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JOSÉ LUIZ DE MORAIS

ARQUEOLOGIA
DA REGIÃO
SUDESTE

JOSÉ LUIS DE MORAIS


Museu de Arqueologia
e Etnologia
Universidade de São Paulo
E-mail:
jlmorais@uol.com.br

194 REVISTA USP, São Paulo, n.44, p. 194-217, dezembro/fevereiro 1999-2000


screver sobre a arqueologia das regiões

E brasileiras, especialmente a da Região


Sudeste, é uma tarefa ingrata por vários
motivos. Um deles é que o recorte regional
oficialmente estabelecido está longe de contemplar
uma possível homogeneidade ambiental físico-
biótica e socioeconômica, pertinente ao que seria
uma regionalização de facto. Neste caso, os limites
convencionais da região cercam um conteúdo que
me parece um “ornitorrinco geográfico”. Outro mo-
tivo é que construir sínteses regionais será, sempre,
postura eivada de conotações particulares, muito
presas à visão do autor que ouse empreender tal
tarefa. Assim, ao sabor de tais características (ten-
tando bem digeri-las ou, melhor, adequando-as às
prerrogativas que permeiam minha ousadia), propo-
nho não simplesmente elencar as iniciativas que de-
senharam o estado d’arte da investigação arqueo-
lógica regional: por meio de um texto que, espero,
ágil e sucinto, enfatizarei, antes de tudo, problemas
e questões relativas à práxis arqueológica e ao povoa-
mento regional nos limites do recorte oficialmente
estabelecido, centradas nas especificidades da disci-
plina em epígrafe. Isso talvez confira à última parte
desta colaboração um caráter de maior importância.
Certamente, sempre que possível, situações e casos
correntes na literatura arqueológica regional irão
alavancar pressupostos ou posturas ventiladas. As-
sim, não espere o leitor elucubrações profundas a
respeito da arqueologia da Região Sudeste. Há tra-
balhos já publicados, dentre os quais destaco o de
Prous (1991) ou de Beltrão (1978), que poderiam
melhor espelhar uma visão sucinta de projetos ou do
estado d’arte da arqueologia regional.

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Convém pontuar que a estrutura da pu- posição astronômica abrange latitudes que
blicação em que esta contribuição se encai- vão desde, aproximadamente, 14º S até 25º
xa houve por bem outorgar identidade pró- S. Associada ao relevo, esta posição astro-
pria à faixa litorânea da Região Sudeste, nômica responsabiliza-se pela maior parte
destacando-a para formar um compartimen- das características que tornam o Sudeste
to único envolvendo a faixa litorânea da uma região de transição ambiental. E a
Região Sul. À primeira vista, tal postura geografia física coloca, com propriedade, as
pode parecer claudicante. Todavia, ela ga- grandes unidades ambientais que caracteri-
nha sentido quando se percebe que a inten- zam este espaço do subcontinente, como
ção foi salientar os importantes episódios apresentarei adiante, pontuando minha abor-
que resultaram na formação dos sambaquis dagem no relevo e nas condições climáticas
do litoral meridional brasileiro (balizado e fitogeográficas. Antes, porém, quero dei-
pelo Cabo de São Tomé, RJ, e pela foz do xar claro que, ao colocar as características
Arroio Chuí, RS). Assim, evitarei ao máxi- ambientais regionais, não estou ensaiando
mo, por motivos óbvios, menções à disper- uma abordagem geoarqueológica ou
são do povoamento pré-colonial pela faixa interdisciplinar, como em um trabalho aca-
litorânea da Região Sudeste. dêmico. Estou, sim, transitando pelas diver-
gências anteriormente mencionadas como
cenário de uma tentativa de organização
territorial aplicada à disciplina.
ENTENDENDO A PAISAGEM
REGIONAL: ESPAÇOS DE TRANSIÇÃO
O RELEVO COMO CONDICIONANTE
AMBIENTAL
DE APROPRIAÇÃO TERRITORIAL
Uma postura crítica relativa ao desenho
regional do país deve vir acompanhada de No Sudeste, o recorte entre ambientes
justificativas palpáveis embasadas nas di- litorâneos e interiores difere bastante no
vergências de ordem ambiental que, por sentido norte-sul. Ao norte do Rio Doce,
ironia, acabaram por dar certa identidade, no estado do Espírito Santo, a planície cos-
até certo ponto plausível, àquilo que é co- teira é bastante larga (reflexo da interiori-
nhecido por Sudeste. E o viés arqueológico zação da Formação Barreiras, composta
acaba por acentuar as críticas a este dese- por arenitos) e o acesso às terras mais ele-
nho: de fato, sob o enfoque do povoamento vadas do planalto se faz gradativamente,
pré-colonial, evidencia-se ainda mais a fra- por meio de uma sucessão de patamares
gilidade do contorno territorial do espaço modelados nos terrenos cristalinos (IBGE
geográfico da região. Trazendo o que foi 1977). Na porção centro-meridional a si-
afirmado anteriormente, só será possível tuação muda drasticamente pela presença
entender a Região Sudeste pelas transições da Serra do Mar: a transição é brusca e a
que se fazem presentes no ambiente físico- escarpa vez por outra vem diretamente ao
biótico e nas desigualdades relativas ao oceano ou, quando recua, deixa um colar
meio ambiente socioeconômico, da Pré- de pequenas planícies litorâneas limita-
História aos dias de hoje. E o aparato que das por esporões.
compõe o acervo científico correlato à Um pouco diferente é a situação no
práxis arqueológica bem demonstrará tal extremo sul da região, onde o curso médio-
diversidade (aliás uma diversidade que inferior do Rio Ribeira, no estado de São
poderá ser estendida à própria práxis). Paulo, percorre largo trecho de planície li-
A Região Sudeste do Brasil é composta torânea. Aí, a Serra de Paranapiacaba (nome
por quatro estados: Espírito Santo, Minas regional da Serra do Mar) afasta-se para o
Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Sua interior, possibilitando o desenvolvimento

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do complexo estuarino-lagunar do eixo da por “chapada”. De fato, na zona dos
Iguape-Cananéia-Paranaguá, nos limites chapadões, o relevo apresenta aspecto ta-
com a Região Sul. bular, em função da constituição geológica
Os grandes domínios morfoestruturais dos arenitos de idade cretácea.
do interior da Região Sudeste podem ser
caracterizados pela presença de dois con-
juntos distintos: os terrenos cristalinos da
fachada oriental, com superfícies modela-
OS FATORES CLIMÁTICOS E
das em rochas do complexo arqueozóico-
proterozóico e os chapadões sedimentares
FITOGEOGRÁFICOS
de idade paleozóica e mesozóica (Cunha e
Guerra 1998). No primeiro caso, destacam- Além dos efeitos da latitude, a topogra-
se, dentre outras, unidades menores como fia acidentada e o sopro contínuo dos ven-
os bordos orientais do embasamento cris- tos alísios condicionam a distribuição dos
talino, conhecidos como Serra do Mar e climas regionais. Importantíssimo é o fato
Serra da Mantiqueira (esta, na realidade, de a região estar na faixa de latitude onde
um segundo degrau do Planalto Oriental mais freqüentemente se verifica o choque
Brasileiro). Melhor descrição desta entre os sistemas de altas tropicais e de altas
morfologia colocaria a Serra do Mar como polares, que se dá em equilíbrio dinâmico
o degrau do Planalto Atlântico, que se de- (IBGE 1977). Todas estas características
senvolve principalmente em território marcam definitivamente o caráter transi-
paulista, e a Serra da Mantiqueira como cional do clima regional expresso, princi-
degrau do Planalto Sul-Mineiro. palmente, no seu regime térmico. O quadro
Encaixadas em fundos de depressões climático abrange os seguintes domínios:
tectônicas, existem algumas bacias sedi- • Quente (noroeste paulista; Triângulo
mentares, como a do Paraíba do Sul e a de Mineiro; região do São Francisco, a partir
São Paulo. Mais para o norte da região, do Reservatório de Três Marias; vertentes
em território mineiro, marcam presença das bacias atlânticas de Minas e Espírito
altas superfícies modeladas em rochas Santo e litoral do Rio de Janeiro).
proterozóicas. São deste compartimen- • Subquente (interior paulista e Planalto
to os terrenos que funcionam como di- Mineiro).
visores entre a bacia do Rio São Fran- • Mesotérmico (trechos serranos de São
cisco e os rios que drenam diretamente Paulo e Minas Gerais).
para o Atlântico. A pluviosidade se encarrega de com-
Os relevos modelados em rochas pletar o quadro das diferenças. Assim, será
sedimentares, presentes no território do possível discriminar peculiaridades no
Sudeste, pertencem a duas unidades distin- âmbito dos domínios climáticos. Neste
tas: a Bacia Sedimentar do Paraná e a Bacia caso, dentro do domínio clima quente, ha-
Sedimentar do São Francisco. A Depressão veriam de ser separados o noroeste paulista,
Periférica e o Planalto Ocidental Paulista, o Triângulo Mineiro e a região do São Fran-
subunidades da primeira, apresentam teste- cisco, com características de clima Aw
munhos de um dos grandes episódios vulcâ- (quente, com duas estações – seca e úmida
nicos que afetou o planeta, na Era Mesozóica – bem definidas), das vertentes das bacias
(cerca de 130 milhões de anos atrás). No alto atlânticas mineiras, capixabas e flumi-
São Francisco, as rochas possuem estrutura nenses, com características de clima Af
complexa, desde aquelas intensamente (quente, com chuvas melhor distribuídas
granitizadas, até pacotes sedimentares. no decorrer do ano).
A vertente oeste da bacia hidrográfica Afetando o mecanismo atmosférico que
do São Francisco integra-se inteiramente atua na região, o relevo determina uma série
no Planalto Central Brasileiro e sua nota de variedades, caracterizando o Sudeste
característica é a forma de relevo conheci- como aquela região brasileira que possui

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maior diversidade climática. Esta notável nal tem trazido novas e importantes ques-
diversificação vem desempenhando papel tões em torno da dispersão do povoamento
muito importante na distribuição do povoa- indígena. Por exemplo, não há como negar
mento regional, desde a Pré-História. a melhor integração das coisas da arqueolo-
A vegetação do Sudeste é variada, indo gia paulista com a dos estados da Região
desde as formações típicas do semi-árido, Sul. Ou a necessidade de prover melhor iden-
no norte do estado de Minas Gerais, até tidade para o território que envolve a arqueo-
aquelas caracterizadas pelas condições de logia do Planalto Central Brasileiro, que
superumidade, como no litoral do estado anexaria toda a vertente ocidental do São
de São Paulo. A qualidade do solo e o rele- Francisco, convencionalmente na Região
vo (notadamente as escarpas de serra) exer- Sudeste. Sem contar com a identidade pró-
cem papel importante na distribuição da pria atribuída ao litoral que, somado ao da
flora. Apesar da densidade de ocupação e Região Sul, formaria um compartimento
do nível de desenvolvimento econômico homogêneo, pelo menos no sentido da dis-
da região, há algumas faixas, especialmen- persão das populações sambaquieiras.
te nas regiões serranas, cuja vegetação ain-
da permanece no seu estado nativo, como
é o caso da Serra do Mar.
Grosso modo, as unidades fitogeo- ARQUEOLOGIA REGIONAL: UM
gráficas regionais se sucedem em extensas
faixas, do Atlântico para o interior. Ultra- PANORAMA COMPLEXO
passada a faixa de vegetação tipicamente
litorânea, estende-se o domínio da floresta Não seria o caso de abordar aspectos
ombrófila densa que, no extremo meridio- históricos da investigação arqueológica
nal, compete com as expressões mais se- feita na Região Sudeste: a eficácia da com-
tentrionais da floresta ombrófila mista (a preensão só se faria presente se tal aborda-
Mata das Araucárias, cuja área nuclear está gem fosse feita considerando os aspectos
na Região Sul). A floresta estacional nacionais como um todo.
semidecidual compõe faixa contígua, De qualquer maneira, começo por desta-
respingada por manchas de cerrado, cuja car a precoce atuação regional do Pronapa
faixa se desenvolve plenamente na metade (Programa Nacional de Pesquisas Arqueo-
noroeste da região. No extremo centro-norte lógicas), mais popular no Rio de Janeiro e
marca sua presença a manifestação mais no Espírito Santo (em São Paulo e Minas
meridional da caatinga, cuja área nuclear Gerais, esta presença, menor, fez-se mais
está na Região Nordeste. pela ação de instituições externas aos esta-
A oferta deste background relativo aos dos). Hoje muito criticado pela geração mais
principais aspectos do meio físico-biótico jovem, acabou por “diagnosticar” várias
do Sudeste não teve o propósito de fomen- fases culturais componentes de tradições
tar questões ou afirmações ligadas à distri- arqueológicas regionais ou de abrangência
buição do povoamento pré-colonial nos mais ampla. Nos estados citados, tanto no
seus limites. Sua apresentação objetivou, litoral como no interior, ações promovidas
outrossim, o vislumbre da plataforma pelo IAB (Instituto de Arqueologia Brasi-
ambiental que justifica as afirmações liga- leira), com sede no Rio de Janeiro, acaba-
das à artificialidade do seu contorno. ram por compor um quadro de fases ainda
Assim, à vista das condicionantes natu- hoje bastante populares. Salvo melhor juízo,
rais, que sempre tiveram muito a ver com o Museu Nacional da Universidade Federal
as formas, mudanças e adaptações das so- do Rio de Janeiro houve por bem não per-
ciedades antigas, o Sudeste pré-colonial po- correr tal caminho (Kneip 1977).
deria muito bem ser repartido entre as re- No meu entendimento, a influência da
giões que lhe são limítrofes (Figura 1). De “escola” francesa foi marcante no meio
fato, a consolidação da investigação regio- acadêmico regional, principalmente na

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FIGURA 1
ARRANJO GERAL DOS SISTEMAS REGIONAIS DE POVOAMENTO

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Universidade de São Paulo (as pesquisas gações levadas a efeito por Celso Perota,
coordenadas por Luciana Pallestrini são, então da Universidade Federal do Espíri-
talvez, o melhor exemplo). Em Minas Ge- to Santo, e alguns outros pesquisadores,
rais, a região de Lagoa Santa é um caso à quando foram identificadas algumas fa-
parte: desde os primeiros achados feitos ses culturais ao estilo Pronapa, os levanta-
por Lund, o local ganhou destaque como mentos adentraram estado letárgico. Ape-
a mais importante estação arqueológica sar da exigüidade de informações a res-
do país. Além de algumas incursões de peito da arqueologia do Espírito Santo, há
equipes mistas brasileiro-americanas, lá elucubrações interessantes, como a sinto-
se fez sentir a ação direta de Mme. Annette mática existência de pontas de lança no
Emperaire, cujo trabalho foi bruscamente interior do estado, cuja tipologia, segundo
interrompido pela sua morte repentina, em Beltrão (1974), estaria claramente vincu-
1976. Com a ausência de Mme. Emperaire, lada a outras pontas encontradas no inte-
a arqueologia mineira descentralizou sua rior de São Paulo (entenda-se a região de
atuação: a universidade, utilizando a pla- Rio Claro). Todavia, tal assunto carece de
taforma adquirida na parceria com a mis- maior aprofundamento, a partir do melhor
são franco-brasileira, acabou por associ- entendimento dos sistemas regionais de
ar-se à Universidade de Alberta (Canadá). assentamentos de caçadores-coletores.
Para a região de Lagoa Santa e da Serra do Minha impressão “geopolítica” a res-
Cipó foram relevantes as pesquisas em peito da arqueologia do Rio de Janeiro (e,
tecnologia lítica realizadas por Prous e sua mesmo, do Espírito Santo) é que ela é
equipe. freqüentemente entendida como uma ar-
Hoje, a Universidade Federal de Mi- queologia tipicamente “litorânea”, funcio-
nas Gerais está concluindo um relatório nando como contrapeso à arqueologia mi-
final correspondente a vinte anos de pes- neira, tipicamente “de interior”. Isso por-
quisas na bacia do São Francisco médio- que permeia nas entrelinhas da literatura
superior (regiões de Peruaçu e Montal- arqueológica corrente uma forte ligação
vânia). Estão previstas a elaboração de entre as arqueologias dos três estados: apa-
monografias sobre os sítios arqueológi- rentemente, Rio de Janeiro e Espírito San-
cos, análises de artefatos, restos alimenta- to funcionam como “compartimentos li-
res. Abordagens ligadas à paleobotânica e torâneos” de Minas Gerais e este como
arte rupestre, dentre outras atividades, “compartimento interiorano” dos dois pri-
também estão sendo encaminhadas. Vá- meiros. Na minha opinião, isso coloca o
rios pesquisadores encontram-se envolvi- fulcro das preocupações arqueológicas
dos em pesquisas arqueológicas por con- capixabas e fluminenses (pelo menos no
trato. Tecnologia pré-histórica e arte nível das instituições) muito mais afeito
rupestre são as duas principais linhas de às coisas do litoral que à arqueologia do
pesquisa em desenvolvimento na UFMG, interior, esta, sim, com seu foco nuclear
segundo André Prous (comunicação pes- nas alturas do Planalto Mineiro. Uma boa
soal 1999). síntese da Pré-História do Rio de Janeiro
A Universidade de São Paulo também pode ser encontrada em Gaspar (1997).
se faz presente em parte do território mi- No estado de São Paulo, o grosso do
neiro, principalmente no Triângulo, por volume das investigações arqueológicas
meio de projetos regionais de inspiração tem ficado a cargo da Universidade de São
francesa, responsáveis pelo levantamento Paulo (a Unesp, por meio de seu campus
de aldeias guaranis pré-coloniais na mar- de Presidente Prudente, vem ganhando
gem esquerda do Rio Paranaíba (Alves et corpo nesta atividade, nos últimos dez
al. 1999). anos). Grandes projetos institucionais
Ao que parece há, hoje, carência quase abrangendo segmentos das bacias
absoluta de pesquisas arqueológicas no hidrográficas estão implantados há mais
estado do Espírito Santo. Após as investi- de três décadas (Morais 1999). Os resulta-

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dos até agora obtidos, como frisei anteri-
ormente, indicam forte relação da arqueo- INTRODUÇÃO À SÍNTESE DOS
logia paulista com as “tradições” pré-ce-
râmicas e cerâmicas do Brasil meridio- SISTEMAS REGIONAIS
nal. Também é muito forte, no estado, a
tendência de se colocar as coisas relativas DE POVOAMENTO
à arqueologia sob o viés patrimonial (isto
é, como herança cultural das comunida- O pensamento pronapiano relativo a
des do passado), inseridas na problemáti- “fases” e “tradições” arqueológicas indica
ca ambiental (a arqueologia enquadra-se que estes conceitos são considerados “uni-
prontamente no meio ambiente socioe- dades arqueológicas artificiais”, que não
conômico e cultural). Esta visão deve-se, podem ser confundidas com culturas, con-
certamente, às prerrogativas estabelecidas siderando que, na maioria dos sítios arqueo-
pelos projetos e profissionais que atuam lógicos (principalmente os pré-cerâmicos),
sob a égide da chamada “arqueologia de as condições ambientais reduziram os ele-
contrato” (mais apropriadamente uma mentos da cultura material a raros vestígi-
“arqueologia por contrato de prestação de os (Kern 1981). Na minha opinião, esse
serviços”). pensamento é válido nos estreitos limites
Não há de se esquecer que a crescente de uma modesta arqueografia per se. Ex-
homogeneidade da qual se investe a ar- plico: a idéia de “fase” e “tradição” apóia-
queologia paulista deve-se, primordial- se em objetos e, vez por outra, em algumas
mente, à reunião dos programas e profis- características físicas do registro arqueo-
sionais em uma única instituição, que é o lógico, como chamou a atenção Caldarelli
Museu de Arqueologia e Etnologia, e que (1983). Ora, os objetos são meios e, na mi-
sua vocação de “fazer escola” prende-se à nha opinião, geram classificações aplicá-
presença, na USP, do único curso de pós- veis a eles próprios. Então, fica difícil trans-
graduação de Arqueologia stricto sensu por a idéia de uma “unidade arqueológica
do país. artificial”, gerada a partir do artifício de
Além da Unesp, campus de Presidente uma seriação, para algo complexo e muito
Prudente, o Núcleo de Arqueologia Braz “humano”, que é um sistema de povoamen-
Cubas, sob a coordenação de Margarida to ou de ocupação de um território.
Davina Andreatta, vem se destacando A partir dessa premissa, assumo a não-
como centro emergente em arqueologia utilização dos termos “fase” e “tradição”
histórica. O mesmo poderá ser dito com arqueológica, posto que eivados de um
relação ao Laboratório de Arqueologia da artificialismo classificatório de todo incom-
Unisantos, sob a tutela de Eliete P. B. patível com uma disciplina que busca, den-
Maximino. tre outros propósitos, levantar e analisar o
Assim como ocorre em outras regiões cotidiano das comunidades do passado.
brasileiras, popularizam-se na Região Su- Certamente, a arqueografia que inventou
deste os projetos de resgate do patrimônio (e denominou) “fases” e “tradições” arqueo-
arqueológico em áreas impactadas por lógicas acabou por distinguir característi-
empreendimentos potencialmente lesivos cas peculiares em conjuntos de materiais
ao meio ambiente. Nessa vertente, desta- arqueológicos, e isso é aparentemente lou-
cam-se as situações em território paulista, vável. Mas não deve parar aí.
que vão desde a duplicação de rodovias até Quisera eu que a chamada “Tradição
a implantação de grandes reservatórios de Umbu” tivesse sido definida não pela pre-
hidrelétricas, passando por projetos de ur- sença de um “traço-diagnóstico”, um uten-
banização. Não é, portanto, de se estranhar, sílio típico, a ponta-de-projétil (quase um
que os maiores escritórios de arqueologia fóssil-guia), mas pela cadeia operatória que
que prestam serviços mediante contrato es- o produziu, plenamente inserida nas suas
tão sediados em São Paulo. condicionantes sociais e ambientais. Se

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existe algo chamado “Umbu”, “Humaitá” foram alguns dos fatores que influenciaram
ou “Itararé”, que seja entendido como um a distribuição do povoamento, desenhando
sistema regional de povoamento. Também os padrões de assentamento.
penso não ser correto aglutinar tupis e gua- A coordenação entre sítios ou conjun-
ranis pré-coloniais (no plural, como qual- tos de sítios de certa região, demonstrando
quer outro gentílico da língua portuguesa) relações concomitantes por contempo-
sob o estranho rótulo “tupiguarani” (sem raneidade, similaridade ou complementa-
hífen), como se a cerâmica arqueológica ridade, define um sistema regional de po-
pudesse ser um fator de fusão entre dois voamento. Por exemplo, um conjunto de
povos. A arqueologia não deve, simples- sítios de caçadores-coletores que, embora
mente, preocupar-se com a organização e o bastante espalhado geograficamente, man-
agrupamento de cacos. Que algumas solu- tém alguma coesão. O conjunto de sítios
ções tenham sido válidas em alguns mo- coordenados pela proximidade de um fator
mentos é aceitável. Todavia, não há por comum, de qualquer natureza, constitui um
que insistir em mantê-las nos dias de hoje. sistema local de sítios arqueológicos. Por
Então, discorrerei superficialmente a exemplo, o conjunto de sítios de caçado-
respeito dos sistemas regionais de povoa- res-coletores e de agricultores, cujas co-
mento pré-colonial da Região Sudeste. munidades utilizaram a mesma fonte de
Certamente minha base operacional será o matéria-prima para suas indústrias líticas
que existe a respeito das grandes “tradi- (Morais 1999).
ções” arqueológicas (como afirmei anteri-
ormente, há algo a ser louvado em termos
dessa organização e, embora percorra este
caminho, não estarei simplesmente substi- SISTEMAS REGIONAIS
tuindo o termo “tradição” por “sistema re-
gional de povoamento”). Antes, porém, DE CAÇADORES-COLETORES
tomarei a liberdade de relembrar alguns
conceitos básicos da disciplina arqueoló- A partir deste ponto, proponho uma
gica que têm fundamentado os preceitos da descomprometida síntese do povoamento
arqueologia regional, tais como análise pré-colonial da Região Sudeste, arrematan-
espacial, padrão de assentamento, siste- do o que considero os grandes sistemas
ma regional de povoamento e sistema lo- regionais de povoamento. Selecionei, do
cal de sítios arqueológicos. universo de caçadores-coletores e de agri-
A análise espacial tem seu nicho na cultores de subsistência, algumas situações
geografia moderna e seu ponto de partida e casos que considero importantes: ora são
tem sido o uso de mapas de distribuição de determinadas regiões (como é o caso de
sítios ou de artefatos, associado ao exercí- Lagoa Santa), ora são sistemas de povoa-
cio de rigorosas técnicas matemáticas e mento, nos moldes antes delineados. Situa-
estatísticas (Chorley e Haggett 1974, 1975a, ções menores (em termos de tempo e de
1975b; Hodder 1976, Clarke 1977). Muito espaço), a despeito da eventual importância
a gosto da corrente processualista, resulta microrregional ou local, serão apenas venti-
no reconhecimento sistemático dos padrões ladas quando se fizer uma oportunidade.
espaciais dos dados arqueológicos.
Padrão de assentamento é a distribuição
de sítios arqueológicos em determinada área
geográfica, refletindo as relações das comu- LAGOA SANTA
nidades do passado com o meio ambiente e
as relações entre elas próprias no seu con- A região de Lagoa Santa, no estado de
texto ambiental (Yoffee e Sherratt 1997). Minas Gerais, contém as mais tradicionais
Estratégias de subsistência, estruturas polí- estações arqueológicas do país. Com o
ticas e sociais e densidade da população passar do tempo, cedeu grande parte de seu

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brilho à região de São Raimundo Nonato, quisadores, principalmente Maria Beltrão,
no estado do Piauí. Muito recentemente, em 1964, contém o Sítio Alice Boër, ainda
todavia, o batismo de “Luzia” por Walter uma controvérsia, segundo alguns autores.
A. Neves recuperou, em parte, a vocação Numa seqüência estratigráfica perturbada
jornalística de Lagoa Santa. Desde as esca- foram encontrados materiais líticos com
vações pioneiras realizadas por Lund, pas- técnica de fabricação aprimorada (Beltrão
sando por Hurt e por Mme. Emperaire, a 1974). A datação de 14.200 anos antes do
região tem demonstrado boa combinação presente constitui o foco das controvérsias.
entre dados da megafauna e componentes Perez da Paz (1992) retoma alguns pontos
pleistocênicos de ocupações humanas, o que sobre a região de Rio Claro, principalmen-
lhe deu estatuto de antigüidade, em termos te o que se refere à técnica de produção de
de arqueologia americana. Lá se encontram objetos líticos.
belos exemplos de grutas e abrigos com
sinalações rupestres. Indústrias líticas tam-
bém se encontram presentes, bem marcadas
por raspadores e raspadeiras que são, segun- A INTERAÇÃO UMBU/HUMAITÁ NA
do André Prous, os instrumentos retocados
dominantes na região. O quartzo é a maté- REGIÃO SUDESTE
ria-prima mais utilizada. No dizer de Prous,
“[…] apesar das destruições, a região de À vista dos dados arqueológicos recen-
Lagoa Santa conserva ainda alguns sítios tes e da releitura dos resultados anteriores,
intactos, mas é provável que pesquisas mais reitero que o território paulista é “arqueo-
frutíferas tenham que ser realizadas agora logicamente” meridional, apesar de a orga-
em zonas menos expostas ao vandalismo” nização regional brasileira, fundamentada
(1991:132). Prous e Fogaça (1999) ofere- em preceitos socioeconômicos atuais, tê-
cem uma boa síntese sobre as situações vi- lo colocado na Região Sudeste. Assim, se
gentes no território brasileiro na passagem existiram os episódios arqueológicos qua-
do Pleistoceno para o Holoceno, enfatizando lificados como “tradições do Sudeste”,
situações de Minas Gerais. pouco terão abrangido o território hoje
Os restos esqueletais humanos de La- paulista (Caldarelli 1983).
goa Santa constituem um capítulo especial Caracterizar os caçadores-coletores do
naquele contexto. Relativamente bem con- Sudeste em território paulista significa dis-
servados no ambiente calcário, sua investi- cutir duas “tradições” consolidadas na
gação vem ganhando corpo, reacendida Região Sul, cujo correspondente povoa-
pelas pesquisas internacionais que giram mento talvez tenha avançado para o norte,
em torno de “Luzia”, seu remanescente até as vertentes do Rio Grande, um dos
fóssil mais famoso, que teria traços simila- formadores do Rio Paraná. Falo dos umbus
res às populações da Austrália e da África. e humaitás, sobejamente descritos por ar-
Tal postura muda bastante a cristalizada queólogos gaúchos (Mentz Ribeiro 1999;
hegemonia mongolóide no que se refere ao Schmitz 1999). Na sua região nuclear,
povoamento das terras americanas que, em umbus e humaitás foram definidos e dife-
certo momento, talvez por volta de 12.500 renciados basicamente por suas indústrias
anos antes do presente, tenha recebido le- líticas (para se inteirar de discussões recen-
vas de ancestralidade australo-africana (Ne- tes acerca da crise das “tradições” meridio-
ves e Pucciarelli 1998). nais, sugiro a leitura dos trabalhos de Hoeltz
1997 e Schmidt Dias 1994). Prefiro tratá-
los como integrantes de sistemas regionais
RIO CLARO de povoamento que, segundo as datações
absolutas disponíveis, estiveram no terri-
A região de Rio Claro, no estado de São tório paulista entre 6.000 a.C. e 450 d.C.,
Paulo, que foi investigada por vários pes- aproximadamente (na área nuclear, este

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FIGURA 2
SISTEMAS DE CAÇADORES-COLETORES DO FLANCO MERIDIONAL

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perfil cronológico é bastante diferente). A posto que depende de importantes pré-re-
partir dessa última data, nova ordem social quisitos identificados ao longo da cadeia
e econômica foi imposta pelos guaranis. operatória de processamento dos materiais
Assim se concretizou novo sistema regio- líticos. A cadeia operatória é constituída
nal baseado na agricultura de subsistência pelos diferentes estágios da produção de
e na edificação de grandes aldeias, que um artefato lítico, desde a aquisição da
perdurou até a conquista ibérica, nos matéria-prima (umbus e humaitás do flanco
primórdios do século XVI. meridional da Região Sudeste coletavam
Volto aos sistemas regionais Umbu e matérias-primas nos mesmos locais), a téc-
Humaitá, presentes no flanco meridional nica da sua produção (aí residem diferen-
da Região Sudeste (Figura 2). Separar dois ças entre umbus e humaitás), o seu uso e,
sistemas em um mesmo território, com base finalmente, o abandono do objeto. Ao se
no perfil de pedúnculos de pontas de projé- reconstituir a seqüência operacional, serão
til, perde sentido na medida em que se ob- reconhecidas as escolhas feitas pelo arte-
serva o conjunto das indústrias envolvidas são: sua recorrência permite a caracteriza-
sob a ótica da cadeia operatória e da sua ção das técnicas tradicionais de determina-
ambiência. Assim, convém revisitar alguns do grupo social. De fato, a cultura está
parâmetros correlacionáveis com ambos os expressa nas escolhas que são feitas na se-
sistemas (definidos no território paulista): qüência operacional identificada.
Morfologia e função dos assentamen- A técnica de processamento da indús-
tos: falo dos acampamentos com funções tria lítica abrange a redução primária e a
“habitacionais” ou onde se realizavam ati- redução secundária. A primeira engloba
vidades mineratórias, que resultaram em os procedimentos necessários para trans-
sítios a céu aberto. A determinante para a formar um bloco ou um seixo em núcleo: a
escolha do sítio foi a fonte de matéria-pri- escolha de um percutor duro e pesado, o
ma, geralmente cascalheiras de litologia preparo dos planos de percussão, a percus-
diversificada (sílex, quartzito, arenito são direta ou indireta, a escolha de uma
silicificado) ou afloramentos de arenito bigorna (no caso da percussão indireta). A
silicificado (diques clásticos). redução primária conta com o concurso de
Materiais, técnicas e tipologia: os líticos percutor, bloco e gesto. O produto é o nú-
constituem o traço característico de ambos cleo, fonte de suportes para a fabricação
os sistemas. O elemento separador de am- posterior de artefatos. As lascas preparató-
bos, a partir do olhar sobre as indústrias rias do núcleo são resíduos potencialmente
líticas, é a técnica do processamento da descartáveis. No Sistema Regional Umbu
matéria-prima, diagnosticável por meio da eram produzidos núcleos pequenos, dos
adoção do modelo “cadeia operatória”. quais se retiravam lascas gráceis para a pro-
Seria interessante pontuar um pouco do dução de artefatos leves. No Sistema Regi-
estudo da técnica, na abordagem das indús- onal Humaitá eram produzidos núcleos ro-
trias líticas: ela permeia pela leitura, análi- bustos, lapidados para se transformarem no
se e classificação de todos os objetos líticos próprio objeto. Grandes lascas preparató-
que integram o encadeamento massa inici- rias do núcleo eram retocadas (retiradas
al (matéria-prima) / talhe / debitagem / profundas, amplas) para a produção de ar-
retoque / artefato (uso). A técnica lida com tefatos mais pesados.
o processamento da matéria-prima. A tipo- A redução secundária engloba a produ-
logia classifica o artefato de acordo com a ção de suportes de artefatos, o que inclui as
tecnomorfologia do retoque ou, ainda, lascas (lâminas e lamelas são lascas, gene-
quanto à apropriação de uma forma previa- ticamente). A escolha de percutores menos
mente concebida, a partir do talhe da massa robustos (duros ou macios) insere-se no
primordial. Na análise das indústrias líticas, âmbito desta etapa, bem como as técnicas de
a tipologia sempre estará incluída no es- percussão direta e indireta. A redução se-
pectro maior, que é o estudo da técnica, cundária conta com o concurso de percutor,

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núcleo e gesto. Os produtos são lascas, lâ- várias cotas altimétricas.
minas e lamelas, potencialmente suportes Geologia e geomorfologia: os acampa-
para a confecção de artefatos retocados. No mentos de ambos os sistemas tendem a se
Sistema Regional Umbu da Região Sudeste localizar junto a afloramentos ou depósitos
eram produzidas lascas, lâminas e lamelas de matérias-primas aptas para o lascamento.
como suporte para artefatos bifaciais ou Fitoecologia: a territorialidade dos sis-
unifaciais de pequeno porte, leves. No Sis- temas Umbu e Humaitá, no espaço geográ-
tema Regional Humaitá eram produzidas fico da Região Sudeste, dependeu menos
lascas e lâminas robustas para a fabricação das adaptações ambientais que do
de artefatos maiores, mais pesados. distanciamento das áreas nucleares situa-
A tipologia de artefatos, atitude clas- das mais na Região Sul. Ambos se alterna-
sificatória, mais afeita aos procedimentos ram nos mesmos locais, como comprovam
arqueográficos, cabe em uma pequena por- os vários sítios multicomponenciais das
centagem dos objetos resgatados do regis- bacias do Paranapanema e do Tietê. Ao que
tro arqueológico, constituindo a etapa final parece, a expansão do Sistema Regional
do processo de leitura sistemática do con- Umbu teria alcançado antes o Parana-
junto de documentos líticos. Artefatos eram panema, ultrapassando-o até as vertentes
feitos para algum uso e, portanto, restarão setentrionais da bacia do Tietê. O Sistema
poucos no registro, principalmente as pon- Regional Humaitá teria vindo logo depois,
tas-de-projétil usadas na caça. A maior não ultrapassando as vertentes setentrio-
quantidade de objetos líticos corresponderá nais do Paranapanema. Os pequenos ciclos
aos resíduos do processamento da matéria- de climas quentes e localmente mais secos,
prima (Morais 1983). ocorrentes entre 3050 e 2050 a.C. (Ab’Sáber
Vez por outra são confundidos, pela 1989), talvez tenham refreado a expansão
ausência de cerâmica, acampamentos do umbu para o norte.
Sistema Regional Humaitá com acampa- Parâmetros locacionais: os sítios dos
mentos do Sistema Regional Guarani, em sistemas Umbu e Humaitá podem ser en-
função de semelhanças nas técnicas de pro- contrados indistintamente em terraços,
dução de artefatos líticos. No Paranapa- patamares de vertentes, cabeceiras de nas-
nema médio-superior, não longe dos limi- centes e topos de interflúvios (parâmetros
tes com a Região Sul, os estratos I (aldeia locacionais ligados à função morar, no
do ano 1450 d.C) e II (acampamento do modelo preditivo). Quase sempre estão
ano 920 d.C.) do Sítio Camargo integram- associados a cascalheiras, diques clásticos
se no Sistema Regional Guarani. O estrato ou pavimentos detríticos (locais de extra-
III (acampamento do ano 110 a.C.) inte- ção mineral para a indústria lítica) e
gra-se no Sistema Regional Humaitá. O corredeiras, cachoeiras ou saltos (locais de
estrato IV (acampamento do ano 2700 a.C.) apanha de peixes migratórios).
integra-se no Sistema Regional Umbu.
Todos os estratos estão vinculados à pre-
sença de importantes ocorrências de arenito
silicificado, quer na forma de diques SISTEMAS REGIONAIS DE
clásticos aflorantes ou de cascalheiras. No
vizinho Sítio Camargo 3, misturam-se evi- AGRICULTORES PRÉ-COLONIAIS
dências de lascamento dos três sistemas
sobre piso basáltico com abundantes diques Antes de mais nada, hoje abomino a
e escórias de arenito silicificado. expressão “horticultor” para qualificar as
Hidrografia e topografia: há ocorrên- sociedades pré-coloniais brasileiras (ou
cias de acampamentos dos sistemas Umbu americanas) que praticavam a agricultura,
e Humaitá tanto nas grandes ou pequenas exatamente por concordar com as acepções
calhas fluviais, como em colinas, colos e de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
platôs mais interiorizados, distribuídos por (1983): horticultor é pessoa que se dedica

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