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UM CERTO SENHOR TAL

Tudo começou por causa daquela formiga desgraçada com jeito de


coisa alguma.Desgraçada pelo fato de ser a causa maior de uma obsessão de um homem
que estava a viajar a trabalho num dia qualquer, num país qualquer.Desgraçada e
trissílaba e paroxítona com o maldito acento tônico na penúltima sílaba.
Ocorre que este homem fora acometido por uma estranha sensação
quando estava no avião.Sentia que algo minúsculo escalava lentamente suas pernas e tal
movimento parecia não ter fim.Sacudiu as calças e mexeu o corpo de um lado para o
outro e isto de nada adiantou. Ela estava lá de alguma forma, de alguma maneira, de
algum jeito.Ela ,este pronome reto irritante, lá estava a torturar a mente daquele homem
de hábitos esquisitos. .

Foi no tal avião que o tal homem teve a primeira sensação de prazer
sádico.Observou que a aeromoça estava incomodada com um sapato muito apertado e
que, naturalmente, um calo de dimensões incalculáveis estava a atormentá-la.Forçou
uma situação absurda de modo que a mesma tivesse que ficar em pé.Ele sorria para ela e
ela, mantendo o controle, fazia o mesmo.Ela agora expressava sua dor através de uma
sobriedade sem igual. Ele solicitou os seus serviços algumas vezes e ela resistiu
heroicamente.
Pôde ainda imaginar que o dedo mindinho da mesma já estava a sangrar devido
ao esforço incomensurável exercido naqueles momentos de angústia.Ele mesmo já
havia passado por situação semelhante com seu chefe, com o tal chefe tal, e sentiu na
pele o que é ter que ficar em pé com o dedo mindinho espremido ou transformado em
calo sangrando até o final dos tempos. Trata-se de uma dor constante que vai lacerando
o espírito pouco a pouco.O tal dedo mindinho do pé, literalmente esmagado por um
capricho do destino.
Isto tornava a existência de nosso homem, agora apenas uma entidade equivalente
ao nosso inconsciente coletivo que chafurda no inferno, mais interessante em muitos
aspectos.

Ele,este resto de qualquer coisa em coisa alguma,este resto de


gordura em uma frigideira qualquer de décima categoria,quer colocar as formigas
mortas na sua farofa,pois entende que isto faz bem aos olhos.Ele, este pronome reto sem
maiores perspectivas na vida,quer colocar a cabeça de um peixe na mão cheia de molho
de tomate.Quer que as pessoas se deliciem com aquela visão grotesca.Quer que isto
pareça engraçado.Quer rir quando ninguém à sua volta parece querer fazê-lo.Quer que
os convidados de sua festa falem mais baixo à mesa.Quer que o som das caixas seja
abaixado.Quer que todos rachem o dinheiro utilizado para a realização da tal festa.Quer
que todos bebam pouca cerveja.Quer que todos rezem antes de comer.Quer que todos
riam de suas piadas absolutamente sem graça.Quer falar sobre a vida de Nero.Quer
exaltar as qualidades sanguinárias do Imperador.Quer provar a todos que Nero jamais
esteve envolvido no incêndio que assolou a cidade.Quer provar a todos que Sêneca não
esteve envolvido na conspiração contra o imperador.Quer mostrar a todos que Sêneca
apenas se alimentava de frutas frescas e bebia água corrente pelo fato de temer ser
envenenado.Quer que as pessoas ouçam suas composições de violão equivocadas.Quer
que todos olhem para ele quando o mesmo estiver a coçar os testículos.Quer que todos
dancem equilibradamente.Quer roçar nos corpos das mulheres dos amigos.
Ele,este pronome reto sem maiores perspectivas na vida,coloca as formigas
adverbialmente numa pequena caixa de plástico.Ele,em terceira pessoa do singular,
realiza uma série de pequenos furos para que as mesmas possam respirar sem
problemas.Ele,esta entidade agora sem paletó e gravata e com bermuda e camiseta e um
par de sandálias adquiridas numa liquidação de loja de departamento e uma cara de
quem comeu e não gostou ou uma cara sem cara ou algo parecido,ele,este homem quase
agora coisificado em sua alma de pedra,observa demoradamente o movimento das
formigas e parece se deliciar com a desesperada tentativa das mesmas de se livrar
daquela prisão de plástico barato e vagabundo e repleto de possibilidades em nível de
chula qualificação.
Ele,este pronome reto sem maiores perspectivas na vida, anda de um lado a outro e
de um lado a outro lado ou de um lado para lado algum ou sem lado ou sem lado algum
e perde aos poucos os lados ao perder aos poucos a noção de espaço e perde aos poucos
a noção de tudo,pois não tem o que fazer e o fato de não ter o que fazer o faz pensar em
coisas estranhas.Está distante de si mesmo.Está distante das palavras.Ele agora
emudece.
Ele,este pronome reto desprovido de tudo e de todos repete a
operação algumas vezes,repete e repete como todos aqueles que colocam o café com
leite ora numa chávena,ora numa outra para que os mesmos esfriem depois de algum
tempo.Ele, este pronome reto desprovido de tudo e de todos, enfia ou afunda o pão com
manteiga no café com leite várias vezes.Ele,este pronome reto sem maiores perspectivas
na vida,quer beijar a esposa com aquele gosto de café com leite e pão com manteiga de
manhã.
Ele, este pronome reto sem maiores perspectivas na vida, costumava esfregar o
tênis bem apertado contra a parede e se deliciava com aquela dormência suave da dor
que deixava de ser dor devido ao excesso de fricção.Primeiro o dedo do canto do pé,o
tal mindinho trissílabo e com um som extremamente piegas que não expressa muito
apropriadamente o profundo abandono deste movimento meio depressivo e libidinoso.
Ele sorriu ainda muitas outras vezes quando a via circular pelo corredor do
avião daquele jeito, daquela maneira, naquele estado.Imaginou ainda que as varizes nas
suas pernas estivessem a saltar alegremente.Pensou ou tentou traçar um paralelo entre a
dança das varizes e os musicais da Broadway.Pensou nas meninas do Crazy
Horse,naqueles corpos perfeitos executando movimentos lascivos à sua
frente.Imaginou-se na cama com aquelas meninas perfeitas.Pensou em ir ao banheiro
para se masturbar.Olhou para a parede demoradamente.Esfregou, do verbo esfregar, o
seu próprio dedo mindinho no chão e o atrito o excitava sem igual.O par de sapatos sem
chulé.O par de sapatos com o tal gel especial.
Ele goza pela última vez e seu sorriso malicioso é o testemunho incontestável
de tal fato.
É precisamente nosso homem, agora parte de nosso
inconsciente que chafurda na lama do inferno,que introduz uma agulha finíssima e
começa a torturar as formigas que correm de um lado a outro num frenesi sem
igual.Ele as tortura, ele as provoca, ele as espezinha, coloca água dentro do
recipiente,as formigas inutilmente lutando,incendeia a caixa de plástico por alguns
instantes e as formigas comprimidas e mortas e mortas e só.
.
A dormência em seu corpo o abraça meio cão,meio formiga e meio padeiro e
meio amolador de facas e meio mulher com jeito de aeromoça consternada.Ele nada
pode fazer frente ao apelo inexorável de seu destino indiferente.Ele agora com a visão
turva distingue um tal uniforme azul com a sigla da companhia aérea completamente
rasgado no chão.Pode ainda distinguir as tais formigas circulando lépidas e precisas por
sobre o tal uniforme.Pode ver o cão que mordisca os restos daquele corpo de mulher
dilacerado por sua mente doentia.Devorada por um enorme tubarão ou atropelada na
esquina de uma rua com a outra.Aquela mulher com aquele dedo mindinho espremido
no sapato de salto alto.
A aeromoça a sorrir para todos como se não estivesse ali.Pensou em solicitar os
seus serviços novamente.Pensou em pisar no tal dedo.
4 Está calado a pensar pela primeira e última vez.Faltam-lhe palavras, está
em algum lugar onde esta vacuidade se faz presente.Olha os objetos ao redor,percebe a
distância entre as coisas e o verbo.Ele agora se vê escuro,tenta pegar um cigarro, mas
não consegue.Ele está paralisado naquela asfixiante sensação de abandono.Ele se
levanta e anda por onde pensa que anda.Ele não percebe que sua calça está
manchada.Não percebe que o bolso de sua calça está furado.Não percebe que a caneta
escorregou pelo tal bolso e caiu no chão.Não percebe que seus movimentos agora são
mais lentos devido aos tais pulsos cortados.Não percebe que nada percebe e que a
qualquer instante pode fechar os olhos.

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