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2023
Revista do NU-SOL — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC-SP
verve
verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

43
2023
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº43 (Maio 2023). São Paulo: o Programa, 2023 - semestral

1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo Penal.

I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos


Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (coorde-
nadoras: Lucia Maria Machado Bógus e Vera Lucia Michelany Chaia); indexada
no Portal de Revistas Eletrônicas da PUC-SP, no Portal de Periódicos Capes, no
LATINDEX e catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos.

Editoria

Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol

Acácio Augusto, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Diego Lucato


Bello, Edson Passetti (coordenador), Eliane Carvalho, Flávia Lucchesi,
Gustavo Simões, Gustavo Vieira, Lúcia Soares, Luíza Uehara, Márcia Cristina
Lazzari, Maria Cecília Oliveira, Rogério Zeferino Nascimento, Salete Oliveira.

Conselho Editorial

Alfredo Veiga-Neto (UFRGS), Cecilia Coimbra (UFF e Grupo Tortura Nunca


Mais/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Christina Lopreato
(UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo
Branco (UFRJ), Heliana de Barros Conde Rodrigues (UERJ), Margareth Rago
(Unicamp), Pietro Ferrua (CIRA – Centre Internationale de Recherches sur
l’Anarchisme) (em memória), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade
Técnica de Lisboa), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo

Dorothea V. Passetti (PUC-SP), João da Mata (SOMA), José Carlos Morel


(Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Eduardo Azevedo (Unip), Nelson
Méndez (Universidade de Caracas) (em memória), Silvio Gallo (Unicamp),
Stéfanis Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de
Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
verve

revista de atitudes. transita por limiares e


instantes arruinadores de hierarquias. nela,
não há dono, chefe, senhor, contador ou
programador. verve é parte de uma associação
livre formada por pessoas diferentes na
igualdade. amigos. vive por si, para uns.
verve é uma labareda que lambe corpos, gestos,
movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita
liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
Nos intervalos de verve 43, memórias dos anarquistas no
Japão e do massacre de 1923, ano do Grande Terremoto
de Kanto - Tóquio e arredores. Na ocasião, forças policiais
perseguiram coreanos e executaram libertárixs deixando
seus corpos em meio à destruição. Entre eles, estavam
Itô Nôe, Ôsugi Sakae e seu sobrinho. Seus corpos foram
esquartejados e encontrados dias depois.
A ascenção do fascismo japonês sufocou as práticas
libertárias não somente no país, mas no continente
asiático. Na segunda metade do século XX, libertárixs
se reencontraram, estaparam em novos periódicos suas
memórias e travaram novos embates.
sumário
do anarquismo ao pós-anarquismo
10 from anarchism to post-anarchism
Saul Newman

2013, 10 anos depois…


36 2013, 10 years later...
[página única 1]
Nu-Sol

dossiê émile armand


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dossier émile armand
Émile Armand

o novo mundo amoroso para outras invenções no presente


67 the new loving world for other inventions in the present
Flávia Lucchesi

o novo mundo do amor (excertos)


75 the new loving world
Charles Fourier

a cem anos-luz: rené schérer


89 a hundred light-years: rené schérer
Eder Amaral

o direito ao segredo
94 the right to secrecy
René Scherer

democracia e tirania
democracy and tyranny
100 [página única 2]
Nu-Sol

o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência


104 the renewed ecumenism and the techniques of dependency
Adriana Martinez
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman
the resonances between donna haraway and emma goldman
120 Priscila Piazentini Vieira

as publicações marginais em território dominado pelo estado


brasileiro no século XXI
146 the underground publications on territory under control of the brazilian
government in the 21st centrury
Rodolpho Jordano Netto

armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias


162 armand guerra: a filmmaker, seeder of rebellion
Gustavo Vieira

proudhon: invenções de percursos libertários


185 proudhon: inventions of libertarian courses
Diego Lucato

resenhas
sobre duas vidas completas... em revolução inacabada
206 on two complete lives... in unfinished revolution
Rogério Nascimento
uma dinamite à política. assim, com o pensamento de saul
newman acerca das irrupções libertárias contemporâneas
abrimos nossa verve. o hypomnemata 264, análise do rescaldo
de 2013, no brasil, parte também de recentes acontecimentos
para desvelar as possibilidades anarquistas no agora. seguindo
adiante, émile armand, com minuciosa apresentação de luíza
uehara, combate o que persiste de moral e política no interior
do movimento ácrata e fourier, com salutar introdução de
flávia lucchesi, atrai pessoas interessadas (e interessantes)
para outros movimentos, utópicos somente para caretas
que aguardam para o futuro o consolo chamado revolução.
rené schérer, um dos filósofos afetados pelo propositor
dos falanstérios, está presente ao lado de fourier em nossa
revista – com generosa tradução e nota de eder amaral –
descrevendo como liberações podem facilmente tornarem-se
tagarelice estéril. frente ao palavrório sem fim, propõe sorver
com prazer escandalosos silêncios. é no calor do momento,
mesmo quando retomamos textos do chamado passado, que
nossa verve pulsa. o nu-sol, problematizando os eventos do
início de 2023, escancara como o fascismo não foi e não será
derrotado por vitórias no pleito eleitoral. adriana martinez
sublinha precisamente como a democracia investe, via política
ecumênica, na captura de resistências. mirando futuros sem
afastar-se do presente, priscila piazentini vieira esmiuça
como na visão fundamental de donna haraway reverberam os
questionamentos intempestivos de emma goldman. rodolpho
jordano netto cartografa a produção de zines e livros
produzidos atualmente por pequenas editoras espalhadas
por vários cantos do país. com arte, algo que nunca faltou a
anarquistas, gustavo vieira traz em cartaz as aventuras vividas
na pele pelo inventor de películas subversivas, armand guerra.
por fim, retomando o primeiro a se declarar um anarquista,
diego lucato escancara a escrita de uma pequena guerra, da
existência anarquista de pierre-joseph proudhon. afinal, é
sempre vida a matéria inflamável das lutas antiautoritárias
travadas por mulheres e homens antipolíticos. esse é o recado
de rogério nascimento em sua vigorosa resenha de recente
publicação de lily litvak. aproveitem, verve 43, com a chegada
do frio de junho, ao sul da Terra, com o calor das labaredas
livres, viva, muito viva, no ar e com a presença de lírio!
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do anarquismo ao pós-anarquismo

saul newman

Qual forma assume, atualmente, a política radical?


Que tipo de imaginário, qual horizonte político e ético
animam as lutas contemporâneas? Quais alternativas à
nossa ordem política e econômica atual estão sendo pro-
postas e combatidas? Fazer tais perguntas muitas vezes
pode causar um certo desdém cínico, ou uma visão de
resignação. Em todos os lugares, o capitalismo neolibe-
ral parece ter prevalecido. Mesmo no curso de suas crises
mais graves, desde a Grande Depressão, quando sua estru-
tura catastrófica foi exposta perante todos, quando parecia
estar em seu ponto mais fraco e mais vulnerável, o capita-
lismo financeiro global, sustentado por um maciço apoio
estatal, ressuscitou de sua aparente morte para assumir,
atualmente, uma estranha e nova vida. Talvez essa seja
uma pós-vida, mas vidas após a morte têm uma tendência
infeliz de durar muito tempo. A recente crise econômica
não só não trouxe o fim do capitalismo neoliberal, como
provou ser apenas uma peça, permitindo — sob a forma
de políticas de austeridade — incursões ainda maiores da
racionalidade de mercado na vida cotidiana e níveis mais

Saul Newman é pesquisador pós-doutorado e professor de teoria política da


Goldsmiths College, Universidade de Londres. Contato: s.newman@gold.ac.uk.

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do anarquismo ao pós-anarquismo

obscenos de acumulação de riqueza por uma classe global


de plutocratas. Nossas vidas são cada vez mais dominadas
pelos ditames do mercado, pelos imperativos do trabalho,
pelo espectro da precariedade, da pobreza e da dívida. No
entanto, uma inexplicável compulsão para seguir como de
costume nos prende, e o tempo todo somos assombrados
pelo espectro sempre presente da catástrofe. Os horizon-
tes alternativos parecem obscuros, quase impossíveis de
se imaginar. Breves lampejos de resistência parecem ter
morrido ou sido extintos. Um grande Nada envolve a ima-
ginação política já esgotada — um abismo que agora corre
o risco de ser preenchido por novas e violentas formas de
mobilização reacionária, populista e fascista.
Então, onde procuramos por sinais de esperança?
Apesar da aparente desolação do momento atual, eu não
aconselho pessimismo ou desespero. Ao contrário, creio
ser importante explorar os contornos de uma nova forma
de campo político, aquele aberto pelo niilismo da con-
dição contemporânea. O que gostaria de sugerir é que,
apesar do campo ambíguo e perigoso em que nos encon-
tramos e da natureza aparentemente intransponível dos
poderes que enfrentamos, somos, no entanto, testemunhas
do surgimento de um novo paradigma de ação política
radical e organização, que assume a forma de uma insur-
reição autônoma. Arrisco a dizer que se desviarmos nosso
olhar do espetáculo vazio da soberania política podemos
vislumbrar um mundo alternativo e divergente de vida e
ação política que só pode ser descrito como anarquista.
Dessa maneira, pretendo transmitir a ideia de um modo
de política no qual o autogoverno e a organização livre
e espontânea sejam centrais, em vez da organização pelo
Estado. Esta é uma afirmação que exige uma revisita e, ao

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mesmo tempo, uma renovação e reconsideração da teoria


política anarquista, significando assim uma mudança do
anarquismo para o que eu chamo de pós-anarquismo.

vida política autônoma


Dessa forma autônoma de política, apesar de sua exis-
tência relativamente efêmera e de futuro ambíguo e in-
certo, seriam, talvez,os movimentos Occupy (Ocupação)
que surgiram pelo planeta nos últimos tempos. A reunião
inesperada de pessoas comuns em praças e lugares públi-
cos ao redor do globo – da Praça Tahrir no Cairo, a Wall
Street em Nova Iorque, à Puerta del Sol em Madri e ao
Parque Gezi em Istambul – incorpora uma forma total-
mente nova de atividade, na qual a construção de espa-
ços e relações políticas autônomas e autogestionadas foi
mais importante do que a apresentação de demandas e
agendas específicas ao poder. Embora tenham ocorrido
em diferentes contextos políticos, estavam ligados pela
reivindicação comum das pessoas ao direito à vida po-
lítica em oposição aos regimes e sistemas de poder que
lhes negavam isso. Ao fazê-lo, rejeitaram os canais usu-
ais de comunicação e representação política. O grito dos
Indignados nas praças da Espanha foi “Vocês não nos re-
presentam!”. Isso tem um duplo significado que deve ser
ouvido e devidamente compreendido: é tanto um grito
de indignação contra um sistema político que não repre-
senta mais os interesses das pessoas comuns, como tam-
bém uma recusa total de representação, de ser defendido,
interpretado (e inevitavelmente traído) pelos políticos. É
como se os ocupantes da praça estivessem dizendo “Vocês
não nos representam e nunca poderão nos representar”.

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do anarquismo ao pós-anarquismo

Embora isso tenha levado muitos, tanto à esquerda como


à direita, a descartar tais movimentos como “antipolíti-
cos”, incoerentes e desorganizados, tais críticas apenas re-
fletiram uma incapacidade de aceitar o que é um modelo
alternativo de política radical. Além disso, genuinamente
marcante nesses movimentos foi a rejeição de estruturas
de liderança e das formas centralizadas de organização.
Em vez disso, sua originalidade estava nas formas de vida
política em rede e rizomáticas que engendraram. Temos
visto experiências inovadoras em democracia direta e to-
mada de decisões por consenso, experiências que têm sido
uma característica marcante dos movimentos anticapita-
listas por algum tempo (Graber, 2009). Aqui, a democra-
cia participativa não é simplesmente um mecanismo para
se chegar a decisões — sem dúvida as decisões poderiam
ser tomadas muito mais rapidamente por um comitê cen-
tral de liderança —, mas uma espécie de prática ética. A
atividade política não é simplesmente um meio para atin-
gir um fim, mas um modo de vida. A prática vagarosa da
democracia direta sinaliza não apenas uma rejeição dos
procedimentos sem sentido e das instituições decrépitas
da democracia parlamentar formal — onde as noções de
representação e o consentimento dos governados se tor-
naram totalmente sem sentido —, mas também de toda a
lógica da conveniência política e do “pragmatismo”.
Entretanto, esses eventos, gloriosos em sua audácia, fo-
ram apenas os símbolos mais visíveis e marcantes de um
movimento mais amplo e subterrâneo — por exemplo,
as ocupações e bloqueios de fábricas, locais de trabalho
e portos na Europa e América do Norte, bem como ocu-
pações de universidades, bolsas de valores e empresas. De
fato, o movimento Occupy deve ser visto não tanto como

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algo distinto, mas sim como uma tática, uma prática, um


modo de organização e mobilização rizomática que se
espalha espontaneamente pelos centros nervosos de nos-
sas sociedades contemporâneas, envolvendo a ocupação
e transformação de espaços físicos, simbólicos e sociais.
Aqui também poderíamos falar de ocupações no ciberes-
paço — do Wikileaks ao Anonymous — nas quais redes
anônimas estão engajadas em uma forma de guerra de in-
formação com o Estado.
Esses movimentos e práticas, a meu ver, já superaram
o Estado. Eles abrem um terreno político que não é mais
organizado pelo poder soberano do Estado e suas insti-
tuições representativas, nem direcionado a ele. O Estado
democrático sofreu uma crise cataclísmica de legitimida-
de — seus véus e vestes democráticas foram rasgados, e o
socorro aos bancos e a repressão da dissidência desnudaram
a verdade ignominiosa do seu poder e das elites políticas
que o governam. O Estado democrático nas sociedades
contemporâneas aparece cada vez mais como uma espécie
de concha vazia, um receptáculo sem vida, uma máquina
de dominação e despolitização que já nem sequer preten-
de governar pelo interesse geral. Além disso, o voto em
eleições democráticas e a participação em políticas parti-
dárias se assemelham cada vez mais a um misterioso rito
religioso realizado por cada vez menos pessoas. Enquanto
um lado lamenta a apatia política e o cinismo, eu prefi-
ro falar sobre uma espécie de abandono da forma políti-
ca do Estado democrático e das práticas, e até mesmo a
possibilidade de novas formas de comunidade política. É
importante refletir sobre o modo como os movimentos
autônomos dos quais falei acima não são direcionados
ao Estado — suas demandas não são dirigidas a ele, nem

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do anarquismo ao pós-anarquismo

buscam capturar o poder estatal, seja no sentido democrá-


tico ou no revolucionário. As pessoas que se reúnem nas
praças e lugares públicos de nossas metrópoles, ou mesmo,
em um sentido diferente, formam comunidades anônimas
e rizomáticas no ciberespaço, olham umas para as outras
e não para o Estado. Elas encarnam o desejo de uma vida
autônoma e sustentável que não carrega mais a marca do
Estado.
Soma-se a isso, como mencionei acima, a forma or-
ganizacional adotada por muitos desses movimentos. Em
vez de hierárquica, é descentralizada e em rede. Manuel
Castells (2012) escreveu extensivamente sobre as novas
formas de engajamento político que surgem na “socieda-
de em rede”, onde o poder em rede operado por Estados
e corporações é cada vez mais contestado por redes ho-
rizontais de “autocomunicação em massa” que “reprogra-
mam” as redes dominantes e dão origem a comunidades
autônomas e espaços públicos alternativos. Assim, as re-
voluções no mundo árabe (Tunísia, Egito), o movimento
Occupy na Europa e América do Norte, e inúmeras outras
práticas de resistência em todo o planeta seriam exemplos
de contrapoder autônomo em rede. É importante ressaltar
que tais movimentos e práticas não possuem um centro
real de autoridade.
É por essas razões que acredito que o anarquismo, e não
o marxismo ou o marxismo-leninismo, é o prisma mais
apropriado para interpretar essas novas formas de política.
Apesar das recentes tentativas, particularmente da teoria
política Continental, de ressuscitar uma forma revolucio-
nária comunista de política baseada em ideias reavivadas
da vanguarda partidária e fetichização da figura do gran-

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de líder revolucionário,1 esse modelo Jacobino, pelo qual


uma força revolucionária organizada e disciplinada toma
as rédeas do poder e usa o aparelho coercitivo do Estado
para implemenitar o socialismo a partir de cima, está ago-
ra extinto. Não há nenhum novo Robespierre, Lenin ou
Mao prontos para liderar um movimento revolucionário,
e a fantasia de tomar o controle do Estado, como se fosse
um instrumento benigno a ser comandado pela vontade
revolucionária, não é mais plausível, se é que foi alguma
vez de fato. Como já sugeri, os movimentos radicais hoje
viram as costas ao Estado em vez de procurar comandá-lo,
e rejeitam estruturas centralizadas de liderança e discipli-
na partidária. Se hoje há um horizonte de lutas políticas
— e há sempre certo perigo em postular um único hori-
zonte —, este não é mais comunista, mas anarquista, ou,
como explicarei mais adiante, o que denomino de pós-
anarquismo.2 Isso não quer dizer que os movimentos e
lutas a que me referi se identifiquem conscientemente
com o anarquismo — ou mesmo com qualquer ideologia
em particular.

anarquismo: o esboço de uma heresia política


Se nos preocupamos com a teorização das formas
contemporâneas de política radical, é necessário revisi-
tar a teoria política do anarquismo. Aqui, imediatamente
depara-se com um problema: o anarquismo, mais do que
1
Refiro-me aqui a trabalhos de pensadores como Alain Badiou (see The
Communist Hypothesis, London: Verso, 2010) e Slavoj Zizek (In Defense of
Lost Causes, London: Verso, 2009).

2
Aqui faço referência ao livro de Jodi Dean. The Communist Horizon,
London: Verso, 2012.

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do anarquismo ao pós-anarquismo

outras ideologias e tradições políticas, é difícil de definir


dentro de parâmetros claros. Ele não pode ser organizado
em torno de nomes-chaves — ao contrário do marxismo
e do leninismo —, embora também tenha seus teóricos
importantes, alguns dos quais irei explorar neste capítulo.
O anarquismo também não pode se limitar a uma cer-
ta periodização e, embora tenha tido seus momentos de
importância histórica, em sua maior parte, levou a vida
marginal de uma heresia política. Pensemos então no
anarquismo como um conjunto diverso e heterodoxo de
ideias, sensibilidades morais, práticas, movimentos e lutas
históricas animadas pelo que chamo de impulso antiau-
toritário — ou seja, um desejo de interrogar criticamente,
recusar, derrubar e transformar todas as relações de au-
toridade, particularmente aquelas centralizadas dentro
do Estado soberano. Talvez a argumentação mais radical
feita pelos anarquistas é que o Estado não tem nenhuma
justificação racional ou moral; que sua ordem é inerente-
mente opressiva e violenta e, além disso, que a vida pode
funcionar perfeitamente bem sem esse ônus. As socieda-
des anarquistas são sociedades sem Estado, nas quais as
relações sociais são conduzidas de forma autônoma, direta
e cooperativa pelas próprias pessoas, e não através da me-
diação de instituições alienantes e centralizadas. É essa
implacável hostilidade à autoridade estatal que coloca o
anarquismo em conflito não só com doutrinas mais con-
servadoras, mas também com o liberalismo — que vê o
Estado como um mal necessário, assim como o socialis-
mo e até mesmo o marxismo revolucionário, que enxerga
o Estado como um instrumento, pelo menos no período
“transitório”, para construir o socialismo, seja por meio de

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reformas social-democratas, seja através da tomada revo-


lucionária e do controle do poder estatal.
O debate entre anarquismo e marxismo é antigo, ocor-
re desde o século XIX, quando a Primeira Associação
Internacional de Trabalhadores foi dividida entre os
seguidores do anarquista russo Mikhail Bakunin e os segui-
dores de Karl Marx, em grande parte devido à questão da
estratégia revolucionária e ao papel do Estado. A ala mais
“autoritária” (caracterização de Bakunin) do movimento so-
cialista, a qual pertenciam Marx, Engels e Lassalle, defendia
o Estado como um instrumento de poder de classe, que, caso
estivesse nas mãos da classe certa — o proletariado liderado
pelo partido comunista — , seria útil para a transformação
revolucionária. Em contraste, a ala mais libertária conside-
rava o Estado, em sua essência, como uma estrutura de do-
minação que, em vez de definhar como se esperava, seria o
principal obstáculo para a transformação revolucionária. O
Estado era, portanto, um aparelho que tinha que ser des-
truído em vez de conquistado; a busca pelo poder soberano
era uma armadilha que só poderia conduzir a uma catástro-
fe. Outros aspectos da disputa envolviam a organização do
partido revolucionário e a questão da liderança e da auto-
ridade. As implicações dessa grande ruptura na teoria e na
prática revolucionária têm ressoado por mais de um século,
sendo tragicamente percebidas na deterioração da revolução
bolchevique em direção ao Estado totalitário stalinista. Os
termos do debate marxismo-anarquismo foram explorados
com grande intensidade em outros lugares, e não é minha
intenção fazê-lo novamente aqui.3 No entanto, a ideia mais
3
Ver Saul Newman, From Bakunin to Lacan: anti-authoritarianism and
the dislocation of power, Maryland: Lexington Books, 2007; e The Politics of
Postanarchism, Endinburgh: Edinburgh University Press, 2011.

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poderosa que emerge da posição anarquista é uma revolução


libertária tanto nos meios quanto nos fins, e que se os meios
são sacrificados ou simplesmente feitos para servir aos fins,
então estes últimos serão também sacrificados. Isso se refere
à ênfase que os anarquistas dão à política “prefigurativa”, so-
bre a qual vou me debruçar mais tarde.4
Portanto, o anarquismo é uma forma de política e ética
que toma o valor da liberdade humana e do autogoverno
— intrinsicamente ligado à igualdade — como central,
e vê as relações autoritárias e hierárquicas — não apenas
aquelas empregadas no Estado, mas também no capita-
lismo, na religião, no patriarcado, até mesmo em certas
formas de tecnologia — como limitações externas e obs-
táculos à liberdade humana. Existe uma oposição central
dentro do imaginário anarquista entre as relações sociais,
que, em seu estado “natural”, são livremente formadas e
autorreguladas, e as estruturas externas de poder e auto-
ridade — mais proeminentemente o Estado soberano —
que interferem nesses processos e relações sociais espontâ-
neas, corrompendo-as e distorcendo-as, imprimindo nelas
relações artificiais, hierárquicas e opressivas, alienando a
vida. O Estado, essa máquina infernal de dominação e
violência, não se justifica nem por ilusões religiosas, nem
por artifícios liberais como o contrato social, ou mesmo
por noções democráticas modernas de consentimento. É
o principal obstáculo à liberdade e ao desenvolvimento
humano. Como dramaticamente colocado por Bakunin,
“o Estado é um grande matadouro, um vasto cemitério
no qual, sob a sombra e o pretexto de abstração (o bem
4
Para uma definição mais clara sobre isso, consulte: Mathew Wilson and
Ruth Kinna, “Kay Terms”, The Continuum Companion to Anarchism, London
and New York: Continuum, 2012, pp. 346-7.

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comum), todas as reais aspirações e forças vivas de um país


deixaram-se enterrar generosa e pacificamente” (Bakunin,
1953, p. 207).

o fim das metanarrativas


Assistimos como aspectos do pensamento anarquista
podem repercutir fortemente nas lutas políticas contem-
porâneas, que estão apartadas do Estado e em relações
autônomas quanto a ele. Como Bakunin que, em seu pro-
grama revolucionário, reivindica uma “política diferente”:
não a tomada de poder do Estado em uma revolução “po-
lítica”, mas a transformação revolucionária de todas as re-
lações sociais (o que ele chama de “revolução social”), e ar-
gumenta acerca da necessidade das massas do século XIX
“organizarem suas forças contra e apartadas do Estado”
(Idem, p. 377).
No entanto, se a situação atual exige uma reconsidera-
ção ou mesmo um retorno ao anarquismo, que espécie de
retorno seria possível aqui? Parece improvável que o anar-
quismo revolucionário do século XIX tenha o mesmo va-
lor hoje ou possa até ser conceituado da mesma maneira.
O anarquista Alfredo Bonanno, em uma avaliação honesta
sobre as implicações do surgimento da sociedade pós-in-
dustrial para a política anarquista, declarou: “O que está
morto para eles [anarquistas hoje] — e para mim também
— é o anarquismo que pensou que poderia ser o ponto
de referência organizacional para a próxima revolução,
que se via como uma estrutura de síntese destinada a
gerar as múltiplas formas da atividade humana voltadas a
quebrar as estruturas estatais de consenso e repressão. O
que está morto é o anarquismo estático das organizações

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do anarquismo ao pós-anarquismo

tradicionais, que busca reivindicar melhores condições e


ter objetivos quantitativos. A ideia de que a revolução so-
cial é algo que deve necessariamente resultar de nossas lu-
tas provou ser infundada. Pode ser que sim, mas também
pode não ser” (Bonanno, 1988).
O que está sendo questionado aqui, eu sugeriria, é a
metanarrativa revolucionária que no passado impulsionou
o pensamento e as políticas anarquistas. Central para essa
metanarrativa é a história da libertação humana de uma
condição de servidão e superstição — forçada sobre um
ser de outra forma livre e racional pelas forças corrosivas
do estado de poder — para uma condição de liberdade e
humanidade plena. Em outras palavras, a destruição revo-
lucionária do Estado, do Capital e da Igreja, a construção
de uma sociedade livre em seu lugar, emanciparão o ‘ho-
mem” de sua situação, efetivando a sua humanidade plena.
Ademais, há no centro dessa narrativa revolucionária o
argumento de que sob as camadas de autoridade política e
econômica “artificial” há uma comunalidade natural, uma
sociabilidade racional e moralmente inerente ao sujeito
humano, mas que está simplesmente adormecida, latente.
Por essa razão, o anarquismo poderia sustentar a ideia das
relações sociais como sendo espontaneamente autorregu-
ladoras uma vez que o Estado foi derrubado. Além disso,
essa sociabilidade inata poderia ser revelada e verificada
através da investigação científica. A mais conhecida é a
teoria da “ajuda mútua” de Piotr Kropotkin, desenvolvida
em oposição à competição egoísta e defendida enquanto
um instinto evolutivo e biológico observável nas relações
animais e humanas. Murray Bookchin (1982), um expo-
ente moderno desse tipo de abordagem positivista — que
ele chama de “naturalismo dialético” —, vê as possibili-

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dades de uma sociedade racionalmente ordenada incor-


poradas dentro de uma espécie de totalidade social ima-
nente dentro da natureza, cujo desdobramento dialético
produzirá um florescimento da liberdade humana (Idem,
p. 31). O anarquismo, como uma filosofia revolucionária,
foi moldado pelas narrativas iluministas de emancipação,
progresso e racionalismo; foi ao mesmo tempo um pro-
grama revolucionário e uma ciência das relações sociais. E
foram essas narrativas que lhe deram a qualidade determi-
nista que Bonanno considera como agora extinta. Embora
o anarquismo revolucionário nunca tenha sido tão deter-
minista quanto o marxismo — permitindo muito mais
espaço para a contingência humana fora das “leis de ferro”
da história —, era, no entanto, parte de uma metanarra-
tiva universalizante da liberdade humana e da revolução
social, levando inevitavelmente à sociedade sem Estado,
evento que transformaria a totalidade das relações.
Desde algum tempo, essa forma de pensar sobre polí-
tica e relações sociais tem sido considerada problemática.
Mais recentemente, vivemos na trilha da crise das meta-
narrativas. De fato, como afirma Jean-François Lyotard
(1991), nossa modernidade tardia (ou pós-modernidade
se aceitarmos esse termo) é caracterizada por um certo
ceticismo ou “incredulidade” em relação às metanarrati-
vas. Os discursos universais centrais para a experiência da
modernidade, a categoria de uma verdade objetiva univer-
sal que é ou deveria ser aparente para todos, ou a ideia de
que o mundo está se tornando mais racionalmente inteli-
gível através de avanços na ciência, todas essas estruturas
de pensamento e experiência têm sofrido um profundo
processo de dissolução devido a certas transformações
do conhecimento na era pós-industrial. Os vínculos so-

22 verve, 43: 10-35, 2023


verve
do anarquismo ao pós-anarquismo

ciais que deram consistência à representação da sociedade


estão sendo redefinidos através dos jogos de linguagem
que a constituem. Há, segundo Lyotard, uma “atomiza-
ção” do social em flexíveis redes de jogos de linguagens...”
(Idem, p.17). Isso não significa que o vínculo social esteja
se dissolvendo completamente, mas apenas que não há
mais uma compreensão dominante e coerente da socie-
dade, e sim uma pluralidade de diferentes narrativas ou
perspectivas.
É claro que não devemos ser muito otimistas sobre tais
desenvolvimentos. A descrição de Lyotard sobre a “con-
dição pós-moderna” também foi uma descrição sobre a
condição neoliberal emergente, cuja lógica de “redes fle-
xíveis” e atomização também parece espelhar. No entan-
to, o declínio da metanarrativa refere-se a uma espécie de
mudança ou deslocamento na ordem da realidade social,
de modo que não podemos mais confiar em fundamentos
ontológicos firmes para fornecer a base para o pensamen-
to e, de fato, para a ação política. A política não pode mais
ser guiada por verdades universalmente compreendidas
ou discursos racionais e morais, ou por uma experiência
compartilhada de Sociedade ou Comunidade. Pensadores
pós-estruturalistas, como Michel Foucault, Jacques
Derrida, Gilles Deleuze e Félix Guattari, se envolveram
de diferentes maneiras com essa dissolução das catego-
rias universais. Em outros lugares, explorei com afinco
as implicações do pensamento pós-estruturalista para o
anarquismo, e penso que, em grande parte, são produtivas
(Newman, 2007).

verve, 43: 10-35, 2023 23


43
2023

do anarquismo à anarquia
Essa mudança ontológica da qual me refiro também pode
ser entendida em termos do que o filósofo heideggeriano
Reiner Schürmann chama de experiência da anarquia,
relacionada com a ideia de Heidegger do fechamento
da metafísica, um desvanecimento dos princípios de
época. Ao contrário do pensamento metafísico, onde
a ação sempre deve ser derivada e determinada por um
princípio superior, a arché, “'anarquia’... designa sempre
o desaparecimento de tal regra, o relaxamento de seu
domínio” (Schürmann, 1987, p. 6). Para Schürmann: “A
anarquia que estará em questão aqui é o nome de uma
história que afeta o terreno ou o fundamento da ação, uma
história onde a pedra fundamental cede e onde se torna
óbvio que o princípio da coesão, seja ela autoritária ou
‘racional’, não é mais do que um espaço negro privado de
poder legislativo e normativo” (Idem).
Esse gesto de desenraizar, remover ou questionar a au-
toridade absoluta do arquétipo (arché) — uma forma de
antiautoritarismo ontológico — também é característico
de movimentos teóricos como o da desconstrução, que re-
vela a historicidade e discursividade de nossas estruturas
aceitas de pensamento e experiência, desalojando assim a
centralidade da figura do “Homem” e o que Derrida deno-
mina como “metafísica da presença”. Schürmann afirma,
no entanto, que essa experiência de anarquia — entendida
aqui em termos de indeterminação, contingência, evento
— não torna o pensamento e a ação impossíveis, levando
ao niilismo. Pelo contrário, ao libertar nossa experiência
da autoridade de orientar os primeiros princípios, abre-se
um certo espaço para o pensamento e a ação indetermi-
nados e livres: perguntas como “o que devemos fazer?”,

24 verve, 43: 10-35, 2023


verve
do anarquismo ao pós-anarquismo

“como devemos pensar?”, assumem uma nova e singular


urgência ao sermos confrontarmos com a incerteza do
solo sob nossos pés. O momento da anarquia ontológica
é, portanto, uma experiência de liberdade e, na verdade, de
intensa reflexão ética. Também é importante ressaltar que
ela liberta a ação de seu télos, da regra dos fins, da racio-
nalidade estratégica que sempre buscou determiná-la. A
ação torna-se “anárquica”, ou seja, sem fundamento e sem
um fim pré-determinado.
Gostaria de pensar sobre o que essa experiência de
anarquia, e especificamente a noção de ação sem a regra
dos fins, pode significar para o anarquismo. Schürmann
tem o cuidado de dissociar sua concepção de anarquia
do anarquismo: os antigos mestres do anarquismo, como
Bakunin, Proudhon e Kropotkin, procuraram “deslocar
a origem, substituir o “poder racional”, principium, pelo
poder da autoridade, princeps — uma operação tão me-
tafísica como a anterior. Eles buscaram substituir um
ponto focal por outro” (Ibidem). Em outras palavras, o
anarquismo do século XIX procurou abolir a autoridade
política, mas eles invocaram outro tipo de autoridade em
seu lugar, a autoridade epistemológica da ciência e a auto-
ridade moral da sociedade; além disso, no lugar do Estado
surgiria uma forma mais racional de organização social,
a sociedade sem Estado, da qual há muitas visões pro-
postas — coletivista, comunal, federalista e, mais recen-
temente, ecológica. No entanto, o princípio da anarquia
não só desalojaria a autoridade da ordem atual do Estado
e do poder político, mas também a autoridade epistemo-
lógica de ordens e princípios orientadores alternativos, su-
postamente mais morais e racionais, que a substituiriam.
Então, o princípio anarquista torna a política anarquista

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43
2023

impossível? Ele simplesmente transforma o anarquismo


em niilismo? O anarquismo sempre teve uma relação li-
geiramente ambígua com o termo “anarquia”. A caricatura
grosseira dos anarquistas como semeadores da desordem e
do caos — “anarquia” entendida no senso comum — levou
os anarquistas a se distanciarem dessa palavra ou a trans-
formarem seu significado em um novo tipo de ordem,
como expressa na frase de Proudhon: “Anarquia é ordem,
governo é guerra civil!” No entanto, se tomarmos a noção
de anarquia como simples ser “sem arché” ou sem regra
ou ordem, então a anarquia não significa nem desordem
nem — como Proudhon pretendia — ordem espontânea,
mas algo bastante diferente. A noção de anarquia que es-
tou desenvolvendo aqui, através de Schürmann, relaciona-
-se especificamente com a ideia de pensar e agir livres de
Télos, de formar fins pré-determinados: “‘anarquia’ aqui
não significa um programa de ação, nem sua justaposição
com um ‘princípio’ de reconciliação dialética” (Ibidem). É
possível pensar o anarquismo não mais como um projeto
em perspectiva e determinado por certos fins — a revolu-
ção social que trará a sociedade sem Estado —, mas sim
em termos de uma forma de ação autônoma, uma forma
de agir e pensar anarquicamente no aqui e agora, buscan-
do transformar a situação imediata e as relações em que
se encontra, sem necessariamente ver essas ações e trans-
formações como condutoras da grande Revolução Social,
e sem medir seu sucesso ou fracasso nesses termos? Além
disso, ver o anarquismo dessa forma — como uma forma
de ação e pensamento no momento presente, em vez de
um projeto revolucionário específico — daria menos ênfa-
se na realização do objetivo tradicional da sociedade sem
Estado. Não há problema com os imaginários utópicos e,

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verve
do anarquismo ao pós-anarquismo

de fato, como já argumentei em outros textos, um certo


impulso utópico é central para todas as políticas radicais
no sentido de que ele atravessa os limites de nossa reali-
dade atual (Newman, 2011, p. 66-68). Entretanto, quais
garantias existem de que a realização da sociedade sem
Estado – na medida em que esta é uma possibilidade –
não traria consigo coerções imprevistas? Foucault nos en-
sinou a ver as relações de poder como sendo coextensivas
com qualquer formação social, com ou sem Estado, sen-
do a razão pela qual ele permaneceu cético sobre a ideia
de libertação revolucionária, argumentando que sempre
haverá a necessidade de modos contínuos de resistência
e práticas de liberdade, mesmo em uma sociedade pós-
-revolucionária.5 Voltarei a essa noção de práticas de li-
berdade mais adiante.
Então, em vez de pensar no anarquismo como um
projeto distinto, creio ser mais proveitoso atualmente
enxergar o anarquismo em termos de um certo modo de
pensamento e ação, através do qual as relações de domina-
ção, em sua especificidade, são interrogadas, contestadas
e, quando possível, derrubadas. O que é central para mim
no anarquismo é a ideia de pensamento e ação autônomos
que transformam os espaços sociais contemporâneos no
sentido presente, mas que é ao mesmo tempo contingente
e indeterminado no sentido de não estar sujeito a lógicas e
objetivos pré-determinados. Isso não significa que o anar-
quismo não deva ter princípios éticos ou ser motivado por
certas ideias, mas sim que não deve, e talvez não possa
5
Em uma entrevista, Foucault afirma: “essa prática de liberação não basta
para definir as práticas de liberdade que serão em seguida necessárias para
que esse povo, essa sociedade e esses indivíduos possam definir para eles
mesmos formas aceitáveis e satisfatórias da sua existência ou da sociedade
política” (Foucault, 2002, p. 282-283).

verve, 43: 10-35, 2023 27


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2023

mais, ver-se como parte de um programa de revolução e


organização política. Isso não significa, naturalmente, que
todos os projetos devem ser abandonados, mas sim que
não há nenhum grande Projeto que determina todos os
demais.
Talvez outra maneira de ampliar essa versão do anar-
quismo e explorar suas implicações políticas seja por meio
da ideia de “anarqueologia” de Foucault, uma “palavra-va-
lise” que ele usa para descrever sua abordagem metódica
da questão da relação entre poder, verdade e subjetividade.
Em um de seus muitos estudos sobre a forma como esta-
mos ligados a certas relações de poder através de nossa re-
lação com regimes de verdade, especificamente à verdade
sobre nós mesmos como sujeitos, Foucault afirma basear
suas análises mais sobre uma atitude do que sobre uma
tese: “É uma atitude que consiste, primeiramente, em se
dizer que nenhum poder é um dado de fato, que nenhum
poder, qualquer que seja, é inconteste ou inevitável, que
nenhum poder, por conseguinte merece ser aceito logo de
saída! Não há legitimidade intrínseca do poder” (Foucault,
2014, p. 72). Em outras palavras, é uma recusa ver o po-
der como sendo fundamentado em qualquer outra coisa
além de sua própria contingência histórica, é um ponto
de vista que aliena o poder de qualquer reivindicação de
direito universal, verdade, legitimidade ou inevitabilidade:
“não há nenhum direito universal, imediato e evidente que
possa, em toda parte e sempre, sustentar uma relação de
poder, qualquer que seja” (Idem). Isso é semelhante a uma
sensibilidade anarquista, particularmente a do anarquis-
mo filosófico, que rejeita a ideia de que devemos obede-
cer ao comando de alguém em autoridade simplesmente
porque ele está em uma posição de autoridade. Em ou-

28 verve, 43: 10-35, 2023


verve
do anarquismo ao pós-anarquismo

tras palavras, a autoridade não pode se justificar apenas


com base em seus fundamentos (Wolff, 1970). De fato,
Foucault passa a relacionar esse ponto de vista metodo-
lógico radical ao anarquismo e, ao mesmo tempo, traça
uma distinção importante. O anarquismo, como ele o co-
loca, seria definido pela afirmação de que, em primeiro
lugar, todo o poder é mau e, em segundo lugar, pelo pro-
jeto da sociedade anarquista em que todo o poder é abo-
lido. No entanto, Foucault não afirma que todo o poder
é ruim, mas simplesmente que nenhuma forma de poder
é automaticamente admissível e inevitável, e, além disso,
não é definido por um projeto específico ou meta final:
“Não se trata de ter em vista, no fim de um projeto, uma
sociedade sem relação de poder. Trata-se ao contrário de
pôr o não-poder ou a não-aceitabilidade do poder, não no
fim do empreendimento, mas no início do trabalho, na
forma de um questionamento de todos os modos segundo
os quais se aceita efetivamente o poder” (Foucault, 2014,
p. 72).
Segundo Foucault, essa é uma posição que não exclui
ou necessariamente implica o anarquismo. Novamente,
temos aqui a ideia de um anarquismo ontológico, em que
a ênfase está na anarquia como ponto de partida para a
ação política, em vez de ser o ponto culminante ou a re-
compensa final para os esforços de alguém. Então, para
pensar na política de modo anárquico, talvez precisemos
começar com o que Foucault chama de “contrapoder” —
uma proposta muito sugestiva — e avançar a partir daí.
Entendida nesse sentido, a política anarquista hoje — o
que chamarei de pós-anarquismo — pode ser entendi-
da como a não-aceitabilidade do poder, uma posição que
abre um espaço de contingência e liberdade, em vez de se-

verve, 43: 10-35, 2023 29


43
2023

guir um padrão definido de anarquismo. Pós-anarquismo


é um anarquismo que começa com a anarquia, ao invés
de necessariamente terminar na anarquia. Isso significa
que ele não possui uma forma ideológica específica, po-
dendo assumir diferentes formas e seguir diferentes cur-
sos de ação. Pode resistir e contestar relações específicas
de poder em pontos de intensidade localizados, com base
em sua ilegitimidade e violência, mas, ao mesmo tempo,
poderia, ao fazê-lo, trabalhar em conjunto com outras re-
lações de poder; pode funcionar contra certas instituições
e práticas institucionais através da criação de instituições
alternativas; pode procurar mobilizar certas leis e institui-
ções jurídicas para combater abusos ou injustiças legais
específicas, enquanto trabalha nos limites da lei, virando-
-as contra elas mesmas e buscando aberturas e rachaduras
em seu edifício. Em outras palavras, tomando como ponto
de partida a anarquia ou o não-poder, o pós-anarquismo
como uma forma de pensamento e atuação autônoma
pode trabalhar em múltiplas frentes, em uma variedade de
cenários diferentes, produzindo reversões e interrupções
das relações de dominação existentes.

pós-anarquismo: anarquismo agonístico


O pós-anarquismo pode, portanto, ser visto como uma
forma de anarquismo situacional ou agonístico. É uma
forma de política radical situada dentro e nos interstícios
das relações de poder que contesta, envolvendo-se em re-
lações agonísticas com instituições e práticas particulares.
No entanto, ao falar sobre um anarquismo agonista, deve
ficar claro que eu encaro isso em um sentido bastante di-
ferente do modelo de democracia agonística de Chantal

30 verve, 43: 10-35, 2023


verve
do anarquismo ao pós-anarquismo

Mouffe (2005), por exemplo. Embora, para Mouffe, a di-


mensão conflituosa seja central para sua compreensão da
política democrática — em oposição às concepções deli-
berativas e liberais nas quais a obtenção de um consenso
através do seguimento de certos procedimentos e da ade-
são a normas racionais é o resultado pressuposto —, ela
limita sua compreensão da política a uma representação
dentro das estruturas formais do Estado soberano. As po-
líticas de reunião e insurreições espontâneas — como as
que vimos em nossas praças, ruas e lugares públicos — ,
do ponto de vista de Mouffe, são sem sentido e ineficazes
a menos que construam uma organização política formal
que possa representar suas demandas dentro das esferas
do poder estatal e das instituições parlamentares.6 Para
Mouffe, portanto, o político, esfera do agonismo demo-
crático, deve, ao mesmo tempo, envolver uma política de
representação dirigida ao controle hegemônico do poder
estatal. Ela afirma que não pode haver um movimento
autônomo genuinamente político; ao contrário, tais mo-
vimentos, na medida em que rejeitam a arena formal do
Estado soberano, são vistos como antipolíticos.
No entanto, entre os movimentos e práticas autôno-
mas, e o próprio Estado, ocorre essa concepção de ago-
nismo e contestação. Como tenho sugerido, as práticas
de auto-organização e tomada de decisões participativas,
embora possam ser falhas e problemáticas — certamen-
te não mais do que os procedimentos representativos dos
6
Em uma entrevista, Chantal Mouffe expressou preocupação com o
movimento Indignados na Espanha, e a forma como os manifestantes
evitaram a política de lideranças partidárias em favor de uma forma mais
participativa de política. “An Interview with Chantal Mouffe” (with James
Martin) in Martin, ed. Chantal Mouffe: Hegemony, Radical Democracy and
the Political, London: Routledge, 2013, 228-236, p. 235.

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43
2023

partidos políticos — , têm que ser vistas como esforços


em construir um espaço autônomo de vida política, o que
em si já é uma declaração de guerra contra a ordem atu-
al. Descartar tais gestos e práticas como não-políticas é
recusar-se a ver sua dimensão genuinamente antagônica.
Assim, minha noção anarquista agonística busca redi-
mensionar a dimensão do “político” da ordem do Estado,
onde é policiado e controlado e, em última instância, fe-
chado para o mundo dissidente das práticas e movimentos
contemporâneos que buscam autonomia em relação a esta
ordem. É por isso que eu penso ser apropriado descrever
tais movimentos em termos de uma política antipolítica.
A antipolítica não é a mesma coisa que a não-política ou
ser apolítica; pelo contrário, significa um certo momento
de intensificação política que põe em causa a própria or-
dem da “política usual”. O agonismo, para mim, é inextri-
cável da ideia de autonomia. Mas aqui devemos reverter
a compreensão da autonomia da política apresentada por
pensadores como Carl Schmitt e Chantal Mouffe, para os
quais a especificidade da política sempre se refere às lutas
pelo poder soberano do Estado. Ao contrário, eu diria que
se a autonomia da política significa algo hoje, ela significa
a política de autonomia.

Tradução do inglês por Gustavo Vieira.

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34 verve, 43: 10-35, 2023


verve
do anarquismo ao pós-anarquismo

Resumo
Neste texto, o pós-anarquismo é apresentado como uma
alternativa para lidar com a realidade contínua do
neoliberalismo e dos movimentos políticos atuais. Essa
abordagem consiste em compreender que o anarquismo parte
da não-aceitação do poder, uma posição que abre espaço para
diversas e variadas formas de liberdade, em vez de um padrão
definido de anarquismo.
Palavras-chave: anarquismo, pós-estruturalismo, pós-
anarquismo.

Abstract
In this text, post-anarchism is presented as an alternative to
deal with the ongoing reality of neoliberalism and current
political movements. This approach consists in understanding
anarchism as something that starts from the non-acceptance
of power, a position that makes room for diverse and varied
forms of freedom, rather than a definite pattern of anarchism.
Keywords: anarchism, poststructuralism, postanarchism.

Indicado para publicação em 15 de setembro de 2022.


From Anarchism to Postanarchism, Saul Newman.

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2013, 10 anos depois…
Era um instante no qual poucos esperavam
algo além de mais uma reivindicação anacrônica
de agenda para a tarifa livre de utilitários
públicos, movida por jovens das metrópoles.
Era junho de 2013. 

De repente, foram tomadas certas ruas,


avenidas e percursos defendidos pelos guardiões
da liberdade da livre expressão, pelas empresas,
partidos políticos, prefeitos, governadores,
representantes, ONGs e presidência com Justiça. 

As forças da ordem, com voz de polícia,


queriam os percursos desimpedidos para o
livre trânsito do bom cidadão e do empregado
que queriam trabalhar. Eles deveriam ser
protegidos pela força repressiva legítima
dessas ocupações indevidas por jovens avessos
ao partidarismo e até mesmo à representação
democrático-burguesa-liberal. 

Não tardaram a aparecer as primeiras


designações estigmatizantes de vândalos  e
similares, principalmente dirigidas aos
adeptos da tática black bloc. O suposto
controle da ordem pelo partido de esquerda
no governo entrou em pane. E, rapidamente,
passaram a identificar os responsáveis como
sendo os anarquistas do black bloc.

As forças que haviam se juntado para situar


a violência policial a mando das autoridades
democráticas da ordem, rapidamente, refugiaram-
se na condição de alternativos de mídias e
política para ajustarem-se às autoridades e à
ordem. Era preciso conter os chamados vândalos e
o esboço da lei antiterrorista foi o maior
presente que o governo de esquerda legou ao
país.

Antes fosse só isso. A obsessão por


ordem facilitou a saída às ruas, com outros
objetivos, de reacionários e conservadores,
das forças fascistas que estavam camufladas e
negligenciadas pelos políticos. 

Apoiadas por empresários, jovens


apartidários, autoritários em geral, políticos
oportunistas, cidadãos de bens, polícias e
exércitos vieram às ruas para lançar a ponta da
candidatura de Jair Bolsonaro, o milico, que
se concretizou com a finalização do processo
de  impeachment  da presidente Dilma Rousseff,
iniciado em 2 de dezembro de 2015 e concluído
em 31 de agosto de 2016. O tiro saiu pela
culatra. 

De lá para cá, em curto espaço de tempo,


muitos líderes e heróis passaram a ser
traidores, velhacos etc e tal, incluindo
gestores do ataque de 8 de janeiro de 2023 aos
chamados Três Poderes da República.

Vazou fascismo, vazou o ex-presidente, e


os que não vazaram trataram de fazer para si
uma nova harmonização social. Agora, foram
eles os designados como vândalos. As pessoas
e os analistas vivem, propositalmente, essa
confusão.

aumentando legislações e controles da


ordem
As revoltas atiçadas por iracundos
despertaram reações por parte de múltiplas
forças, incluindo militantes de muitos
movimentos e partidos de esquerda. 

Num contexto no qual o Partido dos


Trabalhadores estava à frente da coalizão do
governo do Estado, ativistas não hesitaram em
ativar discursos fundamentados na dicotomia
entre “manifestante pacífico” e “manifestante
violento” que, mais tarde, facilitariam a
implementação da legislação repressiva com
a finalidade de criminalizar as lutas, como
a Lei Antiterrorismo, aprovada em 2016 pelo
Congresso Nacional e sancionada pelo “governo
popular”. 

Mais legislações repressivas vieram não só


do Governo Federal. Uma série de legislações e
medidas estaduais e municipais foram aplicadas
em meio às lutas que se desenrolavam. No ano
seguinte, em São Paulo, foi sancionada a
Lei 50/2014, proibindo o uso de máscaras em
protestos de rua. 
Outros projetos que buscavam responsabilizar
os movimentos sociais e as “lideranças” também
foram discutidos nas Assembleias Legislativas
e Câmaras dos Vereadores. Em Porto Alegre,
por exemplo, foi aprovada a Lei Complementar
832, enrijecendo as regras relativas aos
bloqueios de vias e outros atos classificados
como vandalismo.

Iniciativas voltadas ao monitoramento


contínuo das mobilizações sociais também
foram levadas adiante, como a criação, no Rio
de Janeiro, do Centro Integrado de Comando e
Controle, constituído por diversas instituições
de segurança, como Polícia Militar, Polícia
Civil, Corpo de Bombeiros Militar, Guarda
Municipal etc. 

Esse modelo, rapidamente, foi exportado


para outros Estados da federação, coordenando
as medidas de repressão contra quaisquer
ações classificadas como desordeiras e que
colocassem em “risco” a ordem pública. 

A grande imprensa, em consonância com


alguns partidos de esquerda, utilizou-se
de sua ampla projeção naquele momento para
assegurar a proliferação de discursos pautados
na dicotomia entre o “manifestante pacífico” e
o “manifestante violento”. 

Contribuíu para a criminalização das


forças da revolta e apoiou, veementemente,
as passeatas em prol da chamada moralidade
pública. Inclusive, alguns jornalistas e
intelectuais chamaram os praticantes da
tática black bloc de fascistas! Tudo, segundo
eles, a favor da pátria e dos valores morais
inerentes à República democrática.

As insurgências que levaram às respostas


institucionais e midiáticas descritas não
devem ser confundidas com as movimentações
que tiveram como finalidade aprovar a PEC 37 e
outras iniciativas que visavam ao “combate à
corrupção”, anseios moralistas etc. 

Constatou-se, inclusive, que a presença de


forças de direita não passou de uma reação
conservadora às lutas que eclodiram naquele
momento. 

Para os partidários da ordem, era necessário


interceptar a emergência das lutas que não
acatavam a “unidade de ação” defendida pela
esquerda e tampouco os impulsos reacionários
e moralistas das pessoas que vestiam as cores
da bandeira do Brasil.

Saídas baseadas na premissa segundo a qual


seria necessário renovar as instituições não
fizeram parte dos percursos das insurgências
que se alastraram nas ruas.

O que interessava aos que se revoltaram era


dessacralizar a autoridade no presente, no
instante no qual as lutas se desenrolavam.
Ataques às agências bancárias, às lojas,
aos veículos e aos policiais preencheram a
paisagem das marchas monótonas patrocinadas
pelos que não concebiam e não concebem uma vida
livre das representações e das resignações
frente à autoridade estatal, ao patrão, ao
partido, à direção do movimento etc. 

Dez anos depois, os desdobramentos de 2013


podem ser constatados. Mais uma vez, alguns
profissionais das humanidades que se dedicam
a previsões sobre a “vida” e a “morte” das
democracias reiteram discursos falaciosos
acerca das inexistentes proximidades entre a
afirmação da tática black bloc e o fascismo, o
autoritarismo, a extrema direita e similares. 

Isso, segundo os que confundem ou fingem


confundir ação direta com violência, deve-
se ao fato de que junho teria reinaugurado a
violência política na vida nacional.
Não falam, propositalmente ou não, de haver
Estado que prescinda de violência, de polícia,
de prisões, de racismo, de mortes. Afinal, não
há política sem violência, assim como não há
capitalismo sem roubo.

Além das condutas dos grupos conservadores


e reacionários, a premissa segundo a qual
as lutas e, por conseguinte, a “violência”
devem ser contidas por meio da punição também
continua permeando os costumes dos chamados
progressistas.
Num primeiro momento, como ocorreu em
2016, a esquerda, em conjunto com forças
conservadoras no Congresso Nacional, aprovou
a Lei Antiterrorismo para conter os corpos
classificados como vândalos. 

Mais tarde, após a queda de Dilma Rousseff,


sua substituição pelo vice Michel Temer – até
então aliado do governo – e, sobretudo, a eleição
da extrema direita para o executivo federal,
organizações manifestaram preocupações frente
ao modo pelo qual a legislação contra os
“terroristas” poderia ser utilizada pelo novo
governo. 

Afinal, o último ex-presidente da República


e seus seguidores enfatizavam, reiteradamente,
a necessidade de utilizá-la para punir os
movimentos sociais, considerados por eles
“inimigos da pátria”.

Os anseios punitivos que seguem marchando


à esquerda e ao que se convencionou chamar
de centro foram materializados por meio de
medidas em defesa do Estado Democrático e de
Direito. 

Diante das sucessivas negociações


parlamentares e, ao mesmo tempo, das agitações
de rua patrocinadas pelo governo anterior,
discutiu-se a revisão da Lei de Segurança
Nacional – aprovada na ditadura civil-militar,
em 1983 –, resultando na aprovação da Lei em
Defesa do Estado de Direito, em 2021. 
A lei prevê, entre outras coisas, a punição
dos envolvidos em atos que tenham como
finalidade promover a abolição violenta do
Estado de Direito. 

Foi mais um arranjo de forças cuja finalidade


era promover uma grande composição partidária
diante das movimentações bolsonaristas. 

Não demorou para que “Frente Ampla” se


tornasse a palavra de ordem dos adeptos da
moderação, incluindo forças de esquerda,
liberais e até conservadores. 

Não há distanciamentos entre a busca pela


“moderação política” e a defesa enfática da
punição. 

A defesa do Estado de Direito envolve,


inevitavelmente, a adoção de políticas de
segurança que sejam eficazes para a sua
manutenção. 

De acordo com os grupos que compõem a nova


“Frente Ampla”, a preservação da democracia
exige a punição dos que rejeitam o sistema
democrático. Ou seja, dos “violentos”, dos
“baderneiros”, dos “vândalos” etc. 

Para eles, os antidemocráticos podem ser


os fascistas ou as forças da revolta, uma
vez que, segundo alguns profissionais das
humanidades e certos militantes de esquerda,
há proximidades entre os que se revoltaram em
2013 e os fascistas que invadiram a Praça dos
Três Poderes no dia 08 de janeiro. 

Os progressistas, assim como em junho de 2013


e nos anos seguintes, continuam fortalecendo os
mesmos discursos e as legislações repressivas
que, em 2018, levaram à eleição da extrema
direita. 

Sua aspiração punitiva apenas fortalece as


condutas fascistas que permeiam a sociabilidade
do dia a dia. 

outras palavras
Dez anos depois dos acontecimentos de junho
de 2013, a designação vândalo voltou a estampar
a capa de jornais, portais de notícias, blogs,
conversas de whatsapp. Contudo, desta vez, os
alvos não foram certos jovens radicais que
enfrentaram a polícia e demais autoridades. 

Em janeiro de 2023, os vândalos foram


os milhares que vestindo o verde-e-amarelo
desfilaram (apoiados por seus patrões e chefes
e pastores e capitães) por Brasília e invadiram
o Congresso Nacional, Palácio do Planalto,
Supremo Tribunal Federal. 

O fato é que os jovens em 2013, muitos deles


anarquistas e adeptos da tática black bloc,
nada têm a ver com vandalismo. Jornalistas e/
ou juízes e/ou militantes esquerdistas que à
época vociferaram em defesa da propriedade
privada e de monumentos de exaltação às
autoridades deveriam, no mínimo, assumir a
falta de precisão ou a ostentação da própria
burrice no uso do termo. 

Vândalos: povo que nos primeiros séculos


D.C, na Europa (aproximadamente onde hoje é
a Polônia), travou inúmeras guerras e buscou
ampliar seus territórios. Em 455 invadiram
Roma. Cortaram o fornecimento de água da
cidade, roubaram obras de arte, destruíram
inúmeros edifícios. Quase um século depois
foram aniquilados pelo exército do Império
Bizantino. Esquecidos durante muito tempo, a
memória dos vândalos foi recuperada em 1792,
durante a Revolução Francesa. No final do
século XVIII, no calor dos combates franceses,
setores da Igreja associaram as ações de
“revolucionários” jacobinos à dos antigos
vândalos. 

Apesar de não constar nos léxicos, vândalos se


definem, sobretudo, por sua adoração às forças
da guerra. 

A “destruição” contida em suas estratégias


visa somente substituir o governo ou uma
autoridade por outra. 

Anarquistas cultivam revoltas. 

Estão distantes tanto dos vândalos iniciais


quanto da mais recente pecha colocada por
padres sobre a violência autoritária praticada
por Robespierre. 

O que aconteceu em junho de 2013 foi algo


muito diferente do vandalismo e mais próximo
de uma recusa radical. 

Em junho, mascarados encararam precisamente


a sintaxe política e sua militarização no Brasil.
Vândala foi a resposta aos questionamentos
radicais e às liberdades experimentadas pelos
jovens nas ruas.

A recente alteração da definição de quem é


vândalo expõe, mais uma vez, o embate, cada vez
mais veloz e incessante, no uso das palavras. 

Todavia, anarquistas alertaram já em 2013,


com a sua antipolítica, que nossa ação direta,
nossa história, nossas palavras, são outras. 

[Publicado como hypomnemata 264]


Itô Noe, Ôsugi Sakae e Mako (s/d).
dossie
>

emile armand
\
verve
dossiê émile armand

émile armand, um anarquista único

luiza uehara

Um ano e oito dias depois da instauração da Comuna


de Paris, nasceu Émile Armand. Seu pai fora um dos
combatentes e militantes da Comuna, e Armand vivera
os rescaldos dessa experimentação libertária, as persegui-
ções axs anarquistas na França e a eclosão do incontível
anarcoterrorismo.
Ainda jovem, na década de 1890, tomou contato com
xs anarquistas por meio do periódico Les temps nouveaux,
fundado e dirigido por Jean Grave. O jornal foi inaugura-
do em 1895 enquanto uma resposta direta ao Processo dos
30, ocasião em que 30 anarquistas foram levados ao tri-
bunal e enquadrados nas leis celeradas que identificavam
qualquer anarquista ou associação como terrorista, sendo
também uma resposta tanto à Comuna de Paris, quanto
ao anarcoterrorismo e seus ataques estratégicos como os
de Auguste Vaillant, Ravachol, Cesario e Émile Henry. As
leis celeradas francesas tiveram suas cópias pelo planeta.
No Brasil, não podemos nos esquecer da Lei de Repressão
ao Anarquismo de 1921 e do campo de concentração da
Clevelândia, à margem do rio Oiapoque, destinado à pri-
são de libertárixs.

Luíza Uehara é pesquisadora no Nu-Sol. Contato: luiza.uehara@gmail.com.

verve, 43: 48-66, 2023 49


43
2023

Se o governo francês pretendia minar as práticas anar-


quistas por meio do medo, a reposta de Jean Grave foi
imediata com a publicação do periódico e por atiçar a
reunião de várixs libertárixs. As perseguições não arre-
feceram as lutas libertárias. Diante de tal efervescência,
no final do século XIX, Armand associou-se ao periódico
Le Libertaire, fundado por Sébastien Faure e por Louise
Michel – também ex-combatente e militante na Comuna
de Paris. Le Libertaire, lançado como resposta às persegui-
ções à Comuna de Paris, foi um dos jornais anarquistas
mais longevos do planeta, mesmo enfrentando constan-
tes perseguições das forças policiais. Publicava diferentes
perspectivas dos anarquismos, não como uma tentativa de
dar voz a uma suposta pluralidade democrática, mas como
potência das múltiplas lutas anarquistas.
Em Le Libertaire, Armand publicou artigos sob o
pseudônimo de Junius, ou Frank ou Émile; de acor-
do com registros, seu nome seria Ernest-Lucien Juin
Armand. Possivelmente, foi ali que deu início à amizade
com Sébastien Faure, que décadas mais tarde, em 1930,
o convidaria para escrever artigos para a Enciclopédia
Anarquista. Vale ressaltar que, mesmo diante de uma di-
vergência de posições atribuída aos dois—Faure era con-
siderado por muitos um anarquista coletivista e Armand
um individualista, ou seja, seu opositor —, ambos não se
detiveram em picuinhas, nem se engessaram em catego-
rias binárias. Diante da amizade na diferença, ambos con-
tribuíram para as experiências libertárias da época e são
importantes, atuais e caros às lutas anarquistas até hoje.
Armand ainda lançou periódicos próprios, como L’en
Dehors e L’Unique. O primeiro foi publicado por Zo
d’Axa no ano de 1891, sendo que os fundos arrecadados

50 verve, 43: 48-66, 2023


verve
dossiê émile armand

pelo jornal deveriam ser destinados a Ravachol, quan-


do este foi preso. Entretanto, Zo d’Axa também acabou
sendo preso e o periódico foi interrompido. Mais tarde,
na década de 1920, Armand retomou a publicação e a
levou adiante até 1939. Já L’Unique foi publicado entre
1945 e 1956. Sua primeira edição ocorreu logo após os
massacres da II Guerra Mundial que, entre tantas vidas,
também ceifou experiências libertárias. Esse periódico, o
último organizado e editado por Armand, tinha uma li-
nha editorial clara e, diante da variedade dos anarquismos,
voltava-se axs individualistas e não fazia quaisquer con-
cessões: “individualista é, em relação à ética e à estética da
burguesia, da escola, ou da maioria, ou do meio social, um
inconformista, um ‘de fora’, à margem. Refletiu, livrou seu
cérebro de todos os ‘fantasmas’ abstratos ou metafísicos
que o perseguiam quando flutuava com a corrente, arras-
tado como uma rolha nas ondas do ‘como todo mundo’,
pelo menos está tentando fazê-lo. Criou uma personali-
dade que ‘resiste’, ou seja, que não se deixa abalar pelo
clamor, a excitação, as vociferações ou os rompantes da
multidão” (1945, p. 1).
Émile Armand foi um libertário que se dedicou às re-
flexões consideradas, muitas vezes, como inferiores por
muitxs anarquistas. Para ele, não estava em jogo traçar o
caminho da revolução e como as associações anarquistas
deveriam ser ou deixar de ser, muito menos distribuir cre-
denciais a quem fosse consideradx como xs verdadeirxs
anarquistas. Em El anarquismo individualista. Lo que es,
puede y vale (2007) — texto que também pode-se en-
contrar em uma versão na Enciclopédia Anarquista, no
verbete individu, individualisme —, declara seu combate
à moral, qualquer que ela seja, afirmando o indivíduo. A

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43
2023

vida, para Armand, não deveria ser uma prisão em cos-


tumes autoritários, mas um vagabundear no campo dos
imprevistos. É urgente se desfazer desses costumes, como
também dos hábitos do “amor escravo” e cultivar outras
relações por meio da camaradagem amorosa.
Enquanto Armand observava e dinamitava os costu-
mes, muitxs anarquistas o identificavam como inútil ou
desnecessário. Suas proposições eram incômodas para mui-
txs libertárixs. Talvez, por ter sido alvo de tantas críticas,
L’Unique se definia como um boletim destinado somente
axs amigxs de Émile Armand. Como já foi destacado, há
amizade na diferença, e essa foi a relação de Armand com
Faure, que levou, na década de 1930, Armand a contribuir
ativamente com a Enciclopédia Anarquista, redigindo de-
zenas de verbetes, entre eles “Nudismo Revolucionário”
– presente neste dossiê.
Tanto em “Nudismo Revolucionário” como nos demais
artigos aqui apresentados, evidencia-se que para Émile
Armand a resistência começa no corpo. Não é preciso en-
contrar um intermediário para a luta, como um partido
ou uma organização, mas resistir recusando a moral, as
convenções, os costumes autoritários, a lei, mediante um
simples e potente desnudar-se.
Nesse combate, Armand também se lança a enfrentar
“o veneno cristão”, como exposto no segundo artigo — um
recorte de On sexual liberty —, presente até mesmo entre
xs libertárixs, que condenam o prazer em detrimento de
uma militância sisuda. Armand também experimentou
desse “veneno”, e os anarquismos o deslocaram tanto para
um combate às crenças, quanto à moral, às autoridades
centralizadas e, também, ao Estado.

52 verve, 43: 48-66, 2023


verve
dossiê émile armand

A não concessão até mesmo axs anarquistas está pre-


sente no terceiro e último artigo presente neste dossiê.
Em Armand não há moral que possa ser estabelecida ou
restabelecida. É um antimoralista em incessante com-
bate que, ao final da vida, escolheu conversar somente
com seus camaradas – amigos na diferença – e não nego-
ciar com aqueles que só pretendiam provar seus pontos
de vista e estabelecer uma autoridade sobre a variedade
das lutas. Hoje, seus artigos permanecem atuais dian-
te de tantas concessões, diálogos e absorções. É urgente
o vagabundear pelos imprevistos da vida, traçar novos
encontros e construir outros costumes apartados da moral.

Referências bibliográficas
Armand, Émile. El anarquismo individualista. Lo que es,
puede y vale. La Plata, Terramar, 2007.
_______. Le fil renoué. L’Unique – bulletin interiour ex-
clusivement destiné aux “Amis d’É. Armand”, n. 1, junho de
1945.

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2023

nudismo revolucionário 1

Podemos considerar o nudismo como “uma espécie de


esporte, em que indivíduos ficam nus em grupos para to-
mar um banho de ar e luz, assim como um banho de mar”
(Dr. Toulouse2), ou seja, a partir de um ponto de vista pu-
ramente terapêutico; também podemos considerá-lo, como
fazem os “gimnomisticos”3 (gymnos significa “nu” em grego),
enquanto um retorno a um estado edênico, restaurando
assim o ser humano a um estado primitivo e “natural” de
inocência — a tese dos adamitas4 de outrora. Esses dois
pontos de vista dão lugar a um terceiro, que é o nosso: o
nudismo está, individual e coletivamente, entre os mais po-
tentes meios de emancipação. Parece-nos algo totalmente
diferente de um exercício higiênico de condicionamento
físico ou uma renovação “naturista”. Para nós, o nudismo
é uma demanda revolucionária. Revolucionária em sentido
triplo: afirmação, protesto, liberação.
Afirmação: reivindicar a capacidade de viver nu, de
desnudar-se, de perambular nu, de associar-se a nudistas,

1
Publicado originalmente na Ecyclopedie Anarchiste (1934) em francês e
depois traduzido para o inglês por Alejandro de Acosta, e publicado no site
thenarchistlibrary.org.

2
Dr. Edouard Toulouse (1865-1947), médico psiquiatra francês, criador da
Liga Francesa de Profilaxia e Higiene mental, em 1920. (N.T.)

3
Neologismo que uniu a palavra grega que originou o termo ginástica
(gymnos) com o conceito de misticismo.(N.T.)

4
Seita do cristianismo surgida entre os séculos II e IV D.C. que buscava a
inocência de Adão no Jardim do Éden. (N.T.)

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verve
dossiê émile armand

entrando em contato com o próprio corpo, sem nenhuma


preocupação, a não ser com as possibilidades de resistir às
temperaturas. Isso é afirmar o direito de alguém ao pleno
usufruto da individualidade corporal. É proclamar seu
desapreço pelas convenções, pela moral, por mandamentos
religiosos e leis sociais que, sob vários pretextos, impedem
o ser humano de dispor das diversas partes de seu corpo
como bem entender. Indo contra as instituições sociais e
religiosas em que o uso ou a fruição do corpo humano es-
tão subordinados à vontade do legislador ou do sacerdote,
a reivindicação do nudismo é uma das manifestações mais
profundas e conscientes da liberdade individual.
Protesto: reivindicar e praticar a liberdade de ficar nu
é, de fato, protestar contra qualquer dogma, lei ou costu-
me que estabeleça uma hierarquia das partes do corpo; que
considere, por exemplo, que mostrar o rosto, mãos, braços
ou pescoço é mais decente, mais moral, mais respeitável do
que expor as nádegas, os seios, a barriga ou a região pubia-
na. É protestar contra a classificação de diferentes partes do
corpo em nobre ou em ignóbil: o nariz sendo considerado
nobre e o pênis ignóbil, por exemplo. Em um sentido mais
elevado, é protestar contra qualquer intervenção (legal ou
outra) que nos obrigue a usar roupas porque isso agradaria
aos outros — ao passo que nunca nos ocorreu rejeitar esses
outros que não se despem, se for isso que preferem.
Liberação: liberação de portar uma vestimenta, ou do
constrangimento de vestir um traje que sempre foi, e nun-
ca deixará de ser, senão um disfarce hipócrita na medida
em que aumenta a importância daquilo que cobre o cor-
po — do acessório portanto — e não do próprio corpo,
cujo cultivo, por sua vez, constitui o essencial. Liberação
de uma das principais noções em que se baseiam as ideias

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2023

de “permitido” e “proibido”, de “bem” e “mal”. Liberação


da coqueteria, do conformismo a um padrão artificial de
aparência externa que mantém a diferenciação de classes.
Imaginemos nus o general, o bispo, o embaixador, o
acadêmico, o carcereiro, o policial. O que sobraria de seu
prestígio, da autoridade que lhes foi delegada? Os gover-
nantes sabem disso muito bem, e esse não é o menor dos
motivos de sua hostilidade ao nudismo.
Liberação do preconceito do pudor, que nada mais é do
que “vergonha do próprio corpo”. Liberação da obsessão pela
obscenidade, atualmente provocada pela descoberta de partes
do corpo que o tartufismo social exige que escondamos —
liberação da contenção e do freio implícitos nessa ideia fixa.
Nós vamos mais longe. Sustentamos, sob a perspectiva
da sociabilidade, que a prática de se desnudar é fator de
uma melhor camaradagem, de uma camaradagem menos
restrita. Não há como negar que para nós um camarada
menos distante, mais íntimo, mais confiante é aquele que
se revela a nós não apenas sem segundas intenções inte-
lectuais ou éticas, mas também sem dissimular seu corpo.
Os detratores do nudismo — moralistas ou higienistas
conservadores do Estado ou da Igreja — supõem que a vi-
são da nudez ou o convívio regular de nudistas de ambos
os sexos exaltam o desejo erótico. Isso não é sempre o caso.
Porém, ao contrário da maioria das teses ginastas — para as
quais o oportunismo ou o medo da perseguição é o início da
sabedoria —, também não a negamos. Mas sustentamos que
a exaltação erótica engendrada pelos projetos nudistas é pura,
natural e instintiva. Não pode ser comparada à excitação arti-
ficial do seminu, do galante em roupas reveladoras e de todos
os artifícios de maquiagem invocados no ambiente vestido,
semivestido ou malvestido em que vivemos atualmente.

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verve
dossiê émile armand

variações sobre a volúpia 1

Sei que a volúpia é um assunto que você não gosta que


seja falado ou escrito. Lidar com isso te choca. Ou pro-
voca em você uma piada de mau gosto. Você tem livros
em sua biblioteca que abrangem quase todos os ramos da
atividade humana. Você tem muitos dicionários e enciclo-
pédias. Você conta talvez com uma centena de volumes
em uma especialidade de produção manual. E nem estou
aqui falando de livros políticos ou sociológicos. Mas não
há em suas prateleiras um único livro dedicado ao prazer
sensual. Há jornais que tratam de numismática, filatelia,
heráldica, pesca com anzol ou boliche. A menor tendên-
cia poética ou artística tem sua publicação. A mais ínfima
igrejinha de algum “ismo” tem seu boletim. Os romances
de amor são abundantes. E há panfletos e livros que tra-
tam do amor livre ou da higiene sexual. No entanto, não
há nem um periódico que se dedique à volúpia considera-
da francamente, sem insinuações. Como uma das fontes
do esforço para viver. Como uma felicidade. Como um
estímulo na luta pela existência. Longos estudos rolam
sobre técnicas em pintura, em escultura, no trabalho em
madeira, pedra ou metais. Procuro em vão artigos docu-
mentados que considerem a volúpia como uma arte que
expõe seus antigos refinamentos e que oferece novos. Não
que o prazer sensual seja indiferente a você. Mas é clan-
destinamente, nas sombras, a portas fechadas, que você
fala ou discute sobre isso. Como se a natureza não fosse

1
Trecho extraído de "On Sexual Liberty" (1916) e publicado em
theanarchistlibrary.org.

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sinceramente voluptuosa. Como se o calor do sol e o aro-


ma dos prados não fossem propícios à volúpia!
Claro, não ignoro os motivos de sua atitude. E sei a ori-
gem. O veneno cristão corre em suas veias. O vírus cristão
infecta você cerebralmente. O reino do seu Mestre está
fora deste mundo. E vocês são seus súditos. Sim, vocês,
socialistas, revolucionários, anarquistas, que engolem sem
pestanejar cem colunas de estimativas para a demolição ou
a construção social, mas que se obcecam e se escandalizam
com duzentas linhas de apelo à voluptuosa experiência.
Ó escravos!

58 verve, 43: 48-66, 2023


verve
dossiê émile armand

sem amoralização, não há


anarquização 1

Às vezes, a Liberdade assume a forma de um réptil odioso.


Rasteja, sibila, pica. Mas ai daqueles que em desgosto se
aventurarem a esmagá-la! E felizes são aqueles que, tendo
ousado recebê-la em sua forma degradada e assustadora, serão
por fim recompensados por ela em seu tempo de beleza e glória.2
Macaulay: Ensaio sobre Milton.
Os homens de ordem, aqueles que chamamos de “pessoas
honestas”, não exigem nada além de tiros e granadas.
Renan: Nouvelles lettres intimes.

Li e ouvi a afirmação de que o anarquismo está prestes


a entrar em crise. Isso não é exato. Na verdade, há um
conflito entre as concepções estáticas e as concepções di-
nâmicas do anarquismo, entre aqueles que querem gre-
garizar e estabilizar o anarquismo e aqueles que querem
que o espírito revolucionário e individualista permaneça e
ferva permanentemente dentro do anarquismo. No fundo,
trata-se mais de dois métodos do que de duas concepções.
Seria extraordinário se não houvesse uma competição en-
tre eles. É justamente por competirem que, longe de ficar
estagnado, o anarquismo afirma-se, desenvolve-se, expan-
de-se e supera a estreiteza de uma igreja ou de um partido.

1 Publicado originalmente em francês no periódico L'insurgé, número 47,


em 27 de março de 1926. Traduação para o inglês opor Shawn P. Wilbur.

2
Em inglês no texto original francês (N.T.)

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2023

Há muito tempo os entusiastas do anarquismo tradicio-


nal tentam não apenas criar um anarquismo ortodoxo, “ne
varietur”3, mas também estabilizar a ideia anarquista inte-
grando-a nas aspirações gerais da humanidade. Para citar um
nome entre os pensadores que deram o apoio de seu talento
a esse esforço, mencionarei Kropotkin. Leiam com atenção
Ajuda mútua, ciência moderna e anarquia ou a Ética, nos quais
se resume muito rapidamente o objetivo do autor das Palavras
de um rebelde: demonstrar a seus leitores que as principais de-
mandas do anarquismo estão de acordo com as necessidades,
conhecimentos, experiências e fatos da evolução humana, da
história dos organismos vivos. Se a esse respeito acreditarmos
em Kropotkin — e se eu o entendi claramente —, todas as
observações, todos os eventos da história dos seres vivos ten-
dem ao estabelecimento de uma moral social, a tal ponto que
a própria natureza não poderia mais ser considerada amoral.
Vemos no que isso resulta de fato: o comunismo anarquista,
como Kropotkin e seus amigos ou discípulos o entendem,
surge naturalmente da aspiração da humanidade por um es-
tado de coisas melhor do que as existentes atualmente.
Não quero submeter a concepção kropotkiniana ao
crivo de uma crítica restrita para assim dar conta da sua
importância na evolução individual, e tampouco esvaziar
o conteúdo dos três elementos sobre os quais Kropotkin
construiu o sistema moral: a ajuda mútua, a justiça e o
espírito de sacrifício. Tampouco quero me ater ao caráter
místico e muitas vezes metafísico da ética kropotkiniana,
para mostrar que a cultura e a linguagem científica nem
sempre são suficientes para nos impedir de tomar puros
fantasmas por seres de carne e osso. Entendo, enquanto
um anarquista individualista, um anarquista associacionis-
3
“Que não se altere”, expressão em latim. (N.T.)

60 verve, 43: 48-66, 2023


verve
dossiê émile armand

ta, que usamos nossa própria sensibilidade para criar uma


linha de conduta individual. Entendo que nos associamos
a indivíduos dotados de sensibilidades aproximadamente
similares e então agimos de acordo com as diretrizes de um
grupo. Mas estabelecer a maneira de se comportar de um
indivíduo ou grupo como uma moral absoluta e universal,
não me parece anarquista. É contra isso que eu me levanto.
Suponhamos que Kropotkin tivesse conseguido persu-
adir todos os anarquistas de que o comunismo anarquista
era a forma de sistema econômico para a qual a huma-
nidade tendia em suas aspirações e sonhos de um futuro
melhor. Eis aqui o anarquismo estabilizado, cristalizado,
petrificado.
Ou seja, dinamicamente falando, o anarquismo não
existiria mais.
De fato, no dia em que for aceito que há apenas uma
única moral anarquista, apenas uma única linha de con-
duta anarquista, vai ocorrer que qualquer um que decida
ser contra ou se coloque fora dessas diretrizes ou desse sis-
tema moral não poderá mais ser considerado anarquista.
Nesse momento, o anarquismo não teria motivos para in-
vejar a Igreja e o Estado: teria seu sistema moral, uno e in-
divisível, sua moral sacrossanta e estagnada. Existiria uma
moral anarquista do tipo da que Boyer4 falou outro dia na
edição da École Émancipée, onde ele propôs uma “moral
proletária” para a aprovação dos pedagogos que apoiavam
a CGTU (Confédération Générale du Travail Unitaire).

4
Joseph Boyer (1894-1961), sindicalista, professor, ligado ao Partido
Comunista Francês. Publicou “A Moral Proletária”, no periódico École
Émancipée, em 1926 (https://maitron.fr/spip.php?article102126). (N.T.)

verve, 43: 48-66, 2023 61


43
2023

Não consigo entender como pensadores como


Kropotkin não perceberam que, ao buscar estabelecer
uma moral anarquista, eles retornariam ao exclusivismo,
ao estatismo. Para que o anarquismo não se transforme
em instrumento de conservação social ou moral, é obvia-
mente necessário que nele concorram toda a ética, todos
os meios antiautoritários de viver a vida.
Na anarquia, existem tantas “morais” quanto anarquistas,
considerados individualmente ou em grupos ou associações
de anarquistas. Assim, na anarquia, é-se amoral, ou, dito de
outra forma, toda moral enquanto anarquista é apenas rela-
tiva à unidade ou ao grupo que a propõe ou a pratica. Não
há uma moral anarquista absoluta, então ninguém pode lo-
gicamente dizer que ela resume ou incorpora as demandas,
os desideratos, as relações de todos os anarquistas.
O trabalho anarquista não pode consistir em moralizar
o anarquismo, mas em amoralizá-lo, em destruir entre os
anarquistas os últimos resquícios de exclusivismo e estatis-
mo, que ainda podem permanecer adormecidos no cará-
ter de suas relações entre individualidades ou associações.
A minha, ou seja, a nossa linha de conduta só tem valor
para mim ou para o nosso grupo ou para a nossa associação,
ou mesmo para todos aqueles aos quais ela satisfaz, para
aqueles que já a carregam em germe, aos que seria preciso
explicá-la, propô-la para que possam encontrar o que pro-
curam, talvez sem se darem conta. A minha “moral”, a nossa
“moral”, só vale para aqueles, individual ou coletivamente,
a quem ela convém, não para todos e nem para os outros.
Em outras palavras, relacionamos o que se chama de éti-
ca, moral, regras de conduta ao temperamento individual,
às afinidades instintivas ou naturais que levam as unidades

62 verve, 43: 48-66, 2023


verve
dossiê émile armand

humanas a agirem isoladamente ou a se associarem para de-


terminados fins e por certo tempo. Não relacionamos nosso
modo de agir a uma injunção ou a um imperativo superior
ou externo ao isolado ou aos associados. Declaramo-nos
amorais com relação a qualquer moral extraída da religião,
ciência, sociabilidade, até da própria natureza que contra-
riasse nossas aspirações, nossos desejos ou nossos apetites.
Sendo antiautoritários, recusamos, claro, e em todo caso,
com relação a nós mesmos, recorrer à violência ou a qual-
quer forma de coerção governamental ou estatista para sa-
tisfazer nossos desejos ou gratificar nossas paixões.
É porque a atual mentalidade anarquista está saturada de
pequeno-burguesismo — será necessário voltar a essa ques-
tão — que tantos anarquistas são tão lentos para entender
que a amoralização coletiva ou individual do meio social é
um fator poderoso na anarquização. Quanto mais o meio hu-
mano é amoralizado, mais os guardiões da moral religiosa ou
secular, aqueles que querem manter as sociedades humanas
dentro de regras uniformes de conduta ou de sistemas mo-
rais absolutos, sentem diminuir sua utilidade. Quanto mais a
amoralização satura as relações entre os homens, quanto mais
desaparece a ideia de que é necessária uma moral comum
imposta para viver feliz. Cada vez menos sentimos a necessi-
dade de instrutores de moral. Inconscientemente, surge uma
nova base para as relações éticas entre indivíduos isolados e
associados: é a unidade ou associação que estabelece a regra
de conduta a ser mantida para atingir o máximo de sociabili-
dade, sociabilidade que em nada responde a uma concepção
moral do bem e do mal, a um a priori transcendente, mas
que se baseia na observação interessada de que ninguém é,
pode ou quer ser um objeto de consumo para mim, exceto
na medida em que eu sou, posso ou quero ser isso para eles.

verve, 43: 48-66, 2023 63


43
2023

Um outro dia, toquei muito rapidamente em um ponto


sobre o qual é apropriado insistir: os belicistas, os marechais
da dominação, os grandes mestres da exploração e os chan-
tagistas da política são os glorificadores de virtudes públicas
ou privadas, os laicos moralizadores, os defensores da reli-
gião e das tradições salutares. Quando a carnificina global
de 1914-1918 estourou, foi sob suas bandeiras que vieram
se alinhar os teóricos anarquistas honestos, puritanos, mo-
rais, comunistas, assim como os individualistas. Como to-
das essas pessoas não poderiam ter feito uma frente unida?
Todos eram partidários de uma moralidade única, comum
e universal; lobos não comem uns aos outros.

II
O dicionário Larousse define a palavra moralidade
como: a relação de um ato, dos sentimentos de uma pessoa,
com a regra da moral. Daí vem a expressão “certificado de
moralidade”, para designar o atestado oficial de bons costu-
mes. Cada vez que ouço falar de moral em uma publicação
que se diz mais ou menos anarquista, me vem à mente, es-
pontaneamente, a ideia de um “certificado de moral e bons
costumes”, entregue pelo chefe de polícia do distrito.
Como escrevi na última edição, a palavra moralidade
nunca teria aparecido nos jornais anarquistas ou anar-
quizantes, caso o movimento anarquista não tivesse sido
inundado por pessoas vindas de origem burguesa, que
trouxeram consigo a noção de que é importante confor-
mar-se, em matéria de moral, com as regras estabelecidas.
Uma experiência que já é grande, uma familiaridade que
não data de ontem, me mostrou que um grande número de

64 verve, 43: 48-66, 2023


verve
dossiê émile armand

pessoas que se declaram teoricamente como defensoras do


anarquismo foi seduzido principalmente pelos ensinamen-
tos de Rousseau, pelo humanitarismo e pela aspiração revo-
lucionária de igualitarismo revelado pelos escritos de certos
anarquistas dogmáticos. Daí vem uma tendência óbvia para
fazer pronunciamentos sobre os atos e movimentos de ca-
maradas, avaliações e julgamentos como os emitidos pelos
representantes da sociedade burguesa e pelos chefes de po-
lícia que entregam certificados de moral e bons costumes.
Quando, em 1900, entrei em contato com os anarquis-
tas, eu vinha de um meio cristão; muitas vezes, fiquei estu-
pefato ao comparar as declarações materialistas de certos
teóricos anarquistas com os julgamentos que eles faziam
sobre a conduta de camaradas que levaram a sério fórmulas
como “sem deus, sem mestres” ou “sem fé nem lei”, as quais
concretizam, de forma breve e clara, toda a concepção indi-
vidual anarquista de vida. Eu não conseguia entender como,
depois de terem lutado contra a lei e os profetas religiosos
ou laicos, eles pudessem condenar certos comportamentos
individuais, que não teriam sido reprovados pelos juízes do
tribunal criminal. Como eu não considerava a propaganda
uma profissão e não queria fazer dela uma vocação, há mui-
to tempo eu teria dispensado essas pessoas respeitáveis, e
isso teria me poupado alguns aborrecimentos, se em segui-
da eu não tivesse me convencido de que esses julgamentos
simplesmente refletiam a educação burguesa (primária e
secundária) recebida por esses teóricos, da qual nunca qui-
seram ou puderam se livrar. Mais tarde, felizmente, conheci
verdadeiros anarquistas, libertos da educação das escolas,
que evitavam, em geral, julgar as ações de seus companhei-
ros. Quando se aventuravam a opinar sobre a maneira de se
comportar de seus camaradas, o faziam em relação à con-

verve, 43: 48-66, 2023 65


43
2023

cepção anarquista de vida e não a algum padrão de moral


estabelecido pelos partidários da sociedade burguesa.
Encontro velhos companheiros que me dizem que se
retiraram do movimento por causa da desilusão que expe-
rimentaram ao encontrar muitos teóricos anarquistas com
reminiscências burguesas. Onde esperavam encontrar ho-
mens que tivessem abandonado os preconceitos sociais e
ressalvas morais, encontraram apenas mentes tão pusilâni-
mes que chegavam ao ridículo, com uma mentalidade ética
que em nada diferia daquela do porteiro ou do guarda.
Todo verdadeiro anarquista considera ofensivo e preju-
dicial que qualquer agente do poder tenha uma boa opinião
sobre ele, que o bom cidadão, o padre e o professor de edu-
cação cívica o considerem honrado e digno de respeito. Não
que, forçados pelas circunstâncias, os individualistas anar-
quistas não se disfarcem, mas à maneira do bandido calabrês,
que se disfarça de policial para roubar uma diligência. Cada
concessão que o individualista anarquista faz ao meio social,
cada concessão que parece fazer ao Estado, ele as redime ao
solapar a noção do poder necessário, ao demonstrar a todos
aqueles com os quais entra em contato que não há necessida-
de de moral e moralistas, de dirigentes e magistrados impos-
tos e obrigatórios, para o cumprimento das funções orgâni-
cas individuais e para a convivência humana.
Mas onde está o gigante que assumirá a tarefa de
amoralizar e imoralizar homens e mulheres anarquistas,
tornando-os fermentos da amoralização e imoralização
do ambiente humano? Porque só assim sua instauração
poderia ser considerada, ó anarquia!

Tradução do inglês por Flávia Lucchesi.

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verve
o novo mundo amoroso para outras invenções no presente

o novo mundo amoroso para outras


invenções no presente

flávia lucchesi

Charles Fourier escreveu Le Nouveau monde amoureux


em 1816, obra na qual o propositor dos falanstérios esmiu-
ça os aspectos do prazer conforme as leis naturais da atra-
ção, que tenderiam à concretização do desígnio divino: a
Harmonia. Bloqueada por muitas vias pela civilização, que
era combatida veementemente pelo socialista Fourier, a
harmonia social era o objetivo principal de sua engenhosa
teoria. “Há harmonia entre todas as coisas criadas: entre a
matéria orgânica e a inorgânica, entre o homem e Deus,
entre o homem e a terra, entre a Terra e o universo, enfim.
Tendo criado o homem com instintos e paixões, seu cria-
dor quis que estes fossem exercidos plena e livremente,
não suprimidos. Todas as paixões humanas são legítimas
e úteis, uma sociedade ideal seria a que oferecesse a seus
membros a facilidade de aproveitá-las”, afirmou Fourier
há mais de dois séculos.
Nesse livro, até hoje sem tradução em português, o
autor dedicou-se às paixões, propagando o seu exercício
em liberdade e equilíbrio. Para ele, o amor era a maior
Flávia Luchessi é pesquisadora no Nu-Sol e doutoranda em Ciências Sociais na
PUC-SP. Contato: flalucchesi@gmail.com.

verve, 43: 67-74, 2023 67


43
2023

das paixões e não havia paixão que fosse anormal ou an-


tinatural. O que produzia as “manias” ou “contra-paixões”
era precisamente os costumes civilizados, que buscavam
diminuí-las e obstruí-las. Toda paixão seria benéfica e na-
tural, na mesma medida em que toda contrapaixão seria
nociva e artificial. “Unissexualidade”, “safismo”, “pederas-
tia”, “pedofilia”, “incesto”, "orgia", "poligamia", nenhuma
dessas práticas era considerada anômala, pelo contrário,
tinham sua função na harmonia social. A desordem advi-
nha da impossibilidade de vivê-las conforme o instinto e
o temperamento de cada umx.
Um dos pontos mais enfatizados por Fourier era a de-
sigualdade, a desarmonia, entre homens e mulheres, para
os quais uma mesma conduta gerava tratamentos e julga-
mentos díspares. Da mesma forma, também lhe sobres-
saía as diferenças com que os prazeres sensuais e materiais
eram esquadrinhados de acordo com a idade, prevalecen-
do uma classificação etária totalizante e não os tempe-
ramentos individuais — ele havia elencado 810 tipos de
temperamentos, que seriam definidores da organização
social nos grupos e séries a comporem os falanstérios.
Hoje, há mais de duzentos anos desse escrito, alguns
questionamentos e reflexões, muito audaciosos e corajo-
sos na época, podem parecer datados, ...será? No Código
Penal brasileiro, o adultério feminino não é mais classifi-
cado como “crime”, desde 2005. Mas seguem enquadradas
juridicamente a bigamia e a poligamia. Ainda que pulu-
lem nas redes sociais e tenham cada vez maior destaque
midiático e no mercado do entretenimento, são modula-
ções normalizadas como formas alternativas de relaciona-
mentos amorosos e sexuais – muitas vezes, classificadas
como “afetivos”. São chamadas, frequentemente, de não-

68 verve, 43: 67-74, 2023


verve
o novo mundo amoroso para outras invenções no presente

-monogâmicas ou poliamorosas e abarcam as variações de


relacionamentos abertos e liberais (como o swing e outras
práticas que envolvem casais e se circunscrevem apenas
ao sexo). Contudo, o discurso que circula reitera serem
inconfundíveis o poliamor com a poligamia... Afinal, o
poliamor se refere a um amor contemporâneo, inclusivo,
democrático, neoliberal ou, como enfatizaria Fourier, “ci-
vilizado”; a poligamia se refere às culturas consideradas
“primitivas”, “selvagens” ou religiosas, estas últimas vin-
culadas aos entraves tolerantes no hemisfério norte do
planeta, notadamente as islâmicas. Talvez, a poligamia
permaneça mais tabu do que aparenta e continue majo-
ritariamente vinculada ao Outro, ao distante do Ocidente.
Assim, ainda que se fale em sexo na melhor idade —
preferencialmente entre pessoas casadas ou para os se-
nhores que, em grande medida graças à “pílula azul”, po-
dem pagar por sexo até idades mais avançadas —, tudo se
restringe ao sexo como penetração genital, na esposa ou
no esposo, e na manutenção das ereções e lubrificações.
Outras práticas, outros gozos, prazeres, encontros e zonas
não se mostram tão liberadamente. E libertariamente?
Certas composições amorosas e sexuais entre idades
muito diferentes também seguem “obstruídas”, para lem-
brar o termo usado por Charles Fourier, muitas ainda de-
terminadas no campo legal-ilegal. Mas não só, permanece
o prestígio ao homem maduro que sustenta uma ou um
jovem, fala-se em sugar baby/sugar daddy. Fala-se também
nas novinhas, que os caras mais velhos pegam nos fluxos. O
contrário não é tão aceitável ainda... Mas poderá ser como
quase sempre ocorre, por meio da inversão e do espelha-
mento de condutas?

verve, 43: 67-74, 2023 69


43
2023

Enquanto isso, de forma semelhante à sublinhada pelo


socialista no início do século XIX, hoje, essas práticas mo-
ralmente condenadas continuam ocorrendo. Não mais
apenas sob as máscaras puritanas e hipócritas dos burgue-
ses e pequenos burgueses, mas sob as fachadas dos cida-
dãos de bens, provenientes de qualquer estrato social, e com
maior flexibilidade. O casamento não é mais o matrimô-
nio indissolúvel, fragmentou-se em variadas modulações
ajustadas às suas formas de vida. Pode se divorciar, abrir o
relacionamento e falar mais abertamente sobre traições. E
permanecem, intocáveis, as surras e violências, violências
sexuais e torturas, acossamentos e ameaças, o sexo forçado
e sem tesão, as mutilações e correções, os castigos aplica-
dos por aqueles que se julgam superiores e mais fortes, os
guardiões e guardiãs dos bons costumes. Permanecem as
execuções cotidianas das ex-namoradas-noivas-esposas-
-amantes, ex-mulheres. Por vezes, entre casais homoafe-
tivos até o mesmo terrível desfecho é reproduzido no pa-
cote dessa moral e suas normas. Permanecem a família, a
pátria e Deus com suas infindáveis e intrínsecas violências
e matanças. Desordens e desarmonias, diria Fourier.
Fourier era um homem religioso, acreditava em Deus e
dedicava-se a formular teorias, a comprová-las calculada-
mente no intuito de auxiliar a realização da vontade divi-
na, que seria perceptível pela observação da natureza, não
pela aplicação de dogmas institucionais. Talvez um pouco
como Etienne de La Boétie, que via a natureza como a
“ministra de Deus e governanta dos homens”, residindo aí
a igualdade entre todos e a liberdade humana. Um Deus
para o qual a tirania é uma negação dele próprio. Apesar
do tom crente de Fourier, sua reflexão se fazia no enfren-
tamento à Igreja, evidenciado por sua exposição da traição

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verve
o novo mundo amoroso para outras invenções no presente

como o corolário da fidelidade religiosa, fraternal e mo-


nogâmica. Hoje, a continuidade do casamento, com suas
alternativas legítimas e as complementares modulações
não-monogâmicas, atrela-se ao pluralismo religioso: mo-
noteísta, politeísta, espiritualista, sincretista, da nova era...
frente a isso tudo, como se afirmam no presente perspec-
tivas ácratas anticlericais?
Lado a lado ao ecumenismo e à tolerância, está a cren-
ça na verdade científica, no saber médico, no mercado
farmacêutico e no desenvolvimento de suas tecnologias.
Saberes não-discursivos ou menores são capturados por esse
mercado e pela medicina ocidental, produzindo varieda-
des sintéticas, genéricas ou patenteadas, cujo tratamento
e os efeitos colaterais variam também conforme o “acesso”
financeiro. Plantas usadas de diversos modos por culturas
dispersas pela Terra ao longo de milhares de anos vão sen-
do atualizadas e inseridas no mercado como bens, ainda
que prossigam os entraves morais, como no célebre caso
do canabidiol ou do “uso medicinal” das cannabis. As novas
drogas produzidas, legais e ilegais, mantêm simultanea-
mente quase todo o planeta diagnosticado e medicaliza-
do, ou dopado à própria sorte consumindo os restos dessa
indústria trilionária pelos becos, vielas, celas, quebradas,
cracolândias etc.
Fourier defendia colheradas de aguardente para curar
enfermidades ou a apreciação de bons vinhos e licores,
adequados a cada tipo de temperamento, capazes de ga-
rantir a harmonia pelo prazer, por uma medicina da atra-
ção. Esta abrangia, também, a comida, o modo de preparar
cada alimento e de cada umx saber o que lhe consiste uma
saúde. Nada similar aos nichos de mercado gourmet, a alta
gastronomia, as cozinhas sustentáveis, os jejuns intermi-

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43
2023

tentes e vômitos provocados, os regimes e o fit e o light,


os deliveries e os ultraprocessados, o veganismo de pops-
tars, os reality shows e o ritmo anfetaminado das cozinhas
chefiadas e caríssimas... E a miséria dos ossos vendidos
nos açougues, da matança dos outros bichos, das mono-
culturas regadas a veneno, das explorações e violências
sem fim, dos incontáveis corpos que não têm o que beber
e comer para se manter de pé; quem dera pelo prazer de
comer junto de quem gostam e se deliciar com seus sabo-
res preferidos.
A comida e a saúde foram e são questões caras axs
anarquistas. Assim como os prazeres e o amor: livres. Se
o novo mundo amoroso de Charles Fourier ficou censurado
e ocultado até 1968, quando, na França, houve a coragem
de publicar pela primeira vez suas obras completas, cer-
txs libertárixs já tinham sido atraídos e atiçados por este
mundo. Ainda que muitxs outrxs ácratas não tomassem
conhecimento, banissem os trechos mais escandalosos do
autor de seus periódicos, ou negassem o que lhes parecia
anormal, imoral, reprovável1.
Foram as leituras sobre o amor e as paixões a partir de
Fourier que empolgaram Giovanni Rossi a escrever Un
Comune Socialista (1878), obra que, de certa forma, seria
um convite para a Colônia Cecília: experimentação anar-
quista rural, no sul do Brasil, e que teve como uma de suas
questões mais importantes a mudança dos costumes amo-
rosos e familiares. A luta contra a propriedade se expandia

1
Sobre isso, ver a análise de Laura Fernandez Cordero a partir do arquivo da
imprensa anarquista na Argentina, entre 1880 e 1930: Amor y anarquismo:
experiencias pioneras que pensaron y ejercieron la libertad sexual, Buenos Aires,
Siglo Veintiuno, 2017.

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verve
o novo mundo amoroso para outras invenções no presente

para a abolição da propriedade de umx sobre x outrx: do


homem sobre a mulher, dos pais sobre xs filhxs.
As contribuições de Fourier para as experimenta-
ções de formas de vida em comum sem Estado e sem auto-
ridade, dentre elas a destacável Colônia Cecília, foram
analisadas por Émile Armand, com o olhar atento às
falanges fourieristas, levadas adiante entre 1840 e 1850,
notadamente nos Estados Unidos da América2. Não é de
surpreender que o novo mundo amoroso reverbere na con-
cepção de camaradagem amorosa elaborada por Armand,
uma das mais precisas e delicadas reflexões acerca do amor
livre e do sexo livre, datada de 1916, um século depois da
obra do socialista. Para Armand, em atração e expansão
com outrxs anarquistas, não se tratava de um vir a ser, mas
de experimentações no aqui e agora, libertárias, prazero-
sas, alegres, no combate certeiro ao amor escravo.
Pós 68, depois de Michel Foucault chamar a atenção
em Vigiar e Punir para as corajosas considerações fourie-
ristas, no século XIX, do jornal La Phalange, foi Daniel
Guérin quem enfatizou a importância do livro então re-
cém-publicado, especialmente pela forma como Fourier
lidava com a chamada homossexualidade (noção inexis-
tente no início do século XIX, quando escreveu Fourier,
mas cujas práticas já eram condenáveis religiosa, social e
juridicamente, identificadas com termos como “sodomia”,
“safismo”, “pederastia”). Em Um ensaio sobre a revolução
sexual (1980), ele ressaltou que toda a variedade de gos-
tos e prazeres estava contida no objetivo das paixões, na
2
Formas de vida en común sin Estado ni Autoridad (2014), livro sem
tradução para o português, como grande parte da obra de Émile Armand,
encontra-se disponível em: https://www.hebracomunidad.org/wp-content/
uploads/2018/07/Formas-de-vida-en-común-sin-estado-ni-autoridad.pdf

verve, 43: 67-74, 2023 73


43
2023

harmonia em combate à civilização. Mais recentemente,


a obra fourierista vibrou e reverberou em Peter Lamborn
Wilson, o Hakim Bey, que, na ultrapassagem para o novo
século XXI, afirmou a existência de Charles Fourier, su-
blinhando o tom libertário de suas proposições, muito
avançadas e ousadas. Ele repensou a atração, expandindo
como poesia a teoria do autor que buscava, na época, traçar
o equivalente à lei da atração de Newton no campo social.
Mais do que isso, no campo amoroso, das paixões.
O novo mundo amoroso, censurado e sob muitas tentati-
vas de apagamento — inclusive dos discípulos fourieristas
—, atravessa séculos de experimentações e lutas anarquis-
tas. De forma menor, por vezes, quase imperceptível. Dele,
selecionamos breves trechos para ganharem forma em
português, mas pontuando que a dimensão de sua propos-
ta cabe a um trabalho minucioso de tradução e pesquisa.
Agora, frente a tantas assimilações como direitos, mer-
cados, representações, normalizações, modulações alter-
nativas, vale questionar os efeitos e o estado das coisas que
parecem definitivamente liberadas. Mais do que isso, é
preciso se atentar aos enfrentamentos libertários hoje e às
maneiras pelas quais estamos experienciando e praticando
outros costumes, na luta incessante contra as forças que,
atualmente de formas mais sutis e refinadas, incidem no
sentido de assimilar, pacificar e aniquilar anarquias. Vale
lembrar as existências que instauraram outros costumes,
que implodiram e reviraram os costumes da época, para
atiçar atrações inventivas no presente. Com prazeres e pai-
xões, anarquicamente.

The new loving world for other inventions in the present,


Flávia Lucchesi.

74 verve, 43: 67-74, 2023


verve
o novo mundo do amor (excertos)

o novo mundo do amor (excertos) 1

charles fourier

consequência da monogamia:
o adultério ou a traição
Para se ter uma ideia da espantosa confusão que reina
no amor civilizado, bastaria _______2 para que o único
gênero permitido, o amor constitucional chamado casa-
mento exclusivo ou monogamia, forneça por si só mais de
cem espécies de _______ praticadas sob o nome de adul-
tério ou traição, com os quais reuni, na sexta seção, uma
tabela regular de sessenta e quatro espécies3.
Essa infracção universal na única classe de amores
lícitos, que se julga como uma desordem nos amores...
_______ profunda incompetência social dos nossos legis-
ladores sobre esse ramo da paixão que participa junto com
1
Seleção feita a partir da edição Charles Fourier. La armonía pasional del
nuevo mundo. Taurus, Madrid, 1992.

2
Todos os espaços em branco correspondem a palavras ilegíveis, a fragmentos
do manuscrito original roídos por ratos ou, simplesmente, a momentos em
que Fourier interrompeu sua exposição para seguir desenvolvendo o tema.

3
Uma seleta de “alguns tipos de corno” elencados por Fourier foi publicada
em português na revista Libertárias, nº3, setembro de 1998, São Paulo,
Coletivo Libertárias, pp.28-29.. (N.T.)

verve, 43: 75-88, 2023 75


43
2023

a ambição... ______ O que é que desejam no amor, assim


como nas outras paixões4? Querem novos prazeres, um
desenvolvimento completo da natureza, sempre obstacu-
lizado na civilização.
Nem no capítulo do amor nem sequer em nenhum
outro me reconciliarei com os belos espíritos civilizados,
sempre tão ávidos em dizer algo novo, pois como poderia
concordar com os belos espíritos servis, que não fazem
mais do que copiar uns aos outros, com tantas novidades
como tenho para contribuir, tanto sobre o amor quanto
sobre as outras paixões?
Se minha teoria fosse reconciliada com os costumes
e prevenções existentes, não criaria novas fontes de pra-
zer, nem faria outra coisa senão mascarar as privações co-
nhecidas. Com isso, não satisfaria os gozos secretos pelos
quais o leitor anseia; é em matéria de amor onde pode,
verdadeiramente, recusar-se o belo espírito que passeia
pelas ruas sem produzir nada de novo; tantos escritores
brilhantes, que só souberam tratar sobre o conhecido gê-
nero de amor e não proporcionaram o meio de inventar
algo novo no gozo amoroso, nem de devolver esse tipo de
prazer a quem o perdeu. Assim, todos os candidatos ao
amor, tanto jovens como velhos, querem unanimemente
que se abra algum caminho novo que assegure o supérfluo
e a variedade de ilusões aos jovens e, aos velhos, as ilusões
4
Émile Armand procurou sistematizar as paixões mapeadas por Charles
Fourier. No primeiro grupo, das paixões sensíveis, estão: visão, olfato, audição,
paladar e tato; no segundo, das paixões afetivas, estão: ambição, amizade, amor,
familismo; no terceiro, as paixões diretivas propostas por Fourier: cabalista,
voltigeo e composta. A paixão afetiva, denominada por ele voltigeo, refere-se
ao desejo de mudança e à variedade dos objetos perseguidos e desejados. Cf.:
Émile Armand. Formas de vida en común sin Estado ni Autoridad. Innisfree,
Madrid, 2014. (N.T.)

76 verve, 43: 75-88, 2023


verve
o novo mundo do amor (excertos)

necessárias que não encontram na ordem civilizada, onde


as constituições e as religiões aspiram que um velho, ho-
mem ou mulher, não tenha necessidade de nenhuma ilusão
amorosa. A Natureza determina de outro modo, e os ido-
sos pensam com razão que devem obter tanto mais prazer
das ilusões quanto menos prazeres sensuais tenham. Os
jovens têm, além disso, muitas outras pretensões que não
satisfazem de forma alguma na ordem civilizada e que, no
entanto, devem satisfazer caso se queira elevar o gênero
humano à felicidade.

para satisfazer os desejos universais, é preciso


contradizer os preconceitos
Para satisfazer os desejos das diversas idades, para lhes
proporcionar no amor gozos completamente novos, devo
contradizer em todos os seus aspectos as precauções civili-
zadas, cujo resultado não é senão uma ordem de coisas in-
capaz de agradar aos vários gostos. Portanto, o leitor deve
desejar que me arme contra ele mesmo, arranque seus
preconceitos e o transporte para um novo mundo em que
costumes inauditos produzam prazeres desconhecidos,
para todas as idades, de um e outro sexo. Repito, é o leitor
quem deve exigir de mim essa condição. Vou cumpri-la.
É sobretudo em matéria de amor que se deve evitar o
tom dogmático. No entanto, o assunto se tornou tão em-
bromado, as amálgamas entre superstição e filosofia credi-
taram tantos erros, que devolver os espíritos à natureza su-
porá uma tarefa árdua. Ademais, atacarei os preconceitos
dos quais cada um é o inimigo secreto, pois a sua extinção
proporcionará certos bens que desejam. Nessas condições,

verve, 43: 75-88, 2023 77


43
2023

todo leitor deve se inclinar de antemão à minha doutrina


e desejar sua própria derrota.
[...]

os santos e os heróis da harmonia


Só se admitirá como santos e heróis os seres que ti-
verem contribuído, efetivamente, para a felicidade dos
humanos nesta vida, e como a boa comida e o amor são
os prazeres, de forma geral _______, e serão estes cujo
aperfeiçoamento elevará à santidade quem tiver concorri-
do energicamente.
Da parte dos civilizados e dos bárbaros, resulta cômico
que tenham associado o grau de santidade às práticas inú-
teis para o gênero humano, a orações e austeridades que
não fazem bem a ninguém, nem mesmo a quem se con-
sagra a elas. Parece que os civilizados, que se vangloriam
da perfeição, deveriam se distinguir dos bárbaros a esse
respeito; mas, pelo contrário, valorizaram absurdos e o es-
pírito humano pôde ser desafiado a inventar nada mais
inútil do que a conduta dos santos da idade moderna. Se
a antiguidade civilizada teve seu ridículo, pelo menos, es-
teve isenta disso.
A harmonia não poderia deixar de especular sobre a
ilusão da santidade, pois tira proveito de todas as ilusões,
mas só admite santos úteis e que, ademais, contribuam
para os dois objetivos do sistema social: o aprimoramento
das riquezas e das virtudes. Sabe-se que, por virtudes, en-
tendo os costumes apropriados para multiplicar os laços
cardeais: amizade, sectarismo, amor, familismo.

78 verve, 43: 75-88, 2023


verve
o novo mundo do amor (excertos)

A santidade da harmonia não é reservada para o outro


mundo. Já neste, desfruta-se abundantemente dela. Os
santos são de duas ordens, a saber: uns a título de sabedo-
ria ou proezas gastronômicas, e outros a título de virtude
ou proezas amorosas.
(…)
Dado que na Harmonia os diplomas de santo e de he-
rói implicam recompensas elevadas, são concedidos só à
base de títulos devidamente ratificados e de numerosas
provas graduadas nas quais o candidato deve justificar ap-
tidões para todas as funções requeridas, a saber:
Em santidade maior, a sabedoria gastronômica;
Em heroísmo maior, as ciências;
Em santidade menor, a virtude amorosa;
Em heroísmo menor, as artes.

considerações sobre maior santidade ou cabala


gastrosófica5
Na medida em que o prazer mais geral é o do sibaritis-
mo6 ou mesmo o do alimento considerado como uma ne-
cessidade, e sendo este prazer o primeiro e o último gozo
do homem, que o deleita desde o nascimento até a sua
última hora, não é surpreendente que todos os séculos o
tenham considerado em sentido burlesco e que os povos
degradados e desgraçados não tenham visto no sibaritis-
5
Literalmente, sabedoria do estômago. (N.T.)

6
Os sibaritas, habitantes da cidade de Síbaris, na Grécia Antiga, são
conhecidos pelo cultivo dos prazeres. (N.T.)

verve, 43: 75-88, 2023 79


43
2023

mo uma via de sabedoria, senão apenas uma distração no


mal.
Para desculpar o erro geral tanto quanto possível, dis-
tingamos a gula em material e política: a distinção ma-
terial compreende apenas o exercício bruto do quarto
sentido, chamado gosto; tampouco vemos que os antigos
tenham se elevado mais, nem que tenham ideia do siba-
ritismo ou da gastrosofia política dividida em três ramos,
a saber:
1) Gastrosofia prática: o preparo culinário de acordo
com o temperamento;
2) Gastrosofia teórica: a digestão acelerada e abundan-
te ou higiene positiva;
3) Gastrosofia mista: a direção das duas primeiras e,
por conseguinte, o conhecimento dos 810 temperamentos
e das proporções de cada produto cozinhado.
Os governos da Antiguidade, os Vitélio, os Nero, ca-
íram nos excessos. Eram gulosos, glutões e vorazes, mas
não gastrônomos. Direi o mesmo de Lúculo, Alcibíades
e Apício, gulosos mais refinados, gastrônomos se qui-
ser, mas ainda distantes do gostismo político. Sirvo-me
da palavra gostismo porque compreende os dois senti-
dos, o material e o político, enquanto gula e gastrosofia
só se aplicam ao material. Não temos conhecimento de
que nossos gastrônomos tenham contribuído com algum
progresso na útil ciência da higiene. Apenas buscam o
segredo de Vitelus, a arte de comer muito. Na verdade,
ele não passava de um atleta grosseiro que provocava o
vômito para comer duas vezes, mas não por isso era estéril
em termos de gênio material, pois havia inventado um

80 verve, 43: 75-88, 2023


verve
o novo mundo do amor (excertos)

prato muito custoso e exótico e, desde esse ponto de vista,


era semelhante aos nossos gastrônomos que, no máximo,
sabem inventar alguns refinamentos no preparo, sem nada
fazer para o progresso da higiene, ciência que os médicos
civilizados sequer conhecem, posto que ignoram os mati-
zes de temperamentos.
[…]

analogia entre as paixões e as substâncias


alimentares
O estudo gastrosófico implica premissa que exigirá
mais de cem anos de trabalhos. É o conhecimento das
analogias entre as paixões e as substâncias alimentares,
vegetais, animais etc. Por exemplo, sabe-se que a maçã
é um hieróglifo da amizade, advertir-se-á que ela exerce
tais influências sobre os temperamentos hieroglíficos da
amizade, neste ou naquele grau, e se determinará o meio
de aplicar efetivamente a maçã em suas quatro fases: crua
na infância, cozida na adolescência e açucarada em ou-
tras épocas. Logo, esse fruto será misturado segundo as
paixões cujas influências combinadas representarão esse
temperamento. Se, trata-se de um Digino7 dominante de
amizade e amor, saber-se-á que a mistura de maçã e da-
masco lhe é saudável, salvo as preparações variadas.
Coloquemos melhor este interessante problema. Todos
os dias se ouve falar de pessoas que se felicitam por al-
gum prodígio na medicina atraente, isto é, em remédios
agradáveis; alguém me disse ter se curado de uma doença

7
Conforme o esquema de Torbellino passional ou alma humana, Digino se
refere à duas paixões dominantes (N.T.).

verve, 43: 75-88, 2023 81


43
2023

grave por meio de maçãs reinetas, das quais gostava mui-


to; um outro, presta homenagem semelhante às uvas, às
compotas, aos lacticínios, a este ou àquele vinho. Eu, de
minha parte, fui curado de uma febre incipiente por meio
de uma colherada de aguardente velha que me cortou a fe-
bre, purgou-me, devolveu-me o apetite e funcionou mila-
grosamente. Um Esculápio teria me drogado, enraizando
em mim a febre por pelo menos uns quinze dias.

a medicina atraente
Existe, pois, uma medicina atraente ou natural que se
compõe de alimentos agradáveis e sobre os quais os mé-
dicos civilizados não têm a menor noção. Muitas vezes,
o acaso e a inspiração são os meios pelos quais se encon-
tra o remédio atraente e os que o acham cometem uma
infinidade de leviandades a esse respeito, entre outras, a
de querer aplicá-lo a temperamentos muito distantes do
seu, a idades e doenças que diferem em grau. Mesmo que,
por acaso, encontre-se o mesmo temperamento e a mesma
doença (uma difícil constatação entre os 8108), ainda as-
sim, permaneceria a diferença de idade do sujeito e a dos
períodos e circunstâncias do mal. Por conseguinte, pode-
-se dizer que a medicina natural e atraente não nasceu e
que os lances de fortuna que o acaso nos oferece nesse
gênero são benefícios peculiares e perdidos para a ciência,
que não sabe, ou talvez não queira, tomar partido deles,
pois esse conhecimento, uma vez estendido e aperfeiçoa-
do, causaria um déficit enorme nas finanças dos médicos.

8
Fourier calculou existirem 810 tipos de temperamento, para homens e para
mulheres, que se somariam chegando ao número de 1600 habitantes dos
falanstérios idealizados por ele, tendendo à harmonia. (N.T.)

82 verve, 43: 75-88, 2023


verve
o novo mundo do amor (excertos)

O que diriam Purgon e Diafoirus sobre a arte de curar


doenças com um pouco de geleia, licores finos e outras
guloseimas, ou uma colherada de aguardente? E se encon-
trasse, nos alimentos agradáveis, algumas milhares de re-
ceitas semelhantes, aplicáveis aos diversos temperamentos
em distintos casos? Isso representaria um fracasso furioso
para a medicina civilizada.
Este é o problema que a ciência gastrosófica deve re-
solver. Ela deve realizar o milagre em sentido curativo e
profilático. Damos alguma noção sobre este último.
A higiene profilática dos civilizados, ao estabelecer
como primeira regra a sobriedade, atua totalmente em sen-
tido negativo. No estado atual, deve-se especular assim, pois
não se conhecem os 810 temperamentos nem os alimentos
análogos. Aconteceria, consequentemente, no caso de um
alimento abundante, que o sujeito, na falta de outros pra-
tos, cairia frequentemente naqueles que não lhe convém,
uma vez que a cozinha civilizada não oferece a variedade
conveniente. De outro lado, os civilizados desprovidos de
distração e opção de prazeres cometem o erro de abarrotar
a mesa. É um segundo motivo para sujeitá-los à higiene
negativa ou à sobriedade. (pp. 247-248).
[…]

matizes de poligamia harmônica nas partidas


quadradas, sextinas etc., ou unitárias
Por fim, chegamos ao mistério sentimental que constitui
o encanto dos amores polígamos, à fonte secreta que
deve fazer brotar o entusiasmo coletivo e às ilusões mais
sublimes dessa pluralidade de amores que, se atualmente

verve, 43: 75-88, 2023 83


43
2023

estivesse descoberta, só causaria discórdia entre as pessoas


amadas, de uma vez, por apenas uma e seu desprezo pela
alma vulgar que assim compartilharia seu coração.
Comprometer-se, assim, a enobrecer o que é mais des-
prezível parece uma pretensão muito ousada. Deixemos
entrever que a desonra da poligamia só pode ser um efeito
de nossa ignorância sobre a mecânica passional.
Numa ordem social em que reinará a absoluta liberda-
de no amor, é certo que será muito mais polígama do que
é hoje, onde este costume, embora incômodo e secreto,
já é tão generalizado entre toda a juventude. Logo, dado
que as relações da harmonia se distribuirão de tal maneira
que não possam ocultar os laços, exceto nas duas corpo-
rações pouco numerosas da plebe baixa, titulada em falsi-
dade. Onde estaríamos se essa poligamia, que será quase
geral e, portanto, pública, se convertesse em um objeto de
desprezo? Foi Deus que julgou a propósito de lhe dar um
desenvolvimento público... na harmonia teria cometido
uma omissão inexplicável, de não ter advertido o meio
para lhe dar o maior brilho, tanto na relação sentimental
como na sensual, portanto, teria quisto obstaculizar, re-
baixar o amor, sua paixão predileta. Não há nada disso, e
vamos reabilitar a poligamia e mostrá-la como uma via
das elevadas ilusões sentimentais. Quanto mais delicado
é o tema, mais devo me basear nas provas extraídas da
civilização e de suas poligamias. Quanto mais confusas e
reprovadas são, e quanto mais estão reunidas ao acaso sem
levar em conta os contrastes ou a gradação de caracteres
mais presságios favoráveis proporcionarão às poligamias
regulares, onde todas as regras ignoradas pela civilização
serão observadas.

84 verve, 43: 75-88, 2023


verve
o novo mundo do amor (excertos)

Começo pelo menor gérmen, que é a partida quadrada


ou sextina e oitavada. Já sabemos qual é o resultado: cada
um dos dois casais corneia secretamente os outros. É o
prazer supremo do burguês honesto sob o pretexto dos
bons costumes e da boa afinidade dos ternos esposos. Ela
forma essas uniões de dois ou três casais que, depois de
algumas entrevistas inocentes, festas, viagens de campo,
chegam a intimidades mais estreitas e, logo, as grandes fa-
miliaridades. Tudo isso, ocultado com grande mistificação
sob o véu da moral e dos jogos inocentes da boa sociedade,
da boa afinidade e em cuja honra os referidos casais, como
prescrito pela filosofia, atuam como irmãos e amigos entre
os quais tudo é comum. Todos se abstêm de reconhecer
esse princípio que, no entanto, se pratica e o qual é, to-
davia, melhor do que professá-lo. Em consequência, cada
uma das três damas usa livremente os dois maridos de
suas vizinhas e cada um dos três maridos usa das espo-
sas honestas, bem mascaradas sob a moral, os sacrilégios
e o puritanismo etc. De outro lado, quem souber manejar
bem a camarilha se ___ uma boa inteligência, passará ape-
sar de todos os inconvenientes.
Não há distração mais atraente para a burguesia do que
essas partidas quadradas e sextinas, onde se trocam es-
posas e maridos com tanta destreza. Frequentemente, as
partidas são organizadas apenas com amigos de casa e as
coisas não podem correr melhor, e o mais notável nessas
uniões é que nelas nasce muito rapidamente a inclinação
amorosa entre os diversos campeões. Cada um ronda o
terreno dos demais; a esse respeito, lembro do dístico cita-
do anteriormente, aplico-o a todos os esposos.
(…)

verve, 43: 75-88, 2023 85


43
2023

É muito interessante definir com exatidão as causas


dessa inclinação geral pela poligamia composta ou mania
de trocas familiares nessas reuniões honestas onde, na me-
dida em que cada um conquista o seu vizinho, enquanto
este o consente, seguem-se a rigor os preceitos filosóficos
de balanças e contrapesos, garantias e equilíbrios.
O verdadeiro encanto dessas reuniões, encanto que a
sutileza de nossos analistas jamais teria descoberto, con-
siste no fato de que estas permitem o desenvolvimento
das três paixões distributivas. Para observar esse efeito,
suponhamos uma partida sextina ou oitavada com apenas
três ou quatro casais e distingamos em sua união o jogo
das três distributivas.
1º. Composto ou engrenagem. – Um número de casais,
não superior a três ou quatro, pode aumentar o vínculo de
amizade que os une e que serve de máscara dos outros três
afetos. Em primeiro lugar, o do amor, que é sempre a fonte
secreta desses encontros, seguido pelo da ambição, pois os
menos ricos se aproveitam dos mais ricos e por isso fecham
os olhos às perdas que a sua cara metade experimenta, às
vezes, no contrato. Esse assunto de família, essa provação
engenhosamente encoberta pelos indulgentes laços de pa-
rentesco que, sendo sagrados aos olhos dos moralistas e dos
confessores, resultam muito cômodos como máscara para
belos e bons incestos. Em resumo, em uma partida quadra-
da ou sextina, os casais, além do laço secreto de amor e do
laço real de amizade, têm mais ou menos o laço da ambi-
ção e, algumas vezes, o de parentesco. Pois em alguns casos
aparecem rebrotes que ao vínculo de parentesco acrescen-
tam o das boas relações entre pessoas contíguas. Esses elos,
todavia, descansam em fontes sensuais, como o cinismo, a
gula etc. Há mais materiais necessários para desenvolver a

86 verve, 43: 75-88, 2023


verve
o novo mundo do amor (excertos)

composta em todas as variedades (1ª secção) e isso expli-


ca a violenta inclinação que sentem os mais virtuosos, os
Lucrécio e as Pamela, pelas partidas quadradas ou sextinas.
2º Borboleteante9 ou alternante – Onde essa paixão se de-
senvolve melhor é na partida sextina, e é aí em que se pode
experimentar o prazer da variedade; ao tomar a mulher
do vizinho, este lhe cede a sua, da qual está cansado e que
deseja ceder sem que pareça dar-se conta dessa troca tão
mascarada pelas inocentes frequentações. A partir de então,
os matrimônios estão mais alegres porque as mulheres são
pouco exigentes quanto ao dever conjugal, cujas lacunas são
amplamente compensadas, e os maridos estão contentes
por serem menos importunados quanto a esse gênero de
dívidas e nada pode ir melhor no doce casamento, graças à
prática da compensação. Na comédia de Crispin, o médico,
doutor Mirabolan, quer acariciar a donzela e ela lhe respon-
de: ‘Senhor, como pode, tendo uma mulher amável?’. Ao
que ele replica: ‘Ah, Dorine, se você soubesse o que é comer
todos os dias do mesmo prato!’. Parece que maridos e mu-
lheres compartilham a opinião de M. de Mirabolan, pois
gostam muito de trocar de prato, salvando as aparências.
Esse é um dos grandes encantos dessas partidas quadradas
e sextinas, nas quais se satisfaz, cômoda e moralmente, a 11ª
paixão chamada borboleteante ou alternante.
3º Cabalista – Nessas reuniões libidinosas, murmura-
-se sobre o próximo e se formam coalizões para fazer e
desfazer famosos. Os especialistas em tais ligas amorosas
têm sua prática de hipocrisia, adquirem um tom arro-
9
Na tradução para o espanhol, utilizou-se a palavra mariposeante, cujo
significado é de alguém que, em matéria de amores, varia com frequência;
que flerta, coqueteia; vaga ou ronda ao redor de várias pessoas, como a
mariposa o faz em torno da luz (N.T.).

verve, 43: 75-88, 2023 87


43
2023

gante no que se refere ao capítulo da virtude, seguros


da discrição de seus confidentes, difamam audazmente
a uma pobre vizinha que, em intrigas amorosas, não fez
nem um quarto de suas façanhas. Mas que não tem o
apoio das cabalas sextinas, das fofocas e meios de calúnia
de que dispõem os iniciados nessas orgias. Sua camarilha
especula sobre _______ do fraco como os _______ da
corte do leão sobre a delação do pobre burro que não
podia se defender. Essa era a tática das vestais da Ilha
Desconhecida _______ elas acusavam algumas pelo me-
nor pecado e pretendiam que não se sabia amar, senão se
sabia entregar a sete ou oito homens encobertos por um
titular marido ou amante.
(…)
Depois desses detalhes, já se pode entrever qual é o in-
centivo secreto das uniões polígamas; que elas satisfazem,
de uma vez, as três paixões distributivas que são fontes
transcendentes de nossas almas; em consequência, quan-
to mais paixões satisfaça, mais estimula a atração. Se já é
muito forte entre nós para as partidas sextinas, oitavadas
etc., se essas partidas, embora disformes e confusas, apre-
sentam um atrativo irresistível na civilização, como será na
harmonia, quando elas se organizarem em grande escala e
magnificamente em quadrilhas regulares diferenciadas de
8 a 32 caracteres, afiançadas com uma multiplicidade de
incentivos que se graduarão segundo as leis das paixões
distributivas. Enfim, desenvolvidas sincera e nobremente,
variando de emulação e não de malícia.

Tradução do espanhol por Flávia Lucchesi.


Revisão técnica por Florencia Carrizo.

88 verve, 43: 75-88, 2023


verve
a cem anos-luz: rené schérer

a cem anos-luz: rené schérer

eder amaral

O rastro das estrelas, a ciranda das estações, o escoamento


dos trabalhos e dos dias, os ciclos menstruais, os partos e
parições,
as mortes e os nascimentos – todas estas são as engrenagens
do mesmo grande relógio para o qual o tic-tac do tempo de
uma vida
deve ser muito calmante, muito tranquilizador.

Michel Tournier, Os meteoros

Conversar com Schérer, tê-lo diante de si. Perturbar-


se, não saber o que dizer às suas orelhas, desde sempre
cansadas de perguntas sem importância, tão sensíveis ao
timbre e à emoção, hospitaleiras ao tom das palavras de
quem vem de outro lugar. Em sua presença física, ancião
tão menino entre biscoitos e limonada, capta-se uma es-
pécie de passagem do que ele diz ao que ele vê, com olhos
longínquos, ciosamente pegos no sonho de um mundo que
já é, sempre foi e será, aqui e agora, em tudo distinto do
que a hipocrisia de ocasião costuma chamar de realidade.
Um mundo onde se pode desejar ferrovias que abracem
Eder Amaral é professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
da Bahia. Contato: ederamaral@uesb.edu.br.

verve, 43: 89-93, 2023 89


43
2023

cada quilômetro da Terra pela hospitalidade planetária da


viagem sem pressa, partida pueril em direção à infinita ri-
queza das atrações passionais, desvio absoluto em relação
a uma sociedade do medo, dos perigos e da segurança,
rumo ao estrangeiro que nos atrai, devora e modifica.
Evocar tão apressadamente os sinais de um encontro é
apenas um jeito de não deixar de fora o essencial, o efeito
dele em nós, a partir do que podemos ultrapassar a abstra-
ção esterilizante da mera lembrança e atingir, por precária
que seja, a via direta em que uma vida se expressa, para
além da figura de um pensador vigoroso em filosofia, para
além do professor que fez da generosidade seu estilo, para
além do escritor fabuloso, delicadíssimo, numa existência
atravessada por essa sensibilidade radical à beleza da vida
como utopia nômade e já realizada, em cada ferocidade
e jubilação, em cada rabisco, grito, fúria e riso de crian-
ça, em cada falha do projeto e linha de errância, em cada
amor furtivo e perdição. A inatualidade de Fourier, cujas
palavras, cálculos e sonhos se revelam inteiros na voz do
professor mais jardineiro de Vincennes é o desvio absolu-
to, a aposta no impossível à qual Schérer dedicou obstina-
damente toda sua existência.
Em primeiro de fevereiro de 2023, recebemos a notí-
cia da desaparição do filósofo, ensaísta e professor René
Schérer (Tulle, 1922 – Paris, 2023), um dos fundadores
do Centro Universitário Experimental de Vincennes /
Paris 8 — a partir do qual se fez colega e contemporâneo
de François Châtelet, François Lyotard, Alain Badiou,
Jacques Rancière, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix
Guattari, dentre muitos outros encontros em sua longeva
trajetória filosófica. Seu nome teima como um dos ras-
tros mais luminosos e, paradoxalmente, mais discretos da

90 verve, 43: 89-93, 2023


verve
a cem anos-luz: rené schérer

constelação francesa do pensamento contemporâneo per-


corrido pelo calor político dos anos 1960 e 1970.
Schérer também foi irmão caçula do diretor e crítico
de cinema Éric Rohmer, pseudônimo de Maurice Schérer
(1920-2010), um dos criadores dos Cahiers du Cinéma,
com o qual manteve por toda a vida uma companhia in-
tensiva que ultrapassava a fraternidade de sangue. Vem
do irmão mais velho a paixão pelo traço e pela cor que o
tornaram um aquarelista não apenas em seus cadernos de
desenho, levados sempre consigo por onde passou em suas
viagens, mas também no modo único como transbordou
os limites do pensamento do seu tempo, guiado pelo so-
pro papilônico das atrações passionais com as quais poli-
nizou sua filosofia: o pivô-Fourier, em torno do qual gira
o ponteiro da sua bússola por toda a vida, orientando suas
interlocuções maiores no horizonte filosófico partilhado
com Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida; o encontro
transformador com Hocquenghem, com o qual partilhou
e inventou um estilo de pensamento e vida, arte e comba-
te; a imanência do desejo, que tem na infância (esta força
anônima e impessoal que ultrapassa a existência empírica
das crianças) sua expressão, abertura e horizonte; a memó-
ria-clareira, aquela deixada no bosque de Vincennes pela
demolição odiosa do campus sonhado e vivido, mas tam-
bém a de uma vida centenária que assiste, atenta e vivaz,
a passagem do século que inventou liberdades ao mesmo
tempo em que as confinou sob os signos do pânico moral,
da paranoia securitária e das cínicas convicções civiliza-
tórias. Em Schérer, a memória é movida por esta força
escandalosa de um passado que acha lugar em seu corpo
e em seu pensamento, como um artífice de fagulhas ex-
temporâneas que tornam a filosofia, de novo e a cada vez,

verve, 43: 89-93, 2023 91


43
2023

um tipo vivo de perigo. É por isso que Schérer também


inventa e combina uma ecosofia guattariana e fourierista,
uma atitude cosmopolítica renovada (longe de Kant, per-
to de Proudhon), uma hospitalidade como comunidade
partilhada, a transgredir alegremente as fronteiras (cultu-
rais, políticas, societárias, ecológicas...), uma constelação
penumbrosa de imagens da infância, da educação, da vida
amorosa, da estrangeiridade, do ziguezague da história —
traços que, no conjunto, desenham a fisionomia monstru-
osa e delicada de um anarquismo passional como modo de
existir e viver. Imanentemente.
Artista do retrato em aquarela e em filosofia, Schérer
deixou uma obra imensa (cerca de 30 livros) e plural,
abordando uma miríade de temas, problemas e conceitos,
da fenomenologia da comunicação à erótica da hospitali-
dade, da infância à ecosofia, da restauração imanentista de
conceitos abandonados pelo discurso cientificista moder-
no à afirmação de um “anarquismo velho-menino”, coti-
diano, sempre sob o signo do encontro com o pensamento
de Charles Fourier. Sua obra-acontecimento é percorrida
pelo gesto delicado e firme de cultivar um olhar indireto,
ambíguo, insinuante, distraído no – e pelo – que entrevê.
Sua repulsa à luz ofuscante das “ciências incertas” face à
sedução de um mundo diariamente ferido por tamanhas
desaparições tinge cada ideia e imagem schéreriana com
essa raiva sutil e amorosa inventada em nós quando do
nascimento de uma força. Estranhar-se, permanecer in-
quieto e afim, não poder retribuir ao que é dado, senão re-
cebendo. Schérer fere quem o lê com um veneno saboroso.
Há nele uma velocidade antiga, inumana, fóssil, ao lado da
mais ligeira meninice, saltando entre as mãos que pare-
ceriam trêmulas a quem não as soubesse conduzidas pela

92 verve, 43: 89-93, 2023


verve
a cem anos-luz: rené schérer

mais apaixonada arte da aquarela. Pequena homenagem


em sua memória, este texto apenas rabisca alguns traços
imprecisos, na intenção de entrever e mostrar a quem lê,
não seu rosto, mas a marca de um olhar, uma voz, uma
paixão pela vida como arte do combate.

René Schérer, pintura de Thierry Briault (2022)


In : De la peinture à la peinture, dialogue avec René Schérer. Ici et ailleurs.
Disponível em : <https://ici-et-ailleurs.org/contributions/esthetique-et-
critique/article/de-la-peinture-a-la-peinture>.

verve, 43: 89-93, 2023 93


43
2023

o direito ao segredo1

rené schérer

É que encontro tantos sentimentos inexplicáveis no fundo do


meu coração que eu mesmo não posso chegar a desvendá-los.

Madame de Duras, Olivier ou le secret2

1
Publicado originalmente em L’Observatoire de la télévision, revista mensal,
fevereiro de 2000, nº 18. Esse foi o último número impresso da revista,
que desde então migrou para o formato eletrônico. A versão aqui traduzida
foi reeditada como “Suplemento – pivô inverso” no livro de René Schérer
intitulado Pour un nouvel anarchisme, Paris, Éditions Cartouche, 2008,
pp. 99-103. A tradução completa dessa obra para o português está em
andamento.

2
Madame de Duras, Olivier ou le secret, Paris, Librairie Joé Corti, 1971, p.
133. A exegese desse romance realizada por Denise Virieux o coloca em
relação com Astolphe de Custine, cujo nome pertence à história literária
da homossexualidade. A mesma comentadora evoca o tema idêntico do
segredo tratado por Stendhal, contemporâneo de Duras: “Seu projeto se
aproximava daquele presente em Mme de Duras, e Armance [romance de
Stendhal publicado em 1827] nos parece uma variação sobre Olivier” (o. c.,
p. 47). Cf. igualmente Joë Bousquet: “Armance é um livro nascido de uma
reflexão crítica sobre Olivier, manuscrito de Mme de Duras. Sabemos disso.”
(Ourika suivi de Édouard, préface de Jean Giraud, étude de Joë Bousquet,
Paris, Stock, 1950, p. 46).

94 verve, 43: 94-98, 2023


verve
o direito ao segredo

Sabemos que em Maio de 68 – do século passado,


evidentemente – a fala foi reivindicada, as bocas se
liberaram e as penas voaram3.
Cada um, cada uma, a dizer, a escrever o que até então se
calava. Suas necessidades, seus desejos, seus medos e, sobre-
tudo, o essencial que guardavam no peito e no ventre, e que
se tinha cuidadosamente escondido, por temor ou pudor:
seu sexo. “Dizer nossas sexualidades” tornou-se uma palavra
de ordem. Todos e todas que viveram aqueles tempos se
lembram disso. Um grande surto jubilante e orgíaco.
Fale! Um esforço enorme foi empregado nisso. Nos
sentíamos ao mesmo tempo culpados e frustrados (menos
culpados que frustrados) se não o fizéssemos.
Até aí, tudo bem. Certamente e sem reticências,
absolutamente bem, porque foi útil para a ampliação
das conexões sociais, como explica Charles Fourier.
Luminosamente bem, assim como quando Sade afirmou
que “o filósofo deve tudo dizer”, ou, ainda em Fourier:
“Por que alguém esconderia suas inclinações quando fosse
possível declará-las?”.
A fala foi a triunfante maestra do vergonhoso segredo
inconfesso que cada um alimentava em si mesmo, como
uma serpente venenosa ou um verme. O “segredinho
sujo”4 da sexualidade, segundo Freud. Tivemos menos
reprimidos infelizes, loucos, complexados. Ou então,
melhor dizendo, eles ocuparam a via pública para sua
3
No original, et les plumes s’envolèrent. Schérer joga com a imagem da pena
– de escrever – em referência aos acalorados debates que se sucediam à
publicação de textos em jornais, manifestos, livros etc. (N. T.)

4
No original, “honteux petit secret”. (N. T.)

verve, 43: 94-98, 2023 95


43
2023

própria exibição, para a grande satisfação de todo mundo.


Quem quer que fosse, fizesse o que fizesse, isso não tinha
mais – ou quase – nenhuma importância. Me refiro à
importância nociva; isso não importunava mais.
No mesmo impulso, as mulheres liberaram suas coortes
de Mênades5 e os homossexuais suas Loucas. Portando
cada qual seu próprio escândalo, eles e elas avançavam
num território já conquistado. Mesmo que eu exagere e
esquematize, permanece verdadeiro que um grande sopro
de liberação acaba por carregar consigo a maior parte do
que se costuma nomear como os preconceitos de um outro
tempo. Os anos setenta marcaram uma real reviravolta
nos costumes.
Mas hoje, no ponto em que estamos do caminho, sob
o olhar retrospectivo do ano 20006, devemos reconhecer
que esse passo à frente foi um pouco como o famoso passo
do qual falara Lênin: seguido – ou mesmo, se refletirmos,
acompanhado – de dois passos para trás. Todos os perigos
da exibição, da exposição pública dessas ditas “sexualidades”
não tardaram a se fazer sentir. Naquele momento mesmo,
eles se fizeram perceber nas notificações formais bastante
desagradáveis dirigidas àqueles(as) que, apesar disso, não
se sentiram particularmente obrigados a arrefecer seu
entusiasmo – ou a abandonar a moda – da autoproclamação.
Por suas posições marginais, Barthes, por exemplo, e até
mesmo Foucault sofreram os efeitos e as marcas de uma
5
Coortes de Mênades [na tradição romana, trata-se das Bacantes]: bando
das ninfas adoradoras do culto a Dioniso, à maneira do que se apresenta em
Dionisíacas, mais longo dos poemas gregos da antiguidade (século V d. C.),
atribuído a Nono de Panópolis. (N. T.)

6
Ano de publicação original deste texto. (N. T.)

96 verve, 43: 94-98, 2023


verve
o direito ao segredo

certa forma de resistência no front avançado e, para dizer


a verdade, essencial, da homossexualidade.
Mas, por sua vez, as mais importantes e incansáveis pau-
ladas foram destinadas aos imprudentes e ingênuos que acre-
ditavam poder estender os direitos de fala e de liberação para
além das fronteiras bem definidas, na direção de uma nova
ordem intransponível, aquela das idades e dos sacrossantos
limites da maioridade e da menoridade. Nesse ponto, sobre
essa linha, o direito de dizer tudo se transforma rapidamente
em obrigação de denunciar. A confissão reassume seu sen-
tido tradicional e jurídico: quebrar o silêncio e arrancar as
máscaras tornam-se os mais potentes instrumentos da polí-
cia dos costumes pela manutenção da ordem.
O século XX se encerra com essa reviravolta histórica
de um princípio de publicidade que, em sua origem,
consistia apenas no motor de uma liberdade de “gozar
sem entraves”7, segundo as palavras de um slogan dos anos
pós-Maio.
A fala ficou, portanto, ambígua. Ela se tornou perigosa.
E mesmo quando ela não é utilizada a serviço da
denúncia, é posta a agir nocivamente para a objetificação
forçada que ela propõe ao indizível, através da luz crua
e esterilizante que ela projeta sobre o imperceptível
e o fecundo. A exemplo dos sentimentos e das paixões
em devir, cuja abençoada confusão íntima nos impede
de submetê-los a apreciações, a definições, a categorias
demasiado estanques. Em vez de favorecê-los, a fala é aí
7
Schérer se refere a um célebre panfleto situacionista publicado em 1966
pelo sindicalista tunisiano Mustapha Khayati, intitulado De la misère en
milieu étudiant [Da miséria no meio estudantil]. A frase completa é Vivre
sans temps mort, jouir sans entraves [“Viva sem tempo morto, goze sem
entraves”]. (N. T.)

verve, 43: 94-98, 2023 97


43
2023

mobilizada e manipulada por cérebros e vozes insensatas


ou perfidamente intencionadas, tornando-se um dos mais
obtusos recursos de imobilização, de petrificação social,
se manifestando em identificações das mais bestiais e
ferozes: a função normativa da ordem do discurso.
Sem dúvida, essa reviravolta paradoxal e inaudita, essa
transvaloração da potência do Palavra em mal – esta que
só deveria portar a poesia e a invenção – tem alguns nomes
associados à sua produção. A psicanálise é um deles, menos
ligada àquela de Freud, é verdade, que à degradação, para não
dizer a abjeção da instituição às ordens da lei; não a mais
importante e sem ser a única, pois é preciso ainda dizer que
a fileira dos movimentos de “liberação” também se lançou
em aberrantes discursos identitários e legalistas. Aqui, dizer é
equivalente a: controlar-se a si mesmo, a se safar.
Assim, nestas condições e nesta conjuntura, de modo
algum de maneira definitiva, sem dúvida – pois é preciso
sempre acreditar na mais alta potência da palavra, do mesmo
modo que é preciso acreditar no mundo – escolhamos,
contra a tagarelice, o silêncio. Ousemos proclamar, diante
das vociferações que brotam de tantas bocas furiosas, o
direito imprescritível de cada um ao segredo. Ao segredo
na complexidade de suas virtualidades, de seu sentido;
dobra infinita, marca e pulsação do vivo.
Trata-se aqui de uma breve consideração, pivô inverso
em relação ao pivô direto das manias diferenciais, antídoto
para um uso perverso da publicização.8
8
Este último parágrafo concerne à posição deste breve texto no corpo
do livro em que Schérer o publicou, funcionando como uma espécie de
interlúdio, à maneira fourierista que inspira a estrutura das obras do filósofo.
É também de Fourier que Schérer empresta o uso da imagem industriosa
dos pivôs (inverso e direto) e da figura fármaco-botânica do antídoto. (N. T.)

98 verve, 43: 94-98, 2023


Ôsugi Sakae, 1923.
democracia e tirania…

Durante o último governo presidencial no


Brasil, o alerta para os riscos à democracia
foi acionado continuamente. Mas o liberalismo
não progride e procria sem enfatizar riscos.
Às vezes, mais veloz, outras um pouco
sonolento, e propositalmente displicente em
sua seriedade. A presença da ameaça fascista
era (e é) insistente. 

Havia e há uma equivocada mania de ver o


fascismo como regime político, esquecendo-se,
propositalmente ou não, do fascismo entranhado
nos costumes. Por vezes, ao se reconhecer o
fascismo nos costumes, isso soava apenas como
retórica sobre os fundamentos das práticas
fascistas e suas crenças. O maior perigo era
permitir ou tolerar a tomada do Estado.

Ao final de 2022, durante a derrota


constatada nas eleições, as forças reacionárias
se juntaram para pressionar, com o apoio das
Forças Armadas, em favor da sua continuidade,
com ou sem democracia. (Afinal, as eleições,
o meio para o rodízio legítimo no governo
democrático do Estado, foram colocadas sob
suspeição e sob a mira de práticas de corrupção
das urnas eletrônicas, mesmo sob a aceitada e
acurada observação internacional). 
O episódio deixou claro que as Forças Armadas
não são neutras ou apenas atuam  como força
de segurança do Estado sob qualquer governo.
O episódio deixou claro que a democracia é
um regime para usos e extravagâncias porque
absorve o pluralismo no leque que vai da
direita à esquerda.

Esse pluralismo, também como retórica,


expõe-se apartado do fascismo que cresce em
meio aos dispositivos democráticos que garantem
liberdades liberais e, principalmente, a
segurança da propriedade. O fascismo fica e
permanece dentro e fora. 

O fascismo, curiosamente, é alvo dos bons


pensantes cidadãos voltados para a correção
de consciência e da importância da inclusão.
Explicitam ser necessário manter diálogos com os
fascistas, visando ajustar as suas equivocadas
consciências e condutas, e exercitar com afinco
o pluralismo. Para o fascista, isso serve para
seu crescimento exponencial e para solidificar
a ideia fixa que ele(a) é o(a) portador(a)
da verdade definitiva e abençoado(a) por
religiões. O fascismo sabe usar muito bem
as estradas principais e as vicinais da
democracia. Conhece os itinerários.

A posse chegou, porém o movimento fascista


nas cidades não passou. Em uma semana, veio a
mobilização contra os cultuados Três Poderes da
República no Estado de Direito a ser defendido
porque ele foi a escolha racional e nacional.
Foi? Foi e não foi. Para os fascistas, isso
é irrelevante, pois estão sempre atentos para
implantar sua própria legislação, circulando
de braços dados ou ladeando os liberais e
proprietários de variados matizes políticos
de direita, aguardando a hora do bote. 

Corre-corre instalado com prisões,


averiguações, gente enquadrada ou quase,
durante fevereiro, março e a vizinha abril.
Tudo esfriou, amornou, porque junto aos
fascistas há massa e proprietários. O governo
do Estado, por direito, tem que deixar todos
à vontade para suas manifestações. Deve
conter a violência contra ele, a iminência da
chamada guerra civil, o risco de ser tomado
por forças mais radicais que coloquem em xeque
sua continuidade… O fascismo extravasa sua
violência, mas, dissimuladamente, logo mostra
como é capaz de ajuizar-se.

Passados estes meses iniciais de novo


governo nada arranhou a democracia. Como no
passado recente, ela atravessou os perigos ao
justificar autoritarismos, não mais por meio
da força do Estado, mas pelo viés eleitoral.
Donald Trump fracassou por lá, Bolsonaro por
aqui. Porém, permanecem com mais ou menos
destaques nas dianteiras dos oposicionistas
juramentados ou não, fascistas declarados ou
não, democratas de ocasião… ou não.
Enfim, a democracia se fortalece com a
insistente constatação de viver em crise a ser
revertida em inovadoras institucionalizações.
Enfim, em apagar ou levar ao ostracismo as
forças que não aderirem a ela. 

Na ditadura civil-militar no Brasil,


instituída pelo golpe de Estado em 1964, o
grande mote era restaurar a democracia com novas
institucionalizações e evitar, formalmente,
a alcunha de totalitarismo, mantendo dois
partidos da ordem, e o Senado e a Câmara
funcionando segundo legislação especial. 

Tudo transcorreu, sob consensos e torturas,


para que a democracia restaurada ocorresse,
ultrapassando o período designado como
autoritário. Forças que comandaram a ditadura
passaram depois a posar de democráticas,
com seus bilionários democratas criados nos
seus governos… A esquerda, seus partidos
e artistas passaram a ser democratas;
sindicalistas pelegos viraram democratas,
novos sindicalistas nasceram democratas… Os
fascistas não esconderam que eram fascistas,
beneficiando-se da dissimulação democrática. 

Agora,  vivemos entre o fascismo e


os  riscos inerentes à democracia sempre em
crise. Até quando?

[Publicado como hypomnemata 265]


43
2023

o ecumenismo renovado
e as técnicas de dependência

adriana martinez

terreno fértil
O século XXI iniciou-se com a expectativa de enterrar
os regimes autoritários, reacionários, totalitários, os
moedores de corpos e mentes do século anterior, sendo
primordial evitar todo e qualquer ressurgimento. A
democracia firmou-se como princípio universal a ser
seguido e defendido, mesmo que para isso fosse imperativo
iniciar uma guerra. Aqui e acolá convoca-se a participar
para que cada um em seu contexto assuma o protagonismo
social, tornando-se pauta habitual a busca por direitos e a
promoção de políticas públicas. Comemora-se a liberdade
liberal com seus projetos de segurança manifestados, hoje
em dia, por meio da inclusão, cultura de paz/tolerância,
capitalismo sustentável e responsabilidades individuais.
A racionalidade neoliberal, já consolidada, está
presente na regulação e condução dos Estados, do
mesmo modo que a concorrência entre os sujeitos e /ou
corporações organiza, no livre mercado, um estilo de vida

Adriana Martinez é doutora em ciências sociais pela PUCSP; pesquisadora


independente. Contato: drimartinez@yahoo.com.br.

104 verve, 43: 104-118, 2023


verve
o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência

empresa enquanto poder enformador da sociedade. Não


faltaram os entusiastas das reformas educacionais que
abraçaram a educação baseada no pressuposto do sucesso
individual intrínseco ao desenvolvimento econômico. A
meta consiste em formar o capital humano como sujeito
economicamente ativo (empreendedor de si), provedor
de seus rendimentos e apto para cumprir com a política
social em que as pessoas devem encarregar-se da própria
existência (Foucault, 2008).
Os admiradores deste cenário previram, desde então,
que a adoção dessas iniciativas prósperas era um caminho
sem volta. Porém, as respostas a essa configuração
progressista foram ações reacionárias e conservadoras. A
direita, por exemplo, condena a ampliação de direitos civis
conquistados pelas chamadas minorias. Para o macho-
adulto-branco é inadmissível ter que dividir os privilégios
obtidos, apenas por ele, durante séculos, com aqueles que
reputa inferiores. Afinal de contas, as posições basilares
ligadas às grandes empresas, aos cargos dentro da máquina
do Estado ou da organização militar e às disposições
estratégicas no estrato social lhe garantiram, por muito
tempo, vantagens nas decisões políticas.
Somou-se, também, a esses indivíduos uma parcela da
população planetária incomodada com a possibilidade de
haver alguma ruptura cultural com os bons costumes, com
os valores atribuídos às autoridades tradicionais, com as
convicções morais e religiosas. Trata-se de pessoas que
exigem medidas a fim de resguardar bens, qualidade de
vida e segurança de possíveis perigos oriundos dos, por
elas classificados, elementos nocivos. Pleiteia-se preservar
a comunidade − física e/ou virtual – pois isso apazigua e
traz conforto entre os iguais, separando aquilo que lhe é

verve, 43: 104-118, 2023 105


43
2023

familiar dos estranhos, com o propósito de manter intactos


os empreendimentos de melhorias.
Por todo esforço e sacrifício dispendidos para se estar
inserido nos fluxos do neoliberalismo, não se admite
nenhuma perda. Inscreve-se, com isso, a extensão do
exercício punitivo fortalecido pela disposição justiceira.
Motivo pelo qual constituem-se alianças com grupos de
extermínio ou apoiam-se programas de segurança pública
como “tolerância zero”, em que se cauciona de igual
maneira o extermínio executado pelo Estado e, por vezes,
o extermínio feito com as próprias mãos.
A democracia como preceito universal redimensionou
as formas de governo entre os governados. Os
reacionários e conservadores, no intuito de não renunciar
às suas prerrogativas, se advogam o direito de exigir mais
reconhecimento e de reivindicar políticas adequadas aos
seus interesses. Eles atribuem seus fracassos a um inimigo
virtual que, na visão deles, não pode ter lugar nem na
história nem na política. É a vingança dos impotentes,
dos fracos, dos invejosos, explicitando uma guerra
em curso. Por sua vez, os progressistas, ancorados na
pacificação e na tolerância, conclamam pela elaboração de
mais instrumentos jurídicos na esperança de administrar
conflitos. Tal procedimento progressista propaga o
imperativo “contra a impunidade”, o que equivale a dizer
mais punição, regulamentações, prisões, legalismo, e,
quando necessário, estender a competência do judiciário
para a instauração de mais regras que incorporem questões
individuais ou de grupos. Não apenas a judicialização da
política, mas da própria vida.

106 verve, 43: 104-118, 2023


verve
o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência

Age-se como se o capitalismo, hoje guiado pela


racionalidade neoliberal, algum dia conseguisse
proporcionar igualdades econômicas, sociais ou culturais e
como se a democracia fosse o veículo para instrumentalizar
essa utopia liberal. Nesses termos, a defesa da liberdade
transforma-se meramente em iniciativa concorrencial de
indivíduos agindo por interesses próprios na busca de
condições mais vantajosas.

política e religião: aliança ad aeternum


No novo milênio, o governo de condutas tem passado
por técnicas provenientes de um ecumenismo renovado.
Elas estão entranhadas no cotidiano com a finalidade de
direcionar os sujeitos a como devem ser, fazer ou pensar,
sejam os indivíduos pertencentes ao grupo progressista ou
os que ocupam a fileira conservadora/reacionária.
A procedência do ecumenismo contemporâneo ou
renovado tem seus alicerces no “Concílio Vaticano II”
(CEV II), efeito da II Guerra Mundial, num planeta
bipolarizado. Este foi convocado pelo papa João XXIII em
dezembro de 1961, por meio da bula papal Humanae salutis
e inaugurado em outubro de 1962. Outros documentos
relevantes são o “Decreto sobre Ecumenismo” (DE),
assinado pelo papa Paulo VI em 21 de novembro de 1964,
a “Carta Encíclica Sobre o Empenho Ecumênico” (CEE),
firmada pelo papa João Paulo II em 25 de maio de 1995,
e a mensagem do papa Francisco às Nações Unidas em
27 de março de 2017. A tarefa dos pontífices consistiu em
corroborar a Declaração dos Direitos Humanos (DUDH
- 1948), organizada pelos Estados Unidos da América
(EUA) a fim de tornar a democracia e o capitalismo valores

verve, 43: 104-118, 2023 107


43
2023

universais. As congregações ecumênicas, paulatinamente,


atraíram cristãos e não-cristãos às demandas de uma
trama guiada pela racionalidade política neoliberal,
que estava se constituindo a passos largos. E, apesar de
serem os soberanos da Igreja Católica os encarregados
dos encontros, foram as convicções protestantes que
plasmaram a condução das condutas.
Nos documentos acima mencionados, a dignidade
humana e o seu aperfeiçoamento exigiam o maior esforço
para eliminar desavenças, e nada mais eficaz, nesse sentido,
que fomentar a união fraterna guiada pelos cânones
reguladores da DUDH como orientação legítima do
humano no planeta. Dignidade como direito que dirige as
relações sociais e operacionaliza a gestão de ações políticas,
evidenciando-se a construção de uma prática suscetível de
produzir, reproduzir e difundir verdades segundo um poder
centrado no controle de condutas. Forjar a unificação das
diferenças mediante o ecumenismo exprime dignificar a
humanidade por meio de intervenções jurídico-punitivas
em nome da paz, indissociável da noção de segurança.
A solução para ter uma vida em conexão direta com a
dignidade foi encontrada dentro do protestantismo, pois,
de acordo com essa religião, viver corretamente requer toda
uma dedicação individual e um árduo trabalho para a
salvação futura, neste e no outro mundo.
No ecumenismo renovado, constata-se a emergência de
um pastorado diferente da tecnologia de poder denominada
biopolítica − indispensável ao desenvolvimento do
capitalismo − e estudada por Michel Foucault. De acordo
com este, o poder pastoral decorrente do cristianismo foi
absorvido pelo Estado moderno mudando seu escopo
com relação à salvação situada não mais em outro mundo,

108 verve, 43: 104-118, 2023


verve
o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência

mas neste. Desse modo, os desígnios da salvação passaram


a ser: “saúde, bem-estar (isto é, nível de vida correto,
recursos suficientes), segurança, proteção contra acidentes”
(Foucault, 2014, p. 126). Tal exercício de poder também
precisou de elementos administrativos para aumentar
sua eficácia. Estes eram realizados tanto por instituições
públicas, como a polícia, quanto por empreendimentos
privados, filantropos ou a própria família. O propósito
consistia em controlar os corpos nos aparelhos de
produção mediante o ajuste dos fenômenos de população
aos processos econômicos.
Outra procedência do ecumenismo decorre do próprio
termo ecumênico (oikouméne/οἰκουμένη1). Proveniente da
palavra grega oikos, sua acepção é ‘casa’, mas na Grécia
clássica era também uma referência moral servindo de
suporte à arte de governar a si e os outros (Foucault, 1990).
O ecumenismo contemporâneo estendeu a jurisdição do
oikos ao nível planetário, porque conforme se propaga o
capitalismo fincado no governo da racionalidade neoliberal
espalham-se, na mesma proporção, suas concepções.
Assim, a função governamental do pastorado exercido na
biopolítica foi modificada em função da ecopolítica, isto
é, uma governamentalidade planetária redimensionada
pela racionalidade neoliberal no interior da nova fase do
capitalismo como desenvolvimento sustentável e intrínseca
à sociedade de controle (Passetti et al., 2019). As análises
levadas a cabo para diagnosticar a ecopolítica mostram
como, após 1968, as forças de contestação assumiram
outra dimensão. A convocação à participação democrática
1
Disponível em: <https://www.eduportal.gr/wp-content/uploads/2011/02/
www.eduportal.gr_media_files_lexeis_2.pdf> Acesso em: 29 de janeiro de
2023.

verve, 43: 104-118, 2023 109


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2023

começou a capturá-las em movimentos reivindicadores


de direitos ou manifestações que postulam ajustes dentro
do capitalismo. Com a ultrapassagem do Welfare State, o
Estado foi isentando-se das chamadas políticas públicas
que passaram a ser compartilhadas com a sociedade civil
organizada no interior de múltiplas associações fora da
esfera estatal, como as Organizações Não-Governamentais
(ONGs) ou parcerias entre o setor privado e público,
visando melhorar as condições de vida da população. E
essa produção constante de políticas públicas, planejadas
entre o Estado e a sociedade civil, irá absorver as pessoas
em nome da responsabilidade social, procurando eliminar
resistências e rebeldias. Dada essas condições, os sujeitos,
por meio de ações governamentais específicas, iniciam
o controle sobre si e dos outros no intuito de conduzir
a sua conduta e dos demais como garantia de segurança.
É o monitoramento permanente não circunscrito só ao
âmbito eletrônico, mas que perpassa as relações sociais
com o objetivo de perpetuar o capitalismo e a liberdade
liberal (Idem). Nada deve obstaculizar os fluxos: pessoas,
coisas, informações, capital.
Nessa esteira, “as práticas de monitoramento são
operacionalizadas por meio de um exercício horizontal do
poder pastoral que caracteriza a democracia contemporânea,
na qual todos são convocados a ser pastores laicos de si
e dos outros, em busca do bem comum pela realização
de seus interesses particulares e identitários” (Ibidem,
p. 274). Embora na contemporaneidade cada indivíduo
tenha se tornado pastor de si e dos outros e a despeito de
preponderar o exercício de poder horizontalizado, nota-
se a permanência, ou melhor, a atualização de algumas
práticas do pastorado moderno.

110 verve, 43: 104-118, 2023


verve
o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência

As novas lideranças políticas, sem precisar de nenhuma


ação impositiva, aglutinam os sujeitos com a intenção de
gerenciar suas condutas, propor soluções conciliatórias,
transmitir a importância dos encargos individuais. Por seu
turno, as pessoas consideradas vulneráveis arrebanham-
se voluntariamente em volta de lideranças no intuito de
melhorar suas existências, exercendo o pastorado em seu
ambiente para, em conjunto, fortalecer laços comunitários
e evidenciar quem ameaça à paz local. O arrebanhamento
repete-se em meio às reivindicações coletivas quando
alguns se sobressaem no papel de porta-vozes e outros,
para não serem alvos fáceis, seguem as diretrizes sem
deixar de controlar de perto, na tentativa de manter o
protagonismo, sair de cena rapidamente, ou, às vezes, até
mudar de lado.
No cerne das novas lideranças políticas,
independentemente de seu formato e do status social,
o arrebanhamento equipara-se à “modelagem auto-
deformante” da sociedade de controle, em que se
muda incessantemente: um “estado de perpétua
metaestabilidade” (Deleuze, 2004, p. 221). Não se trata
do pastor que vai cuidar de todos e de cada um, visto
que os indivíduos devem responsabilizar-se pela sua
existência. Daí o uso da expressão arrebanhar-se para
assinalar o sentido de agrupar-se por opção em torno
de alguém. Ainda vale destacar que a horizontalidade
na democracia liberal dificilmente será atingida, porque
são forças concorrentes, características de uma sociedade
calcada nos efeitos desigualitários do governo neoliberal.
Portanto, arrebanhar-se sob alguma liderança não exime o
indivíduo de continuar exercendo a função de pastor de si

verve, 43: 104-118, 2023 111


43
2023

e dos demais. Uma prática que inverte o sinal dependendo


dos contextos.
Cabe acrescentar como a dívida com o deus cristão,
que entregou o próprio filho para salvar a humanidade,
ainda permanece. Dívida transmutada em exaustivas
responsabilidades para que cada um possa ter a salvação
neste mundo. E é justamente a potencialidade do cordeiro
sacrificado que desperta o medo de possíveis ameaças,
promovendo tanto o arrebanhamento quanto o pastorado
de si e dos outros. Portanto, encaminhar a comunidade
planetária à paz expressa muito mais o medo do outro
que o amor ao próximo, tão apregoado nos discursos
ecumênicos. Por fim, o arrebanhamento ordena os sujeitos
conforme seus interesses identitários, aglutinando de um
lado conservadores/reacionários e, de outro, progressistas.
As lideranças de esquerda ou de direita, mais ao centro
ou ao extremo, dividem a sociedade em segmentos como
se divide o mercado, prometendo soluções relativas às
preferências de seus seguidores. Essas lideranças devem
tanto provocar emoções e causar comoções, quanto
certificar-se de serem escolhidas pela demanda de
satisfação imediata. São projetos de uma política difusora
da retórica escorada em mudanças para um futuro melhor.
Se forem partidos políticos ou propostas de líderes
ativistas que pendem mais para as orientações progressistas
da esquerda, as promessas reforçam o favorecimento do
multiculturalismo fincado na diversidade sociocultural.
No caso da direita, em que grupos, atuando dentro e fora
de partidos políticos, elegem mandatários de Estados para
respaldar a defesa da supremacia branca, do militarismo,
do nazismo, do macho, da heteronormatividade, a

112 verve, 43: 104-118, 2023


verve
o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência

promessa reside na eliminação de todos os que diferem de


suas proposições. Guardadas as devidas proporções e em
diferentes matizes e intensidades, ambos os grupos são
atravessados pelo racismo,misoginia,homolesbotransfobia,
nacionalismo e todos os seus desdobramentos.
De todo modo, os integrantes, cada um dentro de seus
respectivos redutos político-culturais, arrebanham-se em tor-
no de seu líder-pastor desde que ele conceda os benefícios
exigidos. São relações de mútua dependência que atuam com
o objetivo de determinar quais são as melhores atitudes para
uma vida vitoriosa e segura. Sua eficácia migrou para todas as
esferas de ações dos sujeitos, fortalecendo o amor à dependên-
cia: depender de um grupo do qual se sintam pertencentes,
depender de vínculos que os promovam, depender de prote-
ção, de comunidades, de admiração, de ser aclamados por seu
virtuosismo, inteligência e tantas outras dependências que
lhes sejam úteis. Ou seja, a perda de qualquer dependência é
inaceitável, porque se sentem nada/ninguém: párias. Enfim,
o ecumenismo renovado versa no arrebanhamento enquanto
processo de aprender como governar e se autogovernar ao
introjetar os valores morais vigentes.

estilhaçar o pêndulo
A convocação democrática configurada nas últimas
décadas a partir da racionalidade neoliberal e norteada
pelo ecumenismo renovado propiciou as novas lideranças
políticas, abrindo espaço para o fortalecimento de forças
reacionárias, autoritárias e nacionalistas, que lançaram
mão do discurso democrático, que até este momento
era refúgio quase exclusivo da esquerda paladina das
instituições governamentais. Desta maneira, as práticas

verve, 43: 104-118, 2023 113


43
2023

políticas baseiam-se na tônica de estigmatizar o


adversário desqualificando-o e atribuindo-lhe uma série
de fatores considerados danosos à população e ao país,
o que afiança a noção de um ambiente democrático em
bom funcionamento. A culpa é sempre dos outros quando
perdem na eleição de seu candidato.
Durante as duas primeiras décadas do século XXI, as
forças de esquerda que predominaram na política global
aderiram aos acordos multilaterais e aos programas da
Organização das Nações Unidas (ONU) com a finalidade
de obter proveitos políticos e/ou econômicos locais.
Arraigadas às técnicas de liderança no campo progressista,
contribuíram para a implantação de determinações
jurídicas autoritárias ‒ a exemplo da lei antiterrorista no
Cone Sul ‒, preparando o terreno para as novas (ou nem
tanto) lideranças políticas de direita. Estas últimas, nas
suas versões mais centradas ou extremas, aproveitaram
os frutos econômicos e jurídico-políticos deixados pelos
antecessores, bem como explicitaram que a prática
democrática é altamente eficiente para consolidar-se
enquanto governo. Aliás, hoje, a política conservadora de
direita não é atacada frontalmente por seus adversários,
ao contrário, torna-se muitas vezes objeto de disputa para
angariar apoio político, em particular, quando os dois
polos (esquerda e direita) convergem ao centro.
Outro aspecto saliente das forças de direita é que
souberam utilizar os meios digitais como lugar explícito
de guerra. Essa técnica espalha com velocidade a bandeira
defendida por esses sujeitos: o mercado acima de tudo,
a moral reacionária acima de todos, o fuzil apontado
para alguns e o iminente extermínio de qualquer um.
Enquanto isso, a oposição situada um pouco mais à

114 verve, 43: 104-118, 2023


verve
o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência

esquerda continua batendo na mesma tecla sob o manual


da democracia social. Apresenta argumentos valorativos,
indigna-se mornamente para manter o comportamento
correto dentro das disposições jurídicas. Já os acomodados
ao centro usam o mesmo manto democrático para compor
alianças oportunas.
Quase todos esses grupos que reivindicam melhorias o
fazem sempre à sombra do Estado e de diretivas globais.
Por esse motivo, o movimento pendular da democracia se
perpetua entre os que estão à esquerda ou os que estão à
direita, variando um pouco mais ao centro ou ao extremo. Não
faltam especialistas iluminados para confirmar tal oscilação,
inevitável dentro dessa lógica. Nem sequer conseguem se
imaginar fora dela. Para os que assim pensam, qualquer ação
externa a esse padrão é inaceitável, condenável e precisa ser
punida, adequada ou extinta. Não se trata de embarcar no
mesmo discurso liberal da fobia do Estado. Tanto faz se o
Estado aumenta ou diminui seu poder sobre a população,
qualquer determinação proveniente dessa instituição
jurídico-política vai modificar a matéria-prima humana
em algo maleável, formatada em subjetividade dependente.
Tampouco se quer dizer que o Estado não seja inimigo,
tanto é que toda disposição legal ou resolução emanada
de suas estruturas deve ser questionada e combatida. Mas
enfrentar apenas e tão somente o Estado, como se este fosse
o único inimigo, é perpetuar a sua vigência.
É necessário apurar todos os sentidos para não se enredar
no ecumenismo promotor de boas ações, confundindo o apoio
mútuo com adaptação, afinal a flexibilidade da racionalidade
neoliberal captura os movimentos contrários aos seus
objetivos e os transforma em novas lideranças políticas. É
corajoso afastar-se de organizações e mudar táticas de luta,

verve, 43: 104-118, 2023 115


43
2023

quando começam a replicar-se as ações nos domínios do


governo de condutas. É corajoso, ainda, saber estar consigo
como única voz dissonante em meio a qualquer grupo.
As resistências precisam considerar ações que
desconheçam as fronteiras entre Estados e entre indivíduos,
na perspectiva de combater o inimigo imediato. Resistências
capazes de agir constantemente nos interstícios do
cotidiano, não para esperar ou prometer um futuro melhor,
senão para combater aquilo que funciona e se estabelece
como verdadeiro. Resistências contrárias à moralidade
conservadora e aos hábitos duradouros passíveis de propiciar
novos contratos. Resistências singulares, sem autorias,
situadas fora da capitalização de vidas, fora do protagonismo
sociopolítico ou do destaque intelectual. Aquelas que não se
deixam adequar, que recusam conciliações e que se atiram
contra as formas de governos sobre as condutas. Aquelas
que escapam do projeto ecumênico-neoliberal fundante,
rompem com as verdades estabelecidas, condutas
dependentes e se arriscam a não ser mais quem são.

Referências bibliográficas
Deleuze, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál
Pelbart. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2004.
Foucault, Michel. “O sujeito e o poder”. In: Motta,
Manoel Barros (org.). Genealogia da ética, subjetividade e
sexualidade (Ditos e Escritos, vol. IX). Tradução de Abner
Chiquieri. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2014, pp.
118-140.
___________. Nascimento da biopolítica: curso no Collége
de France (1978 – 1979). Tradução de Eduardo Brandão.
São Paulo, Martins Fontes, 2008 – (Coleção tópicos).

116 verve, 43: 104-118, 2023


verve
o ecumenismo renovado e as técnicas de dependência

___________. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres.


Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio
de Janeiro, Edições Graal, 1990.
Passetti, E. (coord.); Augusto, A.; Carneiro, B.; Oliveira,
S; Rodrigues, T. Ecopolítica. São Paulo, Editora Hedra
Ltda, 2019.

Documentos
Papa João XXIII. “Concilio Vaticano II” (Humanae sa-
lutis). Disponível em: <http://www.vatican.va/content/
john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_
spe_19621011_opening-council.html> Acesso em: 16 de
março de 2023.
Papa Paulo VI. “Decreto sobre Ecumenismo” (Unitatis
Redintegratio). Disponível em: <http://www.vatican.va/
archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
-ii_decree_19641121_unitatis-redintegratio_po.html>
Acesso em: 26 de março de 2023.
Papa João Paulo II. “Carta Encíclica Sobre o Empenho
Ecumênico” (Ut Unum Sint). Disponível em: <http://
www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/do-
cuments/hf_jp-ii_enc_25051995_ut-unum-sint.html>
Acesso em: 28 de março de 2023.
Papa Francisco. “Mensagem do papa Francisco à con-
ferência da ONU com a finalidade de negociar um ins-
trumento juridicamente vinculante sobre a proibição
das armas nucleares e que leve à sua total eliminação”.
Disponível em: <http://www.vatican.va/content/frances-
co/pt/messages/pont-messages/2017/documents/papa-
-francesco_20170323_messaggio-onu.html> Acesso em:
30 de março de 2023.

verve, 43: 104-118, 2023 117


43
2023

Resumo:
No novo milênio, fixou-se a convocação democrática para
a participação política e se inaugurou o exercício de poder
ecumênico atravessado por técnicas nas quais é possível
constatar o movimento de arrebanhamento voluntário de
sujeitos. Nesse contexto, as pessoas conduzem as suas condutas e
a dos outros mediante processos de mútua dependência.
Palavras-chave: ecumenismo, arrebanhamento,
democratização.

Abstract:
In the new millennium, the democratic call for political
participation was established and the exercise of ecumenical
power was inaugurated, crossed by techniques in which it is
possible to observe the movement of voluntary “gather around”
of subjects. In this context, people conduct their conduct and
that of others through processes of mutual dependency.
Keywords: ecumenism, herding, democratization.

Recebido para publicação em 13 de janeiro de 2023.


Confirmado para publicação em 02 de maio de 2023.
The renewed ecumenism and the techniques of dependence,
Adriana Martinez.

118 verve, 43: 104-118, 2023


Federação Anarquista Coreana, começo do século XX.
43
2023

as ressonâncias entre donna haraway


e emma goldman

priscila piazentini vieira

Donna Haraway (2016a), ao comentar sobre o con-


texto de produção de seu “Manifesto Ciborgue” (2009),
na década de 1980, relembra a importância do anarco-
-feminismo da escritora Marge Piercy. A ela e à sua ficção
científica, inclusive, Haraway (2020) credita o seu próprio
engajamento com o feminismo. Ela fala sobre tais ques-
tões, bem como encara a ficção científica como um meio
para criar mundos possíveis: “Tornei-me feminista com
a ficção científica. Eu cheguei tarde, como uma jovem
feminista nos anos 1970, quando houve uma revolução
no gênero com mulheres escritoras que começaram a fa-
zer livros como Women on the edge of time (Marge Piercy).
A ficção científica é um gênero especulativo, de mundos
possíveis. Acredito que o relato é muito importante em
qualquer movimento social. E as escritoras feministas de
ficção científica estão entre as escritoras mais importantes
da história do feminismo moderno” (Idem).

Priscila Piazentini Vieira professora de História Contemporânea na Universidade


Federal do Paraná (UFPR). Contato: priscilav@gmail.com.

120 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

Uma mulher no limiar do tempo1 (Woman on the Edge


of Time), de 1976, a história de Piercy que tanto inspi-
rou Haraway, tem como personagem principal Connie
Ramos2, cuja vida é perpassada por acontecimentos mar-
cantes: a perda do marido e da filha, a internação em uma
instituição psiquiátrica e a visita repentina de uma outra
mulher, Luciente, vinda do ano de 2137. É Luciente quem
a convida a visitar um mundo onde a harmonia caracteriza
as relações raciais, de gênero e entre humanos e a nature-
za. Ao mesmo tempo, Connie também tem acesso a uma
realidade distópica, subterrânea, na qual os valores são
completamente diversos aos encontrados no mundo outro
ao qual havia tido acesso. A leitura dessa história seria um
dos caminhos possíveis para estabelecermos pontes entre
o pensamento e a prática intelectual de Donna Haraway
e a anarquia. Além disso, ler a ficção científica de Piercy é
um exercício que precisa ser realizado com urgência, ain-
da mais com a publicação recente de sua tradução para o
português. Tal leitura poderia ser guiada tanto pelas po-
tencialidades que Haraway reserva às ficções científicas,
em seu primeiro manifesto, como produtoras de novos
mundos e de novos modos de produção da subjetividade
feminina, quanto pelas reflexões de Foucault (1994, 2013)
sobre os “Outros espaços” e as “heterotopias”.
Apesar da clara conexão estabelecida pela própria
Haraway com o anarco-feminismo de Piercy, interesso-
-me, neste texto, por um outro diálogo possível de Haraway
1
Marge Piercy. Uma mulher no limiar do tempo. Trad. Elton Furlanetto.
Campinas, Minna Editora, 2023.

2
A sinopse da história utilizada aqui é baseada na que a editora Minna
divulgou. Disponível em: https://livraria.minnaeditora.com.br/produto/
uma-mulher-no-limiar-do-tempo/. Acesso em: 8 de abril 2023.

verve, 43: 120-145, 2023 121


43
2023

com a anarquia. Refiro-me à menção feita a Emma


Goldman, por exemplo, em seu último livro Staying in the
Trouble. Making Kin in the Chthulucene (Ficar com o proble-
ma. Fazendo parentes no Chthuluceno) (Haraway, 2016b).
No capítulo 6, intitulado “Sowing Worlds” (“Semeando
Mundos”), Goldman aparece na reflexão de Haraway so-
bre a especificidade da associação entre as formigas e as
acácias: “A compreensão de Emma Goldman sobre o amor
e a raiva anarquistas faz sentido nos mundos das formigas
e acácias. Essas espécies companheiras são um estímulo
para histórias de cachorros peludos - rosnados, mordidas,
filhotes, jogos, fungadas e tudo o mais. Simbiogênese não
é sinônimo para o bem, mas para tornar-se com o outro
em responsa-abilidade” (Idem, p. 124).3
No original, o jogo de criações e junções realizado por
Haraway desdobra as partes da palavra responsabilidade
(response-ability​​). De um lado, resposta, reação a, e, de
outro lado, habilidade, competência, aptidão, indicando
as características que compõem a sua noção de respon-
sabilidade, que também pode ser compreendida quando
ela define o propósito de seu texto “Saberes localizados”:
“esse texto é um argumento a favor do conhecimento cor-
porificado e situado e contra várias formas de postulados
de conhecimento não localizáveis e, portanto, irrespon-
sáveis. Irresponsável significa incapaz de ser chamado a
prestar contas” (Haraway, 1995, p. 22). De maneira seme-
lhante, Haraway explicita o propósito de seu “Manifesto
Ciborgue”: “Este ensaio é um argumento em favor do
3
No original: “Emma Goldman’s understanding of anarchist love and rage
make sense in the worlds of ants and acacias. These companion species are
a prompt to shaggy dog stories — growls, bites, whelps, games, snufflings,
and all. Symbiogenesis is not a synonym for the good, but for becoming-
with each other in response-ability​​“.

122 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da


responsabilidade em sua construção” (Haraway, 2009, p.
37). Com isso, compreendo que Haraway percebe em
Goldman algo que ela já havia reparado em Piercy, ou
seja, mulheres engajadas, que se responsabilizam pela
construção de futuros outros, recheados por novos modos
de vida que propõem a transformação das relações que
estabelecemos conosco, com os outros e com o mundo no
presente.
Inspiro-me no que Foucault (2011) faz na segunda
hora da “Aula de 29 de fevereiro de 1984”, do seu curso
A coragem da verdade, quando tece ligações entre a cultura
antiga e a modernidade. Nesse sentido, sugiro que as li-
nhas de conexão, entre os séculos XIX, XX e XXI, podem
ser estabelecidas por meio de Emma Goldman, Marge
Piercy e Donna Haraway. Explico melhor: importam-
-me as reflexões que Foucault faz sobre as ressonâncias ou
os suportes de transmissão “da prática cínica, do cinismo
como modo de vida ligado a uma manifestação da ver-
dade” (Idem, p. 165) na cultura ocidental. Interesso-me,
especialmente, pelo segundo suporte de transmissão do
modo de ser cínico, quando ele ressoa nas práticas polí-
ticas e nos movimentos revolucionários do século XIX.4
Isso porque Foucault compreende a revolução no mundo
europeu não somente como um projeto político, mas tam-
bém como uma forma de vida. Foucault define “militan-
tismo” como “a maneira como foi definida, caracterizada,
organizada, regrada a vida como atividade revolucionária,

4
Faço estas reflexões de modo mais demorado em: Priscila Piazentini
Vieira. A coragem da verdade e a ética do intelectual em Michel Foucault. São
Paulo: Intermeios, 2013.

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43
2023

ou a atividade revolucionária como vida” (Foucault, 2011,


p. 161).
A terceira forma de ser militante destacada por
Foucault é o militantismo como testemunha pela vida,
sob a forma de um estilo de existência, em direta ruptura
com as convenções, os hábitos e os valores da sociedade,
manifestando pela sua prática constante e sua existência
imediata, a possibilidade concreta de uma vida outra. São
citados aqui Dostoievski, o niilismo russo, o anarquismo
e o terrorismo de meados do século XIX. Ora, encaro a
militância de Emma Goldman5 como um desdobramen-
to do militantismo como testemunha da vida. De origem
russa, ela migra, em 1866, para os EUA, onde trabalhou
em uma fábrica de roupas e tomou contato com as re-
flexões socialista e anarquista. Como palestrante, também
circulou pelos principais países da Europa, lutando contra
o fascismo na Guerra Civil Espanhola e fazendo campa-
nhas de conscientização nos EUA com as mulheres entre
os anos de 1914 e 1916, difundindo métodos de controle
da natalidade (Goldman, 2021). Ela tinha, também, for-
mação técnica em enfermagem. Seu nome e seus escritos,
um pouco como os cínicos, não integraram nenhum espa-
ço de destaque ou celebração na história do pensamento
político ou até mesmo na história da filosofia. Ela não
criou uma doutrina, mas deixou modos e estilos de vida
estampados em suas lutas cotidianas, em suas palestras
e em ensaios que escreveu. Tal como Foucault enxerga
a tradição cínica por meio de uma “lenda filosófica” e os
cínicos em torno de um “heroísmo filosófico”, Goldman
5
As informações biográficas foram retiradas de: Emma Goldman. Sobre
anarquismo, sexo e casamento. Tradução e organização de Mariana Lins. São
Paulo, Hedra, 2021, p. 4.

124 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

também pode ser entendida neste sentido: “(...) o herói


filosófico representa [certo] modo de vida que foi extre-
mamente importante na época em que se constituía, em
que [esse] modelo foi transmitido, na medida em que essa
figura do herói filosófico modelou algumas existências,
representou uma espécie de matriz prática para a atitude
filosófica” (Foucault, 2011, p. 186).
Se Foucault aponta que a história da filosofia como
ética e heroísmo tem seu fim quando ela se torna uma
profissão de professor, no início do século XIX, parece-
-me que a vida, a ética, o heroísmo permeiam claramente
a prática político-revolucionária e a atitude filosófica de
Goldman, que foi transmitida a nós não por sistemas ou
venerações, mas por estilos de vida. É nessa direção, que
aponto possíveis ressonâncias entre Goldman e Haraway.
Ainda, é preciso explicitar que não se trata de estabelecer
filiações entre elas, como a própria Haraway ironiza em
relação ao seu mito do ciborgue, mesmo que, de forma
alguma, digo que Goldman é, para Haraway, o que o mili-
tarismo, o capitalismo patriarcal e o socialismo de Estado
são para o ciborgue: “Os ciborgues não são reverentes; eles
não conservam qualquer memória do cosmo: por isso, não
pensam em recompô-lo. Eles desconfiam de qualquer ho-
lismo, mas anseiam por conexão – eles parecem ter uma
inclinação natural por uma política de frente unida, mas
sem o partido de vanguarda. O principal problema com
os ciborgues é, obviamente, que eles são filhos ilegítimos
do militarismo e do capitalismo patriarcal, isso para não
mencionar o socialismo de estado. Mas os filhos ilegítimos
são, com frequência, extremamente infiéis às suas origens.
Seus pais são, afinal, dispensáveis” (Haraway, 2009, p. 40).

verve, 43: 120-145, 2023 125


43
2023

Dessa forma, indico ressonâncias entre o anarco-fe-


minismo de Emma Goldman e as reflexões trazidas por
Donna Haraway por meio do desenvolvimento de quatro
pontos: o diagnóstico apurado das relações de poder no
presente, em especial quando pensam, por exemplo, no
ataque ao modelo de família burguesa heteronormativa; a
crítica que realizam à tradição cristã e o modo como esta
permeia a produção da subjetividade ocidental, apontan-
do seus entrelaçamentos com os estereótipos femininos
naturalizados, o regime sexual heteronormativo e as prá-
ticas de militância incrustadas nos grupos de militância
de esquerda; a relação crítica que estabelecem com de-
terminadas perspectivas feministas, tais como a liberal e
a marxista, propondo remodelações à forma como pen-
samos a militância e a prática intelectual; e, finalmente,
como ambas abrem para a criação de mundos outros no
próprio presente, recusando-se a aguardar as fases previa-
mente programadas de uma revolução redentora.
Quanto ao primeiro ponto, não há dúvida de que am-
bas percebem o quanto é importante discutir o espaço que
as mulheres ocupam para compreender o modo como as
relações de poder funcionam na sociedade capitalista bur-
guesa do final do século XIX e início do século XX, com
Goldman, e na nova ordem mundial criada pelo capita-
lismo industrial no final do século XX, com Haraway. Por
exemplo, quando Goldman (2021), em 1896, denuncia o
modo como a organização familiar burguesa pressupõe a
exploração tanto da mão de obra masculina nas fábricas,
mas também da feminina no espaço privado, ela escanca-
ra o quanto as relações de poder ultrapassam os âmbitos
sacralizados liberais do público e do privado.

126 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

A instituição do casamento, inclusive, segundo


Goldman, proporciona à mulher uma carga de trabalho
ainda maior, pois dentro dele precisaria cuidar da casa, ge-
rir as suas finanças compostas pelo salário principal do
pai de família, o seu e, possivelmente, o de suas filhas e de
seus filhos, considerados complementares, mesmo que ti-
vessem a mesma jornada. Além disso, ela tinha que cuidar
para que a conexão afetiva com o marido permanecesse
“saudável”. A conclusão de Goldman é que as mulheres
são dominadas pela sensação de um fracasso completo
nessa “missão”, denunciando a instituição do casamento
como uma transação comercial que ela compara muitas
vezes à prostituição (Idem, p.62), com a diferença de que
a primeira instituição era legal e a segunda ilegal. Ainda
nesse quesito, ela argumenta, ironizando, que as prostitu-
tas ainda tinham a possibilidade de abandonar o homem
que as tinham somente pela compra momentânea, ao pas-
so que as “esposas respeitadas” não conseguiam se libertar
dessa união, em um mundo no qual o divórcio não estava
legalizado. Retornarei mais adiante à perspectiva diferen-
te adotada por Goldman sobre a prostituição, não somen-
te em relação aos moralistas do período, mas, também, a
algumas feministas contemporâneas a ela.
Quando Haraway, em “Manifesto Ciborgue”, descreve
os novos modos de exercício das relações de poder no fi-
nal do século XX, mais de oitenta anos se passaram. Eles
foram, inclusive, marcados por acontecimentos cruciais
nos EUA: o divórcio havia sido legalizado em 1946 e a
liberação sexual havia acontecido nos anos de 1960, ou
seja, as mulheres continuavam emancipando-se da moral
burguesa tradicional que, agora, permitia a elas viver uma
vida que não estava mais atrelada aos homens. Além dis-

verve, 43: 120-145, 2023 127


43
2023

so, as mulheres podem chefiar uma família sem receber


o julgamento moral das décadas anteriores. Em 1960, as
mulheres tiveram acesso a métodos contraceptivos como a
pílula anticoncepcional e, em 1973, o aborto foi legalizado,
dando a elas a autonomia para decidir quando e se seriam
mães. Ainda assim, com Haraway, compreendemos que as
dominações continuaram cada vez mais insidiosas e insis-
tentes, ao diagnosticá-las como “A ‘economia do trabalho
caseiro’ fora de ‘casa’” (Haraway, 2009, p. 68-76). Tal como
Goldman, Haraway está sempre atenta ao presente, com
uma sagacidade que ressoa a tradição da anarquia, ao es-
cancarar as complexidades das relações de poder e rir dos
projetos salvacionistas, venham eles do casamento mono-
gâmico e heteronormativo do feminismo com o liberalis-
mo ou com um marxismo agarrado aos determinismos e
partidos de vanguarda.
Para Haraway, em 1984, a “Nova Revolução Industrial”
produziu uma nova classe trabalhadora mundial, assim
como novas sexualidades e etnicidades (Idem, p. 68).
Nestas sociedades ocidentais, os homens brancos perde-
ram seus empregos, enquanto as mulheres os perderam
em menor quantidade, trocando a pretensa identidade na-
tural de vulnerabilidade feminina, inclusive já denunciada
por Goldman como uma falácia no início do século XX.
No final do século XX, a mão de obra preferida das multi-
nacionais são as mulheres dos países de Terceiro Mundo,
em especial no setor eletrônico. Olhando para o Sillicon
Valley, Haraway diagnostica como as vidas das mulheres
trabalhadoras passaram a funcionar: “(...) monogamia he-
terossexual em série, cuidado infantil negociado, distância
da família ampliada ou da maior parte das formas tradi-
cionais de comunidade, uma grande probabilidade de uma

128 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

vida solitária e uma extrema vulnerabilidade econômica à


medida que envelhecem” (Ibidem).
Ou seja, as mulheres finalmente tinham se livrado da
companhia dos homens. E o que isso significou? Maior
liberdade para as mulheres? Lembro que duas das princi-
pais lutas de Emma Goldman eram que as mulheres pu-
dessem se separar de seus maridos e que elas tivessem am-
plo acesso aos métodos contraceptivos. Ela defendia, em
1897: “Reivindico a independência da mulher; seu direito
de sustentar a si mesma; de viver para si mesma; de amar
quem quer que deseje ou quantos deseje. Reivindico a li-
berdade para ambos os sexos, liberdade de ação, liberdade
no amor e liberdade na maternidade” (Goldman, 2021, p.
73).
Apesar de algumas dessas transformações terem ocor-
rido ao longo do século XX na vida das mulheres, tais
como a capacidade de se sustentar, de poder se relacionar
afetivamente com quem quisessem, Haraway parece ter
escutado Goldman, dado que esta nunca acreditou que
somente essas conquistas, em especial a simples presença
das mulheres no mercado de trabalho, trariam uma trans-
formação das relações de poder que perpassavam a vida de
homens e mulheres. Ela chega inclusive a dizer, em 1910,
que: “Agora, a mulher é confrontada com a necessidade de
se emancipar da emancipação, se ela realmente deseja ser
livre” (Idem, p. 129). Ela complementa sobre a pretensa
liberdade que seria conquistada somente pelo fato de as
mulheres terem acesso ao mundo do trabalho, saindo dos
seus lares. Para as mulheres trabalhadoras, ela desenhava
um cenário bem diferente: “No que diz respeito à massa
de garotas e mulheres da classe trabalhadora, quanta inde-
pendência pode ser conquistada, quando a limitação e fal-

verve, 43: 120-145, 2023 129


43
2023

ta de liberdade do ambiente doméstico são simplesmente


trocadas pela limitação e falta de liberdade nas fábricas,
em locais precarizados de trabalho [sweatshop], nas lojas
de departamento ou nos escritórios? Some-se a isso o far-
do que pesa sobre muitas mulheres de ter de cuidar do
“lar, doce lar” — frio, sombrio, desordenado, desagradá-
vel — depois de um dia de trabalho pesado. Que gloriosa
independência. Não é de admirar que centenas de garotas
estejam dispostas a aceitar a primeira oferta de casamento,
doentes e cansadas que estão da sua “independência” atrás
do balcão, atrás da máquina de costura ou de escrever”
(Ibidem, p. 130).
Haraway parece atenta a essa crítica de Goldman quan-
do examina mais de perto as consequências de a mão de
obra ter se tornado mais feminina no final do século XX.
Ela se apoia no autor Richard Gordon (Haraway, 2009, p.
69), que aponta uma reestruturação do trabalho, com ca-
racterísticas que antes eram atribuídas majoritariamente a
trabalhos femininos e feitos por mulheres. Agora, o traba-
lho já não é mais sinônimo de masculino, pois foi redefi-
nido como feminino e feminizado. Isso trouxe melhorias
para mulheres e homens? Dado que ele pode ser realizado
tanto por homens quanto por mulheres, significando vul-
nerabilidade, força de trabalho reserva, instabilidade nos
arranjos de empregabilidade, a resposta só pode ser nega-
tiva. A desqualificação em larga escala é combinada com a
emergência de novas áreas de alta qualificação, que inclu-
sive incluem uma fração de homens e mulheres que antes
não tinham acesso a esses espaços. Ela conclui com um
diagnóstico que indica, apesar das mudanças drásticas em
relação ao início do século XX, como os lugares ocupados
pelas mulheres no mundo do trabalho ainda são cruciais

130 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

para o entendimento das relações de poder no capitalismo


ocidental, tal como Goldman notava.
No final do século XX, Haraway chama a atenção para
como as novas tecnologias tornam possível essa nova for-
ma de organização capitalista mundial, a economia do
trabalho caseiro, na qual os empregos dos trabalhadores
masculinos sindicalizados, majoritariamente brancos, são
atacados, gerando as seguintes consequências: a perda do
salário-família do homem e o acesso das mulheres a es-
ses privilégios dos brancos em empregos característicos,
tais como o trabalho de escritório e a enfermagem (Idem,
p.70). Ou seja, cada vez mais as mulheres são obrigadas
a assumir o sustento da família, incluindo os homens, as
crianças e os idosos. O que Haraway caracteriza como
a feminização da pobreza, portanto, longe de igualar
o salário entre homens e mulheres, levou a um número
crescente de lares chefiados por mulheres, conectando as
relações de raça, classe e gênero na seguinte reflexão: “A
generalização desse processo deveria levar à construção de
coalizões entre mulheres, organizadas em torno de várias
questões. O fato de que o sustento da vida cotidiana cabe
às mulheres como parte de sua forçada condição de mães
não é nenhuma novidade; o que é novidade é a integração
de seu trabalho à economia capitalista global e uma eco-
nomia que progressivamente se torna centrada em torno
da guerra” (Ibidem, p. 70-71).
Essa relação entre economia capitalista, guerra e mu-
lheres já havia sido bastante discutida por Goldman no
início do século XX, bem como por outras feministas do
período como Maria Lacerda de Moura (1999) e Virginia

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43
2023

Woolf (2019).6 Com certeza essa perspectiva crítica não


se perdeu e ressoou em Haraway, porém, agora, esta de-
monstra que a guerra não é mais somente masculina. Ela
integrou as mulheres ao seu funcionamento. Lembro, ain-
da, que uma das principais justificativas de Goldman para
divulgar às mulheres os métodos contraceptivos estava
ligada ao fato de que as mulheres deveriam encarar a ma-
ternidade não como uma obrigação moral com o Estado-
nação, que dependia das crianças para o seu crescimento,
tal como destacado por Foucault (2007, p. 73-123) sobre o
funcionamento do dispositivo da sexualidade e da biopo-
lítica, assim como entrelaçava os interesses da Igreja e do
Estado em nome das guerras. Ela alerta sobre o perigo da
maternidade livre: “Os defensores da autoridade temem
o advento de uma maternidade livre, com receio de que
esta lhes roube a presa. Quem lutaria nas guerras? Quem
acumularia a riqueza? Quem seria o policial, o carcereiro,
se a mulher recusasse a geração arbitrária de crianças? A
descendência, a descendência! — brada o rei, o presidente,
o capitalista, o padre” (Goldman, 2021, p. 153).
Muito impactada pelos textos de Freud, Goldman re-
lacionava a liberdade da mulher com o fim da repressão
sexual, que explicava, para ela, até mesmo a pretensa infe-
rioridade intelectual da mulher em relação ao homem: “A
máxima arbitrária e perniciosa da total abstinência sexual
provavelmente também explica a desigualdade intelectual
entre os sexos. Freud acredita que a inferioridade intelec-
tual de tantas mulheres está relacionada com a inibição do

6
Para entender as relações entre Goldmann e Moura, consultar: Liane
Peters Richter. Emancipação feminina e moral libertária: Emma Goldman e
Maria Lacerda de Moura. Dissertação de Mestrado em História, Unicamp,
1998.

132 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

pensamento imposta sobre elas com o fim da repressão


sexual” (Idem, p. 88).
Há uma nítida diferença entre o anarco-feminismo de
Goldman entusiasta da tese da liberação sexual, com a po-
sição crítica que algumas feministas e do próprio Foucault
(2007, p. 9-49; 125-149) no final do século XX. Foucault
e feministas como Haraway denunciavam o peso que os
modos de produção da subjetividade cristã possuíam para
essa discussão. A natureza sexual tão reprimida era, bem
longe disso, o resultado de uma construção que definia,
inclusive, como os corpos deveriam performar uma femi-
nilidade e uma masculinidade fortemente normatizada,
inclusive, pelo contraponto às “anomalias sexuais”, den-
tro das quais cabiam figuras como a mulher histérica, o
homossexual, a lésbica, enfim, tudo que escapava ao ca-
sal burguês heterossexual. Neste sentido, Haraway sem-
pre esteve atenta para atacar a “falogocêntrica Família do
Homem” (Haraway, 2009, p.89).
De qualquer forma, mesmo não atentando para as
armadilhas da psicanálise, Goldman não deixa de des-
tacar o quanto a tradição cristã moldou e culpabilizou a
relação que se estabeleceu com a sexualidade no mundo
ocidental, o que me leva ao segundo ponto de conexão
entre Haraway e Goldman: a crítica à tradição cristã. Em
“Manifesto Ciborgue”, Haraway coloca-se na tradição de
uma imaginação utópica que proclama um mundo sem
fim e que está fora da história da salvação (Idem, p. 38).
Em seu mito, o ciborgue não só não reconheceria o Jardim
do Éden, como ele também não seria feito de barro e,
portanto, não poderia desejar retornar ao pó (Ibidem, p.
39-40). Em “Saberes localizados”, as metáforas do conhe-
cimento objetivo que pretende ver de todos os lados são,

verve, 43: 120-145, 2023 133


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2023

em muitos momentos, atreladas ao cristianismo, tal como


em: “Mas é claro que esta apresentação da visão infinita
é uma ilusão, um truque de deus” (Haraway, 1995, p. 20).
Quando ela defende a importância da produção de sabe-
res localizados, situados e que todas e quaisquer falas não
devem ser encaradas da mesma maneira, importando o
local de onde venham, ironiza como aqueles, incluindo-
-se, “que ainda gostariam de falar a respeito da realidade
com mais confiança do que a que atribuímos à discussão
da direita cristã a respeito da volta de Jesus e a salvação
deles em meio à destruição final do mundo” (Idem, p.12).
Mas isso não a impede de a todo o momento utilizar, de
modo provocativo, metáforas cristãs tais como a blasfêmia
(Haraway, 2009, p. 35) e as tentações (Haraway, 1989, p.
36).
Goldman também ria, por exemplo, quando as autori-
dades moralistas, cristãs ou não, punham-se a defender a
instituição do casamento contra a prostituição, em 1910.
Goldman denunciou a irmandade entre o casamento bur-
guês e a prostituição: “Os moralistas estão sempre prontos
para sacrificar metade da raça humana em nome de algu-
ma instituição miserável que eles não conseguem supe-
rar. É verdade que a prostituição não é a salvaguarda da
pureza do lar, do mesmo modo que leis rígidas não são
salvaguardas contra a prostituição. Cinquenta por cento
dos homens casados são clientes de bordéis. É através
desse elemento virtuoso que mulheres casadas — e mes-
mo crianças — são infectadas por doenças venéreas. No
entanto, a sociedade não tem uma palavra de condena-
ção aos homens, ao mesmo tempo em que nenhuma lei é
considerada monstruosa o suficiente ao ponto de não ser
posta em ação contra a vítima desamparada. A prostituta

134 verve, 43: 120-145, 2023


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as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

é assediada não apenas por quem a utiliza, está absoluta-


mente à mercê de todos: nas ruas, dos policiais e mise-
ráveis detetives; nas delegacias, dos oficiais; em todas as
prisões, encontra-se à mercê das autoridades” (Goldman,
2021, p. 103).
Goldman não deixa de lembrar que: “A história bí-
blica da desigualdade e inferioridade da mulher é baseada
na declaração de que ela foi criada da costela do homem”
(Idem, p. 81). Daí decorrem as justificativas da desigual-
dade natural entre os sexos e da obrigação missionária da
mulher em ser esposa e mãe. Mesmo que Goldman escan-
care essas falácias como moralistas e cristãs, ela não poupa
as mulheres (Ibidem, p. 112), e está sempre disposta a nos
alertar que mesmo que a religião cristã condene a mulher
à inferioridade, não há seres mais devotos que as próprias
mulheres. Ela diz: “De fato, é seguro dizer que, há muito,
a religião já teria deixado de ser um fator relevante na vida
das pessoas, não fosse pelo apoio que recebe da mulher.
Os mais fervorosos obreiros de igreja, os mais incansáveis
missionários do mundo inteiro, são mulheres — sempre a
oferecer sacrifícios no altar dos deuses que acorrentam o
seu espírito e escravizam o seu corpo” (Ibidem).
​​Haraway também não deixa de provocar as próprias
feministas ao dizer: “Não se trata apenas de que ‘deus’ está
morto: a ‘deusa’ também está” (Haraway, 2009, p. 60), cri-
ticando determinadas perspectivas de movimentos femi-
nistas que ainda se apegam ao universalismo, a um corpo
orgânico e a um “sagrado feminino”. A frase final de seu
primeiro manifesto dispara: “Embora estejam envolvidas,
ambas, numa dança em espiral, prefiro ser uma ciborgue a
uma deusa.”(Idem, p. 99). Essas reflexões me levam ao ter-
ceiro ponto que explicita as ressonâncias entre Goldman e

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2023

Haraway: a crítica que ambas fazem a determinados femi-


nismos. Em primeiro lugar, é conhecido o posicionamento
das anarco-feministas diante do movimento feminista que
lutava pelo sufrágio universal no início do século XX. Em
consonância com a crítica de Haraway à naturalização e
ao pretenso caráter sagrado do feminino, Goldman defen-
de: “Desnecessário dizer que a minha oposição ao sufrágio
feminino não se coaduna com o argumento convencional
de que ela não é uma igual. Eu não vejo qualquer motivo
físico, psicológico ou mental para que a mulher não deva
ter o mesmo direito de votar que o homem. O que eu não
posso é me cegar para a concepção absurda de que a mu-
lher será bem-sucedida naquilo em que o homem falhou.
Se ela não tornar as coisas piores, certamente não poderá
torná-las melhores. Presumir que a mulher triunfará em
purificar algo que não é passível de purificação é creditar-
-lhe poderes sobrenaturais” (Goldman, 2021, p. 114).
Haraway e Goldman tecem críticas a feminismos que
universalizam a identidade da Mulher. Com Goldman,
essa posição é explicitada pelo seu olhar irônico na inda-
gação: “Em que, então, consiste a vantagem do sufrágio
feminino para a mulher e para a sociedade? A afirma-
ção constantemente repetida de que a mulher purificará
a política não é nada além de um mito” (Idem, p.118).
Reiterando o seu afastamento dos argumentos que justifi-
caram a crítica ao sufrágio feminino pela pretensa inferio-
ridade natural da mulher, ela esclarece: “não acredito que
a mulher irá transformar a política em algo pior; como
tampouco acredito que irá torná-la em algo melhor. Se
ela não pode corrigir os erros dos homens, por que per-
petuá-los?” (Ibidem, p. 124). Ela também dizia: “Nosso
fetiche moderno é o sufrágio universal” (Ibidem, p.111).

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verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

Haraway, em “Saberes localizados”, além de demonstrar


já ter aprendido o ensinamento de Goldman contra uma
suposta natureza sagrada feminina, também se incomo-
da com outra perspectiva teórico-política: “O marxismo
humanista foi poluído em sua origem pela sua teoria on-
tológica estruturante de dominação da natureza na auto-
-construção do homem e pela sua, intimamente relacio-
nada, impotência para historicizar qualquer coisa que as
mulheres fizessem que não fosse por salário” (Haraway,
1995, p. 14).
Quando Haraway realiza, em “Manifesto Ciborgue”,
a crítica ao partido de vanguarda leninista (Haraway,
2009, p. 40) e aos velhos sindicalistas militantes das polí-
ticas masculinistas (Idem, p. 44), ou quando não enxerga
no proletariado uma perspectiva privilegiada na leitura
do universal, tanto em Primate Visions (Visões Primatas)
(Haraway, 1989, p. 38) quanto em “Saberes localizados”
(Haraway, 1995, p. 23), ela remete a uma tradição da
anarquia bastante presente no militantismo anárquico de
Goldman. Como defende Margareth Rago (2014, p. 206-
207), os anarquistas não viam o proletariado industrial
como a classe portadora do universal e não encaravam a
classe como a única questão fundamental para compreen-
der as relações de dominação. A revolução social, também,
não seria fruto do desenvolvimento necessário, mecânico
e determinista das forças produtivas. Além disso, a trans-
formação da sociedade dependeria do embate direto e do
questionamento prático e imediato das relações poder.
Nesse sentido, para Haraway (1989, p. 37-38), em
Primate Visions, um dos braços da teoria marxista argu-
menta sobre a histórica superioridade de estruturas parti-
culares de pontos de vista para conhecer o mundo social

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2023

e, possivelmente, o “natural”​. Ela enxerga o mundo estru-


turado pelas relações sociais de produção e reprodução da
vida cotidiana, assim como esta é a única maneira possível
de ver claramente estas relações​. Desse modo, o ponto de
vista da classe operária vai revelar a natureza da domina-
ção, baseada em um contrato de exploração, recompensa e
deformação do trabalho humano​. Ela ainda ressalta que,
para essa perspectiva marxista, aqueles cuja definição so-
cial de identidade está ancorada no sistema de racismo ou
no sistema sócio-sexual de gênero não serão capazes de ver
que a definição de humano não é neutra e não poderão até
que mudanças sociais materiais ocorram em escala mun-
dial. Ou seja, para além dessas críticas, Haraway também
compreendeu o recado de Goldman aos revolucionários
de esquerda: “Para vocês livres pensadores e liberais, vocês
que aboliram apenas um deus, ao tempo em que criaram
muitos outros para adorar; para vocês, radicais e socialis-
tas que ainda mandam seus filhos a escolas cristãs; e para
todos aqueles que fazem concessões aos padrões morais
do nosso tempo; para todos vocês, eu digo que é a falta de
coragem o que faz com que vocês se apeguem e defendam
a instituição casamento, pois ao mesmo tempo em que
admitem o seu absurdo na teoria, não têm energia para
desafiar a opinião pública e viver a prática em sua própria
vida. Vocês matraqueiam sobre a igualdade dos sexos na
sociedade do futuro, mas pensam que é um mal necessário
que a mulher deva sofrer no presente” (Goldman, 2021,
p. 74).
Muitos podem dizer que a própria Goldman caiu em
sua própria armadilha ao se render ao casamento por um
motivo nada glorioso: conseguir um visto para permane-
cer no território estadunidense. Ao que poderíamos res-

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as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

ponder com duas observações: Goldman não se rendeu ao


casamento no formato burguês, no qual se manteria em
casa cuidando da vida de seu marido e filhos – ela nun-
ca os teve – , como também não se alinhou a feministas
liberais na defesa da guerra e na saga contra as mulheres
consideradas de moral duvidosa, principalmente as pros-
titutas.7 O que destaco do trecho a seguir é a relação en-
tre a revolução desejada e vivenciada cotidianamente por
meio de novos modos de vida praticados no presente, seja
na fábrica, dentro de casa, na relação patrão-empregado,
marido-mulher, adulto-criança ou até mesmo na relação
consigo: “A explicação para essa inconsistência da parte de
muitas mulheres progressistas é que elas nunca compre-
enderam verdadeiramente o significado da emancipação.
Elas pensaram que a única coisa necessária seria a inde-
pendência das tiranias externas; os tiranos internos, muito
mais prejudiciais à vida e ao crescimento — as convenções
éticas e sociais —, foram deixados aos seus próprios cui-
dados; e eles, de fato, fizeram a sua parte. Ao que parece
eles estão tão profundamente arraigados nas mentes e nos
corações das mais ativas representantes da emancipação,
quanto estavam nas mentes e nos corações das nossas
avós” (Idem, p. 134).
Goldman provoca as mulheres modernas no início
do século XX, que se sentiam progressistas por suas lu-
tas em torno do sufrágio, mas que, aos seus olhos, esta-
vam perpassadas pelas mesmas convenções de suas avós.
É claro que Goldman, ainda assim, reconhece as lutas do

7
Ver essa posição de valorização da maternidade e boa moral feminina
em contraposição à prostituição em: Margareth Rago. Os prazeres da noite.
Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991, pp. 67-80.

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feminismo não foram em vão (Ibidem, pp. 241-244).


Antes de qualquer coisa, seria preciso esclarecer que
o feminismo não deve ser encarado como o sinônimo
de feminismo liberal. O anarco-feminismo de Emma
Goldman é um belo exemplo disso. Destacar a multiplici-
dade dos feminismos é, portanto, como Haraway (2009, p.
46), atentar para os monstros de múltiplas cabeças. Aliás,
o desdobramento crucial que Haraway realiza em relação
aos ensinamentos de Goldman diz respeito à maternida-
de. Começo pelo posicionamento de Goldman contra a
maternidade obrigatória: “Afinal, o trabalho do soldado é
tirar vidas. Para isso, ele é pago pelo Estado, elogiado por
charlatões políticos e apoiado pela histeria pública. Já a
função da mulher é dar à luz e, em relação a isso, nem os
políticos, nem a opinião pública demonstraram, em qual-
quer momento, a mínima disposição de retribuir a vida
que a mulher tem dado. Ao longo das eras, ela se encontra
de joelhos ante o altar do dever imposto por Deus, pelo
capitalismo, pelo Estado e pela moralidade. Na atualida-
de, porém, ela está acordando desse seu sonho de longa
data. Ela está se libertando do pesadelo do passado; ela se
virou em direção à luz que anuncia, com voz clara, que ela
não mais fará parte do crime de trazer ao mundo crianças
infelizes apenas para serem moídas e transformadas em
pó pelas rodas do capitalismo e para serem dilaceradas em
pedaços nas trincheiras e campos de batalha” (Goldman,
2021, p. 185).
Goldman, assim, aposta na defesa da maternidade livre:
“Posso ser presa, posso ser julgada e trancada na cadeia,
mas nunca ficarei em silêncio; eu nunca vou concordar em
me submeter à autoridade, nem farei as pazes com um sis-
tema que degrada a mulher à condição de mera incubado-

140 verve, 43: 120-145, 2023


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as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

ra, engordando-a com vítimas inocentes. Eu aqui e agora


declaro guerra contra este sistema e não irei descansar até
que o caminho esteja aberto para uma maternidade livre
e saudável e uma infância alegre e feliz.” (Idem, p. 192).
Esse conceito de maternidade recorre à metáfora da cria-
ção atrelada à mulher e, para Goldman, este “seria o seu
mais glorioso privilégio, o direito de dar à luz a uma crian-
ça” (Ibidem, p. 134). Haraway, também, entendeu como a
capacidade de criar é fundamental para qualquer transfor-
mação, o que me traz ao quarto e último ponto da con-
fecção das ressonâncias entre Goldman e Haraway. Como
já destaquei em outra ocasião8, em “Manifesto Ciborgue”,
ela trabalha com três sentidos de criação: criar novas for-
mas de subjetividade que escapem das figuras universais
do macho, do branco europeu, da mulher e do sujeito re-
volucionário; a criação de uma nova epistemologia, que
propõe conhecer a diferença; e a criação entendida por
meio dos termos “regenerar” e “replicar”, que se contra-
põem à natureza biológica e à maternidade essencialista.
É por esse último sentido que me interesso aqui, já
que ao remeter aos egos monstruosos da ficção cientí-
fica, ela propõe escapar de uma política organicista que
recorre sempre às metáforas do renascimento e do sexo
reprodutivo. A sua figura do ciborgue, mais próxima
da salamandra e de seu caráter regenerativo, ao mesmo
tempo que desassocia a natureza feminina da materni-
dade e da obrigação da criação, demonstra como o seu
feminismo, assim como o de Goldman, explicitou “a luta
por outros significados, bem como para outras formas
8
Ver: Priscila Piazentini Vieira. “Michel Foucault e o ‘Manifesto Ciborgue’,
de Donna Haraway”. In: Foucault e as práticas de liberdade I. O vivo e os seus
limites. Campinas, SP: Pontes Editores, 2019, pp. 210-211.

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de poder e prazer” (Haraway, 2009, p. 45). Apesar disso,


Goldman e Haraway estão envolvidas em uma dança em
espiral. O rodopio de Haraway, porém, levou-a para longe
da reprodução orgânica e para a abertura a outras me-
táforas para compor nosso imaginário da transformação
ética. Goldman a agradeceria por essa rebeldia em criar
novas coreografias, como fez com Mary Wollstonecraft:
“Mary era uma rebelde nata, alguém que iria criar ao invés
de se submeter a uma forma que lhe fosse estabelecida”
(Goldman, 2021, p. 153). Goldman teria dito: “Se não pu-
der dançar, esta não é minha revolução”.9 Haraway entrou
nessa dança e, ainda, ao ressaltar a relação entre o cachorro
e o seu condutor, tornou-a uma interação entre as espé-
cies, tema que renderia ainda mais ressonâncias entre ela
e a anarquia: “A tarefa é tornarem-se suficientemente coe-
rentes, em um mundo incoerente, a fim de se envolverem
em uma dança conjunta do ser que cria respeito e resposta
na carne, na corrida, no percurso. E, depois, lembrar de
viver dessa maneira em qualquer nível, com qualquer par-
ceiro” (Haraway, 2021, p. 73).

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Nature in the World of Modern Science. New York, London,
Routledge, 1989, p. 36 (Versão e-book).

9
A frase dá título à obra: Maria Clara Queiroz. Se não puder dançar, esta
não é minha revolução. Aspectos da vida de Emma Goldman. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2008.

142 verve, 43: 120-145, 2023


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tros II. Curso dado no Collège de France (1983-1984). Trad.
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(1980-1988). Paris, Gallimard, 1994;
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Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo, n-1 Edições,
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Opúsculo Libertário, 1999.
Rago, Margareth. Os prazeres da noite. Prostituição e códigos
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tra a guerra: patriarcado e militarismo. Trad. Tomaz Tadeu.
Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019.

144 verve, 43: 120-145, 2023


verve
as ressonâncias entre donna haraway e emma goldman

Resumo

Este texto privilegia as ressonâncias entre Donna Haraway e o anarco-


feminismo de Emma Goldman por meio de quatro pontos: o diagnóstico apurado
das relações de poder no presente, em especial quando pensam, por exemplo, no
ataque ao modelo de família burguesa heteronormativa; a crítica que realizam à
tradição cristã e o modo como esta permeia a produção da subjetividade ocidental,
apontando seus entrelaçamentos com os estereótipos femininos naturalizados, o
regime sexual heteronormativo e as práticas de militância incrustadas nos grupos
de militância da esquerda; a relação crítica que estabelecem com determinadas
perspectivas feministas, tais como a liberal e a marxista, propondo remodelações
à forma como pensamos a militância e a prática intelectual; e, finalmente, como
ambas abrem para a criação de mundos outros no próprio presente, recusando-se a
aguardar as fases previamente programadas rumo à revolução redentora.

Palavras-chave: Emma Goldman; Donna Haraway; anarco-feminismo

Abstract

This text emphasizes the resonances between Donna Haraway and Emma
Goldman’s anarcho-feminism through four points: the accurate diagnosis of power
relations in the present, especially when considering, for example, the attack on the
heteronormative bourgeois family model; the criticism they make of the Christian
tradition and how it permeates the production of Western subjectivity, pointing
out its intertwining with naturalized female stereotypes, the heteronormative
sexual regime and the practices of militancy encrusted in militancy groups on
the left; the critical relationship they establish with some feminist perspectives,
such as the liberal and the Marxist, proposing changes to the way we think about
militancy and intellectual practice; and, finally, how both open to the creation of
other worlds in the present itself, refusing to wait for the previously programmed
phases towards the redemptive revolution.

Recebido em 10 de abril de 2023. Confirmado para publicação em 10 de maio


de 2023.

Keywords: Emma Goldman; Donna Haraway; anarcho-feminism

The resonances between Donna Haraway and Emma Goldman, Priscila


Piazentini Vieira.

verve, 43: 120-145, 2023 145


43
2023

as publicações marginais em
território dominado pelo estado
brasileiro no século XXI

rodolpho jordano netto

introdução
Longe de ser algo novo dentro dos anarquismos, pu-
blicar, traduzir e difundir são práticas seculares e tinham
extrema importância para os anarquistas do século XIX
e da primeira metade do século XX. Panfletos e jornais
eram algo comum e de ampla circulação dentro dos espa-
ços anarquistas, sindicatos, organizações operárias, entre
outros. Com o passar dos anos, essas práticas perderam
força, mas não se extinguiram. Alguns coletivos e organi-
zações anarquistas continuaram publicando seus jornais
e informativos como maneira de difusão e propaganda
libertária.
Na década de 1980, o movimento anarcopunk trouxe
uma prática dos movimentos contraculturais: a publicação
de zines. Estes surgem como alternativas ao mercado edi-
torial e como forma de autopublicação de artistas, poetas,

Rodolpho Jordano Netto é editor e tradutor da Edições Tormenta, editora


anarquista no Rio de Janeiro. Fez parte da Imprensa Marginal e é doutorando
em Geografia pela USP. Contato: rodolphoknupp@gmail.com.

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verve
as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

entre outros. As publicações nesse formato trazem uma


mescla de colagens e textos e são feitas de forma artesanal.
Dito isso, os zines anarcopunks seguiam a mesma lógica
dos jornais e publicações anarquistas de outrora: difusão
dos anarquismos e da cultura libertária, mas reunindo as
características de um zine e tentando realizar todo o pro-
cesso de produção de maneira faça-você-mesma. De certa
maneira, esse tipo de publicação deu um “novo ar” e um
novo formato para a propaganda anarquista, mantendo-a
viva, ativa e com novos formatos e modos de criação.
Feita essa breve introdução, este artigo tem como ob-
jetivo analisar e expor as formas de publicações marginais
e os coletivos editoriais que de maneira faça-você-mesma
e autogerida ajudam e ajudaram na difusão e propagação
dos anarquismos no território dominado pelo Estado bra-
sileiro. Não comentaremos aqui sobre as editoras anarquis-
tas que publicam seus livros e livretos de forma “indireta”,
ou seja, são mediadas por gráficas exteriores no processo
de publicação. Que fique explícito desde já: não estamos
fazendo uma crítica às editoras anarquistas supracitadas,
nem questionando a importância de suas publicações, mas
sim fazendo um recorte de análise.
Temos como objetivo realizar um pequeno mapeamen-
to das editoras anarquistas faça-você-mesma em território
dominado pelo Estado brasileiro, apresentando os prin-
cipais temas publicados por estas. Apresentaremos aqui
editoras faça-você-mesma que já encerraram atividades e
as que ainda estão atuantes, fazendo assim uma espécie de
rememoração das editoras e dos coletivos que já finaliza-
ram suas atividades.

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43
2023

Pedimos desculpas desde já se esquecermos e/ou


deixarmos de mencionar alguma editora, coletivo e grupo
de difusão e propagação dos anarquismos que publicou
ou publique zines, livros e livretos de maneira autônoma
e faça-você-mesma.

breves reflexões sobre publicações marginais


Como mencionamos anteriormente, as publicações
marginais não são algo novo dentro dos anarquismos, a
impressa operária e anarquista dos séculos XIX e XX já
propagavam as lutas e ideais anarquistas de maneira auto-
gestionária e faça-você-mesma. Como apontado por Doris
Accioly e Silva (2011), a atividade editorial anarquista é
um reflexo do esforço cultural anarquista. Diversos folhe-
tos e jornais foram e são publicados por anarquistas. O
que mudou, a partir de meados do século XX e no século
XXI, foram as formas de publicação. Se antes tínhamos
diversos jornais e revistas anarquistas, hoje temos uma
gama de editoras que fazem suas publicações em formato
de zines e livretos, e até em formatos de livros. Mantêm-
se, porém, a forma autônoma e sem mediações de gráficas,
barateando os custos e conseguindo informar as práticas
anarquistas para além de grandes livrarias ou bancas de
jornais.
As publicações libertárias, de ontem e de hoje, não são
tratadas apenas como propagadoras de ideias, mas tam-
bém como práticas de vida e de sociabilidade (Carvalho,
apud Uehara, 2012). A partir das editoras, das gráficas, dos
zines, livretos e jornais se torna possível ler os clássicos,
discutir, aprender e pensar as práticas que já passaram, que
estão sendo vivenciadas e que estão por vir. Além disso,

148 verve, 43: 146-161, 2023


verve
as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

há um diálogo e uma troca de experiências e de materiais


importantes entre as editoras e os coletivos anarquistas de
hoje em dia que se preocupam em fazer suas publicações
nas maneiras expostas anteriormente.
Como nos é colocado acerca dos escritos e publica-
ções marginais realizadas por anarquistas, elas são uma
forma de ação direta. Nessas publicações, divulgam-se
outros periódicos e textos, como também há um convite
aos leitores para que escrevam e publiquem seus próprios
materiais. Essas publicações transitam por várias mãos,
sendo enviadas para anarquistas de vários lugares do pla-
neta, emprestadas ou copiadas (Uehara, 2012) e, hoje em
dia, percorrem também os fluxos eletrônicos. Dito isso,
as publicações marginais anarquistas atualizam as críti-
cas aos costumes, trazem novos debates e novas práticas
(Carvalho apud Uehara, 2012).
Sendo assim, vemos essas publicações como “margi-
nais” utilizando da própria definição da palavra: margi-
nal é o que “está localizado à margem de; que segue o
contorno, que não se adapta aos princípios estabelecidos;
que foi excluído da sociedade ou prefere viver fora dela,
que não respeita leis; criminoso, pessoa que vive à margem
da sociedade; quem não aceita leis ou se opõe à moral;
quem não aceita princípios preestabelecidos”1. Sendo as-
sim, como escreveu a editora e distribuidora anarcopunk
Imprensa Marginal, busca-se sair da lógica do lucro e da
comercialização capitalista de ideias e práticas. Essas pu-
blicações partem do princípio de que informação não é
produto e, dentro dessa ideia a propriedade intelectual
não deve ser respeitada, apoiam a pirataria e a livre circu-
1
Disponível em: < https://www.dicio.com.br/marginal/ > (acesso em:
30/03/2023).

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lação. Não pretendem ser distribuídas por grandes livra-


rias ou entrar no mercado editorial, rejeitando ser sucesso
de venda ou ter alguma publicação best-seller (Imprensa
Marginal, s/d.).
Como relatado anteriormente, as publicações margi-
nais anarquistas conseguem cumprir um papel importan-
tíssimo tanto na difusão de novas reflexões sobre as prá-
ticas ácratas quanto no resgate da memória das lutas de
outrora. Como foi apontado por Len Tilbürger e Chris P.
Kale (2014) em seus trabalhos sobre a influência do anar-
copunk na difusão da libertação animal e do veganismo, os
zines e publicações autônomas e faça-você-mesma tiveram
um papel fundamental para popularizar práticas veganas e
a libertação animal dentro dos meios anarquistas e punks.
As publicações por eles analisadas não traziam apenas
textos, mas relatos de ações contra a exploração dos ani-
mais e indicações de bandas e espaços veganos (Idem).
Outro exemplo da importância das publicações mar-
ginais dentro dos anarquismos é o trabalho de Antônio
Carlos de Oliveira (2005). O autor faz um resgate his-
tórico do punk a partir de suas publicações marginais
em décadas passadas, conseguindo entender com essas
leituras o contexto em que estavam inseridos os punks e
anarcopunks, as ações realizadas, os conflitos e os eventos
realizados por eles.
Dialogando com o trabalho de Luíza Uehara (2012),
nota-se que é mantida a importância de ir além da publi-
cação e de incentivar a sociabilidade libertária a partir das
trocas e diálogos entre as editoras e os coletivos anarquis-
tas que estão atualmente em atividade. Se na virada do sé-
culo XIX até metade do século XX, como aponta Uehara,

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as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

os jornais operários e anarquistas traziam, para além de


textos, divulgações de eventos, peças de teatro entre ou-
tros, hoje são os zines e livretos que fazem esse papel. É
claro que, com o desenvolvimento tecnológico, o lugar de
maior divulgação se tornou as redes sociais, mas publica-
ções marginais continuam a manter práticas de incentivoà
publicação física de materiais anárquicos.
Dito isso, especificamente falando do território domi-
nado pelo Estado brasileiro, torna-se importante salientar
que a primeira publicação do livro “Calibã e a Bruxa”, de
Silvia Federici, hoje publicado por uma editora não mar-
ginal, foi traduzido e distribuído de forma autônoma e
pirata por uma distribuidora anarquista e feminista cha-
mada “Bruxaria Distro”. Outra importante publicação foi
da editora anarcopunk “Imprensa Marginal”, que fez o
primeiro livreto em português da anarquista Silvia Rivera
Cusicanqui. Queremos dizer com isso que, de alguma
maneira, as publicações marginais no território dominado
pelo Estado brasileiro anteciparam e introduziram deba-
tes nas práticas anarquistas, muito antes desses debates se
popularizarem e chamarem a atenção de grandes editoras,
como mencionaremos agora.

uma pequena cartografia das publicações marginais


anarquistas em território dominado pelo Estado
brasileiro
Feitas estas breves discussões sobre as publicações
marginais anarquistas, realizaremos agora um mapeamen-
to das editoras e dos coletivos anarquistas que existiram e
existem em território dominado pelo Estado brasileiro e

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2023

que fizeram e fazem publicações nos formatos discutidos


anteriormente.
Mencionaremos, primeiramente, o “Coletivo e
Editorial Erva Daninha”, que não está mais em ativida-
de. Surgiu em São Caetano do Sul e esteve ativo desde o
final do século XX até os primeiros anos do século XXI.
Suas publicações focavam na divulgação do anarquismo
anticivilização e do anarcoprimitivismo. Além dos zines e
livretos, o coletivo contava também com a distribuição de
DVDs. Entre os autores traduzidos, editados e publicados
estão nomes como Pierre Clastres, Daniel Quinn e textos
do coletivo Green Anarchy.
Uma outra editora de muita importância na divulga-
ção dos anarquismos de forma marginal foi a “Deriva”, do
Rio Grande do Sul. A editora Deriva publicou diversos
livretos e livros importantes para as práticas anarquistas,
além de ajudar outras editoras e distribuidoras a imprimir
e editar suas publicações. A editora possuía uma gráfica
caseira no fundo de uma casa e realizava trabalhos gráfi-
cos para sustentar as publicações anarquistas e as próprias
pessoas que faziam parte dela. Entre as publicações reali-
zadas estavam textos de Hakim Bey, James Scott, Grupo
Krisis e diversos outros. Vale ressaltar que ainda não há
tradução de textos de James Scott no território dominado
pelo Estado brasileiro até hoje, exceto pela publicação da
editora Deriva.
Também do Rio Grande do Sul existiu a Líber Pensulo.
Apesar de não termos muita informação sobre o coletivo
editorial, o primeiro contato que tivemos com o escrito
“AI FERRI CORTI”, até então anônimo, foi através de
uma publicação dessa editora.

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as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

Localizada no Rio de Janeiro, a edições “Hurrah!” foi


uma editora que traduzia e publicava textos em forma-
tos de zines durante as duas primeiras décadas do século
XXI. Trouxe importantes discussões acerca do anarquis-
mo anticivilização, veganismo, queer, entre outros assun-
tos. Importa ressaltar que a editora, de maneira marginal,
publicou pela primeira vez em português textos de nomes
como Judith Butler e Paul B. Preciado.
A Bruxaria Editora e Distro, que nasceu em São Paulo,
foi uma distro e editora ligada aos anarcofeminismos. Não
sabemos se ainda está em atividade ou se já as encerrou.
Difundia materiais sobre saúde coletiva, problemáticas li-
gadas ao patriarcado e às relações de gênero, entre outros.
Além disso, realizava debates e rodas de conversa sobre
ginecologia natural e autocuidado. Como mencionamos
anteriormente, a editora foi a primeira a se atentar à obra
da marxista Silvia Federici, trazendo textos inéditos em
português da autora.
Também na capital paulista, existiu o Espaço
Impróprio, que distribuía diversos materiais anarquistas
feitos de maneira autônoma. Não nos lembramos se o es-
paço possuía uma editora do coletivo, mas as individuali-
dades que geriam o lugar editavam e publicavam diversos
zines e livretos.
A partir de duas pessoas do coletivo do Espaço
Improprio surgiu a distro No Gods No Masters2, um pro-
jeto em atividade ligado ao coletivo Cultive Resistência,
organizado por apenas duas pessoas, que hoje se localiza
no litoral de São Paulo. O foco é a comunidade Punk Do

2
Para mais informações: < https://nogods-nomasters.com/nogodsnomasters/
quem-somos/ > (acesso em: 30/03/2023).

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43
2023

It Yorself, que possui uma crítica política e social baseada


no anarquismo, no feminismo, no veganismo, nas lutas por
emancipação e resistência. Como colocado pelo coletivo, é
dessa comunidade que fazem parte e por isso nela colocam
suas forças, considerando-a como uma força para mudanças
urgentes na sociedade (No god, no masters, s/d.). Possuem
uma grande quantidade de zine e livretos publicados, além
de camisetas, discos, entre outros meios de divulgação.
Uma outra editora que não está mais em atividade é
a Imprensa Marginal que surgiu em São Paulo e depois,
contou com pessoas de outros estados ajudando e difun-
dindo seus materiais. Além de produzir suas próprias
publicações, distribuiu publicações de outros coletivos e
grupos. A editora durou cerca de 20 anos e teve diversos
títulos lançados, como o livro Semeando a Revolta, que re-
lata as lutas anarcopunks na América Latina. Hoje em dia,
algumas pessoas que tiveram parte da Imprensa Marginal
possuem duas novas editoras, uma localizada no México
(Konspiración Iconoclasta)3 e outra no estado do Rio de
Janeiro (Edições Tormenta)4.
Como dito anteriormente, a Edições Tormenta, loca-
lizada no Rio de Janeiro, é derivada do trabalho proposto
pela Imprensa Marginal, e surgiu após o fim desta última.
A editora continua divulgando as publicações da Imprensa
Marginal e vem traduzindo, editando e publicando diver-
sos materiais novos ligados às lutas anarcopunks e textos
de anarquistas contemporâneos.
3
Para mais informações: < https://www.facebook.com/search/
top?q=konspiraci%C3%B3n%20iconoclasta >. (Acessado em 30/03/2023).

4
Mais informações em: < https://www.instagram.com/edicoestormenta/ >
(Acessado em 30/03/2023).

154 verve, 43: 146-161, 2023


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as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

Uma editora que também não está mais em atividade


é a Inconstância Editora. Essa editora teve origem den-
tro da ocupação Boske, no Rio Grande do Sul, e obteve
o apoio da Editora Deriva para imprimir seus materiais.
Traduziram e publicaram diversos textos de anarquistas
insurrecionalistas e de grupos insurrecionários.
No Espírito Santo, existiu a editora Escrimaldi, ini-
cialmente ligada à ocupação Pântano. Mesmo depois
desta ser desalojada, a editora continuou suas atividades,
publicando livretos e zines, alguns de poesia com colagens
e fotos inéditas para cada exemplar. Reproduziu diversos
textos de Antonin Artaud nesse formato de zines.
Uma editora que está em atividade e vem ganhando
notoriedade é a Monstro dos Mares5, de Ponta Grossa,
Paraná. Além de possuir uma vasta gama de publicações,
a editora possui um grupo de apoiadores para manter suas
atividades. Além de publicações próprias, imprime e dis-
tribui publicações de editoras anarquistas que já encerra-
ram suas atividades.
Recém-criada, a Laput Editorie6, do interior de São
Paulo, dedica-se à divulgação de obras literárias como
contos e poesias escritas por anarquistas e punks. Conta
com um grande número de publicações dos gêneros men-
cionados e ajuda a divulgar as poetisas e poetas anarquis-
tas e punks do território dominado pelo Estado brasileiro.
Seus materiais são publicados em formatos de zines ou li-

5
Mais informações em: < https://monstrodosmares.com.br/ > (Acessado
em 30/03/2023).

6
Mais informações em: < https://www.instagram.com/laputeditoreoficial/
> (Acessado em 30/03/2023).

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2023

vros artesanais, contendo em suas capas expressões artísti-


cas em forma de desenhos feitos por artistas anarcopunks.
A Edições Insurrectas7 é uma editora da capital do es-
tado de São Paulo e vem publicando obras de extrema
relevância acerca do insurrecionalismo e da luta anticar-
cerária. Além de livros e livretos, conta com cartazes, blu-
sas e bolsas com temáticas anarquistas, insurrecionalistas
e anticarcerárias. Possui publicações de Alfredo Bonanno,
Jesús Sepúlveda, entre diversos outros autores.
A DIYfusão Editora8 é uma editora anarcopunk de
Fortaleza, lançou recentemente um importante livro cha-
mado Os velhos tempos sobre a cena anarcopunk da capital
do Ceará, escrito por Lezado Ruas. Além de livros e livre-
tos, a DIYfusão também produz camisetas com temáticas
anarquista e de lutas sociais.
Um coletivo importante, mas que não é uma editora, é
a Facção Fictícia9. Realiza diversas análises das conjuntu-
ras e dos anarquismos no âmbito internacional e publica
diversos materiais para livre reprodução. Além disso, aju-
da na produção de vídeos e produz cartazes com as temá-
ticas de suas análises.

7
Mais informações em: < https://www.instagram.com/ed.insurrectas/ >
(Acessado em 30/03/2023).

8
Mais informações em: < https://www.instagram.com/diyfusao_serigrafia/
> (Acessado em 30/03/2023).

9 Mais informações em: < https://faccaoficticia.noblogs.org/ > (Acessado


em 30/03/2023).

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as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

Ligada à ocupação Kasa Invisível, de Minas Gerais, a


1000 Contra10 é uma distribuidora e editora que publica
livretos e revende livros e livretos de outras editoras. Além
das publicações, a 1000 Contra possui diversos materiais
que ajudam no sustento da ocupação e dos indivíduos que
a realizam.
Uma editora que teve uma existência curta foi a
Desgarra, foi uma editora de São Paulo que publicou li-
vretos e pôsteres anarquistas. Teve diversas publicações
importantes para fomentar as práticas anarquistas.
Também na capital paulistana, existe a Anarkadistra11.
Vem publicando zines, artes, agendas e bolsas com as te-
máticas dos anarquismos e das lutas lésbicas. Possui um
catálogo de zines com temáticas bastante importantes
como heterossexualidade compulsória e lutas feministas
ao redor do mundo, variando entre textos de anarquistas
ditos “clássicos” e de contemporâneos.
Outra editora de bastante expressão dentro das pu-
blicações marginais é a Terra sem Amos12. A editora do
Piauí vem publicando diversos textos de anarquistas do
século XIX e análises mais contemporâneas. A editora
não se limita apenas a textos anarquistas, possui tam-
bém publicações de grupos e individualidades marxistas
e autonomistas.
10
Mais informações em: < https://1000contra.com.br/ > (Acessado em
30/03/2023).

11
Mais informações em: < https://www.instagram.com/anarkadistra/ >
(Acessado em 30/03/2023).

12
Mais informações em: https://www.instagram.com/tsa.editora/ >
(Acessado em 30/03/2023).

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2023

O Coletivo Problema, do Rio de Janeiro, publica zines


com análises de conjuntura e críticas à vida cotidiana no
capitalismo. O coletivo teve início na primeira década do
século XXI e está ativo até hoje. Os zines escritos e repas-
sados não têm preço fixo e são distribuídos em feiras, no
transporte público e nas ruas do Rio de Janeiro pelo valor
que a pessoa quiser contribuir.
Feito esse breve relato de editoras que publicam seus
materiais de maneira marginal, devemos lembrar que di-
versas publicações que circulam dentro dos meios anar-
quistas e anarcopunks não possuem uma editora ou
coletivo que os assina. Um exemplo são as publicações
distribuídas pelos squatts e okupas de viés anarquista no
território dominado pelo Estado brasileiro, que, além de
possuírem suas próprias publicações, imprimem e distri-
buem publicações de outros coletivos e editoras. Outro
exemplo importante de ser lembrado é a vasta produção
literária de poetas e poetisas anarquistas e não anarquistas
que publicam por conta própria seus textos e os repassam
via “contribuição voluntária”13.

conclusão
Como exposto neste artigo, apesar das mudanças de
formato, as publicações marginais anarquistas continuam
vivas e presentes nos espaços de sociabilidade libertária e
para além deles. Os modos de divulgação dessas publi-
cações se adaptam ao meio computo-informacional, não

13
Contribuição voluntária se dá a partir de quanto a pessoa acha que vale
aquele trabalho. Às vezes, se dá de maneira livre e espontânea ou a pessoa
que publicou o material avisa a respeito dos custos que teve para a produção.

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as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

perdendo seu caráter pessoal e a importância dada ao con-


tato com quem adquire os materiais.
Apesar de algumas editoras aqui expostas terem en-
cerrado suas atividades, as pessoas que realizavam essa
forma de propaganda continuam, em sua maioria, ativas
e se envolvendo em outras formas de agitação anárquica.
Além disso, seus materiais continuam sendo impressos e
distribuídos dentro dos espaços anarquistas.
Notamos a partir de nossa inserção no meio dos pu-
blicadores marginais, a construção de uma rede de socia-
bilidade e troca entre as editoras e coletivos supracitadas,
saindo da lógica neoliberal competitiva e construindo
processos de solidariedade e ação direta entre estas e com
espaços anarquistas pelo território dominado pelo Estado
brasileiro. A maioria das editoras aqui relacionadas doam
seus materiais para bibliotecas e espaços anarquistas.
Como vimos, a atividade de propaganda dos anarquis-
mos continua viva e ativa, adaptando-se às novas reali-
dades presentes nas sociedades contemporâneas, mas sem
perder características importantes das formas de publica-
ção marginal do passado.

Referências bibliográficas
Imprensa Marginal, Uma Breve Apresentação da
Imprensa Marginal. Disponível em www.anarcopunk.
org/imprensamarginal. (Acessado em: 30/03/2023).
No God No Masters. Quem Somos?. Disponível em:
https://nogods-nomasters.com/nogodsnomasters/quem-
-somos/ (Acessado dia 30/03/2023).

verve, 43: 146-161, 2023 159


43
2023

Olibeira, Antônio Carlos de. Os Fanzines contam uma his-


tória sobre punks. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005.
Silva, Doris Accioly e. Anarquistas: Criação Cultural,
Invenção Pedagógica. Educ. Soc., Campinas, v. 32, n. 114,
p. 87-102, jan.-mar. 2011. Disponível em http://www.ce-
des.unicamp.br (Acessado: 03/12/2022).
Tilburguer, Len and Kale, Chris. Nailing Descartes to
the Wall’: Animal Rights, Veganism and Punk Culture.
Active Distribution. 2014.
Uehara, Luíza. liberdade impressa em verve: escritos de
anarquistas no brasil. verve, 21, 2012, pp. 375-394.

160 verve, 43: 146-161, 2023


verve
as publicações marginais em território dominado pelo estado brasileiro...

Resumo
Este artigo visa analisar brevemente a importância de coletivos
e editoras na difusão dos anarquismos em território dominado
pelo Estado brasileiro e seus papéis de continuidade acerca da
propaganda anarquista de outrora. Pretendemos com este,
fomentar o debate acerca do que designamos como publicações
marginais, sem que com isso criemos uma fórmula fechada.
Além disso, apresentamos um pequeno mapeamento das
editoras e coletivos anarquistas que publicam seus materiais de
forma marginal – sem mediações de gráficas, críticas ao direito
autoral e à propriedade intelectual, publicadas de maneira
artesanal e faça-você-mesma.
Palavras-chave: Publicações marginais, anarquismo;
anarcopunk.
Abstract
This article aims to analyze briefly the importance of collectives
and publishers in the diffusion of anarchism in the territory
dominated by the Brazilian State and their continuing role
in the anarchist propaganda of the past. We intend with this
paper to foment the debate about what we call marginal
publications, without creating a closed formula. In addition, we
present a small mapping of anarchist publishers and collectives
that publish their materials in a marginal way - without the
mediation of printers, critical of copyright and intellectual
property, published in a handmade, do-it-yourself manner.
Keywords: marginal publications; anarchism, anarchopunk.
Recebido em 15 de abril de 2023. Confirmado para publicação
em 10 de maio de 2023.
The underground publication on territory under control of
the brazilian government in the 21st century, Rodolpho
Jordano Netto.

verve, 43: 146-161, 2023 161


43
2023

armand guerra:
um cineasta semeador de rebeldias

gustavo vieira

Autor de diversas obras cinematográficas, jornalísticas,


literárias e teatrais, Armand Guerra é um dos grandes no-
mes do cinema espanhol. Em razão de sua súbita mor-
te no exílio após o potente acontecimento da Revolução
Espanhola (1936-1939), a censura instaurada na Espanha
pela ditadura franquista e o desmerecimento por parte de
muitos escritores, historiadores e críticos de cinema foram
responsáveis pelo esquecimento de sua obra e silenciaram
não apenas grande parte de suas produções cinematográ-
ficas, mas também suas contribuições para a história do
cinema.
Armand Guerra foi um dos vários pseudônimos ado-
tados pelo anarquista José Estívalis Cabo. Filho de cam-
poneses católicos, nasceu em 4 de fevereiro de 1886 no
povoado de Liria, próximo à cidade de Valência. Cresceu
em uma sociedade provincial marcada pela pobreza e in-
tensas desigualdades sociais, formada por latifundiários
centralistas, industriais em expansão, aristocratas ricos e

Gustavo Vieira é doutorando em Ciências Sociais e pesquisador no Nu-Sol.


Contato: gustavovieira09@gmail.com.

162 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

uma grande massa de trabalhadores composta por artesões


e camponeses. Em contrapartida, havia pequenos grupos
anarquistas espalhados pela região, cujas práticas revolu-
cionárias visavam derrubar a ordem social instituída. Por
meio da revolta e da ação direta, atacavam as proprieda-
des dos ricos proprietários de terras, dos patrões explora-
dores, dos eclesiásticos e do Estado espanhol (Lacurz &
Carratalá, 2008).
Durante sua infância, Guerra chegou a ser coroinha e
seminarista da Igreja Católica, até abandonar repentina-
mente o catolicismo e passar a manifestar fervorosamente
o anticlericalismo. Aos treze anos de idade, trabalhou em
uma gráfica em Valência com seu irmão Vicente e, assim
como muitos trabalhadores valencianos da época, foi atra-
ído pelo sindicalismo revolucionário, corrente anarquista
que apareceu no meio sindical francês durante a década de
1890, que visava a transformação da sociedade por meio
de ações diretas como greves, manifestações, revoltas etc.,
além de rejeitar o parlamentarismo e o papel que o mar-
xismo atribuía ao partido político como condutor da luta
social (Idem, p. 34). Nesse sentido, não é surpreendente
que Guerra, com seu temperamento inquieto, seu espírito
de rebeldia e sua condição de trabalhador, tenha abraçado
o anarquismo. Suas práticas libertárias fizeram com que
passasse a ser constantemente acossado pelas forças re-
pressivas do Estado.
Em 1907, Guerra foi preso e encarcerado por
participar da greve dos datilógrafos em Valência. Ao
sair da prisão, ele e seu irmão fugiram clandestinamente
para a França, onde criaram relações com o movimento
anarquista local. Em setembro de 1909, mudou-se para
Genebra, na Suíça, onde participou de encontros do

verve, 43: 162-184, 2023 163


43
2023

grupo anarquista Germinal. Nesse período, passou a se


corresponder com o médico e anarquista Pedro Vallina
Martínez1, que se encontrava refugiado em Londres desde
1906 após fugir das autoridades espanholas e francesas em
razão de suas atividades revolucionárias (Romero, 2001).
No mesmo ano, Guerra retornou à França e passou a
editar o jornal anarquista espanhol Tierra y Libertad, em
Nice, devido à grande parte das publicações anarquistas
terem sido proibidas na Espanha após os eventos que
marcaram a Semana Trágica, revolta popular que ocorreu
de 26 de julho a 1 de agosto de 1909 em Barcelona,
sendo violentamente esmagada pelas tropas militares
espanholas. A repressão subsequente oriunda das forças
da ordem resultou no encarceramento de mais de duas mil
pessoas (em sua maioria anarquistas), cinco execuções e
muitos exilados (Casas, 2006, p. 104). Entre os que foram
1
Pedro Vallina Martínez (1879-1970). Filho de uma família de classe média
e de pensamento liberal da região da Andaluzia, iniciou seus estudos em um
liceu em Sevilha e em 1898 foi para a cidade de Cádiz estudar medicina.
Nessa época, já era um militante anarquista convicto. Posteriormente,
mudou-se para Madri para seguir com seus estudos em medicina. Na capital
espanhola, atuou em círculos anarquistas e outros grupos revolucionários
influenciados pelo pensamento de Francisco Pi y Margall (1824-1901).
Foi perseguido e preso pelas autoridades espanholas pelo seu suposto
envolvimento no caso conhecido como Complot de la Coronación, uma trama
fracassada para tentar assassinar o rei Alfonso XIII no dia de sua coroação.
Após sair da prisão em 1902, fugiu da Espanha e foi para o exílio em Paris. A
continuidade de suas atividades revolucionárias na França fez com que fosse
expulso do país pelas autoridades francesas. Em 1906, chegou à Inglaterra e
se estabeleceu em Londres, onde finalizou seus estudos em medicina. Foi um
frequentador regular do Círculo Anarquista Judaico, além de criar relações
com outros anarquistas que também viviam em Londres naquela época.
Libertários, como Rudolf Rocker, Errico Malatesta e Piotr Kropotkin.
Cf. Romero, Manuel R., “Pedro Vallina, una biografía comprometida”, en
Actas del IX Congreso sobre el Andalucismo Histórico, Sevilla, Fundación Blas
Infante, 2001, pp. 195-212.

164 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

julgados e executados, estava o educador e fundador da


Escola Moderna, Francisco Ferrer i Guàrdia.
Entre 1910 e 1914, Guerra escreveu regularmente
para o semanário anarquista cubano Tierra, publicado
em Havana, e o semanário anarquista suíço Le Rèveil sob
o pseudônimo de Silavitse (anagrama de seu verdadeiro
nome) (Lacruz & Carratalá, 2008, p. 35). Em fevereiro
de 1911, viajou para a Itália, onde embarcou em um navio
rumo ao Egito. Na cidade do Cairo, ajudou na publicação
do jornal L’Idea, editado e publicado em três línguas – ita-
liano, francês e grego. Após tentativas de publicar o jornal
em árabe, as autoridades egípcias proibiram a publicação.
Temendo ser preso novamente, Guerra deixou o país afri-
cano e iniciou uma longa viagem de barco pelos Bálcãs,
passando por países como Grécia, Turquia, Romênia e
Sérvia, até retornar à França, onde escreveun uma série de
reportagens sobre suas viagens.

cinema do povo
Em 1913, na cidade de Paris, Guerra produz um filme
para a empresa Éclair, intitulado Un Cri Dans la Jungle
(1913), que chamou a atenção do anarquista Yves-Marie
Bidamant, que, fascinado pela obra, convidou o cineasta
espanhol para formar uma cooperativa cinematográfica
anarquista com o propósito de rodar filmes de interesse
social. Quanto a esse encontro com Bidamant, Guerra
escreveu: “Como resultado de um sucesso que eu havia
conseguido — permita-me dobrar minha modéstia —
como o único ator, diretor e roteirista espanhol atuando
em Paris em 1913 com meu filme Un grito en la selva, no
qual havia escrito, dirigido e estrelado, Bidamant, então

verve, 43: 162-184, 2023 165


43
2023

secretário da União de Sindicatos da França, veio me fe-


licitar e me falou sobre a oportunidade de fazer filmes de
interesse social para contrariar as estupidezes burguesas
que os produtores estavam servindo ao público. Vendo
nisto uma possibilidade de renovação do cinema - mesmo
assim - propus-lhe fundar uma Cooperativa entre a clas-
se trabalhadora, por meio de uma emissão de ações a 25
francos cada uma” (Guerra, 1935, p.7).
Surgiu a cooperativa Cinema do Povo (Cinéma du
Peuple), em 28 de outubro de 1913. Foi uma experiência
libertária que contou com pouco dinheiro e recursos, mas
que realizou diversas obras cinematográficas por meio da
autogestão. O objetivo da cooperativa era realizar filmes
de qualidade que buscavam mostrar a vida cotidiana e as
lutas da classe operária. Filmes que rompessem com as
imagens comerciais da classe trabalhadora produzidas pe-
los filmes comerciais burgueses da época, de modo que
o cinema, ao lado da publicação de livros e da edição de
jornais, transformou-se em mais uma maneira dos pró-
prios operários contarem suas batalhas contra o Estado.
O trabalho do Cinema do Povo ficou bastante conheci-
do devido às divulgações por meio de artigos nos jornais
anarquistas como o Le Libertaire, Les Temps Nouveaux e
La Guerre Sociale ( Jarry, 2009).
Foi nesse momento que o cineasta anarquista adotou
o pseudônimo de Armand Guerra e realizou o primeiro
filme pela cooperativa intitulado Les misères de l’aiguille
(1913), que contou com a participação dos anarquistas
Sebastian Faure, Jean Grave, Andrés Girard, Laisant e
Pierre Martín (Estívals apud Guerra, 2005, p. 17). Depois
dessa obra, dirigiu outros filmes, como Le Vieux Docker e
La Commune, no qual foi diretor, roteirista e ator. Essas

166 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

três obras foram parcialmente recuperadas e restauradas


pela Cinémathéque de París que, junto ao filme Carne de
Fieras, são as únicas obras que atualmente se encontram
parcialmente conservadas da variada produção do cineasta
anarquista.
Em meados de 1914, a experiência anarquista do
Cinema do Povo encerrou as suas atividades por proble-
mas financeiros e pela instabilidade política em decor-
rência da I Guerra Mundial. A situação bélica no conti-
nente europeu fez com que os estrangeiros que viviam na
França tivessem que apresentar uma série de documentos
ao Estado. Guerra, que desde 1909 estava sob vigilância
policial por suas atividades anarquistas e por escrever para
o jornal Tierra y Libertad, foi deportado da França em
27 de setembro de 1915. Em relação aos anos em que vi-
venciou a experimentação libertária do Cinema do Povo,
Guerra escreveu: “Todos os filmes da cooperativa, em par-
ticular La Commune, foram calorosamente recebidos por
todas as plateias, independentemente de ideais ou posição,
o que constituiu um duplo sucesso: artístico e comercial.
O roteiro para a segunda parte da La Commune já esta-
va pronto quando a guerra europeia eclodiu e sobreveio a
catástrofe para a organização. Parece que as hordas nacio-
nalistas queimaram os negativos de nossas produções. E,
no início da guerra, foi o fim da cooperativa de produção
Cinema do Povo, destinada a mudar o rumo dos méto-
dos de produção franceses. Desde aquela época — eu era
muito jovem e muito entusiasmado com minha profissão
— viajei por quase toda a Europa, parte da Ásia Menor e
África, e trabalhei em muitos países. Mas eu nunca mais
tive a oportunidade de organizar uma cooperativa seme-
lhante à parisiense” (Guerra, 1935, p.7).

verve, 43: 162-184, 2023 167


43
2023

Após deixar a França, Guerra partiu para Lausanne,


na Suíça, e passou a trabalhar como tipógrafo em uma
gráfica até o final de 1917, quando retornou à Espanha e
retomou os seus interesses com o cinema. Em 1918, junto
de seu irmão Vincente, criou a produtora cinematográfica
Cervantes Filmes e produziu três filmes: El Crimen del
Bosque Azul, La Zarpa del Paralitico, e La Maldición de la
Gitana, obras que infelizmente se perderam com o tempo,
assim como grande parte de seus trabalhos cinematográ-
ficos. Os filmes produzidos pela Cervantes Films eram
filmados ao ar livre em vez de estúdios. As tramas dos
filmes contavam histórias sobre ciganos e toureiros, que
eram temas populares entre o público espanhol da época.
O filme La Maldición de la Gitana foi produzido com a in-
tenção de combater as crenças católicas na Espanha. Por
causa de problemas financeiros, a Cervantes Films encer-
rou suas atividades em 1920, e Guerra deixou a Espanha
para trabalhar na Alemanha ( Jarry, 2001).

trabalhos na indústria cinematográfica


Nos estúdios da companhia alemã de cinema Universum
Film Aktien Gesellschaft (UFA), em Bebelsberg, Guerra tra-
balhou como ator, diretor, tradutor de cenas, roteirista, en-
tre outros ofícios de produção em diversas obras cinemato-
gráficas do expressionismo alemão, além de trabalhar com
diretores como F.W. Murnau, Georg Wilhelm Past e Fritz
Lang. Nos estúdios, “exerceu todos os ofícios do cinema, da
escrita de intertítulos à montagem de cenário, passando pela
realização, mesmo se seu nome não aparece nos letreiros”
(Marinone, 2009, p. 68). Em 1925, surgiu como ator no fil-
me Ein Sommernachtstraum (Sonho de uma noite de verão),

168 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

adaptação cinematográfica da peça de William Shakespeare


dirigida por Hans Neumann. Também trabalhou nas filma-
gens do filme Nosferatu, do diretor F. W. Murnau, obra clás-
sica do expressionismo alemão, com a participação do ator e
militante anarquista Alexander Granach.
Assim como Armand Guerra, Granach não apenas
marcou de modo potente o cinema alemão da década
de 1920, como também o movimento anarquista que
ocorria na Espanha. No outono de 1928, em Berlim,
quando os combatentes anarquistas Francisco Ascaso e
Buenaventura Durruti eram acossados pelas forças re-
pressivas do Estado, correndo o risco de serem presos e
deportados da Alemanha para a Espanha, os anarquistas
Rudolf Rocker (que havia conhecido Alexander Granach
em 1905 na cidade de Londres, quando este fazia par-
te de um grupo de teatro anarquista) e Augustin Souchy
visitaram a estrela do cinema alemão com o intuito de
pedir dinheiro emprestado para ajudar os companheiros a
fugirem do país. Rocker e Souchy não falaram qual seria a
finalidade do dinheiro para Granach, apenas disseram que
era para ajudar dois amigos que se encontravam em uma
situação delicada. Ao ouvir o pedido, o ator tirou entre
trezentos e quatrocentos marcos do bolso e os jogou sobre
a mesa sem perguntar quaisquer pormenores. Segundo
Rocker, “Granach nunca soube quem ele ajudou com o
seu dinheiro. Tudo o que ele precisava saber era que usá-
vamos a sua ajuda para uma boa causa. O resto não era
problema dele” (Rocker apud Paz, 2016, p. 208-209).
Depois de passar alguns anos trabalhando na
Alemanha, Guerra retorna à Espanha por volta de 1926-
1927, onde chegou a produzir, em Madri, o filme Batalla
de damas (1927), realizado por Damen Krieg — produção

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43
2023

germano-hispânica, na qual restaram apenas algumas fo-


tografias que comprovam a realização da obra. A partir da
década de 1930, em razão de seus conhecimentos sobre
o cinema alemão, Guerra passa a trabalhar na Alemanha
como correspondente da revista de crítica cinematográfica
de Barcelona Popular Film (1926-1936), viajando cons-
tantemente entre um país e outro.
Nas décadas de 1920 e 1930, na Espanha, muitos crí-
ticos cinematográficos eram militantes anarquistas, de
modo que o pensamento e as práticas libertárias estiveram
fortemente presentes nos artigos e textos das revistas ci-
nematográficas da época. Entre elas, a Popular Film era a
de maior repercussão. A revista oferecia uma combinação
de atualidades cinematográficas ilustradas com um gran-
de espaço dedicado às produções europeias e estaduni-
denses. Inicialmente, predominavam textos basicamente
informativos, mas, na década seguinte, despontaram arti-
gos analíticos e reflexões sobre o cinema, principalmente
quando o cinema mudo alcançou o seu auge e começou a
abrir espaço para o cinema sonoro. Impulsionou a noção
de pensar o cinema para algo além do entretenimento, um
meio cultural de grande alcance e merecedor de um olhar
mais atento. Em suas matérias, levou em conta todos os
aspectos que envolviam o meio cinematográfico, tanto os
estéticos quanto os técnicos, sem deixar de lado a temática
e base social. A Popular Film, ao lado de outros jornais
anarquistas, como o Solidariedad Obrera (1930-1939),
também informava regularmente sobre projeções, confe-
rências e atividades cinematográficas organizadas em ate-
neus e centros libertários. (Muñoz, 2008, p. 41).
Em 1932, em Barcelona, Armand Guerra se junta à
Asociación Cinematográfica Española (ACE), uma ex-

170 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

perimentação libertária do anarquista e editor-chefe da


Popular Film, Mateo Santos. Formada por profissionais
do cinema que recorriam às premissas operárias inspi-
radas na experiência anarquista do Cinéma du Peuple, a
iniciativa visava propagar o cinema em locais operários
através de encontros e projeções de filmes. “A iniciativa da
ACE trouxe às terras hispânicas o mesmo espírito do que
o anarquista Armand Guerra havia feito em Paris, com o
filme La Comunne (1914),cujo roteiro havia sido decidido
coletivamente e com participação ativa dos trabalhado-
res que também atuaram como figurantes nas filmagens”
(Idem, p.70).
Devido às dificuldades econômicas que ocasionaram de-
sentendimentos entre os membros, a experiência da ACE
só durou oito meses. No entanto, no curto período em que
a associação esteve em atividade, elaborou propostas para a
realização de um cinema popular. Em ateneus libertários,
os membros da ACE promoveram projeções de filmes,
conversas e debates que buscaram impulsionar o interes-
se pela arte cinematográfica; criar um conceito de cinema
popular que objetivava levar aos trabalhadores um cinema
próprio, um cinema que não seria feito para eles, mas feito
por eles (Muñoz, 2015). O jornal Solidariedad Obrera fez
várias divulgações sobre essas atividades por meio da coluna
“Cinematográficas”, assinada por Adolfo Ballano.
Nesse período, enquanto viajava entre Berlim e
Barcelona em função de seu trabalho como corres-
pondente, Guerra acompanhou de perto a ascensão do
Nacional-Socialismo na Alemanha. Prevendo a ameaça
fascista eminente, deixou o país em definitivo na passa-
gem de 1931-1932 e mudou-se para Madri. Durante o
tempo em que viveu na capital espanhola, Guerra retor-

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43
2023

nou às atividades cinematográficas e teve uma filha com


sua companheira Isabel Anglada, chamada Vicenta.

guerra e a revolução
Em razão da vitória das esquerdas nas eleições de 16
de fevereiro de 1936, as facções reacionárias espanholas,
apoiadas pelo fascismo internacional, reagiram com um
golpe militar chefiado pelo General Francisco Franco em
19 de julho do mesmo ano. A ofensiva fascista fez com que
os trabalhadores anarquistas da Confederación Nacional
del Trabajo (CNT), Federación Anarquista Ibérica (FAI) e
grande parte da população espanhola resistissem ao golpe
militar tomando quartéis e armamentos. Entretanto, dian-
te das circunstâncias, os anarquistas espanhóis decidiram,
em vez de lutar pela defesa da democracia e do governo
republicano, partir para a revolução libertária e, ao mesmo
tempo, combater as tropas militares do nazi-fascismo em
um conflito bélico que se estenderia até 1939 (Cubero,
2016). Poucas semanas antes de estourar a Revolução na
Espanha, Armand Guerra foi contratado pelo produtor
Arturo Carballo, que na época dirigia a sala de cinema
madrilenha Cine Doré, para escrever e dirigir um filme.
O filme foi Carne de Fieras, considerado por alguns histo-
riadores e pesquisadores do cinema como a primeira obra
cinematográfica militante anarquista da Espanha.
Com a Revolução em andamento, Guerra queria en-
cerrar as filmagens o quanto antes e seguir para o front
de batalha com a intenção de documentar os combates
dos guerrilheiros libertários da CNT-FAI contra as tro-
pas franquistas. Porém, a pedido do Sindicato Único de la

172 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

Industria de Espectáculos Públicos (SUIEP)2, as filmagens


não foram paralisadas, pois vários membros da produção
necessitavam do trabalho para sustentar suas famílias.
As filmagens de Carne de Fieras foram concluídas em
agosto daquele ano. Entretanto, o filme só foi montado e
lançado 56 anos depois. Ao tentar finalizar a montagem na
década de 1940, o produtor Arturo Carballo foi impedido
pela censura da recém-instaurada ditadura franquista, em ra-
zão da obra abordar temas como divórcio e adultério, além
de conter cenas de nudez. Ainda que Carballo tenha tentado
cobrir alguns dos muitos planos que mostram a protagonista
desnuda, convenceu-se de que tal tarefa era impossível e de-
sistiu de tentar lançar o filme3. (Alberich, 2011).
2
O Sindicato Único de la Industria de Espectáculos Públicos (SUIEP), também
denominado como Sindicato Único de los Espectáculos Públicos (SUEP),
contava com uma numerosa e significativa participação no setor de
espetáculos, com mais de 1500 afiliados e incorporava os diferentes ramos das
artes cênicas: cinema, música, teatro, dança, teatro, variedades etc. O SUEIP
nasceu em um momento de crise provocada pela implementação do cinema
sonoro no final dos anos vinte, que resultou em uma série de problemas
envolvendo músicos e demais trabalhadores do ramo de espetáculos. Logo
após a sua criação, o sindicato converteu-se em um dos primeiros setores
em que a CNT dinamizou seu movimento social, tornando-se um dos
grandes exemplos de sucesso que ocorreram na zona republicana durante
a Revolução. Cf. DÍEZ, Emeterio. “El cine bajo la revolución anarquista.
Cine libertário”. Historia 16, Madri, n. 322, fevereiro, 2003, pp. 50-101

3
Arturo Carballo não voltou mais a produzir outros filmes e seguiu com
seu trabalho de gerente do Cine Doré em Madri. Ali permaneceram os
rolos de Carne de Fieras por alguns anos até que os herdeiros de Carballo
os venderam em uma feira de rua madrilenha, onde, por fim, perderam-se.
Muitos anos depois, em 1991, a Filmoteca de Saragoça adquire o acervo
de Raúl Tartaj, ator, diretor e sobretudo um dos maiores colecionadores de
filmes da história da Espanha, possuindo mais de 2.000 títulos acervados.
Dentre os objetos que se encontravam acervados, estavam os 42 rolos do
filme de Guerra e Carballo. A Filmoteca de Saragoça, então, encarregou

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43
2023

Ao terminar essas filmagens, Armand Guerra propôs ao


Comité Nacional e à Federação Regional de Centro fil-
mar as ações do movimento revolucionário com a mesma
equipe e equipamento técnico de seu último filme. Naquele
momento, estava em ação na Espanha a coletivização e a
intervenção nas indústrias e serviços, da qual a indústria
cinematográfica também fazia parte. A proposta de Guerra
foi aceita e, com ajuda do Sindicato Único de la Indústria
Cinematográfica de Espectáculos Públicos (SUICEP) de
Madri, Guerra organizou sua equipe e seguiu para o front
de batalha em 27 de setembro de 19364. Assim, surgiram
as primeiras reportagens com a marca da SUICEP sobre
as ações revolucionárias no front, sob o título Estampas
Guerreras (1936), obra documental que, após o fim da
Revolução, acabou sendo destruída pelo regime da ditadura
franquista, de modo que não sobrou nenhuma cópia do fil-
me (Estívalis; Jarry& Fontamillas, 2005).
Após encerrar as filmagens de Estampas Guerreras,
Guerra retornou a Madri com a intenção de realizar

Ferrán Alberich e Ana Marquesán afinalizar a montagem do filme,


fazendo com que fosse lançado e exibido em 15 de setembro de 1992.

4
Armand Guerra comenta em seu livro A través de la metralla sobre a
equipe cinematográfica que o acompanhou ao longo da expedição: “como
não sabemos por quanto tempo estaremos longe de casa, levamos conosco
na expedição duas companheiras para cuidar da cozinha e de outros detalhes
domésticos. Além das mulheres e dos motoristas: Pepe e Manolo, há outros
oito homens. Estes são: José Jerez e seu irmão, Montoya e Domingo Martín,
assistentes de direção e de câmera; Arturo Beringola (operador de câmera) e
Ricardo G. Morchón (fotógrafo); Antonio Cotiello, como delegado sindical,
e eu como diretor. Em dois grandes carros, um Graam-Paine e um Pakard,
levávamos os rolos de filme cru, placas fotográficas, um quadro negro,
máquinas fotográficas, filmadora, utensílios diversos, provisões, cobertores,
etc.” (Guerra, 2005, p. 43-44).

174 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

um filme sobre a Coluna Durruti, que chegou à capital


espanhola em 14 de novembro de 1936 para reforçar a
defesa frente ao cerco formado pelas tropas fascistas na
cidade. Seis dias depois, Buenaventura Durruti é morto
ao ser atingido por uma bala na Cidade Universitária. As
circunstâncias de sua morte nunca foram esclarecidas e
diversas versões se somam à sua biografia com um final
trágico e enigmático. A trágica morte do guerrilheiro
anarquista coincidiu com o dia que fora previsto para o
início das filmagens.
Nos registros cinematográficos ou fotográficos que
compõem o arquivo da CNT no período da Revolução
Espanhola, não há imagens épicas de Durruti. Há apenas
alguns planos que mostram o anarquista leonês entre os
guerrilheiros libertários da coluna que levava seu nome
em breves sequências desfocadas5. Nas reportagens da
filmografia anarquista, assim como em outras que citam
Durruti, a narração descritiva valoriza e ressalta mais as
suas ações libertárias do que sua imagem. Dessa manei-
ra, “tudo o que não é mostrado na tela dá referências a
uma alocação que funciona como se fosse um primeiro
plano cinematográfico” (Muñoz, 2008, p. 232). Isso se
5
A imagem de Buenaventura Durruti aparece em vários dos filmes
realizados pela CNT durante a Revolução, muito em razão de sua intensa
atuação no movimento libertário. Suas ações e aventuras foram amplamente
contadas na literatura anarquista e ao longo dos anos, com a contribuição
de seus companheiros de lutas. As imagens cinematográficas conservadas
de Durruti são muito poucas em comparação com a documentação escrita
sobre ele. Entre todos os filmes produzidos pelos anarquistas durante a
Revolução só se encontram dois títulos: Aguiluchos de la FAI por tierras de
Aragón Nº1 e uma breve aparição em Aragón Trabaja y Lucha. O seu funeral
foi filmado em Barcelona e, no ano seguinte de sua morte, foram montados
dois filmes em sua homenagem: Veinte de noviembre e Veinte de noviembre ¿te
acuerdas de la fecha compañero?.

verve, 43: 162-184, 2023 175


43
2023

comprova no texto escrito por Armand Guerra, publica-


do em 1937 na revista Umbral, em uma edição especial
de homenagem ao companheiro anarquista: “Fui rápido
em solicitar sua colaboração para algumas filmagens da
atuação da Coluna Durruti. Mas ele franziu a testa, pas-
sou o braço em volta do meu pescoço de maneira ami-
gável e me levou a um canto do jardim. Disse-me: “não
leve a mal companheiro, mas sou um forte inimigo das
exposições. Poucos têm conseguido me filmar, e sempre
de surpresa. A lenda do herói que eles estão tecendo sobre
mim me parece injusta; me incomoda. Os heróis são os
guerrilheiros que compõem minha coluna. (...) Quis in-
sistir no meu pedido; mas ele se negava obstinadamente
(...). Tive que prometer-lhe que filmaria em um aspecto
mais geral, sem destacar a ele; queria continuar sendo o
chefe desconhecido” (Guerra, 1937, p. 14).
Guerra também descreveu seu encontro com Durruti
entre outros relatos detalhados do período em que este-
ve filmando a revolução em marcha no livro A través de
la metralla (2005), publicado em Valência entre 1937 e
1938, na revista La semana literaria popular.
No final de 1936, em virtude de seu talento como ora-
dor, a CNT solicitou a Guerra abandonar seus projetos ci-
nematográficos para participar em uma turnê de conferên-
cias no sul da França (Narbonne, Perpignan, Montpellier,
Marselha, Nîmes, Beaucaire, Toulouse, Lyon) organiza-
das pelo movimento libertário com a finalidade de ob-
ter apoio à Revolução Espanhola. Assim, nos primeiros
meses de 1937, enquanto sua série documental Estampas
Guerreras era exibida nos cinemas de Madri, Guerra par-
ticipava das conferências no sul da França junto de seu

176 verve, 43: 162-184, 2023


verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

amigo Manuel Pérez. Os relatos das viagens foram publi-


cados no jornal anarquista Le Combat Syndicaliste.
Depois de encerrar suas atividades como orador e
abrigar sua família em Paris, Guerra retornou à Espanha
em setembro de 1937. Nesse período, foi membro do
Comitê Regional do Levante da CNT, responsável por
traduzir textos para a confederação anarco-sindicalista,
escrever para organizações e periódicos libertários como
L’Indomptable, Nosotros, Umbral, Fragua Social e La
Nueva España Antifascista, e participar de conferências
de rádio em favor da CNT-FAI. No ano seguinte, Guerra
foi preso pelos stalinistas do SIM (Serviço de Inteligência
Militar) e encarcerado entre 8 de abril e 26 de agosto
dentro de um barco atracado no porto de Barcelona, in-
titulado Uruguay. Posteriormente, foi colocado em prisão
domiciliar no Hotel Bristol, onde escreveu uma carta para
o então Secretário-Geral da CNT, Mariano Vázquez, que
o ajudou a sair do cárcere. Em novembro do mesmo ano,
um artigo escrito por Guerra intitulado “Los bárbaros del
norte; la tragedia de los judios”, publicado na revista li-
bertária Umbral (Umbral n° 54, 26 de novembro de 1938,
p.13)6, foi um dos primeiros escritos a expor as persegui-
ções antissemitas perpetradas pelo Nacional-Socialismo
na Alemanha.
Em janeiro de 1939, Guerra conseguiu deixar a
Espanha e seguir para a comuna francesa de Sète, esca-
pando dos campos de concentração do governo socialista
francês projetados para acomodar os antifascistas espa-
nhóis, nos quais muitos libertários permaneceram peno-
6
Disponível em: < https://hemerotecadigital.bne.es/hd/es/
viewer?id=bc40bf7a-5a90-49c2-8c58-7ff1d8575d77 >. Acesso em
18/08/2022.

verve, 43: 162-184, 2023 177


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2023

sos períodos como prisioneiros. Após sua volta conturba-


da à França, Guerra passou a residir na avenida Herbillon
46, em Saint-Mandé, e a colaborar com o jornal S.I.A.
e com o Le Libertaire (sob o pseudônimo Cantaclaro),
onde publicou seu último artigo intitulado “Causes du dé-
sastre” (n° 644, 9 de março de 1939, p.3)7, no qual escreveu
sobre os fatores que levaram ao fim da revolução libertá-
ria na Espanha. Menos de um mês depois, ao reencontrar
sua família em Saint-Mandé, faleceu de um aneurisma no
metrô de Paris em 10 de março de 1939. Pouco antes de
sua morte, ele tentou em vão encontrar vestígios de seu
amigo, o jornalista libertário Carlos Gamón Fernández,
em um dos campos de concentração na França (anúncio
publicado na SIA, n°17). Em sua máquina de escrever
continuava o esboço incompleto de um roteiro (Dupuy,
2014).

antes do desfecho
Armand Guerra era um bom diretor? Muitos pesqui-
sadores e críticos cinematográficos colocam essa questão
visto que nenhum outro filme foi descoberto em cinema-
tecas depois do ano de 1992. Em relação ao valor artístico
da obra de Guerra, é muito difícil formar uma opinião,
afirma Eric Jarry (2001), uma vez que apenas pequenos
fragmentos de seus primeiros filmes foram encontrados,
ou seja, aqueles feitos com os meios mais escassos. Seu
último filme, Carne de Fieras, foi filmado às pressas sob
ataques de bombas, escassez de recursos, pessoas e de
modo relutante. Porém, não há como falar da obra de
7
Disponível em: < https://www.retronews.fr/journal/le-libertaire/9-
mars-1939/1835/3287939/3 >. Acesso em 18/08/2022.

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verve
armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

Armand Guerra sem considerar sua trajetória e os per-


cursos durante sua existência que possibilitaram inventar
novas formas de pensar e fazer cinema. Um cinema que
não é dissociado de sua vida, marcada principalmente
pelo combate libertário e repleta de aventuras, viagens e
experiências diversas, das quais ele conseguiu comunicar
em sua obra. Por cada lugar que passou ao longo de suas
múltiplas viagens em vida, carregou e promoveu a revolta
por todos os lados.
Para sua filha, Vicenta Estívalis, Guerra foi um “per-
sonagem de vida aventureira e revolucionária”, razão esta
que o levou a lutar ao lado dos revolucionários e a se tor-
nar um “semeador de rebeldias” das práticas libertárias.
Buscou despejar no cinema o seu temperamento artístico
e criativo. “Talvez aspirasse ser um grande ator, mas sua
aptidão para cenografia e direção acabou se sobressaindo”
(Estivals apud Lacruz & Carratalá, 2008, p. 21-22).
O poeta e sociólogo alemão Hans Magnus
Enzensberger, em seu livro O curto verão da anarquia:
Buenaventura Durruti e a Guerra civil Espanhola, publica-
do pela primeira vez em 1972, enfatiza as vozes anônimas
e as diversas perspectivas em torno da figura libertária de
Buenaventura Durruti. A obra se distância de uma sim-
ples biografia que relata a história de uma pessoa, pois
o percurso que Enzensberger realiza por meio de diver-
sos relatos de pessoas que conheceram e/ou conviveram
com Durruti, dão forma ao romance histórico e à histó-
ria como ficção coletiva. O conjunto desses relatos, anô-
nimos e contraditórios, combinam-se e adquirem um
novo caráter: das narrações surge a história. Assim tem
sido transmitida a história desde os tempos mais antigos:
como lenda, epopeia ou novela coletiva. Segundo o poeta

verve, 43: 162-184, 2023 179


43
2023

alemão, a história como ciência nasce quando nos torna-


mos independentes da tradição oral, quando aparecem os
“documentos”: expedientes diplomáticos, tratados, atas e
legados. Mas ninguém se recorda da história dos histo-
riadores. A aversão que sentimos por ela é irreversível, e
parece intragável. Para os povos, a história é e continua
sendo um feixe de relatos. “Ela é aquilo que se observa,
que se recorda e que pode ser narrado vezes sem fim: um
recontar sem fim” (Enzensberg, 1987, p. 15). Nessas cir-
cunstâncias, a tradição oral não retrocede frente à lenda,
à trivialidade ou ao erro, uma representação concreta das
lutas do passado, pois “a história é uma invenção coletiva
para a qual a realidade fornece os elementos” (Idem, p. 16).
Nesse sentido, o romance de Durruti deve ser entendi-
do não como uma biografia produto de uma recompilação
e menos ainda como reflexão científica. Seu campo narra-
tivo sobrepassa a mera resenha bibliográfica de uma pes-
soa. Abarca também o ambiente e o contato com situações
concretas, sem as quais este personagem seria impossível
de se imaginar. Ele se define através de sua luta. Assim se
manifesta sua “aura social”, da qual também participam
todos os seus atos, suas ações e manifestações. Todas as
informações que possuímos sobre Durruti estão banha-
das dessa luz peculiar; é impossível distinguir entre aquilo
que pode ser atribuído estritamente à sua aura, e aquilo
que seus comentaristas lhe atribuem em suas memórias.
Assim, Enzensberger inventa o que chamou de “roman-
ce como colagem”, história que se apoia “em reportagens,
discursos, entrevistas e proclamações. Alimenta-se de car-
tas, descrições de viagens, anedotas, panfletos, polêmicas,
notícias de jornal, cartazes e folhetos de propaganda polí-
tica” (Ibidem, p.17).

180 verve, 43: 162-184, 2023


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armand guerra: um cineasta semeador de rebeldias

Dessa maneira, partindo da perspectiva do poeta ale-


mão, não é equivocado afirmar que a vida de Armand
Guerra, somadas às suas obras cinematográficas, escritos,
relatos e atividades revolucionárias, constitui não apenas
um romance histórico, mas um filme de aventura. Um fil-
me cujo elemento principal se constitui a partir da luta, da
revolta e da própria vida em si. Por todos os lugares que
passava, Guerra carregava a revolta por todos os lados e,
através de seu trabalho como cineasta, semeou de fato re-
beldias, que atravessaram a opacidade da tela e impulsio-
naram a vida daqueles que buscaram e seguem buscando
fazer e impulsionar a anarquia no presente.

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43
2023

Resumo:
Esse artigo retoma parte da história do cineasta anarquista
Armand Guerra, enfatizando sua trajetória e os percursos
durante sua existência. Seu envolvimento com as artes,
em especial o cinema, juntamente com o combate libertário
possibilitou inventar novas formas de pensar e fazer cinema,
mostrando outros modos de promover a revolta por todos os
lados.

Palavras-chave: Armand Guerra, anarquismo, cinema


anarquista

Abstract:
This article takes up part of the history of anarchist filmmaker
Armand Guerra, emphasizing his trajectory and the paths
during his existence. His involvement with the arts, especially
cinema, together with libertarian combat, made it possible to
invent new ways of thinking and making films, showing new
ways of promoting revolt on all sides.
Keywords: Armand Guerra, anarchism, anarchist movies

Recebido em 16 de janeiro de 2023. Confirmado para


publicação em 18 de maio de 2023.
Armand Guerra: a filmmaker, seeder of rebellion, Gustavo
Vieira.

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proudhon: invenções de percursos libertários

proudhon:
invenções de percursos libertários

diego lucato

Pierre-Joseph Proudhon foi uma existência incômoda


às autoridades políticas e a muitos pensadores da segunda
metade do século XIX, incluindo os socialistas. Filho de
uma camponesa e de um tanoeiro e produtor de cerveja,
nasceu em Besançon, em 1809. Viveu, ao longo dos pri-
meiros anos de sua existência, no campo, em meio à vida
rural do campesinato francês. Esteve, desde cedo, inserido
nos meios frequentados pelas classes populares, ao con-
trário de grande parte dos principais teóricos do socialis-
mo moderno. Foi, assim como muitos jovens que ingres-
sam atualmente nas universidades, bolsista no colégio de
Besançon e, mais tarde, na Academia de Ciências.
Em Confissões de um Revolucionário (1849), registrou
que a entrada na Academia de Ciências foi o momento
no qual se dispôs a travar combates pela subversão dos
costumes preponderantes até então. Não tardou muito
para que a força de sua palavra e de sua escrita provocasse
imperiosas reações por parte das autoridades científicas
do momento.

Diego Lucato é pesquisador no Nu-Sol. Contato: lucatodiego@gmail.com

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Em 1840, Proudhon publicou O que é a Propriedade? ou


Pesquisa Sobre o Princípio do Direito e do Governo, obra es-
candalosa para os adeptos da economia política, funcioná-
rios da ordem e, sobretudo, proprietários. Pela sua análise
franca e corajosa, não hesitou em pronunciar o óbvio: a
propriedade está fundamentada na expropriação do traba-
lho realizado pela força coletiva. É um roubo, uma apro-
priação do trabalho alheio.
A recusa frente ao fundamento do direito moderno –
o direito de propriedade – veio acompanhada da afirma-
ção da anarquia em sua acepção positiva, distanciando-se
e combatendo os pressupostos defendidos pela literatura
contratualista. Afinal, a anarquia, até aquele momento, era
concebida enquanto sinônimo de caos, bagunça, desor-
dem, estado de natureza. Ao expor sua ojeriza à tirania re-
lativa às diferentes formas de governo, afirmou: “Que for-
ma de governo vamos preferir? – Eh! podeis perguntá-lo,
responde, sem dúvida, algum dos meus leitores mais no-
vos; sois republicano. – Republicano sim; mas essa palavra
nada precisa. Res publica é a coisa pública; ora quem quer
que queira coisa pública, sob qualquer forma de governo
que seja pode dizer-se republicano. Os reis também são
republicanos. – Pois bem! sois democrata? – Não. – Quê!
sereis monárquico? – Não. –Constitucionalista? – Deus
me livre. – Sois então aristocrata? – Absolutamente nada.
– Quereis um governo misto? – Ainda menos. – Então que
sois? – Sou anarquista” (Proudhon, 1975, pp. 234-235).
A obra não só lhe rendeu a suspensão temporária da
bolsa de estudos, como também despertou a atenção dos
pensadores socialistas e, principalmente, das classes ope-
rárias francesas. Isso, no entanto, não foi desdobramento
da “genialidade” de uma vida apartada das condições nas

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proudhon: invenções de percursos libertários

quais os trabalhadores estavam imersos. Não se deve dis-


sociar a produção de Proudhon das experimentações leva-
das adiante pelas associações operárias.
Seus percursos e apreço pelas relações em movimento
explicitam sua recusa às categorias transcendentes e aos
sistemas teóricos esquematizados. Não foi um devoto da
teoria, como mostra sua bibliografia. Em 1842, período
em que esteve na cidade de Lyon, trabalhou numa empre-
sa de transporte fluvial dos irmãos Gauthier, antigos do-
nos da tipografia na qual iniciou suas atividades laborais.
O que lhe instigou, evidentemente, não foram as ques-
tões vinculadas aos negócios da empresa de transportes.
Interessou-se pelas práticas associativas elaboradas pelos
trabalhadores locais, sobretudo do ramo da seda (Morel,
2003). Essa, entre tantas outras, foi uma constatação que
incidiu em sua produção intelectual, provocando irrupti-
vos deslocamentos de perspectivas que serão analisados ao
longo deste artigo.

sobre o princípio do direito moderno


Proudhon passou a ser conhecido por afirmações como
“a propriedade é um roubo!” e “sou um anarquista”, porém
suas considerações a respeito dessas questões não se carac-
terizam pela simplificação. No momento no qual publi-
cou O que é a Propriedade? ou Pesquisa Sobre o Princípio do
Direito e do Governo, todavia conservava um apreço pelas
sínteses. Explicitou a existência de três etapas para o pro-
gresso da sociedade: a comunidade, a propriedade e, por
fim, a liberdade. A comunidade se caracteriza pela igual-
dade a partir do nivelamento, uma vez que todos os bens
se tonariam propriedades da sociedade. A constituição

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2023

desse regime efetiva o governo de todos sobre todos em


prol do interesse comunitário, inviabilizando a livre asso-
ciação entre as pessoas.
Proudhon recusou as proposições comunistas de-
fendidas por figuras importantes no movimento so-
cialista, como Louis Blanc, presidente da Comissão de
Luxemburgo após as insurreições de 1848. As premissas
de Blanc buscavam centralizar as atividades econômicas
em torno do Estado, que absorveria as iniciativas impul-
sionadas pelos trabalhadores e as inseriria num planeja-
mento central conforme os interesses da coletividade – ou
seja, do soberano. É o regime no qual o mais fraco impõe
a sua vontade ao mais forte.
A propriedade, por sua vez, caracteriza-se pela imposi-
ção do mais forte sobre o mais fraco. Está fundamentada
na regulamentação do direito de propriedade, cujos fun-
damentos são a força e, principalmente, a astúcia. Ambas
podem ser constatadas na maneira pela qual se organi-
za o Estado moderno, assentado na força da espada e, ao
mesmo tempo, na seletividade penal. “O roubo exerce-se
por uma infinidade de meios, que os legisladores muito
habilmente distinguiram e classificaram segundo o grau
de atrocidade ou mérito, a fim de que nuns o roubo fosse
louvado e noutros punido” (Proudhon, 1975, p. 228).
Proudhon também é enfático ao dizer que os pro-
prietários são os únicos que não estão associados com os
demais. A associação entre os seres humanos ocorre por
meio de sucessivas e equivalentes trocas de saberes, ideias,
produtos etc., distanciando-se diametralmente das rela-
ções instituídas pela propriedade privada, cujo alicerce é a
perpetuação da extração dos recursos gerados pela ação da

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proudhon: invenções de percursos libertários

força coletiva por meio do direito moderno e da chancela


“científica” da economia política.
A síntese entre o regime da comunidade e da proprie-
dade é a liberdade e, por conseguinte, a anarquia. Trata-se
da ausência de mestres e soberanos. Ao enfatizar que a
liberdade é a confluência dos elementos que constituem
os dois regimes anteriores – a igualdade, a proporciona-
lidade, a lei e a independência, Proudhon a concebe en-
quanto um ideal a ser projetado para o futuro, uma ideia
abstrata. Essa noção fundamenta-se numa crença assenta-
da na premissa segundo a qual a razão poderia libertar as
pessoas das amarras inerentes aos costumes que, todavia,
condicionavam os modos pelos quais as reflexões eram
realizadas.
O futuro no qual a liberdade se concretizaria seria pos-
sível por meio da afirmação da posse dos instrumentos
de trabalho, possibilitando a cada um ser o possuidor dos
meios e dos frutos da atividade realizada. Defendia a reto-
mada de uma espécie de sociabilidade natural, na qual os
seres humanos afirmariam seu intrínseco caráter societal.
Essa aspiração despertou a atenção de Max Stirner, que
não poupou críticas às considerações ainda idealistas de
Proudhon. Segundo Stirner (2004), a sociedade não passa
de uma rede de dependências contínuas a partir das quais
as pessoas se sacrificam em prol de uma entidade abstrata,
seja o povo ou a humanidade. O entendimento segundo
o qual é possível restaurar a sociabilidade natural a partir
da efetivação de direitos essenciais aos “homens” conduz
à continuidade da autoridade estatal. O Estado, por exce-
lência, é a materialização do povo, do homem, do proleta-
riado etc. É a representação dos fantasmas que conduzem
os governados.

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Para além do uso de categorias ainda transcendentes,


constata-se que a concepção do direito enquanto desdo-
bramento das forças em luta já estava presente no início
de sua produção intelectual. Pode-se sublinhar, por exem-
plo, que Mikhail Bakunin estava equivocado ao supor
que, ao contrário de Marx, Proudhon baseava-se numa
concepção abstrata em torno do direito. Afinal, a exis-
tência que Bakunin denominou de “mestre de todos nós”
chamou a atenção para o fato de que o direito deriva da
força e, também, da astúcia. A jurisprudência nada mais é
do que um desdobramento dos combates entre as forças
que criam a realidade.
Nas páginas de Guerra e Paz, livro redigido décadas de-
pois – em 1861 –, Proudhon (2011) retoma a discussão em
torno do direito. Foi corajoso ao sublinhar que a paz não
passa de uma santidade, assim como a pacificação deriva da
imposição da vontade do mais forte sobre os mais fracos.
O pacificador, personagem reivindicado e enaltecido por
muitos, caracteriza-se por ser um conquistador, o sobera-
no capaz de instaurar uma nova ordem após o combate.
Essa abordagem distancia-se radicalmente de uma tradi-
ção filosófica assentada na ideia segundo a qual a guerra é
sinônimo de ausência de justiça, cujos grandes expoentes
são Cícero e Grotius. Proudhon mostra como guerra e paz
são pares antinômicos, elementos contrários e, ao mesmo
tempo, complementares. A guerra cria as condições para
pacificações futuras; e a paz, por sua vez, abre possibilida-
des para novos conflitos, para novas disputas voltadas para
a conquista de direitos por parte dos derrotados.
Não se deve, no entanto, ater-se apenas aos grandes
acontecimentos, enfatizou Proudhon. Há também os en-
treatos, os períodos transitórios entre a instauração da paz

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proudhon: invenções de percursos libertários

e a eclosão de um grande conflito. Os entreatos são parte


da pequena guerra. São os combates cotidianos nos quais
as pessoas estão inseridas. Envolvem embates entre pers-
pectivas, vontades, anseios, verdades. São lutas que poten-
cializam novos percursos e experimentações de liberdade.

seriações
A realidade, segundo Proudhon, está constituída por
um conjunto de seriações. São relações em constante
movimento entre unidades contrárias e complementares.
Essa abordagem explicita um distanciamento em relação
às premissas teológicas e filosóficas, uma vez que ambas
baseiam suas fundamentações acerca dos acontecimentos
sociais numa suposta origem. Trata-se de pressupostos as-
sentados em fatos dados a priori e que não dão a devida
importância à materialidade.
Proudhon (1986) estava ciente das arbitrariedades ine-
rentes às explicações universais. Ao constatar que as rela-
ções são um fim em si mesmas, salientou não haver teoria
geral da série, apenas análises relativas às especificidades
de cada unidade serial. Isso envolve um deslocamento de
perspectiva frente ao que estava colocado no âmbito da fi-
losofia. Não se trata de decifrar as essências ou a natureza
das forças que compõem o campo material, mas analisar
a maneira pela qual elas se movimentam e acompanhá-
-las. “O que sobretudo importa ao historiador filósofo é
observar como o povo vincula-se a certas ideias em vez
de outras, generaliza-as, desenvolve-as à sua maneira”
(Proudhon, 2019, p. 83).

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A liberdade já não poderia ser compreendida enquanto


uma síntese da evolução natural da sociabilidade huma-
na. Como cada série está constituída por forças que se
encontram num movimento perpétuo, o equilíbrio entre
os pares antinômicos provoca novas contradições e, mais
tarde, novos equilíbrios.
Essa abordagem metodológica distancia-se não ape-
nas da premissa segundo a qual o materialismo histórico
poderia ser compreendido enquanto método científico
capaz de decifrar o desenvolvimento dos modos de pro-
dução e as condições para a efetivação da emancipação
do proletariado frente à ordem burguesa, mas também de
pressupostos defendido por alguns anarquistas, como as
concepções de Piotr Kropotkin, principalmente a respeito
de um anarquismo científico.
Kropotkin (1912) fez uma leitura a-histórica a respeito
da anarquia. Segundo ele, os diferentes momentos histó-
ricos estiveram marcados por confrontos entre as forças
que aspiram à liberdade e os defensores da ordem institu-
ída – os agrupamentos alinhados à autoridade vigente. As
lutas pela afirmação da liberdade estariam relacionadas às
experimentações levadas adiante pelas classes populares e
suas respectivas instituições, como as associações de apoio
mútuo na comunidade aldeã, nas comunas medievais, na
França revolucionária e em outros momentos irruptivos.
O problema, para Kropotkin, deve-se ao fato de que as
invenções libertárias não estavam chanceladas cientifica-
mente. Seria necessário comprovar empiricamente a via-
bilidade das “propostas” anarquistas, inserindo-as no inte-
rior do aquecido debate científico do XIX e afastando-as
de quaisquer suposições e preconceitos apartados do “ver-

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verve
proudhon: invenções de percursos libertários

dadeiro” método científico: o método indutivo-dedutivo,


cuja procedência reside nas ciências naturais e biológicas.
Ao recusar essas premissas, Proudhon estava ciente de
que a ciência enquanto autoridade centralizada produz
enunciados com efeitos de verdade, cujos desdobramen-
tos são as seleções, as classificações, as hierarquizações de
saberes e, por conseguinte, a produção de um modelo em
torno da anarquia.
Proudhon não tardou em pronunciar sua ojeriza aos
sacerdotes da ciência. Isso pode ser constatado na resposta
à carta na qual Marx o convida para compor uma publica-
ção internacional dedicada, entre outras coisas, a analisar
as condições e os desafios do socialismo na Europa. Não
hesitou, mais uma vez, em afirmar que não há questão
esgotada, assim como não há equilíbrios estanques entre
as forças que criam a realidade.
Além disso, a vivência de Proudhon em meio ao cam-
pesinato francês foi relevante para a elaboração de análi-
ses posteriores. Ele estava ciente do papel revolucionário
desempenhado por grande parte dos camponeses france-
ses, de modo que jamais aderiu às análises de Marx e de
Engels a respeito dessa questão. Ao contrário de ambos,
Proudhon não concebia a existência de um sujeito revo-
lucionário universal, distanciando-se das concepções eco-
nomicistas segundo as quais a “missão” revolucionária está
condicionada à posição de cada um no sistema de produ-
ção. Os camponeses, por exemplo, não devem ser vistos
como reacionários e conservadores por estarem relaciona-
dos a formas de produção que antecederam o surgimento
da grande indústria. Como enfatiza Jourdain (2018), de
acordo com Proudhon, as revoluções eclodem nos dife-

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rentes âmbitos, como nas ciências, nas artes, na literatura,


na oficina etc., não estando condicionadas a condições de-
terminadas previamente.
O absoluto é sinônimo de imobilidade. Ao contrário
das religiões e das pretensões totalizantes ainda presentes
nas considerações filosóficas, as ciências voltadas para a
liberdade devem se agitar em relação ao movimento per-
pétuo da matéria que constitui o universo. Não há uma
marcha teleológica em direção à perfectibilidade social.
Os equilíbrios entre os pares antinômicos apenas provo-
cam novas correlações de forças, permitindo a invenção
de percursos a partir dos quais novas práticas associati-
vas podem emergir. Não há vida sem movimento. O ideal
absoluto, seja ele liberal ou socialista, efetivaria a supres-
são das vidas que transitam em meio ao plano material
(Proudhon, 2019b).

afirmações antipolíticas
A década de 1840 foi um período irruptivo na Europa,
de modo a incidir nas perspectivas e na produção de
Proudhon. Não foi apenas um momento no qual publi-
cações demolidoras vieram à tona, como O que é a pro-
priedade? (1840), O Único e a sua Propriedade (1841) e
outras, mas também um contexto em que eclodiram múl-
tiplas lutas. O ano de 1848, conhecido também como A
Primavera dos Povos, esteve marcado por barricadas e re-
voltas nas ruas de distintos países europeus, incluindo da
própria França.
O mês de fevereiro chancelou a derrubada da
Monarquia dos Orléans e a instauração da Segunda

194 verve, 43: 185-204, 2023


verve
proudhon: invenções de percursos libertários

República Francesa. Em junho, Proudhon foi eleito de-


putado na Assembleia Nacional Francesa, período no
qual foi chamado pelos seus detratores de homem terror.
Enfatizou, mais tarde, que as pessoas que transitavam nos
gabinetes parlamentares estavam completamente aparta-
das das necessidades das classes populares.
Não é exagero dizer que essa experiência teve fortes
desdobramentos em sua produção. Suas principais consi-
derações a respeito da revolução estão presentes em obras
posteriores, como Confissões de um Revolucionário (1849),
A Ideia Geral da Revolução no Século XIX (1851), Da Justiça
na Revolução e na Igreja (1858) e Da Capacidade Política
das Classes Operárias (1865).
Proudhon (s.d), com base na análise serial, sublinhou
que revolução e reação são pares antinômicos, uma vez que
se complementam permanentemente. A reação é conce-
bida enquanto possível resposta frente à subversão dos
costumes vigentes por meio da emergência das forças da
revolução. Essa, inclusive, é uma leitura pertinente para
a compreensão dos processos revolucionários que ocor-
reram ao longo da modernidade. Cada experiência revo-
lucionária esteve caracterizada por condições específicas,
mas todas contaram com múltiplas forças em meio ao
acontecimento. Não se trata, no entanto, de forças está-
ticas, mas agrupamentos cujos deslocamentos de posições
e de perspectivas foram constantes. Muitas vezes, forças
que, inicialmente, foram propulsoras do processo revolu-
cionário se tornaram, mais tarde, parte da reação diante
daqueles que não se subordinaram às novas ordens revo-
lucionárias, como os anarquistas.

verve, 43: 185-204, 2023 195


43
2023

As revoluções são permanentes. Há momentos nos


quais as forças da revolução prevalecem sobre a reação e
vice-versa. As afirmações revolucionárias, portanto, não
dizem respeito à concretização de uma sociedade idíli-
ca, mas à afirmação de costumes por meio dos quais cada
um efetiva sua dignidade a partir do reconhecimento dos
demais (Proudhon, 2004). São práticas associativas, ela-
boradas e reelaboradas permanentemente conforme as
maneiras pelas quais as pessoas experienciam e sentem as
relações nas quais estão imersas.
As afirmações dessas práticas associativas estão rela-
cionadas à concretização da Justiça no presente, no aqui e
agora. É a associação entre existências com distintas ha-
bilidades, anseios, prazeres, ofícios etc. em meio à equiva-
lência, inventando novas maneiras de trabalhar e de viver.
O trabalho não deve, necessariamente, ser concebido
enquanto um sacrifício. Proudhon é incisivo ao apresen-
tar uma abordagem dialética a respeito dessa questão. Ele
enfatiza que o trabalho pode ser analisado a partir de duas
dimensões distintas: uma objetiva e outra subjetiva. No
que tange à dimensão objetiva, constata que, nos marcos
do feudalismo industrial – ou capitalismo –, o trabalho é
embrutecedor, uma vez que os instrumentos de trabalho,
os recursos gerados, o tempo e as aspirações dos traba-
lhadores são expropriados por uma autoridade superior: o
soberano da empresa, o proprietário. A segunda dimensão,
por sua vez, diz respeito às aspirações que visam à afirma-
ção de elaborações inventivas por meio das quais o ope-
rário torna-se artífice de seu próprio percurso. Ambas se
encontram numa tensão permanente, de modo que ape-
nas o conhecimento em torno da série industrial é capaz
de afirmar a prevalência da segunda sobre a primeira.

196 verve, 43: 185-204, 2023


verve
proudhon: invenções de percursos libertários

O conhecimento em torno dos instrumentos de traba-


lho é fundamental para a efetivação de práticas autogeri-
das no interior da associação. É necessário um equilíbrio
entre a experiência e os anseios que emergem a partir do
modo pelo qual cada um vivencia a prática social, produ-
zindo uma filosofia do trabalho e animando caminhos por
meio dos quais o trabalho passe a depender, única e exclu-
sivamente, das iniciativas e dos saberes adquiridos pelas
existências livremente associadas. O operário, “nessas con-
dições, seja qual for o liame que o ligue à criação, quais-
quer que sejam suas relações com os seus semelhantes,
goza da mais elevada prerrogativa da qual possa orgulhar-
-se: ele existe por si mesmo” (Proudhon, 2019b, p. 134).
Proudhon denomina essa experimentação de politecnia da
aprendizagem.
O operário/artista, assim, não está condicionado aos
empreendimentos levados adiante pelo aparelho governa-
mental e tampouco pelo trabalho assalariado nos marcos
da propriedade privada. Constata-se que, por mais que
não tenha empregado o termo – utilizado, mais tarde, por
Mikhail Bakunin –, Proudhon elabora uma perspectiva
antipolítica, afastando-se da política enquanto tecnologia
moderna que pretende moderar e pacificar as forças so-
ciais em luta.
Em meio aos embates contra os socialistas autoritários,
Bakunin (2011) salientou que a antipolítica é constitutiva
das ações libertárias, uma vez que os anarquistas não as-
piram à concretização da revolução por meio da tomada
do Estado, mas à afirmação da potência social das asso-
ciações de trabalhadores. Essa também é a concepção de
Proudhon, cujas análises incidiram na irrupção das apre-
ciações instauradoras de Bakunin.

verve, 43: 185-204, 2023 197


43
2023

As revoluções permanentes estão relacionadas ao que


Michel Foucault (2011) denominou de militantismo, ma-
nifestação do cinismo em pleno século XIX. Afinal, o ci-
nismo caracteriza-se por se afirmar enquanto uma atitude
trans-histórica, dissolvendo quaisquer arcabouços teóri-
cos fixos e enfatizando a experimentação da vida enquan-
to uma invenção estética por meio da qual os costumes,
as convenções e os procedimentos formais são demolidos.
No século XIX, o militantismo contou com três ex-
pressões distintas: as sociedades secretas, as organizações
formais – partidos políticos e sindicatos – e as associações
a partir das quais as partes envolvidas experienciavam ou-
tras formas de vida, de modo a efetivar a revolução no
presente, em meio ao acontecimento.
Merriman (2015), ao discorrer sobre o contexto que
antecedeu a irruptiva experimentação da Comuna de
Paris, chama a atenção para a quantidade de associações
de trabalhadores inventadas na França, sobretudo na ca-
pital. Paris, por exemplo, contava com, aproximadamen-
te, 160 associações operárias. Eram trabalhadores e, em
alguns casos, trabalhadoras que levaram adiante associa-
ções cooperativas de produção e de crédito, restaurantes
populares, bolsas de trabalho etc. Produziam a revolução
em meio à sociedade vigente, apartando-se dos costumes
vinculados à vida burguesa e inventando costumes outros.
Essas invenções despertaram a inquietação do homem
terror, que não hesitou em conceituar as práticas que flo-
resciam diante de seus olhos e escandalizavam os pro-
prietários, as autoridades estatais e muitos socialistas que
aspiravam a exercer o controle sobre as “massas”. Afinal,
as seriações revolucionárias escapam dos paradigmas e da

198 verve, 43: 185-204, 2023


verve
proudhon: invenções de percursos libertários

rigidez das organizações políticas convencionais, incluin-


do as que se autointitulam como revolucionárias.

federações libertárias
A segunda metade do século XIX foi marcada, entre
outras coisas, por maiores centralizações administrati-
vas no interior dos Estados europeus. Ao mesmo tem-
po, as confederações vigentes, como a Confederação dos
Estados Germânicos, estavam distantes das perspectivas
de Proudhon, que passou a conferir maior importância às
análises e às discussões a respeito do Estado. Isso ilustra,
mais uma vez, como a sua produção esteve relacionada às
movimentações do momento.
Como sublinham Resende e Passetti (1986), Proudhon
se distanciou da razão aristotélica, segundo a qual os re-
gimes da liberdade e da autoridade são categorias fixas,
absolutas. Para ele, os regimes que constituem as séries
liberdade – anarquia e democracia – e autoridade – mo-
narquia e comunismo – não são capazes de se concretizar
na sua integralidade, de modo que há um atravessamento
constante entre liberdade e autoridade. Isso significa, por-
tanto, que os regimes políticos vigentes são híbridos. Há,
em alguns casos, a prevalência da série autoridade sobre a
liberdade; em outros, por sua vez, há a preponderância da
liberdade sobre a autoridade.
É pertinente retomar essa abordagem metodológica,
uma vez que é fundamental para a compreensão da anar-
quia. Alguns estudiosos do pensamento proudhoniano,
como, por exemplo, Fernando Trindade (2001), partem
da premissa segundo a qual a obra de Proudhon deve ser

verve, 43: 185-204, 2023 199


43
2023

observada a partir de dois momentos diferentes: uma fase


anarquista – até meados da década de 1850 – e uma etapa
federalista, na qual a anarquia seria substituída pela defesa
do Estado federal. Alex Dabin (2012), por sua vez, afasta-
-se dessa abordagem, porém salienta que, para Proudhon,
a anarquia não passa de um ideal cuja função é inspirar e
orientar os rumos da federação. Não poderia, no entanto,
concretizar-se.
Distanciando-se dessas análises, este artigo considera
que, de acordo com Proudhon, a anarquia é uma afirma-
ção concreta e parcial em meio aos embates entre as forças
sociais. O Estado federal é a materialização da prevalência
da série liberdade sobre a série autoridade. Irrompe por
meio da afirmação de contratos comutativos e sinalagmá-
ticos em detrimento do contrato social. Ao contrário do
segundo, os contratos livres têm como objetivo provocar
associações por meio das quais as partes se comprometem
mutuamente em torno de uma atividade específica, não
abarcando a totalidade dos assuntos relativos às suas res-
pectivas vidas. São acordos federativos.
“FEDERAÇÃO, do latim foedus, genitivo foederis,
quer dizer pacto, contrato, tratado, convenção, aliança etc.,
é uma convenção pela qual um ou mais chefes de família,
uma ou mais comunas, um ou mais grupos de comunas ou
Estados, obrigam-se recíproca e igualmente uns em rela-
ção aos outros para um ou mais objetos particulares, cuja
carga incumbe especial e exclusivamente aos delegados da
federação” (Proudhon, 2001, p. 90).
São livres contratos entre famílias, indústrias, comunas
e províncias. A proliferação dos contratos comutativos e
sinalagmáticos concretizam a afirmação da anarquia, do

200 verve, 43: 185-204, 2023


verve
proudhon: invenções de percursos libertários

governo de cada um por cada um em conjunto com as de-


mais partes associadas. A igualdade em meio à diferença
é a materialização da prevalência da série liberdade sobre
a autoridade. As prerrogativas do aparelho governamental
são substituídas pelas práticas mutualistas e deslocadas
para as subfunções da federação.
O Estado federal é uma unidade constituída por
forças livres e diversas. Os contratos livres provocam a
emergência de práticas autogeridas nas associações de
produtores, nas comunas e nas províncias, de modo que o
Estado se torna uma instituição cuja função é levar adian-
te a inauguração de grandes empreendimentos, como vias,
portos, rodovias, grandes indústrias etc. A sua abolição é
inviável, uma vez que significaria a supressão integral da
autoridade. No entanto, as associações afirmam a posse
das localidades administradas pelo Estado e pelos con-
glomerados privados, enfraquecendo o princípio governa-
mental por meio da descentralização permanente – pro-
vocada pela irrupção da anarquia nos espaços laborais. São
forças antagônicas e que se atravessam continuamente em
meio a um combate perpétuo.

percursos outros
Pensar com Proudhon é sinônimo de traçar pontilha-
dos libertários por meio dos quais múltiplos caminhos são
possíveis. Não se trata de buscar em sua produção um mo-
delo metodológico ou conceitual. Uma leitura libertária de
sua obra deve considerar que, em nenhum momento, ele
buscou ser reconhecido como um teórico da luta de clas-
ses, propósito dos seguidores do autoritarismo de Marx.
Suas conceituações escancararam práticas que se encon-

verve, 43: 185-204, 2023 201


43
2023

travam em movimento, inventando-se e reinventando-se


permanentemente. Retomar essas considerações significa
trazer à tona os saberes impulsionados por essas existên-
cias escandalosas e afirmar análises descontínuas e disper-
sas em meio aos combates contemporâneos. São breves
chamas voltadas para a elaboração de percursos outros.

Referências bibliográficas
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São Paulo, Editora Hedra, 2011.
Dabin, Alexis. Voies et moyens de l´anarchie selon Proudhon.
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sée révolutionnaire de Proudhon. In: Revue d´études
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Proudhon, Pierre-Joseph. Da Capacidade Política das
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202 verve, 43: 185-204, 2023


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proudhon: invenções de percursos libertários

São Paulo: Centro de Cultura Social – CCS; São Paulo:


Intermezzo Editorial, 2019.
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Edgar Almeida; Passetti, Edson. Proudhon. 1.ed. São
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________Da Justiça na Revolução e na Igreja - Filosofia,
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________ Do Princípio Federativo. Tradução de Francisco
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Martha Gambini. São Paulo, n.19, 2011, pp. 23-71.
________Idea General de la Revolución en el Siglo XIX.
Madrid: José Montaner, S.d. Disponível em: cdigital.dgb.
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________ O que é a Propriedade ?. Marília Caeiro. Lisboa,
Editorial Estampa, 1975.
Resende; Paulo Edgar Almeida; Passetti, Edson. Proudhon.
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Stirner, Max. O Único e a Sua Propriedade. Tradução de
João Barrento. Editora Antígona, 2004.
Trindade, Francisco. Introdução. In: Proudhon, Pierre
Joseph. Do Princípio Federativo e da necessidade de recons-
truir o partido da revolução. São Paulo, Editora Imaginário;
São Paulo, Nu-Sol, 2001.

verve, 43: 185-204, 2023 203


43
2023

Resumo:
Este artigo pretende trazer à tona as análises de Pierre-
Joseph Proudhon, distanciando-se de produções que visam à
construção de um pensamento sociológico pronto e acabado em
seu pensamento. São movimentos voltados para a retomada
das conceituações de uma existência inquieta e atenta às
práticas mutualistas inventadas pelas associações operárias no
século XIX. Trazê-las e reafirmá-las no presente é sinônimo
de potencializar leituras libertárias acerca dos combates
que urgem no presente, dilacerando o culto aos pressupostos
e às condutas que pretendem pacificar a pequena guerra e a
mutualidade entre as forças da revolução.
Palavras-chave: pequena guerra, mutualidade, forças da
revolução.
Abstract:
This article intends to bring up the analyses of Pierre-Joseph
Proudhon, distancing himself from productions that aim at
the construction of ready and finished sociological thought
in his thought. They are movements aimed at resuming the
concepts of a restless existence and attentive to the mutualist
practices invented by Workers associations in the 19th
century. Bringing them and reaffirming them in the present
is synonymous with enhancing libertarian readings about the
combats that are urgent in the present, tearing apart the cult
of asssumptions and conducts that intend to pacify the small
war and the mutuality between the forces of the revolution.
Keywords: small war, mutualiy, forces of the revolution.
Recebido em 03 de fevereiro de 2023. Confirmado para
publicação em 12 de maio de 2023.
Proudhon: inventions of libertarians courses, Diego Lucato.

204 verve, 43: 185-204, 2023


Revista Libero, setembro de 1978.
43
2023

Resenhas
sobre duas vidas completas...
em revolução inacabada
ROGÉRIO NASCIMENTO

Unión Libre – Cadernos de vida e culturas. Nº 27 – 2022. Lily


Litvak – Voces anarquistas. Lugo – Galícia – Espanha, 119
pp.

Unión Libre é uma revista temática, de periodicidade


anual, publicada desde 1996 a partir da cidade de Lugo,
capital da província homônima na Galícia, Espanha. As
vinte e sete edições desse periódico estão publicadas em
seu site, www.unionlibre.org, para baixar gratuitamente.
O número mais recente, cujo temário é vozes anarquistas,
traz os depoimentos de dois anarquistas: Antonio
Ramos Palomares (1905 -1994), conhecido como El
Carbonero, e Eduardo de Guzmán Espinosa (1908 -
1991), em torno de suas atividades e envolvimentos
com o processo revolucionário ocorrido na Espanha ,
sobretudo entre os anos de 1936 a 1939, mas também
nos anos seguintes. Após o fim trágico da experiência

Rogério Nascimento é pesquisador no Nu-Sol e professor na Universidade Federal


de Campina Grande. Contato: rogeriohznascimento@yahoo.com.br.

206 verve, 43: 206-213, 2023


verve
sobre duas vidas completas... em revolução inacabada

revolucionária, ocorreram novos enfrentamentos durante


as ações realizadas na clandestinidade, que resultaram em
prisões violentas, fome, maus tratos e torturas. Essas duas
entrevistas compõem uma série com sessenta anarquistas
entrevistados pela estudiosa Lily Litvak, entre os anos
de 1989 e 1991, sobre a vivência de cada um deles na
Revolução Espanhola.
Lily Litvak (1938-) conduziu habilmente cada uma das
entrevistas. Ela as fez numa modalidade mais informal,
como uma conversação, ao mesmo tempo atenta, sensível
e descontraída. Antes das entrevistas, os editores da
revista optaram por uma minuciosa “apresentação de Lily
Litvak” para abrir esse número do periódico. Só a título de
registro geral, porque mais informações estão expostas na
referida apresentação da revista: Lily é estadunidense com
ascendência ucraniana e mexicana. Tem doutorado pela
Universidade da Califórnia, Berkeley, sendo catedrática
emérita de literatura espanhola e latino-americana na
Universidade do Texas em Austin. Ela é uma das mais
exímias estudiosas da cultura anarquista, da cultura do
final do século XIX e da cultura popular hispânica. Suas
publicações, entre artigos e livros, estão indicadas nesta
introdução, ficando evidente a contribuição volumosa,
importante e significativa da produção intelectual da
pesquisadora ao conhecimento tanto dos assuntos aqui
citados como de outros não referenciados neste introito.
A revista é organizada em três momentos: o inicial, com
uma detalhada apresentação das pesquisas e produções
intelectuais de Lily, seguida das entrevistas, primeiro, com
Antonio Ramos Palomares e, por fim, com Eduardo de
Guzmán. A introdução está publicada nos idiomas galego
e espanhol, enquanto as entrevistas, por sua vez, estão

verve, 43: 206-213, 2023 207


43
2023

apenas em espanhol. Cada uma das duas entrevistas vem


com uma apresentação, elaborada por Lily, sumariando
aspectos da ambientação, condições, assuntos e cadência
das entrevistas. Ela procedeu também, nesta apresentação,
a organizar ponderações acerca de alguns temas surgidos
na entrevista, enfatizando, inicialmente, a receptividade e
simpatia dos dois entrevistados. Não deixou de apresentar
suas impressões pessoais. Tais impressões surgem ora
sensibilizadas, ora alegres e entusiasmadas, mas, como
se mostrou, sempre afetadas pelas narrativas diante da
exposição dos desafios, expectativas e receios configurados
em eventos dramáticos, violentos, e alguns até tomando
tons bem-humorados em certas passagens nos relatos dos
entrevistados.
Através de várias notas de pé de página, Lily favorece
um entendimento mais largo de assuntos e eventos
pontuais que ocorreram durante o processo revolucionário.
Estas notas elucidam aspectos relativos ao significado e
importância de alguns personagens numa e/ou noutra
circunstância de antes, durante e depois da revolução.
Abordam ainda temas e eventos, muitas vezes dramáticos
e até trágicos, vividos diretamente por ambos os
entrevistados, assim como a organização dos trabalhadores
na instauração de novas modalidades de vida social e
de produção econômica, como também nas frentes de
combates. Essas lutas foram descritas com detalhes, tanto
discorrendo sobre as vitórias alcançadas, como também
acerca das necessárias evasivas estratégicas ou até mesmo
das derrotas. Nesses casos, os entrevistados falam das
circunstâncias particulares de seus aprisionamentos. Há o
caso dramático de quando, no fim da chamada guerra civil,
num cenário desfavorável aos revolucionários em armas,

208 verve, 43: 206-213, 2023


verve
sobre duas vidas completas... em revolução inacabada

recorriam a discussões sobre adoção ou não de possíveis


medidas drásticas, como o suicídio coletivo. Isso se passou
com Eduardo de Guzmán.
Tais situações ilustram muito bem a complexidade
dos diferentes desafios enfrentados pelos anarquistas
na instauração do comunismo libertário na Espanha,
ocasião da abolição da propriedade privada e do dinheiro.
Encontramos também nessas notas, diversas e oportunas
indicações bibliográficas, caso um tema em específico
venha suscitar a curiosidade de alguém, provocando nessa
pessoa o desejo de aprofundar seus conhecimentos acerca
do assunto em questão. Nesse ponto especial, impressiona
saber da intensa produção intelectual, sobretudo de cunho
histórico, mas também destacadamente literária, elaborada
por Eduardo de Guzmán. Tais publicações ficcionais
vinham assinadas por diferentes pseudônimos. Inclusive
uma, dentre as suas numerosas produções novelistas, se
beneficiou de versão para o cinema. A obra em questão
foi Aurora de Sangre, sendo adaptada para o cinema por
Fernando Fernán Gómez, sob o título Mi hija Hildegart
(1977). Essa versão foi aclamada pelo público durante
anos. Mesmo assim, Eduardo ficou descontente por ter
havido uma intervenção desviante do texto original feita
pelo diretor nessa adaptação cinematográfica. Eduardo
chegou mesmo a receber prêmio internacional por seu
livro El año de la victoria, publicado pela primeira vez em
1974.
Foram três os encontros com Antonio Ramos
Palomares. Eles aconteceram entre os dias 15 e 17 de
dezembro de 1990, na residência do entrevistado, em
Almodóvar del Rio. Com Eduardo de Guzmán, Lily se
encontrou em seis ocasiões na casa dele em Madri. Isso

verve, 43: 206-213, 2023 209


43
2023

aconteceu entre os dias 25 de maio e 06 de junho de


1989. Vejamos agora alguns apontamentos sobre essas
conversações muito importantes, sob todas as perspectivas,
iniciando com a entrevista concedida por Antonio.
A conversa com Antonio tratou, inicialmente, de sua
condição de nascimento em Villanueva de Córdoba e de
como ele conheceu o anarquismo. Originário do campo,
seu pai arrendava terras para plantar. Seus pais não eram
religiosos. Sua mãe morreu quando ele ainda era pequeno.
Depois, passou a morar, juntamente com seu pai, na
casa de um tio em Almodóvar del Rio em 1917. Como
era muito recorrente entre os filhos dos trabalhadores,
nunca pôde frequentar a escola. Fez seus estudos, como
dito por ele na entrevista, de forma autodidata, isto é,
sem ter frequentado espaços escolares. Em sua fala, fica
evidente a importância e o significado dos coletivos de
trabalhadores anarquistas, pois foi nesses locais, ao lado
dos companheiros de sindicato, que seus estudos se
deram. Ele descreve a dinâmica eminentemente coletiva,
animada pelo fogo do entusiasmo libertário levado aos
encontros de estudos por cada um dos integrantes do
sindicato. Nessas reuniões havia o estabelecimento de uma
ambiência relacional anti-escolar, calcada na interlocução
livre, continuada, sincera, honesta e sem hierarquias.
A Confederação Nacional do Trabalho – CNT – chegou
a Almodóvar no ano de 1928 contendo duas tendências
em seu interior: socialistas e anarquistas. Os comunistas
(leia-se marxistas) chegaram na região algum tempo
depois, ainda assim com muita pouca expressividade.
Como registrado na história dos movimentos anarquistas
e na fala de Antonio, os desencontros entre anarquistas e
socialistas aconteceram inevitavelmente. Data do ano de

210 verve, 43: 206-213, 2023


verve
sobre duas vidas completas... em revolução inacabada

1928 seu ingresso nessa confederação. Por conta de seus


envolvimentos em manifestações e atividades do sindicato,
foi preso em 1930. Depois desse ocorrido, ele, até então
se vendo como um rebelde dentro do sindicato, conheceu
com maior proximidade as ideias anarquistas e, de pronto,
passou a orientar suas ações e vida a partir delas. Em 1936,
foi secretário da federação local e em julho do mesmo ano
participou da experiência de implantação do comunismo
libertário na localidade, que resultou na abolição da
propriedade privada e do dinheiro. Antonio descreve a
forma de gestão coletiva dos bens e serviços feita pelas
coletividades insurgentes. Seu empenho e envolvimento
em outras instâncias revolucionárias, como conselhos e
participação em congressos operários, são descritas ao
longo da entrevista.
A entrevista com Eduardo de Guzmán revela um
homem intenso, atuando em várias atividades. Não foi
sem motivo que Lily declarou seu entusiasmo com o
depoimento do entrevistado. Quem ler as páginas poderá
tirar as próprias conclusões sobre essa figura peculiar.
Tendo participado de diversas situações de combate em
armas, sofrendo reveses com aprisionamentos em prisões
regulares e até mesmo em um campo de concentração, foi
submetido à tortura e outras violências, chegando a ser
condenado à morte, mas tendo a sentença comutada em
prisão. De suas participações nos combates, elaborou artigos
para jornais operários, intensificando essa produção com o
passar do tempo. Parou com suas colaborações nos jornais
de maneira compulsória, quando proibido pelo governo
espanhol. Com esse impedimento, concentrou-se no
trabalho, iniciado nos cárceres, de traduções de textos em
inglês para o espanhol, e principiou a produção de novelas

verve, 43: 206-213, 2023 211


43
2023

de faroeste e policiais. Além de colaborador, também fez


parte do coletivo editorial de jornais anarquistas. Um fato
curioso: Eduardo tornou-se tradutor do inglês sem nunca
ter se comunicado oralmente nesse idioma.
Atento com a elaboração enviesada de narrativas sobre a
revolução espanhola por parte dos potentados, Eduardo se
empenhou com todas as suas forças no registro, continuado
e sistemático, tanto dos processos construtivos gestados
nos enfrentamentos, como também das brutais reações
vindas ao longo dos três anos de duração da revolução.
Seu precioso trabalho de historiador, com perspectiva
assumidamente enlaçada à vida dos segmentos populares,
se soma a de outros anarquistas referenciados nas aludidas
notas de pé de página. A partir dessas indicações é possível
perceber a relevância da sua colaboração pessoal, dentro
de um mais amplo processo coletivo, na historicização
das ações e conquistas, realizações e derrotas, relativas
aos trabalhadores. Deixar esse trabalho ao sabor dos
intelectuais vinculados aos projetos autoritários dos
endinheirados, como governantes, militares, capitalistas
e clero, é permitir a extensão do aniquilamento para
além do ocorrido no plano físico e alcançando também
a memória social. Com esse epistemicídio não podia, em
absoluto, consentir nem colaborar.
Caminhando para finalizar esta resenha, quero pontuar
um dentre os vários momentos delicados da entrevista. Isso
se deu quando Lily questionou Eduardo sobre se ele vivia
a anarquia em sua vida cotidiana, mais especificamente em
casa com sua companheira. Questionamento procedente,
relevante e seminal. Não direi aqui sua resposta. Mais
interessante é ver diretamente na revista. Lily perguntou
também sobre qual a situação da mulher durante a

212 verve, 43: 206-213, 2023


verve
sobre duas vidas completas... em revolução inacabada

revolução. Tal questionamento deu lugar a uma série de


interessantes colocações em torno das conquistas realizadas
nesse campo. Eduardo falou da liberação das mulheres,
da grande importância e significado da revolução sexual,
dos grupos e associações femininas, particularmente do
Mujeres libres, dando destaque a algumas revolucionárias
como, entre outras, Lucía Sánchez Saornil (1895-1970). O
relato da trágica morte da jovem revolucionária Hildegart
Rodriguez Carballeira (1914-1933), assassinada pela
própria mãe, é tocante. Profundamente tocante. Esse
episódio ficou registrado em livro, tendo sido versado para
as telas de cinema, como dito mais acima.
Enfim, as duas entrevistas revelam o insuportável
para os acomodatícios, para os satisfeitos, para os que se
definem enquanto “realistas”, dizendo que vivemos no
melhor dos mundos possíveis: vidas intensas, passadas
na intimidade alegre em estar sempre perto do fogo e
do risco, com ânsias de viver para mais, disponíveis às
vertigens dos deslocamentos nos encontros e divergências,
ávidas por um sem fim de libertação e liberação contínuas,
famintas em ir mais longe, sim, sempre mais longe, sem
medo da destruição da obscuridade medieval, esta que é
a mãe das dominações, explorações e preconceitos. Nos
ditos e sugeridos das entrevistas, percebo duas vidas
completas, mas não finadas, falando de uma revolução sem
fim. Ambos os entrevistados deixam indicada a maneira
como viveram intensa e completamente uma revolução
constante, cortante, marcante... iniciada no infinitamente
pequeno, mas inacabada.
Flores...

verve, 43: 206-213, 2023 213


Periódico anarquista Warrior, 1993.
verve

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata, boletim eletrônico mensal, desde 1999;

flecheira libertária, semanal, desde 2007;

Aulas-teatro

Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007;

Eu, Émile Henry, outubro de 2007;

FOUCAULT, maio de 2008;

estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009;

limiares da liberdade, junho de 2009;

FOUCAULT: intempéries, outubro de 2009 e fevereiro de 2010;

drogas-nocaute, maio de 2010;

terr@, outubro de 2010 e fevereiro de 2011;

eu, émile henry. resistências., maio de 2011;

LOUCURA, outubro de 2011;

saúde!, maio e outubro de 2012;

limiares da liberdade, maio e agosto de 2013;

anti-segurança, outubro/novembro de 2013 e fevereiro de 2014;

drogas-nocaute 2, maio de 2014;

a céu aberto. controles, direitos, seguranças, penalizações e


liberdades, novembro de 2014;

terr@ 2, maio de 2015;

libertárias, novembro de 2015;

LOUCURA, maio de 2016,

A Revolução Espanhola, novembro de 2016.

a segurança e o ingovernável, maio de 2017;

greve geral em são paulo, 1917, 21 e 22 de novembro de 2017, 6 e 7 de


dezembro (Teatro Ágora-SP);

estamos todos presos. estamos?, 11 e 12 de junho de 2018;

68: invenções e resistências, 16 e 17 de setembro de 2018;

hécuba, de eurípides, 6 e 7 de maio de 2019;

215
43
2023

hécuba, de eurípedes 2, 7 e 8 de outubro de 2019.

DVDs e exibições no Canal Universitário/TVPUC

ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo; exibição de set


a out/2007, jan a mar/2008 e fev a abr/2009.

os insurgentes, edição de 9 programas; exibição de abr a jun/2008, jun a


ago/2008 e dez/2008 a fev/2009.

ágora, agora 2, edição de 12 programas; exibição de set a dez/2008, abr a


jun/2009 e jun a out/2009.

ágora, agora 3, edição de 7 programas; exibição de out a nov de 2010.

carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR, exibição de


out a nov/2010, 2011 e 2012.

ecopolítica-ecologia, exibição em ago/2012.

ecopolítica-segurança, exibição em nov/2012.

ecopolítica-direitos, exibição em abr/2013.

ecopolítica-céu aberto, exibição em dez/2015.

Vídeos

Libertárias (1999); Foucault-Ficô (2000); Um incômodo (2003); Foucault,


último (2004); Manu-Lorca (2005); A guerra devorou a revolução. A guerra civil
espanhola (2006); Cage, poesia, anarquistas (2006); Bigode (2008); Vídeo-
Fogo (2009).

CD-ROM

Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um


Incômodo).

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004

29 títulos.

Colóquio

colóquio internacional anarquistas na américa do


sul, agosto-setembro de 2021. https://youtube.com/c/
nucleodesociabilidadelibertarianusol.

Livros

ecopolítica. São Paulo, Hedra, 2019.

pandemia e anarquia. São Paulo, Hedra, 2021.

O abolicionismo penal libertário. Rio de Janeiro, Revan, 2021.

Os anarquistas na América do Sul. São Paulo, Hedra, 2022.

Os anarquistas na América do Sul, 2. São Carlos, Pedro e João


editores, 2022.

216
verve

recomendações para publicar na verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo


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2023

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(Sobrenome do autor, data), (Sobrenome do autor, data, página),
(Sobrenome do autor, data, on-line);
As referências bibliográficas devem estar ao final do texto
observando o padrão a seguir:

I) Para livros:
Sobrenome, nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora,
Ano.
Ex: Nascimento, Rogério. Florentino de Carvalho: pensamento
social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achiamé, 2000.

II) Para artigos ou capítulos de livros:


Sobrenome, nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade,
Editora, ano, páginas.
Montaigne, Michel de. “Da educação das crianças” in Ensaios,
vol. I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural,
Coleção Os pensadores, 1987, pp. 75-89.

III) Para obras traduzidas:


Sobrenome, nome do autor. Título da Obra. Tradução de
[nome do tradutor]. Cidade, Editora, ano.
Ex: Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de
Salma T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

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IV ) Para textos publicados na internet:


Sobrenome, nome do autor ou fonte. Título. Disponível em:
http://[endereço da web] (acesso em: [data da consulta]).
Ex: Lévi-Strauss, Claude. Pelo 60º aniversário da Unesco.
Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/
indexn1.htm. (acesso em: 10/10/2022).

As contribuições devem ser encaminhadas por meio eletrônico


para o endereço nu-sol@nu-sol.org salvos em extensão “.docx”.

Revista Verve
Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói,
969, 4º andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.
Informações e programação das atividades
do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org

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