e do campo está se contrapondo ao modelo urbano e
tecnocrata de educação (p. 3), isto é, atualmente, no Brasil, já há uma discussão sobre as
diferenças entre a educação no campo e a urbana.
Apesar de a maior parte da população residir na cidade, é preciso uma educação
que atenda às necessidades da população rural.
Para Santos, citando autores como Sérgio Leite (2002), Miguel Arroyo (2007) e
Munarim (2006), ―o campo sempre foi visto como lugar de atraso, uma realidade a ser
superada e, por esse motivo, as políticas sociais e educacionais não foram vistas como
prioritárias para esses povos.‖ (apud SANTOS, 2010, p. 2). Neste sentido, a educação
no campo não pode ser voltada à ideia de daí extrair benefício para a vida na cidade,
nem mesmo de urbanizar o espaço rural, ou ainda de formar mão de obra que deverá se
estabelecer na cidade, mas sim, uma educação focada nas necessidades e anseios dos
camponeses. Na compreensão de Caldart (2002), os povos do campo devem ser
atendidos por políticas de educação que garantam seu direito a uma educação que seja
No e Do campo. Conforme esclarece a autora: ―No: o povo tem direito a ser educado no
lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e
com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e
sociais‖ (SANTOS, 2010, p. 18).
A partir das leituras feitas pudemos observar a escola e também as aulas do
professor Diego Leão de maneira crítica e percebermos como estão articulados os
5
Apud OLIVEIRA; BOIAGO, 2012, p. 5.
9
componentes que devem compor a educação: o currículo, o próprio PPP (Projeto
Político Pedagógico) da escola, o corpo docente, a gestão escolar, a organização do
espaço físico, e mais os sujeitos que a compõem, sobretudo os alunos, conforme
destacamos na sequência.
10
FIGURA 1 – fotografia da fachada de entrada da escola.
Fonte: as autoras.
6
É importante ressaltar que a professora responsável pela disciplina esteve presente nas orientações de
planejamento das aulas de intervenção e também assistiu às mesmas, na escola rural, fazendo suas
observações e contribuições para um bom andamento da atividade.
11
Fizemos uso de estratégias durante as aulas tais como a utilização do livro
didático juntamente com os alunos, o uso de imagens, aula expositiva: roda de conversa
–estratégia para que os alunos possam construir a aula juntamente com as estagiárias –
para que eles pudessem perceber como se constrói um ambiente favorável para o
florescimento de ideias revolucionárias que irão guiar a Revolução Francesa.
Ao final da segunda aula os alunos foram convidados a fazerem uma atividade
que será exposta em seguida.
12
FIGURA 2 - atividade desenvolvida com os alunos.
Fonte: as autoras.
7
LEITE, Mazé. A política e os artistas. 29/setembro/2014. Disponível em:
http://artemazeh.blogspot.com.br/search/label/Delacroix. Acesso em: 08 mai. 2015.
8
SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Campus, 1997, p. 408.
13
Considerações finais:
A partir da experiência deste estágio foi possível percebermos mais uma
possibilidade de trabalho do professor: o ensino em zona rural e como este deve se
estruturar. Além disto foi de extrema importância um estudo prévio sobre as
perspectivas governamentais de educação rural, partindo da nomenclatura. Para encerrar
este relato de experiência em estágio V, trazemos uma imagem, uma fotografia
retratando este espaço escolar à partir da porta da sala do 5º ano, com a presença da
professora e dos alunos, bem como a vista das janelas e porta.
Fonte: as autoras.
Referências bibliográficas:
CALDART, Roseli Salete. Por uma Educação do Campo: traços de uma identidade em
construção. In: KOLLING, Jorge Edgar; CERIOLI, Paulo Ricardo; CALDART, Roseli
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – Brasília: SECADI,
2012. 96 p
14
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). SOIHET, Rachel. História
das Mulheres. In: ___________. Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 408.
UBERLÂNDIA. Lei nº 11.444, de 24 de julho de 2013. Institui a rede pública
municipal pelo direito de ensinar e de aprender no município de Uberlândia e dá outras
providências. Diário Oficial do município, Uberlândia, MG, 26 de julho de 2013.
Sites consultados:
https://www.youtube.com/results?search_query=cantinho+da+hist%C3%B3ria+Revolu
%C3%A7%C3%A3o+Francesa
http://aprovadonovestibular.com/revolucao-francesa-%E2%80%93-causas-resumo.html
https://www.youtube.com/watch?v=6GeCxlSpJxk
http://www.brasilescola.com/historiag/revolucao-francesa.htm
15
ENTRE ESPANADORES E CANETAS: TRABALHO E EDUCAÇÃO NAS
RELAÇÕES DE GÊNERO NA CIDADE DE ARAGUARI
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as construções de gênero que
contribuem para reforçar papeis sociais femininos ―próprios‖ para as mulheres, como
trabalho doméstico, cuidadoras e educadoras. A reflexão parte do diálogo realizado por
meio de entrevistas com trabalhadoras domésticas, cuidadoras no geral e educadoras do
ensino fundamental, residentes em Araguari, cidade do interior mineiro, moradoras de
bairros em que, os alunos do curso de medicina atuaram nos anos de 2014 e primeiro
semestre de 2015, bem como no debate com a bibliografia sobre o tema. Ao realizar a
revisão da literatura, observamos que o trabalho feminino, em geral, aparece no interior
dos estudos sobre as mulheres, especialmente na perspectiva das relações de gênero,
sendo que, as relações de gênero são fruto de um processo pedagógico que se inicia no
nascimento e continua ao longo de toda a vida, reforçando a desigualdade existente
entre homens e mulheres, especialmente em torno da sexualidade, da reprodução, e
divisão sexual do trabalho. Trata-se de uma tentativa de construir uma discussão das
relações de gênero nas perspectivas de gênero, trabalho e educação, percebendo
permanências e mudanças do papel das mulheres no mundo trabalho. Neste contexto as
imbricações entre teoria de gênero e trabalho feminino se faz presente na trajetória de
mulheres que se ocupam destes trabalhos como atividade principal. Não nos
esquecemos que a sociedade tem modelos ideais e espera que os sujeitos sigam estes
moldes, que reproduza estes papéis ideais ao reforçá-los e naturalizá-los, portanto não
tem um papel neutro nesse processo. Assim, trabalhar gênero, em um espaço específico
junto à educação e o trabalho torna possível ações mais efetivas na desconstrução de
modelos tão arraigados, construídos e estruturados em determinados momentos
marcados por relações de poder tanto no âmbito público como no privado.
1
- Aluna do Curso de Medicina do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC.
2
- Aluno do Curso de Medicina do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC.
3
- Aluna do Curso de Medicina do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC.
4
- Professora Doutora em História e Coordenadora do Grupo de Pesquisa ―História, Gênero e Cotidiano‖
do Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos/IMEPAC. riosmaria@ig.com.br
16
radicais no estatuto social das mulheres. Com aumento expressivo da participação na
força de trabalho, queda da natalidade e relativo aumento do nível de escolaridade, mais
acesso à independência econômica e jurídica configuram novo quadro velado, que por
muitas vezes esconde uma outra realidade, que as estatísticas não apresentam. Uma vez
mais instruídas, as brasileiras vêm aumentando de forma significativa e constante sua
participação no mercado de trabalho; nesta década, ocorreu um incremento de 24% na
atividade feminina. O perfil da trabalhadora também mudou, a maioria é casada e tem
filhos. A maternidade já não é desculpa de afastamento do trabalho, para as mulheres,
sendo 44% da população economicamente ativa, continuam ativas na fase reprodutiva, o
que não ocorria anteriormente. Ao desenvolver o presente trabalho com o objetivo de
analisar as construções de gênero que contribuem para reforçar papeis sociais femininos
―próprios‖ para as mulheres, como trabalho doméstico, cuidadoras e educadoras em
Araguari, cidade do interior mineiro, onde prevalece a mão de obra assalariada no setor
primário e terciário para ambos os sexos. Porém, as desigualdades existentes na
sociedade brasileira e como não poderia deixar de ser em Araguari, refere-se às relações
de gênero, menos relacionada à questão econômica e mais ao ponto de vista cultural e
social, constituindo, a partir daí, as representações sociais sobre a participação da
mulher dentro de espaços variados, seja na família, na escola, igreja, nos movimentos
sociais, enfim, na vida em sociedade.
Em razão do avanço e crescimento da industrialização no Brasil, ocorreram a
transformação da estrutura produtiva, o contínuo processo de urbanização e a redução
das taxas de fecundidade nas famílias, acomodando a inclusão das mulheres no mercado
de trabalho. A partir da década de 70 até os dias de hoje, a participação das mulheres no
mercado de trabalho tem apresentado uma espantosa progressão. No entanto, o trabalho
das mulheres não depende tão somente da demanda do mercado e das suas qualificações
para atendê-la, mas transcorre também de uma articulação complexa de características
pessoais e familiares, como a presença de filhos, associada ao ciclo de vida das
trabalhadoras, à sua posição no grupo familiar como chefe de família devido à
obrigação de prover ou complementar o sustento do lar , são fatores que estão sempre
presentes nas decisões das mulheres de ingressar ou permanecer no mercado de
trabalho.
Para alcançar o objetivo proposto e resolver a problemática da pesquisa: O que
reforça o papel social das mulheres, em Araguari? elaboramos um questionário que
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abordava inúmeros temas como remuneração, escolaridade, provedor familiar,
conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, desejo de fazer algum curso superior, entre
outras perguntas. Foram entrevistadas 60 mulheres sendo estas professoras do Ensino
Fundamental (41,6%), donas de casa (16,6%) e cuidadoras no geral (41,6%). Entre elas,
33,3% trabalhavam em casa, 47% trabalhavam fora de casa e 20% em ambos. 81,6%
recebiam algum tipo de remuneração, sendo que 58,3% recebiam em média dois
salários mínimos. 51,6% trabalhavam fora para sustentar a casa. 80% dessas conhecem
alguma mulher que exerce a mesma função de um homem e recebe menos. Mais da
metade das entrevistadas (57%) eram casadas e com idade entre 15 e 45 anos; 87%
possuíam filhos sendo 83,3% entre um a três filhos. 41,6% das casas o marido era o
provedor, sendo a mulher em apenas 26,6% dos casos. Entre as casadas, 61,6% tinham
alguma ajuda de terceiros nas atividades domésticas. Quanto ao grau de escolaridade,
28,6% possuíam ensino fundamental incompleto e 25% ensino superior completo.
73,3% dessas mulheres fizeram ou tem vontade de fazer algum curso superior sendo a
área de humanas a mais procurada (48,3%). 63,3% tiveram apoio nos estudos e 60%
nunca foram informadas ou instruídas sobre os benefícios de se estudar. 78,3% gostam
da atual profissão. Enquanto 80% ouviram falar ou mesmo sabem como funciona a lei
Maria da Penha, sendo 20% nunca ouviram falar.
A maioria das entrevistadas considera o trabalho remunerado fundamental em sua vida.
Entretanto, é possível afiançar, que na esfera da oferta de trabalhadoras, têm havido
significativas mudanças. No entanto, ainda há resquícios de continuidades que
dificultam a dedicação das mulheres ao trabalho ou fazem dela uma trabalhadora de
segunda categoria, uma vez que, as mulheres seguem sendo as principais responsáveis
pelas atividades domésticas e pelo cuidado com os filhos e demais familiares, o que
representa uma sobrecarga para aquelas que também realizam atividades econômicas.
Como exemplo dessa sobrecarga, vemos nitidamente a grande diferença existente entre
a dedicação masculina e a feminina aos afazeres domésticos.
Outro exemplo a ser considerado diz respeito à desigualdade dos rendimentos
femininos frente aos masculinos, traço persistente, seja qual for o ângulo sob o qual se
analise a questão. As mulheres ganham menos que os homens involuntariamente do
setor de atividade econômica em que trabalhem. No ramo da educação, saúde e serviços
pessoais, espaço de trabalho tradicionalmente feminizado,
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Todas estas mudanças inserem-se em um contexto global de: privatização dos
serviços públicos, redução de direitos sociais e trabalhistas, políticas públicas mais
voltadas para os estratos mais pauperizados da população, flexibilização e precarização
das relações de trabalho, além de uma persistente taxa de desemprego. Isto gera um
contexto sócio histórico, marcado pela extrema concentração da renda e de
intensificação das desigualdades sociais, a mulher casada, com filhos menores na força
de trabalho, tentam se inserir no mercado de trabalho, chefiando muitas das famílias
brasileiras, conformando a chamada ‗feminização da pobreza‘ (BRITO, 2000). A
conjugação destes distintos fatores se insere no que vem se denominando ‗ajustes
neoliberais‘. Estudos apontaram, um contexto de crescente de precarização e
flexibilização das relações de trabalho, ocorre um incremento da inserção da força de
trabalho feminina no mercado de trabalho e maior vulnerabilidade das mesmas diante da
precarização das relações laborais (NOGUEIRA, 2006; ANTUNES, 1999). Este
processo teria como objetivo uma reorganização do sistema produtivo internacional, que
se aproveita dos baixos salários e da frágil regulamentação do trabalho em países em
desenvolvimento, com tendência de otimizar a superexploração da força de trabalho
feminina, como apontado por Brito (2000).
Vários estudos têm revelado que a ―proximidade entre casa e local de trabalho é
um dos critérios fundamentais de escolha de emprego para as mulheres, mesmo em
detrimento de outros fatores, como o salário e a satisfação profissional‖ (AQUINO et
al., 1995). Para muitas estar próxima dos filhos é uma das principais justificativas para
manterem empregos precários e mal remunerados. A ‗qualificação de gênero‘, constitui-
se como expressão do ‗amor materno‘ ‗vocação natural‘, socialmente desvalorizada,
sendo essa uma das razões pelas quais as trabalhadoras continuam a receber menores
salários, mesmo com existência de discursos que alçam as mulheres a uma situação de
poder e igualdade.
19
Essa forma de representação social da divisão do trabalho entre homens e
mulheres, sempre foi marcada pela relação entre produção e reprodução, mesmo antes
do capitalismo. Entretanto com o desenvolvimento do capitalismo, a força de trabalho é
vendida como uma mercadoria e o espaço doméstico passa a ser uma unidade familiar
de domesticação e disciplinarização da força de trabalho necessária para produzir
riqueza para uma minoria. Segundo Kergoat(2002), podemos observar que a
―estruturação atual da divisão sexual do trabalho surgiu simultaneamente ao
capitalismo‖ (pg. 234) e que a relação do trabalho assalariado não teria podido se
estabelecer na ausência do trabalho doméstico. A conformação dessa divisão sexual do
trabalho evidencia que a nova ordem social, estabelecida por meio dos interesses do
capital, para reestruturação da dominação patriarcal.
Essa visão da mulher, esses papeis, acaba por influenciar a forma como a mulher
se coloca no mercado de trabalho, a forma como os patrões e os homens em geral vão
21
tratar as mulheres. Essa visão vai influenciar tanto nas oportunidades de acesso ao
emprego, no tipo de trabalho, como nas condições em que se desenvolve o trabalho.
Conforme Bruschini (1998), a definição social dos papeis masculinos e
femininos no âmbito da família gera ―consequências diferenciais sobre um e outro sexo,
em sua participação no mercado de trabalho‖. A identidade da mulher como
trabalhadora, portanto, vai estar sempre associada a seu papel de reprodutora, originária
da mulher família, mãe, dona-de-casa vai estar sempre na frente. O trabalho, por
exemplo, é tratado no masculino e o trabalho produtivo é feito pelos trabalhadores. É ao
homem que se associa a imagem de trabalhador, de provedor da família. Essa imagem
da mulher vai trazer limitações a uma adequada colocação no mundo do trabalho,
mostrando no mercado a diferença de valorização, submetendo a mulher a maiores
jornadas de serviço com remuneração muitas vezes inferiores.
No campo produtivo, há uma concepção sobre o que é o trabalho de homens e o
trabalho de mulheres e há uma divisão de tarefas correspondente. Essa divisão incide
também sobre o valor do trabalho dos homens e das mulheres, expresso no valor
diferenciado e desigual de salários. Além disso, no trabalho produtivo há uma captura
das habilidades desenvolvidas no trabalho doméstico que, dessa forma, além de ser
apropriado como uma forma de exploração do trabalho das mulheres, e também
funcionar como meio de reafirmar a naturalização dessas habilidades, algo inerente à
concepção de um ser feminino e como justificativa da desigualdade salarial.
Essas imagens também influenciam às etapas iniciais da socialização dos
indivíduos e estão baseadas, entre outras coisas, na separação entre o privado e o
público, e na definição de uns como territórios de mulheres e outros como territórios de
homens. Por sua vez, essas ―imagens condicionam fortemente as formas (diferenciadas
e desiguais) de inserção no mundo do trabalho: tanto as oportunidades de acesso ao
emprego como as condições em que este se desenvolve‖ (ABRAMO, 1998:18).
A propósito de a imbricação entre relações de classe e relações de sexo, Kergoat
demonstra que não se pode tratar essas relações como hierárquicas, mas como
―coextensivas‖. Dito de outra maneira, isso significa que ―são conceitos que se
sobrepõem parcialmente, e não conceitos que se ‗recortam‘ ou que se articulam‖
(KERGOAT, 2002, p. 235). A coextensividade e a consubstancialidade das relações
sociais geram as relações sociais de raça, gênero e classe, se constituem em um
movimento marcado pelas contradições que formam a realidade social.
22
A divisão sexual do trabalho também aparece no interior da esfera do trabalho
reprodutivo através da distribuição desigual de trabalho entre mulheres e homens e de
uma diferenciação de tarefas, caracterizando outra consequência, a desqualificação do
trabalho da mulher. As habilidades manuais das mulheres reduziram-se a atividades
desvalorizadas e geralmente relacionadas a certos saberes femininos considerados
naturais, como, a destreza manual, a paciência para realizar tarefas monótonas e
repetitivas, e a atenção a detalhes. Essa visão é aproveitada pelos patrões que colocam
as mulheres em funções como, por exemplo montagem de peças miúdas e embalagens
na indústria eletroeletrônica, costura nos ramos têxteis, digitação nos bancos,
cuidadoras, educadoras, agentes comunitárias de saúde, entre outras.
23
inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível
envolve rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual tanto
entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto
movimento no emprego no chamado "setor de serviços", bem como
conjuntos industriais completamente novos em regiões até então
subdesenvolvidas (HARVEY, 1992:140).
É importante frisar que Harvey (1992) não concorda com a posição de que a
acumulação flexível já é totalmente hegemônica e tenha elementos novos que rompem
com antigos paradigmas da acumulação capitalista. Para ele a acumulação flexível deve
ser considerada uma combinação particular e, ser trabalhado elementos,
primordialmente antigos no âmbito da lógica geral da acumulação do capital.
Por fim, ficou claro que a falta de apoio e reconhecimento às mulheres no que
tange ao mercado de trabalho e educacional contribuem significativamente para que as
mesmas continuem subjulgadas. Fator imperioso, que não poderia deixar de ser citado é
o preconceito que ainda domina nossa sociedade, impondo as mulheres um papel
limitado e restrito ao espaço do lar e do cuidado para os familiares.
Referências Bibliográficas:
25
ÁVILA, M.B. FERREIRA, V. Trabalho remunerado e trabalho doméstico no
cotidiano das mulheres. Realização SOS CORPO Instituto Feminista para a
Democracia, Instituto Patrícia Galvão- Recife, SOS Corpo, 2014.
AQUINO, E.M.L.; MENEZES, G.M.S.; MARINHO, L.F.B. Mulher, saúde e trabalho
no Brasil: desafios para um novo agir. Cad. Saúde Pública, v.11, n.2, p.281-90, 1995.
BRITO, J.C. Enfoque de gênero e relação saúde/trabalho no contexto de
reestruturação produtiva e precarização do trabalho. Cad. Saúde Pública, v.16, n.1,
p.195-204, 2000. Disponível em: Acesso em: 17 fev. 2012.
BRUSCHINI, C. E LOMBARDI, M.R. A bipolaridade do trabalho feminino no
Brasil Contemporâneo. Cadernos de Pesquisa, julho 2000, n.110, São Paulo, Fundação
Carlos Chagas.
HIRATA,H. e KERGOAT D. A Classe Operária Tem Dois Sexos. In: Revista Estudos
Feministas. Rio de Janeiro, v.2, n.3/1994.
LOPES, MEYER WALDOW (orgs.). Gênero e Saúde. Porto Alegre: Ed. Artes
Médicas, 1996.
NOGUEIRA, C.M. O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho e na
reprodução: um estudo das trabalhadoras do telemarketing. São Paulo: Expressão
Popular, 2006.
26
UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO FEMININA E AS REFERÊNCIAS
CULTURAIS NA SAGA HARRY POTTER: QUANDO ATÉ MESMO A MAGIA
DIALOGA COM A REALIDADE
Arielle Farnezi Silva1
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar como as mulheres são representadas na literatura
contemporânea. Para tanto, foram utilizados os sete livros que compõe a saga Harry
Potter escrita por Joanne Rowling – publicados entre o final do século XX e início do
XXI. A narrativa se passa em 1990 na Inglaterra, num universo reservado aos bruxos,
onde não existe tecnologia e os ambientes nos remetem à era vitoriana. É possível
observar uma clara influência de elementos mitológicos e lendas antigas nas criaturas
presentes na história. No mundo paralelo àquele encontram-se os não-bruxos, chamados
muggles, que habitam uma Inglaterra moderna e invadida pela tecnologia. É importante
pensarmos que a série é um dos maiores sucessos literários do mundo, causando um
grande impacto cultural na sociedade contemporânea e dialogando com as referências
de arte popular, sendo na maioria dos casos o primeiro contato de crianças e
adolescentes com a literatura. No entanto, apesar das diferenças entre o mundo mágico e
o não-mágico, a série é composta por personagens que também enfrentam preconceitos
e dilemas morais, assim, nos deparamos com mulheres fortes e independentes. Além de
uma análise da representação feminina nesta obra, pretendemos observar de que
maneira essas personagens de destaque podem influenciar seus leitores e leitoras, nos
atentando também para as escolhas que a autora dos livros fez, como por exemplo,
escolher um personagem masculino para representar o herói da narrativa.
Em 1997 era lançado no Reino Unido o primeiro livro de uma série que, mais
tarde, se tornaria um fenômeno mundial. Intitulado ―Harry Potter e a Pedra Filosofal‖3,
1
Graduada em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: arielle.sh@hotmail.com
2
Graduando em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: olaviobis2@gmail.com
3
Os nomes utilizados no decorrer deste trabalho manterão a grafia da tradução brasileira da obra.
27
a obra conta a história de um garoto, Harry Potter, órfão, que vive com os tios, os quais
não dão à mínima importância para ele. Para surpresa de Harry, ao completar onze anos
de idade, ele descobre ser diferente de seus tios e primo, ele é, assim como seus pais,
um bruxo e possui uma vaga na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Nos dez anos
que se passaram a autora, J.K. Rowling, publicou outros seis volumes: ―Harry Potter e
a Câmara Secreta‖, ―Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban‖, ―Harry Potter e o Cálice
de Fogo‖, ―Harry Potter e a Ordem da Fênix‖, ―Harry Potter e o Enigma do Príncipe‖ e
―Harry Potter e as Relíquias da Morte‖ contando as aventuras do jovem e seus amigos
na imensidão do mundo mágico. Escrito, inicialmente, para crianças, os livros da saga
de Harry Potter se tornaram mundialmente conhecidos, foram traduzidos para mais de
60 línguas e conquistou fãs de todas as idades. Entre os anos de 2001 e 2011, os livros
foram adaptados para o cinema, em oito produções – o último livro, ―Harry Potter e as
Relíquias da Morte‖, foi dividido em dois filmes - de sucesso estrondoso, arrecadando
em todo o mundo cerca de 7,723 bilhões de dólares, tornando-se uma das franquias
mais lucrativas da história 4, ultrapassando grandes sucessos como ―Star Wars‖ e ―O
Senhor dos Anéis‖.
4
Dados referentes até o ano de 2014, recolhidos do site
http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-110358/.
28
questões, influenciam a mentalidade de seus fãs e podem refletir no comportamento dos
mesmos.
Em Harry Potter, temos personagens que nos fornecem uma análise rica,
destacamos as seguintes: Minerva McGonagall, Gina Weasley e Hermione Granger.
Minerva McGonagall – em uma análise superficial, é uma personagem tradicionalmente
típica na literatura infanto-juvenil contemporânea; é uma professora mais velha, leciona
transfiguração em Hogwarts, extremamente reservada que adota uma postura
conservadora e é bastante rigorosa, mas em contraponto é bondosa, inteligente e está
sempre à disposição para ajudar –, a personagem Gina Weasley – irmã do melhor amigo
de Harry, uma estudante que tem a primeira aparição na obra aos 11 anos de idade, no
início da narrativa Gina é uma menina tímida, mas ao desenrolar da história se
transforma em uma mulher forte e independente –, e Hermione Granger – melhor amiga
de Harry, no início da narrativa é considerada uma ―irritante sabe-tudo‖, mas no
decorrer do primeiro livro se mostra uma menina gentil e corajosa. Quando prestamos
mais atenção nessas personagens descobrimos que elas fogem da figura feminina
retratada de forma submissa presente em grande parte dos livros de literatura.
29
de toda dificuldade conseguiu sozinha alcançar sucesso escrevendo uma das obras mais
lidas do mundo. Rowling acredita no feminismo e defende os direitos das mulheres em
campanhas e mostra sua opinião em redes sociais e entrevistas. Sobre a escolha do
protagonista da série, o que podemos dizer é que ela não colocou uma personagem
mulher no papel central da história, mas Harry Potter também não é o herói perfeito. O
personagem possui vários defeitos e dificuldades e na maioria dos casos precisa da
ajuda de sua melhor amiga Hermione Granger para sair de situações difíceis. Além do
mais, Harry é rodeado de mulheres fortes, inteligentes e independentes.
Para isso, destacamos, mais uma vez, Hermione Granger, melhor amiga da
Harry, melhor aluna da classe e, muitas vezes, apresentada como a bruxa mais
30
inteligente da sua idade. Ela esteve ao lado do melhor amigo durante todos os desafios,
sempre contribuindo para que ele se saísse bem e enfrentasse-os com êxito, pensando
em soluções que outras pessoas não pensariam.
É claro que Harry Potter não é uma série composta apenas de mulheres
―exemplos‖ e independentes, na história temos exemplos de duas mulheres que são
bastante parecidas com aquelas retratadas em romances tradicionais, são elas: Molly
Weasley (bruxa, mãe de Rony Wealey, melhor amigo de Harry) e Petúnia Dursley (tia
de Harry que não pertence ao mundo mágico). Porém, é interessante analisar o papel de
cada uma delas ao longo da série.
31
Molly Weasley possui uma outra particularidade: é a única personagem – e aqui
falando em personagens femininos e masculinos – pertencente ao lado ―bom‖ da
história que efetivamente tira a vida de outra personagem que, não por mera
coincidência, é Belatriz Lestrange. Como dito, Belatriz tem prazer em fazer o mal,
prazer esse que supera até o de seu mestre. Molly, ao matar Belatriz, mostra que é capaz
de tudo para defender sua família e impedir que o mal assuma o controle. Para muitos
dos fãs, a batalha entre as duas é mais impactante do que a batalha entre Harry Potter e
Lorde Voldemort. As duas representam então o extremo mal e o extremo bem.
De uma maneira geral, nos filmes – e, como dito anteriormente, nos livros – que
possuem narrativas de ação e aventura, existe uma tendência por parte dos roteiristas em
colocar as personagens femininas em situações de risco, forçando essas mulheres
―indefesas‖ esperar serem salvas pelo herói do enredo. O impacto disso em uma
adaptação pode ser bem grande, principalmente quando as personagens femininas
possuem personalidades fortes e se tornam essenciais para a construção da narrativa.
Esse é exatamente o caso da saga Harry Potter.
O mesmo não acontece com a personagem Gina que, durante todas as oito
produções cinematográficas, permanece na sua condição passiva e incapaz de ação. As
mudanças construídas na personalidade dela são um dos maiores desapontamentos nos
fãs da saga, já que no livro a personagem é de extrema importância e constantemente
participante de todos os acontecimentos. O que, talvez, possa ter motivado essa bruta
mudança na personalidade da Gina nos livros e nos filmes, seria o fato de que, ao final,
ela seja o par romântico do protagonista Harry Potter. Levamos assim, como
possibilidade e não algo confirmado, que os produtores não quiseram correr o risco de
ter a imagem de herói, do personagem principal, apagada ou ofuscada por sua
namorada.
Para finalizar, podemos perceber que as relações entre gênero e literatura podem
ser vistas de diferentes maneiras e seu estudo é de extrema importância, seja
academicamente ou socialmente, cheios de questionamentos e possibilidades para a
pesquisa. O impacto que a saga Harry Potter tem em jovens de todo o mundo é
relevante para mostrar que, independente das características que estamos acostumados a
ver, onde o homem é sempre o herói, as mulheres podem sim ter papéis importantes e
influenciadores para todas as gerações.
Fontes
34
Bibliografia
BURKE, Peter. ―Origens da história cultural‖. In: Variedades de história cultural. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 10 – 37.
SCOTT, Joan Wallach. ―Gênero: uma categoria útil de análise histórica‖. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995.
35
DR. FANTÁSTICO E A IRONIA NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA
HISTÓRICA – A REPRESENTAÇÃO DA MULHER
Resumo:
Introdução
A sutileza – qualidade que o senso comum muitas vezes atribui ao sexo feminino
– é a principal marca de Kubrick quando o diretor representa as questões de gênero em
Dr. Fantástico (1964). Desde mensagens passadas de forma metafórica apenas por meio
de imagens e sons, se utilizando de todo o potencial de sua mídia, até detalhes de roteiro
como os nomes dados às personagens do longa são exemplos de como o fino humor
1
Graduando no curso de História da UFU, bolsista CNPq. Email: arcarvalho94@hotmail.com
36
crítico está entranhado na obra, requerendo atenção e inteligência por parte do
espectador, uma vez que assim como no xadrez, o movimento de Kubrick já foi
realizado e cabe agora ao público como em sua própria jogada, interpretá-lo.
Tal sutileza é composta pela grande carga de ironia que está presente no filme.
Nesse aspecto, os estudos feitos pelo historiador Hayden White e os conceitos por ele
utilizados servirão de base para uma análise no campo linguístico presente no longa. O
autor expõe o que é a ironia, qual o seu papel na história, e dialoga com os conceitos
37
tratamento dado à mulher, pela propaganda, pela ideologia patriarcal que permeava a
mentalidade da época, com seu auge nos anos 1930, sendo que em 1932 foi instaurado o
que ficou conhecido como Código Hays, que buscava moralizar a produção
hollywoodiana nos padrões impostos pela sociedade patriarcalista. Aquilo que
permearia com mais força principalmente os anos 1950, 60 e 70, os movimentos
feministas e dos direitos da mulher, combateria esse tipo de prática que até então era
considerado o normal e natural. Utilizando o panorama da década anterior à produção
de Dr. Fantástico, é possível encontrar tal imagem representada nos filmes, a qual sofreu
um processo de mutação enquanto o lugar da mulher na sociedade começava a mudar.
Nos últimos anos desse período, já próximos à década de 1960 – marcada pelos
movimentos de contracultura e pela revolução sexual – nota-se que, apesar da grande
opressão ainda vigente sobre a mulher, há certa abertura para discussão, como no filme
―Desk Set‖ (1957), que carrega uma das marcas dos filmes de seu tempo, a escolha dos
atores Spencer Tracy e Katharine Hepburn, que protagonizaram diversos longas juntos,
sendo a maioria deles constituído de comédias. Se durante os anos 1930 a 50 a mulher
era representada no cinema como o objeto de desejo do homem, antes disso os anos
1920 traziam a imagem da mulher com um grande poder sexual, o que viria a ser
retomado em meados de 1950, subvertendo a relação na qual a mulher era objetificada,
prática que se apoiava nas diretrizes do controle estabelecido pelo Código Hays.
Durante a década de 1960, na qual foi produzido o filme, os movimentos sociais
de contracultura tomaram força, como foi dito anteriormente. Com isso, é possível
perceber certos aspectos políticos desses movimentos permeando o longa, assim como
sua crítica virá a permear as mentes dos jovens que iam assistir a ele em sua estreia em
1964, instigando-os a promover questionamentos e tomar atitudes contra um sistema ao
qual não eram favoráveis. Como exalta James Boxen em seu artigo ―Just what the
doctor ordered‖:
38
war demonstrations in New York, Chicago, and Washington. (BOXEN,
1995)
Tanto em Desk Set como em diversas outras comédias protagonizadas por Tracy
e Hepburn, a mulher aparecia sempre poderosa, segura e com atitude, mas também com
uma representação do ―lado frágil‖ do sexo feminino, na medida em que no filme
citado, nas cenas em que a personagem Bunny Watson (Hepburn) encontrava o homem
pela qual havia se apaixonado, Richard Summer (Tracy), ela não se continha e caía de
amores por ele, saindo de sua posição de mulher poderosa – inclusive daquela
construída por sua posição empregatícia – e se transformava novamente na mulher que
poderia ser controlada e usada pelo homem, assim como o gênero era pintado 20 anos
antes. A mudança, e aí se insere a crítica feita de modo bem-humorado sobre toda essa
opressão, é que, vendo esse comportamento, uma das amigas de Bunny sempre goza
dela, apontando como seu comportamento era errado, e como agindo dessa forma ela se
fazia de ―estepe‖ para aquele homem.
Representações e Metáforas
Dr. Fantástico, de forma bastante crítica apesar de sutil alguns anos depois, tem
em si questionamentos parecidos com os do filme citado anteriormente, uma vez que o
diretor cria uma situação na qual os homens têm todo o poder do mundo em suas mãos e
mostra a fragilidade e a imaturidade masculina nesse contexto. Nele, o elenco é formado
basicamente por homens que são retratados de forma que é possível perceber suas
tensões e conflitos sexuais, pelo modo como se comportam principalmente em
discussões uns com os outros, pelos objetos fálicos que portam e manipulam, e através
dos nomes dos personagens principais.
Desde o grande charuto que quase não sai da boca do General Ripper até a
enorme bomba nuclear na qual o Major King (Kong) cavalga em direção a um final da
humanidade com características de um orgasmo, uma liberação de toda aquela
sexualidade reprimida durante todo o filme, os objetos manipulados pelos personagens
do longa remetem ao órgão sexual masculino, dando a ideia de que eles precisam
compensar alguma coisa, de que são inseguros consigo mesmos e que procuram se
reafirmar a partir dessa masculinidade exacerbada que têm em mãos. Aliado a isso, os
39
nomes dados a cada um dos personagens principais também são alusões sexuais, e
representam certos aspectos das características de cada um.
Anthony Macklin, crítico de cinema americano, escreve um artigo de 1965, um
ano após o lançamento do filme, tratando exatamente desse assunto. Tal artigo foi
enviado à Kubrick, no que ele respondeu em uma carta formal ter gostado muito de lê-
lo, e que achava que Macklin teria descoberto uma forma muito atraente de ver o filme.
O diretor mantém seus comentários nessa profundidade pois, diz ele na mesma carta,
prefere deixar com que seus filmes falem por eles próprios. Nesse artigo, alguns dos
personagens principais são elencados e é feita uma correlação entre seus nomes e suas
características, no cunho sexual.
Começando pelo General Jack D. Ripper, é dito que seu nome é uma alusão ao
assassino sexual inglês Jack o Estripador, do final dos anos 1880. A construção de um
personagem com um comportamento tenso, obsessivo, paranoico e frio pode ter em uma
de suas raízes elementos dessa interpretação. Durante todo o longa, ele aparece com um
grande charuto fumacento na boca, e em grande parte do tempo carrega uma grande
metralhadora, símbolos fálicos que lhe dão a sensação de poder, mesmo tendo perdido o
controle sobre a própria mente em meio a sua paranoia anticomunista.
O General Buck Turgidson tem em seu nome duas referências ao seu gênero.
Seu primeiro nome é uma gíria em inglês que remete à um homem viril, e seu
sobrenome significa ―inchado‖ ou ―túrgido‖, como o órgão sexual masculino quando
ereto. É o único homem a ter contato direto com uma mulher durante todo o filme, e é
representado como um adolescente que, mesmo em meio a um turbilhão tenso de
discussões e debates sobre a bomba atômica que ameaça cair e destruir o mundo, atende
à ligação da sua amante (que é também sua secretária) e fala sobre seu relacionamento e
o quanto de atenção ele dá a ela. Na cena, Turgidson sussurra ao telefone, como para
esconder o que fazia dos olhos do presidente, e quando desliga dá um olhar para ele
como se soubesse ter feito algo errado, mas que esperava não ser pego pela malcriação.
While the bomb is a masturbation tool for the characters, the film acts as a
device for the audience, the critics, and even Stanley Kubrick himself.
Psychoanalytically, as described by Peter Baxter in Wide Angle, the film
arouses a sexual desire in the viewer through the only scene that features a
woman, which is displaced onto the military-sexual images within the film
(35-40) (BOXEN, 1995)
When asked if she has fond memories of working on Stanley Kubrick's "Dr.
Strangelove," Tracy Reed emphatically responds, "Oh yes, lots!". But Reed,
who played "Miss Foreign Affairs," Gen. Buck Turgidson's comely secretary,
concedes, in a phone call from London, that there were times on the set that
were "very alarming"."I was the only woman in it and I was wearing a bikini
the whole time," Reed remembers, and when Kubrick decided to open the set
to the press, "there were all these reporters staring at me. It was dreadful."
Reed landed the part after she met Kubrick with some friends at dinner. "We
chatted," she says, "and he asked me to do it." Despite overexposing her to
the media, Reed says Kubrick was "wonderful." George C. Scott, who played
Gen. Turgidson, was "a darling, absolutely sweet," and the film's star, Peter
Sellers, was "a sad man who never quite knew who he really was."
(BERGMAN, 1994)
41
Na única cena em que Reed aparece no filme (desconsiderando aquela na qual só
se ouve sua voz quando fala pelo telefone com seu amante) ela está, como a própria
disse, ―sempre usando um bikini‖. Além disso, outro fato em especial chama a atenção
ao espectador mais atento: em sua primeira cena, a atriz aparece de bruços em uma
cama, e quando o telefone toca, ela se levanta um pouco, apoiando-se em um dos
braços, fazendo possível notar a presença de óculos escuros. Quando assume essa
posição, que mantém por alguns segundos enquanto nota que Turgidson não pode
atender a ligação, percebe-se uma alusão à uma famosa cena cunhada pelo mesmo
diretor dois anos antes, em Lolita. O bikini, a posição do apoio em um só braço e os
óculos, aliados ao ângulo adotado pela câmera e o fato de ambos os filmes serem
filmados em preto e branco (no caso de Dr. Fantástico por escolha estilística),
constroem uma cena parecida demais com a do filme mais antigo para ser apenas uma
coincidência.
Lolita tem sua trama formada pela tensão sexual entre um professor de meia idade e
uma adolescente de 14 anos. As interseções entre a temática sexual e o conteúdo crítico
de Dr. Fantástico são inúmeras e estão embrenhadas durante todo o longa, além do caso
mais explicito da objetificação da única mulher do filme. Tais alusões servem, na maior
parte do tempo, para tornar imatura e satirizar a imagem do homem poderoso que toma
todas as decisões e está sempre certo adotada em tantos filmes, e claro, na sociedade em
si.
Conclusão
2
Try a Little Tenderness (1932) de Harry M. Woods, Reginald Connelly, e Jimmy Campbell
42
demonstra a ironia que se seguirá no decorrer do filme, pois ilustra o contexto de um
ataque bélico como algo romântico, sutil e sexual.
Enquanto todo o filme retrata uma tensão com a iminente explosão das bombas,
tal sentimento também é sexual. A sensação de um aprisionamento claustrofóbico dos
sentidos paira durante todo o longa, tendo na imagem final da explosão atômica sua
liberação, seu orgasmo máximo, ao mesmo tempo que o personagem de Dr. Strangelove
se levanta da sua cadeira de rodas e grita ―Mein Fürher, eu posso andar! ‖, momento no
qual ele finalmente tem seus planos de caráter nazista com perspectivas de
consolidação.
Referências Bibliográficas
BERGMAN, Anne. 'Dr. Strangelove' and the Single Woman. 10 de julho de 1994.
Acessível em http://articles.latimes.com/1994-07-10/entertainment/ca-14050_1_tracy-
reed último acesso em 17/10/2015.
BOYER, Paul. "Doutor Fantástico (Doctor Strangelove)". In. CARNES, Mark C., org.,
Passado Imperfeito – A História no Cinema, ed. Lago, 1997, pp. 266 – 269.
43
BOXEN, Jeremy. Just what the doctor ordered. 19 de abril de 1995. Queen‘s
University, Canadá. Acessível em http://www.visual-memory.co.uk/amk/doc/0029.html
último acesso em 17/10/2015
CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick, ed. Cosac Naify, 2013.
GELMIS, Joseph. "An Interview with Stanley Kubrick (1969)". In. The Film Director
as Superstar, ed. Doubleday and Company, 1970.
LAGNY, Michèle. ―História e Cinema‖, In. GARDIES, René (org.). Compreender o
cinema e as imagens ed. Armand Colin, 2007 pp 113-144
LINDLEY, Dan. What I Learned Since I Stopped Worrying and Studied the Movie: A
Teaching Guide to Stanley Kubrick's Dr. Strangelove, University of Notre Dame,
setembro de 2001, pp 663 – 667.
MACKLIN, Anthony F. Sex and Dr. Strangelove. 1º de junho de 1965. Acessível em
http://tonymacklin.net/content.php?cID=167 último acesso em 17/10/15
MALAND, Charles. Dr. Strangelove (1964): Nightmare Comedy and the Ideology of
Liberal Consensus. In. American Quarterly, Vol. 31, No. 5. pp 697 - 717
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e
Terra, 2010.
WHITE, Hayden. Meta-História: A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo:
Editora da USP, 1995.
44
A ESTREITA RELAÇÃO ENTRE PARTO, SEXUALIDADE E AS OBRAS DE
HELEN KNOWLES
Este trabalho busca desvendar quais os caminhos históricos que a sexualidade e o parto
tomaram, isto, com o objetivo de compreender algumas representações de parto e prazer
na Arte Contemporânea. A investigação inicia-se pelo levantamento de algumas
questões sobre parto e sexualidade, em seguida discutindo a relação entre parto e
orgasmo e por fim trazendo algumas representações de parto na Arte Contemporânea.
Tomando como base a História da sexualidade, de Foucault (1988) e o Processo
Civilizador, de Norbert Elias (1990), traçamos um caminho para entender como algumas
normas e procedimentos que encerraram a sexualidade sob a ótica da vergonha e do
silêncio, podem ter afetado nossa relação com o ato de parir. Verificaremos com o
estudo da história da sexualidade, por exemplo, como o corpo da mulher foi qualificado
e desqualificado como objeto saturado de sexualidade, e à partir desta elevada potência
sexual teve que ser contido e controlado, por vários agentes, inclusive a maternidade.
Considerando a produção em Arte Contemporânea, descobriremos que várias artistas
tem tratado o assunto do parto em suas obras, muitas delas já integrando acervos de
Instituições Culturais e Museus. Grande parte destas produções apresentam a mulher à
partir de aspectos de poder, segurança e força, e não mais imagens de uma maternidade
doce, amorosa e sutil. Finalmente, partindo das obras da artista Inglesa Helen Knowles,
seus depoimentos e comentários críticos publicados acerca de sua produção,
mostraremos como pode surgir uma nova imagem sobre o parto, uma imagem repleta de
prazer e poder. Por aproximações e distanciamentos entre a teoria e as obras de arte
tentaremos compreender esta nova perspectiva em relação ao parto e a sexualidade na
Arte Contemporânea.
1
Docente da Área de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia, Mestre
em Arte (UnB), Doutoranda em História (UFU). e-mail: clarissa.m.borges@gmail.com
45
orgasmo? Será que as imagens e seu uso podem nos oferecer caminhos para investigar
estas questões?
Segundo Foucault, o assunto do sexo foi trancado no quarto do casal no séc.
XIX, mas o mesmo não aconteceu com o parto. Este, foi arrancado da casa, da
intimidade e levado para os hospitais. O parto se tornou asséptico, limpo, higiênico e
realizado por especialistas, os médicos, com a desculpa da segurança e do salvamento de
vidas. Se sobre o sexo ―O casal, legítimo e procriador, dita a lei.‖ (FOUCAULT, 1988,
p. 09), com o parto hoje quem manda é a medicina. A religião institui e indicou o que
deve ser sentido pela boa mãe em seu parto: a dor. Depois da dor o medo: da morte, do
corpo defeituoso, de sua própria fragilidade feminina garantida até por experiências
científicas. A mulher então sede, precisa de ajuda, não dá mais conta de parir, foi dito a
ela tantas vezes que é frágil, delicada e sensível que ela está convencida e já performa
como tal.
No campo dos estudos sobre a sexualidade FOUCAULT (1988) estabelece
quatro ―conjuntos estratégicos, que desenvolvem dispositivos específicos de saber e
poder a respeito do sexo‖ (1988, p.114). Um deles é a histerização do corpo da mulher,
―processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado e desqualificado –
como corpo integralmente saturado de sexualidade‖, este corpo com elevada potência
sexual teve que ser contido e controlado, pela medicina, pela sociedade, pela família e
pela maternidade. A maternidade seria uma das formas mais duradouras de conter o
corpo feminino, pois a vida que ela produz deveria também garantir, por uma
responsabilidade quase biológica, durante todo o período de educação da criança
(FOUCAULT, 1988, p. 115).
O convencimento e inabilidade de lidar com a sexualidade, e consequentemente
com o parto, está no cerne do processo civilizador. Segundo Norbert Elias (1990), o
silêncio sobre as sensações prazerosas do corpo é imposto na infância e segue
emudecido até a vida adulta, ele chama este processo de ―conspiração do silêncio‖. O
autor esclarece que em meados do século XVI era comum e natural falar a uma criança
sobre prostitutas e de sua função, cita inclusive materiais didáticos onde constam tais
conteúdos. Mas nos séc. XIX e XX ―é proibida a simples menção de tais opiniões e
instituições na vida social e referências a ela na presença de crianças são um crime que
lhes macula a alma ou, no mínimo, um erro muito grave de condicionamento.‖ (ELIAS,
1990, p. 176).
46
Enquanto o assunto da sexualidade é tratado com vergonha e embaraço, o parto é
completamente eliminado das discussões. Podemos observar isso pelas inúmeras
histórias criadas para tratar da chegada do bebê em casa. Na publicação ―A Educação
das meninas‖, de Von Raumer em 1857:
As crianças devem ser deixadas por tanto tempo quanto for possível na crença
de que um anjo traz para a mãe os bebês. Esta lenda, costumeira em algumas
religiões, é muito melhor do que a história da cegonha, comum em outros
lugares. As crianças, se realmente crescem sob os olhos da mãe, raramente
fazem perguntas a esse respeito... nem mesmo se a mãe é impedida pelo parto
de tê-las em volta de si... Se meninas perguntarem mais tarde como bebês
chegam ao mundo, deve-se responder que o bom Deus da à mãe o bebê.(...)
As meninas devem se contentar com essas respostas em cem casos, e constitui
dever da mãe ocupar os pensamentos das filhas de modo tão completo, com o
belo e o bom, que elas não tenham tempo para pensar nesses assuntos. (...)
Uma moça bem educada sentirá daí em diante vergonha ao ouvir coisas desse
teor. (RAUMER citado por ELIAS, 1990, p.179-180)
2
Este é o modelo que encontra-se em vigor em vários países como Brasil, França e Estados Unidos. Mas,
na Inglaterra por exemplo, o contato com o médico só é realizado se algo de errado acontece durante a
gestação ou trabalho de parto.
47
somente consequência. Do outro, sexo e prazer sem objetivos reprodutivos.
Provavelmente no primeiro grupo temos muitas mulheres parindo para reproduzir. No
segundo, muitas mulheres tranquilas com seu prazer e sexo, mas sem o objetivo
reprodutivo.
A situação é complexa, pois, aproximar o parto do prazer pode ser associado
também a uma visão da mulher como objeto sexual e impor uma nova sensação
obrigatória para o parto: o orgasmo. Mas, continua sendo muito curioso como o
contrário disto é facilmente aceito, o completo distanciamento do parto e da sexualidade
feminina é proposto, e muitas vezes imposto, pela substituição do ato de parir pela
cirurgia cesariana. No Brasil, onde a sexualização do corpo feminino é extremamente
valorizada, observamos um crescente aumento do número de cesarianas, que alcança
hoje mais de 50% das mulheres3.
Segundo a antropóloga Carmen Tornquist (2002) na década de 80, uma segunda
geração de obstetras que estudava parto sem dor, publicou livros que davam ênfase à
dimensão sexual do parto associando o momento de parir com o orgasmo. São eles:
Frederck Leboyer, Michel Odent e Moysés Paciornik. Suas obras ainda permanecem
dentro do ideário contemporâneo dos movimentos de Humanização do Parto, que vem
acontecendo em todo mundo e no Brasil especialmente desde a década de 80.
Outro aspecto ligado ao parto e que vem sendo citado pelo movimento da
Humanização do Parto, segundo Tornquist (2002), seria o resgate do instinto no ato de
parir, característica perdida da mulher, e que a aproximaria do animal. Neste sentido,
podemos voltar ao texto de Norbert Elias (1990) sobre o processo civilizatório e
encontraremos nele a descrição sobre como, e quais são, os agentes que promoverão a
eliminação do instinto no processo de civilização do impulso sexual:
3
Segundo matéria veiculada na BBC e Folha de São Paulo em abril de 2014: ―Com 52% dos partos feitos
por cesarianas – enquanto o índice recomendado pela OMS é de 15% -, o Brasil é o pais recordista desse
tipo de parto no mundo. Na rede privada, o índice sobre para 83%, chegando a mais de 90% em algumas
maternidade. A intervenção deixou de ser recurso para salvar vidas e passou, na prática, a ser regra‖
(Mariana Della Barba e Rafael Barifouse,
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/04/140411_cesareas_principal_mdb_rb.shtml)
48
proibições sociais tornam-se cada vez mais parte do ser, de um superego
estritamente regulado. (ELIAS, 1990, p. 186-187).
Apesar de as mulheres darem à luz desde o início dos tempos e de seu corpo
estar programado para a reprodução da espécie, as práticas e os costumes que
envolvem o nascimento e o parto têm variado ao longo do tempo e nas
diferentes culturas. Como escreveu o historiador francês Jacques Gélis, o
nascimento não se restringe a um ato fisiológico, mas testemunha por uma
sociedade, naquilo que ela tem de melhor e de pior. Essa visão do parto como
um evento cultural – seja realizado entre tribos ditas primitivas, seja em uma
maternidade de ponta em uma cidade de Primeiro Mundo – é recente.
(MOTT, 2009, p.399)
4
Lembramos que em Artes Visuais, estes espaços/instituições são importantes agentes legitimadores.
Encontramos várias obras que refletem questões sobre o parto em coleções específicas de arte no Museu
da Maternidade em Nova Iorque e na Birth Rites Collection em Londres.
49
mulher à partir de aspectos de empoderamento, segurança e força, e não mais imagens
de uma maternidade doce, amorosa e sutil (BORGES; STRACK, 2002, p.109).
Podemos citar como exemplos o trabalho ―Yo mama‖ (1993) da artista Renée
Cox; a série fotográfica ―New Mothers‖ (1994) de Rineke Dijkstra; e as imagens do livro
de artista ―Kinderwunsch‖ (2008) da artista Ana Casas Broda; e mais recentemente o
trabalho a partir de apropriações de imagens ―Heads of Women in Labour‖ (2011) e
―Youtube Series‖ (2012) e de Helen Knowles.
A reunião entre parto e sexualidade pode ser observada principalmente nas obras
da artista Inglesa Helen Knowles. Vemos nestas obras imagens de partos orgásticos
apropriados pela artista, que além de atuar como artista visual, também é curadora da
única coleção de arte do mundo dedicada ao parto. Tal instituição é mantida pela Royal
College of Gynaecologists and Obstetricians em Londres e pela Salford University
Midwifery Department.
Encontramos na Inglaterra um espaço propício para que apareçam outros
aspectos da gestação e parto. Este é um país que ainda mantém como base do
atendimento ao nascimento a presença das enfermeiras obstétricas e não do médico.
Notamos inclusive que estas diferentes áreas de conhecimento mantém esta coleção de
arte, a escola de ginecologia e obstetrícia e o departamento de Enfermagem Obstétrica.
A presença desta coleção de arte e de uma curadora/artista como diretora, demonstra o
interesse do meio acadêmico e da Universidade nas possíveis relações entre parto e arte.
De alguma forma, parece-nos que aproximar o saber do parto com o saber artístico
estabelece também a aproximação do nascimento com a sensibilidade humana.
Neste sentido, notamos que a obra ―Heads of Women in Labour‖ (2011) de
Helen Knowles tenta aproximar o ato de parir com o ato sexual. O forma de produção
destas obras é um dado importante para estas imagens, a artista copia e recorta cenas de
vídeo do youtube, fotografando projeções ou captando a imagem diretamente da tela do
computador. Desta forma, reorganiza as imagens e acentua aquilo que já era evidente
nos partos: o prazer. Esta forma de produção da imagem assemelham-se com o que
Tadeu Chiarelli chamou de ―fotografia contaminada‖ onde ―artistas manipulam o
processo e registro fotográfico, contaminando-os com sentidos e práticas oriundas de
suas vivências e do uso de outros meios expressivos.‖ (CHIARELLI 1999).
50
Artista: Helen Knowles (London, b.1975) Artista: Helen Knowles (London, b.1975)
Título: ―Annabel‘s birth‖ Título: ―Youtube screen grab German birth vídeo‖
Série: Heads of Women in Labour Série: Heads of Women in Labour
Data: 2011 Data: 2011
Local: Inglaterra Local: Inglaterra
Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper. Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper.
61 x 61 cm. Edition of 2 61 x 61 cm. Edition of 2
Fonte: Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/work/he http://www.helenknowles.com/index.php/work/hea
ads_of_women_in_labour/ ds_of_women_in_labour/
Artista: Helen Knowles (London, b.1975) Artista: Helen Knowles (London, b.1975)
Título: ―Youtube screengrab ‗Chase Andrews Título: ―Youtube screen grab of ‗Shiloh‘s quick and
waterbirth‘‖ peaceful waterbirth
Série: Heads of Women in Labour Série: Heads of Women in Labour
Data: 2011 Data: 2011
Local: Inglaterra Local: Inglaterra
Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper. Técnica: 2 colour screen-prints on fabriano paper.
61 x 61 cm. Edition of 2 61 x 61 cm. Edition of 2
Fonte: Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/work/he http://www.helenknowles.com/index.php/work/head
ads_of_women_in_labour/ s_of_women_in_labour/
51
Artista: Helen Knowles (London, b.1975)
Titulo: ‗A szülés természete‘ The natural
way of birth
http://www.youtube.com/watch?v=CH0s
RTYd17I‖
Série: Youtube
Data: 2012
Técnica: Four-colour screen-print on
Fabriano paper 101 x 148 cm Edition of 5
Fonte:
http://www.helenknowles.com/index.php/
work/youtube_series/
52
Nas duas séries, Helen Knowles impõe modificações a estas imagens, uma delas
seria a transformação de vídeo em fotografia, que isola o personagem e o torna estático.
Desta forma, a artista seleciona aquilo que quer mostrar em sua obra, seu ponto de vista
sobre as imagens de parto postadas na internet. Para além do fato dos vídeos em sua
maioria mostrarem partos com orgasmo, as imagens acima mostram um momento de
imenso prazer que se assemelha as imagens de cenas de sexo.
O recorte da imagem proposto na primeira série ―Heads of Women in Labour‖,
nos distancia do que realmente está acontecendo: um parto. Vemos cabeças e rostos de
mulheres em êxtase, que dificilmente sem lermos o título associaremos ao parto. Pelo
exposto no início do texto, podemos afirmar que o processo civilizatório nos encheu de
vergonha quanto ao sexo e ao prazer. Mais difícil então seria associar a imagem da
maternidade; sempre doce, gentil e assexuada, com o gozo evidente das imagens em
preto e branco.
Para o filósofo francês Jean Baudrillard, em A Arte da Desaparição (1997), o
homem teria criado tecnologias para produção de imagens por causa do esvaziamento da
realidade. Segundo ele, as técnicas de captação de imagem foram criadas na era
industrial, que é o momento onde começa o desaparecimento do real. Dessa maneira a
realidade teria achado um meio de se transformar em imagem e não o contrário. Talvez
não foram as tecnologias e os meios (media) que causaram o famoso desaparecimento da
realidade. Pelo contrário, é provável que todas as nossas tecnologias surgiram pela
extinção gradual da realidade. (BAUDRILLARD, 1997).
Os procedimentos de captura e reapresentação da imagem nos trabalhos de Helen
Knowles tratam do ato de parir, evento fisiológico que vem se extinguindo por inúmeros
procedimentos médicos, e portanto podem demonstrar o que Baudrillard aponta, o
desaparecimento do real se transformando em imagem. Segundo a própria artista:
O trabalho apresentado em ‗Youtube Series‘ se apropria e re-apresenta as
experiências filmadas destas mulheres, conectando-as com uma preocupação
internacional maior, que considera a mídia social como ferramenta de
democratização de experiências que podem ser freqüentemente controladas e
censuradas. (KNOWLES, 2014)
53
poderem parir, existe a necessidade de deixarem que ela conduza seu próprio trabalho de
parto, e de como a escolha pela via vaginal do parto é uma escolha de poder viver todos
os aspectos de seu corpo, incluindo sua sexualidade. Esta estratégia feminina é chamada
pela intelectual argentina Beatriz Sarlo (1997) de bricolage: ―produzindo novos assuntos
públicos a partir de antigos papéis e funções tradicionais. (...) Paixões e virtudes
privadas se tornaram a base da ação pública: o privado se torna público quando as
feministas reivindicam em todo mundo.‖ (SARLO, 1997).
Não podemos esquecer que estas obras de Helen Knowles carregam a referência
original de suas apropriações, tanto no título como na decisão de manter nas imagens
características visuais originais das imagens em vídeo com pouca resolução, ressaltando
portanto o local público de onde vem estas imagens, lugar acessível de qualquer lugar do
planeta, que torna o evento privado do ato de dar a luz em evento público.
Considerando que artistas são produtores de objetos culturais, Helen Knowles ao
capturar imagens públicas da intimidade do parto, pode estar defendendo a continuidade,
ou, a devolução da sexualidade ao parto, da potência da mulher para parir. Vemos as
ações das artistas também como uma postura política, já que este aspecto social tem sido
por longo tempo e ainda frequentemente colocado em dúvida pelos procedimentos
médicos e desvalorização do corpo feminino. Esta e outras artistas mostram um parto
que foge do estereótipo aceito da dor, da vergonha ou do completo silêncio. Mostram
mulheres que descumprem a imagem da mãe verdadeira, doce e gentil. Revelam então
uma mulher que, ao se tornar mãe, ao parir, está em tal poder e liberdade com seu corpo,
que consegue ter prazer. Mas será que assim seria se seus desejos não houvessem sido
reprimidos? Se o assunto não fosse velado provavelmente estas imagens não fariam
sentido, elas só tem potência porque mostram algo que foi proibido, negado e silenciado:
o conhecimento sobre nossa sexualidade.
54
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MOTT, Maria Lucia. Parto (Dossiê). Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano
10, p. 399-401, 2º sem. 2002.
RENASCIMENTO DO PARTO. Direção: Eduardo Chauvet e Erica de Paula. Brasil:
Chauvet Filmes e Masterbrasil, 2013.
SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias: Intelectuais, Arte e Meios de
Comunicação. São Paulo: EdUSP, 1997.
56
PERFORMANCE, CORPO E GÊNERO: A OPRESSÃO DOS CORPOS EM
TRÂNSITO
Simone de Beauvoir
Resumo
Esse trabalho de pesquisa e investigação do processo de criação em arte da
performance, desenvolvido para a apresentação da monografia de conclusão do Curso de
Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia, sob orientação da Profª M.
Clarissa Borges, aborda o assunto das violências veladas que a mulher sofre ao longo da
vida, nas relações de gênero marcadas por um domínio masculinista. O questionamento
feito na elaboração da pesquisa estabelece uma reflexão feminista e feminina sobre essas
relações de opressão que subordina o papel da mulher numa sociedade machista. Na
materialização do conceito de violência velada, trago o corpo como ferramenta da obra
de arte da performance, representando por meio das interferências sofridas, a violação,
as afetações e marcas de uma violência silenciosa e invisível.
Palavras-chaves: Performance; Violência Velada; Mulher
Olympe Gounges
1
Universidade Federal de Uberlândia - Graduação em Artes Visuais. claudiasph0608@gmail.com
57
dando ênfase na recorrência das violências veladas, que muitas vezes se encontra
interligada intrinsecamente às violências explícitas.
O meu olhar para o tema das violências contra a mulher se justifica por minhas
vivências pessoais e subjetivas como mulher, e pela percepção do mundo exterior e
observações das relações em que nós mulheres estamos inseridas socialmente, nas
implicações desse contexto social e político que interioriza como cultura o sistema dessa
violência simbólica e dominação masculina.
Outra estudante a enfrentar tal desafio foi Malala Yousafzai que ao sair da escola,
a menina paquistanesa, à época com 15 anos, estava prestes a embarcar no ônibus de
volta para casa quando foi alvejada com tiros por membros do Talibã, grupo
fundamentalista que é contra a educação feminina. Malala foi escolhida como alvo, por
ser a autora do blog ―Diário de uma estudante paquistanesa‖. Ela publicava textos sobre
a sua vontade de estudar em um país onde, só por ser mulher, a dificuldade do acesso à
educação era ainda maior. (Veja, julho, 2013, PP.68/69)
No cenário brasileiro, destaque para a agressão machista sofrida pela deputada Jandira Feghali.
De maneira ofensiva o deputado federal Alberto Fraga se dirigiu à deputada durante sessão que
votava medidas provisórias de ajuste fiscal, e declarou que ―quem fala como homem
deve apanhar como homem‖, referindo-se à postura altiva de Jandira frente à agressão
que sofreu do deputado Roberto Freire. Na sessão, Freire segurou e empurrou seu braço
numa típica postura autoritária e machista.
60
―Há milhares de anos, na esmagadora maioria das sociedades, as mulheres não
são iguais aos homens. Não ganham salário igual, e esse não é o maior problema.‖
argumenta o professor Renato Janine Ribeiro, titular de Ética e Filosofia na USP, escreve
na página do ZH caderno PrOA. Para apontar as diferenças de gênero implícitas nas
relações, ele conta a experiência impar da subjetividade de uma mulher que adentra um
botequim em determinada hora:
E segue pontuando que não existe igualdade plena, mesmo salário, mesmas
chances de promoção, ou direito de ir e vir, apesar de ser este um direito reservado a
todos na Constituição desde 1891, não acontece de fato na realidade machista.
(BRASIL, ZH, 2015)
61
Os crimes de feminicídio têm devastado o Brasil. O estudo do Ipea revelou a
tragédia do machismo no Brasil2. Segundo o documento:
―A violência contra a mulher compreende uma ampla gama de atos, desde a
agressão verbal e outras formas de abuso emocional, até a violência física ou
sexual. No extremo do espectro está o feminicídio, a morte intencional de uma
mulher. Podem-se comparar estes óbitos à ―ponta do iceberg‖. Por sua vez, o
―lado submerso do iceberg‖ esconde um mundo de violências não declaradas,
especialmente a violência rotineira contra mulheres no espaço do lar. A
obtenção de informações acuradas sobre feminicídios é um desafio, pois, na
maioria dos países, os sistemas de informação sobre mortalidade não
documentam a relação entre vítima e perpetrador, ou os motivos do
homicídio.‖ (IPEA, 2014)
2
A pesquisa Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil, coordenada pela técnica de Planejamento e
Pesquisa do Instituto Leila Posenato Garcia. De acordo com os dados da pesquisa, A taxa corrigida de
feminicídios foi 5,82 óbitos por 100.000 mulheres, no período 2009-2011, no Brasil. Estima-se que
ocorreram, em média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano.
62
sempre está em um nível consciente, tratamos da manutenção desse sistema na criação e
educação dos nossos filhos e alunos.
Ele vai nos dizer que a ordem social se estrutura como um mecanismo de uma
grande máquina simbólica que tende a legitimar a dominação masculina sobre a qual
se baseia: a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades
atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos. É a
estrutura do espaço, opondo o lugar de político e de negócios, reservados aos homens,
e o ambiente doméstico, reservado às mulheres, que no caso todo o trabalho de
socialização tende, por conseguinte, a impor-lhes limites. E traz o exemplo da jovem
cabila, ―que interioriza os princípios fundamentais da arte de viver feminina, da boa
conduta, inseparavelmente corporal e moral.‖ (Bourdieu, 2012, p.37) O comportamento
de submissão imposto às mulheres cabilas segundo o autor, representa o limite máximo
da que até hoje se impõe às mulheres como o sorrir, baixar os olhos, aceitar ser
interrompida. Como se assumir-se feminina pudesse apequená-la, as mulheres
permanecem encerradas em uma invisibilidade, enquanto os homens tomam maior lugar
com seu corpo, sobretudo em lugares públicos. (id, p. 38-39)
Por outro lado, também existe a construção social do macho. O homem tem que
assumir essa postura de virilidade, na necessidade de exercer e exibir uma
masculinidade para ser aceito no mundo macho que o rodeia. A virilidade, assim como
a dominação masculina é uma construção social contra a feminilidade, numa certa
repulsa e medo do feminino, construída dentro dos seres, muitos homens sofrem e são
oprimidos pelo próprio machismo.
63
(2009), esse movimento coletivo parte do reconhecimento das mulheres como específica
e sistematicamente oprimidas.
―Se hoje queimamos as bruxas, é por causa do seu sexo feminino‖, diz Jacques
Sprenger, inquisidor e teórico. No ano de 1515, a cidade de Genebra queimou em apenas
três meses, nada menos que quinhentas mulheres, na Alemanha o Bispado Bamberg
queima de uma só vez seiscentas, e o de Wurtzburgo, novecentas. As confissões eram
extraídas sob tortura. (id, p. 24-25)
Mas, se não estou enganada, é esta primeira jornada que contém a pista de
muita coisa que vem acontecendo à mulher desde então. E' uma estranha
cegueira da psicologia contemporânea não reconhecer a realidade do
entusiasmo que levava aquelas mulheres a deixarem o lar, em busca de uma
nova identidade, ou, caso permanecessem, ansiarem amargamente por algo
mais. Seu gesto foi um ato de rebeldia, uma violenta negação da mulher como
era então definida. Foi a necessidade de uma nova personalidade que
conduziu as feministas a abrir trilhas inéditas para a mulher. Alguns desses
caminhos eram excessivamente árduos, outros não tinham saída e outros ainda
talvez tenham sido falsos, mas era autêntica a necessidade da busca. O
problema de identidade era então novo para a mulher. As feministas foram
pioneiras na própria vanguarda da evolução feminina. Precisam provar que a
mulher era humana. Precisavam despedaçar, com violência se necessário, a
estatueta de porcelana que representava a mulher ideal do século passado.
Precisavam provar que ela não era um espelho vazio, passivo, uma decoração
inútil, um animal sem inteligência, um objeto a ser usado, incapaz de interferir
no próprio destino, antes de começarem a combater pelo direito de igualdade
com o homem.‖ (Betty Friedan, 1971, pp.71-72) ―foi a busca de uma nova
identidade que lançou a mulher, há um século, nessa impetuosa, criticada e
mal interpretada viagem para fora do lar. Tornou-se moda nos últimos anos rir
do feminismo, considerando-o uma das piadas da história, e caçoar daquelas
mulheres ridículas que lutavam pelos direitos de seu sexo, a uma educação
superior, ao voto e à vida profissional. Eram vítimas neuróticas da inveja do
pênis, querendo ser iguais ao homem, é o que agora se diz. Na luta pelo
direito de participar de tarefas importantes e tomar decisões na sociedade ao
mesmo nível que seu companheiro, elas negavam a própria natureza feminina,
que só encontra a sua realização através da passividade sexual, da aceitação
do domínio masculino e da maternidade.
65
―Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala;
os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda
hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado
handicap. Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e
muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os
direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que
encontrem nos costumes sua expressão concreta. Economicamente, homens e
mulheres constituem como que duas castas; em igualdade de condições, os
primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores
possibilidades de êxito que suas concorrentes recém-chegadas. Ocupam na
indústria, na política etc, maior número de lugares e os postos mais
importantes. (...) O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará,
nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como
sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço
necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e
porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.‖ (Beauvoir, 1970,
p.14-15)
―Não posso ser justa em relação aos livros que tratam da mulher como mulher.
Minha ideia é que todos, homens e mulheres, o que quer que sejamos, devemos ser
considerados seres humanos.‖ Dorothy Parker (Beauvoir, 1970, p. 8)
Mediante esta pesquisa teórica e inspirada por essa igualdade defendida por
Dorothy Parker, empreendo na criação do meu trabalho de performance um ato de
resistência e denúncia para incomodar o outro daquilo que está posto socialmente,
provocando reflexões das relações que vivemos, conscientizando sobre violências que
muitas vezes passam despercebidas numa alienação do contexto social que nos rodeia.
Na construção temática da performance relaciono teoria e prática na materialização
67
conceitual do trabalho de arte. Tenho a necessidade de apontar por meio da arte a
afetação daquilo que me atravessa pelas discriminações sofridas por nós mulheres nas
relações de desigualdade, machismo e violência. Nas performances criadas uso o corpo
como elemento potencial na expressão das violências sofridas, sobretudo as violências
veladas que habitam o cotidiano da mulher.
68
Cláudia Regina, “Aquilo que está velado”, 2014, Cláudia Regina, “O que está oculto por trás do
Performance visível”, 2014, Performance
Fonte: Acervo da autora Fonte: Acervo da autora
Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão
dos corpos em transito”, 2014 dos corpos em transito”, 2015, Entrecorpos
Performance Performance
Fonte: Acervo da autora Fonte: Acervo da autora
Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão Cláudia Regina, ―Corpo e gênero... A opressão
dos corpos em transito” Parte 2, 2015, dos corpos em transito” Parte 2, 2015,
Performance Performance
Fonte: Acervo da autora Fonte: Acervo da autora
69
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Artigo
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70
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Desconstruindo a Lei do Pai. Dissertação (Universidade Federal da Bahia) 2008.
Endereços Eletrônicos
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, item: Tolerância Social à Violência
contra Mulheres, pesquisa realizada em maio/junho2013, divulgada em março de 2014 e
revisada e corrigida devido a erro de troca de gráficos em abril 2014. Disponível em: <
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=19873 > acesso em
10/01/2015
Pesquisa "Por Ser Menina no Brasil: Crescendo entre Direitos e Violências". Disponível
em: < https://plan-international.org/where-we-work/americas/brazil/sobre-a-plan-no-
brasil/pesquisaporsermenina/ >Acesso em11/03/2015
71
MEMÓRIAS DE MULHERES: LIVRO-REPORTAGEM COM PERFIS
BIOGRÁFICOS DE FEMININOS MÚLTIPLOS
Resumo
Este trabalho relata o processo de produção do livro-reportagem Memórias de
Mulheres: perfis biográficos de femininos múltiplos. Parte-se do seguinte problema:
como o protagonismo feminino se constrói ao longo da história? Apresenta-se como
referencial epistemológico o materialismo histórico e como referencial teórico os
estudos culturais britânicos. Adota-se o gênero como categoria de análise e revisa-se a
literatura sobre feminismo e história das mulheres, especialmente no que se refere à
educação, à comunicação e às tecnologias. A metodologia contempla técnicas da
história oral para apuração das memórias das fontes e do jornalismo literário para a
redação do livro-reportagem. São entrevistadas quatro mulheres com diferentes
características e trajetórias de vida: Zélia, de 54 anos, vítima de diferentes formas de
violência que sustentou a si e as filhas por meio de trabalhos braçais; Bruna, de 20 anos,
estudante e militante feminista da Marcha das Vadias; Beatriz, de 62 anos, professora
com receio de aposentar-se, que optou por não casar nem ter filhos e mantém um
namoro há 32 anos; Carol, de 31 anos, adotada quando menina, sacerdotisa que cultua a
Deusa e o sagrado feminino. A narrativa dos quatro perfis é perpassada por uma quinta
narrativa autorreflexiva, a da autora. Conclui-se que o protagonismo das mulheres se
constrói por meio de um feminino múltiplo.
Introdução
1
Jornalista e mestra em Tecnologias, Comunicação e Educação pela Universidade Federal de Uberlândia,
email: dielenrb@yahoo.com.br.
72
palavras mais analíticas, a questão que norteia esta pesquisa é: de que modo a mulher
escreve sua própria história, em um contexto rançoso de valores machistas e patriarcais?
Este estudo foi feito no Mestrado Profissional Interdisciplinar em Tecnologias,
Comunicação e Educação, em que há a possibilidade de o mestrando desenvolver uma
dissertação ou um produto. Optamos pelo segundo e definimos que nosso objetivo seria
produzir um livro-reportagem com perfis biográficos de mulheres.
73
escrita e deixaram poucos registros. As palavras também não favorecem:
gramaticalmente, ―eles dissimula elas‖ (PERROT, 2007, p. 21). Perdia-se o sobrenome
a partir do matrimônio, o que dificulta reconstituir linhagens femininas. Falava-se muito
sobre as mulheres – na literatura e outras artes –, mas quem falava eram os homens.
Muitos vestígios delas, como diários e cartas, eram destruídos. O discurso religioso de
Paulo e o filosófico de Aristóteles reforçaram a ideia de superioridade masculina e
condenação da mulher ao silêncio (PERROT, 2007).
Desde o nascimento, a menina é menos desejada, a ponto de haver um
verdadeiro infanticídio de meninas na Índia e na China, países com graves problemas de
densidade demográfica. O Ocidente, se não mata as recém-nascidas, as comemora de
forma distinta. O filho varão é uma conquista maior. Na adolescência, a vigilância é
maior sobre as meninas, sob o temor da violação. ―Preservar, proteger a virgindade da
jovem solteira é uma obsessão familiar e social‖ (PERROT, 2007, p.45).
O ápice do ―estado de mulher‖ é o casamento, com enorme apoio da Igreja que o
institui como sacramento. O bom exemplar de mulher casada se caracterizava como
dona-de-casa, dependente jurídica, sexual e economicamente, que pode receber
―corretivos‖, mas que dispõe de influência na economia familiar, maternidade e
harmonia do lar. Por séculos, o casamento foi ―arranjado‖ pelas famílias, sob critérios
socioeconômicos, mas a modernidade trouxe outros parâmetros: ―o casamento por amor
anuncia a modernidade do casal, que triunfa no século XX. Os termos da troca se
tornam mais complexos: a beleza, a atração física entram em cena. [...] Os encantos
femininos se constituem um capital‖ (PERROT, 2007, p.47).
O sexo das mulheres é um mistério, sobre o qual pouco de fala. As que não
freiam a sexualidade são consideradas perigosas. A maternidade, porém, é o grande
caso das mulheres, fonte de identidade, fundamento da diferença reconhecida, mesmo
não vivida. Celebra-se o Dia das Mães, venera-se a Virgem Maria, mãe de Deus, e
pune-se o aborto. Tal é a relevância da maternidade como definidora do que é ser
mulher que Perrot (2007) considera a livre contracepção como o acontecimento que
mais abalou a relação entre os sexos, começando a dissolver a hierarquia entre eles.
É um equívoco, porém, considerar que todas as mulheres estiveram excluídas do
mundo do trabalho, conforme nos indica Saffioti:
74
e fiava, fermentava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas.
(SAFFIOTI, 2013, p. 62).
Narrar histórias de mulheres é pesquisar gênero, que está mais para um lugar de
intenso debate – político, inclusive – do que de certezas, como atesta Joan Scott:
75
É esta luta política que eu penso que deve comandar nossa atenção,
porque gênero é a lente de percepção através do qual nós ensinamos os
significados de macho/fêmea, masculino/feminino. Uma ―análise de
gênero‖ constitui nosso compromisso crítico com estes significados e
nossa tentativa de revelar suas contradições e instabilidades como se
manifestam nas vidas daqueles que estudamos. (SCOTT, 2012, p. 332).
A autora argumenta que, embora gênero esteja diretamente ligado à esfera
social, o objeto de análise desse campo de pesquisa, que são as relações históricas entre
os sexos, está conectado à esfera psicossexual. Assim, gênero seria ―sempre uma
tentativa de amenizar as ansiedades coletivas sobre os significados da diferença sexual‖
(SCOTT, 2012, p. 346). Em nosso trabalho, mais importante que definições precisas
sobre gênero é a concepção da experiência plural. Scott nos alerta que gênero é uma
questão eternamente aberta e que, se a considerarmos resolvida, é porque estamos no
caminho errado. Todavia, temos algumas propostas de direcionamento. Judith Butler
desarticula o binômio sexo/gênero e indica que o gênero tem um significado flutuante:
76
desenvolvemos. São 115 páginas que contam as histórias de quatro mulheres,
perpassadas pela autonarrativa da autora. O texto verbal é integrado ao não verbal por
meio de 25 fotografias, sendo três de arquivo pessoal e as demais produzidas
especialmente para o livro-reportagem. Durante a apuração, utilizamos alguns preceitos
da história oral para a coleta de dados: no caso, o relato das memórias das entrevistadas.
A redação dos perfis segue as características do jornalismo literário. Esses métodos e
técnicas são descritos na sequência deste relatório.
Nos Estados Unidos, esse tipo de jornalismo emergiu nos anos 1960, com o
nome de New Journalism. Um expoente desse contexto é Tom Wolfe, que explica como
se aproveitou das técnicas da literatura para fisgar a atenção do leitor:
77
Perfis biográficos
História oral
A história oral ―é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida
para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos
não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo‖ (THOMPSON,
1992, p. 44). Essa metodologia é adequada aos nossos objetivos, pois propicia o
trabalho com a memória e foco no sujeito, fundamentais para a construção dos perfis.
78
Com o uso da entrevista, é possível agora desenvolver uma história
muito mais completa da família através dos últimos noventa anos, e
estabelecer seus padrões e mudanças principais no correr do tempo, de
lugar para lugar, durante o ciclo de vida e entre os sexos. [...] E, dada a
predominância da família na vida de muitas mulheres, pelo trabalho
em casa, pelo serviço doméstico e pela maternidade, verifica-se um
alargamento quase equivalente do campo de ação da história da
mulher. (THOMPSON, 1992, p. 28).
Segundo Pollak (1989, p. 2), a história oral evidencia uma memória coletiva
subterrânea da sociedade civil dominada, que se distingue de uma memória coletiva
organizada imposta por uma sociedade majoritária ou pelo Estado: ―essas memórias
subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase
imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados‖.
Karam propõe uma abordagem jornalística da memória coletiva, na busca pelo presente:
79
entender a linha cronológica de alguns acontecimentos, pois a mãe tem lapsos como
sequelas do acidente vascular cerebral; um comentário que essa filha fez durante a
entrevista foi registrado na narrativa.
80
diante de memórias de mulheres muito diversas que constituíam femininos múltiplos. É
certo que há pontos de convergência entre elas, mas que não configuram nem um
padrão a ser seguido nem a ser subvertido. Elas são várias. A partir desse momento,
começamos a enxergar o fio condutor entre as histórias, a multiplicidade do feminino,
com uma inclusão mais profunda da narradora nos perfis relatados, construindo uma
autonarrativa entrelaçada às outras quatro narrativas.
Com os textos redigidos e revisados, selecionamos as fotografias e
encaminhamos o material para a construção do projeto gráfico e a diagramação, que
ficaram a cargo da jornalista Elisa Chueiri. A Imagem 1 apresenta a capa do livro:
Fonte: A autora
O livro totalizou 115 páginas e cinco capítulos: Nós, em que a autora introduz
seu perfil, a ser desenvolvido no decorrer da obra; quatro capítulos com o nome de cada
mulher perfilada – Zélia, Bruna, Beatriz e Carol – e Memórias, de conclusão.
Considerações finais
81
e política tecida ao longo dos séculos. As mulheres, contudo e obviamente, também têm
uma história. Ainda que o machismo, o patriarcado e a misoginia tenham perpassado as
mais diferentes épocas e geografias, as protagonistas das memórias de mulheres são elas
próprias, que construíram seu feminino, cada qual, à sua maneira e conforme seus
contextos de existência.
Fizemos um recorte espaço-temporal que contemplou quatro (ou cinco, com a
narradora) mulheres de Uberlândia que, em 2014, narraram suas memórias –
lembranças que iam de vinte a sessenta anos. Múltiplas que são, apresentaram traços
convergentes e divergentes. Em comum, notamos, por exemplo, a necessidade de, em
algum(ns) momento(s) de suas vidas, romper com determinada ordem: Zélia deixou a
família e o marido para escapar da violência e da humilhação; Bruna afastou-se do pai
para libertar-se de uma ideologia machista e também violenta que chocava com a dela;
Beatriz terminou um noivado, recusou o casamento e priorizou uma vida em busca do
conhecimento; Carol deixou o esposo em prol do sacerdócio. São memórias de
mulheres imersas numa contemporaneidade que ainda lida de modo problemático com o
gênero, essa fosca categoria de análise. Memórias de um ―ser mulher‖ complexo,
disperso, difuso. Múltiplo.
A partir desse estudo, percebemos que uma definição sobre o ―ser mulher‖ seria
uma falácia, uma generalização estabelecida a partir de uma visão binária sobre
feminino e masculino que, na verdade, refutamos. Afinal, o feminino é múltiplo e o
gênero é plural. Já não falamos que ―a mulher isso ou aquilo‖, mas sim, falamos de
mulheres, com a flexão de número, a fim de contemplar a complexidade.
Por ser um trabalho desenvolvido no âmbito de um mestrado profissional,
pudemos escolher entre a dissertação tradicional ou a elaboração de um produto – e
decidimos pela segunda opção como forma popularizar o conhecimento acadêmico,
fazendo-o chegar ao público. A dissertação iria para a gaveta e, ainda que publicada,
provavelmente seria acessada apenas por outros pesquisadores e pesquisadoras – afinal,
o tema precisa desdobrar-se. O livro, esperamos que chegue aos mais múltiplos leitores
e leitoras, para que seu sentido, enfim, se complete. Um estudo dessa natureza envolve
sua pesquisadora, sua orientadora e seus colaboradores num sentido muito além do
trabalho a ser desempenhado. É uma experiência inevitável de resgate de memórias, de
análise sobre a sociedade à qual pertencemos e de reflexão sobre si.
Referências
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: A experiência Vivida. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1949.
82
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WOLFE, Tom. Radical chique o Novo Jornalismo. São Paulo: Jornalismo Literário:
Companhia das Letras, 2005.
83
O ASILO DE MENINOS DESVALIDOS E AS SOCIEDADES
ABOLICIONISTAS: A PARTICIPAÇÃO DOS INTERNOS NAS FESTAS DA
ASSOCIAÇÃO CENTRAL EMANCIPADORA, DA CONFEDERAÇÃO
ABOLICIONISTA E DO CLUBE DOS LIBERTOS DE NITERÓI
1
Doutorando em História Política pela UERJ. Email: enap2010@yahoo.com.br
84
Os médicos determinavam os espaços de uso da infância, assim como
participação e divisão das horas de sono, alimentação, higiene, estudos e brincadeiras.
Além disso, eles preconizavam vigília, controle das atividades escolares, religiosas,
sociais e culturais das crianças no dia a dia, com premiações e punições aos
comportamentos ditos ―imorais‖.
Diversos cenários foram utilizados pelos médicos para a divulgação das normas
e orientações educativas das crianças. As teses das faculdades de medicina do Rio de
Janeiro e da Bahia, as conferências pedagógicas, os jornais e as revistas, as visitações
dos médicos às instituições de atendimento e assistência às crianças desvalidas
preconizavam as diretrizes e a intervenção do governo imperial no Asilo de meninos
desvalidos.
Ainda trazendo à tona, algo que estava submergido, Arriès, em História Social
da Criança, no século XIX, afirma que: ocorreu uma mudança do que é ser criança,
vista até então como ―adulto em miniatura‖ essa vai começar a ser pensada como um
ser diferente, específico, que requer tratamento e atenção diferenciada. Como mostra o
autor:
85
Para compreender como se estruturou a assistência, tive que compreender as
condições e possibilidades de constituição da política de assistência aos desvalidos,
mais precisamente 1850. Estabeleci este limite em virtude da reforma de ensino de
Couto Ferraz que regulamentou o ensino primário e o ensino secundário, através dos
decretos nº630, de 17 de setembro de 1851, e nº1331-A, de 17 de fevereiro de 1854,
visto a sua relação possível ao decreto de nº 5532 de 24 de janeiro de 1874, que
estabelece a criação do Asilo dos Meninos Desvalidos do Rio de Janeiro, que foi
regulamentado pelo decreto nº 5849 de nove de janeiro de 1875, pelo Ministro do
Império João Alfredo Corrêa d‘Oliveira Andrade e inaugurado no dia 14 de maio de
1875, além de outras escolas de primeiras letras. Pois, com a consolidação do Estado
Imperial, a questão das crianças, e, sua educação passou a envolver diferentes setores da
sociedade. O artigo 57, do decreto de 1854, determina a admissão de ―alunos pobres‖
em escolas da rede particular, mediante pagamento por parte do Governo, assim como a
implantação de medidas, quando estiverem pelas ruas em estado de ―pobreza‖ ou
―indigência‖. A estes ―se fornecerá igualmente vestuário decente e simples, quando
seus pais, tutores, curadores ou protetores o não puderem ministrar, justificando
previamente sua indigência perante o Inspetor Geral, por intermédio dos Delegados dos
respectivos distritos‖ (VOGEL, 1995, p. 306).
A partir de 1850 são regulamentadas as leis acerca de escravos e seus filhos. A
chamada ―Lei do Ventre Livre ou dos Ingênuos‖, Lei de n2.040 de 28 de setembro de
1871, declarava livres os filhos de mulheres escravas nascidos após esta data.
Estipulava obrigações para os senhores de escravos e para o governo, proibia a
separação dos filhos menores de 12 anos do pai ou da mãe. Para Abreu & Martinez
(1997), a lei de 1871, incide sobre o futuro dos descendentes de escravos, tônica dos
debates públicos da época. A Lei 2040 ordenava os senhores a criarem os filhos das
escravas até a idade de oito anos, após este período poderiam receber uma indenização
do Estado ou os usarem como trabalhadores até a idade de 21 anos. Numa economia
agroexportadora, escravista e monocultora, o discurso dos senhores de escravos tinha
muitos defensores. Após 1871, descendentes de escravos libertos menores, filhos de
imigrantes e mestiços se tornaram objeto de discursos da elite no Brasil. A partir desse
período, os discursos dos homens públicos, dos reformadores e dos filantropos
propunham:
86
Fundação de escolas públicas, asilos creches, escolas industriais e agrícolas
de cunho profissionalizante, além de uma legislação para menores. Buscava-
se inserir nas práticas jurídico-policiais o encaminhamento para Casas de
Educação, Educandários e Reformatórios ―para os chamados menores
abandonados e delinquentes‖ (ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 25).
Para remover esta dificuldade lembra o inspetor geral da instrução dar a estas
escolas uma organização mais acomodada às necessidades da população: uma
espécie de internato; o Estado não teria grande acréscimo de despesa, porque
continuaria como até agora a instrução gratuita, e as famílias que não fossem
indigentes pagariam uma módica retribuição para o sustento dos internos.
Está tentando um destes internatos na ilha do Governador. (MOACYR, 1937,
p.57).
87
A referência à necessidade de investimento no professorado é uma constante, no
entanto, ao longo dos anos pouca coisa muda, sendo a profissão vista como ―árdua,
modesta e de verdadeira dedicação‖ (idem), porém pouquíssimas ações são
efetivamente executadas justificando para a falta desta a carestia de recursos do erário
público.
Tratando da relação disciplinização e controle dos corpos segundo o discurso
médico a formação da compleição física e intelectual do indivíduo era dependente da
ancestralidade moral dos seus genitores (GOMES, 1852, p. 2). A conformação física e
intelectual da criança é precedida por aspectos de conduta moral dos pais. Isto é, antes
mesmo do nascimento a criança ocorria o desenvolvimento das suas características
físicas e morais influenciadas pela falta de virtude ou pela exacerbação das paixões dos
seus ancestrais. Os discursos médicos higienistas ordenavam os meninos desvalidos
nomeando uma série características físicas e morais.
Quanto à questão do controle, vigilância e disciplina desse alunato a reforma de
ensino proposta pelo deputado Luiz Pedreira do Couto Ferraz dispunha que:
Nos discursos médicos a atuação dos pais, ausência de uma higiene do corpo
percebida através das roupas sujas e falta de asseio pessoal, atraso da sua educação,
condições insalubres de habitação em localidades mais expostas aos ―miasmas‖, hábitos
alimentares ―reprováveis‖ à idade, ―excesso‖ de tempo livre, agitação, magreza, falta de
comedimento nos gestos, nas falas e nas atitudes eram associadas à pobreza.
Não obstante, ao se falar em criança desassistida, é preciso cuidado para não
uniformizar tal categoria, nomeada como criança pobre, pois assim feito ocorre um
reducionismo e empobrecimento dessa questão. De acordo com Costa (1865, p. 28):
88
industriais, etc.; Segunda, a verdadeira excrescência de nossa sociedade,
classe realmente digna de lástima, é a dos escravos, que muitas vezes,
arrastando uma vida de misérias, formam o contraste o mais perfeito com a
vida faustosa, que passam seus opulentes senhores. Se quisermos estudar bem
estas classes em todas as suas necessidades, em todos os seus sofrimentos, se
quisermos bem apreciar as circunstâncias em que uma se acha, é preciso que
as consideremos separadamente.
A Igreja foi pioneira no trato com a pobreza, dos expostos ou dos enjeitados.
Desde o século XV, com a atuação das Santas Casas de Misericórdias portuguesas para
onde eram enviados os indesejáveis, fosse através da Roda dos Expostos ou criação dos
órfãos. Segundo Correia:
No Rio de Janeiro a ação dos jesuítas tem prosseguimento com a Santa Casa da
Misericórdia. Neste período, o recolhimento de crianças e órfãos, amparados pelo
discurso jurídico e política, tem ainda sua tônica atravessado pelo discurso religioso, e
pelas práticas caritativas e de assistência religiosa da Igreja Católica.
O ―lugar de fala‖ é importante, assim como é relevante descrever os espaços de
circulação, de sociabilidade dos indivíduos inseridos em uma determinada cena
discursiva, de uma cidade, de um país. Na década 60, do século XIX, Rufino Augusto
de Almeida foi diretor da casa de correção de Recife. Sua passagem por esta instituição
foi motivo de notas na imprensa, debates na Câmara e acusação de enriquecimento
ilícito. Na década de 70, do mesmo século, vai ocupar o cargo de diretor de uma
instituição de internação de meninos desvalidos e modifica parte do regulamento da
instituição para ―dirigir a educação dos meninos‖.
No primeiro relatório do diretor do Asilo, ao Barão de São Felix, Diretor Geral
da Instrução Pública do Município da Corte, já relata uma série de modificações por ele
realizadas, alterações essas que diferenciavam consideravelmente das disposições do
regulamento nº5849. Segundo Rufino Augusto de Almeida os asilados sendo pobres
não seria lógico possuírem serviçais e deveriam executar todas as tarefas pertinentes a
um homem que vive à custa dos seus próprios proventos:
89
Criado este Asilo para abrigar e educar meninos desvalidos ou entregues à
miséria por extrema pobreza de seus pais, a mim parece que se deve prestar
muita atenção às vocações ou aptidões destes meninos, e habilita-los a
viverem à custa de seu próprio trabalho. Assim, o menino que por falta de
desenvolvimento intelectual não possa ser um homem de letras ou um bom
artista, façamo-lo um bom agricultor, um horteleiro, um jardineiro, ou
simplesmente um bom trabalhador de enxada, ou mesmo um bom criado de
servir, etc. No sentido de levar a efeito esta salutar ideia tenho procurado
dirigir a educação dos meninos, apesar da repugnância e desgosto dos
parentes de alguns asilados, que sentem a pobreza de seus antepassados
ofendida, porque pretendo criar homens para o trabalho, não fidalgos e
candidatos aos empregos públicos (BRAGA, 1925, p.34).
90
permanecendo no antigo estabelecimento educacional até morrer (RUBENS,
1961, p.138).
Lima Coutinho era o Nº 6, Paulino Pinto do Sacramento era o Nº 21, Raul Villa-
Lobos era o Nº 38, Francisco Braga, o Nº 59, Luiz Moreira o Nº 65 e João Baptista da
Costa o Nº 88. Portanto números, formas de objetivação, ou de despersonalização da
pessoa, pois o indivíduo ao ser identificado por um número, sobrenome, ―nome de
guerra‖, apelido, marca, tatuagem, deficiências caracteriza formas de desconstituição da
identidade. As diferenças e as desigualdades eram normalizadas pela entrada e
consequente internação que eram submetidos os asilados quando adentravam no Asilo.
Porque é importante situar o lugar de fala de cada um deles? Por que João
Batista da Costa, o Nº 88 no Asilo de Meninos Desvalidos, órfão de pai e mãe aos oito
anos, nascido em Itaguaí aos 24 de novembro de 1865, tem importância como sujeito
que entrou no Asilo de Meninos Desvalidos aos onze anos e que ―fazia-se
encadernador, enquanto outros frequentavam as oficinas de alfaiate, marceneiro,
sapateiro‖.
A História é o que transforma os documentos em monumentos e que
desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava
reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que
deverão ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados,
organizados em conjuntos (SILVA, 2007/2008, p.124).
91
violoncelista e clarinetista amador, que morreu cedo, deixando a família com parcos
recursos‖.
Os internos participaram em diversos eventos cívicos do calendário histórico e
político nacional. O processo de abolição da escravidão, comemoração da
Independência do Brasil e a indicação de políticos para o Ministério do Império contou
com a participação dos meninos da banda como se pode observar nas seguintes
passagens:
Os festejos de hoje
Anteontem deu-se, na sala onde funciona a aula noturna gratuita da
Sociedade Propagadora da Instrução às classes operárias da freguesia da
Lagoa, a posse da nova diretoria, com uma sessão solene e que se tornou
brilhante por muitos motivos.
Antes de ser aberta a sessão, tocou a banda dos meninos desvalidos
do asilo de Vila Isabel, assim como durante a cerimônia com a proficiência
que já todos conhecem e sob a direção do hábil mestre o Sr. Francisco
Martins.
Comparecendo o Exmo. Snr. Conselheiro Dr. Carlos Leôncio de
Carvalho, ministro do Império, que foi recebido por toda a diretoria, pouco
depois começaram os trabalhos, sendo o Sr. ministro convidado a ocupar a
cadeira presidencial.
Ainda uma vez a ilustre diretoria quis dar outra prova de elevação de
seus sentimentos, fazendo à banda do asilo dos Meninos Desvalidos um
mimo delicadíssimo, que constou de uma bonita coroa de louro com fitas
verdes e amarelas, nas quais se liam os nomes da associação aos meninos
desvalidos.
Em nome do órgão do partido democrático enviamos aos seus
promotores as mais cordiais felicitações (A Reforma, 17/12/1878, p.2). 2
2
Grifos meus.
3
Grifos meus.
92
A Associação Central Emancipadora realizou anteontem ao meio
dia a sua matine musical, conforme noticiamos, no Recreio Dramático.
Duas bandas de música, a dos Meninos Desvalidos e a do Recreio de
S. Domingos, abrilhantavam a festa.
Começou esta pela execução de um pot-pourri da opera Guarany, pela
banda dos Meninos Desvalidos. Em seguida o Sr. Dr. Nicolau Moreira em
breve discurso, que foi muito aplaudido, declarou aberta sessão.
Sócios honorários, Exª. Sras. D. Maria Clapp, D. Amélia Coutinho, D.
America Clapp, D. Evangelina Accioly, D. Luiza Regadas, D. Ludovina
Cunha, D. Honorina Ferreira, D. Luiza Malli, D. Maria Magdalena Vigier e
D. Eugenia Baldraco, e os Srs., Normando Borges de Faria, João Carlos,
João Duarte, João Rodrigues Cortez, Norberto de Carvalho, João Baptista
Martini, Dr. J. J. Pizarro, Alfredo Gitahy, Ernesto Nazareth, Arthur
Fluminense, Adão de Oliveira, Francisco de Carvalho, J. P. Normandia,
Henrique Canongia, Calixto Cruz José Cerqueira, F. A. Borges de Faria e J.
J. de Oliveira (Diário do Brazil, 27/9/1881, p.1). 4
4
Grifos meus.
5
Grifos meus.
93
Aberta a sessão, o Sr. João Clapp, fundador do Clube e prestimoso
chefe do partido abolicionista, leu uma breve alocução, cabendo em seguida
a palavra ao Sr. Dr. Ennes de Souza, que em um notável discurso, tratou da
libertação do escravo. O orador, com grande elevação de ideias, encarou o
problema pelo lado do direito e pelo lado financeiro, mostrando que da sua
solução resultaria não a ruína do país, mas a sua prosperidade.
Ao terminar foi o ilustrado preletor saudado com uma prolongada
salva de palmas.
A tribuna foi depois ocupada por diversos oradores.
Terminou a solenidade com a distribuição dos prêmios aos seguintes
alunos: Domingos José da Silva Castro, A. Granado, Jorge A. de Azevedo
Fontoura, Guilherme Fontoura, Gentil Guinot, Adeodato Rosa, Henrique,
Felippe Dantas, João Joaquim Vieira, João Martins de Barros, Adolpho
Machado e Roque A. da Flor.
Durante a festa tocou a banda de música do asilo dos meninos
desvalidos.
Ao retirar-se, foi o Sr. Dr. Ennes de Souza alvo de uma esplendida
manifestação por parte dos alunos do clube (Gazeta de Noticias, 10/3/1884,
p.2). 6
É por demais ―ler resistência nessa figuração‖? Segundo Louro (2009, p.138)
―normas regulatórias têm um caráter performativo, quer dizer, sua citação e repetição
fazem acontecer, isso é, produzem aquilo que nomeiam‖ (LOURO, 2009, p.138). Onde
se encontra a figura feminina? Ela está presente nas fotos e nas pinturas. O regulamento
do Asilo de Meninos Desvalidos estabelecia como sendo uma instituição restrita ao
sexo masculino, mas a figura feminina se encontra neste espaço masculino através do
relatório do diretor do Asilo Jurandir Rufino, nas fotografias que Malta, assim como nas
peças de França Júnior e nas comédias ―do tempo‖, nas missas celebradas pelo
Monsenhor Venerando da Graça que eram assistidas pelo ―monarca democrata‖ e por
6
Grifos meus.
94
―elementos da sociedade carioca‖. No recorte anterior a representação do ―elemento
feminino‖ por Francisco Braga possibilita problematizar a questão de gênero e as artes,
como no teatro grego os papeis serem interpretados/representados exclusivamente por
homens.
No Império são traçadas metas para a formação da nacionalidade, calcadas em
padrões europeus, numa ordem científica. Corrigindo tudo aquilo ou todo aquele que
divergisse da ordem estabelecida e considerada condição sine qua non para o
desenvolvimento de uma nação moderna e civilizada.
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RIZZINI, Irene (ORG.). Olhares sobre a Criança no Brasil – séc. XIX e XX. Rio de
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pobre do Rio de Janeiro e sua influencia sobre a mesma classe. Rio de Janeiro: 1865.
COUTINHO, Cândido Teixeira de Azevedo – Esboço de higiene dos colégios, tese á
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1857.
Diário do Brazil. Rio de Janeiro: Tipografia do Diario do Brazil, 27/9/1881, p.1.
Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 23/5/1881, p. 1.
GOMES, Antonio Francisco. Influência da educação física do homem. Rio de Janeiro:
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95
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VOGEL, Arno. Do Estado ao Estatuto. In A arte de governar crianças. Rio de Janeiro:
Editora Universitária Santa Úrsula, 1995.
96
SE CORRER O BICHO PEGA, SE FICAR O BICHO COME: HISTÓRIA E
TEATRO NO BRASIL DOS ANOS 1960
Resumo
Este trabalho tem como objetivo entender a importância histórica da peça teatral
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (1966) de Ferreira Gullar e a mesma
como fonte para o historiador. A peça foi escrita pós 1964, aborda questões políticas e
sociais que o Brasil estava vivenciando, como exemplo, a ditadura militar. A peça
teatral é uma resposta política à situação que o país vivia. A moral e os bons costumes
era algo que o governo militar buscava, ou seja, a ordem. A ordem social, portanto, está
intimamente imbrincada na peça. Dessa forma, a literatura popular se torna importante,
revelando importantes acontecimentos sobre o período, a partir do drama, da comédia,
relacionada a imaginação, consegue, enfim, causar encantamento ao público, como foi o
caso da peça. O que mais chama atenção na peça, é a transformação dos personagens
em face a sua realidade, além de uma contradição. Portanto, analisar a peça teatral e o
seu período, especialmente refletindo sobre que contexto e o porquê a obra foi escrita,
podendo fornecer informações de como a mesma foi recebida pela crítica.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come foi escrita por Oduvaldo Vianna
e Ferreira Gullar na década de 1960. Foi encenada pelo Grupo Opinião no Rio de
Janeiro e conquistou alguns prêmios. Escrita em literatura de cordel, narra a história de
um camponês, Roque, que possuía várias maneiras de sobrevivência contra os
poderosos, ou seja, a elite e os governantes. A política é um tema que está presente na
1
Graduanda em Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
Bolsista do CNPQ, com orientação da professora Drª Kátia Rodrigues Paranhos.
97
peça teatral, política esta da ditadura militar no Brasil. A peça teatral possui diversas
canções, e foi escrita em versos.
Depois que Brás vai embora, fica Coronel e Roque. Em uma das partidas de
dama, o Coronel diz que encontrou Roque e o criou, ele prefere pessoas que sejam
submissas. Há também uma tristeza em relação ao sertão que é muito pobre em
recursos, como água, luz, chuva. Mocinha e Bizuza entram em cena, onde há um
comando do Coronel para a mulher buscar cigarro e licor, e a mesma vai sem dizer
nada, demonstrando assim, o patriarcalismo. Algumas compras chegaram na fazenda, e
o Coronel vai ver. Umas das coisas é uma escritura de 2 apartamentos que ele comprou
no Rio de Janeiro. Mocinha tinha um noivo, o Mendes Furtado que chegava da cidade,
filho de um Senador. Furtado chega com novidades, só que diz ao Coronel que eles
devem ir para a cidade, senão não ganham a eleição. Só que o Coronel diz que apoia a
eleição, mas não quer ir para a cidade porque se sente um lavrador. Furtado diz que seu
pai conseguiu o dinheiro para o açude da fazenda, só que o Governador não libera o
dinheiro. Em uma das conversas sobre a eleição, o Coronel e Furtado dizem que o
presidente ajuda todos os lados, que é imparcial, mesmo parecendo estar do lado deles.
Furtado pede para que o Coronel seja o aliado dos ricos, porque possui dinheiro e sabe
falar. Um outro personagem entra em cena, o Nei Requião que estará nas eleições, com
isso, o Coronel aceita ir para a cidade, principalmente para fazer o que Requião
prometeu e não cumpriu.
98
Assim, contou ao burro Cirino. Só que o burro acaba contando ao outro burro. Joca
Ramiro vai conversar com o Coronel porque ouviu rumores de que Roque estava todo
feliz falando de Mocinha, onde contou ao Coronel que os dois se encontraram no
banheiro durante a noite. Roque havia fugido, e o Coronel pede para chamar um
Matador. Coronel se preocupa com o casamento da filha, e que também gostava de
Roque, mas que como mexeu com a filha, não podia deixar passar. Furtado acredita que
isso não passa de falatório, Coronel chama Mocinha e ela diz que é mentira. Para que os
rumores não aumentem, Furtado sugere que eles se mudem para a cidade, para parar
com o falatório, onde poderiam também cuidar da eleição.
Em outra cena, alguns personagens estão conversando sobre a seca que rola
sobre o Livramento, e que o Coronel é uma espécie de satanás, que não possui mais
plantação, apenas a terra. O Prefeito aparece em cena e vai até José Porfírio, que cuida
da propriedade de Nei Requião. Ele aparece como uma ajuda aos pobres, que dará
emprego na Usina. Na cidade, Roque e Brás acabam se encontrando, os dois fingiam
que eram cegos para poder roubar carteiras. A cidade percebe que os dois não são
cegos, e querem dar uma surra. Entra em cena o Matador. De início, o Matador defende
Roque por este estar apanhando. O Matador diz que está procurando Roque, Roque diz
que não conhece ninguém com esse nome. Só que Brás das Flores acaba dizendo que
ele é o Roque. O Matador então pede para se levantarem, porque não mata ninguém
deitado e começa a contar até 10. Nesse tempo, Brás foge, e Roque tenta persuadir o
Matador dizendo que não possui arma, assim, ele estaria sendo injusto. Em meio a
alguns tiros, Roque é acertado. O Padre entra em cena, e diz que era dia de Natal, que o
dia deveria ser respeitador e ninguém deveria morrer, já que tinha outros dias para isso.
Roque e o Matador param, e desejam feliz natal um ao outro. O sino tocou, e o dia de
natal acabou. Assim, o Matador diz que voltara a seu serviço, que as balas acabaram e
que matara Roque com faca. Roque diz que os dois viraram amigos, pela conversa que
tiveram e que o Matador deveria ter respeito. O Matador diz que precisa pegar o
dinheiro do serviço para comprar óculos. Roque diz que podem assaltar um armazém,
mas o Matador diz que nunca fez isso. O Matador erra o alvo, e ele cai, pedindo para
morrer logo, dizendo que se chama Quinca Bonfim, e que Roque deveria falar para todo
mundo que ele o tinha matado. Ao dizer o nome, Roque descobre que o Matador é seu
pai. Os dois se abraçam.
99
No Segundo ato, em uma conversa de Nei Requião, Desembargador e
Zulmirinha, onde estão viajando. Nei Requião diz que Zulmirinha é muito caridosa, e
este é seu problema, considerada um problema quando ajuda demais o povo. Outra
coisa que eles reclamam é que sua plantação não dá rendimentos, e o dinheiro que tem,
emprestam ao Coronel para entregar ao Senador, que é o candidato dele. Nei Requião
diz que elegeu o governador, onde tinham medo do sindicato, dos funcionários e dos
pobres. Nei Requião diz que o hotel de Vespertina está mal frequentado, e o Coronel
concorda dizendo que há ladrão de Estado. Chega Roque e Brás das Flores com
embrulhos da Zulmirinha, os mesmos tentam se esconder do Coronel que os vê. Os dois
fogem e o Coronel tenta ir atrás deles. Roque, posteriormente, quando está fora do
hotel, quer voltar e ver Mocinha, Brás das Flores o aconselha a não ir. Só que quando
Mocinha vai abrir a porta, Furtado aparece e Roque precisa se esconder e Mocinha fala
algumas palavras carinhosas pensando que era Roque. O Coronel aparece e Furtado
tenta disfarçar e diz que estava à procura do Coronel por causa de uma dor. Nesse meio
tempo, o Coronel se encontra com Roque como se nada tivesse acontecido, ajuda
Furtado, dizendo para ele ir ao banheiro. Roque consegue entrar no quarto de Mocinha,
onde Bizuza também está dormindo e fica com sua amada.
Em outra cena, quando estão na Usina, Roque descobre que o dono da usina
rouba Nei descaradamente. Em uma conversa entre Delatorzinho e José Porfirio, o
primeiro diz que chegou gente na Usina para trabalhar em troca de comida. De fora da
usina, os camponeses dizem que ninguém entra e ninguém sai, que ninguém vai roubar
o emprego deles, que é melhor irem para a cidade. Aparece Roque, os camponeses
querem bater nele. Só param porque Brás chega, e diz que ele é o famoso Roque que fez
Mocinha mulher e que matou Quinca Bonfim. Um dos motivos que bateram em Roque,
alegaram que as pessoas que ficam sem trabalho em outras regiões, vão para o Nordeste
trabalhar na cana para receber comida, tirando o emprego de quem já estava por lá. Em
uma cena eles furtam um barracão de comida, para se alimentarem, e fogem da polícia.
No meio da confusão, Roque é preso.
No terceiro, a cena inicial é na cadeia, onde Roque está preso. O Carcereiro usa
Marx para dizer que é um alienado da sociedade. Brás das Flores entra em cena e
conversa com Roque, disse que conseguiu mudar de vida na grande cidade, e que Roque
está conhecido por toda parte, e do lado de fora da cadeia, o povo grita por sua
100
liberdade, que segundo Bras da Flores se passa antes da Revolução, e que Requião irá
perder a eleição porque mandou prender Roque. Também diz que se algum candidato
for a favor de Roque, ganha fácil a eleição, pois o povo abalou sentimentalmente com a
história de Roque, como exemplo de candidato, Jesus Glicério. Furtado está em
primeiro lugar, depois vem Jesus Glicério e Requião. Brás das Flores explica que
ganhou dinheiro porque escreveu a história de Roque e acabou virando livro e vendeu
muito, em formato de cordel.
Brás das Flores explica que o Coronel e Requião estão pagando algumas coisas
para Roque. Só fizeram isso porque Jesus Glicério, que apoia a liberdade de Roque
estava subindo no ranque das eleições. Mocinha vai encontrar Roque e diz que se o
Senador ganhar as eleições, Roque poderá ser seu amante sem nenhum problema, e
Mocinha passa a noite com Roque no quarto. O Coronel chega no outro dia de manhã
para conversar com Roque todo carinhoso. Requião também aparece em cena todo
carinhoso com Roque. Nisso, Roque troca de quarto em quarto para conversar com os
dois, sem saber que ambos, Requião e o Coronel estavam próximos. Ambos falam sobre
a Revolução de 1930, Manifesto dos Mineiros. Ambos também chamam Roque para
participar da campanha e ele aceita sem dizer não para outro. Roque diz que em troca
quer um cargo no exército, além de alguns diplomas como o de médico. Na Assembleia
em que marcaram com Roque, Jesus Glicério chega com uma passeata, onde Roque se
encontrava no meio da multidão. Muda de cena, e Roque se encontra na cadeia
novamente. Pouco tempo depois Roque é solto novamente, e há uma conversa em que
devem colocar outra pessoa para chamar mais atenção que Roque, como o
Desembargador. Nei Requião que solta Roque e diz para ele ajudar Jesus Glicério, caso
não ocorra isso, e Roque fuja ele o buscara aonde quer que esteja.
Em uma conversa com Furtado, Coronel diz que não possui mais nenhum
dinheiro. Furtado termina o noivado com Mocinha por descobrir que a mesma dormiu
com Roque. Roque quer fugir com Mocinha e Brás das Flores, mas eles não querem ir
com Roque. Roque leva alguns tiros a queima roupa. Em outra cena, Coronel diz a
Bizuza que está morrendo, porque o Desembargador é pau mandado de Nei Requião, e
pergunta se Roque está morto. Roque aparece em cena, e ele diz que não morreu porque
é personagem principal. Coronel deixa as terras para Roque, e diz que não pode se casar
101
com Mocinha, pois ela pode ser sua irmã. Bizuza diz que Mocinha é filha do
Desembargador, e não do Coronel. Assim morre o Coronel.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come escrita em 1966 por Ferreira
Gullar e Oduvaldo Viana no Grupo Opinião, teve como direção de Gianni Rattoe foi
encenada pelo Grupo Opinião no Rio de Janeiro. Inicialmente foi escrita por Oduvaldo
Vianna e João das Neves, Ferreira Gullar só colocava o texto em versos. Em um
desentendimento, João das Neves deixa o texto, então Ferreira Gullar assume o papel de
escritor junto a Oduvaldo. A ideia da peça surge a partir do filme Tom Jones (1963), os
mesmos queriam escrever uma peça no mesmo molde do filme. No final, João das
Neves recusa a assinar a autoria junto aos outros dois. O texto foi escrito em formato de
literatura de cordel e narra a história de um camponês bastante esperto, que com
estratégias de sobrevivência vence algumas dificuldades,
Dias Gomes diz que o título do livro nasce a partir do nordeste do país,
tornando-se lema para todo o país, principalmente para os mais pobres que ficam cada
dia mais pobres, e os ricos que ficam mais ricos, e o governo não sabe coordenar esse
problema. Os dois autores segundo Dias Gomes, utilizam do teatro popular, que parte
de uma crítica ao momento político do período, alcançando o social do país. Uma das
características segundo Dias Gomes, é que o Grupo Opinião diz que a peça mostra a
2
KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Opinião: para ter opinião. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Prefeitura, 2001, p.94.
102
realidade do país que não é divulgado para fora, ou seja, é uma aparência falsa. Assim
como Bissett, o Grupo Opinião utiliza Brecht.
O livro utilizado faz parte da Coleção Teatro Hoje: Séries de autores nacionais
da editora Civilização Brasileira, sendo este o volume 1. A editora justifica que o
volume 1 desta coleção ser esta peça não é por acaso, ela possui algumas características
que orientam a coleção. O que os interessa é o teatro brasileiro, porque a maioria das
peças que serão colocadas nessa coleção possuem uma causa. Eles acreditam que estão
dando voz aos autores e diretores por reviverem uma revolução que se iniciou na década
de 1950, onde o alternativo colocava na balança o autêntico. O público também é um
ponto fundamental destacado, onde este deve participar desse movimento. Contudo,
como é um período de censura, os artistas em geral estão sendo barrados para apresentar
e fazer o que querem. Como a peça remota a década de 1950, a nota diz que só pode
surgir dentro da realidade brasileira, que somente a análise crítica dessa realidade
poderá realmente fundar a dramaturgia brasileira autêntica.
A peça foi escrita sob pressões políticas. O Bicho é uma ―resposta‖ à situação
brasileira do período. O governo atual utiliza a política de casta, o que significa que
algumas pessoas ou classes da sociedade/país podem governar e outras não, ou seja, elas
tem o direito de governar. Segundo essa nota, o povo não é capaz de julgamentos
políticos imediatos, somente julgamentos políticos-morais, onde a eleição pelo voto é
quantitativo e não qualitativo. O bicho assim, nasce para ser contrário a isso, onde a
população possui o mesmo nível e são iguais do ponto de vista moral. O moral só será
conquistado quando os seus direitos e princípios políticos forem conquistados. A
população nesse momento não possui meios para impor a sua política, assim, a moral é
transigente na política.
O governo confunde ordem social com quietismo social, onde ordem social vai
além, há ações sociais por meio dela que acarretará a um desenvolvimento social. Sua
justeza só se concretiza quando há liberdade de manifestação e organização. O Bicho
assim, é contra o quietismo social. Os personagens são fundamentais para mostrar a
existência, ou seja, manifestar. As ―muvucas‖ não são o ponto forte para configurar a
103
ordem social, é a ordem social que controla a existência da ―muvuca‖. O Bicho assim,
―[...]pretende fixar uma realidade que é, ela mesma, subvertida‖ 3.
3
GULLAR, Ferreira (1966). Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (em parceria com Oduvaldo
Vianna Filho). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.11
4
Op. Cit. p.11
104
juntamente com outras técnicas inspiradas pela teoria teatral de Brecht e que têm como
propósito conseguir o distanciamento do público‖5. Os três finais da peça são
importantes, pois todos possuem um caráter crítico. Final 1: Roque e Mocinha estão
juntos com 13 filhos cuidando da terra, com Brás das Flores como Capanga. Final 2:
Roque divide as terras com lavradores, e Brás das Flores diz que não vai fazer o que
quer, e que reabrirão o processo. Final 3: ele diz que esse final é bem brasileiro. Jesus
Glicério é o novo governador, Roque será chamado para ajudar na Reforma Agrária.
Brás das Flores entra em cena e diz que Dom Requião, restaura a monarquia no país.
Em relação aos atores da peça, Bissett diz que todos configuram uma imagem de
poeta popular (as vezes param e conversam com o público), em que as vezes conta a sua
própria história, canta e fala ao mesmo tempo,
5
ISHMAEL-BISSETT, Judith. Brecht e cordel: distanciamento e protesto em ―Se correr o bicho pega.‖
Latin American Theatre Review, Kansas, v. 11, n. 1, 1977. p. 61.
6
Op. Cit. P.62.
7
MARQUES, Fernando. Por um teatro político e popular: manifestos do musical brasileiro – 1966-1983.
2005. p.15.
105
facilidade com que se cometem crimes durante uma eleição no Brasil.
A música deve mimetizar e apresentar, no plano puramente sensorial,
o esquema relativo a esse caos que, por paradoxo, constitui a ordem –
a ordem vigente‖8
A peça teatral possui canções por todo texto. Como escrita em 7 sílabas, tendo
como eixo norteador a literatura de cordel. Dessa forma, há um jogo entre as músicas e
as conversas pelo corpo da peça. Segundo Bôas9, a peça possui uma característica
heroica interpretada por Roque, ―[...]pela cumplicidade entre atores e espectadores
calcada na imagem do artista que ousa, na medida em que apresentar uma peça contra o
arbítrio, assim como assisti-la, constituí-se, para eles, num ato de contravenção à ordem
estabelecida‖10. Para ele, Roque, o personagem principal seria um anti-herói, pois ao
mesmo tempo que causa ordem, causa a desordem. Ao fazer a leitura de Maria Silvia
Betti, Bôas diz que a peça pega como tema as negociações e a corrupção do Parlamento,
pois a democracia não existia ali por causa da ditadura civil militar. Betti assim analisa
que a classe mais pobre é a principal arma para derrubar o governo vigente e
transformar o país. Assim, Roque ganhando no final um caráter de herói popular, ajuda
nas eleições para um candidato populista que seria Glicério. Segundo Bôas,
Podemos concluir que Betti analisa que a peça somente se efetiva quando se
encontra com público que vivencia a ditadura civil militar, contudo, a classe baixa está
bastante distante na peça, o que mais está em foco é a classe média.
8
Op. Cit. p.16.
9
BÔAS, Rafael Litvin Villas. Teatro Político e questão agrária, 1955-1965: contradições, avanços e
impasses de um momento decisivo, UnB, Brasília, 2009, disponível em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4435/1/2009_RafaelLitvinVillasBoas.pdf
10
Op. Cit. p.192.
11
Op. Cit. p. 210.
106
Vale ressaltar, que a peça, com cunho político propõe mudanças, e uma delas é
incluir e mostrar o lado mais pobre da população brasileira, onde o sentimento de
transformação política está de início ao fim da peça, mostrando através do personagem
Roque as maneiras de escapar do poder dos ―poderosos‖.
Bibliografia
GULLAR, Ferreira (1966). Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (em parceria
com Oduvaldo Vianna Filho). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Opinião: para ter opinião. Rio de Janeiro:
Relume Dumará: Prefeitura, 2001.
107
A ESTÉTICA VISUAL DO CABELO AFRO FEMININO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA
Resumo:
O referido artigo parte da intenção de refletir sobre a importância da estética visual do cabelo da
mulher negra na sociedade contemporânea influenciada pelo discurso hegemônico da supremacia
branca. Ativistas do feminismo negro apontam a necessidade de ―enegrecer‖ o feminismo a partir
de condutas antirraciais através das políticas públicas e apropriações dos direitos de visibilidade. O
conceito de interseccionalidade explicita que ações e políticas específicas constituem desigualdade
que geram opressões estigmatizantes. A mulher negra utiliza-se do visual do cabelo como afirmação
identitária e militância política para a conquista de empoderamento no enfrentamento do
preconceito e discriminação. A prática de alisamento do cabelo crespo define a luta das mulheres
negras submetidas ao padrão de beleza estabelecido pelo cabelo liso. Outrossim, na
contemporaneidade, o cabelo afro natural é símbolo de ato político, liberdade e autoestima. A
fundamentação trouxe as teóricas feministas: (SPIVAK, 2010); (CARNEIRO, 2003; 2011);
(HOOKS, 2005); (HARAWAY, 2004); (CRENSHAW, 2002); (GOMES, 2003; 2010) e outros
autores que subsidiaram a pesquisa. E, também, uma conceituação sucinta de imagem e significados
e, uma reflexão sobre estética entre o belo e o feio. As imagens apresentam a transitoriedade dos
diferentes estilos adotados para os cabelos e, todas retratam a beleza negra na sociedade
contemporânea.
Introdução
1
Pós-graduada em Gênero e Diversidade na Escola – GDE - Catalão/UFG (2014/2015); Licenciada em Artes
Visuais (FAV/UFG, 2011); Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas (IdA/UnB, 2012).
gcostamoraes@gmail.com
2
Doutora em Ciências Sociais (Unicamp, 2009); mestra em Antropologia Social (Unicamp, 2003) e bacharel
em Ciências Sociais (Unicamp, 1999). Professora efetiva da Universidade Federal de Goiás, campus de
Catalão. Orientadora do TCC – Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola.
fabiana_jordao@yahoo.com.br
108
imagens hegemônicas de beleza em nossa sociedade se referem a brancos, para os negros, o
cabelo crespo é um dos elementos mais visíveis sendo usado como uma estratégia que retira
o negro do lugar da beleza.
É indiscutível que em pleno século XXI, o cabelo crespo ainda seja motivo de
estudos e curiosidades, visto que é um dos referenciais da origem africana e, portanto,
decisivo no reconhecimento da identidade negra. Em razão dessa afirmativa, o presente
trabalho busca compreender a influência das imagens hegemônicas sobre o visual do
cabelo, que interferem na aparência da mulher em nossa sociedade e suas implicações nas
relações de poder marcadas pela diferença. Nessa perspectiva, aponta a necessidade de
esclarecer as seguintes questões:
Que tipo de influência as imagens hegemônicas de beleza exercem sobre mulheres
negras, mais especificamente, sobre a questão do cabelo?
As imagens de beleza dirigidas às mulheres negras tangem à questão do cabelo
como símbolo de afirmação identitária e valorização da autoestima no enfrentamento à
estigmatização?
Acredita-se que o acesso ao conhecimento sobre os valores étnico-raciais da
cultura negra possa explicitar as consequências que causam transtornos e interferem na
condição social da mulher no que se refere à estética do cabelo. Acredita-se também que os
fatores que justificam a descriminação e o preconceito em relação à estética do cabelo afro
permitem elucidar questões de como a opressão em face à estética branca hegemônica e,
mais contemporaneamente, sua apropriação como símbolo de luta política e de resistência.
O processo de valorização da estética da mulher negra tem contribuído para enfrentamento
dos padrões hegemônicos europeus, visando dissipar as concepções esterotipadas
construídas ao longo do tempo.
O texto coloca em pauta as vozes de ativistas do feminismo negro – No tópico -
Enegrecendo o feminismo e interseccionalidade: vozes de mulheres negras procurou-se
desenvolver a importância de ―enegrecer‖ o feminismo, uma vez que, para a mulher negra
prevalecia o silêncio e a invisibilidade, enquanto, o preponderante se refere ao discurso
feminista da supremacia branca por questões histórico-culturais e político-ideológico. A
pauta da interseccionalidade conduz o entendimento sobre o entrelaçamento entre
109
desigualdades múltiplas nas distintas categorias sociais a despeito de gênero, raça, etnia e
classe. As quais geram opressões, no caso da mulher negra constituem-se em
desempoderamento.
O assunto do tópico - O cabelo da mulher negra e transitoriedade estética –
traz uma reflexão sobre a estética do cabelo afro feminino de acordo com as modificações e
suas interferências na sociedade. Ressalta a importância dada ao visual do cabelo como ato
político e resistência, afirmação identitária, aceitação e autoestima. Aborda a
transitoriedade do crespo submetido ao alisamento e o retorno às origens adotando o visual
natural. O tópico – Feminismo Negro e o cabelo afro – conduz à uma reflexão dos pontos
comuns nas falas das ativistas negras sobre os aspectos discorridos que ressalta a
importância da pesquisa através dos discursos intelectuais. As falas complementam o
discurso hegemônico do feminismo e sua influência na tendência atual para os cabelos
afros femininos.
Em – Imagens – Configurações visuais e estéticas do cabelo afro – o texto
aborda conceitos de imagem e estética e suas influências de acordo com as visualidades e
temporalidades. Apresenta imagens fotográficas de distintas configurações visuais e
estéticas do cabelo afro. Enfim - Considerações finais – traz uma sucinta reflexão sobre a
produção do trabalho e a trajetória da pesquisa.
110
discurso da diferença entre sexo e gênero inicia-se nos anos de 1950 e 1960, porém, é no
final dos anos de 1970 que distintos discursos são criados com intuito de um debate político
e científico e à ―crítica ao ―determinismo biológico‖ e a ciência sexista, especificamente, a
biologia e a medicina.‖ (HARAWAY, 2004. p. 22).
Os movimentos feministas desde o início de suas manifestações intensificaram-se
pela ampliação e reconhecimento dos direitos das mulheres, porém, as mulheres negras, por
diversas circunstâncias não se incluíam na pauta política dos espaços conquistados,
reivindicados e liderados pelas mulheres brancas de tal modo que a mulher negra tinha sua
identidade anulada na sociedade.
Na sociedade brasileira, os movimentos de referência eram apenas do feminismo
europeu e visionavam a categoria mulher como homogênea e universal. Contudo, segundo
(CRENSHAW, 2002, p. 184), ―nenhuma sociedade pode, verdadeiramente, reivindicar-se
como homogênea.‖ É perceptível que os preconceitos estigmatizantes sempre foram
arraigados em uma sociedade desigual, a exemplo da brasileira. ―Assim, nenhuma
sociedade é imune ao racismo ou a intolerâncias correlatas; consequentemente, o
imperativo de considerar a interação do racismo ou de outras intolerâncias com o sexismo
continua sendo válido (Idem).‖
Kimberlé Crenshaw é uma das pioneiras do feminismo negro e preconizou a
metáfora da interseccionalidade:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma com
ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW,
2002, p. 177).
111
Historicamente, no Brasil foram construídas as relações de dominação de brancos
sobre negros, assim como a recorrência da prática social do racismo. O movimento negro se
apropria do conceito de hegemonia branca para expor as relações vigentes de dominação e
imprimir suas vozes na imprensa escrita e de cunho acadêmico. Objetivando se apropriar
dessas vozes cabe apontar Sueli Carneiro como uma das ativistas mais importantes do
movimento negro brasileiro, com inúmeros artigos publicados. Em seu artigo, intitulado
―Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de uma
perspectiva de gênero‖ (2011), ela reflete sobre a militância da mulher negra, que se difere
da mulher branca:
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente,
demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão
racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na
caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do
conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência
sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; [...] instituir
a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a ―boa
aparência‖, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres
brancas e negras (CARNEIRO, 2011).
112
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros
plenos no estrato social dominante‖ (SPIVAK, 2010, p. 13/14).
Os espaços de falas desenvolvidos pelo trabalho das intelectuais do feminismo
negro propiciam mudanças que permitem a conscientização e o respeito das origens
afrodescendentes e, possibilita a resistência política mediante aos discursos hegemônicos. A
sociedade que solidifica as relações étnico-raciais através do conceito de cidadania e da
educação escolar propõe combater a desigualdade estabelecida pelas hierarquias sociais.
Isso viabiliza também a luta feminista a partir de uma posição crítica e contrária às práticas
baseadas nas hegemonias racistas, classistas e sexistas.
113
com as leituras no site Blogueiras Negras3, a estética dos cabelos afrodescendentes é
submetida a modificações desde o período escravocrata da história do Brasil. Em
consequência do trabalho escravo exercido, o cabelo era mantido curto, pois os negros não
tinham tempo para se arrumar e, portanto, a estética do cabelo crespo era a marca da
diferenciação social e educacional. No começo do século XX se popularizou o ferro ou
chapinha, uma espécie de pente ou chapa feito de ferro esquentado a fogo. Trata-se de um
utensílio precursor das chapinhas e pranchas modernas que alisam os fios de cabelo
temporariamente. Depois, passaram a utilizar-se da química, porém, na atualidade aponta
para a expressão de um amadurecimento político, o Movimento Natural em que as
mulheres negras optam pela estética do cabelo crespo natural em que se valoriza o cabelo
como identidade, aceitação e autoestima.
Embora cresça entre as mulheres negras a adoção pelo cabelo crespo natural como
símbolo de luta política e resistência de um sistema racista e sexista, ainda prevalece a ideia
do alisamento dos cabelos. Hooks (2005) afirma que apesar das diversas mudanças na
política racial, às mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o
alisamento ainda é considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da insegurança
que as mulheres negras sentem com respeito a seu valor na sociedade de supremacia
branca:
O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam
mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade
de ter a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo,
está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco (HOOKS, 2005, p.
04).
3
Blogueiras Negras - E viva o (tardio) Movimento Natural! Por Mabia Barros - mai 14, 2013. Blogueiras
Negras é uma comunidade de mulheres comprometidas com as questões afins à negritude e ao feminismo
interseccional. http://blogueirasnegras.org/2013/05/14/movimento-natural-cabelo-crespo/> Acesso em:
04/05/2015.
114
proliferado através de sites, blogs, YouTubes e outros canais de informação que oferecem
produções as quais contribuem para novas representações da mulher negra que se ocupam
do papel de falantes de si próprias, de suas questões e desejos, sendo o cabelo crespo a
ferramenta que contribui para essa visibilidade.
Dessa forma, as ações mobilizadas nas redes sociais caminham na contramão da
invisibilidade das mulheres negras, estas, celebram a conquista de uma comunicação
alternativa e democrática em que desenvolvem discussões e contribuem coletivamente com
a troca de experiências (re) conceituando valores e significados. A exemplo disso, destaca-
se a comunidade - No e Low Poo Iniciantes4 - formada por mulheres que interagem e se
apropriam de informações de produtos farmacológicos e naturais para os cuidados com a
saúde dos cabelos, não apenas os crespos, mas todos os tipos de cabelos, inclusive lisos e
ondulados com a utilização da técnica do No/Low Poo5.
Para as crespas, romper com o reinado da chapinha no processo de transição que
libera o cabelo das químicas e do alisamento, associa-se, não apenas com um ato político de
visibilidade, mas com a libertação e o empoderamento através do pressuposto Movimento
Natural. Trata-se de um recente movimento que propõe reafirmação identitária e aceitação
social, mas, sobretudo, liberdade e autoestima.
4
No e Low Poo Iniciantes – Comunidade do Facebook. A referência não teve o propósito de um recorte para
o texto, apenas uma exemplificação. NO/LOW POO - Iniciantes:
https://www.facebook.com/groups/noelowpooiniciantes/
5
O No/Low Poo - são técnicas para cabelos cacheados, crespos, mas também servem para qualquer tipo de
cabelo especialmente seco ou frágil e couros cabeludos sensíveis a tensoativos agressivos. No Poo = No = não
- Poo = shampoo * No Poo = Sem Shampoo; Low Poo = Pouco Shampoo.
115
Kimberlé Crenshaw (2002) atenta para a dupla forma de opressão exposta à mulher negra
pelo binarismo de gênero e raça.
A pesquisadora Sueli Carneiro (2011) revela a insuficiência teórica e prática para
integrar as diferentes expressões do feminismo construídos em sociedades e plurais e, sob a
perspectiva da pluralidade coloca que o feminismo brasileiro não contemplou as mulheres
negras e alerta para a necessidade de ―enegrecer‖ o feminismo.
Jarid Arraes6, ativista contemporânea, afirma que há uma cisão, um tanto difícil
das mulheres negras com o movimento feminista hegemônico, visto pelas disparidades
entre mulheres brancas e negras. Diz não há porque manter uma falsa impressão de
homogeneização e, sim, a necessidade de reconhecer e respeitar as diferenças das mulheres
que fazem a luta feminista. Inclusive, contra o racismo, a valorização do cabelo crespo.
As ativistas negras foram as que deram maior importância à estética visual do
cabelo utilizando-o como símbolo de luta e militância política. Antes havia uma
preocupação em alisar os cabelos crespos para serem aceitas na sociedade pelo medo
enraizado nos sentimentos de baixa auto-estima. Hooks (2005, p. 05) afirma que o
alisamento é reflexo da opressão racial e que ―dói perceber a relação entre a opressão
racista e os argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não
somos belos ou aceitáveis como somos‖.
Nas pesquisas em redes sociais nota-se que houve uma recente mudança que afasta
a ideia de alisamento do cabelo priorizando à estética do natural. A observação na página
do Facebook No/Low Poo Iniciantes, percebe-se que as mulheres se interagem com as dicas
para se libertarem das químicas, a partir do processo de transição para deixar os cabelos
naturais e saudáveis, a preferência são os cacheados.
Entretanto, Jarid Arraes traz como verdade que a liberação racial contemplada em
nossa sociedade não passa de uma cortina de fumaça para disfarçar o racismo impregnado.
São poucas as pessoas que aceitam os crespos e são poucos os tipos de cachos que são
elogiados. Admite celebrar os cabelos cacheados, mas não deixar que as diversas texturas
dos fios negros sejam invisibilizadas e, literalmente, podadas por conceitos racistas de
beleza.
6
Jarid Arraes, ativista contemporânea autora de Feminismo Negro: minorias dentro da minoria. 2014. <
http://jaridarraes.com/tag/jarid-arraes-feminismo-negro/ > Acesso em 16/05/2015.
116
Imagens – Configurações visuais e estéticas do cabelo afro
Segundo Joly (2010), o termo imagem (imago) vem do latim e designa máscara
mortuária. Pode significar ainda, representações mentais; mensagem visual composta de
diversos tipos de signos e ferramenta de expressão e de comunicação. Referente à imagem
e ao psiquismo, a autora relaciona o conceito de imagem a relações individuais com o
próprio corpo, à capacidade associativa e analítica por via da criação e contextualização em
espaços surreais, tais como o universo onírico ou nossas impressões frente a diversos
estímulos. As imagens gravadas/registradas se assemelham ao que representam, no caso da
imagem/foto considera-se perfeitamente semelhantes e confiáveis por partirem da própria
coisa, o modelo retratado.
Noronha (2008) em estética visual apresenta conceitos, entre eles, o belo e o feio.
São as diferenças nos contextos de tempo e espaço das variadas culturas e etnias existentes
que se possa definir o que é belo e o que é feio. Dentre as conceituações que se possa ter
encontra-se o conceito do belo funcional, ―o belo tem uma finalidade (pedagógica, moral,
política, religiosa, ideológica). Fixam suas normas e medidas através dos critérios que
dependem de suas finalidades‖ (NORONHA, 2008, p. 24).
A imagem fotográfica como elemento representativo de beleza inclui-se no
contexto do belo funcional. A apresentação do cabelo crespo modificado ou não, veiculadas
pelas imagens, estabelece compreensão ―através das sensações e da produção do sentido, do
sensível e do inteligível‖ (Idem). Para Noronha (2008, p. 19), ―no conflito entre o Belo e o
Feio subjaz um conflito entre modos de pensar, sentir, valorar e compreender a vida.‖
As imagens fotográficas estão dispostas em: figura 01 optou-se por um recorte da
Revista Fórum Semanal via web da matéria – Cabelos crespos como ferramenta política 7 –
A figura 02 fez um recorte no portal - GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra8 – retrata o
―antes‖ e o ―depois‖ do processo de transição dos cabelos alisados ao retorno do crespo
natural. As figuras 03 e 04 publicadas na página do Facebook - No/Low Poo Iniciantes –
7
Revista Fórum Semanal – Cabelos crespos como ferramenta política.
<http://revistaforum.com.br/digital/166/cabelos-crespos-sao-ferramenta-politica/> Acesso em: 17/05/2015.
8
GELEDÉS < http://www.geledes.org.br/transicao-do-alisamento-para-o-cabelo-natural-pode-ser-feita-sem
traumas6/#axzz3aRErbH5D > Acesso em 17/05/2015.
117
são fotografias artísticas de Maria Cláudia Reis – PROJETO RAÍZES 9 - que retratam o
empoderamento das crespas.
Figura 01 Figura 02
Figura 03 Figura 04
Considerações finais
9
PROJETO RAÍZES - Fotografias de Maria Cláudia Reis.
<https://www.facebook.com/groups/noelowpooiniciantes/> Acesso em: 26/05/2015.
118
O trabalho teve como pressuposto averiguar as possibilidades de respostas dos m
questionamentos a despeito do objeto de estudo – a estética visual do cabelo afro feminino.
O questionamento partiu de como as imagens de beleza dirigidas às mulheres negras no que
tange à questão do cabelo possa representar símbolo de afirmação identitária e valorização
da autoestima no enfrentamento à estigmatização. Na perspectiva de encontrar as respostas,
tornou-se necessário adentrar nas pesquisas a partir de leituras de livros e visitas em sites e
blogs percorrendo trilhas até então desconhecidas. Os caminhos perpassaram por diversos
referenciais, entre eles, as intelectuais ativistas do feminismo negro e, outros a fim de
sustentarem a proposta.
Dessa forma tornou-se possível averiguar as causas e consequências que
influenciam as mulheres negras a modificarem seus cabelos, com opção pela beleza do
natural como ferramenta política no enfrentamento às opressões estigmatizantes e,
sobretudo, como expressão de liberdade. Os registros fotográficos retrataram a estética
visual do cabelo afro feminino na sociedade contemporânea, ora pela preferência do
alisamento, ora ao retorno às suas origens e aceitação dos crespos. Assim, o sentido de
empoderamento se constituiu com mais força no enfrentamento às opressões
estigmatizantes mascaradas pelo racismo.
Referências bibliográficas
Webgrafia:
119
CRENSHAW, Kimberlé. Revista Estudos Feministas - Documento para o encontro de
especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem.
vol.10 no.1 Florianópolis Jan. 2002 http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf >. Acesso em: 05/04/2015.
HOOKS, Bell. Alisando o nosso cabelo. Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y
Artista de Cuba, janeiro-fevereiro de 2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos.
Retirado do blog coletivomarias.blogspot.com/.../alisando-o-nosso-cabelo.html. Disponível
em: <http://criola.org.br/mais/bell%20hooks%20-%20Alisando%20nosso%20cabelo.pdf >.
Acesso em 27/03/2015.
JOLY, Martine (1994) — Introdução à Análise da Imagem. Lisboa, Ed. 70, 2007 -
Digitalizado por SOUZA, R. E - Mail: comunicacao.social@hotmail.com. 2010.
Disponível em: <http://flankus.files.wordpress.com/2009/12/introducao-a-analise-
daimagem-martine-joly.pdf >: Acesso em 21/10/2014.
120
MY NAME IS BOND? UMA ANÁLISE DA RECONFIGURAÇÃO DA
MASCULINIDADE NO CINEMA A PARTIR DA FRANQUIA 007: AS
PERSPECTIVAS DE GÊNERO DA DÉCADA DE 1960 E O QUE SE ESPERA
NO NOVO MILÊNIO
1
Graduando em História, pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: joao.franco94@hotmail.com
121
travamos discussões sobre gênero, até hoje mantem resquícios de produções que vêm
para confirmar um modelo machista de superioridade do homem, protagonista das ações
do enredo, em detrimento da mulher, figura coadjuvante e de menor destaque. Essa
diferenciação entre o masculino e o feminino dentro do cinema ainda ganha força
quando analisamos o que é considerado por muitos especialistas como a maior
premiação de filmes, que é o Oscar. Dentro da Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas, os votantes dos prêmios são compostos, de acordo com um
levantamento publicado pelo ―Los Angeles Times‖, por mais de 6 mil membros, os
quais 94% são brancos, 77% são homens e 86% têm mais de 50 anos. 2 Tal fato
corrobora com o ainda destaque de uma ala mais conservadora dentro do cinema norte
americano, cuja compatibilidade com ideais retrógrados, que exprimem certo tratamento
diferenciado a grupos femininos e também negros, é refletido quando analisamos os
prêmios do próprio Oscar, os salários dos atores, bem como os enredos e o teor das
histórias que são levadas as salas de cinema.
É certo que a ênfase a essas escolhas narrativas perdeu muito fôlego ao longo da
história, principalmente com o advento e proliferação de movimentos sociais – daremos
destaque ao feminista – que ao longo de anos lutaram por mais igualdade e
representação. Tal luta, que é válida, soou na sociedade, e hoje, já na segunda década do
novo milênio, produções que corroboram, mesmo que minimante, com algum tipo de
preconceito que tentam ilegitimar essas conquistas ou a atuação desses sujeitos no
cotidiano, são rechaçados e criticados por boa parte do público. Mesmo que ainda tenha
pessoas que concordam com um modelo já ultrapassado de sociedade, e não acham
válido a mulher ter destaque em um filme de ação, por exemplo, ou não concordam com
um negro ser protagonista de certa produção fílmica, é importante ressaltar que essa luta
ajudou até mesmo a remodelar uma franquia, a qual nos atentaremos nesse artigo, que
desde de seu primeiro filme reforçavam estereótipos de masculinidades quase que
irreais, e de situações de extremo caráter machista.
122
que defender a honra de seu país. A premissa dos filmes, desde 1962 – o personagem
fora criado em 1953 por Ian Fleming – é muito simples e fora copiada dentro da própria
série e serviu de inspiração para muitos outros filmes: há a figura de um herói, há o
vilão (muitas vezes ―megalomaníaco‖, com o plano de destruir o mundo), e temos a
―mocinha‖, personagem feminina que na maioria dos casos está lá para ser salva e servir
de troféu para a conquista do herói. O caráter da franquia é de uma ―historitização‖ sem
igual, sendo que tais filmes de espionagem refletiam muito os anseios, os dilemas e as
perspectivas de cada época de produção: se tínhamos na década de 1960/70 inimigos
correspondentes ao lado oriental do mundo, visando o embate entre capitalistas versus
socialistas, ao final da década de 1990 até o último filme lançado - 007: Operação
Skyfall (Sam Mendes, 2012) – a preocupação já é com terroristas, sejam eles hackers ou
não.
123
qual o personagem fora vivido por Sean Connery, dando destaque para os filmes 007
contra o satânico Dr. No (Terece Young, 1962) e 007 contra Goldfinger (Guy
Hamilton, 1964), justamente para analisar esses traços de masculinidade ―perfeita‖, que
preconizava atender a uma estratificação machista do ser masculino e do ser feminino: o
homem retratado como a figura dominadora e a mulher como submissa e passiva as
decisões do dominante.
My name is Bond?
Daniel Craig estrelou quatro filmes como o agente secreto britânico. Seu
primeiro filme, em 2006, Cassino Royale (Martin Capbell) fora bem recebido pela
crítica e marcou um reinicio a série: aqui, somos apresentados a primeira missão de um
James Bond ainda iniciante, sem a alcunha do título de um ―00‖, na qual uma das
características é a ―licença para matar‖. Entretanto, no que se diz respeito a construção
do personagem, certo público não encarou de forma positiva a encenação de Craig,
alegando que Bond não era baixo e muito menos loiro. De certo o tipo físico desse mais
recente 007 fugia do comum já estabelecido pelos anteriores: esse tem um corpo mais
atlético e mais musculoso, que o faz perder a elegância dos outros (há uma cena em
Cassino Royale que o espião é confundido com um manobrista de carro, fato que
reenterra a crítica de que este não preenche o requisito de um típico lord inglês).
A primeira crítica dos que não gostaram desse James Bond do novo milênio se
diz respeito ao caráter ―brucutu‖ que o personagem apresenta: a ignorância, a explosão
de emoções e certa violência deliberada em alguns momentos servem de argumento a
uma possível descaracterização do personagem original, que culmina com a segunda
crítica - esse outro argumento parte da observação da relação que o agente mantem com
as mulheres. A arte da conquista, se comparada com os outros filmes, está presente de
forma mais discreta, a ―bond girl‖ (como são chamadas as mulheres que se envolvem
com o agente) dessa película, Vesper Lynd, interpretada por Eva Green, ainda continua
sendo um objeto sexual, desejo alcançado por Bond. Porém, em Cassino Royale, o
124
personagem de Craig se apaixona por Lynd, e no desenrolar da narrativa tem que sofrer
as consequências pela traição e suicídio da amada, demonstrando toda uma fragilidade
emocional e vulnerabilidade que em filmes anteriores seria improvável de acontecer.
O vilão homossexual Silva, interpretado por Javier Bardem, faz com que James
Bond caia em uma armadilha, o amarrando sentado em uma cadeira. Certa conversa
clichê entre herói e bandido acontece antes do diálogo que marca um momento inédito
para a franquia: a insinuação de que o agente secreto poderia ter tido uma relação
homossexual. Isso acontece quando Silva começa a passar suas mãos sobre as coxas de
Bond e o lança a seguinte pergunta: ―O que será que o MI6 [órgão do governo para qual
o agente trabalha] acharia dessa situação inusitada [sobre tal insinuação sexual]? ‖, o
espião então responde: ―quem disse que é a primeira vez que isso acontece? ‖.
125
homem e responder à altura, sem preconceitos e lançando a possibilidade de
imaginarmos que o personagem (mesmo com sua hipermasculinidade) pode ser também
homossexual, isso sem alterar em nada em suas ações.
Contudo, se fãs alegam que a virilidade de James Bond nesses novos filmes se
perdeu, Dominique Kalifa, em seu artigo Virilidades Criminosas? poderia discordar.
Para o autor, o primeiro elemento marcante no arquétipo do homem é seu vigor e
aparência física, pois em uma sociedade e em relações interpessoais de competição
dominado pela violência, força, potência e músculo constituem atributos maiores.
Portanto, é assim que se forja o James Bond de Daniel Craig: aberturas podem
ter sido dadas em relação a direitos das mulheres, e até mesmo homossexuais, entretanto
a masculinidade é somente ainda mais reforçada com essas características que prezam
pelo homem dominador, que ainda quer submeter a mulher a dominação social e sexual,
por mais que na película isso seja demonstrado de forma mais sutil. Segundo Kalifa, a
construção e o reforço de tais características ao homem correspondem a um sistema de
desqualificação constante do feminino, com realmente uma relação sexual animalizada:
restrita ao ato de penetração, ―a sexualidade é considerada uma manifestação de força,
expressão de uma dominação. A mulher (igualmente como o homossexual passivo)
deve sofrer, supostamente a potência e a força do homem‖. (KALIFA, 2013:314)
Desta forma, se verificamos que o Bond de Daniel Craig ainda sofre de uma
exacerbada masculinidade que tende para um machismo conservador e perigoso, o Bond
de Sean Connery é a representação de uma sociedade retrógrada que buscava dar uma
126
resposta a gênese dos movimentos sociais, de emancipação feminina na sociedade. É
complicado fazer afirmações, mas parece que os primeiros filmes do 007 vinham em
contraponto a chamada ―crise da masculinidade‖. Ambra escreve que na passagem do
século XIX para o século XX – contexto de emergência da psicanálise – tal crise
emerge justamente nos Estados Unidos e na Europa. A emancipação feminina, através
da educação e de uma reinvindicação de direitos cada vez mais intensificada, faz os
homens se sentirem cada vez mais ‗ameaçados em sua nova identidade por esta nova
criatura que quer fazer como eles, ser como eles. (AMBRA, 2013:8)
Assim, para reforçar caráter antigos, contra essa luta dos movimentos sociais,
Sean Connery encena na década de 1960 um James Bond cínico, mulherengo,
sofisticado e implacável, que conquistaria a mulher que quisesse com sua masculinidade
segura e inquestionável em anos de gênese da revolução sexual. Desta forma, embora
fosse verificado uma constante degradação as mulheres, seja fisicamente ou
moralmente, Bond tinha o público feminino aos seus pés e mesmo que sem
consentimento, elas também se apaixonavam.
Conclusão
127
frente e esse mesmo arquétipo se repetiu na franquia pelo menos até os anos de 1990,
tendo influências até hoje na construção da narrativa dos filmes do 007 e tendo uma
influência determinante no pensamentos dos fãs da franquia, que por muitas vezes
reproduzem falas que por vezes já estão ultrapassadas por serem consideradas
machistas, racistas ou homofóbicas. As próximas notícias são de que o próximo ator a
viver James Bond será negro, e inquietações a respeito disso já estão presentes nos
comentários de internautas.
Essa nova guinada pode ser interessante a série, pois, pelo que podemos
perceber, uma mentalidade atrasada, que começou ainda na década de 1960, que
realmente era conservadora e ia de encontro as propostas de emancipação dos
movimentos sociais, ainda perpetua em nossa sociedade contemporânea: o machismo, a
submissão e o preconceito pouco mudaram nos filmes de James Bond, e mesmo que
temos uma ―descaracterização‖ do personagem, por meio de atos e consequências a ele,
que por vezes corroboram com o fim de uma perspectiva machista, sempre presente na
série, a presença do homem alfa, que está acima de todos (e principalmente das
mulheres) ainda é marcante. Portanto, é importante para uma melhor igualdade de
gênero a desconstrução de certos paradigmas.
Bibliografia
AMBRA, Pedro Eduardo Silva. A noção de homem em Lacan: uma leitura das formas
de sexuação a partir da história da masculinidade do ocidente. Tese de mestrado, São
Paulo, 2013
CAMARGO, Felipe Côrte Real de. ―Nobody does it better‖: James Bond e as
masculinidades. IN: Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25
a 28 de agosto de 2008, p. 4
CECÍLIA, Almeida Rodrigues Lima. A representação arquetípica das bond girls nos
filmes de 007. IN: Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder - Florianópolis, de 25 a
28 de agosto de 2008
128
SANTIDADE E VIRGINDADE NA LEGENDA MAIOR DE SANTA CLARA DE
ASSIS
Resumo: Este texto tem como finalidade analisar a Legenda de Santa Clara Virgem, escrita por
Thomás de Celano entre 1254 a 1257. Para isso levamos em consideração o contexto histórico e
a situação das mulheres na sociedade da época. Na análise da legenda buscaremos expor como
foi retratada a vida de Santa Clara de Assis, desde seu nascimento até sua santificação. A leitura
desse documento buscou compreender as virtudes, milagres e virgindade, como categorias
fundamentais para a compreensão da construção de um dado ideal de feminilidade presente nas
hagiografias dos séculos XIII a XIV.
1. Introdução
1
UFG/RC; Graduando em História; email: jorgeluizdasilvaalves@gmail.com
2
UFG/RC; Doutora em História; email: emartinsdefreitas@gmail.com
129
importantes agentes na criação dos novos modelos de santidade construídos para a
contenção dos fiéis.
As mulheres foram durante a Idade Média minoria dentre os merecedores do
título de santos. Situação que se altera por volta do século XIII, neste século houve um
enorme crescimento da santidade feminina, e é nesse contexto que se insere Santa Clara.
Considerando que a santidade é uma construção social, um ideal que se
desenvolve historicamente e que, portanto, diferentes pessoas são reconhecidas como
santas em diferentes contextos, entendemos que pensar a hagiografia de Santa Clara à
luz dos estudos de gênero se configura como possibilidade para a compreensão desse
caráter transitório da santidade.
130
desejo de retornar as origens do Cristianismo, ou seja, regressar à vida apostólica – um
estilo de vida baseado na vida de Cristo e seus apóstolos (BOLTON, 1983).
Para esse retorno a vida apostólica se estabeleceram três princípios básicos: a
imitação da Igreja primitiva, pela imitação de Cristo e dos apóstolos, através do
sofrimento, da espiritualidade e da penitência; o amor por Deus e pelo próximo através
do cumprimento literal dos Mandamentos; e, a obediência à exortação de Cristo para a
prática da vida de pobreza, de trabalho manual e de aceitação de esmola (BOLTON,
1983).
Dentre os que desejavam participar dessas novas formas religiosas estavam
também as mulheres, pois esses movimentos laicos possuíam seguidores de ambos os
sexos. Entre as ordens religiosas criadas para receber mulheres temos: as Beguinas, as
Cistercienses, as Valdenses e as Beneditinas.
3. Movimento Franciscano
131
Esse movimento fugia da realidade medieval da época já que os franciscanos
eram peregrinos, ou seja, não possuíam um convento ou mosteiro, porém fossem em
grupos pequenos ou grandes, a intenção era levar as ideias de fraternidade e pobreza a
todos os lugares possíveis.
Por volta de 1212, de acordo com Frohlich, Chiara de Favarone (depois Clara de
Assis) dirige-se à Porciúncula ―após fugir de casa para juntar-se ao movimento [liderado
por Francisco], estabelecendo-se por fim em São Damião e dando início à primeira
ordem franciscana feminina a ordem das Clarissas.‖ (FROHLICH, 2001).
Nesse processo Francisco teria procurado o Papa para a aprovação de seu modo
de vida religioso, não obtendo de imediato a aprovação. Foi por volta de 1216 que o
Papa Honório III permitiu oficialmente o estabelecimento da nova ordem. Após isso o
movimento ainda passou por crises que aos poucos foram sendo resolvidas. Francisco
morreu em 1226, não demorando muito sua canonização, que ocorre por volta de 1228.
Durante toda a Idade Média foi assim, as mulheres tinham que seguir modelos
de comportamentos criados para a repressão dos copos femininos. A maioria dos
escritos da Idade Média dirigidos às mulheres, sejam eles religiosos ou didáticos, foram
escritos como manuais de comportamentos femininos, ou seja, ditando qual seria o
modelo perfeito do feminino. Essas mulheres por sua vez tomaram caminhos diferentes
de acordo com a hierarquia social e assumiram diversos papéis nas famílias como os de
esposa, filhas e mães (CASAGRANDE, 1990).
132
Esses textos voltados para a criação de um modelo de comportamento feminino
que perdurasse, foram escritos do final do século XI ao início do XIII. As diferenças
religiosas e sociais das mulheres influenciaram e muito na elaboração de tais textos,
fossem os pastorais ou os didáticos. Em meio a essa construção de modelos femininos
que deveriam guiar ou não as mulheres, foi criado inicialmente a seguinte divisão: de
um lado as luxuriosas detentoras do pecado, e, de outro, as castas, símbolo da virtude.
Passa-se a se dirigir ao feminino como mulheres e não mulher levando em conta
que cada uma passa a ter suas particularidades e pluralidades. Em meio a essas
diferenças as mulheres passam a aparecer com mais frequência nos textos pastorais e
didáticos onde é tentado estabelecer um modelo unanime para classificar o público
feminino.
Vários autores e pastores deixam claro em seus escritos a divisão feita entre as
mulheres ao deixar as meretrizes de fora dos escritos, por exemplo, alegando que essas
não seriam dignas de serem nomeadas. Outro critério utilizado na divisão do grupo
feminino foi o de idade que dividia as mulheres em jovens e velhas.
Nessa divisão as mulheres mais velhas ficaram com os piores papéis já que
foram nomeadas como alcoviteiras e feiticeiras que teriam poder sobre as mais jovens.
Em vários escritos foram tidas como agentes do mal e como criaturas viciosas e
perigosas.
As mulheres desse período, como em vários outros, se depararam com o
problema de sua inserção na sociedade, ou seja, de se tornarem visíveis aos outros, coisa
que só poderia ocorrer se elas entrassem para alguma família. Entre todo esse ritual as
mulheres foram novamente divididas dessa vez levando em consideração a sua posição
social. (CASAGRANDE, 1990).
Rainhas, princesas e damas faziam parte da nova divisão utilizada para a criação
e reforço de modelos femininos a serem seguidos, essas mulheres de posição social
elevada por sua vez deveriam servir de exemplo já que por vontade divina essas
ocupavam local de destaque e respeito ou seja quanto maior a posição social maior o
compromisso e responsabilidades com o modelo feminino a ser seguido. Elas deveriam
atuar e desenvolver seus papeis com todo o cuidado possível para que quem as visse
seguisse o exemplo.
Dentre esses papeis distintos encontramos três que formavam outro grupo de
mulheres: as virgens, viúvas e casadas. Dentro do grupo existia uma hierarquia que era
133
estabelecida de acordo com a abdicação dos desejos da carne. A virgem era a mais pura
já que de livre e espontânea vontade havia aberto mão dos desejos pecaminosos por
completo tanto no corpo quanto na mente. A viúva ocupava o segundo lugar já que esta,
por ventura de algum acontecimento perdeu o esposo e desde então decidira renunciar
os desejos do corpo. As casadas ocupariam o terceiro lugar já que essas faziam o uso do
corpo mesmo que somente para procriação. Nesses exemplos podemos ver três formas
distintas de utilização do sexo. Segundo Casagrande: ―A virgem tem na hierarquia
moral fundada na castidade o mesmo papel que tem a rainha na hierarquia social figuras
portanto inatingíveis pelo nível de excelência e de superioridade em que são colocadas.‖
(CASAGRANDE,1990, p. 113).
Esses modelos, encarnados pela virgem e pela rainha, são os modelos morais
perfeitos a serem seguidos por todas as mulheres, de acordo com as condições de cada
uma. Na divisão feita a partir da idade as mulheres jovens não ficaram livres dos
ataques dos textos didáticos e pastorais. A não ser nesses modelos citados as mulheres
jovens eram tidas por muitas vezes como perigosas já que ao sair de casa poderia
provocar fosse na igreja, praça, rua, festa ou qualquer outro lugar um sentimento de
luxuria nos homens fazendo com que fosse despertado em algumas vezes o lado animal
dos homens, o que poderia resultar em uma violência, infortúnios entre outras atitudes
que sempre recaíram sobre essas mulheres ―vagabundas‖. Essas mesmas mulheres que
são comparadas a animais segundo Casagrande nos informa a partir de Gil de Roma,
―animais selvagens que, habituados à companhia do homem se tornam domésticos e se
deixam tocar e acariciar‖. (CASAGRANDE, 1990, p. 121). Essa citação se refere a
mulher que possua vida social mesmo sendo negado isso a ela.
Essas nomenclaturas são dadas as mulheres desde Eva que é vista como a
mulher que queria conhecer o bem e o mal e, portanto, induziu Adão a comer o fruto
proibido, porém o que ninguém lembra muito é que Eva foi criada segundo a Bíblia
depois que Deus havia dito para Adão não comer do fruto proibido, porém mesmo
assim desde esse fato as mulheres são questionadas e tidas como homens inacabados.
Por conta disso elas não possuem racionalidade, discernimento entre outras coisas que
somente os ―homens possuem‖ o que as deixam com algumas ―debilidades‖, logo
precisam ser guardadas, protegidas de si mesmas.
A palavra custodia aparece com frequência nos textos pastorai e didáticos
dirigidos às mulheres. Uma das formas de custodiar as mulheres seria a vergonha, por
134
meio dessa seria possível proteger a mulher tanto dos outros quanto de si próprias, já
que elas seriam mais perigosas para si mesmas do que qualquer outra coisa: ―a vergonha
custodia a mulher porque a afasta da comunidade social, a remete para o espaço fechado
e protegido da casa e do mosteiro, preserva-lhe a castidade, relega-a para uma louvável
animalidade‖. (CASAGRANDE, 1990, p. 121).
Esses modelos sempre chamados na literatura pastoral e didática da época
traziam a tona o quanto era necessário estabelecer modelos que dessem conta de
abranger o maior número de mulheres possíveis e para isso era utilizado até mesma a
inferioridade feminina explicada na Bíblia de acordo com alguns teólogos.
As mulheres deveriam fiar, bordar e no máximo saber administrar a casa. As
mulheres envolvidas com a escrita na Idade Média foram as integrantes do mundo
religioso que tinham acesso a educação. Foi no domínio religioso que as mulheres se
fizeram mais presentes inclusive a partir dos movimentos da vita apostólica quando elas
ganham mais força para entrarem na vida religiosa.
A Legenda de Santa Clara Virgem foi escrita por Thomás de Celano não se sabe
ao certo o ano, julga-se que possa ter sido escrita entre 1254 a 1257, período em que o
escritor já se encontrava bem estabelecido e possuía renome. As informações a respeito
de Thomás de Celano também oscilam, a respeito de seu nascimento trabalha-se com as
datas de 1190 a 1200. Nasceu na comuna italiana de Celano na região de Abruzos, foi
um frade católico medieval da Ordem dos Franciscanos além de poeta e escritor
hagiógrafo, já que é autor de três obras biográficas sobre São Francisco de Assis. Entrou
para a Ordem Franciscana por volta de 1215, já em 1257 assumiu o posto de diretor
espiritual do convento das Clarissas em Tagliacozzo, onde morreu entre 1260 a 1270.
A referida legenda é composta por 63 Páginas que estão divididas em Introdução
e duas partes. A primeira parte é formada por 29 subtítulos que abrangem o nascimento,
a vida na casa paterna, a amizade com Francisco, sua conversão, o embate com os
parentes, sua determinação e seus milagres. A segunda parte, composta por 11
subtítulos, aborda os milagres de Santa Clara depois de sua morte e sua canonização.
Iniciando a legenda Thomás de Celano deixa claro na introdução a necessidade
por parte do sexo ―débil‖, ou seja, o feminino, de receber ajuda, em um momento onde
para a Igreja a sociedade passava por tentações e vícios, o mundo escurecia com toda
135
essa falta de luz e virtudes, então Deus teria suscitado novas Ordens Santas a partir de
sua piedade, e teria providenciado por elas uma nova base para a fé e uma reforma dos
costumes, logo não poderia faltar ajuda para as mulheres. ―E não convinha que faltasse
ajuda ao sexo débil, pois, colhido no abismo da concupiscência, não era atraído ao
pecado por menor desejo.‖ (CELANO, 1254/1257).
A partir disso e das discussões feitas a cerca das mulheres na Idade Média é
perceptível a utilização da santidade enquanto modelo imposto às mulheres da
sociedade medieval ocidental: ―as mulheres imitem Clara, vestígio da mãe de Deus e
nova guia das mulheres.‖ (CELANO, 1254/1257).
A primeira parte da legenda busca construir uma linearidade para a vida de
Clara, cujo ―nascimento foi bastante esperado‖, pois durante a gravidez sua mãe foi
avisada durante uma oração que daria à luz a uma ―luz‖ ainda mais clara que a própria
luz, por conta disso ela teria dado o nome de Clara para a filha a fim de que se
cumprisse a vontade divina. Isso nos leva a pensar que a legenda mostra que Clara já
nasceu predestinada a alguma coisa grandiosa.
Da infância piedosa, passando pela decisão de manter-se virgem para Deus,
somos informados da vida de Clara, e de seu encontro com Francisco, quando ―passou
do século a religião, o que gerou uma revolta de sua família‖ já que Clara deixou tudo
de sua vida mundana para trás inclusive sua família e casa, além de ter doado toda sua
herança. Atitudes imputadas pelo hagiógrafo à influência de Francisco sobre Clara: ―O
pai Francisco exortava-a a desprezar o mundo, mostrando com vivas expressões que a
esperança do século é seca e sua aparência enganadora.‖ (CELANO, 1254/1257).
Após sua conversão teve de ser firme em relação a repressão violenta de seus
parentes que insatisfeitos com suas escolhas tentaram impedi-la:
Mal voou a seus familiares a notícia, e eles, com o coração dilacerado,
reprovaram a ação e os projetos da moça. Juntaram-se e correram ao
lugar para tentar conseguir o impossível. Recorreram à violência
impetuosa, ao veneno dos conselhos, ao agrado das promessas,
querendo convencê-la a sair dessa baixeza, indigna de sua linhagem e
sem precedentes na região. (CELANO, 1254/1257).
Apesar de tudo isso ela deu início à Ordem das Mulheres Pobres, que obteve
certo êxito já que mulheres eram atraídas pela ―pré santificação‖ feita a respeito de
Clara, que ocorreu por meio dos rumores de suas virtudes e vida dedicada ao Senhor.
Tantas mulheres atraídas para os mosteiros causou uma reviravolta na época. A notícia a
respeito da bondade de Clara, segundo Celano, se espalhava e chegando a lugares
136
remotos e logo, ela passou a ser imitada e se tornou ainda mais um referencial poderoso
com a ajuda de sua santa humildade, porém não alcançou sua independência: ―Por fim
obrigada por São Francisco assumiu o governo das senhoras. Dai brotou em seu coração
temor e não enchimento, crescendo no serviço e não na independência.‖ (CELANO,
1254/1257).
Mesmo à sombra de Francisco, Clara queria a autonomia e o título de pobreza
para a sua ordem. Clara solicitou então ao Papa Inocêncio III o privilégio da pobreza já
que ela tinha uma enorme ligação com essa pobreza voluntária.
Clara teve também fora a suas virtudes, vários milagres atribuídos a ela antes e
depois de sua morte. Como por exemplo, o do pão, o do azeite, milagres atribuídos a
santa durante a sua vida, o que nos mostra que o milagre feito em vida atrairia mais
pessoas ainda para o modelo de vida de Clara principalmente mulheres, pois a visão a
respeito de milagres as pessoas mais boas de coração e tementes a Deus, logo essas
pessoas seriam a conexão entre Deus e o restante dos fiéis. Outra questão bem resolvida
por parte de Clara era a mortificação da carne que se tornava leve por meio do amor que
possuía em seu coração: ―Por isso, podemos ver claramente que a santa alegria que lhe
sobrava dentro extravasava fora, porque o amor do coração tornava leves os castigos
corporais.‖ (CELANO, 1254/1257).
Poderia dizer-se que esse amor se dava em prol da conexão entre Clara e Deus já
que de acordo com Celano ela era entregue a prática da oração. Porém durante esses
momentos era tentada várias vezes por forças contrárias. Esse poder da oração, atribuído
pelo hagiógrafo expressa-se na conversão de sua irmã Inês:
De fato, não devemos sepultar no silêncio a eficácia admirável de sua
oração que, ainda no começo de sua consagração, converteu uma alma
para Deus, e a protegeu. Tinha uma irmã jovem, irmã na carne e na
pureza. Desejando sua conversão, nas primeiras preces que oferecia a
Deus com todo afeto, insistia nisso: que, assim como no mundo tinha
tido com a irmã conformidade de sentimentos, assim agora se
unissem, ambas, para o serviço de Deus em uma só vontade.
(CELANO, 1254/1257).
Inês também sofreu com a repressão familiar, sendo vítima de ataques violentos
de seus familiares onde podemos enxergar melhor as relações de poder usadas como
arma poderosa de intimidação nesse momento. No entanto Inês não amoleceu em seu
compromisso e com a ajuda da oração de Clara saiu vitoriosa. ―Clara prostrou-se numa
oração em lágrimas, pedindo que a irmã mantivesse a constância e suplicando que a
137
força daqueles homens fosse superada pelo poder de Deus.‖ (CELANO, 1254/1257).
Mais uma vez fica claro a ideia do poder da oração de Clara.
Em meio a toda sua trajetória Clara fica bastante enferma e pede a confirmação
do seu privilégio da pobreza e o tem concedido. Após isso, Clara morre e as virgens de
Cristo vêm busca-la. A notícia de sua morte abalou toda a cidade e muitos a
proclamaram Santa o que gerou pode-se dizer uma ―canonização antecipada‖. Várias
pessoas começaram a recorrer ao túmulo de Clara louvando a Deus e fazendo orações a
ela. Pouco tempo depois Inês também faleceu e se juntou a sua irmã em ―glória eterna‖.
Após a sua morte foram atribuídos vários outros milagres à Clara dentre os quais
tiveram: expulsão de demônios, cura de cegos, enfermos entre outros. De acordo com
Celano: ―Quando se espalhou a notícia desses milagres e a fama das virtudes da Santa
começou a se propagar cada vez mais amplamente, [...] Todo o mundo já esperava com
grande desejo a canonização de tão insigne virgem.‖ (CELANO, 1254/1257). Dois anos
depois de sua morte Clara foi canonizada o que todos já ansiavam com fervor. Ela foi
inscrita no catálogo dos Santos e foi decretado que ―em toda Igreja se celebrasse
solenemente a sua festa.‖ (CELANO, 1254/1257).
138
seguido pelas fiéis. Segundo Casagrande, as ―virgens não maculadas [eram]
completamente dedicadas à vida da alma (...)‖ (CASAGRANDE, 1990, p.116).
Outras virtudes também foram trazidas pelos depoentes como a piedade,
honestidade, bondade entre outras. A pobreza com certeza foi uma das coisas mais
presentes na vida de Clara, porém, tomou maior força após sua conversão, já que de
livre e espontânea vontade ela escolheu esse caminho ao doar toda sua herança e abrir
mão do matrimonio. Segundo Brenda Bolton essa pobreza estava ligada aos
movimentos da vita apostólica, que se espalhavam desde o século XII que estava
bastante relacionada com a imitação de Cristo.
Clara não foi somente modelo de santidade a ser seguida ou foi utilizada
somente para oprimir, mais também sofreu com a repressão e violência de sua família.
A família de Clara não aceitava o fato de ela ter vendido sua herança e doado tudo sem
contar o fato dela ter se recusado a se casar e ainda ter ido embora de casa para viver em
pobreza mesmo porque o casamento, sobretudo entre as famílias poderosas era um
negócio utilizado como forma de controle para manter a riqueza das famílias. Clara foi
vítima de uma raiva familiar enorme e sofreu agressões de vários tipos inclusive físicas
por parte de seu tio que zelava por sua família já, no lugar do pai falecido e na ausência
filho homem para assumir o controle da família (CELANO, 1254/1257).
Percebemos aí então a questão das relações de poder estabelecidas a partir do
gênero. Dentro dessas relações de poder se percebe que o discurso masculino é
construído a partir de uma suposta fragilidade feminina que vinha legitimar o poder de
controle e posse sobre as mulheres. O domínio dos homens sobre o corpo das mulheres
está ligado com certeza a virgindade que era a base para que um pai pudesse estabelecer
um ―negocio‖ com outras famílias, para isso esse pai propunha o casamento de sua filha
virgem ou seja vendendo-a. Todo esse processo vem nos mostrar e evidenciar que as
mulheres não possuíam poder sobre seu corpo e que este pertencia aos homens.
Clara também quebrou outra relação importante até então, a da Igreja com as
famílias, isso ao se desfazer de toda sua herança em prol da pobreza. Entretanto, pode-
se perceber na leitura que o papado fez dos depoimentos dados para o Processo de
Canonização de Santa Clara, a supervalorização dada à virtude da virgindade, como fica
explicito na Bula de Canonização da Santa (DUARTE, 2009, p. 168).
Isso nos mostra que as outras virtudes chamadas também no processo de
canonização de Clara como virtudes auxiliares da virgindade, por exemplo, sua
139
benignidade e outras virtudes foram postas com um valor inferior diante da virgindade,
que para Clara ultrapassava os limites do corpo.
O processo de canonização de Santa Clara foi formalizado com velocidade
maior em relação a outros processos de canonização feios pela Cúria Romana. Isso nos
leva a pensar que o papado teve uma forte vontade de oficializar a santidade de Clara,
pois, através dela poderia afirmar um novo modelo de santidade, para ser seguido pelos
fiéis, principalmente, as mulheres porque era preciso fixar a ideia de que uma vida
religiosa só poderia se construir a partir da virgindade.
Depois de toda essa leitura da Legenda de Santa Clara Virgem, podemos
concluir que esta foi uma poderosa arma para o reforço da ideia de que o sexo ―débil‖
precisaria de ajuda e por isso a necessidade de se criar um modelo feminino ―perfeito‖ a
ser seguido pelas mulheres e isso com certeza é realizado a partir das noções de
virtudes, virgindade, temor a Deus e castidade, trazidas por essa Legenda.
Referências Bibliográficas
DUARTE, Teresinha Maria. Os séculos XI, XII e XIII ou a Idade Média Central.
Texto inédito. Catalão: UFG/CAC/Depto de História e Ciências Sociais, 2010.
140
LE GOFF, J. e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
Bauru: EDUSC, 2006.
141
FULLMETAL ALCHEMIST, O MANGÁ DE HIROMU ARAKAWA, SOB O
OLHAR DA HISTÓRIA
Resumo: Os mangás, nome dados as histórias em quadrinhos japonesas, estão cada vez
mais presentes no mercado editorial brasileiro. Impressos em preto e branco e em papel
jornal, suas páginas são recheadas de diversos temas e assuntos, voltados a agradar
todas as faixas etárias. Para além do reconhecimento dos mangás como um
entretenimento barato, buscou se discutir nesse artigo, a possibilidade de analisá-los
como documentos históricos. Tendo em vista que, diversos autores recorrem a temas
históricos como pano de fundo para construir a trama de suas obras. Para uma análise
detalhada desta questão, elegemos como corpus documental Fullmetal Alchemist,
mangá de autoria de Hiromu Arakawa. Portanto, o objetivo desse artigo foi analisar em
que medida a Segunda Guerra Mundial estava representada em meio ao enredo do
mangá. Utilizando não apenas os volumes do mangá, editados no Brasil, mas também
os três volumes; o Fullmetal Alchemist – Guia Completo, o que possibilitou o acesso a
informações, curiosidades, e entrevistas até então inéditas. Assim, a partir das análises
da obra, juntamente com o cruzamento de conteúdos no guia completo da série, com
entrevista da autora, foi possível constatar que, embora, Arakawa, busque inspirações
em temas do passado, esse passado está sempre em diálogo com o contexto em que a
autora está inserida. Há sempre representações do mundo em meio ao fantasioso
universo de sua obra.
O presente artigo tem por objetivo, com base na história cultural, trazer
discussões acerca do conceito de representações e assim, traçar relações com a obra
Fullmetal Alchemist e os temas aos quais a autora buscou retratar.
1
Graduado em Licenciatura em História, pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Email: Jpaulo.09@terra.com.br
142
Desse modo, as representações do mundo social são sempre determinadas pelos
interesses de grupos que as forjam.
143
As palavras de Chartier nos colocam inicialmente, diante de três questões
primordiais a serem encaradas ao tomarmos Fullmetal Alchemist como objeto desta
análise. Em primeiro lugar, temos que levar em consideração a intenção da autora, ou
seja, em quais temas Hiromu Arakawa baseou para construir o enredo de sua obra. Em
segundo lugar, deve-se estar atento à relação passado/presente. Assim, quais seriam as
inquietações do presente que levou a autora a reinterpretar o passado e colocá-lo como
pano de fundo para ações de seus personagens? Por último, não se deve perder de vista
o processo de recepção da obra a qual está intimamente ligada ao contexto que a
recepciona, assim a mesma está sempre aberta a múltiplas e variadas interpretações.
144
A trama da obra se passa em um mundo, que embora se mostre plenamente
diferente desse, possuem alguns traços que remetem a esse mundo. O principal
conhecimento desenvolvido por esses povos é a alquimia. A história se desenvolve em
torno de dois irmãos: Edward Elrick e Alphonse Elrick os quais após verem a morte da
mãe tentam por meio da alquimia, trazê-la de volta à vida. No entanto, a transmutação
humana é algo proibido e ambos pagam por esse ato. Alphonse perde seu corpo e Ed
perde sua perna. Edward troca seu braço para fixar a alma de Al em uma armadura,
utilizando-se da teoria da troca equivalente. Por essa razão, Edward possui uma perna e
um braço de metal e Alphonse é, literalmente, uma armadura vazia. A partir desse
acontecimento os irmãos iniciam uma busca pela pedra filosofal com o intuito de
recuperarem seus corpos através dela.
Assim, não se pode criar algo do nada e nem tão pouco desrespeitar a lei
fundamental da ―troca equivalente‖, ou seja, é preciso dar algo do mesmo valor para
obter algo em troca. Além disso, para a realização de uma transmutação alquímica é
preciso utilizar um círculo no qual a matéria prima é colocada no centro para ser
transmutada. Edward Elric e seu irmão Alphonse acreditavam que por meio desse
procedimento poderiam trazer sua falecida mãe novamente a vida. No entanto, eles
quebraram o maior tabu da alquimia: o de que não se pode realizar uma transmutação
humana, visto que não há algo de igual valor a se pagar pela alma de alguém. Como não
obtiveram êxito na experiência, os dois decidem procurar pela pedra filosofal, não para
tentar trazer sua mãe novamente à vida, mas sim para tentar recuperarem seus corpos.
145
aços. É usado principalmente no lugar de braços e pernas. Depois de conectá-los aos
terminais nervosos, é possível movê-lo livremente de acordo com a vontade do
usuário.‖ (ARAKAWA, 2012, p. 45). Durante a jornada da dupla, aparecem vários
personagens que por motivos variados necessitaram implantar um automail.
A ideia dos automails não veio do nada. A autora inspirou-se em cenas diárias
do seu cotidiano, de pessoas que necessitavam utilizar próteses para superar a ausência
de um membro. Arakawa então decidiu colocar em sua obra, não somente as próteses
mecânicas, mas também o tema das pessoas que não se abatem pela falta de um membro
do corpo e que conseguem continuar suas lutas diárias com o auxílio de próteses.
Pessoas que mesmo com a perda conseguem enxergar que ganharam coisas em trocas.
―Quando eu pensava em acrescentar algo além da alquimia ao protagonista da história,
eu estava em um de meus empregos temporários de controle de tráfego diante de um
centro de reabilitação e vi uma pessoa retirar a prótese e andar com ela amarrada e
pendurada na cintura. Foi daí que tive a ideia. Ver uma prótese presa ao quadril deve ser
uma cena marcante.‖ (ARAKAWA, 2012, p. 165)
146
localiza a Cidade Central que além de ser a sede do governo, conta ainda com a Corte
Marcial, laboratórios de alquimia e a biblioteca nacional.
Outro país que tem destaque na trama é Ishibal. Este país, diferente de Amestri,
é habitado por pessoas de pele morena clara, olhos vermelhos e cabelos cinza e são
devotas da religião local. ―A maioria dos amestrinos é da raça branca, na sequência têm
os negros e os da raça amarela, mas os ishbalianos não se enquadram em nenhum deles,
possuindo uma pele morena‖. (ARAKAWA, 2012, p. 90)
Assim por trás desse extermínio, que aparentemente seu deu por conflitos de
interesses e divergências religiosas, existe um segredo muito maior. É nesse ponto que a
história começa a apontar diversos segredos existentes por trás da alquimia e da pedra
filosofal e o verdadeiro significado da invasão e extermínio de Ishbal.
147
templo e dominava a política e o povo de forma forte, mas por realizar um bom
governo, tinha a confiança de seus súditos. Com o passar do tempo o rei envelheceu, e
decidiu buscar a imortalidade. Como o conhecimento sobre alquimia no país já havia
obtido bons resultados a ponto de produzir uma forma de vida que vivia em um frasco
chamado de ―homúnculo o homenzinho do frasco‖, o rei deixou- se levar pela ambição
e aceitou a proposta do homúnculo de construir um enorme círculo em volta de Xerxes
como parte do procedimento para se chegar à imortalidade, a qual seria concedida ao rei
após o sacrifício da vida de todos os habitantes do país.
A ambição do antigo homúnculo não parou por aí. Após esse trágico episódio,
ele passou a se chamar ―Pai‖. Sua ambição passou a ser a de se tornar um ser perfeito.
Para tanto, com o poder da pedra filosofal em seu corpo, criou os homúnculos que eram
seres humanos artificiais com surpreendentes poderes. Ao todo eram sete criaturas e
cada uma tinha seu nome derivado de um pecado capital. Os sete pecados aqui
representam o desprendimento do ―Pai‖, dos sentimentos que poderiam atrapalhá-lo a se
tornar um ser perfeito. Assim esses sentimentos foram materializados para realizar suas
vontades arquitetando seu plano.
148
Durante o extermínio de Ishbal, novamente o poder da pedra filosofal foi
colocado à mostra que fora criada pelo exército por meio do sacrificio de vários
prisioneiros. Foi a partir deste poder que se conseguiu aniquilar quase toda os
ishbalianos. No entanto, o verdadeiro objetivo era promover o ódio e deixar marcado de
sangue o país. Antes mesmo de Bradley chegar ao poder, os homúnculos já realizavam
experimentos humanos que recrutavam alquimistas que se deixavam levar pelo poder e
esqueciam dos aspectos éticos e da utilização do conhecimento alquimico para o bem da
humanidade. Mas quando estes falhavam, se tornavam mátéria prima para os
experimentos, evitando assim, o possível vazamento de informações.
Para realizar tal feito, o ―Pai‖ aguarda o ―dia prometido‖ no qual a terra e a lua
se alinhariam formando um eclipse. Assim ele pretendia conquistar a perfeição
absorvendo o poder de ―Deus‖ para ele. Para por fim ao plano do ―Pai‖, os irmãos Elrics
se unem ao exército que se rebelaria e arquitetam um plano juntamente com Hohenheim
e vários outros personagens encontrados ao longo da série e partem para a luta final.
149
devido às características que remetem a esse período e se confirma com a afirmação da
própria autora:
Outro tema que chama muito atenção nesse mangá é a guerra entre os dois
países que acontece antes da trama linear da obra, ou seja, antes da jornada dos irmãos
Elrics. Este se torna o tema chave para a conclusão da série, sendo dedicado a ele um
volume inteiro da versão japonesa (dois volumes da edição brasileira). O que se vê
nesse volume, são os combatentes que estiveram no campo de batalha lamentando pelo
sangue derramado de inocentes, pessoas que foram manipuladas pelo exército e tiraram
a vida de milhares. Personagens estes que carregam o trauma deixado por uma guerra
injusta.
150
vida dos ishbalianos restantes. No entanto, o que ele recebe em troca é um não e a
afirmação de que a vida de um homem não vale mais do que uma vida, independente do
que ele represente.
Esse conceito apontado pela autora como mais importante dentro da alquimia,
foi explorado por ela no enredo de Fullmetal Alchemist no momento em que os irmãos
Elrics passam por um teste proposto por sua futura mestra e que os solta em uma
floresta e pede para que eles tragam o significado da frase: ―Um é tudo e tudo é um‖.
Assim, eles chegam à conclusão de cada ser vivo é um, mas fazem parte de um todo
maior, ou seja, ninguém está sozinho no mundo, sendo responsáveis por suas ações
diárias na luta pela sobrevivência e construção de um lugar melhor.
151
criado adicionando um ‗espírito‘ a esses elementos, ou à combinação deles.
(ARAKAWA, 2012, p. 140)
Em suma, Fullmetal Alchemist, embora seja uma obra de ficção, percebe-se que
a autora se embasou em vários temas e assuntos e, como ela própria disse, deu seu toque
especial e criou o mangá.
152
Ampliando essa discussão, o massacre de Ishbal representa a forma como o
conhecimento científico foi utilizado para construir armas de destruição em massa,
durante o século XX, principalmente no caso da Segunda Guerra Mundial em que a
Alemanha Nazista exterminou milhares de judeus por serem julgados como inferiores
em relação aos alemães. A apropriação, por parte do exército de Amestri do
conhecimento intelectual dos alquimistas, revela bem esse caráter de como o
conhecimento científico, que a autora acredita que deveria ser utilizado para se chegar
mais próximo da perfeição da humanidade, acabou por ser utilizado para por fim as
vidas humanas.
Referências Bibliográficas
ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – Guia Completo - vol. 1. São Paulo: JBC, 2012.
ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – Guia Completo - vol. 2. São Paulo: JBC, 2012.
ARAKAWA, H. Fullmetal Alchemist – Guia Completo - vol. 3. São Paulo: JBC, 2012.
153
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto
Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002.
154
FONTES PARA PATRIMÔNIO ALIMENTAR DA CULTURA POLONESA: CASO
COLÔNIA MURICI (1878-1960)
RESUMO
Introdução
A alimentação além de uma necessidade fisiológica é um ato de demonstração
cultural que norteia particularidades para a formação da identidade de um povo. Festas,
tradições e a comensalidade, marca importante da construção da história da alimentação.
1
Graduada em Licenciatura em História pela PUC-PR. E-mail: kau_sp@hotmail.com
155
Como proposta de estudo da história da alimentação, essa pesquisa está pautada nas
tradições alimentícias preservadas pelos imigrantes poloneses na Colônia Murici na cidade
de São José dos Pinhais, Paraná. Uma das formas da perpetuação destes hábitos está
vincula à memória, pois não há grande quantidade de relatos escritos que adentram o
universo da alimentação. Desta forma, utilizou-se da oralidade para a formulação de
fontes. Esta oralidade que transmitida entre as gerações é acumuladora de saberes e
valores. A sociedade dá continuidade ao legado deixado pelos antepassados, garantindo a
herança cultural da humanidade, contando com diferentes experiências. Com isso, foi
necessária a utilização de entrevistas de moradoras - que de uma forma ou de outra - estão
ligadas aos alimentos, a preparação e comercialização, as quais também são responsáveis
pela perpetuação destas tradições.
Além de fontes orais, a consulta em cadernos de receitas, objeto recente utilizado
ao estudo de história, também traz a tona informações sobre costumes e formação da
identidade de determinado grupo social.
156
Lucien Febre e Marc Bloch, que tinham como proposta a interdisciplinaridade, com novos
objetivos e novas problemáticas. Segudo Reis: Para os Annales, o homem não é só sujeito,
consciente, livre, potente criador da história; ele é também, e, em maior medida, resultado,
objeto, feito pela história. (...). (REIS, 2000, p. 21)
Na segunda geração ―de Annales, Fernand Braudel desenvolve o conceito da
cultura material, que abrangeu aspectos imediatos da sobrevivência humana: a comida, a
habitação e o vestuário. Neste contexto, a história da alimentação passa a ser foco de
estudo para a construção de identidade de uma sociedade. Desta forma, a alimentação e
suas correlações ganharam destaque em obras de autores renomados.
O alimento presente nas atitudes de comportamento humano esmiúça formas e
ações em diversos âmbitos que o alimento é incluso. ―A alimentação é um fenômeno cujo
estado foi estabelecido nos últimos séculos a partir de quatro diferentes enfoques: o
biológico, o econômico, o social e o cultural. (...)‖ (CARNEIRO, 2003, p. 3) Partindo do
pressuposto que a alimentação é uma forma de expressar a cultura de um povo, por
exemplo, a caça como forma de manifestação das civilizações antigas (expressada por
pinturas rupestres), a formação dos banquetes no período medieval com influências sócio-
econômicas, passando pelos alimentos industrializados e enlatados que facilitavam a
alimentação de soldados nos períodos de guerras mundiais, até os fast-foods, tão presentes
no cotidiano do século XXI, mesmo assim, o estudo da história da alimentação ainda é
pouco pesquisado e valorizado. Ao considerar estas influências, percebe-se a ligação do
alimento à história e à memória. Esta memória que perpetua por meio de gerações, conta a
história e constrói a identidade de uma nação, etnia ou grupo social.
157
do que envolve a alimentação, para permanecer na história e na memória, possibilitando a
inserção na patrimonialização 2 de uma cultura.
Sendo assim, a construção da identidade cultural da nação brasileira é influenciada
por diversas inserções na sociedade que contemplam o patrimônio com: as tradições,
culturas orais, manifestações artísticas, religiosas, hábitos alimentares e festividades
tradicionais.
Conquanto, percebe-se que as memórias dos grupos sociais abrangem questões
relacionadas ao passado estão presentes no cotidiano do século XXI na busca pelas raízes
étnicas culturais, desmemoriadas e com rupturas interferindo no processo de construção da
identidade do povo brasileiro.
Coadunado com a patrimonialização, as tradições e as memórias são responsáveis
pela manutenção desta preservação, ou seja, a transmissão de costumes, comportamentos,
lembranças, rumores, crenças, lendas, alimentos e preparo de alimentos, enfim, uma gama
de fatos e ações que formam a cultura de uma comunidade, relacionado a cedência destes
aspectos por intermédio da hereditariedade.
Isto posto, a tradição inserida em uma sociedade é transmitida através dos tempos e
influencia diretamente a construção de uma identidade. Contar a história de um povo, de
uma comunidade, remontar o passado baseado em suas memórias remete às tradições orais,
que permanecem anos em manifestações culturais de uma civilização, ou seja, uma
memória pronunciada.
2
A patrimonialização é tida como um mecanismo, uma forma de afirmação e legitimação da construção da
identidade de um determinado grupo social, atribuído a valores, significados, memórias e tradições. ―A
patrimonialização ganha força após as duas Grandes Guerras Mundiais, pelo desejo das nações de preservar
os restos de um passado materializado em seus territórios e, ainda, não devastados. O ato de consagração
patrimonial é orquestrado, assim, pelas potências estrangeiras, onde, a partir das catástrofes mundiais (duas
Grandes Guerras), temos o marco simbólico de uma nova ordem de transmissão cultural‖. (COSTA, 2010, p.
136)
158
memória por séculos e se mantém assim presente no cotidiano dos descendentes dos
imigrantes poloneses que residem na região de São José dos Pinhais.
A região de Curitiba cresceu economicamente no final do século XIX,
principalmente com a Erva-mate. Este mercado espalhou-se para outras regiões devido à
proximidade com o Porto de Paranaguá e também com a estrada da Graciosa 3. Como
consequência deste comércio, houve a expansão territorial e aos poucos a região da atual
cidade de São José dos Pinhais revigorou-se. Neste período havia carroças4 todos os dias
transitando entre os dois polos.
Com a produção do mate e a política de imigração e colonização, o governo da
Província, após perceber a experiência bem sucedida nas colônias polonesas em Curitiba,
adquiriu áreas para a formação de quatro colônias. Estas eram: Colônia Zacarias, Inspetor
Carvalho, Coronel Accioly e Murici. Formadas a partir da terceira etapa da colonização
polonesa no Paraná. Segundo Romário Martins, ―Murici, a 6 quilômetros da sede do
Município, foi criada em 1878 e já no ano seguinte emancipada, com uma população de
357 polacos galicianos e silesianos, (...) Prosperou rapidamente‖. (MARTINS, 1995,
p.360).
Colnagui, Magalhães, Magalhães Filho (1992) afirmam que a erva-mate foi sem
dúvida a principal razão para a implantação dessas colônias em São José dos Pinhais.
Dentro dessas colônias, destaca-se a Colônia Murici, segundo documentos oficiais,
fundou-se em 1878.
3
Sobre a história da estrada da Graciosa ler: FERRARINI, Sebastião; GERUM, Gotardo Ângelo;
ZANDONÁ, Norma da Luz Ferrarini. História de Quatro Barras. Curitiba: Editora Universitária
Champagnat, 1987; MOREIRA, Júlio Estrela. Caminhos das Comarcas de Curitiba e Paranaguá: até a
emancipação da província do Paraná. Curitiba: Imprensa oficial, 1975.
4
Vale ressaltar, que muitas das carroças foram implantadas conforme o modelo dos poloneses. A carroça
representou um ciclo intermediário entre o transporte em lombo de burro e o transporte ferroviário e
rodoviário. Estas carroças polonesas auxiliaram no percurso da erva mate. ―Sua aceitação e difusão no sul do
Brasil, excluindo-se os estados meridionais, notadamente o Paraná, foi de uma maneira abrupta lançado na
era do muar, do transporte em lombo de burro (...) graças á carroça, a evolução dos transportes foi de certa
forma parecida com a ocorrida no continente europeu (...).‖ (WACHOWISKI, 1981, p. 115)
159
Essa Colônia foi dividida em 73 lotes, no primeiro momento em sua maioria com
imigrantes poloneses e italianos, mas esses com o passar dos anos foram se retirando para
outras colônias e a Murici ficou sendo um reduto polonês.
Antes mesmo de habitarem as terras brasileiras, os poloneses enfrentaram
dificuldades na Europa, o que em muitos momentos os levaram a migrar de seu país de
origem -a Polônia - para outros. Um dos fatores relevantes para essas migrações foram
principalmente os confrontos que acarretaram na perda de parte de seu território para a
Rússia, Império Austro-Húngaro, e para a Prússia, episódio que fomentou no
empobrecimento deste povo. Além de Revolução Industrial, que os levou a opressões5 e
inúmeros confrontos na Europa por disputas territoriais resultantes do domínio
imperialista.6Com a dificuldade encontrada na Polônia e com políticas públicas de
incentivo a imigração no Brasil, esse povo viu uma oportunidade de crescimento e um
local para recomeçarem suas vidas. As políticas públicas de incentivo ao imigrante foram
decorrentes de várias medidas e transformações que ocorreram no cenário do país no final
do século XIX.
A escolha por imigrantes europeus estava vinculada a políticas de incentivo a não
miscigenação, ou seja, tornar o Brasil um país de raça branca e não com misturas raciais
com negros. Assim, o incentivo a imigrantes europeus casou com a política de
branqueamento7, acelerando o processo de imigração. As elites com estratégias pautadas
no incentivo e promessas aos emigrantes europeus pretendiam modificar as influencias
étnicas no Brasil. Os primeiros imigrantes poloneses no Paraná tiveram dificuldades, pois
as promessas que lhe foram dadas antes de embarcarem rumo ao Brasil não se
concretizaram. ―Ao chegarem à ―terra prometida‖ tiveram uma desilusão. O primitivismo,
em que se encontraram, chocou até aquelas simples e rudes criaturas. (...) As matas eram
5
―Ao final do século XVIII, as autocráticas Rússia, Prússia e Áustria não podiam tolerar a polônia liberal em
suas fronteiras e se uniram para exterminá-la. Em meados do século XX, a Alemanha nazista e a Rússia
comunista olharam desconfiadas para o surpreendente progresso de uma Polônia livre e manobraram para
concluir um novo desmembramento.‖ (MICHENER, James. Polônia. Rio de Janeiro: Editora Record, 1983,
p. 432) Sugestão de leitura sobre principais aspectos da Polônia e também HOBSBAWM, E. J. A era das
revoluções: 1789-1848. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
6
Política de expansão e dominação de uma nação sobre outras.
7
O ideal de branqueamento foi uma ideologia que surgiu no processo pós-abolição, com pretextos racistas e
que foi disseminado por pensadores, político, escritores. Esta teoria consistia em fazer crer a toda a sociedade
que o problema étnico-racial do Brasil poderia ser solucionado com a imigração européia. Sendo assim, o
sangre ―branco‖ purificaria e gradativamente o povo brasileiro se tornaria homogêneo e civilizado. ―O
branqueamento foi uma pressão cultural exercida por uma hegemonia branca, para que o negro negasse a si
mesmo, no corpo e na mente, como uma espécie de situação para se integrar na nova ordem social.‖
(BENTO; CARONE, 2002, p. 98).
160
densos pinheiros. Para obter um pedaço de terra para plantações, era necessário fazer
derrubadas e queimadas. (TURBANSKI, 1978, p18; 21)
Além do processo para deixar o solo propício demandar tempo, também foi
necessária a construção de casas e a ampliação das mesmas. Lentamente a produção
agrícola começou a dar frutos. Um dos fatores importantes para esta produção é o fato de
os poloneses possuírem técnicas de plantio diferenciadas e assim transformarem as matas
em terras produtivas. Não tiveram orientações sobre a forma de cultivo nas terras
paranaenses, mas conseguiram conquistar o reconhecimento por estas modificações da
mata para a cultura do plantio. ―Os brasileiros reconheciam perfeitamente os méritos dos
poloneses na agricultura. Também reconheciam que os imigrantes poloneses eram os
melhores para promoverem o desmatamento das selvas para fins agrícolas.‖
(WACHOWICZ, 1981, p. 117). Foram reconhecidos pela introdução de instrumentos
como o arado, a carroça, técnicas de semeadura, que fizeram das terras paranaenses seus
lares e ampliaram a produção de subsistência no Brasil.
Mesmo contando com a persistência e o conhecimento de técnicas de produção
agrícola, foi necessário buscar novas sementes para os plantios, pois havia falta dos
alimentos que estavam acostumados a ter em seu país de origem. Sofreram as mudanças na
alimentação e tiveram que incluir em seus hábitos determinados alimentos nativos, como
por exemplo, os pinhões.
161
No ano de 1886 foi realizado um mapa contendo a produção das colônias agrícolas
e percebe-se que os imigrantes poloneses da Colônia Murici além da dedicação ao cultivo
dos produtos citados, dispuseram-se a criação de animais.
Mas a falta de incentivo do governo fez com que os poloneses se sentissem isolados
e desatendidos em relação às solicitações. Tinham por objetivo manter a sua cultura e não
aceitavam muitas das imposições do governo, pois queriam garantir o modo de viver que
possuíam.
Tiveram dificuldades em preservar sua cultura, inclusive a alimentação, que
restringiu os seus paladares e reorganizou seus hábitos com inserção de produtos regionais.
Apesar dos obstáculos, os poloneses mantiveram traços de sua cultura e por meio de
tradições religiosas houve a permanência da memória e tradição. A tradição e os pratos
típicos estão presentes nas festas tradicionais de cunho religioso e também nos seus
preparativos e decorações. Como, por exemplo, no casamento. As festas de casamentos
tinham a duração de vários dias, ou enquanto duravam os alimentos. Toda a comunidade
era envolvida no processo do casório, desde os preparos da decoração aos preparos dos
alimentos, incluindo a doação de ovos, galinhas e verduras de suas plantações. Essa
tradição ao longo do processo de aculturação se perdeu, mas permanece viva na memória.
Segundo entrevistas com a senhora Aurélia Burakowski Sary (2015) ―No meu tempo,
então, a família da noiva, da noiva levava um cesto bem bonito, cuque já cortado e
distribuia na frente da igreja para cada um, depois foi caindo, caindo (...)‖. Vale ressaltar a
tradição ter permanecido por vários anos, mas perdeu-se com o passar dos tempos, e
apenas na oralidade e nas memórias permanece como visto em depoimento de uma
moradora da Colônia Murici com 85 anos.
162
Dessa forma, a comensalidade está presente nas famílias polonesas, o que de fato
marca a permanência das tradições, mesmo após várias gerações dos primeiros imigrantes,
além da religiosidade ligada à Igreja Católica a qual perpetua na Colônia. Muitas festas
religiosas ou atreladas ao espaço físico da Igreja são mantidas, além das já citadas
anteriormente, existem também: a Festa da Colheita, Dia do Padroeiro e a Festa da Wodka.
Segundo a senhora Aurélia Burakowski Sary (2015) ao relatar sobre a festa da colheita,
fala com muita satisfação da prática tradicional. ―(...) este ano tinha, já passou (...) é uma
festa boa, grande, também cantam em polonês, alguma coisa em português e enfeita a
Igreja com verdura, com abobrinha pequena, grande, de tudo (...).‖ e segundo a senhora
Nélia Lipinski de Oliveira (2015) expõe sobre a Festa da Wodka, a qual acontece todos os
anos no mês de julho e retrata uma tradição. Nesta festa há uma garrafa de Wodka para
cada quatro pessoas, e serve sopa na broa, ou seja, uma sopa dentro da própria broa, em
que a casca do pão é utilizada como vasilha e serve-se no jantar o Pierogui. Afirmou que o
grupo folclórico permanente da colônia auxilia na manutenção das festas tradicionais.
Além das festas, há também a forte tradição nos produtos alimentícios de
fabricação artesanal. A tradição alimentar está presente no cotidiano dos descendentes
poloneses como forma de manifestação cultural e na permanência dessa cultura. Outra
tradição duradoura da cultura polonesa é a agricultura, a maioria dos moradores direta ou
indiretamente estam atrelados à roça. Jovens, adultos e idosos vivem da colheita e
comercialização da lavoura no século XXI. O que se relaciona ao propósito brasileiro do
século XIX da vinda destes imigrantes, que era a manutenção da alimentação da população
residente no Brasil. Mais de dois séculos se passaram e a cultura das plantações dos
primeiros agricultores poloneses permanece. Como afirmou a senhora Amélia Burakowski
Sary (2015) que o sustento da família vem das plantações.
Outro fator importante de destaque é como são mantidas as tradições culinárias. Em
todos os depoimentos ao questionar como foram repassadas as receitas da cultura e
tradição polonesa, as respostas remeteram-se a memória, pois as mulheres aprenderam
vendo suas mães e avós cozinhando e guardaram como lembrança como afirma à senhora
Ines Terezinha Mikos (2015): ―(...) eu faço broa no forno ainda, forno a lenha, é que eu
também aprendi com a minha vó lá, a maioria.‖ Por conseguinte, o aprendizado repassado
de geração em geração é posto à tona na tradição oral. Os cadernos de receitas pouco
existiram e os quais foram confeccionados no passado pouco se preservou. A senhora Ines
Terezinha Mikos tem a posse de um caderno de receitas de sua sogra que foi passado a
163
limpo na década de 90, e possui duas receitas diferentes do Pierogui, e pela forma escrita,
percebe-se ser uma cópia de um caderno datado anteriormente - pela regra de língua
portuguesa na qual está escrita - por exemplo, rasas com a letra s e não z, supostamente
data o escrito antes da Lei 5.765 de 18 de dezembro de 1971.8
Desta forma, as receitas também são documentos importantes no processo da busca
de fontes para a formulação de uma pesquisa sobre a história da alimentação inserida na
cultura dos descendentes poloneses na Colônia Murici.
Considerações finais
8
Disponível no site oficial da academia de Letras.
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=2453&sid=19
164
Referências
BENTO, Maria Aparecida Silva & CARONE, Iray (orgs.). Psicologia Social do Racismo:
Estudos sobre Branquitude e Branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
KURY, Gama. Minidicionário da língua portuguesa. 2ª edição. São Paulo: FTD, 2010.
MAROCHI, Maria Angélica. Imigrantes 1870- 1950: Os Europeus em São José dos
Pinhais. São José dos Pinhais: edição da autora, 2013.
165
PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo; FUNARI, Pedro Paulo. Patrimônio Histórico e
Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: História oral. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. 10. Ed. Ponta Grossa: Ed. UEPG,
2010.
OLIVEIRA, Nélia Maria Lipinski de. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de
preparo e cultura. São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 10: 56 min. Entrevista
cedida a Kauana Selmo Peruscello.
166
SARY, Aurélia Burakovski. Questões relativas a hábitos alimentares, modo de preparo
e cultura. São José dos Pinhais, Colônia Murici, 2015. 22: 52 min. Entrevista cedida a
Kauana Selmo Peruscello.
167
OS CONTOS/CRÔNICAS DE NELSON RODRIGUES E O IMAGINÁRIO
FAMILIAR NA DÉCADA DE 1950
Ao tratar com afinco das questões que afetam a vida privada do brasileiro
Nelson Rodrigues não ficou imerso no ―mundo da casa‖. Propôs reflexões que
desembocaram no ―mundo da rua‖, conduzindo o leitor pela dinâmica dos assuntos
relacionados à esfera pública. Privilegiando o comportamento sexual como inerente e
produtor de afetos e desafetos no universo dos leitores, produziu uma forma de tratar
assuntos banais em fatos considerados de utilidade pública.
O que enfatizo e proponho edificar a partir das fontes (os contos-crônicas de ―A
vida como ela é...‖) a serem inquiridas está na edificação de um projeto de
1
Mestrando em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista CAPES. Email:
leandrosantoshis@gmail.com.
168
representação da nacionalidade brasileira a partir do prisma da família nacional, mesmo
que parta da concepção carioca. A tentativa de interpretação da sociedade brasileira no
que ela tem de mais sensível e latente se faz presente na busca de identificar a formação
do brasileiro na maneira da nação estruturar um dos seus elementos mais definidores: a
sua relação com o ambiente privado, as relações íntimas, localizadas pelo ―buraco da
fechadura‖. A modernidade nacional, o desenvolvimento do país nesse contexto de
formação da República ainda têm conferido a família o lócus de instituição civilizadora
capaz de dotar os indivíduos de padrões burgueses e cristãos. Esses discursos
atravessaram o tempo refletindo na década de 50.
Os contos-crônicas podem ser visualizados de diferentes aspectos é um deles é
sob o ponto de vista de Nelson Rodrigues sobre o triângulo amoroso envolvendo
mulheres adúlteras. Três personagens se destacam nesse aspecto como Solange e Jupira.
Mulheres que carregam consigo as contradições de sua época, os desejos, paixões e
amores que fizeram parte da geração dos anos dourados no Brasil.
No conto-crônica ―Casal de Três‖ relata a existência de um triângulo amoroso
entre Filadelfo, Jupira e Cunha. Numa conversa com seu sogro Dr. Margarão Filadelfo
se abre diante do comportamento agressivo de sua mulher, tinha um gênio muito forte.
Entraram num pequeno bar e o sogro lhe disse as seguintes palavras: ―você, meu caro,
desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e
neurastênica‖ (RODRIGUES, 1992, p. 27) Filadelfo ao ouvir o que o sogro disse caiu
por terra não querendo desconfiar da esposa. E o sogro continuou:
- Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi
uma que traía o marido com a metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo! –
Espalmou a mão no próprio peito, numa feroz satisfação retrospectiva: -
Também comigo! E tratava o marido assim, na palma da mão!
(RODRIGUES, 1992, p. 27).
Depois dessa conversa Filadelfo saiu mais preocupado diante da situação, aliás,
o sogro tinha aberto os olhos para a sua vida. Sua vida conjugal era de tamanha
infelicidade que já era preocupante, mesmo ―após três anos de experiência matrimonial,
ele já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não compreendia
que Jupira, amabilíssima om todo mundo, fizesse uma exceção para ele, que era,
justamente seu marido‖ (RODRIGUES, 1992, p. 28).
Faltava-lhe beijos, afagos, caricias, faltava-lhes tudo que uma agradável esposa
poderia conceder ao marido. Nem mesmo um simples beijo era coisa rara entre os dois,
169
quase inexistente. O que mais lhe incomodava era ―a negligência da mulher no lar. Não
se enfeitava, não se perfumava. Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembrando-se
da teoria do sogro: - Será que a esposa honesta também precisa cheirar mal?‖
(RODRIGUES, 1992, p. 28).
Depois de um mês houvera uma grande reviravolta no comportamento de Jupira,
sempre perfumada e maquiada e mais amável com o marido. Filadelfo ficou surpreso
com as novas atitudes da mulher. Nas conversas com o sogro, o mesmo advertia para
não buscar motivos para uma mudança tão brusca de comportamento e,
Até o final dos anos 1950, ele era uma peça obrigatória em quase todos os
lares, dos mais ricos aos mais pobres. Fenômeno de massa desde os anos de
1950, base da expansão da rica cultura musical brasileira, a radiodifusão
sofreu um grande processo de massificação a partir do final da Segunda
Guerra Mundial. Na segunda metade dos anos 1940, o rádio se consolidou
como fenômeno cotidiano, ligado à cultura popular urbana, veiculando
principalmente melodramas (novelas) e canções (NAPOLITANO, 2001, p.
13).
172
A questão da fidelidade para Nelson Rodrigues é algo pensando nas
conveniências e circunstâncias de um casal. No caso de Luci, mesmo com a vocação
para ser boa esposa, se desequilibrou com a chegada de um presente que não estava
acostumada a receber. Pensou de imediato que não veio do marido. Quando descobre a
origem, fica surpresa, pois pensará que viesse de seu admirador, seu vizinho e seu
emocional se reveste para uma frustração. Como se nada de novo a tivesse acontecido, o
presente do seu vizinho teria impactado muito mais. Conclui-se neste caso a mulher
quer ser fiel ao marido, mas por outro lado e infeliz, precisa de estímulos novos, o
presente, foi um deles, mas veio do próprio marido, o que não teve efeito sobre seus
afetos.
A presença da figura do amante se nota bastante atuante nas relações amorosas,
estes tipos são vistos de forma diferente pelo autor, não decadentes como os maridos e
seu poder de mando, mas esses ―ao contrário, são descritos como belos, fortes e com
boa saúde‖ (ZECHILINSKI, 2007, p. 420). Por isso:
―Dudu estava lá! Junto de uma janela, com o seu bonito perfil, fumando de
piteira, pálido e fatal, atraía todas as atenções. Lima aperta o braço da noiva.
Diz, entredentes: ―Vamos embora‖. Ela, espantada, pergunta: ―Por que?‖. O
noivo a arrasta: - O Dudu está aí. E não convém, ouviu? Não convém!
173
Imagina se ele tem o atrevimento de tirar para dançar. Deus me livre!
(RODRIGUES, 1992, p . 50).
Quase à meia noite, estão os dois sozinhos, face a face, no apartamento que
seria a nova residência. Ele nervosíssimo, baixa a voz e pede: ―Um beijo!‖.
Ela, porém, foge com o rosto: ―Não! Lima não entende. Cleonice continua: -
Falaste tanto e tão mal do Dudu que me apaixonei por ele. Eu não trairei o
homem que eu amo nem com o meu marido. Lima compreendeu que a
perdera. Sem uma palavra deixa o quarto nupcial. De pijama e chinelos veio
para a porta da rua. Senta-se no meio-fio e põe a chorar (RODRIGUES,
1992, p. 51).
Nessas histórias o amante está muito próximo das mulheres, sejam casadas ou
não. Estes personagens tem influência direta sobre as relações amorosas de Nelson
Rodrigues. O amante exerce o papel de detonador dos conflitos entre a casa e a rua.
O universo da casa e da rua aqui nesta investigação são intensamente
explorados e diagnosticados com precisão. São espaços de interpretação da sociedade
brasileira que foram alvo de reflexão de Nelson Rodrigues. Concomitante a essas duas
realidades soma-se a dinâmica do público e privado que fizeram parte da evolução da
família nacional e na formação da nacionalidade brasileira. Então,
Ou seja: o que temos aqui é um espaço moral posto que não pode ser definido
por meio de uma fita métrica, mas - isso sim - por intermédio de contrastes,
complementaridades, oposições. Nesse sentido, o espaço definido pela casa
pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de
oposição ou de contraste (DA MATTA, 1997, p. 15-16).
Nelson Rodrigues faz parte de uma geração de pensadores que cada um a seu
modo tentaram explicar a realidade nacional a partir de seus problemas e fragilidades.
Inserindo temas caros na formação da nacionalidade e que contribuíram para fortalecer
o sentimento de entender o caráter nacional. As tentativas fizeram efeito e se tornaram
grandes clássicos do pensamento social como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e
Sergio Buarque de Holanda. Cada qual formularam suas ideias acerca do que é ―ser
brasileiro‖ na maioria das vezes envolto sobre uma capa de erotismo e sexualidade.
Considerada muitos anos um tema difícil de ser explorado no Brasil a
sexualidade foi aos poucos se tornando um tema passível de ser abordado e tomou
densidade na maneira de tratar assuntos delicados na esfera do íntimo. A excessiva
carga de moralidade camuflou a imersão do erotismo e da sexualidade junto à opinião
pública. As práticas amorosas ficavam retidas no domínio do privado, sobre quatro
paredes, sob o buraco da fechadura.
A ficção rodrigueana foi a primeira a evidenciar de forma ―nua e crua‖ a
participação dos dilemas amorosos na vida dos brasileiros no domínio da rua. Antes
eram tratados assuntos relacionados à família, a moralidade, ao privado com uma visão
bastante idealista e carregada de puritanismo e atravessado pela moral. Com os contos-
crônicas de Nelson Rodrigues os assuntos ligados aos desejos inconfessos, às atitudes
desenfreadas, os desvios familiares se tornaram palco do noticiário público pela cidade.
A visão desnudada do escritor transforma sua escrita em um lugar de práticas sociais
bastante distorcidas para os padrões da época.
Os contos-crônicas de ―A vida como ela é...‖ é a máxima expressão de fissura
da modernidade promovida por Nelson Rodrigues em toda a sua trajetória jornalística.
Assunto recorrente na coluna é a temática do adultério. Pela obsessão ao tema, tão
banal, escreveu mais de duas mil histórias que reproduzia a linguagem nua e crua do
cotidiano das ruas.
A infidelidade nos anos 50 não era um assunto muito discutido. Era quase
―escondido‖, escamoteado e considerado um tabu social pela opinião pública. A
infidelidade da mulher, então, era abominada, pois jamais deveria acontecer; enquanto a
capacidade do homem de ter relação com outras mulheres era considerada como normal
e natural do instinto masculino. Ambos os contos-crônicas retratam os conflitos dentro
175
do ambiente doméstico e citadino. Mulheres que sentem desejos por outros homens que
não os seus maridos e vão procurar outra relação fora de casa, cometendo adultério.
176
social, muito mais condicionadas pelas circunstâncias históricas do que as próprias do
seu lugar de ocupação doméstica.
Como a maciça presença da sua mão de obra nas fábricas de armamentos,
principalmente durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), recolocando suas
expectativas numa ótica do mundo do trabalho e refletindo tensões no retorno ao lar, no
constante agravamento de fissuras em relação aos sexos. A valorização do trabalho
feminino foi decisiva no rompimento do espaço privado, pois nas ―primeiras décadas
deste século, época de transição de valores, assistem à passagem da estrutura patriarcal
para uma nova ordem econômica e social, onde as ideologias de cunho individualista
marcam presença‖ (TRIGO, 1989, p. 89).
A família passou por um processo de pulverização e adaptação das novas formas
de sociabilidades. O modelo de família que herdamos do século XIX esfacelou-se,
resultado do individualismo moderno do século XIX, da recusa de uma estrutura
extremamente rígida e normativa. Nesse movimento o espaço resguardado do lar não
ficou imune: ―a casa, protegida pelo muro espesso da vida privada que ninguém poderia
violar - mas também secreta, fechada, exclusiva, normativa, palco de incessantes
conflitos que tecem uma interminável intriga, fundamento da literatura romanesca do
século‖ (PERROT, 1993, p. 78). Nesse sentido, ―o século XX veria se generalizar
lentamente em toda a população uma forma de organização da vida com dois domínios
opostos e claramente distintos: o público e o privado‖ (PROST, 2009, p. 16).
177
REFERÊNCIAS
RODRIGUES, Nelson. A Vida Como Ela é...: o homem fiel e outros. Seleção Ruy
Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RODRIGUES, Marly. O Brasil na década de 50. Editora Memória: São Paulo, 2010.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: experiências em Copacabana nos
anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
PERROT, Michelle. O Nó e o Ninho. Veja 25 anos: reflexões para o futuro. São Paulo:
Abril, 1993.
TRIGO, Maria Helena Bueno. Amor e casamento no século XX. In: D‘INCAO, M. A.
Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.
178
ZECHILINSKI, Beatriz Polidori. ―A vida como ela é...‖: imagens do casamento e do
amor em Nelson Rodrigues. Cadernos Pagu, v. 29, jul. dez. 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332007000200016&script=sci_arttext>.
Acessado em: 11 de Nov. de 2011.
179
O SEXO FEMININO: ATUAÇÃO FEMININA E TENSÕES SOCIAIS, UMA
BREVE ANÁLISE SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NO
SÉCULO XIX NO BRASIL
Introdução
Pesquisamos este tema por causa da crescente importância que o mesmo tem
ganhado dentro da nossa historiografia. Além disso, esse tema nos possibilita abarcar a
trajetória do movimento das mulheres no Brasil, apresentando de forma simplificada as
tensões sociais existentes e salienta a importância da imprensa feminina para o período
em questão, desmitificando então desta forma o imaginário da época de uma mulher
1
Graduada em História pela UFU - Universidade Federal de Uberlândia e Graduanda em Pedagogia pela
UFU – Universidade Federal de Uberlândia. Email: ligia.martinelli@yahoo.com.br
180
fadada somente à maternidade e à educação dos filhos, inferior e sem capacidade
intelectual para os estudos de nível universitário.
181
do casal, Albertina e Amélia Diniz, que por sua vez, eram colaboradoras de O Sexo
Feminino.
Embora seja bastante conhecida pelas suas publicações nas Minas Gerais, pouco se
sabe sobre a vida de Francisca Senhorinha Diniz, sabe-se apenas que nasceu em São
João Del Rei depois se mudou para Campanha, lecionado e atuado fortemente na
imprensa local.
2
Aime Martin foi um escritor e filósofo francês que nasceu em Lyon e se mudou posteriormente para
Paris.
182
mulher, sempre assinados por Francisca Diniz. A seção sobre literatura vinha em
seguida e se organizava em textos traduzidos do francês por Amélia e Albertina Diniz,
no entanto não foi possível saber a autoria original daquelas narrativas. A parte de
colaboração geralmente falava sobre os acontecimentos da escola normal de Campanha
e poderia ter também textos de outras colaboradoras. Os avisos eram sobre
acontecimentos locais. O noticiário continha assuntos voltados à atualidade, como
notícias sobre conquistas de mulheres ao redor do mundo. A seção variedades, como
seu nome indica continha artigos diversos, desde charadas e enigmas até o aviso de
permutas que eram realizadas entre diferentes jornais.
O jornal teve como editora D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz, esposa, mãe
de família e professora normalista. Ela era a responsável e idealizadora do semanário e,
segundo Cecília Nascimento e Bernardo Oliveira, contava com colaboradoras diversas
dentro e fora de Campanha 3 que se correspondiam através de cartas com a redatora do
jornal.
3
NASCIMENTO, C. V. ; OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de . O Sexo Feminino em Campanha pela
emancipação da mulher. Cadernos Pagu (UNICAMP. Impresso), v. 29, p. 431, 2007.
183
―Aos nossos assinantes, uma grata notícia. – Este periódico tem o
indizível prazer de scientificar aos seus leitores que vai enumerar
como colaboradora uma das penas mais hábeis que tem apparecido na
imprensa diária da corte, A Ex.ª Sr.ª D. Narcisa Amalia, poetisa
distincta, literata não vulgar, talento transcendental, está acima de
qualquer elogio que a pena mais bem aparada possa tecer. Sua aurea
inteligência se desenha no artigo com que mimoseou o Sexo
Feminino, e que vai publicado no lugar competente‖. 4
Segundo a afirmação dos autores acima, podemos perceber que, embora não
fosse o foco do jornal atingir apenas uma determinada classe social, ele atingia uma
parcela pequena de mulheres se restringindo às classes mais altas da sociedade.
Na data de 15 de novembro de 1873, apenas 2 meses após sua primeira
publicação O Sexo Feminino anuncia a reimpressão dos jornais de números de 1 a 10
em 4 mil exemplares por motivos de permuta, envio para assinantes recentes e também
distribuição do periódico no Rio de Janeiro.
4
O Sexo Feminino, 11/10/1873. Número 6. Página 04. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
5
ROSA, Gerlice Teixeira. Ethos e argumentação de Senhorinha Diniz em O Sexo Feminino. Dissertação
de Mestrado. UFMG.2011.
6
NASCIMENTO, C. V. ; OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de . O Sexo Feminino em Campanha pela
emancipação da mulher. Cadernos Pagu (UNICAMP. Impresso), v. 29, p. 432, 2007.
184
Como já apresentado anteriormente, O Sexo Feminino teve seu primeiro número
publicado em 7 de setembro de 1873, esse número se faz especial tanto por ser o
lançamento do periódico quanto pelo seu conteúdo em questão. No editorial, a editora
ressalta um dos objetivos principais do jornal:
7
O Sexo Feminino 07/09/1873. Número 1. Página 01. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
8
O Sexo Feminino 07/09/1873. Número 1. Página 01. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
9
O Sexo Feminino 07/09/1873. Número 1. Página 02. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
185
diferente. O editorial como parte de peso de um jornal sempre é escrito por um editor
que possui mais domínio nos assuntos tratados, por isso em todos os números d‘ O Sexo
Feminino Francisca Senhorinha Diniz se encarrega de tal seção.
De modo genérico os editoriais possuíam como objetivo estabelecer um debate
mais profundo com o leitor, levando o mesmo à reflexão. Como o foco do periódico era
a educação e instrução da mulher, todos os editoriais sempre apresentavam estes
assuntos relacionando-os com a existência e importância d‘O Sexo Feminino.
O segundo editorial do jornal afirma o que explicitamos acima:
Desta forma a seção literatura d‘O Sexo Feminino se apresentava de acordo com
o interesse das mulheres da época, delineando assim o perfil das leitoras e também
representando a mulher da época em seus gostos e interesses.
10
O Sexo Feminino 14/09/1873. Número 2. Página 01. *Optamos por conservar a grafia original dos
textos.
11
BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa Feminina. 2ª edição. Editora Ática, 1990.
186
Conclusão
Fontes
O Sexo Feminino (Acervo dos anos de 1873 a 1876) retirado do Arquivo Público do
Estado de São Paulo.
187
Bibliografia
BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa Feminina. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática,
1990.
DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. 2ª edição. São Paulo: Editora
Contexto.1989.
DEL PRIORE, Mary(org). História das mulheres no Brasil. 4ª edição. São Paulo:
Editora Contexto. 2001.
HAHNER, June. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São
Paulo: Editora Brasiliense. 1981.
JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura impressa e educação da mulher no século XIX. Belo
Horizonte: Editora UFMG. 2010.
KARAWEJCZYK, Mônica. "O voto de saias": breve análise das imagens veiculadas
na Revista do Globo (1930-1934). Revista História, imagem e narrativas. Nº 3, ano 2,
setembro de 2006.
188
MANCILHA, Virgínia Maria Netto. Vozes femininas: Um Estudo sobre a revista
feminina e a luta pelo direito ao voto, ao trabalho e a instrução. Dissertação de
Mestrado. UNICAMP. 2012.
NUNES, Aparecida Maria. Imprensa e Feminismo do século XIX no sul das Gerais.
Trabalho apresentado no XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras,
Interações, Convergências. USP. São Paulo: 2008.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo. Editora Contexto: 2007.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo. Editora
Fundação Perseu Abramo. (Coleção História do Povo Brasileiro) 2003.
190
UM RETRATO DE FRIDA KAHLO: NUANCES DE GÊNERO
Resumo
1
Licenciada em Ciências Sociais e Mestre em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia.
marolaventura@hotmail.com
191
em 1925, um violento acidente de ônibus a tornou semi-inválida e ainda, a submeteu a
inúmeras cirurgias e já no fim da vida, à amputação de uma perna. Toda essa dor foi
claramente reconhecida por ela ao referir-se ela própria ao acidente: ―(...) e a sensação
que desde então nunca mais me deixou é a de que meu corpo concentra em si todas as
chagas do mundo‖.
Até 1925, seus dotes artísticos tinham sido encorajados somente pelo pai e pelo
respeitável tipógrafo Fernando Fernandéz e foi durante a recuperação do trágico
acidente que Frida começou a pintar, ou seja, como um modo de evitar a dor e o
aborrecimento e, estando privada da liberdade dos movimentos corporais; a pintora
iniciara sua vida artística em cima de uma cama e de maneira um tanto quanto
improvisada, visto que para que ela pintasse fora colocado um espelho que cobria a
parte inferior de sua cama de modo que a pintora podia se ver e ser seu próprio modelo,
o que justifica a existência dos seus inúmeros autorretratos: ―Eu pinto-me, porque estou
muitas vezes sozinha e porque sou o tema que conheço melhor.‖ (KETTENMANN,
2006, p.18).
Em 1928, Frida se junta a um círculo de artistas e intelectuais que ao sentirem
uma degradação da antiga imitação convencional de modelos europeus procuravam uma
arte mexicana independente, livre de qualquer academicismo e; defendiam o regresso às
raízes da nação e ao restabelecimento da arte popular mexicana. A este movimento
denominou-se: Mexicanismo, o qual encontrara sua primeira e maior expressão nas
pinturas de murais que eram patrocinadas pelo Estado a fim de contar ―didaticamente‖ à
maioria da população analfabeta do campo a história de sua nação. Neste mesmo ano,
Frida aderiu ao Partido Comunista Mexicano (PCM), ao qual já demonstrara seu apreço
quando ainda cursava a Escuela Nacional Preparatoria em 1922. Foi através do
interesse pelo comunismo que a artista foi apresentada a Diego Rivera, ilustre muralista
mexicano e também revolucionário. Rivera e Frida se casaram em 1929, e ela via em
Rivera um incentivo a sua feminilidade, uma vez que neste momento já não abusava
tanto das vestes masculinas como fizera noutros tempos, para adquirir aspecto de
mulher invulgar e independente; e sim de longos vestidos tehuanos, usados pelas
mulheres de Tehuantepec (região sudoeste do México, onde as tradições matriarcais
ainda hoje estão vivas e, portanto, sua estrutura econômica reflete o papel predominante
da mulher) e; de altivos colares e brincos pré-colombianos. Cabendo dizer que, estas
192
vestes estavam perfeitamente de acordo com o crescente espírito de nacionalismo e com
o interesse revivalista pela cultura índia.
Entretanto, o casal de pintores não viveu só anos de felicidade e entre várias
―idas e vindas‖ entre México, Estados Unidos e Europa, eles se separaram e se casaram
novamente. E foi neste trânsito, que Frida estreitou laços de amizade e amorosos com
intelectuais, artistas e outra mulheres, dentre estes estão Leon Trotsky, revolucionário
russo com o qual teve um caso e, André Breton, crítico e escritor francês que
interpretara o trabalho de Frida Kahlo como surrealista e, intermediara a primeira
exposição da artista na galeria Julien Levy, em Nova York. Em 13 de julho de 1954, na
Casa Azul (casa do casal em Coyoacán) morre Frida Kahlo.
Frida abordou em suas telas, temas que revelavam sua dor física e seus caminhos
ideológicos, isto é, temas que eram amplamente recorrentes em sua vida e que eram
pictoricamente transpostos a uma dimensão artística; assim não é de se estranhar suas
obras com temas como: do seu acidente em 1925, dos seus camaradas comunistas, do eu
grande amor Diego Rivera, dos abortos que sofrera e tantas outras que narravam um
pouco da sua realidade. A artista dotava suas telas de uma ―beleza terrível‖, mas bela
ainda assim na sua verdade reveladora e corajosa, no limite máximo do humor e do
trágico, da irreverência e do compromisso com projetos ideológicos e amorosos.
Recusava-se veemente classificar-se como pintora surrealista, afirmando que: ―não sou
surrealista, pinto a minha própria realidade‖.
Ao analisar a obra de Frida pelo viés da categoria de gênero, percebe-se que em
muitas telas a artista representava sua condição feminina (aquela convencionada
socialmente na época) e em outras renegava. Para tal análise, deve-se conceituar o
conceito da categoria de gênero, para que se possa levar a cabo a hipótese de que várias
relações de gênero são formalizadas na obra de Frida Kahlo. Segundo a historiadora,
Joan Scott, o conceito de gênero surge como uma categoria útil de análise do social,
sendo que esta, distintamente da categoria sexo, é um fator cultural e não um dado
biológico. Na sua utilização mais recente, ―gênero‖ parece ter feito sua primeira
aparição entre as feministas americanas nos anos 60, as quais se respaldavam no fato de
que:
193
(...) inscrever as mulheres na história implica,
necessariamente, a redefinição e o alargamento das noções tradicionais
daquilo que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência
pessoal e subjetiva quanto as atividade públicas e políticas. (SCOTT, 1990, p.
6).
194
Fig. 1 - Frida Kahlo, Frida e Diego Rivera , 1931, óleo sobre tela, 100 x 79 cm;
San Franciso Museum of Modern Art, São Francisco; doado por Albert M. Bender.
195
Fig. 2 - Frida Kahlo, O Hospital Henry Ford ou A Cama Voadora, 1932, óleo sobre metal,
30,3 x 38 cm; Cidade do México; Coleção Dolores Olmedo.
Porém, quando Frida descobre que está sendo traída pelo marido com a própria
irmã, a relação de Frida com a representação do seu corpo se transfigura, assim como
pintara na tela Autorretrato com cabelo curto de 1940 (figura 3).
196
Fig. 3 - Frida Kahlo, Autorretrato com cabelo curto, 1940, óleo sobre tela, 40 x 27,9 cm;
The Museum of Modern Art, Nova York; doado por Edgar Kaufmann Jr.
197
masculino, e muitos biógrafos consideram o fato que o cabelo de Frida encantava a
Rivera): a separação do marido de quem tanto gostava.
Fig. 4 - Frida Kahlo, Autorretrato dedicado al Doctor Eloesse, 1940, óleo sobre masonite, 59,5 x 40
cm; coleção particular.
Fig. 5 - Detalhe da parte superior do quadro Auto-retrato com cabelo curto (figura 3)
198
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
ADES, Dawn. Arte na América Latina. São Paulo: Cosac & Naify, 1997.
Kahlo, Frida. O diário de Frida Kahlo: um auto-retrato íntimo. Tradução por Mário
Pontes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade,
Porto Alegre, Volume 16 (nº2), jul/dez 1990, p. 5 – 22.
199
http://www.uems.br/site/nehms/arquivos/53_2014-11-06_17-34-43.pdf >. Acesso em:
05/07/2015.
200
O MÉDICO E A MULHER: HIGIENIZAÇÃO E VÍCIOS
Resumo
1
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, graduada em História pela
Universidade Estadual Paulista e mestre em História pela Universidade Estadual Paulista. E-mail:
minapolitano@hotmail.com
201
sociedade, sobretudo em razão das teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e,
também, da literatura desse período.
Diante disso, os atos ditos torpes praticados entre mulheres, caso não
cumprissem os requisitos para serem qualificados como sodomia, eram tidos
por molície, caracterizada por toques, abraços e beijos entre pessoas do
mesmo sexo, assim como masturbação, felação e outros atos que não tinham
a gravidade da sodomia. (BELLINI, 1987, p. 68)
Além da mulher não ser tratada em sua especificidade física e biológica e ser
analisada sob o parâmetro do sexo masculino, principalmente no que se refere às
relações sexuais com outras mulheres, não havia ainda uma terminologia específica
nessa época que tratasse desse tipo de relação, daí essas mulheres serem sempre
mencionadas como se assumissem um papel masculino.
Em seu estudo sobre a sodomia feminina, Ronaldo Vainfas elabora
considerações sobre alguns motivos pelos quais os inquisidores faziam vistas grossas a
esse pecado. As mulheres, de acordo com o autor:
―seriam bem mais discretas em suas relações sexuais se comparadas aos
homens. Pelo fato das mulheres chamarem bem menos atenção do povo, e
serem menos motivos de comentários do que os homens, talvez os
inquisidores se ativessem mais na busca de desvios sexuais masculinos, pois,
uma das grandes preocupações era não deixar que esses casos de sodomia se
tornassem públicos‖. (VAINFAS, 1987, p. 157)
Houve uma grande tendência em punirem-se os homens com muito mais rigor,
em comparação às punições determinadas às mulheres, essas pareciam não despertar
tanto o interesse na sociedade da época se comparadas aos homens, sua sexualidade,
202
suas relações sexuais entre pares iguais eram bem menos importante e não havia a
preocupação em se punir com tanto rigor como se cuidava em punir homens que
praticassem a sodomia entre si ou com mulheres.
Deixando de se tornar uma preocupação apenas de ordem religiosa, para se
configurar, sobretudo, como um problema social a ser diagnosticado e tratado, as
relações sexuais entre mulheres, até então chamada de sodomia feminina, devido às
transformações ocorridas na sociedade em geral, tomaram outro caráter e passaram a
ser tratadas de uma maneira mais específica. De um conjunto de práticas, a sodomia
feminina, agora, no século XIX, denominada de safismo, tribadismo e, posteriormente,
de lesbianismo, passou a se referir a uma categoria mais precisa de pessoas.
Com a instalação da corte portuguesa no Brasil, em 1808, e com a abertura dos
portos, a cidade do Rio de Janeiro passou por grandes transformações políticas, sociais
e culturais, diretamente perceptíveis na vida cotidiana da população, sobretudo das
classes mais abastadas. O novo contingente populacional vindo da Europa, o
crescimento do comércio, a formação de uma burocracia estatal, o casamento entre
europeus e brasileiros, a difusão das modas europeias – desde as roupas ao mobiliário
das casas, passando pelo comportamento dos indivíduos, enfim, a nova cultura que
entrava no país, gradativamente, alterou a paisagem carioca e a forma de vida de seus
habitantes. O modelo europeu se impôs como modelo de civilização por excelência, e
tudo o que resistia a tal modelo era considerado ultrapassado, fora de moda.
A partir desse ponto, vamos nos ater à análise das ações de um dos principais
agentes dessa mudança: os médicos, que, em seu esforço higienizador, atuaram no
sentido de estudar e catalogar os comportamentos sociais. Tendo por alvo principal a
família de elite, eles esforçaram-se por diagnosticar, e tratar, tudo aquilo que escapasse
ao que entendiam por normal – desde hábitos pouco civilizados, pouco europeus, até os
ditos vícios da população (prostituição, onanismo, alcoolismo, pederastia, tribadismo,
safismo, ninfomania, alienismo, etc.), passando pela constante desordem da cidade,
causa de muitas doenças. Destarte, sugerindo mudanças nos hábitos comportamentais e
alimentares de toda a família, como também no vestuário, na educação das crianças, na
arquitetura e no cotidiano da casa, na disposição dos seus móveis, nas relações entre
marido e esposa e nas relações do casal com os empregados; os médicos atuaram no
sentido de construir um novo cidadão, um cidadão civilizado, patriota e, é claro,
normatizado.
203
Se até o século XIX a sexualidade interferia muito pouco sobre a estabilidade do
casal, a partir de então, ela será de suma importância para a harmonia de toda a família.
Ao marido de sexualidade sadia cobrava-se que evitasse as prostitutas e que se
prevenisse das doenças venéreas e, de seu consequente flagelo, os filhos sifilíticos; à
mulher, por sua vez, dedicou-se um cuidado todo especial, pois a sua negligência no
cuidado da prole ou sua debilidade comprometia a saúde física e moral do casal. O
amor equilibrado e companheiro tornou-se imprescindível na união, e, ainda mais
importante, imprescindível era a procriação, o principal objetivo do casamento. Aliás,
era com essa finalidade que, aos olhos médicos, um homem e uma mulher se uniam
matrimonialmente, para gerar e criar filhos para a nação. Logicamente, todo o
comportamento social que fugisse a essas regras era veementemente combatido, como,
por exemplo, o comportamento dos homossexuais, das prostitutas, dos celibatários, nas
ninfomaníacas, dos alcoólatras, dos libertinos, dentre muitos outros.
―Essas anormalidades sexuais foram definidas como focos privilegiados de
contaminação das moléstias venéreas. Para mais, a prostituta, o libertino, o
celibatário e o homossexual são o contraponto do homem-pai e da mãe-
higiênica, criados a partir dos padrões da normalidade médica. O contato da
população da cidade com esses indivíduos portadores de hábitos devassos,
obscenos e pervertidos, era uma fonte importante de contaminação moral,
também causadora da desagregação da família‖. (ENGEL, 1988, P. 84-87)
206
qualquer lesão ou enfermidade nas partes da geração poderia levar a mulher à alienação
mental.
Assim, vai se tornando nítida a relação intrínseca que esses médicos
estabeleceram entre as afecções dos órgãos da sexualidade da mulher e os seus
distúrbios mentais. À medida que as descobertas sobre o corpo e o comportamento
feminino foram desvinculando a mulher do estereótipo de ser assexuado e associando o
seu sexo a um sexo lascivo, cheio de pontos erógenos e passíveis de todas as tentações
carnais, nenhuma análise médica escapou a essa associação.
As mulheres histéricas eram consideradas mais vulneráveis, mais inconstantes e
possuíam uma imaginação superexcitada, estavam mais susceptíveis às perversões do
instinto sexual, aos coitos exagerados, característicos das mulheres degeneradas, como
nos mostra o Dr. Luiz de Paula:
―Quanto às perversões sexuaes, a masturbação, a inversão do senso genital,
o amor lésbio, etc, são muito mais freqüentes nas hystericas, cuja imaginação
é desregrada e superexcitada, como em todos os outros degenerados; a
necessidade do coito normal póde também ser exagerada, e vê-se então as
raparigas ou mulheres casadas tornarem-se verdadeiras messalinas‖.
(PAULA, 1900, p. 6)
Dessa forma, mais uma vez é explícita a associação feita pelos médicos do
oitocentos entre os distúrbios mentais e os desvios sexuais, tanto uns quanto os outros
podendo ser causa e consequência reciprocamente; ou seja, as histéricas poderiam
apresentar distúrbios mentais, assim como as degeneradas poderiam ficar histéricas.
Como prevenção, além da boa educação, outra via para evitar todos esses males,
considerados devassos, era o casamento, tão exaltado e recomendado pelos médicos de
então. Talvez a instituição mais defendida por esses médicos tenha sido o matrimônio;
afinal de contas, ele era o espaço da sexualidade permitida e sadia, era através dele que
se reproduziam os indivíduos saudáveis e bem educados, além do mais, todas as
relações sexuais exercidas fora dele não estavam de acordo com os padrões higiênicos
propostos pela medicina.
Outro tipo de vício feminino retratado pelos médicos – e quando estes se referem
aos vícios, estão se referindo às anomalias sexuais – era a chamada ninfomania, que se
dava por meio da excitação sexual durante a menstruação e consistia na entrega da
mulher a todo o tipo de desejos sexuais imorais e antinaturais. Também causava o
aparecimento do vício da ninfomania, de acordo com os médicos do século XIX, as
207
afecções nos órgãos sexuais da mulher, podendo levá-la a todo o tipo de perturbações
morais.
A masturbação ou onanismo era tida como causa dos mais diversos males, tanto
físicos como morais e resultava, entre outros fatores, da ausência ou precariedade da
vida sexual, do contato entre as crianças no colégio, de leituras estimulantes, teatros, da
vida social agitada e desregrada, da alimentação inadequada, de práticas esportivas que
provocassem a excitação dos órgãos sexuais (como a equitação), da ociosidade, da
riqueza, de imagens indecentes, enfim, eram inúmeras as causas que levavam ao vício
da masturbação. O Dr. Alexandre Camillo ainda definiu três tipos de onanismo
(masturbação): o clitoriano, o onanismo vulvo-vaginal e o onanismo anal, bucal ou
mamaria.
208
successivamente recurso, ou no saphismo ou no tribadismo: e isso, sem nunca
invadir a vagina, - tendo sempre por único campo de operações o clitoris. A
clitorista póde, portanto, conservar indemne, em si, e na paciente os attributos
materiais da virgindade‖. (ALMEIDA, 1906, p. 196-197)
209
sem adornos; e, de quando em quando, tiram do bolso do collete um relógio:
dir-se-hiam, effectivamente, homens ... si não foram as saias‖. (ALMEIDA,
1906, p. 101)
―Assim como succede entre os uranistas, também entre as sectárias dos gozos
lesbianos há mulheres que se apaixonam por outras mulheres, inteiramente,
doudamente, até ao escandalo. Em taes circunstancias, quando a paixão é
correspondida, os mútuos votos são muitas vezes satisfeitos com a formação
de um lar em que há plena e inteira convivência marital. E‘neste lar
unissexual que predomina a forma lesbiana chamada saphismo. Ahi, cada
qual exerce invariavelmente o mesmo papel: só uma funccina com os lábios,
e é a esta que os auctores attribuem o papel de activo, enquanto que chamam
á outra passiva‖. (ALMEIDA, 1906, p. 154)
Em sua tese, o Dr. Augusto Barros menciona um delírio de atração pelo sexo
semelhante, tanto entre homens quanto entre mulheres, e afirma que tal delírio é
resultado de uma inversão congênita:
211
se for recolhido em um hospício e submetido ao tratamento adequado – aplicações de
hidroterapia, de eletricidade e de sugestão hipnótica – pode vir a ser curado e
restabelecido à sociedade.
Para o Dr. Pires de Almeida (1906), esses vícios podem tanto ser inatos à
criança como podem ter sido transmitidos por influência do meio; portanto, era preciso
definir quem era invertido e quem era pervertido, pois, segundo ele, nem todos esses
indivíduos eram doentes e nem todos eram criminosos. Como forma de tratamento, o
médico receita dois "medicamentos": a educação – quando a educadora precisa lançar
mão de meios para convencer a sua educanda das vantagens sociais da vida em família,
de ser esposa e mãe – e a sugestão mental por meio da hipnose.
Referências:
Teses médicas/Documentos:
212
ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Homossexualismo: A libertinagem no Rio de
Janeiro: estudo sobre as perversões e inversões do instincto genital. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1906.
MAIA, José Vicente da. A menstruação na etiologia das nevroses e psychoses. Rio de
Janeiro: 1897. Tese apresentada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
213
MELLO, José Tavares de. Considerações sobre a hygiene da mulher durante a
puberdade, e apparecimento periódico do fluxo catamenial. Rio de Janeiro: Laemmert,
1841. Tese apresentada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
PAULA, Luiz de. O Delirio nas Hystericas. Rio de Janeiro: 1900. Tese apresentada a
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Bibliografia:
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro, Edições
Graal, 2 edição, 1983.
DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.
215
RELAÇÕES AFETIVAS PARALELAS
O AFETO COMO PONTO CENTRAL DA RELAÇÃO FAMILIAR E A BUSCA
PELA REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DAS UNIÕES SIMULTÂNEAS
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em um passado não tão distante, a única forma de constituição de uma família
era através do casamento. O matrimônio, por muito tempo, foi o berço da família
patriarcal, onde a mulher era submissa ao homem em vários aspectos da vida civil,
caracterizando a família como unidade econômica e de reprodução.
As constantes mudanças na sociedade fizeram com que a família ganhasse novos
contornos pelo Direito, que abandonou o matrimonio como única forma de ralação
familiar passando a valorizar os laços afetivas que unem um casal, possibilitando assim
o reconhecimento de novos arranjos familiares.
Neste cenário, algumas relações que, muito embora existam já algum tempo e
sejam de amplo conhecimento da sociedade, encontravam-se às margens de qualquer
direito, buscam o seu reconhecimento como verdadeiras entidades familiares. Dentre
elas, destacam-se as famílias paralelas.
217
perante o corpo social‖ (SIMÕES, 2015, p. 19). Nesse sentido Maria Berenice Dias
leciona:
Nos dias de hoje, o que identifica a família não é nem a celebração do
casamento nem a diferença do sexo ou o envolvimento de caráter sexual. O
elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a
presença de um vinculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos
de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo (DIAS, 2011,
p. 28).
Paulo Luiz Netto Lôbo (2002, p. 97) elenca alguns artigos da Constituição
Federal que conduziriam ao princípio da afetividade, sendo eles: (i) a igualdade entre os
filhos qualquer seja sua origem (art. 227, § 6º); (ii) a adoção, como escolha afetiva com
igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); (iii) a comunidade formada por qualquer dos
pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, e a união estável têm a mesma
dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, §§ 3º e 4º); (iv) o fim da
indissolubilidade do casamento, sendo o casal livre para extinguir o casamento ou a
união estável, sempre que a afetividade desapareça (art. 226, §§ 3º e 6º).
Com a constitucionalização do direito civil, notadamente do direito das famílias,
o afeto ganhou posição de destaque em detrimento da família como núcleo econômico e
de reprodução. Ao conceber a união estável como família a Constituição reconheceu
que a relações de afeto e solidariedade entre seus membros bastariam para caracterizar
uma unidade familiar, não sendo necessário o casamento. Ainda, ao estabelecer a
possibilidade do divórcio (ou a livre dissolução da união estável), a Carta Magna deixa
claro que apenas a afetividade mantém unidas essas entidades familiares, e não a lei.
Pode-se concluir então que onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços
de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família (LÔBO, 2002,
p. 97).
Deste modo, para parte da doutrina como Maria Berenice Dias (2011, p. 72), a
afetividade conquistou status de princípio norteador do direito das famílias, atribuindo-
se valor jurídico ao afeto. Assim, se o elemento que caracteriza uma unidade familiar é
o afeto, conclui-se que as famílias podem se apresentar sob tantas e diversas formas
quantas forem as possibilidades de se relacionar, ou melhor, de expressar amor, afeto
(ROSENVALD; FARIAS, 2013, p. 41). Surge então a ideia de um pluralismo familiar,
outro princípio que permeia as famílias contemporâneas.
Neste esteio, muitos autores acreditam que o conceito trazido no caput do artigo
226 da Constituição é plural e indeterminado, incluindo-se como família toda unidade
218
formada por afeto. Trata-se, portanto, de uma cláusula geral de inclusão e não um rol
taxativo de possíveis núcleos familiares, onde o cotidiano, as necessidades e os avanços
sociais se encarregarão da concretização de novos arranjos de família – como já o
fizeram com as uniões homoafetivas – que merecerão, igualmente, proteção legal
(ROSENVALD; FARIAS, 2013, p. 84).
Desdobrando o artigo 226 da CRFB o autor Paulo Luiz Netto Lôbo chega à
conclusão de que o rol de modelos familiares trazidos pela Carta Magna de fato não é
taxativo:
No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao
âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer
referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições
brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução ―constituída pelo casamento‖
(art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra,
pôs sob a tutela constitucional ―a família‖, ou seja, qualquer família. A
cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a
tipos determinados, para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não
significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a
locução ―a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela
comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos‖. A interpretação de
uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos
comuns, restringindo direitos subjetivos (LÔBO, 2002, p. 94).
219
ambos, seja um casamento e uma ou mais uniões estáveis ou duas ou mais uniões
estáveis. É certo que na maioria dos casos que batem a porta da justiça, o sexo
masculino é este denominador comum, embora não deva se omitir a existência de
uniões simultâneas onde a mulher faça esse papel (VERAS, 2014, p. 84).
Assim, diante da constitucionalização do direito das famílias, arrisca-se dizer
que se há uma relação extraconjugal lastreada na afetividade entre os seus membros,
existe a possibilidade do reconhecimento desta união com verdadeira família, com todos
os seus efeitos, como os benefícios previdenciários, alimentos e até a herança. Há,
porém, um forte entrave que permeia toda a sociedade ocidental, impedindo que estas
relações sejam reconhecidas pela direito das famílias. Trata-se da monogamia.
Para muitos doutrinadores considerada princípio jurídico ordenador do direito
das famílias, a monogamia tem sido o principal esteio dos juízes em impedir o
reconhecimento de uma família constituída simultaneamente a outra, ainda que goze de
afetividade, estabilidade e ostentabilidade. Assim, atualmente, as relações paralelas são
tratadas pelo direito como concubinato, não gozando de quaisquer direitos na seara
familiar.
Contudo, embora não se olvide a importância da monogamia como função
ordenadora do direito das famílias, não se trata de um princípio absoluto. Isto porque
existem outros princípios que norteiam as relações familiares que não podem ser
ignorados pelo Direito, como por exemplo a boa-fé.
Não se ignore, que a monogamia não pode se apresentar como valor superior
a outros identicamente merecedores de prestigio jurídico, exatamente como a
boa-fé. Assim, a boa fé afasta o caráter antijurídico do concubinato, porque
valoriza a dignidade dos componentes de todos os grupos familiares
concomitantes (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p. 543).
220
boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão‖.
Assim, estando o companheiro ou os companheiros de boa-fé a união produzirá seus
efeitos até o dia da sentença anulatória.
Neste sentido, Rolf Madaleno assevera que:
Desconhecendo a deslealdade do parceiro casado, instaura-se uma nítida
situação de união estável putativa, devendo ser reconhecidos os direitos do
companheiro inocente, o qual ignorava o estado civil de seu companheiro, e
tampouco a coexistência fática e jurídica do precedente matrimônio, fazendo
jus, salvo contrato escrito, à meação dos bens amealhados onerosamente na
constância da união estável putativa em nome do parceiro infiel, sem prejuízo
de outras reivindicações judiciais, como, uma pensão alimentícia, se provar a
dependência financeira do companheiro casado e, se porventura o seu
parceiro vier a falecer na constância da união estável putativa, poderá se
habilitar à herança do de cujus, em relação aos bens comuns, se concorrer
com filhos próprios ou a toda a herança, se concorrer com outros parentes
(MADALENO, 2008 apud GAGLIANO, 2008).
221
Há ainda a hipótese em que a concubina sabe da existência da outra família,
porém a esposa ou a companheira não conhece a relação extraconjugal. Trata-se de
situação muita mais delicada que, ressalvado os entendimentos contrários, não merece
guarida do direito das famílias em face da ausência de boa-fé, diferentemente dos dois
núcleos familiares acima exemplificados. Acredita-se que, conforme os dizeres de Pablo
Stolze, ao não considerar a boa-fé como requisito para a caracterização das uniões
simultâneas, ―criaríamos uma ambiência propícia à autuação de golpistas e
aproveitadores, simuladores de relações de afeto‖ (GAGLIANO, 2008, p. 37).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez atribuído à afetividade o status de principio jurídico norteador do
direito das famílias, o surgimento de novos arranjos familiares é consequência lógica e
inevitável, não cabendo ao Direito condicionar ou impedir seu reconhecimento uma vez
presentes todos os requisitos para a constituição de uma relação familiar.
As visões preconceituosas, muitas vezes consequência de valores culturais
transmitidos de geração em geração na sociedade, como é o caso da heterossexualidade
e da monogamia, não deverão prevalecer diante da dignidade e da felicidade dos
membros que integram estes novos – embora muitos deles já existam bastante tempo –
arranjos familiares.
Neste sentido, ainda que se considere a monogamia como principio ordenador
das famílias, a afetividade juntamente com a boa-fé podem mitigá-la em certos casos,
como ocorre nas famílias poliafetivas e na união estável putativa. Deste modo,
ressalvados os casos em que a boa-fé inexiste, às famílias paralelas devem ser
concedidas o status de verdadeira entidade familiar, trilhando o mesmo caminho das
uniões homoafetivas, corroborando assim para um novo conceito de família.
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222
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adulterina: estudo de caso. Disponível em:
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VERAS, Érica Verícia Canuto de Oliveira; ALMEIDA, Beatriz Ferreira de. Reflexões
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Horizonte, v. 4, p. 81-101, jul./ago. 2014.
224
SOBRE A CIDADANIA E OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO
BRASIL: O “CASAMENTO” GAY.
Introdução
1
Docente da Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de História – Uberlândia/ Doutor em
História – paulounesp@yahoo.com.br
225
determinadas graças a atos de vontade de um ―ser‖ inserido e preso à realidade sócio
política e que são aplicadas como disposições obrigatórias ao conjunto de pessoas
residentes num dado território.
O arcabouço normativo não existe por si, nem sobrevive em si, mas subsiste em
função das especificidades do agrupamento social que o cria, mantém e sustenta num
dado contexto e em determinada época, fornecendo-lhe substância (HESSE, 1992, 35-36).
Traço comum a todos os ramos da ordenação jurídica, a historicidade encontra-se
destacada na gênese constitucional, ocasião primaz em que as mediações, valorações e
expectativas de comportamento veem à tona e são mediadas pelo poder político, no
transcurso da reconfiguração do jurídico.
Contemporaneamente, a Constituição é o estatuto organizativo das estruturas do
Estado (poderes, órgãos e competências, etc.) e da sociedade civil (formas de
representação, direitos e garantias, deveres, etc.), emergente e imersa no contexto
histórico político em que surge e no qual deve atuar. Trata-se de um conjunto sistemático
normativo racional de uma unidade política estatal no qual estão expressos a sua
estruturação primordial, os seus fins e a sua identidade (SILVA, 2008).
Ela é o resultado da vontade de um poder constituinte, cuja formação, extensão
e amplitude encontram-se vinculadas a questões reais de ―poder‖, de ―força‖ ou de
―autoridade política‖ relacionada a indivíduos ou grupos sociais em condições de, numa
determinada situação histórica, criá-la e garanti-la como nova lei fundamental da unidade
política, mediante a escolha e o estabelecimento de seus novos parâmetros legais.
(CANOTILHO, 1998, 59).
Em face do texto constitucional é possível, entre outras coisas, identificar os
parâmetros selecionados e estabelecidos, como pilares da ordem social, política e
econômica que se pretende delinear e até mesmo discutir e analisar as aproximações
e/ou os desvios aferidos na sua hermenêutica e na sua aplicação à realidade, ou seja,
avaliar as alternâncias entre o que se definiu constitucionalmente e aquilo que foi de
fato vivenciado.
Tal condição permite discussões acerca dos aspectos, contornos e parâmetros
constitucionais atribuídos ao exercício da liberdade sexual, seja na esfera de intimidade,
mas, sobretudo, quanto aos seus reflexos sociais, particularmente no domínio das
garantias fundamentais e dos direitos civis. Assim como, indagações acerca da
articulação efetiva entre os direitos assegurados, a ordem social e política pretendida e a
226
realidade vivenciada no país a partir da vigência da nova Constituição de 1988 pelas
minorias sexuais, seja no seu cotidiano e/ou nas suas demandas cidadãs.
227
início, porém por aproximadamente vinte e cinco anos as práticas foram de reiteradas
negativas ao reconhecimento, o acesso e a proteção dos direitos e garantias individuais
relacionadas ao exercício da cidadania sexual de gays, lésbicas e transgêneros. Embora
voltada à garantia da igualdade a sociedade brasileira, por um longo período, tratou
parte dos seus cidadãos como indivíduos de menor categoria.
Independentemente de seu reconhecimento jurídico a homossexualidade
acompanha a humanidade há milhares de anos. Na atualidade não é mais tipificada
como patologia pela Organização Mundial da Saúde, sendo que no Brasil o Conselho
Federal de Medicina não a considera doença e o Conselho Federal de Psicologia, por
intermédio da Resolução 01/99, afastou quaisquer procedimentos com a finalidade de
curá-la (LOREA, 2006, 491-2).
Como justificar, portanto, que gays, lésbicas e transgêneros tenham permanecido
juridicamente marginalizados e que suas relações afetivas sexuais, tenham sido
insistentemente tipificadas como de menor categoria diante da heteronormatividade?
Na ausência de expressa menção constitucional os relacionamentos entre as
pessoas de mesmo sexo foram interpretados, prioritariamente, pelos juízes e tribunais de
maneira dogmática, vedando-lhes o acesso ao ―casamento‖, tido como incompatível
com as relações homossexuais (MEDEIROS, 2007, 14), mediante ao recorrente
argumento de que era necessária a aprovação de uma lei específica para regulá-lo entre
parceiros homossexuais (LOREIA, 2006, 493). Ressalta-se o fato de que aqui o termo
―casamento‖ reporta-se ao registro em cartório da união afetiva sexual entre duas
pessoas de mesmo sexo, capaz de lhes garantir uma série de obrigações e direitos
reciprocamente estabelecidos no âmbito civil e previdenciário, típicos a tal vinculação,
sem nenhuma referência, portanto, a qualquer celebração de cunho religioso.
Não se contestou, em momento algum, a proteção constitucional às relações
heterossexuais, via casamento ou união estável, apontadas no art. 226, o que se
pleiteava era a extensão de suas garantias e obrigações às relações afetivas sexuais
firmadas entre pessoas do mesmo sexo.
A leitura dogmática revelou-se inadequada para lidar com a crescente
complexidade e com as transformações sociais, notadamente as dimensões afetivas e
sexuais envolvidas nas relações entre duas pessoas de mesmo sexo, a revelia da lei esse
tipo de relacionamento foi tornando-se cada vez mais comum, adquirindo visibilidade e
colocando a justiça os seus pleitos pelo sua aceitação e proteção.
228
Como não identificar que a negativa ao reconhecimento e amparo jurídico das
relações afetivas sexuais entre pessoas de mesmo sexo no sistema sócio, político e
jurídico brasileiro não era uma afronta o mandamento do artigo 3.º da Constituição
Federal, que diz que o fundamento do Estado é o de ―promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação‖. Um insulto ao artigo 19, que prevê ser ―vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] criar distinções entre brasileiros ou
preferências entre si‖ e um ultraje ao caput do artigo 5º, da Constituição Federal:
―Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza‖.
Acertam todos aqueles que disseram e que até hoje sustentam que sempre foi
equivocada a exigência de um regramento específico para que se pudesse configurar o
reconhecimento, o acesso e a proteção jurídica das relações afetivas sexuais entre
pessoas do mesmo sexo. Não existia a necessidade de novas regras, bastaria a aplicação
efetiva dos princípios constitucionais, notadamente os da dignidade humana e da
igualdade (MEDEIROS, 2007, 25-26).
A negativa do acesso pleno aos direitos e garantias fundamentais aos gays,
lésbicas e transgêneros implicava em evidente discriminação por orientação sexual. A
essas pessoas, civilmente capazes, não se permitia o exercício integral da cidadania
(LOREA, 2006, 490). A vedação de seus acessos ao casamento civil – capaz de conferir
a proteção aos afetivos e as relações patrimoniais erguidas no âmbito de uma relação
conjugal –, resultavam na ―perda de auto respeito e da capacidade de se referir a si
mesmo como um igual dentro da interação social‖. Diminuía-lhes tanto o exercício de
suas autonomias privadas, mediante a limitação de seus campos de atuação, como a
autonomia pública, rotulando-os de inferiores, como ―parceiros de menor valor na
interação existente dentro de uma sociedade de coassociados pelo direito‖
(MEDEIROS, 2007, 21-22).
Na propalada democracia brasileira, por vinte cinco anos, persistiu a inquietante
situação de que os direitos e garantias individuais e os princípios da dignidade da pessoa
humana e da igualdade, constitucionalmente estabelecidos como pilares da sociedade
nacional, não eram condizentes com o reconhecimento e a proteção jurídica das relações
homoafetivas.
230
Assegurar igualdade implica em tê-la mantida sob duas dimensões: ―igualdade
perante a lei‖ e ―igualdade na lei‖. Por um lado, há que se garantir a todos,
indistintamente, a idêntica aplicação do direito, de modo que estejam sujeitos aos
mesmos efeitos jurídicos das leis estabelecidas. Por outro, deve existir a igualdade de
tratamento dos casos similares pelas normas jurídicas, admitindo-se apenas
diferenciações em face de situações restritas (RODRIGUES, 2008, 67-69), unicamente
com a finalidade de equilibrar situações de desigualdade reais, por exemplo, no caso das
chamadas políticas afirmativas.
Garantir a igualdade não indica perseguir a homogeneização, mas assegurar o
respeito às diferenças, pressupondo-se que a sua promoção encontra-se baseada no
respeito ao pluralismo (MEDEIROS, 2007, 23-24). Nesse sentido, como aceitar as
visões que se atinham ao reconhecimento jurídico unicamente de relações afetivas
sexuais de orientação heterossexual?
A negativa de direitos a gays, lésbicas e transgêneros somada à manutenção do
status quo tratava-se de uma ofensa ao regime democrático de iguais direitos, sob o
silêncio do sistema político e jurídico cultivou-se a intolerância, por um longo período.
Numa ordem efetivamente democrática, toda e qualquer discriminação sexual é
juridicamente ilícita (LOPES, 2005, 78).
A dissonância entre a ordem constitucional e a realidade prática fez com que, no
Brasil, por muitos anos, se impusesse a gays, lésbicas e transgêneros o conjunto de
deveres, mas não na mesma ordem, a plenitude dos direitos. Nesse sentido, o
reconhecimento e a proteção das relações afetivas e sexuais ficaram presos aos gostos e
ao arbítrio de decisões judiciais, não raras vezes conflitantes entes si, sendo aceitas e
contempladas por alguns e rejeitadas por outros.
Considerações finais
234
Na sociedade brasileira, planificada pelos constituintes em 1988, pretendida como
fraterna, pluralista e harmônica, por vinte e cinco anos aos gays, lésbicas e transgêneros
foram atribuídos indistintamente os deveres, mas negada a plenitude dos direitos.
Enquanto perduraram as restrições no reconhecimento, acesso e amparo jurídico aos
laços afetivos e sexuais estabelecidos entre pessoas do mesmo sexo perpetuou-se o fato
de que na ―democrática e igualitária‖ sociedade nacional alguns eram mais ―iguais‖ que
outros. Por que não dizer alguns eram de primeira categoria e outros de segunda e/ou
terceira quanto ao exercício pleno da cidadania e aos direitos e garantias fundamentais,
sobretudo no que diz respeito às vivências da afetividade e da sexualidade.
De recentíssima leitura e viabilização o reconhecimento como entidade familiar
das relações homoafetivas e o acesso ao casamento civil constituem-se em objeto de
permanente interesse e vigilância a todos aqueles interessados, de fato, na construção e
manutenção de uma sociedade, efetivamente, democrática, igualitária, fraterna e
pluralista, contra a qual não faltam ameaças. Vide-se, por exemplo, as contraposições a
esses entendimentos no Congresso Nacional promovidas pelas bancadas religiosas,
partidos políticos e grupos homofóbicos nas discussões do estatuto da família.
A cidadania e os direitos fundamentais reportam-se a uma temática atinente aos
estudos sobre gênero, à medida que permite a sua abordagem num domínio social e
político essencial que é o normativo constitucional e de sua exegese, cuja característica
principal é a imperatividade, a capacidade de validar práticas e/ou preconceitos ou, na
outra ponta, de consolidar avanços diante das novas demandas sociais. Nesse sentido, a
análise e a discussão sobre o ―casamento‖ gay é capaz de revelar as contradições, as
transformações e os desafios rotineiramente colocados ao permanente tabuleiro em que
se constrói, referencia e garante a igualdade de gênero e a cidadania sexual.
Referências bibliográficas
235
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64452005000100004&lng=pt&nrm=iso . Acesso em 01 set. 2015.
236
QUESTÃO DE GÊNERO NOS MOVIMENTOS DE VANGUARDA: A
INSERÇÃO DA MULHER NA ARTE E A ROUPA COMO SUPORTE
ARTÍSTICO
Este artigo busca inserir-se em uma nova historiografia da arte que se dispõe a
rever o lugar e o papel das mulheres artistas, 3 bem como de sua produção. Abordaremos
o trabalho de uma artista russa participante de um movimento de vanguarda, o
Construtivismo, que foi em si excepcional por ter dado espaço e valor a mulheres
artistas como em nenhum outro movimento de vanguarda, nas duas primeiras décadas
do século XX.
1
Mestranda em Artes Visuais no PPGA-IARTE-UFU. E-mail: priscila.vabreu@gmail.com.
2
Professor de Teoria, Crítica e História da Arte no IARTE-UFU. Mestre e Doutor em História da Arte
pelo IFCH-UNICAMP, com Pós-Doutorado em Artes Plásticas pela ECA-USP. E-mail:
alexmiyoshi@hotmail.com.
3
Nesse empenho destaca-se o trabalho de NOCHLIN (1971), entre outros.
237
Alexandra Exter (1882-1949) foi uma importante artista no construtivismo
russo.4 Desenvolveu trabalhos notáveis em pintura, tendo também uma produção
relevante de cenários, marionetes e figurinos de teatro. Quando residiu em Paris, de
1910 a 1914, adotou princípios estéticos do cubo-futurismo. Participou das primeiras
exposições de arte moderna em Moscou, entre 1915 e 1917, tendo criado ainda a
cenografia e os figurinos da peça Famira Kifared em 1916 e de Romeu e Julieta em
1920, bem como do filme de ficção científica Aelita, de 1924.
Seus trabalhos para o teatro são marcados por formas e materiais ousados para a
época. Trataremos aqui dos figurinos desenvolvidos por Exter para a peça Salomé
(figura 1), de Oscar Wilde, encenada no Teatro Kamerny de Moscou no outono de
1917, com direção de Alexander Tairov. A montagem parece ter sido
tão bem recebida nos círculos artísticos em Moscou que foi vista como mais importante
que eventos políticos a exemplo da chegada ao poder da facção bolchevique, cujas
consequências históricas não eram fáceis de avaliar em outubro de 1917. Dada a familiaridade de
Exter com as novas ideias em design de cenários, apresentadas pelo ballet Diaghilev em Paris,
entre 1910 e 1913 ... , ela trouxe um sopro de inegável novidade a Moscou, prolongando a onda
inovadora com suas próprias invenções radicais.
Sua grande inovação foi desmaterializar o cenário ao substituir os painéis fixos de cena
por pura construção de luz, cuja lógica espacial era tão rigorosa quanto dinâmica. Em outubro de
1917, a estrutura brilhante e austera de Salomé marcou o nascimento do Teatro Construtivista. A
encenação foi um triunfo. Por meio da desmaterilização do cenário, Exter dilatou, de modo não-
objetivo (abstrato), a austeridade dramática do cenário monumental de Gordon Craig, então bem
conhecido e apreciado na Rússia.5
4
Sobre a obra de Exter, ver HUNT (2011).
5
Tradução nossa. Disponível em <www.alexandra-exter.net/en/biographie.php>. Acesso em 15/09/2015.
6
Ver DIJKSTRA (1986), p.376-401.
238
imagens na linha do que propõe pesquisadores como Carlo Ginzburg e Jorge Coli,
retomando a prática celebrada dos estudos de Aby Warburg. 7
7
Ver COLI (2010), GINZBURG (2014) e WARBURG (2013).
8
DIJKSTRA, p.382, e COOKE (2007), p.528-9, 536.
9
É necessário frisar que o desenho de Exter, de dimensões mais reduzidas, é instrumental, voltado para a
confecção de figurino de teatro, não de um quadro para expor em salões ou museus. Portanto, o status
artístico desse trabalho é menor, o que também concedeu à artista maior liberdade de expressão.
239
6). Nelas, os movimentos de corpos e tecidos são ondulantes, ressaltando-se o volume e
a sinuosidade carnais, bem como a variação de poses e ações que as danças exóticas
possibilitam, provocantes ao observador. Os corpos rechonchudos, por sua vez,
estimulam o toque, e os olhares, quando voltados para nós, raramente deixam de ser
sedutores (na figura 4, o detalhe da sapatilha que se solta do pé, para além de um
símbolo usual da perda de inocência, é também um reforço da sedução). Uma exceção
dentre essas imagens de mulheres é a de um homem que dança (figura 5), com gestos
delicados. Mas a exceção confirma a regra dos preconceitos, já que o homem, no caso, é
negro, o que se articula a outro senso do período: de que determinados povos
considerados inferiores (judeus, negros e orientais) deviam sua condição ao fato de ser
naturalmente efeminados.10 As teorias raciais, como sabemos, afirmavam a
superioridade dos brancos na exibição de caracteres de virilidade, constituindo um
elemento a mais a reverberar na construção da imagem que irmana mulheres e raças em
seres degenerados.
10
DIJKSTRA, p.211-2; 220-1; 278
11
DIJKSTRA, p.385-6; 396-8 e COOKE (2011), p.214-8.
240
palavras do pesquisador Peter Cooke, devido ao ―êxtase hierático‖ de sua pose. Os
esboços de Moreau (figuras 9 e 10) mostram Salomé um tanto irreal, semelhante a uma
deusa, sendo que em um deles há uma evidente inspiração na arte hindu. As Salomés de
Moreau se aproximam das de Exter pelas formas retilíneas, sobretudo a aquarela
L‘apparition (figura 10), que mostra braço e perna estendidos em linha reta, formando um
esquadro apoiado obliquamente ao solo, com o dedo da mão apontado para a cabeça
sobrenatural do Batista.
A Salomé de Alexandra Exter pode ser comparada, enfim, com a que fez um
artista genial do século XX, notório defensor de causas políticas e sociais. Picasso
gravou uma Salomé (figura 12) igualmente decidida, com as linhas retas aplicadas ao
corpo, que, no entanto, abre as pernas e exibe o sexo à visão de Herodes. Nem mesmo
Picasso escapou de fazer uma Salomé com algo de convencional, malicioso e vulgar, o
oposto do que fez Exter em sua singela representação. Pois a Salomé de Exter, assim
como a de outra pintora, Ella Ferris Pell (figura 13), lembrada pelo pesquisador Bram
Dijkstra como uma das representações pictóricas de mulher mais extraordinariamente
dignas do início do século XX, 12 são ambas respostas visuais engenhosas de mulheres
artistas a demandas profissionais e artísticas.
12
DIJKSTRA, p.390-3.
241
Tanto Ella Ferris Pell quanto Alexandra Exter compuseram Salomé como
mulher empoderada,13 consciente de sua condição e do mundo à sua volta, sem a
crueldade e a malevolência das incontáveis Salomés do entresséculos. Podemos
acrescentar que ambas as imagens, sobretudo a de Pell, talvez guardem algo de
melancólico, dada a condição à qual a personagem foi condenada: a ser algoz de um
homem santo, espécie de alegoria de todos os bons homens do mundo. Salomé, para as
duas artistas, cumpre um papel amargo, sem no entanto perder a compostura.
Por fim, vale mencionar a mórbida correlação identificada por Dijkstra quanto
ao fascínio, amor (e ódio) a Salomé, no início do século XX, bem como à outra
personagem bíblica que decapitou um homem, Judith (figura 14). Ambas, não por
acaso, são judias. Isso permite aproximar dois termos, um deles, ao que parece,
inexistente na língua portuguesa, ginocídio – isto é, feminícidio, extermínio de mulheres
– com genocídio. 14 Os anos de perseguição aos judeus e às outras etnias não deixam,
verdadeiramente, de corresponder às obsessões em torno a tais imagens.
13
Na falta de um termo melhor, usa-se aqui a expressão ligada a empoderamento de forma
voluntariamente anacrônica.
14
DIJKSTRA, p.400-1.
242
2. Franz von Stuck, Salome, 1906, óleo 3. Henri Regnault, Salome,
sobre tela, 115,5 x 62,5 cm, Städtische 1870, óleo sobre tela, 160 x
Galerie, Lenbachhaus. Fonte: 102,9 cm, MoMA, Nova York.
Wikimedia Commons. Fonte: Website do MoMA.
4. Leon Bakst, figurino para 5. Leon Bakst, figurino 6. Leon Bakst, figurino
odalisca em Scheherazade, para personagem de para Salomé, 1908,
4. Alexandra Exter, figurino para
1910, desenho. Fonte: Scheherazade, 1910, desenho. Fonte: Wikimedia
Salomé, 1917, 66,5 x 52,6 cm,
Wikimedia Commons. desenho. Fonte: Commons.
Moscow Museum of Modern Art.
Wikimedia Commons.
243
7. Robert Henri, Salome, 8. Gustave Moreau, L‘apparition, 1876,
1909, óleo sobre tela, 197 aquarela, 106 x 72,2 cm, Orsay, Paris.
x 94 cm, Ringling Museum Fonte: Website do Musée d‘Orsay.
of Art, Sarasota. Fonte:
Website do Ringling
Museum.
244
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426 cm, Louvre, Paris. Fonte: Website do Louvre.
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246
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MANGÁS E A CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO DE UM
CONHECIMENTO REFERENCIAL
Resumo
1
Graduando em História pela Faculdade Federal de Uberlândia. Email: rafaelc.martineli@gmail.com
2
Professora Doutora do Instituto de História da Faculdade Federal de Uberlândia. Email:
monicacampo10@gmail.com
248
esferas da sociedade, sendo lidos por crianças, estudantes, executivos, donas-de-casa. O
principal é a capacidade que eles têm de encantar pessoas do mundo todo. Ler um
mangá pode se tornar uma experiência única. É como mergulhar em um mundo próprio,
cheio de ação, emoção, heróis, criaturas mágicas. Essas características, dentre outras,
cativam e despertaram o interesse por esse produto de mídia japonesa.
Assim, creio que estes produtos de cultura de mídia nos informam e permitem a
aproximação sobre assuntos dos mais diversos, abordando desde a cultura, seus hábitos
e costumes, como ainda sua organização social, e até mesmo curiosidades outras, como
sua arquitetura, alimentação, etc, construindo pontes e intermediando nossas realidades
neste mundo globalizado. O fato é que já é possível perceber que eles contribuíram para
a formação de um conhecimento referencial sobre a cultura japonesa entre jovens
consumidores, justamente devido à capacidade que o mangá tem em trazer todas as suas
referências culturais particulares, despertando o interesse e a curiosidade sobre um
determinado grupo, bem como sua organização cultural e sua história.
Introdução
Este artigo pretende fazer um esboço dos possíveis motivos que contribuíram
para o sucesso dos mangás no mundo ocidental. Para isso, abordaremos discussões
culturais que ocorreram no Japão e foram responsáveis por darem suporte para uma
política oficial que busca promover o Japão, social e culturalmente, vendendo e
rotulando, como uma marca, sua cultura. Num segundo momento será realizada uma
rápida contextualização de como os mangás se consolidaram no Japão e finalmente
ganharam o mundo. Buscamos apontar o caso brasileiro e sua particularidade, a
perspectiva para o fenômeno através do olhar da transmidia, teoria proposta por Henry
Jenkins. Na parte final deste trabalho elencamos os consumidores desses produtos
3
LUYTEN, Sonia. O fantástico e desconhecido mundo das H.Q.s japonesas. Quadreca. São Paulo: Ed.
ComArte. 1978.
249
midiáticos nipônicos e a capacidade dos mangás de construírem um conhecimento
referencial.
Com o advento da crise, a visão confiante de cultura que havia sido construída
nas décadas anteriores, intimamente ligadas ao crescimento econômico, passou a ser
cada vez mais problemática. É neste momento, com o aumento da desconfiança, que
começam a manifestar-se novas ideias sobre a cultura japonesa. Os autores, sob forte
influência do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, não se concentravam mais em
investigar as características, os méritos ou os deméritos da cultura japonesa. Em vez
disso, eles propuseram a desconstrução da própria ideia de cultura japonesa, negando a
existência de qualquer característica essencial, e denunciando as relações de poder por
trás desse tipo de discurso (ODA, 2010).
4
ODA, Ernani. Interpretações da ―Cultura japonesa‖ e seus reflexos no Brasil. Revista Brasileira de
Ciências Sociais - VOL. 26 N° 75, São Paulo, 2011.
250
Porém, essa nova tentativa de abordar a cultura japonesa sofreria mudanças a
partir da década de 1990. A discussão voltou às raízes, reabrindo os debates
provenientes da modernização do Japão no final do século XIX. De um lado existiam
aqueles que preferiam uma maior abertura e interação com a comunidade internacional
como solução para a crise e, do outro, muitos culpavam a globalização e a
internacionalização por todos os problemas, e argumentavam que ―a sociedade
japonesa só poderia sobreviver se retomasse um projeto de fortalecimento interno,
resgatando suas tradições culturais e seu orgulho nacional‖ (ODA, 2010, p. 110).
Dessa discussão surgiram duas correntes: o globalismo e o nacionalismo.
Não cabe, nesse artigo, entrar em uma discussão mais profunda sobre as duas
vertentes, visto que o intuito é explorar a capacidade dos mangás em contribuir para a
formação de um conhecimento referencial sobre a cultura japonesa e o seu consumo no
Brasil. Mas é interessante abordar, mesmo que minimamente, os processos de discussão
sobre cultura no Japão que possibilitaram uma política de expansão dos seus bens
culturais.
5
LUYTEN, Sonia M. Bibe. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. (3ª edição) São Paulo: Ed. Hedra,
2012.
6
Idem, p 16-17
252
Sendo assim, a temática abordada agora para as histórias eram os esportes. Esse tema
servia para canalizar a agressividade em esportes, sendo que o boxe e a luta livre eram
mais propícios a essa descarga de hostilidade.
Para Sonia Luyten, ainda existem dois fatores que contribuíram para o
aparecimento do grande volume de mangás. Um deles foi o aparecimento de
publicações do tipo underground, conhecidas como akai hon (livros vermelhos), mas
diferente da modalidade americana não apresentava conteúdo político-erótico.
Portanto, essa relação entre escrita e imagem esta intimamente ligada, visto que
os ideogramas estão sempre relacionados à visualidade das palavras que não só
253
representam sons, mas também ideias. Assim, em um mangá, principalmente as
onomatopeias, fazem parte da arte.
O mangá no Ocidente
―na Itália, que na época era o único país europeu a possuir redes de televisão
privadas, aconteceu uma invasão de desenhos japoneses de vários gêneros e
épocas: somente entre 1978 e 1983 o país assistiria a 183 séries de animes.
No norte da Europa, em lugares como a Alemanha, Holanda e Grã-Bretanha,
o fenômeno teve um impacto bem menor do que na Europa mediterrânea, por
ser menor a quantidade de animes exibidos pelas TVs desses países. [...]
Paralelamente à penetração do anime, têm lugar as primeiras tentativas de
introduzir o mangá para adultos no velho continente‖ (MOLINÉ, 2006, p.
58).
7
MOLINÉ, Alfons. O grande livro dos mangás. 2. ed. São Paulo: JBC, 2006.
254
Os estúdios de cinema e animação começaram a fazer contratos em grande escala com
vários países ocidentais, assim como as editoras japonesas.
O caso brasileiro
8
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.
255
como no caso o Cine Niterói, também situado na Liberdade. Já na Tv Brasileira, desde a
década de 1970 os heróis japoneses eram conhecidos. Ultraman na TV Tupi e
posteriormente, nos anos 1980, foi para o SBT, Fantomas na TV Record, Princesa
Safire e Jaspion na TV Manchete e Candy Candy, na TV Record anos 1980.
Os consumidores
Conclusão
9
LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.). Cultura Pop Japonesa – Mangá e Animê. São Paulo: Hedra, 2005.
258
referencial outrora formado. Assim, creio que estes produtos de cultura de mídia nos
informam e permitem a aproximação sobre assuntos dos mais diversos, abordando
desde a cultura, seus hábitos e costumes, como ainda sua organização social, e até
mesmo curiosidades outras, como sua arquitetura, alimentação, etc, construindo pontes
e intermediando nossas realidades neste mundo globalizado. O fato é que já é possível
perceber que eles contribuíram para a formação de um conhecimento referencial sobre a
cultura japonesa entre jovens consumidores, justamente devido à capacidade que o
mangá tem em trazer todas as suas referências culturais particulares, despertando o
interesse e a curiosidade sobre um determinado grupo, bem como sua organização
cultural e sua história.
Bibliografia
LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.). Cultura Pop Japonesa – Mangá e Animê. São Paulo:
Hedra, 2005.
LUYTEN, Sonia M. Bibe. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. (3ª edição) São
Paulo: Ed. Hedra, 2012.
MOLINÉ, Alfons. O grande livro dos mangás. 2. ed. São Paulo: JBC, 2006.
259
CONSTRUÇÃO DE MASCULINIDADES EM EL HOMBRE DE AL LADO
(2009): QUESTÕES DE GÊNERO
Resumo: O presente trabalho tem como intuito elencar algumas questões para se pensar
a construção das masculinidades em El hombre de al lado, de Mariano Cohn e Gastón
Duprat (2009). O filme argentino conta a história de dois vizinhos, Leonardo e Victor, que
acabam se desentendo em virtude da abertura de uma janela, por Victor, na medianera que
daria diretamente para a casa de Leonardo, a casa Crutchet, única edificada por Le
Corbusier na América Latina (1955). O percurso teórico-metodológico do trabalho passa
pela análise do filme a partir dos estudos de gênero e sexualidade, e como o filme se utiliza
de imagens do masculino e ao mesmo tempo questiona a ideia de masculinidade
hegemônica. Nesse sentido, as análises passam pela composição da carga simbólica e física
da corporalidade expressa na película, assim como, pela ideia de construção social dos
gêneros. Construção que passa também pelas relações sexualizadas ou não sexualizadas que
as personagens estabelecem com diversos objetos que aparecem na obra cinematográfica, e
que se apresenta, além disso, mediante a elaboração de atividade/passividade nas relações
sexuais representadas.
Introdução
2
―El Consejo Profesional de Arquitectura y Urbanismo (CPAU) es un organismo creado por el Decreto –
Ley 17.946/1944 para regular la práctica profesional. Junto a los Consejos de Ingeniería y Agrimensura
forma la Junta Central de los Consejos Profesionales creada por Decreto – Ley 6070/1958, ratificado por
la Ley 14.467. Su ámbito de acción es la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y los lugares sujetos a la
jurisdicción nacional‖ Disponível em: <http://www.cpau.org/institucional/que-es-el-cpau>, Acesso em:
27 de abril de 2015.
A questão das medianeras, a discussão jurídica que regulamenta as construções, aparece no Código Civil
da República Argentina em 8 artigos, por exemplo, nos artigos 2621., 2745., 3054. O código civil foi
aprovado em 1869 e sofreu quatro alterações até 1921, quando passa a incorporar pela primeira vez
tópicos diretamente relativos às medianeras ou divisórias entre propriedades. Disponível em:
<http://www.oas.org/dil/esp/Codigo_Civil_de_la_Republica_Argentina.pdf>. Acesso em 27 de abril,
2015.
3
Como os CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), iniciados em 1928, e no âmbito da
América Latina os Congressos Panamericanos de Arquitetos, iniciados em 1920.
261
Os temas do filme poderiam ser percorridos sob diversos aspectos: a questão das
medianeras e as soluções negociadas à parte da legislação, a possível falha na casa
projetada pelo arquiteto modernista com o intuito de aproximar o homem da cidade, a
entrada de luz solar como condição ―essencial‖ para a vida, a dificuldade de
relacionamento dos vizinhos em uma cidade extremamente planejada (La Plata, onde se
passa o filme), dentre outros. Nesse texto optaremos pela diferenciação entre as
personagens a partir da composição da carga simbólica e física da corporalidade
expressa na película.
Para isso, o percurso teórico-metodológico do trabalho passa pela análise do filme
a partir dos estudos de gênero e sexualidade, e como o filme se utiliza de imagens do
masculino e ao mesmo tempo questiona a ideia de masculinidade hegemônica, passando
assim pela ideia de construção social dos gêneros. Construção expressa também a partir das
relações sexualizadas ou não sexualizadas que as personagens estabelecem com diversos
objetos que aparecem na obra cinematográfica, e que se apresenta, além disso, mediante a
elaboração de atividade/passividade nas relações pessoais e sexuais representadas.
Para percorrer tal intuito escolheremos algumas cenas não para ― interpretar o filme a
fim de encontrar nele sua suposta verdade (referência), mas criar, a partir de um
diálogo, pontos de ligação e de tensão que permitam indagar e recriar significados,
problematizando-os a partir de categorias‖ (BESSA, 2012, p.321), ligadas a questões de
gênero e sexualidade, como escreve Karla Bessa em análise ao filme Avant que j‘oublie
(2007).
Construção de masculinidades em El hombre de al lado como questões de gênero
262
Nesse sentido há a incorporação de estudos ligados a masculinidades, que para
Raewyn Connel, ―é uma configuração de práticas em torno da posição que os homens
ocupam nas relações de gênero, isto é, práticas que os constroem enquanto homens
dentro de uma estrutura que atribui significados distintos àquilo que se entende como
masculino ou feminino‖, como assinala Adriano Senkevics (2015, s/p). 4
Falar sobre masculinidade enquanto prática se liga a ideia de ações reais, pensadas
a partir da racionalidade proposital da formação do masculino que tem um sentido
histórico definido, além disso, a categoria trabalhada pela perspectiva das questões de
gênero impele que usemos masculinidades no plural, como assinala Fernando Botton
em análise à obra de Connel (BOTTON, 2007, p. 116).
4
Disponível em < https://ensaiosdegenero.wordpress.com/category/masculinidades/ > Acesso em 15 de
outubro de 2010.
263
- Sim. Mas eu tive que levantar a minha voz.
- Ouvi.
- O que você espera? Se ele quiser fazer-se de louco, eu serei mais louco.
- Ele tem que deixar tudo como estava antes.
- Sim, sim. Eu disse-lhe assim. Pobre cara, ele pareceu ter ficado assustado.
A mulher então sorri e pede-lhe um beijo. Durante essa conversa não vemos o
rosto de Leonardo, escondido atrás de um armário da cozinha. A atitude ―machona‖ da
personagem diante da mulher não corresponde à sua postura perante Victor. No diálogo
travado entre os dois, o que acontece é uma série de pedidos de desculpas de Leornardo,
afirmando que o vizinho não pode abrir a janela, seguido de uma série de por favores.
Em outros momentos do filme isso também ocorre. Em certo momento, Leonardo ao
passar por Victor de carro se assusta e quase bate o automóvel.
Em outra cena Victor desse de sua van e acena para o designer que graças à
arquitetura da Casa Curutchet está visível no segundo andar.
A câmera posicionada no ombro de Leonardo faz com que tenhamos uma visão
completa de Victor no jardim de frente da casa. A personagem fala de modo rude (uma
característica sua durante todo o filme). Quando Leonardo decide descer e encontrar o
vizinho a câmera permanece no mesmo lugar e vemos Victor passar os pés na grama e
bufar, em semelhança a um animal selvagem, figura interessante se nos lembrarmos que
na cena final, enquanto sobem os créditos do filme e após a morte da personagem,
temos uma receita de porco do mato marinado, ditada por ele mesmo.
Leornardo só levanta a voz com quem aparentemente parece inferior a ele: o tio
de Victor para o qual diz aos berros:
264
– Por favor, a minha paciência esgotou-se, isto é o fim, okey? Você entende o
que estou dizendo? Entende a gravidade disso que estou dizendo? A falta de
respeito? A invasão da merda... que você está criando aqui? Diga-lhe que
esta é a última chance. Que está acabado. Chega de foder a vida, chega de
palhaçadas.
Momento em que Leornardo está dentro da casa de Victor, o que não acontece
quando o mesmo está lá. Quando o vizinho fica sabendo do ocorrido encara frente a
frente Leonardo, obrigando-o que lhe peça desculpas. Leornardo como em outros
momentos da película está visivelmente acuado e com medo. O enquadramento da
câmera, que o constrange reforça a ideia, e a personagem quase não diz nada. Postura
diferente quando está diante da mulher e do grupo de amigos, momentos em que faz
questão de frisar a imagem caipira e violenta do vizinho, construção que faz com que
mulher e amigos concordem com suas opiniões ridicularizando este homem ao lado da
casa curutchet, também a partir de um ponto de vista social, quiçá intelectual. A
masculinidade hegemônica facilmente identificada na figura de Victor é questionada
nesses momentos, aos olhos de muitos essa figura não é tão imponente, chegando
mesmo a soar ridícula.
Sobre a janela: ela torna-se interessante em três momentos voyeurísticos da
película, na cena sexual interpretada por Victor e uma mulher, e observada por
Leonardo e Ana, e em dois teatros de dedos feitos por Victor e observado pela filha do
casal. Em ambos o apelo sexual da composição das cenas é evidente. No teatro os dedos
calçados com botas texanas se lambuzam em meio a alimentos como uma mortadela,
que serve de tapete, e uma banana.
Em relação ao apelo sexual, sempre representado pela figura de Victor temos um
presente dado por ele a Leonardo, uma escultura feita com rifles velhos, canos e balas e
que formam uma vagina. Leonardo se constrange diante do presente, e a mulher mais
tarde encara-o com de um mau gosto extremo, quando o marido diz ser presente de um
aluno, e chegando a ficar chocada, quando descobre seu real remetente.
Janice Theodoro Silva em análise ao filme escreve que Victor é representado
como um homem com emoções à flor da pele e próximo do estado de natureza ―Capaz
de reconhecer as emoções em sua primeira dimensão, tanto em si mesmo como no
próximo, capaz de ter prazer, de se comunicar com qualquer pessoa, buscando, à sua
maneira, adequar-se à linguagem do outro. Um homem que sabe ver, ouvir, tocar e
265
falar, que sabe, em suma, amar.‖ (SILVA, 2013, p.195) Enquanto Leonardo só obtém
uma imagem marcante diante de pessoas consideradas por ele como subalternas.
Escreve ―A pseudo-racionalidade e propriedade da argumentação de Leonardo se
manifestam especialmente entre pessoas que ocupam um lugar subalterno: seus alunos.
Leonardo usa da sua condição de professor para exercer seu poder. Ele sente prazer em
construir a diferença pelo menosprezo do outro.‖ (SILVA, 2013, p.197) Chega a propor
de maneira fria e calculista, sexo com uma aluna, sendo rejeitado.
Podemos elencar ainda outro ponto para se pensar as masculinidades construídas
no filme. Botton em análise a obra de Connell escreve que quando a autora ―se refere a
‗posição dos homens‘ se refere às relações sociais, mas também corporais, não
excluindo a carga simbólica e física da corporalidade dos homens na formação da
masculinidade‖ (BOTTON, 2007, p. 116). Nesse sentido a imagem de uma
masculinidade viril de Victor é representada por sua carga corporal de homem grande e
forte, enquanto Leonardo apresenta-se como frágil e quase feminino.
Considerações Finais
Outras categorias poderiam ser somadas e esse estudo, pensadas de maneira mais
detalhada em relação às questões ligadas a classe social e intelectualidade. No momento
foi possível apenas esse pequeno mapeamento de algumas falas, gestos e cenas que
compõem as masculinidades presentes no filme. A masculinidade hegemônica e a
masculinidade de Leornardo, portanto, as masculinidades expressas na película, ainda
se apresentam em oposição ao feminino, fazendo com que possamos nos remeter à
leitura de Lacan quando o autor afirma que o masculino se impõe em relação ao falo.
As figuras femininas representadas são quase sempre passivas, na interpretação
dos dois vizinhos, embora Leonardo apresente uma postura diferente diante da mulher,
que por vezes nega fazer sexo com ele, assim como sua aluna. Leonardo diante da aluna
afirma ―Provavelmente você está perdendo a oportunidade mais interessante da sua
vida‖. Victor, ainda que Janice Theodoro o tenha elencado como uma personagem
capaz de amar, também não deixa de reinterar a imagem objetificamente da mulher. Em
conversas com Leonardo, talvez na tentativa de impor sua masculinidade, sempre se
refere às mulheres como prêmios ou conquistas. Mas podemos pensar ainda, que
embora tenhamos essa imagem masculina e viril de Victor é ele que tem a maior
266
aproximação com as personagens de sexo feminino que aparecem no decorrer da
película, como é o caso da filha de designer.
Portanto, pensar as representações do homem, no caso das duas personagens
principais do filme, implica que pensemos em múltiplas masculinidades e em suas
construções enquanto questões de gênero, uma vez que a própria masculinidade de cada
personagem é composta mas também colocada em cheque durante diversos momentos
da narrativa. Entender essas representações é entender como as imagens do masculino
são postas e também relativizadas de acordo com os lugares de fala, e portanto, a partir
das interações entre as personagens na película.
Filme
COHN, Mariano; DUPRAT, Gastón. O homem ao lado (2009). Título Original: El
hombre de al lado. Argentina, cor,110 min.
Bibliografia
BESSA, Karla. Cinema e projeção de eus: estética, política e subjetividade queer na
cena urbana contemporânea. In: NAXARA, Márcia R. C; MARSON, Izabel A.;
MAGALHÃES, Marion Brepohl de (Org.). Figurações do outro na história.
Uberlândia: edufu, 2009. P.286-306.
_______. Cinema e história: das migrações das imagens à narratividade dos universais.
In: SEIXAS, Jacy; CERASOLI, Josianne; NAXARA, Márcia. (Org.) Tramas e dramas
do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012. p.317-341.
BOTTON, Fernando Bagioto. As masculinidades em questão: Uma perspectiva de
construção teórica. Revista Vernáculo,n. 19 e 20, 2007.
CONNELL, Robert. Políticas da Masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre.
Vol. 20 (2), 1995.
LACAN, Jacques, ―A Significação do falo‖ In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu (11), 1998.
p.89-98.
REIS, Anderson Roberti. A América negociada e os homens ao lado. Revista Territórios
e Fronteiras, Cuiabá, vol. 5, n. 2, jul-dez., 2012.
SILVA, Janice T. Menos é mais. O homem ao lado. Revista territórios e fronteiras,
Cuiabá, vol. 6, 2013.
267
RÁDIO, HISTÓRIA E MEMÓRIA: REFLEXÕES SOBRE O USO DE
RELATOS ORAIS COMO FONTES NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA.
Resumo:
Este artigo pretende suscitar algumas questões sobre o uso de relatos orais no fazer
historiográfico, explicitando quais os limites e problemas, bem como a sua utilidade
para o historiador e seu oficio. Os trabalhos que possuem como objeto de pesquisa o
rádio enfrentam como principal problema o caráter efêmero de suas fontes. A produção
radiofônica durante a chamada ―Época de Ouro do Rádio‖ possuía um caráter
imediatista. Os programas eram realizados ao vivo e, salvo raras exceções, não existem
gravações dos mesmos. Também são poucos os documentos escritos que trazem à tona
elementos que contribuam para uma possível construção de uma história do rádio. Uma
alternativa para pesquisas sobre a temática consiste na utilização de relatos orais, tanto
dos profissionais que participavam da sua produção, quanto de seus ouvintes. Estes
relatos permitem aos pesquisadores o acesso aos aspectos cotidianos dos indivíduos
envolvidos pelo ambiente radiofônico, suas experiências socioculturais, a dinâmica das
relações entre este meio de comunicação e seus ouvintes, a elaboração dos programas, a
participação nos programas de auditórios, a relação entre os artistas e seus fãs, dentre
outros. Todavia, faz-se necessária uma reflexão crítica sobre o uso da história oral como
método de pesquisa válido para a produção de conhecimento histórico.
Introdução
Este artigo pretende suscitar questões relevantes para pesquisas que se valem da
história oral como metodologia. Neste viés, compreendendo que a história oral como
método que remete ora a uma dimensão teórica, ora a uma dimensão técnica, importa
aprofundar e compreender as discussões conceituais e metodológicas sobre o trabalho
com relatos orais na pesquisa historiográfica.
O trabalho com história oral não deve consistir em mera gravação e entrevistas e
sua transcrição. É necessário discutir sobre a natureza destas fontes, quais são seus
limites e problemas, bem como a melhor forma de utilizá-las.
269
História oral: um método ou uma “outra história”?
Muito se discute sobre qual seria o status da chamada ―história oral‖. Seria uma
simples técnica, uma disciplina, ou uma metodologia de pesquisa que possui tanto
aspectos teóricos quanto práticos?
274
estas possibilidades em esquemas compreensíveis, que possuam sentido. Os indivíduos
são, de fato, diferentes, mesmo em suas semelhanças. Reconhecer a subjetividade
enquanto um recurso, e não como um problema, é o caminho mais coerente para os
historiadores orais.
Como os relatos orais podem contribuir para uma pesquisa historiográfica que
tem como objeto os meios de comunicação de massa? Como dito na introdução deste
artigo, ao delimitar o estudo de mídias, especialmente o rádio, o historiador se depara
com o problema da falta de documentos escritos sobre a produção radiofônica, uma vez
que seu conteúdo e objetivo tem por característica central o imediatismo.
275
comunicação de massa e a história oral enquanto uma metodologia de trabalho precisa,
portanto, ser estabelecida.
Segundo CALABRE (2008), a história oral pode ser útil nos estudos sobre o
rádio em três principais campos. O primeiro diz respeito à história do cotidiano, onde as
entrevistas de história oral permitem reconstituir processos e práticas diárias que não se
encontram registradas em outras fontes. Neste caso são objeto de investigação do
historiador as formas de ouvir rádio, as relações que se estabeleceram entre os ouvintes
e o meio e a formação de novas práticas culturais. Um segundo campo seria na
perspectiva da história das instituições, permitindo a reconstrução da composição dos
trabalhadores, as formas de funcionamento, a construção da programação, o conteúdo
dos programas e a estrutura da emissora. Por fim, as biografias auxiliam na
reconstituição das trajetórias de vida que se deseje recuperar e estudar.
Um aspecto importante para a análise destes relatos orais é considerar que eles
são constituídos, segundo PORTELLI (2010, p. 24), de três modalidades que se
combinam durante a narrativa, mesmo que de forma desordenada. A modalidade
institucional é normalmente narrada de modo impessoal ou em terceira pessoa, com
referentes espaciais relativos à esfera pública. Uma segunda modalidade, ―comunitária‖,
é narrada na primeira pessoa do plural, e diz respeito a referentes espaciais relativos à
comunidade, à coletividade no qual está inserido o narrador. Por fim, quando a narrativa
se dá na primeira pessoa do singular, trata-se da modalidade ―pessoal‖, e seus referentes
sociais e espaciais dizem respeito à vida privada do indivíduo.
Considerações Finais
Este artigo pretendeu contribuir para a reflexão sobre o uso de relatos orais na
pesquisa historiográfica, defendendo a utilização da história oral como um método que
permite ao historiador estabelecer o contato com fontes que podem ser úteis para o
desenvolvimento de sua pesquisa.
Sobre a utilização das narrativas orais como fontes para pesquisa sobre o rádio,
percebe-se que sua utilidade é indiscutível. A entrevista com profissionais do ambiente
radiofônico e seus ouvintes podem proporcionar o acesso aos aspectos cotidianos e às
representações que não são encontrados nos documentos escritos.
A particularidade das fontes orais recai no fato de que estas são construídas
através de um processo complexo, da interação entre historiador e narrador, e que revela
aspectos subjetivos que não devem ser desconsiderados. Todavia, tal subjetividade não
exclui a utilização das fontes orais, apenas estabelece alguns cuidados e limites para seu
uso.
277
Todavia, espera-se contribuir com as reflexões e, de alguma forma, orientar os
primeiros passos de historiadores que busquem a utilização de fontes orais em suas
pesquisas.
Referências
278
A MULHER DE TPM: A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA E DISCURSIVA DA
1
MULHER NAS CAPAS DA REVISTA TPM1
RESUMO
O presente trabalho analisa como a mulher é representada nas chamadas e fotos de capa da
revista TPM (Trip Para Mulher) da edição de maio de 2012, para identificar simbolicamente
qual e como é a mulher de TPM. Para isso, buscou-se compreender o interdiscurso presente
no espaço e no campo discursivo feminino deste periódico, que tem em sua linha editorial o
objetivo de representar a mulher de forma diferente das revistas femininas convencionais. A
identidade, o gênero, a imprensa feminina e a análise do discurso francesa são os alicerces
teóricos dessa pesquisa.
1. INTRODUÇÃO
Ao longo dos séculos, muita coisa mudou na vida das mulheres. Hoje a mulher
participa ativamente da vida social, política e econômica do país. Mas para a pesquisadora
francesa Michellet Perrot (2007), mesmo diante das transformações e conquistas que a mulher
contemporânea alcançou (e ainda alcança), ainda temos o ―modelo triunfante‖ de mulher, ou
seja, aquela que lava, passa, cozinha, que é excelente esposa, mãe, cuida bem da casa, dos
filhos etc. E com a contemporaneidade, a mulher, ainda com suas atividades profissionais, não
deixou de desempenhar o seu papel de mulher na esfera privada.
A mídia contribui para que certos valores e costumes sejam transmitidos e
absorvidos pela sociedade. De acordo com Wolf (2002), quanto mais dura e complicada é a
vida moderna, mais as pessoas se sentem tentadas a agarrar-se a clichês que parecem conferir
uma ordem àquilo com que, de outra forma, seria incompreensível. Ainda segundo Wolf
(2002), a cultura de massa forma um sistema de cultura, constituindo-se como um conjunto de
1
Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social: habilitação em Jornalismo da Universidade Federal
de Uberlândia, no ano de 2013, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Marques Araújo.
2
Graduada em Letras (2003-2007) e em Comunicação Social: habilitação em Jornalismo (2009-2013) pela
Universidade Federal de Uberlândia-UFU. E-mail: suzanaarantes27@gmail.com
279
símbolos, mitos e imagens que dizem respeito, quer à vida prática, quer ao imaginário
coletivo.
Esta pesquisa investiga a revista TPM (Trip Para Mulher), da TRIP Editora, para
verificar como a mulher é representada por essa publicação nas chamadas e fotos de capa da
edição de maio de 2012. A linha editorial dessa revista tem como propósito representar a
mulher de forma diferente das revistas femininas convencionais, para não ficar restrita ao que
Buitoni (1990) identificou como trio de sustentação das publicações para mulheres – moda,
casa e coração. Assim, para compreender a construção da identidade social da mulher e
discutir a sua representação midiática, será observado quais são as características da imagem
da mulher contemporânea construída pela publicação.
2 MÉTODO
A análise do discurso será feita sobre a edição do mês de maio de 2012 da revista
TPM. Tal época foi escolhida para a demarcação dessa pesquisa por se tratar de um período
conhecido como o ―mês das noivas‖, em que acontecem muitas cerimônias de casamento, e
por ser o mês das mães.
A TPM é uma publicação criada no ano de 2001 pela TRIP Editora para ser uma
revista diferente das revistas convencionais; para representar a mulher de forma diferente.
Mas qual é essa mulher? Para fazer essa análise foram formadas matrizes constituídas
referentes à terceira fase da Análise do Discurso (AD3), que correspondem aos seguintes
campos: representação da mulher, campo, espaço e posicionamento discursivo, interdiscurso,
heterogeneidade, deslocamento e apagamento e dialogismo. partir dos estudos de Pêucheux,
segundo Fernandes (2005), a AD tem três fases. A AD1, a AD2 e AD3. E é a terceira fase da
Análise do Discurso, a AD3, que este estudo foi alicerçado.
Para Fernandes (2005), o fato discursivo implica uma exterioridade à linguagem,
devendo ser apreendido no social, colocando em evidência aspectos ideológicos 3 e históricos
próprios à existência dos discursos nos diferentes contextos sociais. O autor refere-se a
aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas.
3
Ideologia é sinônimo ao termo ideário, contendo o sentido neutro de conjunto de ideias, de pensamentos,
de doutrinas ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e,
principalmente, políticas. Segundo Mikhail Bakthin, no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, de 1979, tudo
que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é
ideológico é um signo, e sem este não há ideologia.
280
A AD3 é o momento em que opera-se a desconstrução da noção de ―maquinaria
discursiva fechada‖. Aqui, há o ―reconhecimento da não neutralidade da sintaxe; a noção de
enunciação passa a ser abordada e as reflexões sobre a heterogeneidade enunciativa levam à
discussão sobre o discurso outro‖. (FERNANDES, 2005, p. 83 apud PÊCHEUX, 1990b, p.
315). Assim, o terceiro momento da AD é o que nos interessa, isto é, este momento da AD é
onde esta pesquisa está alicerçada. Para isso, tratar de formações discursivas faz-se
necessário, pois, de acordo com o autor, a identidade do discurso se constrói na relação com o
outro, esteja esse outro marcado ou não linguisticamente.
Teóricos da contemporaneidade, tais como Guiddens (2002), Hall (2004) e Kellner
(2001) comprovam que as identidades são construídas nas e pelas múltiplas relações que
indivíduos e grupos estabelecem com diversos contextos sociais e culturais que, nos tempos
de hoje, envolvem também os produtos culturais que circulam na mídia, na qual o sujeito se
inspira para construir sua narrativa biográfica, sendo que mídia e sociedade se refazem
constantemente, uma transformando a outra e vice-versa.
Na modernidade, segundo Kellner (2001), há uma estrutura de interação com papeis,
normas, costumes e expectativas socialmente definidos e disponíveis; e que ―precisamos
escolhê-los e reproduzi-los para obtermos identidade num processo complexo de
reconhecimento mútuo‖ (KELLNER, 2001, p. 296).
Para Guiddens (2002), as instituições modernas diferem de todas as formas
anteriores de ordem social quanto a seu dinamismo, ao grau em que interferem com hábitos e
costumes tradicionais e a seu impacto global.
282
Para Thompson (2011), o desenvolvimento de uma variedade de instituições de
comunicação a partir do século XV até os nossos dias, os processos de produção,
armazenamento e circulação têm passado por significativas transformações, explicando que:
estes processos foram alcançados por uma série desenvolvimentos, as formas
simbólicas foram produzidas e reproduzidas em escalas sempre em
expansão; tornaram-se mercadorias que podem ser compradas e vendidas no
mercado; ficaram acessíveis aos indivíduos largamente dispersos no tempo e
no espaço. De uma forma profunda e irreversível, o desenvolvimento da
mídia transformou a natureza da produção e do intercâmbio simbólicos no
mundo moderno. (THOMPSON, 2011, p. 35)
3 DESENVOLVIMENTO
Na etapa inicial foi realizar uma revisão bibliográfica acerca do assunto, bem como
um levantamento dos principais teóricos que abordam os seguintes temas: identidade, gênero,
283
a mídia revista e análise do discurso; para maior reflexão e embasamento teórico da referida
pesquisa.
A pesquisa se configura na segunda etapa do trabalho, em que será feita a análise de
discurso das chamadas e foto de capa da edição de maio de 2012 sob a forma de matrizes,
para percebermos como e de que forma a mulher é representada nas capa da revista TPM. O
terceiro momento da AD é o que nos interessa, isto é, a vertente francesa é onde as matrizes
discursivas estão alicerçadas.
Na matriz desenvolvida a seguir, com as análises dos elementos discursivos
elucidados, observaremos algumas questões que envolvem a representação da mulher na
sociedade e na mídia, principalmente na revista TPM. Dessa forma, temos a Matriz Discursiva
Referencial (1), A chamada selecionada para a análise está envolvidas por um quadro
retangular na cor azul.
284
Matriz Discursiva Referencial (1)
Corpus de Análise: Revista TPM
Ocorrência no Corpus: Capa Maio/2012
285
Deslocamento e Ser mãe, bonita, com sucesso na profissão e boa esposa. A mulher só tem
Apagamento uma escolha: ser mãe.
Foto de capa – A foto de capa dessa edição, como sendo do mês de Maio,
representa o que uma mulher deve ser (mãe e esposa) e como ela deve se
comportar (religiosa, bem comportada), reforçando o padrão de mulher
criado e construído ao longo do tempo. Isso contradiz totalmente com a
linha editorial da revista, porque a TPM tem como foco representar a mulher
de forma diferente das outras mídias impressas voltadas para a mulher.
Dessa forma, pode-se constatar que tanto as mulheres quanto as mídias
que se propõem a ser diferentes, ainda continuam alicerçadas, seguem o
“modelo triunfante de mulher” e o modelo triunfante de atributos
286
considerados inerentes, naturais ao sexo feminino. Dessa forma, texto e
imagem representam harmonicamente a mulher no seu papel mais
tradicional.
287
como uma cor que emagrece, considerada ―chic‖, clássica, elegante; atribuições estas –
emagrecer, ―chic‖, elgância – que estão ligadas à mulher, à beleza.
Outra regularidade encontrada é o fato de sua roupa – camisa aberta e biquíni –
deixar exposta determinadas partes do corpo, como coxas e pernas, o que maximiza, de certa
forma, a imagem da sensualidade. Assim, a emancipação feminina é evocada pela TPM, mas
na verdade trata-se de um processo que continua coisificando a mulher. Segundo Buitoni
(2009), podemos observar alguma evolução no processo metafórico em relação à forma da
expressão, mas a forma do conteúdo permanece a mesma, ou seja, a mulher de TPM está,
metaforicamente e metonimicamente, ligada aos seus papeis sociais básicos que ainda
persistem, tanto no imaginário social quanto no imaginário editorial da TPM.
A mulher de TPM se insere no que Buitoni (2009) postulou como um ―novo‖ que é,
na verdade, ―um simulacro da mudança‖. E em termos sociais, ainda segundo a autora, esse
―novo‖ só serve à manutenção dos sistemas vigentes. Para ela, o significado profundo desse
―novo‖ é conservador e apenas ajuda a manutenção do status quo; oculta a permanência.
As regularidades discursivas presentes nas chamadas e fotos de capa nos fornecem
resquícios implícitos e explícitos que muitas simbologias, mitos e representações sociais
criadas e construídas ao longo do tempo ainda têm grande força no imaginário social. ―Ainda
persiste o mito da feminilidade que vincula a ideia de mulher à da negação de mudança‖.
(MATTERLT, 1997, p. 34 apud BUITONI, 2009, p. 198)
Na TPM, a mulher é estimulada a ser independente (financeiramente, culturalmente,
esteticamente), mas continua a depender do olhar masculino. Para Buitoni (2009), algumas
normas com relação à moda e à beleza afrouxaram, em nome da liberdade e da diversidade,
mas principalmente porque favorecem o aumento do consumo.
A sigla TPM, Trip Para Mulher, refere-se também à tensão pré-menstrual, indicando
o tipo de público que a revista pretende atingir: mulheres ousadas, fortes, que se permitem ter
variações de humor – como acontece com a maioria das mulheres durante o período pré-
menstrual, que não se encaixam nos estereótipos femininos tradicionais, nem naqueles que as
outras revistas femininas propõem. Porém, as regularidades discursivas presentes em suas
chamadas e foto de capa possuem formações discursivas que refletem o ―modelo triunfante de
mulher‖, o que colabora para mitificação e a mistificação do ser feminino, ajudando a manter
padrões e representações da mulher (mãe, esposa, casamento, doce, bela e burra, frágil etc.).
288
Da mesma forma, o nome TPM é uma maneira de aprisionar a mulher a antiquíssimas
representações do feminino.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A TPM sempre que possível, procura deixar claro seu objetivo de não ser um manual
de auto-ajuda. A TPM apresenta matérias inteligentes e aprofundadas, ao lado das seções de
roteiro cultural e comentários humorísticos e propõe outras visões de consumo, embora dentro
de uma economia capitalista.
Para Buitoni (2009), a revista TPM é uma nova tendência no segmento feminino.
Para ela, é nesta revista que se encontra a preocupação da construção de uma visão crítica e da
politização feminina. A independência feminina só é possível ser encontrada nesta publicação.
A revista defende a ideia do bem-estar feminino acima de tudo. Sendo assim, a TPM
apresenta uma tendência que contradiz as críticas elencadas por Buitoni (1990) a respeito da
imprensa feminina. Agora, com esse aspecto crítico e sem estimular a dependência feminina
em relação ao homem, a TPM busca a construção de uma consciência crítica da leitora, sem
caráter alienador.
Muitos padrões de beleza feminina são quebrados nessa publicação. Mas a mulher de
TPM que estampa as chamadas e fotos de capa, realmente é livre de tudo o que foi imposto,
construído para ela? Essa mulher se sente livre e age livremente sem as imposições da
sociedade? Essa mulher se vê e se sente fora do padrão legitimado para ela? Não casar, não
depender de marido, não ter filho, não saber ou não gostar de cozinhar, passar roupa etc., traz
infelicidade para a mulher e é a antítese da feminilidade? Ser independente das normas e
legitimações impostas a elas é errado?
O caráter alienador das publicações femininas convencionais apenas é contado e
transposto de outra maneira pela revista TPM. Através das regularidades discursivas
observadas, a revista ainda reflete o ―modelo triunfante‖ de mulher, reproduzindo também o
mesmo triunfalismo das revistas femininas tradicionais. Os elementos principais do universo
feminino – moda, beleza, comportamento – ainda moldam o tripé de conteúdo da TPM.
Apesar de observarmos na contemporaneidade os casamentos por amor (e não mais aqueles
―arranjados‖ ou ―sem amor‖) e as mulheres fora do seu espaço privado (o lar, o ambiente
doméstico), ainda persiste a exigência do ―modelo triunfante‖ nessa mulher. Ela tem que ser
289
companheira, ter dupla jornada de trabalho (no espaço público e no espaço privado), estar
sempre sorridente, feliz, ser boa mãe e esposa, profissional exemplar, manter e cuidar da sua
beleza. A existência naturalmente aceita e rotinizada na sociedade com relação ao papel e a
representação da mulher parece não permitir uma ameaça mais aguda.
Alguns modelos acabam por tornar ―naturais‖ certas posições que são construídas
socialmente. E apesar dos avanços, a desigualdade ainda existe e há muitos obstáculos nos
caminhos da cidadania feminina. Mesmo depois de muitas lutas vencidas contra a dominação
masculina, a representação estereotipada das mulheres nas revistas parece não haver fim,
afirma Coutinho (2009). E isso fica visível nas regularidades discursivas das chamadas e foto
de capas registradas na revista TPM, que indicam caminhos para sua leitora ser uma mulher
independente, aventureira, descolada, diferente do ―modelo triunfante‖ de mulher.
Para Buitoni (2009), a imagem apresentada pela imprensa feminina inclui poucos
elementos de inovação; é uma tradição camuflada de nova. A transformação ocorrida com a
imagem da mulher nas revistas femininas é quase nula quando analisada em seus significados
mais profundos, pois não ultrapassa os limites de adaptação às normas vigentes. Isso é
observado na capa e chamadas de capa da revista TPM, que têm em sua linha editorial o
objetivo de representar a mulher diferentemente das revistas femininas tradicionais, mas não
consegue se desvencilhar desses padrões, recriando diferenças entre o discurso e a realidade
concreta.
A TPM representa uma nova mulher em suas chamadas e foto de capa. Uma mulher
ora contemporânea, ora triunfante, mas o seu discurso continua reproduzindo o mesmo
modelo de mulher construído à base de estereótipos e padrões criados para a mulher.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Imprensa feminina. 2 ed. São Paulo: Ática, 1990.
290
_________. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira.
São Paulo: Summus, 2009.
DEL PRIORE, Mary. (Org.) História das mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto,
1997.
MORIN, Edgar. As idéias, seu habitat, sua vida, seus costumes, sua organização. vol. 4.
Rio Grande do Sul: Sulina, 1997.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Côrrea. São
Paulo: Contexto, 2007.
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 12. ed.
Tradução de Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
291
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Mass Media: contextos e paradigmas, novas
tendências, efeitos a longo prazo, o newsmaking. 7ª ed. Lisboa: Presença, 2002.
292
AS COLUNAS “EVANGELHO DAS MÃES” E “FALANDO ÀS MÃES” E A
CONSTRUÇÃO DO PAPEL MATERNO COMO AGENTE DA SEGURANÇA
ALIMENTAR DOS FILHOS, BRASIL – (1950 -1960)
COLUMNS " GOSPEL OF MOTHERS " E " TALKING TO MOTHERS ' AND THE
ROLE OF CONSTRUCTION MOTHER AS AGENT OF FOOD SAFETY OF
CHILDREN
BRAZIL - (1950 -1960)
RESUMO
Os ―Anos Dourados‖ apresentava a mulher em diversos papéis: a ―moça de família‖, que era
aquela que desejava e fazia por merecer um casamento feliz e indissolúvel, a ―rainha do lar‖,
aquela que se realizava nos cuidados com a casa, o marido e os filhos, a ―boa esposa‖
amorosa, bonita e dedicada, e por fim a ―boa mãe‖, o papel que toda mulher deveria desejar.
A partir do papel de ―boa mãe‖, levando em consideração seus cuidados com o filho, em
especial com sua alimentação, surgem os seguintes questionamentos: quais as características
que identificavam a ―boa mãe‖ em relação à alimentação de seus filhos enquanto crianças?
Qual a importância dos cuidados maternos na garantia da segurança alimentar dos filhos? A
partir desses questionamentos, a pesquisa tem por objetivos: apresentar as principais e
essenciais características da ―boa mãe‖, relatar os cuidados maternos que garantiam a
segurança alimentar dos filhos e enfatizar como o papel materno tornou-se principal agente da
segurança alimentar dos filhos no período. Para responder aos questionamentos e atingir tais
objetivos, utilizou-se analisar as páginas da revista feminina Jornal das Moças, edições entre
os anos de 1950 a 1960, em especial dedicando a análise a duas colunas, sendo elas
―Evangelho das Mães‖ e ―Falando as Mães‖. Foi necessário fichamento de todas as edições da
revista entre os anos citados acima, e posterior análise do conteúdo presente nas colunas,
utilizando como base teórica os trabalhos de pesquisa de Carla Bassanezi Pinsky e Mary del
Priore, entre outros autores presentes na pesquisa. Após a análise do conteúdo presentes nas
revistas, foi possível perceber que os cuidados maternos no período estavam intimamente
relacionados ao conceito de segurança alimentar, que no período ainda estava em construção,
1
Mestranda em Direitos Humanos e Polícas Públicas na Pontifícia Universidade Católica do Paraná
2
Atualmente é professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, onde também é
Coordenadora do Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Tem experiência na área de
História, com ênfase em História Moderna, atuando principalmente nos seguintes temas: história da alimentação,
etiqueta, diferenciação social, boas maneiras à mesa, comportamento adequado e boas maneiras; alimentos,
símbolos, civilização e direitos humanos e patrimônio alimentar. Atualmente também é coordenadora do curso
de Especialização: História Social da Arte da PUCPR. Também atualmente é coordenadora de PIBID -
subprojeto em História na PUCPR.
293
e dessa forma o papel materno acabou por se tornar no período, o agente que garantia tal
condição ao filho.
ABSTRACT
The "Golden Years" showed the woman in several roles: the "family girl" was that girl who
wanted and did to deserve a happy and indissoluble marriage, the "queen of the home" was
the one who performed the care home, husband and children, the "good wife" amorous,
beautiful and dedicated, and finally the "good mother" that was the role that every woman
should want. From the role of "good mother", taking into consideration their care with the
son, especially with their food, the following questions appear: what characteristics identified
the "good mother" in relation the feeding of their children as children? What is the importance
of maternal care in ensuring food safety of children? From these questions the research aims
to: show the main and essential characteristics of "good mother", report the maternal care that
ensured food security for children and emphasize how the maternal role has become the main
agent of food safety of the children in the period. To answer the questions and achieve these
objectives, was analyzed the pages of women's magazine of the ―Jornal das Moças‖ editions
of the 1950s and 1960s, in especially dedicated to analysis the two columns, which were
"Evangelho das Mães" and "Falando às Mães". It was necessary to book report of all editions
of the magazine between the mentioned years, and further analysis of this content in columns,
using as a theoretical base the research work of Carla Bassanezi Pinsky and Mari del Priore,
among other authors present at the research. After analyzing the content present in the
magazines, it was revealed that maternal care were intimately related to the concept of food
security, which in the period was still under construction, and in that way the maternal role
turned out to be in the period the agent that guarantee such condition to the child.
INTRODUÇÃO
Há alguns anos atrás a realidade feminina era bem diferente daquela que conhecemos
hoje. À mulher cabia a responsabilidade de administrar o lar, esperando-se que fosse uma boa
esposa e mãe. Essa atribuição dada às mulheres, fora bastante explorada e dissuadida, durante
o período conhecido no Brasil como ―Anos Dourados‖. Este está localizado entre os anos de
1945 à 1964, e é caracterizado principalmente pelo sentimento de otimismo pós-guerra, que
trazia consigo a esperança em um futuro próspero e moderno, traduzido especialmente no
american way of life. A família conjugal é o modelo dominante na época, e as leis da época
294
enfatizavam o papel feminino dentro do lar, como também a autoriade máxima do ―chefe de
família‖.
Como importante conselheira de esposas e mães inexperientes a imprensa feminina
ganha destaque. As revistas femininas traziam em seu conteúdo: dicas, orientações e
conselhos quanto ao que se refere à manutenção e cuidado com o lar e a família.
Quando o tema recai sobre a saúde e a nutrição da família, são as mulheres que
costumam ser as responsáveis pelo bem estar de seus demais membros, e entre eles ganham
destaque os filhos. As colunas ―O Evangelho das Mães‖ e ―Falando as Mães‖, que faziam
parte das edições do ―Jornal das Moças‖, tornam-se importante fonte de pesquisa, sendo a
intenção desse trabalho, responder aos seguintes questionamentos: quais características
indentificavam a ―boa mãe‖ em relação à alimentação de seus filhos enquanto crianças? Qual
a importância dos cuidados maternos na garantia da segurança alimentar dos filhos no
período?.
Então a partir da seleção e análise dos conteúdos presentes nas colunas, têm-se como
objetivos: apresentar as principais e essenciais características que indentificavam a ―boa
mãe‖, relatar os cuidados maternos que garantiam a segurança alimentar dos filhos enquanto
crianças e enfatizar como o papel materno tornou-se principal agente da segurança alimentar
dos filhos no período. Foi realizado o fichamento das fontes, onde utilizou-se coletar todas as
colunas publicadas nas edições da revista entre os anos de 1950 à 1960, e posteriormente a
análise das mesmas.
O aporte teórico tem como principais autores: Carla Bassanezi Pinsky, historiadora
com doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp, é autora e co-autora de vários trabalhos
relacionados a família brasileira e gênero, especialmente história das mulheres no Brasil, e
utiliza como fontes revistas femininas, incluindo o ―Jornal das Moças.‖ Desenvolveu também
trabalhos sobre como analisar e utilizar fontes históricas. Mary del Priore, historiadora, pós-
doutorada, possui vários livros publicados, e dedicou alguns deles a história da mulher
brasileira, como em ―Histórias e Conversas de Mulher‖, que descreve a história feminina
desde o Brasil Colônia até o século XXI.
295
UM NOVO PARÂMETRO DE FAMÍLIA – OS ANOS DOURADOS E O “LAR DOCE
LAR”
Para o período conhecido como ―Anos Dourados‖, considera-se seu início em 1945,
onde o Brasil ao escolher o lado vencedor na Segunda Guerra Mundial, passava por um
período de extremo otimismo e esperança de um futuro próspero e moderno, e seu término,
por assim dizer, em 1964, ano em que ocorre no Brasil o Golpe Militar.
296
O otimismo dos pós-guerra, as esperanças no futuro próximo e a sensação de
que o país alcançaria de vez a modernidade ainda hoje dão saudades a muita
gente. A nostalgia de uma época que teria sido ―dourada‖ também se
alimenta de lembranças (ou construções da memória) de romantismos
perdidos, de relacionamentos estáveis e de papéis sociais definidos e
seguros. (PINSKY, 2014, p.15)
298
A CONSTRUÇÃO DA ―BOA MÃE‖
A felicidade conjugal parecia depender cada vez mais das atividades e cuidados da
mulher dentro do lar. Uma esposa que não soubesse cuidar corretamente da administração do
lar, como também da imagem do marido e dos filhos, corria o sério risco de não ter um
casamento feliz.
Assim como as esposas-modelos, muito enaltecido era também o papel de uma ―boa
mãe‖. As revistas femininas reservavam um espaço especial em suas edições para aconselhar
as mães quanto aos cuidados com os filhos.
―Casamento leva a filhos, necessariamente. Esta verdade incontestável até meados dos
anos 1960 criava grande expectativa pelo nascimento de uma criança tão logo um jovem casal
se unia em matrimônio‖ (PINSKY, 2012, p. 491). Essa grande importância dada a
reprodução, não era por acaso. A chegada de um filho, era o que confirmava socialmente o
sucesso do casamento, como também garantia o êxito da mulher em ter cumprido seu ―destino
natural‖. Para a ordem social, o nascimento de um ou vários filhos, dentro do casamento,
significava mão de obra futuramente reposta, soldados para compor os exércitos, e a base que
iria garantir o movimento da economia.
Na segunda metade do século XIX, a maternidade era ―coisa natural‖, e ao final desse
mesmo século, passou a ser tratada como uma questão de ordem pública. Inicia-se um
processo para a implantação de medidas de proteção à gestação e ao parto, como também para
299
a diminuição da mortalidade infantil. Na busca por tal proteção das mães e seus filhos, inicia-
se uma revolução sanitarista no país.
300
Moças letradas e cultas podem ser donas de casa mais eficientes,
companheiras valorizadas em um trunfo para suas famílias, desde que não
queiram competir com os homens ou trocar de posição com eles. Mães com
alguma instrução podem cuidar melhor dos filhos. Solteiras qualificadas
podem ser professoras, secretárias, balconistas, ganhando honestamente seu
sustento ou contribuindo com o orçamento familiar. (PINSKY, 2012, p. 474)
Nos anos de 1950, estavam em pleno vapor, as mudanças no tratamento das crianças.
Essas mudanças eram respaldadas pelo constante discurso de pediatras, higienistas, e
psicólogos, personagens esses que tornavam-se cada vez mais influentes nas definições da
―boa mãe‖. Era dever da ―boa mãe‖ manter-se sempre informada, e alguns médicos da época,
passam a considerar a maternidade como uma ciência, que deveria obrigatoriamente ser
aprendida e compreendida por todas as mães. Priore, cita em seu livro: Histórias e conversas
de Mulher (2013), p. 134, a fala do médico higienista da época, doutor Fontenelle, onde
segundo ele ―Já está absolutamente provado que a mais importante causa da mortalidade
infantil é a ignorância das mães‖.
O sentimento de amor materno sempre houve. Mas a queda da mortalidade
infantil nos finais do século XIX, graças ao progresso da higiene e da saúde
pública, mudou a relação de mães e filhos, tanto no que diz respeito aos
cuidados com a alimentação quanto as manifestações de afeto.(PRIORE,
2013, p.129).
A puericultura passa a ser moda, assim como, o ensino da higiene também. Pediatras e
higienistas passam a publicar livros e escrever para colunas de revistas femininas, que tinham
como temas: ―conselhos‖ e ―ensinamentos‖ sobre medicina doméstica e doenças infantis,
desmame e alimentos adequados.‖ (PRIORE, 2013, p. 134).
Torna-se comum anúncios em revistas femininas de alimentos destinados ao público
infantil,entre eles: a farinha láctea Nestlé e os mingaus Otker, e vários outros produtos. A
alimentação da do bebê e da criança, deve ser constantemente vigiada e monitorada pela mãe.
301
A mãe deve assegurar uma correta alimentação afim de garantir a saúde e o crescimento
saudável de seus filhos:
A autoridade dos médicos, com o passar do tempo vai sendo cada vez mais
consolidada, quando se refere a definir os cuidados de uma ―boa mãe‖ para com seus filhos.
Ser uma ―boa mãe‖ passa a significar, seguir rigorosamente as orientações de médicos das
mais variadas especialidades, inclusive quando se tratava da educação dos filhos
―especialistas se interpunham cada vez mais na relação entre mãe e filho. Deixar chorar ou
consolar? Dar uns tapas no traseiro ou passar a mão na cabeça?‖ (PINSKY, 2012, p. 494).
Deveriam também as ―boas mães‖ ignorar os ―conselhos das parteiras, das parentas ou
das vizinhas para prestar atenção ao que dizem os médicos e os jornais e revistas que
reproduzem suas opiniões‖. (PINSKY, 2012, p. 494).
As revistas femininas destacavam-se por conter em seus conteúdos os mais variados
assuntos do interesse feminino da época. Esses interesses apesar de se apresentarem variados,
tinham um tema principal que deveria ser considerado na vida da mulher: o casamento e a
maternidade.
(FONTE: Jornal das Moças, ed. 2333, 1955) (FONTE: Jornal das Moças, ed. 1864, 1951)
303
Cada nova coluna publicada, trazia preciosos conselhos de pediatras e outros
especialistas, que encontravam-se a disposição e ao alcance da ―boa mãe‖ que pretendia
manter-se informada e atualizada. Focando nos assuntos ligados aos cuidados da mãe com a
alimentação de seus filhos, os conselhos, encontrados nas colunas citadas, são muitos.
Nas primeiras edições do ano de 1950, ganha destaque na revista, como conselheira
das mães, a coluna ―Evangelho das Mães‖. Essa coluna apresentava em seu conteúdo os mais
variados conselhos sobre o cuidados com os filhos, desde a gestação, e sobre os mais variados
aspectos como alimentação correta, visitas ao médico e dentista, doenças, higiene, educação
entre outros. Porém é possível perceber que nessa coluna, os conselhos muitas vezes não era
assinado por um especialista.
No ano de 1951, na edição 1872, na página 82, é inaugurada a coluna ―Falando as
Mães‖. O Jornal da Moças, apresenta o seguinte texto, onde relata qual o objetivo da inclusão
da coluna na revista:
Essa coluna ficava por responsabilidade de Dr. Werther Leite Ribeiro, pediatra
conceituado da época, que colocava-se a disposição das mães, que desejassem sugerir
quaisquer assuntos sobre o cuidado com os filhos, para serem publicados, e que poderiam
fazê-lo através de cartas, ou ainda, era disponibilizado uma número para contato telefônico.
304
FIGURA 03 – FALANDO ÀS MÃES
306
Mesmo no período de amamentação, segundo os conselhos encontrados nas colunas, à
mãe deveria iniciar na alimentação da criança, a introdução de outros alimentos. Em o
―Evangelho das Mães‖ edição 2060, do ano de 1954, p.15, é sugerido o seguinte:
Deve ser evitada, a todo custo, a fadiga física, sobretudo nas primeiras
semanas. As saídas diárias e o exercício moderado das mães são favoráveis
ao aleitamento, podendo submeter-se, desde o momento do parto, a um
plano metódico de exercícios, ensinados pelo médico. [...] Deve ter a mulher
grande cuidado com seu asseio pessoal, tomando banho diário com água
morna e sabão. [...] As festas noturnas que obrigam a tresnoitar são
prejudiciais à secreção láctea. A mulher que amamenta deve repousar, no
mínimo, 10 horas diárias. As emoções fortes e os aborrecimentos sempre
repercutem prejudicialmente sôbre a secreção láctea.
Depois de introduzir aos poucos outros alimentos à dieta da criança, a mãe deveria
iniciar o processo de desmame. Processo esse que não se apresentava na revista como sendo
fácil, porém seguindo algumas recomendações tornava-se mais simples. O desmame referia-
se à amamentação no seio, para introduzir a mamadeira. Utilizando-se mais uma vez de
história em quadrinhos, a coluna ―Falando às Mães‖, apresente referência ao tema, na edição
1959 de 1953, p. 10:
307
FIGURA 07 – DESMAMANDO O ZÉZINHO
Frente ao alimento oferecido, a criança, qualquer que seja a sua idade, come
isso ou ao come nada; é essa uma conduta educativa, de modo que a
privação do alimento não deve ser acompanhada de reprimendas, nem, muito
menos de castigos.
Nesse pequeno trecho, já percebe-se que a mãe poderia encontrar alguns obstáculos,
na sua missão de administrar a alimentação do filho. A criança passaria a comer como um
adulto aos 2 anos de idade, porém a mãe deveria atentar-se a algumas condições, segundo
escreve Dr. Wherter em ―Falando às Mães‖, na edição 1891 de 1951, p. 16:
309
esqueçamos de que eles não têm culpa disso e de que não o fazendo assim,
muito concorremos para seu mal. E, se assim deve ser em qualquer
momento, muito mais devemos esforçar-nos na hora destinada a suas
refeições; levemo-las à mesa sempre com um sorriso nos lábios e mesmo
com certo entusiasmo e encantamento, pois dest‘art muito concorremos para
que nas mesmas se realize o grande fenômeno natural da vida: o apetite.
Percebe-se por esse trecho que a atitude da mãe irá refletir no filho, e portanto a ―boa
mãe‖ deve estar atenta também aos seus costumes alimentares e sua postura diante da mesa.
Dr. Wherter, na coluna ―Falando às Mães‖, edição 1880 de 1951, p.18, oferece 5 conselhos
para combater à inapetência na criança, sendo os principais:
[...] 4º) não comer fora do horário traçado pelo médico: nos intervalos das
refeições, não dar absolutamente coisa alguma, inclusive pão, biscoito,
gulodices, e não ser suco de frutas. 5º) método de vida para a criança: hora
de comer com seus horários rigorosos, hora de brincar, hora de dormir, e
evacuar, de tomar banho, etc, sempre religiosamente seguido, só sendo
admitido um motivo para sua quebra: quando a criança estiver doente.
310
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O papel de ―boa mãe‖ desempenhado pela mulher durante os ―Anos Dourados‖, foi o
núcleo dessa pesquisa. Segundo o conteúdo presente nas colunas ―Evangelho das Mães‖ e
―Falando às Mães‖, nem toda mulher poderia ser considerada uma ―boa mãe, para esse título
existiam pré requisitos bem definidos. Esses requisitos podiam ser encontrados no Jornal das
Moças, e toda mulher que almejasse ser intitulada uma ―boa mãe‖ deveria preocupar-se em
segui-los. Os pré-requisitos, referiam-se aos cuidados que toda ―boa mãe‖ deveria ter para
com os filhos, cuidados que deveriam ser tomados desde a gestação, e entre esses cuidados os
principais destinavam-se a manutenção e garantia da saúde da criança, além do seu perfeito
desenvolvimento. Intimamente ligada a esse objetivo estava o cuidado da mãe com a
alimentação, tanto a própria, quanto do filho.
Tendo consciência de que o conceito de segurança alimentar estava ainda em
construção no período analisado, foi necessário encontrar no conteúdo das colunas, os
aspectos essenciais para a garantia da segurança alimentar de um indíviduo, neste caso o filho,
e que deveriam ser garantidos por um agente, ou seja, nesse contexto, a mãe. Sendo os três
aspectos essenciais para a garantia da segurança alimentar: qualidade, quantidade e
regularidade, não foi tão complicado relacionar tal termo, com os cuidados exercidos pela
mãe, quanto a alimentação do filho.
A mãe sendo responsável por: armazenar de forma correta os alimentos, reconhecer
riscos de contaminação, saber prazos para o início da fase de apodrecimento do alimento, e
ainda, permitir ao filho a oportunidade de consumir o alimento de forma digna segundo as
normas tradicionais de higiene (utensílios e ambientes limpos), garantia um dos primeiros
aspectos para a Segurança Alimentar do filho: a qualidade. Encontramos nas colunas,
conselhos sobre a higienização da mamadeira e outros utensílios que viessem a ser utilizados,
sobre como analisar a qualidade do leite e outros alimentos, sendo ressaltado em muitos
momentos que todo alimento destinado à criança deveria estar fresco e em boas condições de
aramazenamento. Muitas doenças consideradas infantis, apresentadas nas colunas pelo Dr.
Wherter, podiam ser prevenidas apenas com cuidados de higiene, exemplo disso eram as
desinterias. Segundo Dr. Wherter, a criança deveria ingerir leite e água sempre fervidos, e no
caso de frutas e hortaliças essas deveriam ser sempre muito bem lavadas e higienizadas, assim
como outros alimentos sempre bem cozidos, pois isso evitava que a criança viesse a adoecer.
311
Os outros dois aspectos, quantidade e regularidade, são encontrados em muitos dos
textos das colunas. Sobre a quantidade, que deve suprir a necessidade básica de um indivíduo,
a coluna oferecia matérias sobre a alimentação da criança em cada idade, e estas eram
acompanhadas de tabelas, onde estavam relacionados todos os alimentos permitidos para a
idade da criança, a quantidade necessária de cada alimento, e os intervalos de cada refeição.
Quanto são apresentados os horários, percebe-se a presença do aspecto denominado
regularidade, uma criança que tivesse os horários de cada refeição demasiadamente
espaçados, provavelmente não teria um desenvolvimento pleno para sua idade. As
quantidades eram expressas em gramas ou militros, mostrando o cuidado que a mãe deveria
ter para se aproximar ao máximo possível do indicado nas tabelas. Os horários criavam uma
rotina, que não deveria ser alterada.
As colunas deixam claro que um filho doente, ou que facilmente adoece, é reflexo de
uma mãe relapsa e desleixada, que mostra-se o inverso da ―boa mãe‖ que tem um filho sadio,
e não permite com seus cuidados que o mesmo adoeça. Ao classificar dessa forma o papel
materno, a revista responsável pelas colunas, ignora qualquer diferença social que possa
haver, entre uma mãe de classe média e outra de classe social inferior. O título de ―boa mãe‖,
tão exaltado no período e nas páginas do Jornal das Moças, já tem destino certo, e os pré-
requisitos nem sempre são somente seus cuidados com o filho.
Dessa forma, mesmo sendo um conceito atual e em formação no período, pode-se de
certa forma relacionar o papel materno ao conceito de Segurança Alimentar, não somente em
relação aos filhos, mas também em relação à família. Através de seus cuidados com a
alimentação do filho, ela tornou-se o agente que possibilitou tal condição ao filho, sendo ela
―boa mãe‖, ou simplesmente mãe.
REFERÊNCIAS
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Privada no Brasil: República da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das
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312
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Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
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BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Imprensa Feminina. São Paulo: Ática, 1986.
PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. São Paulo: Contexto, 2014.
313
CERVEJA NÃO É “COISA” DE HOMEM: O CARÁTER POLÍTICO DA
PARTICIPAÇÃO FEMININA NO ATUAL CENÁRIO CERVEJEIRO
BRASILEIRO
1
Victor de Vargas Giorgi
Resumo
A cerveja é a bebida alcóolica mais popular entre os brasileiros. Presente nos bons e
maus momentos, consumida em múltiplos espaços, a cerveja permanece diretamente
ligada às mais variadas práticas e representações sociais, sendo celebrada, cantada,
contada. No entanto, em um país onde o preconceito de gênero é escancarado, a cerveja
é significada por muitos como uma bebida destinada exclusivamente aos homens, como
diversas propagandas de grandes companhias fazem supor. Diante disso, recentemente
surgiu um movimento cervejeiro brasileiro com expressiva participação feminina que,
dentre outras discussões trazidas à baila, procura combater a ideia machista de que
cerveja ―é coisa de homem‖. Através da perspectiva de que além das distinções de
classe, os costumes à mesa também expressam diferenças e lutas por poder entre
homens e mulheres, analisamos neste trabalho as relações entre tal movimento e o
empoderamento das mulheres no cenário cervejeiro contemporâneo, investigando a
atuação de algumas personagens ligadas à produção e ao consumo de cervejas artesanais
e a ênfase dada por este movimento ao forte envolvimento das mulheres com a bebida
ao longo do processo histórico.
Palavras-chave: cerveja; empoderamento; gênero.
Assim como aponta Vera Lúcia Puga de Sousa (2002), a partir da década de
1980, em meio à ―invasão‖ das mulheres no mercado de trabalho e da atuação de
movimentos sociais pró-mudanças culturais (dentre eles o movimento feminista),
presenciou-se o surgimento da categoria de gênero. Além de evidenciar, por meio de
uma quebra de paradigma, que as noções de ―homem‖ e ―mulher‖ são constructos
culturais, destacando a pluralidade de identidades sexuais, psicológicas e políticas
verificadas na contemporaneidade, tal categoria, de acordo com a estudiosa, tornou-se
objeto de estudos fundamental para a compreensão das relações, comparações e
diferenças verificadas entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e
homens. Ademais, as mulheres, por muito excluídas da história, passaram a figurar
1
Licenciado em História pela Universidade Federal de Viçosa. Especialista em História, Cultura e
Sociedade pelo Centro Universitário Barão de Mauá de Ribeirão Preto. Mestrando em História pela
Universidade Federal de Uberlândia, Linha de Pesquisa História e Cultura. E-mail:
victorvgiorgi@gmail.com.
314
como importantes personagens das narrativas, inicialmente como vítimas do machismo
e do patriarcalismo, e depois como heroínas com amplas possibilidades de atuação,
capazes de oferecer resistências e transgredir o status quo. Em consonância com tais
ideias, Margareth Rago destaca a aproximação feita entre os estudos feministas e de
gênero e a Nova História Cultural, e enfatiza a proposta de tais abordagens:
Após esta breve apresentação, podemos apreender que os estudos de gênero, que
estão em alta na atualidade, são fundamentais para romper estereótipos e preconceitos,
para desvelar dinâmicas sociais de poder e para endossar a luta por um mundo
igualitário. Diante de tais considerações, entraremos em nossa discussão propriamente
dita, enfatizando o caráter político da participação feminina na atual conjuntura
cervejeira nacional, investigando a atuação de algumas personagens ligadas à produção
e ao consumo de cervejas artesanais e a ênfase dada por este movimento ao forte
envolvimento das mulheres com a bebida ao longo do processo histórico.
315
consumidores. Em consonância com o hedonismo observado na contemporaneidade,
tais personagens são apresentadas com vestes sensuais, e não são raras as vezes que a
bebida propriamente dita fica em último plano, dado o caráter apelativo das campanhas
publicitárias. Por mais que algumas marcas estejam tentando mudar a forma como
apresentam a figura feminina em seus comerciais, colocando as mulheres em situações
menos ofensivas, a ligação das bebidas aos padrões de beleza impostos em nossa
sociedade permanece uma evidente estratégia mercadológica. Neste contexto, Letícia
Alves Lins (2004) nos oferece um quadro geral de tais propagandas:
FIGURA 1
316
Campanha publicitária ―Verão‖, recentemente lançada pela cerveja Itaipava. Apelativa e
claramente voltada ao público masculino heterossexual. Fonte: apublica.org
317
outros), as publicitárias Maria Guimarães, Thais Fabris 2 e Larissa Vaz criaram a Cerveja
Feminista. O manifesto divulgado por tais mulheres em um vídeo e aqui transcrito nos
dá mostras de suas principais intenções ao produzir a cerveja:
Mais que reunir mulheres com gostos afins para momentos de lazer e promover
degustações e brassagens (produções artesanais), a Confece, portanto, objetiva destacar
e revalorizar o envolvimento feminino com a cerveja ao longo do processo histórico,
realizando, assim, um trabalho de estudo e de rememoração que possui uma dimensão
política. Elas não estão desacompanhadas. Diversos cervejólogos brasileiros
enfatizaram em suas obras, escritas no atual contexto de efervescência da cerveja
artesanal no país, a importância da mulher na história da bebida.
3
Além da Confece, podemos apontar outras confrarias femininas de cerveja que são bastante populares
no atual movimento cervejeiro nacional, como a FemAle Carioca e a Maltemoiselles.
319
grande prestígio e eram consideradas pessoas com poderes próximos do sagrado. Dentre
os deuses do panteão sumério, é Ninkasi, a deusa da cerveja, que merece nossa maior
atenção. Arqueólogos traduziram um hino à ―dama que enche nossas bocas‖, presente
em um antigo tablete de saibro de quase quatro mil anos, que muitos concebem como a
primeira receita de cerveja da história. O fato de a divindade cervejeira suméria ser
representada por uma mulher é uma evidência do forte vínculo existente entre a bebida e
o gênero feminino. Ademais, Morado ressalta que por centenas de anos coube às
mulheres a tarefa de fazer cerveja na Europa, já que produzir cerveja era uma atividade
caseira, assim como fazer pão e cozinhar. Maurício Beltramelli (2012), por sua vez,
sublinha que ao longo dos anos, a cerveja passou por um processo de ―masculinização‖,
sendo apresentada como uma bebida destinada a ser ingerida aos litros pelos homens até
a embriaguez. Todavia, e em consonância com as ideias precedentes, o autor não só
afirma que foram as mulheres que descobriram a cerveja, como indica que quase a
totalidade das divindades relacionadas à bebida e das mestras-cervejeiras até a
industrialização foram do gênero feminino, e diante disso, ―o que realmente não se
entende é a associação que se faz, nos dias de hoje, da cerveja como sendo uma bebida
essencialmente masculina, especialmente no Brasil‖ (BELTRAMELLI, 2012, p.23).
Já não é novidade por aqui que, nos últimos anos, os negócios ligados à
cervejas estejam vivendo um momento precioso, expandindo-se rapidamente
e ganhando holofotes em muitos e diferentes canais de comercialização e
comunicação. Nesse cenário favorável à cultura das cervejas, as mulheres
320
passam a ter um papel importante na construção desse novo comportamento
de consumo. (...) atualmente também é possível encontrar mais e mais
mulheres atuando profissionalmente na esfera das cervejas. Ainda seguem
sendo minoria, mas há muito tempo derrubaram qualquer sombra de
discriminação e aos poucos desmistificam o estereótipo de ―clube dos
homens‖. Trabalhando na produção ou comunicação das cervejas, são
mulheres movidas por paixão que abrem portas para outras tanta mulheres.
Do campo à mesa, seu poder de compra e de força de trabalho já é, sem
duvida, um dos melhores caminhos de crescimento no mercado cervejeiro
brasileiro. Elas certamente podem revolucionar a imagem da cerveja, apenas
imprimindo uma maneira diferente de ver e beber. Sempre com charme –
claro – nessa escancarada homenagem! (SAORIN, 2012, p.94).
Por fim, outro preconceito extremamente comum é o que atrela as bebidas mais
doces e fracas às mulheres, enquanto que as mais fortes e amargas são masculinizadas.
Um dos membros da confraria feminina Maltemoiselles, Tatiana Damberg, comenta
essa questão, ressaltando que as reuniões são feitas para tomar cerveja e produzi-la, e
que elas não acreditam em distinção de gênero quando o assunto é cerveja, mas em bons
exemplares: ―não produzimos para o paladar feminino, como muitos homens
acreditam‖.
321
Concluindo, procuramos, no presente trabalho, apresentar o caráter político da
participação feminina no atual movimento cervejeiro nacional, um interessante
microcosmo de uma luta mais geral que preconiza a equidade de gênero. As mulheres
inseridas em tal contexto, consumidoras, produtoras, especialistas, entre outras, apesar
de participarem de um universo ainda predominantemente masculino, atuam no sentido
de romper com as representações machistas que giram em torno da cerveja,
demonstrando seu empoderamento na contemporaneidade. A atuação destas
personagens, em última análise, também se dá pelo resgate da participação feminina na
produção de cerveja ao longo da história, ou seja, pela retomada de um lugar que
pertenceu às mulheres por milênios.
Referências
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desmistificar a bebida mais popular do mundo, São Paulo: Leya, 2012.
Fontes
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Digital da Carta Capital 20 fev. 2015. Disponível em:<
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/grupo-de-publicitarias-lanca-cerveja-
feminista-5225.html>. Acesso em 30/07/2015
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https://www.youtube.com/watch?v=9lgkk_5OYUc>. Acesso em 30/07/2015.
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Acesso em 30/07/2015.
322
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homens mais velhos. In: Extra. 29 set. 2012. Disponível em:<
http://extra.globo.com/noticias/economia/mulheres-com-ate-35-anos-consomem-tanta-
cerveja-quanto-homens-mais-velhos-6234317.html> Acesso em 30/07/2015.
MADAME AUBERGINE. Entrevista com Cilene Saorin. S/d. Disponível em: <
http://www.madameaubergine.com.br/gente_cilene.htm>. Acesso em 30/07/2015.
SAORIN, Cilene. Cervejas no salto alto. In: Revista Menu. Número 160, Ano 14, mar.
2012. Editora Três, São Paulo.
323
MEMÓRIAS FEMININAS DA LUTA CONTRA A DITADURA EM “QUE BOM TE
VER VIVA”, DE LÚCIA MURAT
Resumo: O filme Que Bom Te Ver Viva, lançado em 1989, foi o primeiro longa-metragem
produzido por Lúcia Murat. Dedicado a discutir a condição de mulheres sobreviventes das
sevícias da ditadura militar brasileira, o docudrama explora as memórias de suas experiências
por meio de depoimentos intercalados a um monólogo interpretado por uma atriz profissional.
Como essas memórias se manifestam e as possibilidades de elaboração do trauma que
representam são algumas das questões que se pretende analisar neste trabalho, bem como a
carga moral vinculada às experiências narradas e a imbricação entre as memórias pessoais e
as memórias compartilhadas reconstruídas. Desse modo, espera-se entrever o engajamento
subjetivo da cineasta na tematização de uma questão sensível como a tortura e ponderar sobre
a exclusividade de personagens femininas no filme, considerando as práticas sócio-cultuais
presentes na operação que constitui a memória.
Palavras-chave: cinema, memória, subjetividade.
1
Aluno do curso de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail:
viniciuspiassi@yahoo.com.br
2
Depoimento na íntegra de Lúcia Murat para Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. PCB – Partido
Comunista Brasileiro, 3 jun. 2013. Disponível em:
<http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=arti cle&id=6090:depoimento-na-integra-de-
lucia-murat-para-comissao-da-verdade-do-rio-de-janeiro&catid=64:ditadura>. Acesso em: 25 nov. 2014.
3
Revista Época. Entrevista com a cineasta Lúcia Murat. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR69481-5856,00.html>. Acesso em: 9 mai. 2015.
324
prisão, Lúcia entrou para a clandestinidade, quando, dois anos e meio depois foi encontrada
em um apartamento no Rio de Janeiro e levada para o Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna do Rio de Janeiro (DOI-CODI/RJ).
Nas suas palavras: ―A brutalidade do que se passa a partir daí confunde um pouco a minha
memória. Lembro como se fossem flashs, sem continuidade.‖ 4
Segundo sua avaliação, entre a data da prisão e o encaminhamento para a Vila Militar
se passaram quase três meses. Contudo, ao final de agosto do mesmo ano, voltaria ao DOI-
CODI para novos interrogatórios. Posteriormente, foi encaminhada ao Presídio Talavera
Bruce, em Bangu, onde ficou detida na Torre das Donzelas, como era chamado o pavilhão em
6
que ficavam as prisioneiras políticas. Lúcia Murat foi solta depois de três anos e meio de
prisão, em 1974. ―Continuei respondendo a processos em liberdade e [fui] perseguida por
grupos paramilitares durante algum tempo, mas não quis deixar o país. Fui anistiada em
1979‖ 7, ela conta.
Entre 1978 e 1979, Lúcia Murat iniciou sua produção cinematográfica na direção do
documentário de curta-metragem O Pequeno Exército Louco, filmado na Nicarágua durante a
Revolução Sandinista. Posteriormente, dirigiu o episódio Daisy das almas deste mundo, que
4
Depoimento na íntegra de Lúcia Murat para Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Op. cit.
5
Ibid.
6
Torre das Donzelas. Lúcia Murat. Disponível em: <http://www.torredasdonzelas.com.br/?page_id=530>.
Acesso em: 11 mai. 2015.
7
Depoimento na íntegra de Lúcia Murat para Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Op. cit.
325
integra o filme Oswaldianas, de 1992. Lúcia não teve, contudo, uma formação formal em
cinema. ―Eu sou geração dos 60 e minha formação se faz com a nouvelle vague, o cinema
novo e o neo-realismo italiano. Devo a eles minha escola de cinema. Estes os filmes que me
formaram.‖8, ela explica. Sua inserção no meio cinematográfico se daria, desse modo, através
da atividade jornalística desempenhada após sua segunda prisão e pelo contato com amigos
que trabalhavam na área.
De acordo com a cineasta, o interesse que a levou a produzir seu primeiro filme na
Nicarágua se relacionava a uma necessidade de compreender os acontecimentos que cercavam
sua geração na América Latina; processo a partir do qual ela descobriu na produção
cinematográfica um meio de discutir questões que lhe são caras. Assim, em 1988, Lúcia
Murat realiza seu primeiro longa-metragem, Que Bom Te Ver Viva. Lançado no ano seguinte
pela sua produtora, a Taiga Filmes e Vídeo, criada no início dos anos 80, este filme teria
surgido da ideia de lidar com o tema dominante da terapia psicanalítica que fazia desde o
início da década. Este é, portanto, um filme sobre a tortura, ou, mais especificamente, uma
tentativa de elucidar a questão da sobrevivência a essa experiência, na medida em que seus
personagens são, como ela, mulheres sobreviventes dessa prática, que se opuseram ao regime
ditatorial.
8
Revista Época. Op. cit.
326
pelas depoentes e os personagens históricos a que se referem compõe a narrativa visual do
filme, e uma distinção nos suportes em que foram gravados os depoimentos dessas mulheres e
a encenação da atriz demarca uma diferença entre o ficcional e o real.
―A tortura procurava não apenas produzir no corpo da vítima uma dor que a fizesse
entrar em conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que, ao favorecer o
desempenho do sistema repressivo, significasse sua sentença condenatória, ela
visava a imprimir às pessoas a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais.
Com isso, esses indivíduos ficavam marcados por sequelas físicas e psicológicas, e
perdiam, muitas vezes, por determinado tempo, os sentidos e as noções espaciais e
temporais. Em virtude de tais acontecimentos, depois e mesmo durante tal período,
surgem pessoas traumatizadas dispostas a relatar suas experiências, algo que passou
a ser chamado de « testemunho ».‖ (CALEGARI, 2013, s.p.)
328
documentário, em comentários reunidos nos extras da edição do filme em DVD, Lúcia é clara
ao dizer:
É explorada, desse modo, a ideia do não lugar entre a sanidade e a loucura como
condição do sobrevivente da tortura. A esse respeito, o espectador é interpelado pela
personagem de Irene Ravache quando ela se dirige à câmera em momentos de sua
interpretação, indagando-o ou provocando-o, como ao dizer: ―Eu detesto fazer as denúncias,
mas não saberia viver sem fazê-las. Mas isso você não entende, não é?‖ (Figura 1).
Figura 1
Conforme bem observa René Gardies, esse recurso ao fora-de-campo rompe com a
homogeneidade diegética, pois ―o olhar na direcção do espectador instala uma relação forte
entre a pessoa no ecrã e o espectador, com os afectos e as ilusões que o acompanham‖
(GARDIES, 2008, p.33). Na cena mencionada, tal mirada sugere a dificuldade de
compreensão da personagem, e, além disso, a sua necessidade de falar sobre suas
experiências. Desse modo, a análise de Azevedo precisa claramente o papel que a encenação
do monólogo cumpre na narrativa:
O recurso ficcional à personagem Irene, a quem falta um interlocutor ―real‖, permite
a liberdade de falar o que para as entrevistadas esbarra em suas relações sociais: o
que os filhos, maridos, amigos, parentes e até os próprios amigos sobreviventes são
capazes de ouvir, de acordo com padrões de moralidade associadas ao parentesco e
329
ao sexo/gênero e com a delimitação cultural e política do que constituía socialmente
a violência. (AZEVEDO, 2013, p. 15).
A fronteira entre o ficcional e o real no filme, portanto, é mais tênue do que sugere a
distinção entre os suportes técnicos de gravação das entrevistas e da interpretação de Irene
Ravache, pois o monólogo interpretado pela atriz se aproxima dos relatos das mulheres
entrevistadas na medida em que faz referências às experiências de cela da própria cineasta.
Segundo a análise de Azevedo, ―a personagem é capaz de sobrepor os conflito e sentimentos
mais íntimos apresentados de forma individualizada nos testemunhos, associando-os em
performances que simbolizam um sujeito coletivo‖ (AZEVEDO, 2013, p. 15).
330
resistência à ditadura; motivo pelo qual, inclusive, foi exibido na Edição 2014 do Festival
Internacional de Cinema Feminino, o FEMINA.
Nesse sentido, pode-se inferir, por exemplo, que o filme estabelece um contraponto à
―masculinidade revolucionária‖ que balizava a autoimagem dos militantes e as normas de
gênero dominantes entre as organizações de esquerda, ao apresentar exclusivamente
expoentes femininas da resistência armada à ditadura militar (Figura 2). A própria linguagem
cinematográfica opera nesse sentido, como analisa Danielle Tega: ―A forma fílmica escolhida
pela cineasta, que filma em close todos os depoimentos, coloca literalmente em primeiro
plano algo que, até então, não aparecia com a atenção merecida: a participação política das
mulheres na luta contra a ditadura militar‖ (TEGA, 2012, p. 130).
Figura 2: “Guerrilheira sem boina é o cartaz do Che Guevara sem o „Endurecer sem jamais perder a ternura‟
debaixo do peito”
331
gênero na ditadura militar. Ao conservadorismo dos governos autoritários se deve a repressão
política de forma indiscriminada a homens e mulheres. Como afirma a autora:
Modos de violência política específica de gênero são, por outro lado, ilustradas pelos
depoimentos das personagens do filme. Pupi conta, por exemplo, que sofreu tortura
psicológica na forma de uma paixão fingida de um torturador que se aproveitava da fraqueza
emocional decorrente da situação carcerária para confundir seus sentimentos e obter
informações. Regina, por sua vez, estava grávida quando foi presa e perdeu o filho nas
sessões de tortura. Ela passou também por uma situação degradante quando, ao ser presa, foi
revistada à procura de uma arma que sabiam não existir, somente para provocar a humilhação.
332
Figura 3
[...] a história está muito mal contada no Brasil. Quer dizer, o que foi a ditadura, o
que foi a tortura [...] E eu acho fundamental que a gente recupere a nossa história.
Então eu acho que tanto os depoimentos que foram dados para a Comissão da
Verdade, como os trabalhos da Comissão da Verdade, como esse filme estar
passando hoje, ele volta a mostrar o horror que foi aquele momento. 9
Ademais, percebe-se como Que Bom Te Ver Viva contribui para a reconstrução da
memória da ditadura militar no Brasil sob uma perspectiva de gênero, na medida em que
oportuniza a expressão de vivências específicas de mulheres em condições de violência e de
enfrentamento ao regime. Tendo em vista as relações de poder sócio-culturais entrevistas nos
discursos articulados a partir do resgate dessas memórias, compreende-se ainda que, como
disse Michelle Perrot, enquanto ―forma de relação com o tempo e com o espaço, a memória,
como a existência da qual ela é o prolongamento, é profundamente sexuada‖ (PERROT,
1989, p. 18).
9
Mostra Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul. 9a Mostra Cinema e Direitos Humanos no
Hemisfério Sul homenageia Lúcia Murat. 14 nov. 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=0sfDUCobldY>. Acesso em: 11 mai. 2015.
333
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334
RETRATOS DE UMA URBANIZAÇÃO: AS REPRESENTAÇÕES
IMAGÉTICAS FEMININAS, NO ÁLBUM ILUSTRADO DA COMARCA DE
RIO PRETO (1927-1929)
1
Graduado em Pedagogia (2015), pela Universidade Federal de Uberlândia, é, atualmente, aluno regular
do Mestrado Acadêmico em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação dessa instituição.
Endereço eletrônico: viniciusvieira@outlook.com. Agência Financiadora: Coordenação de
Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior.
335
por sua vez, dos altos custos para a aquisição de novos equipamentos; e por aspectos
profissionais, pois o campo da escrita não se apontava como suficiente em termos de
renda. Dessa forma, não é de se estranhar que notas, colunas, reportagens e matérias
fossem assinadas por sujeitos que tinham o campo das letras como um campo
secundário – mas, nem por isso, sem relevância – em sua atuação profissional, como
professores, padres, médicos e engenheiros, que compunham, assim, uma elite letrada.
Aliás, grande parte daqueles especialistas que ficaram responsáveis por planejar
as reformas urbanas integrava esse rol da elite letrada que atuava no campo da
imprensa, o que permite defender, referenciando Oliveira (2008), que aquela escrita
estava, de alguma maneira, atrelada ao projeto de progresso em curso. Portanto, se, para
Lorenzo (1997), as transformações ocorridas na década de 1920 são fulcrais para o
entendimento da modernização brasileira, a imprensa ascende como fonte preciosa para
a historiografia deste momento, por permitir perscrutar o campo de um grupo social cuja
emergência é fruto e produtora do mesmo. Ademais, para além do campo das
intencionalidades, faz-se mister atentar-se às condições técnicas que, tenuemente,
limitavam e possibilitam o discurso jornalístico, como dito no parágrafo anterior, bem
como à retórica característica deste meio de comunicação em massa.
Ao tratar do surgimento de um novo tipo empresário, que, via jornal, intentava
estimular a capacidade consumidora do seu leitor – o publicitário –, Mason (2003)
verificou que houve uma transformação na imprensa jornalística, com fins de alcançar
um público menos instruído: o advento de uma linguagem mais simples e acessível.
Essa diluição do conteúdo erudito se deu, basicamente, com a inserção de uma
pluralidade de notícias temáticas, e, prioritariamente, com o uso de bastante iconografia,
da qual a fotografia se destacava, justamente por ser o recurso de ilustração que era
julgado como o mais moderno à época. Deste modo, os registros fotográficos, por
promoverem certa acessibilidade aos gêneros textuais à população menos instruída,
assumiram uma função pedagógica, na medida em que, fundamentando-se em Chartier
(1990), contribuíam com o desenvolvimento de diferentes capacidades de leitura, ainda
que não fossem de letras propriamente ditas.
Neste processo de modificação do jornalismo, a fotografia ganhou, por sua vez,
contornos para além da diversão e das lembranças pessoais, ao ser uma das principais
formas de registro da Primeira Guerra Mundial, corroborando não só a sua característica
336
de ilustração moderna, como, também, a face negativa do progresso. Como discursos
interrompidos no tempo, o que os deixa em aberto, reticentes, as fotos deste conflito
armado podem ter fomentado as apreensões das proporções do mesmo, alimentando o
imaginário social, sendo, por consequência, recursos com informações próprias, e não
apenas complementares. Se há essa relação apresentada, e, para autores como
Hobsbawm (1995), o século XIX e o tempo das certezas se encerraram com a eclosão
da Primeira Grande Guerra, é lícito afirmar que o registro fotográfico está atrelado ao
surgimento da era moderna e do tempo das incertezas.
Segundo Lorenzo (1997), São Paulo, que já havia crescido durante os anos de
1914 e 1918, teve um crescimento significativo no período do pós-guerra, sobretudo no
âmbito da economia urbana, que fora impulsionado pela expansão simultânea da
urbanização na capital deste Estado, bem como nas cidades do seu interior. Na década
de 1920, já se apontava uma necessidade de crescimento do parque industrial desta
região e da nação, uma vez que as atividades não diretamente vinculadas à produção e
exportação do café, como, por exemplo, outros tipos de agricultura e o comércio,
compunham uma economia próxima à cafeeira. Com essas transformações ocorridas na
economia, na política e na cultura, São Paulo era posta como exímio exemplo de vida
moderna – urbana e industrial – a ser conquistada pelas demais localidades brasileiras, o
que, em certo sentido, promovia uma maior integração nacional, já que as referências
não estavam mais separadas por distâncias oceânicas.
Sob a crença de uma missão intrínseca aos projetos de civilização e de
construção da nação, as elites letradas, os intelectuais brasileiros, atuaram ativamente
nesta elaboração referencial, pois, para eles, a organização da pátria perpassava e
advinha da organização da cultura. No campo da imprensa, destacaram-se,
fundamentando-se em Lima (1993), álbuns ilustrados, comparativos ou não, que, além
de uma periodicidade definida por seus produtores, caracterizam-se pelo uso de
fotografias de uma dada urbe como a principal linguagem de socialização. A autora, ao
fazer a análise de 12 álbuns ilustrados produzidos em e sobre a capital de São Paulo,
averiguou que, dentre outras funções, objetivava-se, com tais, promover uma
familiaridade com a ordem urbana que estava a conquistar-se e com a que se intentava
consolidar.
337
Sobre o Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929)
Em torno das temáticas concernentes ao progresso, os discursos laudatórios não
se constituíram como uma constante irrevogável, senão efusões das elites letradas, uma
vez que, com base em Silveira (2008), foram estes grupos sociais que,
hegemonicamente, autoincumbiram-se de construir símbolos para criar e consolidar o
Brasil como uma nação moderna. No decorrer da década de 1920, as parcelas à margem
desse processo, alcunhadas, comumente, como índios, caipiras, selvagens, dentre outros
termos, passaram a integrar os projetos dos intelectuais, mais como emblemas de um
tempo prestes a ser desvanecido, do que como personagens de um percurso
contraditório e, até mesmo, excludente. Almejando o alcance a síntese dos elementos
mais genuínos da tradição brasileira, o direcionamento ao interior, mormente o paulista,
estimulou o estreitamento das distâncias geográficas e simbólicas entre os confins dos
sertões e São Paulo, reiterando, em certa medida e ao mesmo tempo, o modelo que esta
cidade era de civilização (OLIVEIRA, 2008).
Dentre essas terras longínquas, estava a atual São José do Rio Preto, que,
denominada de Rio Preto à época, tem o início do seu desenvolvimento mais intenso,
inclusive o urbano, datado de 1912, porque foi neste ano que os trilhos da Estrada de
Ferro Araraquarense chegaram ali (CAMPOS, 2004). Os enunciadores iluminados de
Rio Preto tentavam firmá-la no imaginário reinante de modernização, apreendendo as
mudanças mais externas da capital do Estado como passíveis de implementação, ainda
que a finalidade não fosse para superá-las; no muito, igualar-se. Assim, inúmeras ações
foram postas em prática por esses ―arautos dos novos tempos‖, especialmente a partir da
década posterior à da chegada do trecho da malha ferroviária, como, por exemplo, no
campo cultural, a escrita de textos das mais variadas temáticas nos jornais locais, e,
também, a produção de álbuns ilustrados.
Este gênero editorial, segundo Lima (1993), tornou-se presente, na capital de
São Paulo, desde a década em que o Estado passou a destacar-se no desenvolvimento
econômico do país, tendo sua narrativa tecida por meio de, precipuamente, registros
fotográficos do espaço geográfico local. No caso de Rio Preto, o primeiro impresso
desse estilo e de grande porte material foi o Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto
338
(1927-1929)2, cuja função explícita era a de fazer uma propaganda social da região,
ampliando a ideia daqueles que a conhecia, alcançando os que a desconhecia, e atraindo,
consequentemente, investimentos nos diversos setores do espaço retratado. Para tanto,
como possuía um viés mercadológico, e por a sua produção ter sido encabeçada por
aqueles que integravam o rol das elites letradas da época, a sua circulação foi
potencializada com a divulgação de notas, reportagens, apreciações de partes ou do
todo, bem como de outros gêneros textuais, nos jornais locais, como no A Noticia.
Para demonstrar o progresso, as três dimensões temporais – pretérito, presente, e
futuro – foram elencadas, ainda que haja certo destaque para as duas primeiras,
sobretudo para a segunda, o que se torna compreensível a partir das análises feitas por
Lima (1993). Segundo esta autora, a produção de álbuns ilustrados se tornou recorrente
no mundo ocidental, por volta da segunda metade do século XIX, especialmente para
dar destaque a um modo de vida urbano, não só para aferir os resultados já alcançados,
mas, também, para promover uma familiaridade com este novo modus vivendi,
contribuindo para a construção física e simbólica do espaço citadino. Com esta
finalidade geral, tais álbuns podiam assumir uma conotação comparativa, quando se
procurava ressaltar as diferenças de modernização em um dado espaço de tempo, ou
uma conotação contemporânea, quando se objetivava dar ênfase à civilização então
corrente.
Vale destacar que, assim como ressaltado nas apreciações publicadas no jornal A
Noticia, o Álbum possuía, no mesmo sentido assumido pelos cartões-postais, um viés de
comercialização (CAMPOS, 2014), indicando que, para além do comprometimento
histórico e social que seus idealizadores buscaram fazer, havia uma parcela de
entretenimento, possibilitando uma massificação do seu público. Tanto o foi que,
impressa na Casa Duprat-Mayença, em São Paulo capital, composta por 11533 páginas e
1261 fotografias, com todos os gastos custeados por Paulo Laurito, a primeira edição da
obra chegou aos 5 mil exemplares vendidos, o que era feito sob encomenda na Casa
2
Ainda que a primazia do Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto tenha sido na monumentalidade do
seu porte, o primeiro álbum produzido na cidade foi o Álbum de Rio Preto, no qual, sob a organização de
Raul Silva, foram abrangidos os anos de 1918 e 1919.
3
Em 1979, Roberto do Valle coordenou a reprodução do Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto, cuja
reimpressão se distingue da versão original por: conter um prólogo deste coordenador; estar paginada;
possuir lombada mais arredondada, para facilitar a leitura, bem como dificultar o desprendimento das
folhas; e indicar o nome do seu dono na capa, já que as vendas foram feitas por encomendas a priori da
impressão. Em termos de conteúdo, nada foi alterado.
339
Laurito e nas redações de jornais da região, com o preço unitário de 150 mil-réis.
Utilizando molduras em art nouveau, papel couché – que possui, dentre as suas
principais características, uma maior durabilidade às ações do tempo e do manuseio –, a
encadernação foi feita em brochura, com lombada ortogonal, e capa dura de cor
avermelhada e chumbo.
Em 21 capítulos, embora as localidades das cidades que compunham a Comarca
de Rio Preto estejam contempladas no documento ilustrado, é perceptível que a cidade
mais privilegiada na abordagem é a que dava nome à Comarca. Ainda assim, pelas
subdivisões de cada capítulo temático, fica-se evidente que o progresso a ser propagado
decorria-se de um contraditório desenvolvimento, com muito ainda a ser feito,
especialmente no campo social. No contexto político, Silva (2009) identificou a década
de 1920 como a principal para o entendimento das transformações nos grupos de poder
de São José do Rio Preto entre os anos de 1894 e 1930. Tal como Ghirardello (2002),
grafa que o município apresentou um rápido processo de desenvolvimento urbano,
potencializado pela expansão ferroviária e, consequentemente, pela expansão da
economia cafeeira.
4
Respeitando a grafia da época, a citação não contém a numeração da página de tal excerto, pois a 1ª
edição da obra, que foi fonte para o presente estudo, não a possuía.
340
Embora esta parte da obra imagética estivesse consagrada à mulher residente na
então Rio Preto, ela está ocupada por uma bem restrita quantidade de personagens, o
que é justificado, em partes, pelo custeio financeiro que se deveria ter para tal
divulgação fotográfica. Entretanto, aponta-se outro motivo para essa seleção, ao se
analisar as características das mulheres fotografadas: só há solteiras, cujas semelhanças
esbarram nos adornos, na indumentária e no penteado utilizados, e, até mesmo, na pose
fotográfica feita, nas suas virtudes e prendas. Dentre elas, apenas uma foge de alguns
destes aspectos: a professora, que, por ser uma profissional do extra-doméstico, suas
qualidades morais não estão atreladas ao nome de sua família, como se verifica na
maioria das suas companheiras de seção tipográfica.
341
Figura 1 - Snrta. Josepha Barretos - Um dos Figura 3 - Snrta. Orminda Romana - Dilecta
lindos ornamentos do nosso feminismo, e em filha do Dr. Eugenio Romano e precioso
cuja belleza resalta os preciosos dotes de sua ornamento da "elite" feminina rio-pretense.
bondade. Fonte: Album Illustrado da Comarca Fonte: Album Illustrado da Comarca de Rio
de Rio Preto, 1929. Preto, 1929.
342
Figura 5 - Snrta. Sylvia Queiroz - Uma das Figura 7 - Snrta. Helena Demonta - "a belleza
mais lindas e encantadoras flores do feminismo alida á bondade" elemento querido do nosso
Rio-Pretense. Filha dilecta do Exmo. Snr. Dr. mundo social. Fonte: Album Illustrado da
Esperidião de Queiróz Lima. Além de sua Comarca de Rio Preto, 1929.
belleza physica reune tambem precidados de
nobreza, que a tornam tão estimada na nossa
sociedade, quanto é grande e gentil a sua infinita
jovialidade e perfeição de espirito. Fonte:
Album Illustrado da Comarca de Rio Preto,
1929.
343
Figura 9 - Snrta. Barthyra Viégas - Umas das Figura 11 - Snrta. Finizia Esposte, reunindo na
intelligencias mais robustas do nosso meio ternura expressa do seu olhar, a belleza e a
feminino, e um dos elementos mais queridos bondade que a caracterizam. É um dos belos
pela sua virtude e bondade, em todas as rodas ornamentos do feminismo Rio Pretense,
sociaes, sendo actualmente elemento de gozando de grandes sympathias em todas as
destaque no Gymnasio de Rio Preto. Fonte: rodas da nossa sociedade. Fonte: Album
Album Illustrado da Comarca de Rio Preto, Illustrado da Comarca de Rio Preto, 1929.
1929.
344
Considerações Finais
A produção e a circulação do Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto (1927-
1929) estavam atreladas a um projeto de progresso social, do micro ao macroespaço
nacional, que, no Brasil, por meio de as elites letradas, ancorou-se na filosofia
positivista de Augusto Comte. Dessa forma, percebe-se que a representação feminina
está intimamente vinculada ao papel que este teórico atribuiu às mulheres, sobretudo no
âmbito da ordenação da sociedade, em busca de um, sempre ascendente, melhoramento.
Assim, buscando romper com a perspectiva da perfeição celeste, e da mulher como
fonte do mal, o gênero feminino passava a ser apreendido, em tese, como a encarnação
da perfeição, o que se manifestava em sua beleza pura – o que Lipovestky (2000)
designou de Segunda Mulher – e em na primazia do seu sentimento sobre a sua
inteligência.
Essa mulher bela e de sentimentos nobres, considerada como um símbolo da
República, tinha um papel fundamental na estruturação social urbana: intermediar o
papel masculino e o papel das crianças, por meio da educação, civilizando e mantendo a
ordem indispensável ao progresso da sociedade. Portanto, para que assim o fosse, seu
espaço de atuação ficava restrito ao lar, ou à educação formal, desde que, neste último,
o seu marido e seus filhos, quando casada, não ficassem comprometidos com o seu
trabalho extra-doméstico. A escola, então, como ambiente privilegiado de
desenvolvimento da educação formal, não era só um campo para o exercício
profissional de algumas mulheres, mas, também, especialmente para as solteiras, era um
local para manter a moral delas não muito distante daquilo que, na citada filosofia, era
posto como o ideal.
Nesse sentido, os limites da seção ―Rio Preto Feminino‖ não foram delimitados
somente por aspectos financeiros, mas, e principalmente, por uma questão de afinidade
ideológica, uma vez que a mulher de papel imprescindível ao estado positivo social era
a esposa e a professora que tivessem o que era, à época, considerado como idoneidade
moral. A beleza dessas mulheres, assim, ainda que tivessem ressaltadas algumas
características do seu físico, não era determinada pelo seu corpo; era, pelo contrário,
definida por aquilo que este aspecto concreto pudesse abrigar, como as suas qualidades
de bondade. Por isso, à luz das considerações de Vigarello (2006) e Lipovetsky (2000),
as fotografias da mencionada subdivisão do Álbum estão focadas apenas no rosto
345
feminino, pois, neste modelo de beleza, o olhar seria o principal mecanismo de
retratação da ternura, o que tornava desnecessária qualquer outra retratação da mulher.
Não é inócuo, diante disso, que uma das máximas do Positivismo de Comte
tinha o aspecto sentimental – o amor, no caso – como o princípio básico para o alcance
pleno do estado positivo, posto como o mais perfeito da evolução da humanidade.
Uníssono a essa lógica, Abílio Cavalheiro, respondendo a questão que abriu tal parte
destinada a algumas mulheres rio-pretenses, chega à conclusão de que não há nenhuma
obra perfeita que não tenha sido inspirada nas mulheres, pois, em palavras dele, ―[...] a
virtude da mulher é, pelo seu poder afetivo, um prolongamento do poder divino‖. Em
outras palavras, considerando as finalidades mais amplas da produção da obra
tipográfica ilustrada em análise, significa dizer que abarcar as mulheres, representando-
as conforme um determinado modelo, era uma condição importante à urbanização
objetivada, de tal forma que a beleza feminina impactaria, direta e indiretamente, na
beleza da urbe.
Todavia, essa afirmação não implica em uma ponderação de associação
harmônica, tendo em vista que o próprio objeto imagético impresso foi resultado de um
desenvolvimento civilizatório contraditório. Tal como defendeu Lipovetsky (2000),
concatenar gênero feminino com beleza possui, a um só tempo, aspectos limitadores e
libertadores, uma vez que as mulheres, ainda que cerceada e silenciada por
determinadas normas, nunca deixaram de ser um sujeito ativo em suas histórias, e na
própria história social. Contudo, a compreensão dessa outra face do processo torna-se
complicada, na medida em que os registros que perduram, concretamente e no
imaginário social, como o próprio Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto, são
justamente aqueles em que a participação feminina está circunscrita a um plano
secundário.
Referências Bibliográficas
346
jan./jun. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v34n67/a14v34n67.pdf>.
Acesso em: 6 out. 2014.
VALLE, D. Jornais de Rio Preto. São José do Rio Preto: A Notícia, 1994.
347
O ENSINO DE HISTÓRIA E A CULTURA ESCOLAR: A LEI 10639/03 E SUAS
PRÁTICAS
Resumo
O presente trabalho apresenta parte de uma pesquisa, em desenvolvimento que busca
analisar o ensino de História e a Cultura Escolar de duas escolas públicas do município
de Ituiutaba antes e após a Lei 10.639/03 que alterou dispositivos da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 (LDBEN). Através de uma analise
bibliográfica/documental do tema. Analisando os documentos referentes à educação, e
a cultura afro-brasileira como leis e pareceres, percebendo como tratam a questão da
História da África e da cultura afro-brasileira. Além de um trabalho de campo, nas duas
escolas, onde tivemos contato até o momento com os diários dos professores, livros
didáticos e planejamentos anuais da disciplina de História.
Introdução
Uma pesquisa com esse tema se justifica pela extrema importância para
compreendermos os processos de implementação da legislação referida, as práticas
escolares em torno dos temas propostos, as condições de trabalho, as resistências. Além
disso, a pesquisa pode contribuir como material para os professores que estão atuando
na escola nas áreas de História e de outras disciplinas, e para novos pesquisadores que
venham trabalhar com essa temática.
1
Mestranda em História-UFU. vp.oliveira1980@bol.com.br
348
Como educadora da disciplina de História, percebo que a abordagem da História
e Cultura Africana e Afro-Brasileira é recebida com resistência pelos alunos. Segundo
SIMAN (2005, p.348-365) antes de nossos alunos entrarem na escola, eles já constroem
representações e experimentam formas de discriminação social e cultural dos diversos
grupos presentes na sociedade. Considera que as representações não devem ignoradas e
que os professores precisam conhecer essas representações.
Por isso, o debate em torno das diferenças culturais, se faz necessário dentro de
sala de aula para que sejam reconhecidas, respeitadas e valorizadas na escola e na
sociedade em geral. Essas questões devem estar no cotidiano da prática pedagógica dos
profissionais da educação, o que nos leva a buscar conhecimento, a relação conosco.
Pois, sem nosso interesse ativo, o conjunto passado das ações humanas nada mais é do
que um acervo morto. Sua transformação em história é sua vivificação pela atuação
direta do interesse racional presente MARTINS (2009, p.59)
349
idade escolar, sendo uma estadual e outra municipal, percebendo se há diferença de
tratamento da temática aqui proposta, no ensino fundamental II de ambas.
A outra, que é estadual, fica próximo da área central, localizada na Rua Cônego
Ângelo Tardio Bruno nº 375. Bairro Platina tem 52 anos de funcionamento, oferece o
ensino fundamental e médio, em três turnos, conta com 17 salas, funcionando 17 salas
no turno matutino, 13 no vespertino e oito no noturno turno, 380 alunos matriculados no
ensino fundamental II no ano de 2013, uma biblioteca, sala de informática, o acesso à
internet, uma média de 60 professores, três supervisoras, uma secretaria, pátio e quadra
coberta.
Metodologia
Por este método o historiador tem a sua função equiparada com a de um detetive,
pois terá que decifrar um enigma, pela explicação de enredo, e revelação de um algo
secreto, o historiador tem o desafio do passado a ser enfrentado com atitude dedutiva e
se move pela suspeita, em busca de traços e vestígios. Deve estar atento às evidencias,
que transparece, pois certamente o real dever ser interpretado. Ir além, do que esta dito
nas fontes analisar os detalhes mais despercebidos. O historiador também é comparado
ao médico, que busca os sintomas, dos fenômenos paralelos que dão sinais e sentido aos
sentidos. Como um crítico de arte, não deve se ater apenas a primeira aparência, mas
analisar a cena principal atento aos elementos secundários, que formam o conjunto da
obra em análise. Por esse método, segundo PESAVENTO (2004.p. 65) a ―História
atinge os sentidos partilhados pelos homens a de um outro tempo. ‖
Outro autor que nos auxiliará será MARC BLOC (2002) na maneira de como
poderemos analisar os documentos, ele nos diz de o documento não fala por si só, cabe
a nós pesquisadores sabermos como interrogar esse passado através das fontes,
procurando perceber o não dito, e o perceptível nas entrelinhas. Os documentos nos dão
pistas do passado, cabe o historiador saber usa-las para reconstruir o passado, pois o
351
mesmo não é algo morto e definido, mas se modifica a cada novo estudo. Para esse
autor, nossos questionamentos que delinearam os nossos trabalhos de pesquisa sobre
determinado assunto. Não importa o tipo do documento, todos tem o mesmo valor, pois
são vestígios do passado. O historiador precisa saber interrogar seus documentos, saber
ler nas entrelinhas, notar na fonte os reais, interesses, e visões de que as produziu.
O historiador não irá conseguir reconstruir o passado como ele acontecer, mas o
fará a partir dos vestígios do passado, que estão disponíveis ao pesquisador, portanto,
essa parte da história em analise não será uma descrição fiel do que aconteceu, mas uma
reconstrução ao que o historiador fará será uma visão sua, a partir do lugar que ocupa na
sociedade de onde fala.
352
Dentro desse contexto temos do conceito de cultura escolar de JULIA que nos
coloca que
Dessa análise dos livros de História dos anos finais do ensino fundamental, a
partir do Guia 2008, percebeu as tendências e abordagens de história que eram adotados
nas escolas, das 19 coleções analisadas que foram agrupadas em e blocos, levando em
353
consideração a organização dos conteúdos: história temática; história integrada; história
intercalada; história convencional. As maiorias das coleções seguiram a organização
curricular dos conteúdos procuravam abordar a História da América, Brasil e História
Geral, uma metade pela História Integrada e outra pela História Intercalada.
GUIMARÃES (2010, p. 7).
A autora conclui que nos anos iniciais há uma diversidade maior de abordagens
com presença mais forte da história temática, já nos anos finais do ensino fundamental,
apesar de várias abordagens a predominância é da História Integrada, que apresenta um
critério temporal, linear, com base na cronologia da História europeia, que quando
possível aborda a História do Brasil, América e África. Revelando, o quanto está
concepção de História e organização curricular ainda predomina nas escolas. Segundo
ela, os autores que procuram trabalhar com a chamada história temática ainda são muito
poucos. A autora conclui que é os professores optam por trabalharem com a cronologia
ao invés da temática. GUIMARÃES (2010, p. 08).
Os dados desse estudo nos levam a uma série de questionamentos. Qual tipo de
história tem sido praticada nas escolas de Ituiutaba? Será que é a convencional que
privilegia a abordagem europeia como a única teria contribuído para a identidade
nacional e construção da sociedade brasileira? Os materiais didáticos adotados pelos
professores são de qual base curricular? E os currículos privilegiam que tipo de
abordagem histórica? A lei 10639/03 teria provocado mudanças no ensino de História?
Há o cumprimento da legislação? Este seria apenas cumprimento formal ou de uma
maneira crítica e criativa?
Considerações Finais
354
africana e afro-brasileira, focalizando as práticas de ensino e aprendizagem nos cenários
de duas escolas do município de Ituiutaba no estado de Minas Gerais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
355
ABREU, Martha et al. Em torno do passado escravista: as ações afirmativas e os
historiadores. Antíteses, vol. 3, n. 5, jan. /jun., 2010
BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução: Sérgio Góes de Paula. – Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
COSTA, Hilton. Para construir outro olhar: notas sobre o ensino de história e cultura
africanas e afro-brasileiras. In: Revista História Hoje. ANPUH. vol. 1, nº1, junho,
2012.
____________. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
356
GUIMARÃES, Selva. A história na Educação Básica: Conteúdos, Abordagens e
Metodologias. Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento – Perspectivas
Atuais. Belo Horizonte, novembro de 2010.
JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. In: Revista brasileira
de história da educação n°1, jan. /jun.,2001.
POL, Milan et al. Em busca do conceito de cultura escolar: Uma contribuição para
as discussões actuais. In: Revista Lusófona de Educação. nº 10, 2007.
357
SILVA, Marcos Antonio da; Guimarães, Selva. Ensino de História hoje: errâncias,
conquistas e perdas. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 60, 2010.
358
O TEATRO-FÓRUM COMO EXERCÍCIO DE PENSAMENTO POLÍTICO: UM
CAMINHO PARA DEBATER AS RELAÇÕES DE GÊNERO
Resumo: O presente texto tem por finalidade demonstrar a utilização do Teatro-Fórum de Augusto
Boal como possibilidade pedagógica para discutir a temática gênero. Por se tratar de um procedimento
didático-pedagógico que provoca a produção de pensamentos políticos, enxergou-se nesse técnica
teatral uma maneira de discutir questões que envolvem a temática gênero. Ainda, como proposta de
ensino de gênero, o artigo em questão apresenta uma peça teatral elaborada com propósitos voltados
para esse método. Com o intuito de evocar uma conscientização política nos sujeitos envolvidos/as, o
material em questão poderá ser utilizado por professores/as no trabalho com gênero na educação
básica.
Considerações iniciais
Não é de hoje que o Teatro, enquanto área do conhecimento, tem demonstrado
interesses por temas políticos e sociais. Seja na educação, na dramaturgia, na montagem
cênica e/ou performativa, a linguagem teatral é utilizada para abordar, analisar e criticar
diferentes concepções e conceitos presentes em nossa sociedade. Augusto Boal, autor de
grande referência na área teatral, desenvolveu várias propostas engajadas nessa concepção.
Dentre elas o Teatro-Fórum. Trata-se de uma ação estético-pedagógica capaz de permitir aos
sujeitos envolvidos a possibilidade de refletir sobre as cenas do espetáculo e intervir de
maneira crítica e reflexiva.
A partir desse princípio, surgiu a ideia de se pesquisar e discutir as possibilidades que
o Teatro-Fórum apresentam para promover debates sobre as relações de gênero, questões
estas consideradas importantes para o progresso científico, cultural, político e econômico da
humanidade. A decisão por essa temática decorreu por conta do grande número de casos de
desrespeito e preconceito de gênero que presenciei e presencio na condição de docente em
uma escola pública da rede estadual de ensino da região metropolitana de Goiânia-Go. Ainda,
estudos recentes realizados sobre o teatro do oprimido de Augusto Boal no curso de
graduação em Artes Cênicas, oferecido pela Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, e em
1
Graduado em Geografia pela PUC-GO e em Artes Cênicas pela UFG; Especialista em Gênero e Diversidade na
Escola UFG/Campus Catalão-Go - weyberucg@yahoo.com.br
359
um curso de atualização em 'Gênero no Ambiente Escolar', oferecido pela Faculdade de
Educação da UFMG, contribuíram consideravelmente para a escolha desse tema.
Ainda sobre isso, a busca pelo entendimento das contribuições do Teatro escolar para
a formação discente em gênero se intensificou com a minha inserção no curso de Gênero e
Diversidade na Escola, promovido pela UFG/Campus Catalão, momento pelo qual verifiquei
tamanha carência da temática gênero na literatura da pedagogia do Teatro. Vi, nesse percurso,
que o Teatro, assim como as demais disciplinas que compõem o currículo escolar, possui um
papel importante no combate à desnaturalização das desigualdades de gênero quando
trabalhadas sob essa ótica. E, sendo assim, deduzi que o Teatro-Fórum seria um procedimento
didático-pedagógico capaz de contribuir significativamente com o trabalho de professores/as
na escola rumo a construção de conhecimentos valorativos referentes aos conteúdos de
gênero.
Portanto, o que proponho, reconhecendo a complexidade dessa questão, é a
aproximação da temática gênero com as atividades teatrais desenvolvidas na escola. Assumir
isso implica em aceitar que o Teatro escolar se caracteriza como um grande facilitador
pedagógico junto aos alunos/as devido a sua capacidade de reinvenção e teor lúdico presente
nas diferentes propostas e atividades de ensino, assim como demonstram as principais obras
da pedagogia do Teatro em autores como: Japiassu (2001); Reverbel (2009); Cafe (2010);
Novelly (2012); Telles (2013); dentre outros.
No que tange aos procedimentos metodológicos, em primeira instância, realizei uma
pesquisa bibliográfica objetivando a construção de um referencial teórico consistente sobre
gênero e Teatro escolar. Averiguei conceitos, questionamentos e posicionamentos de
diferentes autores em livros, teses, dissertações e artigos preocupados em discutir o Teatro-
Fórum e as questões de gênero. Apesar da pequena existência de trabalhos que versam sobre
esse assunto, consegui absorver formas de se trabalhar a temática gênero dentro da proposta
de Augusto Boal, fato que me instigou e contribuiu para a escrita do texto teatral a qual se
refere o parágrafo seguinte.
Enfim, em decorrência desse trajeto, elaborei um texto dramático sugestivo que
poderá ser utilizado por professores/as para o trabalho com gênero na escola. A intenção, ao
disponibilizar o referido texto dramático, não é a de apresentar uma receita eficaz e apta a
solucionar todas as questões envolvendo gênero, mas sim de apontar caminhos, perspectivas e
360
possibilidades de um trabalho pedagógico que pode despertar resultados relevantes para a
construção de uma sociedade mais justa e respeitosa.
[...] é a quebra dos limites entre palco e plateia, entre atores e o público, por meio da
possibilidade dos espectadores entrarem em cena no lugar dos personagens que eles
julgam oprimidos. A estrutura de uma peça de Teatro Fórum constitui-se na
configuração clara de uma situação de opressão. A apresentação serve para iniciar o
debate com a plateia sobre a situação de opressão apresentada. Os próprios
espectadores, dando sua opinião sobre a situação, entram em cena para interpretarem
o personagem oprimido e agem sugerindo estratégias para a solução dos problemas
de opressão enfrentados (MST, 2005, p.20).
361
É interessante notar, segundo essas formulações, que o Teatro-Fórum é um
instrumento que permite ao indivíduo vivenciar uma experiência de opressão e, a partir dela,
criar mecanismos para amenizá-la. E, numa perspectiva de aprofundamento de ideias e
análises das possibilidades que o Teatro-Fórum apresenta para a promoção de diálogos sobre
as relações de gênero, debrucei-me sobre duas das principais obras de Augusto Boal. A
primeira intitulada 'A estética do oprimido', publicada no ano de 2009, e a segunda
denominada 'Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas', publicada no ano de 2005.
Tão importante quanto essas ideias são as discussões realizadas por Grossi (2004) ao
analisar o conceito de gênero desenvolvido por várias autoras da vasta tradição dos estudos de
gênero em diferentes correntes de pensamento humano. Segundo Grossi (2004), as pensadoras
de concepções pós-modernas de gênero são mais abrangentes ao afirmarem que,
[...] o gênero pode ser mutável; e que existem múltiplos gêneros, e não apenas o
masculino e o feminino. Esta corrente tem estudado particularmente os indivíduos
que mudaram de sexo, os transgêneros, e tem refletido de forma sistemática sobre a
forma como indivíduos não-heterossexuais se vêem no mundo. Para elas, o fato de
haver machos e fêmeas biológicos é só uma questão de contingência, contingência
que pode ser mudada graças às novas tecnologias médicas que permitem subverter a
ordem "natural" deste corpo. Operações de mudança de sexo permitem tirar ou pôr
seios, fazer ou tirar um pênis, construir uma vagina, etc. Da mesma forma,
operações plásticas e ingestão de hormônios podem criar caracteres sexuados,
produzir homens e mulheres, mais ou menos femininos ou masculinos. (GROSSI,
2004, p. 05, grifo nosso)
[...] "gênero" é uma construção histórica e social que se configura numa relação com
o que, em cada cultura e época histórica, se define como sendo a identidade sexual,
os papéis sexuais, ideias de masculinidade, feminilidade, etc. (...), e mais importante
ainda como adverte Judith Butler (2003), não se reduzindo o "gênero" nem o "sexo"
a apenas "dois", como se a "construção" cultural/social se desse sobre o "dado" pré-
existente, "fixo" e "imutável" dos sexos anatômicos "naturais". Nesses termos, uma
definição ainda prisioneira da ilusão binarista que separa os gêneros humanos em
apenas "dois", a partir de derivá-los do sexo biológico, pela "crença numa relação
entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito" (FILHO,
2007, p. 03).
362
No que diz respeito a ideia binária de gênero, é ainda comum encontrar tal
pensamento em nossa sociedade. Infelizmente, é perceptível a forma como esse conceito se
ampara em diferentes posicionamentos. Seja por tradição, por preceitos religiosos ou por
convicções pessoais, elas estabelecem regras e condutas do que é aceito e considerado
"normal". Desse modo, as diferenças assumidas por um indivíduo ou grupo se tornam fatores
de discriminação, preconceitos e desigualdades. Logo, os que fogem desse padrão social, de
forma geral, são marginalizados e excluídos. Contudo, enquanto instituição que promove a
formação de indivíduos para o exercício da cidadania, a escola precisa propor atividades
didático-pedagógicas que objetivam romper estereótipos e preconceitos relacionados à
temática gênero. Sem ressentimentos, é preciso que se diga que a escola não pode ser omissa
em relação a essas questões, tampouco ignorá-las, pois,
[...] se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos, nem mesmo
apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades étnicas,
de gênero, de classe; se reconhecemos que essas identidades estão sendo produzidas
através de relações de desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente
comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso
cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se acreditamos que a prática
escolar é historicamente contingente e que é uma prática política, isto é, que se
transforma e pode ser subvertida; e, por fim, se não nos sentimos conformes com
essas divisões sociais, então, certamente, encontramos justificativas não apenas para
observar, mas, especialmente, para tentar interferir na continuidade dessas
desigualdades (LOURO: 1997, p. 85, grifos da autora).
363
Como se vê, a narrativa de Louro (1997) demonstra preocupações intrínsecas ao
posicionamento político da escola e do professor/a em se tratando do ensino de gênero. De
todo modo, Bortolini et al. (2014) ao discutir sobre a atuação pedagógica de professores/as no
que tange às relações de gênero revela que
De fato, ocorre que essa realidade, a do desconforto, faz parte da cultura docente
mesmo daqueles/as que tiveram acesso a uma formação acadêmica em gênero e diversidade
na escola, pois, romper com elementos de uma cultura padronizada não é tarefa fácil,
principalmente porque desde os primeiros anos de vida somos instruídos a assumir um
determinado padrão de gênero, apreendendo o que é considerado "normal" e "aceito". Em
outras palavras,
Como se vê, essa insistência social e, muitas vezes, escolar é fruto da visão binarista
de gênero. Como consequência, entende-se erroneamente que as atividades desenvolvidas
pelos indivíduos nos anos iniciais são responsáveis pela construção de masculinidades e
feminilidades. Louro (1997), já havia demonstrado preocupações referentes a isso. Segundo a
autora,
364
Essa percepção é de fundamental importância para que se compreenda que as
desigualdades sociais presentes em nossa cultura são frutos de uma construção histórica
pautadas no âmbito biológico e sexual. Portanto, enquanto docentes que se preocupam com o
modo pelo qual as relações de gênero se estabelecem em nosso meio, devemos desmistificar
ideias engajadas em privilégios e preconceitos, objetivando amenizar os problemas
envolvendo violência de gênero, intolerância, desigualdades e práticas homofóbicas. Sobre
esse último, principalmente, é oportuno dizer que
Somado a tudo que foi exposto, o trecho acima, de forma geral, retrata a visão de que
o Teatro-Fórum pode contribuir de forma significativa no processo de formação do
educando/a, sendo capaz de ampliar a percepção de mundo dos envolvidos/as em relação às
questões de gênero. Essa, de maneira geral, é a leitura que tenho feito acerca do Teatro e de
seu posicionamento político no espaço escolar na (re)construção de conceitos estereotipados
sobre gênero. Nesse sentido, entendendo a multiplicidade da temática em âmbito escolar,
reforço a importância desse saber e fazer humano como facilitador pedagógico para a
discussão das questões que envolvem as relações de gênero. Enquanto disciplina ou
365
procedimento metodológico, é dever dessa área do saber promover discussões pertinentes
para a construção de conhecimentos valorativos e, assim, revelar o seu papel intrínseco na
formação do cidadão/cidadã.
366
texto teatral da proposta em questão. Fundamentando-se nesses históricos de vida, a trama da
peça visa demonstrar momentos de opressão oriundas da cultura tradicional e binarista de
gênero.
Em se tratando da proposta pedagógica de ensino, enfatizo que o primeiro passo a se
fazer consiste em selecionar os alunos/as que desejam participar da montagem cênica e, em
seguida, apresentar-lhes o texto dramático. Após isso, recomendo ensaiar com os alunos/as as
três cenas que constituem a peça em um momento no contra-turno para evitar o conhecimento
antecipado e fragmentado da proposta pelos membros da comunidade escolar.
Mesmo que o professor/a não tenha o conhecimento das técnicas de encenação, é
válido lembrar que o objetivo maior da atividade não está na performance cênica. Tampouco
no julgamento das técnicas, mas sim em incitar uma discussão rumo à ampliação do olhar que
os alunos/as possuem acerca dos padrões estabelecidos em nossa sociedade no que tange às
questões de gênero.
Em continuidade, após os ensaios, o professor/a poderá apresentar a peça nas salas de
aulas ou propor um momento cultural no pátio da escola com convite estendido para todas as
turmas da unidade escolar. Isso vai depender da realidade da escola, do tempo disponível, do
espaço físico, da organização e planejamento do professor/a. Ainda, é importante salientar que
a terceira cena da peça não possui um 'final' com soluções prontas e acabadas, justamente para
atender ao conceito de Teatro-Fórum.
Em síntese, assim que a peça chegar no 'final', o narrador deverá entrar e congelar a
cena. A partir daí, a recomendação consiste em solicitar a participação da plateia/público na
solução do problema em questão. Ao fazer uso desse procedimento, o professor/a notará o
surgimento de diferentes posturas e concepções, algumas mais aceitáveis que outras. E, como
prática norteadora, é interessante o professor/a fazer o colhimento dessas ideias e ir, ao longo
da atividade, tecendo comentários a fim de mediar a discussão e partir para o diálogo aberto.
De modo geral, acredito que o texto dramático apresenta elementos importantes para
serem discutidos em sala de aula, como por exemplo: a padronização de jogos e atividades
escolares para meninos e meninas; a visão errônea de que meninos e meninas devam
desenvolver atividades destinadas a seus sexos para se evitar confusões na orientação sexual;
a homofobia e a violência; a heteronormatividade; as desigualdades nas relações de gênero; a
intolerância de gêneros; dentre outros. Enfim, com esses e outros propósitos, segue abaixo o
texto dramático em questão.
367
***************************************************************************
Personagens
ANINHA
CRISTINHA
JEFER
NARRADOR
PEDRO
TIELLY
PRÓLOGO
A cena se passa em um colégio público de uma cidade do interior de Goiás com pouco mais
de oito mil habitantes. Novos na pequena cidade, Aninha e Jefer, personagens principais
dessa trama, são impedidos pela escola de realizarem certas atividades pedagógicas por serem
considerados 'diferentes' pela comunidade escolar.
CORO
Entra as personagens batendo palmas, dançando e cantando a paródia da música 'Xote da
alegria' do grupo Falamansa.
ANINHA
Misericórdia, nem jogar bola com os mano eu posso. Tudo nessa escola só posso fazer o que
esse povo diz. (Imitando alguém) Isso não é coisa de menina... Você é mocinha e não pode...
(Irritada) Háaaaaaaa eu estou cheia disso viu.
JEFER
O que foi Aninha, você está tão pra baixo hoje. Alguém te maltratou?
ANINHA
É isso não Jefer, eu tô cansada das pessoas dessa escola. Nunca me aceitam do jeito que eu
sou. E o pior é que nem me deixam fazer o que eu gosto. Nem jogar futebol com os meninos
eu posso.
JEFER
É isso não Aninha, é que eles não querem que você saia correndo pela quadra da escola e
acabe caindo e se machucando.
ANINHA
Deixa de lero lero Jefer. Se fosse assim, os meninos nem poderiam jogar também porque
iriam se machucar. Eu queria estar na sua pele pra poder jogar e ser feliz sem ninguém ficar
me criticando ou me impedindo de fazer as coisas.
JEFER
Eu sei disso Aninha. Sou seu amigo e nós sabemos perfeitamente como é difícil ser diferente
num lugar onde nem tudo é aceito. Quem sabe um dia encontraremos um lugar onde
possamos ser aceitos do jeito que somos?
ANINHA
Éh, quem sabe?!
PEDRO
Não é só ela não Cristinha. É ela e aquele tal de Jefer. Olha lá, o cara consegue ser mais
mulher que a Aninha... (Fazendo caras e bocas) 'Cê é louco cachoeira'.
TIELLY
Eu vou lá tirar satisfação com eles agora. Eles são a vergonha da nossa escola. Já estão até
falando em mandar eles embora da cidade. Minha prima é filha do pastor João, o vereador que
mora lá perto da sua casa Pedro.
PEDRO
Háaaa o João, eu sei quem é.
TIELLY
Então, ele falou que esses dois aí são coisas do demônio e que estão dando um jeito de tirá-los
da nossa cidade porque já tem gente até mudando daqui com medo deles influenciarem outras
pessoas.
CRISTINHA
Não, gente, calma. Vamos ficar quietos. O recreio já está acabando e a chata da coordenadora
está nos observando e pode nos dar advertência. Ela já não está muito boa com a gente tem
dias... Já sei, vamos deixar para o final da aula. Aí, a gente cerca eles lá na esquina perto do
bar do seu Zé. Aí, aproveitamos e ensinamos pra eles o que é ser homem e o que é ser mulher.
PEDRO
É isso aí galera. Boto fé que hoje esses dois viram gente ou vão morrer de apanhar. Eu vou
chamar toda a galera lá da minha sala pra ir também.
TIELLY
Fechou então, eu também vou chamar umas pessoas fortinhas para nos ajudar. Risos de
maldade.
NARRADOR
370
Embaixo de uma árvore, próximo do bar do seu Zé, a turma de Tielly esperam ansiosos por
Aninha e Jefer. Os dois caminham conversando desatentos sem perceber o que estaria por
acontecer. Quando menos esperavam bummmmmmmm.
TIELLY
Onde os esquisitinhos pensam que vão?
CRISTINHA
Passando a mão no cabelo de Aninha. Um esquisito de cabelo grande. Passando a mão no
cabelo de Jefer. E uma esquisita de cabelo curto.
PEDRO
Com um cassetete na mão. Eu tô achando que eles estão indo encontrar o pai deles.... o
tinhosooo.
ANINHA
O que vocês querem? Nos deixem em paz.
TIELLY
Em paz nós ficaremos quando vocês dois... as aberrações da cidade.... desaparecerem. E nós
estamos aqui para dar uma ajudinha nesse processo.
JEFER
Mas pra que isso gente? Nunca fizemos nada com vocês, nem mesmo conversamos. Somos
inocentes de qualquer acusação, seja ela qual for.
TIELLY
Inocentes uuuuuuuuuuuu, pois bem, sabiam que A CULPA É SEMPRE DOS INOCENTES?
FINALIZAÇÃO/INÍCIO DO DEBATE
O narrador(a)/mediador(a) congela a cena e convida os espectadores para intervir nela
assumindo o papel das personagens oprimidas. A partir daí, o narrador(a)/mediador(a)
segue o trabalho de discussão e orientação à partir da interação da plateia/público.
***************************************************************************
Considerações finais
371
Como se viu no percurso desse trabalho, o Teatro-Fórum apresenta possibilidades
pertinentes para o trabalho pedagógico na escola com vistas ao desenvolvimento de uma
consciência política e social referente às questões de gênero. É válido que se diga, também,
que o papel social dessa área do saber e fazer humano é tão importante quanto as demais
disciplinas que compõem o currículo escolar ao passo que demonstra sua finalidade intrínseca
na formação do cidadão/cidadã rumo ao exercício da cidadania.
Em síntese, ensinar a pensar sobre gênero utilizando a linguagem teatral na escola é
um dos caminhos, entre tantos outros, que pode trazer resultados significativos para a
construção de uma sociedade mais justa. Como consequência disso, o simples fato de
demonstrar que sempre houve um determinado modelo, mesmo que de forma (in)visível
presente até nos livros didáticos e na cultura dita como 'universal' a ser seguida, se caracteriza
como um grande avanço no processo de ensino e aprendizagem escolar. Digo isso porque
entendo que esse exercício de reflexão se configura como o primeiro passo para a construção
de conhecimentos valorativos referentes a temática de gênero. E, sendo assim, atividades
pedagógicas consistentes e com propósitos específicos podem contribuir para desnaturalizar
algumas ideias engajadas em preconceitos, privilégios, diferenças e desigualdades. Tudo isso,
claro, objetivando demonstrar que as relações de gênero não se reduzem ao biológico, mas
exige pensar e questionar as relações de poder presentes em nossa cultura.
Por fim, tais discussões precisam ser realizadas nos espaços escolares a fim de
promover uma formação para a diversidade. Por envolver assuntos relacionados às questões
de gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais, a temática diversidade é,
ainda, considerada tabu por muitos que compõem a comunidade escolar. Como instituição
formadora, é dever da escola e das disciplinas que compõem o seu currículo propor ações que
intensifique o seu debate. Em específico às questões de gênero, a escola precisa criar ações
didático-pedagógicas que contribua para ampliar o olhar dos sujeitos sobre os padrões
estabelecidos para homens, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais,
transgêneros, entre outros. Contudo, acredito que é preciso encarar isso como parte de nossa
profissão como docentes e que a ausência dessa temática no currículo podem trazer
consequências danosas à comunidade escolar.
Referências
BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
372
_____________. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
FILHO, Alipio de Sousa. A resposta gay. In: JUNIOR, Francisco de Oliveira Barros &
LIMA, Solimar Oliveira (Org.). Homossexualidade sem fronteiras: olhares. Rio de Janeiro:
Brooklink, 2007, v.1, p. 11-35.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Rio de Janeiro - Vozes.
1997.
MST, Coletivo Nacional de Cultura do. Caderno das Artes nº 01: teatro. São Paulo: MST,
2005.
NOVELLY, Maria C. Jogos teatrais: exercícios para grupos e sala de aula. 14ª ed. Campinas:
Papirus, 2012.
REVERBEL, Olga. Jogos teatrais na escola: atividades globais de expressão. São Paulo:
Scipione, 2009.
373
INVENTÁRIO DE COISAS E TRECOS OU “POR QUE SÓ DE AMOR?” -
TEATRO, INFÂNCIA(S), JUVENTUDE(S) E TABU(S)
1
Mestrando em Artes (Artes Cênicas) pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade
Federal de Uberlândia. Bacharel em Teatro pela mesma instituição, com bolsa de graduação sanduíche no
exterior (CNPq-CAPES) na Universidade de Évora (Portugal). E-mail: lclarcher@hotmail.com
374
Por se tratar de uma unidade curricular cuja ementa é ampla, e que permite
diferentes recortes, ajustando-se às particularidades dos docentes, assim como, aos
desejos dos discentes, Teatro Infantojuvenil foi ofertada, neste contexto, tendo como
foco as questões abordadas em minha pesquisa, e na de Ricardo. Ou seja, a linguagem
cênica - o conjunto de elementos expressivos utilizados na configuração de um
espetáculo – e os tabus – tudo aquilo que é considerado ―proibido‖, ―perigoso‖ e ―posto
de lado‖ em uma cultura por motivos morais, sociais, religiosos e/ou culturais - que vêm
caracterizando/se fazendo presentes (n)o Teatro Infantojuvenil da atualidade,
respectivamente.
Como é de praxe em uma unidade curricular optativa, os discentes matriculados
em Teatro Infantojuvenil eram oriundos de diferentes períodos do curso de graduação,
e, por isso, suas experiências, seus conhecimentos prévios sobre o assunto, assim como,
suas expectativas sobre o caráter de nossos encontros eram os mais variados possíveis.
Com um total de 8 estudantes (6 mulheres e 2 homens), a unidade foi ministrada nas
noites de quarta-feira, das 19h às 22:30h, na sala de Encenação do bloco 3M, UFU -
Campus Santa Mônica.
Em diálogo com algumas proposições relacionadas ao ensino-aprendizagem-
criação em artes2, eu e Ricardo sugerimos que a unidade curricular tivesse uma
configuração teórico-prática, com o intuito de borrar as fronteiras (imaginárias) que
teimam em separar a teoria e a prática no fazer teatral. Ou, ainda, o fazer-pensar/pensar-
fazer próprio da atividade artística-criativa. Desejávamos que as nossas provocações,
enquanto docentes, juntamente com as inquietações dos discentes, quanto às questões
abordadas em nossos encontros e suas atividades enquanto espectadores-fruidores de
Teatro Infantojuvenil, pudessem ser disparadoras de criações que resultassem em um
exercício cênico a ser apresentado no fim do semestre, e voltado (também) para o
público no qual estávamos focados.
II
2
Como, por exemplo, a Abordagem Triangular2 de Ana Mae Barbosa cuja proposta de ensino-
aprendizagem-criação tem como aspectos fundamentais e essenciais (não hierarquizados) em sua
constituição três pontos, que assim formam um triângulo. São eles: produzir, analisar/apreciar e
contextualizar.
375
Desde os tempos de estudante na graduação em Teatro, os diários de bordo
sempre me serviram como importantes aliados no registro, na documentação, assim
como, nas constantes avaliações e reflexões de minhas experiências enquanto artista-
criador. E, tendo a oportunidade de conduzir um processo de ensino-aprendizagem-
criação, achei por bem incentivar os envolvidos (discentes e docentes) em Teatro
Infantojuvenil a registrarem seus processos individuais, no contexto da unidade
curricular, por meio da ferramenta supracitada.
Ciente de que o termo diário de bordo remete às brochuras de viajantes do
período das Grandes Navegações, propus que, no contexto aqui relatado, tanto os
docentes, como os discentes, realizassem seus registros (escritos, ou não) através de
seus cadernos de criação, com a intenção de que os meandros do processo de ensino-
aprendizagem-criação individuais não se perdessem ao longo do tempo. À bordo, em
uma viagem em busca (da construção) do conhecimento, cada um de nós deveria dar
forma-conteúdo, ou materialidade, aos rastros da memória de nossos encontros. E,
ainda, unir a estes, relatos pensamentos, reflexões, devaneios...
Deste modo, os diários de bordo, no caso ao qual me refiro, podem ser
conceituados como a compilação de todas as anotações de um artista-criador fez durante
seus processos de ensino-aprendizagem-criação. Conforme aponta Cecília Salles em seu
livro Gesto Inacabado – Processo de criação artística (2009), no qual a autora fala
sobre os documentos dos processos criativos, os diários de bordo se configuram como
uma reunião de rastros, índices, vestígios e/ou pistas sobre o que foi um processo de
criação, e podem se fazer presentes no âmago do exercício de diferentes manifestações
artísticas. Sendo, então, um inventário de sentimentos, pensamentos, angústias,
conflitos... Para a pesquisadora:
III
377
construção do conhecimento acerca do nosso tema de estudo. Seguindo a proposição do
pedagogo Paulo Freire (2003, p. 47), de que "ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar as possibilidades para sua própria produção ou a sua construção", é que eu e
Ricardo estruturamos nossa proposta de ensino-aprendizagem-criação na unidade
curricular sobre a qual falo. Uma proposta cuja autonomia de cada estudante era
incentivada.
Centrados nesta ideia, no início do semestre, começamos a provocar os discentes
quanto a escolha da temática do exercício cênico que construiríamos na unidade
curricular. O que, posteriormente, poderia ter como matriz dramatúrgica um texto
teatral, ou não. Neste aspecto, após levarmos materiais de estímulo sobre temas tabus
que interessavam a nós, docentes, propomos que cada um dos estudantes deveria
compartilhar com a turma um tema que lhe interessava e lhe movia enquanto artista-
criador. Aquilo que desejava dizer em cena.
Neste ponto, acredito ser pertinente destacar a importância que a imagem da fita
de Mobius - espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita,
após efetuar meia volta em uma delas – simbolizava para mim durante este processo.
Representando um caminho sem início ou fim que, embora aparente ter dois lados,
possui apenas um, esta imagem servia-me como metáfora para nós, discentes/docentes
ou artistas-criadores, que, concomitantemente, como seres sensíveis e culturais3
levávamos nossas inquietações pessoais e sociais para nossa criação.
Muitas foram as temáticas abordadas, tanto por nós, docentes, como pelos
discentes nos encontros dedicados a escolha do tema sobre o qual trabalharíamos. Entre
estas destacam-se, por exemplo: o abuso sexual infantil, a morte, a necessidade de se ter
um final feliz em uma história infantojuvenil, a homossexualidade, o poliamor, a
fetichização da figura feminina na indústria de propagandas, entre outras. Esta
pluralidade de interesses nos fez deparar com a necessidade de escolher um único tema
de interesse comum à turma. E ele foi as estruturas familiares.
3
Terminologias que se referem às diferentes facetas que integram e constituem o ser humano, e utilizadas
neste texto a partir da leitura do livro de Fayga Ostrower indicado nas referências deste artigo.
378
Este tema, naquele momento tão explorado nas mídias 4, revelou-se, com um
olhar mais apurado, provocador e desafiante para uma criação artística que procurava
fugir de clichês sobre o assunto, e possibilitou que muitas discussões, no que diz
respeito à sua essência - as múltiplas configurações das famílias contemporâneas -, e às
questões que se desdobram de sua exploração – como, por exemplo, as questões de
gênero(s), que serão apresentadas neste texto – tomassem conta de nossos encontros em
sala de aula. Um tema que, tal como desejávamos no começo de nossas atividades do
semestre, mobilizava efetivamente os estudantes tanto em suas esferas sensíveis, quanto
culturais/sociais.
A respeito deste desejo, a fala de uma das discentes – Gabriela Neves - de
Teatro Infantojuvenil, registrada em seu texto de finalização do semestre, contido em
seu diário de bordo, torna-se importante ao revelar que o processo de construção do
conhecimento na unidade curricular atravessou ―os muros‖ do contexto acadêmico e se
expandiu-se para o seu cotidiano, invadindo o seu dia a dia. O que, revendo os diários
de bordo de outros estudantes ou artistas-criadores, parece ser uma constante. Nas
palavras de Gabriela:
IV
5
Vocábulos utilizados pela dramaturga canadense Suzanne Lebeau no artigo que compõe as referências
deste trabalho.
380
[...] eu não tinha ainda me dado conta que a questão do tema tabu na infância
é algo muito presente e inquietante artisticamente. Em minha vida, eu passei
depois de minha infância, pensando ou ouvindo o que poderia ser dito na
frente das crianças, mas isso é tão culturalmente intrínseco... (LOURENÇO,
2015, não paginado)
Para além do tema tabu estruturas familiares, percebo hoje que outros tabus tão
discutidos em sala de aula também foram para a cena em nosso exercício. E isto se
refere às configurações que quebram os cânones das produções voltadas para as jovens
gerações, no ocidente. Ou seja, a linguagem cênica também foi discutida no exercício
em questão em sua(s) constituição/forma-conteúdo, assim como, por meio das relações
formais que interligam os constituintes e os significados do espetáculo.
Conforme relata a americana Manon van de Water, uma das principais
pesquisadoras de teatro voltado para crianças e jovens no contexto internacional, em seu
artigo Tabúes en teatro para niños y jóvenes: una introducción, publicado no Boletín
Iberoamericano de Teatro para la infância y la juventude nº 9 (2011) – publicação da
ASSITEJ referida a pouco-, os tabus na cena infantojuvenil podem estar presentes na
própria morfologia, assim como na sintaxe e na semântica de uma produção. Para
Manon:
6
Por motivos de logística três foram as famílias convidadas. No entanto, apenas duas puderam estar
presentes. Sendo uma constituída por um pai, uma mãe e três filhos (duas meninas e um menino); e a
outra constituída por duas mães e um filho.
382
letivo, obtivemos - discentes e os docentes- alguns retornos sobre a criação, e, ainda,
pudemos nos questionar sobre o que vínhamos levando à cena.
Uma destas questões abordadas nesta conversa com o público após o ensaio
aberto foi a presença do amor, em sua acepção que evoca o relacionamento a dois -
encontro entre dois seres - e sexual, em todas as cenas que construímos – e daí vem a
interrogação que compõe o título de nossa criação: ―Porque só de amor?‖. Por que esta
abordagem, se nem sempre encontramos o amor em nossas vidas? Podemos ser felizes
e solteiros para sempre! foram uma das perguntas e uma das exclamações – expressa
em outras palavras – por uma das crianças em nosso primeiro encontro.
No entanto, as questões começaram a ficar ainda mais complexas adiante! Por
que todas as vezes que representávamos casais homossexuais, ou melhor, núcleos
familiares formados por homossexuais, recorríamos às Formas Animadas (em especial
aos objetos), enquanto que os casais heterossexuais ou os núcleos familiares formados
por heterossexuais eram representados diretamente pelos atores, sem intermediação de
objetos? foi a pergunta feita por uma das mães presentes neste encontro.
Durante certo tempo refleti sobre o porquê desta nossa atitude, por vezes
inconsciente, e que alteramos em cena para a apresentação final. Hoje, acredito que uma
possível resposta esteja em nossa autocensura enquanto criadores, tal como explicitado
neste texto mais acima. Como membros de uma sociedade em que, por vezes, o padrão
heteronormativo7 é inquestionado, o reproduzimos sem nos darmos conta. E, mesmo
evidenciando a possibilidade de existência de diferentes famílias – não constituídas
necessariamente por homoparentais ou por membros ligados por relações sexuais – de
certo modo, para nós artistas-criadores, era um tabu levar casais homossexuais à cena.
Como solução para a questão, propomos - eu e Ricardo - que todos os casais
apresentados durante o exercício fossem representados e apresentados por Formas
Animadas – ―coisas e trecos‖ – afim de que equalizar as diferenças entre casais
heterossexuais e homossexuais, sem que, no entanto, deixássemos de destacar as
particularidades e as diversidades que constituem os indivíduos que os formavam. Deste
7
Termo utilizado para se referir aos mecanismos por meio dos quais a norma heterossexual incide sobre
os sujeitos nas relações sociais, negando ou marginalizando a existência de múltiplas formas de
sexualidades, nas quais a heterossexualidade é uma das possibilidades. Sobre este tópico, o curta-
metragem Shame no more (1999), indicado nas referências deste trabalho constitui um interessante ponto
de partida para discussões sobre o tema.
383
modo, exploramos as possibilidades de constituição de famílias de objetos, através de
similaridades entre função, cor, tamanho, natureza do material constituinte e etc.,
conforme os espetáculos de Teatro de Objetos8 nos apresentam.
A respeito desta solução, cabe aqui destacar que na primeira cena do exercício
cênico, um casal de ―coisas‖ – dois seres representados e apresentados por uma atriz e
um ator metamorfoseados entre sacos de pano – contava a um entrevistador sobre seu
relacionamento, destacando como se conheceram, quais os planos para o futuro e etc.,
explorava o recurso de subversão da constituição dos gêneros9. Em outras palavras, não
nos apoiando na caracterização dos atores através de roupas – inseridas no contexto
binário masculino-feminino -, nem em gestos, olhares, ou estilística/estética corporal,
tentamos burlar o aprisionamento da representação do casal como homossexual ou
heterossexual, afirmando-o apenas como seres que se amam e escolheram estar juntos.
VI
Contudo, o caso relatado acima não foi apenas o único tabu – ligado às
questões de gênero – em nosso exercício e questionado em nosso primeiro encontro
com o público. Em outra cena, trabalhávamos com diferentes casais que constituíam
diferentes núcleos familiares. Para isso utilizávamos talheres (garfos para representar e
apresentar homens, e colheres para representar e apresentar mulheres). Logo no ensaio
aberto, uma questão sobre a manipulação destes utensílios domésticos nos foi colocada
por outra criança. E, esta se referia à necessidade de os atores ou as atrizes que
manipulavam os talheres serem do mesmo gênero que os objetos com os quais
trabalhavam, para que, assim, o espectador pudesse ter um maior número de
ferramentas que auxiliassem sua leitura.
Sendo assim, na cena, seguimos a recomendação de nosso espectador, e dois
atores passaram a manipular dois garfos, assim como, duas atrizes a manipular duas
colheres, estabelecendo relações entre si, e indicando a formação de dois casais
8
Para maiores informações sobre esta expressão teatral, consultar o artigo de autoria de Sandra Vargas
indicado nas referências deste trabalho.
9
Para maiores informações sobre questões de gênero(s), consultar o livro com organização de Guacira
Lopes Louro indicado nas referências deste trabalho.
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homossexuais. Um formado por dois garfos, e outro por duas colheres, como é de se
supor. A respeito deste fato, a discente Roberta Liz evidencia em seu diário de bordo a
importância da troca de olhares entre as manipuladoras para que o estabelecimento da
relação amorosa entre as colheres pudesse ser convincente e clara em cena. O aspecto
que poderia parecer um tabu, à primeira vista, é tido como essencial para configuração
da poética da cena, tanto para o público, quanto para a discente. Para Roberta, ―o casal
homossexual não é claro. Se as duas manipuladoras se olharem na hora do ―namoro‖
talvez identifique esta leitura‖. (LIZ, 2015, não paginado).
Ainda a respeito desta cena, é interessante observar um trecho dos escritos do
diário de bordo da discente Giovanna Parra, referente à mesma cena, mas com relação
ao casal homossexual formado pelos dois garfos – manipulados por dois atores -, que,
em determinado momento, estabeleciam uma atividade sexual. Aos olhos da discente,
até a apresentação final do exercício, isto era um tabu. Sobre a cena, Giovanna tece esta
primeira consideração:
Acho super bonito o encontro deles e tudo mais, porém no momento em que
era pra ser o sexo o (nome do manipulador) bate os dois garfos para fazer o
barulho. Contudo é clara a imagem de um homem atrás do outro e do
movimento repetitivo. (PARRA, 2015, não paginado).
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Em tempos nos quais a informação não encontra barreiras para sua veiculação,
a criança e o jovem parecem não estarem excluídos deste contexto. Sendo assim, levar
ao teatro temas tabus, como as questões de gênero(s), não parece ser uma novidade, mas
sim, a possibilidade de que assuntos do cotidiano da sociedade como um todo –
crianças, jovens, adultos e idosos – sejam discutidos, pensados, repensados e
reformulados... E deixando de estarem à margem, não sejam mais tabus.
Referências:
BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2009.
WATER, Manon van de. Tabúes en teatro para niños y jóvenes: una introducción.
Boletín Iberoamericano de Teatro para la infância y la juventude, ASSITEJ –
Espanha, 2011, nº 9, p.31-44. (Tradução nossa)
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