Você está na página 1de 261

44

2023
Revista do NU-SOL — Núcleo de Sociabilidade Libertária
verve
verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária

44
2023
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Nº44 (Outubro 2023). São Paulo: Nu-Sol, 2023 - semestral

1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo Penal.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária; in-


dexada no Portal de Revistas Eletrônicas da PUC-SP, no Portal de Periódicos
Capes, no LATINDEX e catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos.

Editoria

Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol

Acácio Augusto, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Diego Lucato


Bello, Edson Passetti (coordenador), Eliane Carvalho, Flávia Lucchesi,
Gustavo Simões, Gustavo Vieira, Lúcia Soares, Luíza Uehara, Márcia Cristina
Lazzari, Maria Cecília Oliveira, Rogério Zeferino Nascimento, Salete Oliveira.

Conselho Editorial

Alfredo Veiga-Neto (UFRGS), Cecilia Coimbra (UFF e Grupo Tortura Nunca


Mais/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Christina Lopreato
(UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo
Branco (UFRJ), Heliana de Barros Conde Rodrigues (UERJ), Margareth Rago
(Unicamp), Pietro Ferrua (CIRA – Centre Internationale de Recherches sur
l’Anarchisme) (em memória), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade
Técnica de Lisboa), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo

Dorothea V. Passetti (PUC-SP), João da Mata (SOMA), José Carlos Morel


(Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Eduardo Azevedo (Unip), Nelson
Méndez (Universidade de Caracas) (em memória), Silvio Gallo (Unicamp),
Stéfanis Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de
Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
verve

revista de atitudes. transita por limiares e


instantes arruinadores de hierarquias. nela,
não há dono, chefe, senhor, contador ou
programador. verve é parte de uma associação
livre formada por pessoas diferentes na
igualdade. amigos. vive por si, para uns.
verve é uma labareda que lambe corpos, gestos,
movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita
liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
sumário
um dossiê antipunitivo com vervre
10 an antipunishment dossier with verve
Nu-Sol

50 anos do curso A Sociedade Punitiva


50 years of the course "he Punitive Society
14 Alexandre Filordi de Carvalho, Heliana de Barros Conde
Rodrigues, Rosimeri de Oliveira Dias & Silvio Gallo

o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro


18 the punitive society course, a rare trinket
Heliana de Barros Conde Rodrigues & Rosimeri de Oliveira Dias

incontornável anarquia
62 unavoidable anarchy
Edson Passetti

medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição


87 socio-educational measures: the productive sense of punishment
Estela Scheinvar & Esther Maria de Magalhães Arantes

azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs


104 disturb dissidences: rumbles in libertarian constellations
Flávia Lucchesi & Luíza Uehara

articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos


midiáticos
129 articulations: the punitive society and media cancellations
Maura Corcini Lopes & Alfredo Veiga-Neto

impedimento e interdição: a problemática da sexualidade na


era da sociedade punitiva
144 Impediment and interdiction: the problem of sexuality in the age of the
punitive society
Ernani Chaves

a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos


burgueses e as lutas anárquicas
167 the punitive society: between the cynicism of bourgeois illegalisms and
anarchic struggles
Alexandre Filordi de Carvalho & Silvio Gallo
22 de novembro de 1923
november 22, 1923
189 [Página única 1]
Kaneko Fumiko

inferno na terra
201 hell on earth
Alexander Berkman

14 de maio de 1925
may 14, 1925
210 [Página única 2]
Kaneko Fumiko

pena de morte
225 death penal
Elisée Reclus

18 de julho de 1925
232 july 18, 1925
[Página única 3]
Kaneko Fumiko

resenhas
em defesa da democracia!
237 in defense of democracy
Acácio Augusto

ventos agitam o sul da américa


246 winds shake shouthern america
Adriana Martínez

josé maria, uma anarquia toda coração


251 josé maria, an anarchy all heart
Salete Oliveira
verve 44, no ar.
há mais de 50 anos, acontecia no collége de france o curso a sociedade punitiva,
por michel foucault que mais tarde repercutiria na publicação de vigiar e
punir. na urgência de abolir os castigos, em mais um inventivo percurso
com foucault, verve recorda, revira, avança com este curso no dossiê anti-
sociedade punitiva: proposta feita pelxs amigxs e organizadorxs do dossiê
especialmente para a verve a quem agradecemos com saúde!
heliana de barros conde rodrigues & rosimeri de oliveira dias costuram
o percurso de foucault em combate às punições e o acontecimento
d’a sociedade punitiva. edson passetti caminha com libertárixs no
enfrentamento à guerra social e à manutenção das desigualdades, à
identificação do criminoso e à sede de punições. estela scheinvar &
esther maria de magalhães arantes retomam o estatuto da criança
e do adolescente e as modulações carcerárias intituladas “medidas
socioeducativas”. flávia lucchesi & luíza uehara, no desassossego dxs
libertárixs, enfrentam as atuais dissidências e suas absorções.
maura corcini lopes & alfredo veiga-neto encaram as atualizações da
sociedade punitiva nos atuais e recorrentes “cancelamentos” nas redes
sociais. ernani chaves analisa as relações entre sexualidade e sociedade
punitiva. alexandre filordi de carvalho & sílvio gallo tecem uma
conversação entre o curso de 1973 e outros, posteriores.
nas páginas únicas, trechos de três dias do julgamento, no começo do
século xx, da anarquista kaneko fumiko, escancaram o teatro do tribunal,
a devoção e a subserviência de qualquer súdito. alexander berkman
explicita o horror e os efeitos infernais da prisão, em sua primeira fala
pública, após 14 anos encarcerado. elisée reclus destrincha a pena de
morte e sua simbiose com o cristianismo, capitalismo e socialismo.
nos intervalos, respiros e imensidões de folhas e musgos da e na terra.
nas resenhas, o recém-publicado livro de nilo batista,
em parceira com rafael borges, suscita uma leitura ácrata de acácio
augusto, que mira certeiro nos imbricamentos entre democracia, o
dispositivo penal e a continuidade da pena de morte. adriana martinez
atiça a leitura de anarquistas na américa do sul, em desdobramento
do encontro homônimo organizado a partir da associação entre nu-
sol, lima e lasintec. salete oliveira nos convida a andar juntxs pelo
quintal do gigante josé maria carvalho ferreira, amigo do nu-sol de
saúde, tesão e anarquia.
verve 44 anuncia o singrar por novos mares,
liberada de qualquer vínculo institucional.
44
2023

um dossiê antipunitivo com verve

nu-sol

Friedrich Nietzsche e, posteriormente, Michel


Foucault reafirmaram o que Pierre-Joseph Proudhon
havia delimitado claramente no século XIX: o direito é
sempre do mais forte, resultante dos combates; possibilita
o aparecimento do direito da força e da astúcia de alguns
sobre os demais, aos quais cabe cumprir deveres e estar
disponíveis para a guerra ou guerra justa, aniquilando ou
subjugando os inimigos; é com superiores que as aristo-
cracias se conformaram, até se chegar à representação mo-
derna com elites e vanguardas.
As práticas de guerra contra os inimigos do Estado
moderno resultaram na noção de guerra civil para definir
o levante interno considerado ilegítimo diante da auto-
ridade soberana. Portanto, segundo Foucault, quando se
fala em guerra civil, estamos enredados na forma pela qual
o Estado moderno qualifica as lutas dos oponentes inter-
nos como ilegítimas, perigosas, subversivas. Em suma, o
Estado define essas condutas como descabidas, justifican-
do o uso de dispositivos policiais, autorizando o terror de
Estado, para além do imediato e da constatação de medi-
das contrárias aos chamados anormais.

10 verve, 44: 10-13, 2023


verve
um dossiê antipunitivo com verve

Em A Sociedade Punitiva, Foucault salienta que a guer-


ra civil não está intrinsecamente ligada à uma alegada es-
sência das individualidades, mas num embate entre forças
sociais, de tal modo que é por meio da guerra que essas
forças se configuram. Não são embates que antecedem
a conformação do regime de soberania, como idealiza-
va Hobbes, pois eles se desenrolam, modernamente, nos
exercícios de poder, transformando-os e modificando-os.
A guerra civil é constitutiva do exercício contínuo das re-
lações de poder que colocam em funcionamento práticas
de governo e, especificamente, uma estratégia punitiva
que emerge entre os séculos XVIII e XIX.
Há um redimensionamento da premissa segundo a
qual a guerra é travada entre todos, deslocando-a para o
âmbito da criminalidade. O criminoso, classificado como
inimigo social por diferentes instituições (polícia, minis-
tério público, judiciário, humanidades etc.), é aquele que
rompe o contrato ao cometer uma infração, chamada his-
toricamente de crime contra toda a sociedade por man-
ter uma conduta considerada suspeita como sujeito pro-
veniente dos setores mais baixos da sociedade. A guerra
civil, portanto, manifesta-se enquanto dispositivo de po-
lícia, cuja função é manter a ordem por meio da conten-
ção dos corpos classificados e acusados como inimigos da
sociedade.
Os anarquistas, ao longo da história, foram simultane-
amente alvos e demolidores da prisão. De forma corajosa,
desde o século XIX, explicitaram em suas práticas a seleti-
vidade do sistema penal e do direito moderno — burguês
e até mesmo proletário, como resultante do socialismo de
Estado —, colocando em xeque o regime dos castigos e
constituindo, mais do que ilegalidades das práticas popu-

verve, 44: 10-13, 2023 11


44
2023

lares, os seus ilegalismos. Abrem luta contra o direito bur-


guês que acusam de criminoso e explicitam que o domínio
da propriedade se efetiva e se institucionaliza pelo roubo
de forças, ideias, movimentações, riquezas e invenções po-
pulares a serem disciplinadas ou expurgadas.
O enfrentamento à prisão e às práticas do castigo, que
marcaram os anarquismos desde o século XIX, encontra
atualização com o abolicionismo penal, a partir da década
de 1970, associado às lutas antiprisionais que emergem
com o acontecimento 68, quando anarquistas e pessoas
livres em diversos cantos do planeta provocaram revira-
voltas e inventaram práticas contestadoras da autoridade
centralizada.
O abolicionismo penal é uma prática que atenta con-
tra relações autoritárias baseadas no regime do medo e da
punição. Uma maneira de lidar não com crimes, mas com
situações-problema a serem equacionadas pelos envolvidos
sem a baliza de um código penal, mas encontrando res-
postas-percurso que dizem respeito a situações específicas.
Para o Nu-Sol, o abolicionismo penal se faz presente em
radicalização libertária, afirmando que a abolição das prisões
e das penas não está dissociada da abolição da cultura do cas-
tigo. Antes de pensar na abolição das penas na sociedade, é
preciso abolir o castigo nas relações sociais próximas.
No Nu-Sol, pesquisamos e inventamos práticas anar-
quistas e abolicionistas em nossas relações. Andando com
Foucault, abolicionismos e anarquismos, interessa-nos a
invenção de heterotopias, ou seja, a realização imediata
de uma vida livre. O fim da punição começa em cada um.
Não é uma meta, e muito menos uma utopia.

12 verve, 44: 10-13, 2023


verve
um dossiê antipunitivo com verve

Embora Foucault não tenha se declarado abolicionista,


nem anarquista, é possível compreendê-lo no interior des-
tas lutas posto que, ao desdobrar as suas análises sobre o
poder, situou como este não deve ser entendido enquanto
substância, mas como produto e produção de relações. A
analítica do poder foucaultiana, com suas práticas e lu-
tas, interessa ao Nu-Sol. É publicada com frequência ao
longo dos 20 anos de verve, incluindo textos do próprio
Foucault, que até o ano de suas respectivas publicações,
eram inéditos no Brasil.
Nesta verve 44, em comemoração aos 50 anos do cur-
so A Sociedade Punitiva, no Collège de France, trazemos
aos leitores o dossiê produzido com as múltiplas atenções
por Heliana de Barros Conde Rodrigues, Rosimeri de
Oliveira Dias, Silvio Gallo e Alexandre Filordi, parceirxs
de combates.

verve, 44: 10-13, 2023 13


44
2023

50 anos do curso A Sociedade


Punitiva

alexandre filordi, heliana de barros conde rodrigues,


rosimeri de oliveira dias & silvio gallo

Neste dossiê reunimos uma série de artigos que cele-


bram os 50 anos da realização do curso A sociedade puniti-
va no Collège de France, explorando distintas potenciali-
dades das análises ali desenvolvidas por Michel Foucault.
Heliana de Barros Conde Rodrigues e Rosimeri de
Oliveira Dias, em “O curso A sociedade punitiva, um bi-
belô raro”, fazem uma deliciosa apresentação das aulas
de 1972-1973, tomando por mote o fato de que as fitas
depositadas no acervo haviam sido sobre-gravadas, tendo
perdido o registro da palavra falada, restando apenas as
transcrições da gravação. As autoras optaram por se apro-
ximar do curso como um acontecimento, na esteira de Paul
Veyne e do próprio Foucault, centrando seus comentá-
rios em como o filósofo expõe sua trajetória de investiga-
ção, para em seguida dialogar com alguns comentadores.
Algumas posturas disruptivas são destacadas, de modo a
mostrar a trajetória de um pensador inquieto.
Edson Passetti, em “incontornável anarquia”, visita
o curso de Foucault, bem como outros escritos da mes-

14 verve, 44: 14-17, 2023


verve
50 anos do curso A Sociedade Punitiva

ma época, para mostrar que também ali estão presentes


as suas muitas inquietações em torno dos anarquismos e
das práticas libertárias. Dada a atualidade da sociedade
punitiva, que experimentamos em nosso cotidiano, enve-
reda pelo abolicionismo penal libertário como via crítica.
A partir do único, pensado na companhia de Max Stirner,
reivindica uma relação horizontalizada na educação das
crianças, avessa a penas e punições.
“Medidas socioeducativas: o sentido produtivo da pu-
nição” é o título do artigo de Estela Scheinvar e Esther
Maria de Magalhães Arantes, no qual a punição é pro-
blematizada em seus positivamentos, muitas vezes feitos
a partir da obra de Foucault tomada de modo enviesado.
O texto mapeia a produção legislativa brasileira em tor-
no da construção de uma “boa” punição — no sentido da
construção de medidas socioeducativas para adolescentes
infratores —, interrogando-a sob lentes foucaultianas.
Recebem especial destaque o ECA e a forma-prisão con-
temporânea dos internatos para adolescentes pobres, onde
estes vivem toda a crueldade punitiva das ditas medidas
socioeducativas.
Flávia Lucchesi e Luíza Uehara refletem sobre o apa-
rato prisional a partir da narrativa do anarquista japonês
Ôsugi Sakae acerca de suas passagens pela prisão em seu
país no começo do século XX, evidenciando que “na pri-
são, só há mortificação da vida e sufocamento da existên-
cia”. O texto se intitula “Azucrinar dissidências: estrondos
em constelações libertárixs”, e as ferramentas trazidas por
Foucault no curso de 1972-1973 são mobilizadas com o
intuito de examinar como as múltiplas dissidências são
tratadas pelos aparatos de punição, bem como as resistên-
cias libertárias e suas invenções de vidas livres.

verve, 44: 14-17, 2023 15


44
2023

Em “Articulações: a sociedade punitiva e os cance-


lamentos midiáticos”, Maura Corcini Lopes e Alfredo
Veiga-Neto problematizam o presente através do tema
tão em voga dos “cancelamentos” nas redes sociais.
Dialogando com o curso de Foucault e observando os
efeitos produzidos no Brasil pelo recente governo que es-
timulou condutas fascistas, evidenciam-se os aspectos pu-
nitivos do fenômeno do “cancelamento”. Alinhados com
o pensador francês, destacam o duplo efeito produzido: de
um lado, a eliminação da divergência; de outro, a “revolta
dos cancelados”, produzindo uma “glória dos vencidos”.
Ernani Chaves subscreve “Impedimento e Interdição:
a problemática da sexualidade na era da sociedade puni-
tiva”. De modo arguto, o texto põe em cena a temática da
sexualidade — explorada logo em seguida por Foucault,
de modo a construir uma história de seus dispositivos —,
para pensar como a sociedade punitiva, que ensejaria um
poder disciplinar, operou sobre esse fenômeno. Os co-
mentários de Foucault na aula de 23 de março de 1973 são
colocados sob as lentes, de modo a destacar a importância
de um tema aparentemente menor no curso em pauta.
O dossiê é finalizado por “A sociedade punitiva: entre
o cinismo dos ilegalismos burgueses e as lutas anárqui-
cas”, de Alexandre Filordi de Carvalho e Sílvio Gallo. Os
autores também adotam uma leitura do curso de 1973 a
partir de trabalhos posteriores de Foucault, chamando a
atenção para o fato de que a inflexão que aparece nesse
curso — um deslocamento do eixo do saber para o eixo
do poder — passaria por nova mudança alguns anos de-
pois, quando seria substituída pela analítica do governo
dos seres humanos pela verdade. Ao analisar os ilegalis-
mos produzidos pela sociedade punitiva, lançam luz sobre

16 verve, 44: 14-17, 2023


verve
50 anos do curso A Sociedade Punitiva

as possíveis resistências, as lutas anárquicas, como práticas


de desconfiança dos poderes.
Esperamos que esse conjunto de textos inspire os lei-
tores em seus estudos do curso A sociedade punitiva, de
modo a buscar possíveis interlocuções internas à obra de
Foucault, mas igualmente externas a ela, pelo muito que
suscitou e segue promovendo no campo das ciências hu-
manas e sociais.

50 years of the course The Punitive Society, Alexandre


Filordi, Heliana de Barros Conde Rodrigues, Rosimeri
de Oliveira Dias & Silvio Gallo.

verve, 44: 14-17, 2023 17


44
2023

o curso a sociedade punitiva,


um bibelô raro

heliana de barros conde rodrigues &


rosimeri de oliveira dias

Diz-nos Bernard Harcourt, organizador da publica-


ção de A sociedade punitiva (ASP), que o estadunidense
Richard Lynch e, posteriormente, nosso colega Márcio
Alves da Fonseca informaram ao Collège de France que,
ao tentarem ouvir a gravação das fitas cassete arquivadas,
notaram que outro curso fora gravado “por cima” das aulas
de 1972-1973. O ano decorrido entre a primeira comuni-
cação (1999) e a segunda (2000) tanto indica a desorga-
nização do acervo como algum menosprezo pela palavra
falada — “Até hoje não há vestígio do áudio de A sociedade
punitiva” (Harcourt, 2015, p. 281).

Heliana de Barros Conde Rodrigues é professora associada e procientista


do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de
Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Contato: helianaconde@
uol.com.br.
Rosimeri de Oliveira Dias é professora associada e procientista do Departamento
de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Processos
Formativos e Desigualdades Sociais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Coordenadora do Grupo de Pesquisas OFIP/CNPq. Contato:
rosimeri.dias@uol.com.br.

18 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

Companheiras na UERJ e convidadas compulsórias,


mas felizes, ao escrever uma contribuição para o dossiê
que, juntamente com Alexandre Filordi e Silvio Gallo, da
UNICAMP, tivemos a iniciativa de organizar, resolvemos
tomar essa ocorrência por mote. Avaliamos, com efeito,
que os destinos de ASP, mesmo depois da publicação de
uma transcrição (Foucault, 2013a) feita por Jacqueline
Germé, muito se assemelham aos das fitas mencionadas.
E, se no caso destas ocorre apagamento da fala — tal-
vez por já se saber da existência de transcrição1 —, no da
edição do “pequeno paralelepípedo”2, conquanto não haja
desaparecimento do dito (agora escrito), o curso muitas
vezes “submerge” devido a determinadas abordagens por
parte de comentadores. Sem pretensão de exaustividade,
citamos algumas: tomar A sociedade Punitiva como ras-
cunho de Vigiar e Punir; fazer de ASP mera introdução a
um vasto conjunto de ditos e escritos acerca da sociedade
disciplinar; perceber ASP como aspecto negligenciável de
uma obra que teria, no topo, os livros autorais e, ao rés-
-do-chão, cursos, entrevistas, manifestos; deixar de lado o
curso em função de seu título, que remeteria a uma ultra-
passada ideia de repressão e porque já passamos da disci-
plina/punição ao controle/regulação.
A partir de perspectiva muito diversa, queremos nos
aproximar de ASP como um “bibelô raro” — para usar a
expressão de Paul Veyne (1982). Ao final dos anos 1970,

1
Fita versus transcrição foi um debate presente nos primórdios da História
Oral contemporânea, quando, devido à praticidade na consulta e à
economia, ao dispor da segunda se apagava a primeira. Para uma crítica
desse extermínio da palavra falada, ver Portelli, 1997.

2
Maneira divertida pela qual Foucault se refere ao objeto-livro em A
arqueologia do saber.

verve, 44: 18-61, 2023 19


44
2023

ele viu no trabalho do amigo filósofo uma revolução his-


toriográfica devida, sobretudo, ao modo de entender o
acontecimento: Foucault enfatizava sua singularidade; me-
lhor dizendo, tomava-o não como devido a uma evolução,
tampouco a um progresso, mas como efetiva transforma-
ção. Nem viveiro de plantas a crescer, nem concurso de tiro
com aperfeiçoamento gradual da pontaria, a genealogia
assemelha-se, segundo Veyne (1982, p. 172), à apreensão
dos giros de um caleidoscópio: multiplicam-se os pedaços
de vidro e as configurações que eles vêm a assumir, rit-
mando com isso o tempo histórico.
Em nossas pesquisas acadêmicas e político-vitais prio-
rizamos, nos últimos anos, dois caminhos na aproximação
a Foucault: (1) o de um pensador que “faz o caminho ao
andar”, ou seja, que a cada curso ou livro apresenta aulas
ou capítulos de teor metodológico-conceitual, ora reo-
rientando, ora promovendo inflexões radicais no até então
praticado; (2) o de um filósofo que, embora muito biogra-
fado, tem partes de sua trajetória suprimidas ou desconsi-
deradas, em comparação com outras, exploradas a ponto
de parecerem alvo de dissecação.
Tendo percebido, ao longo desses percursos, a dessin-
gularização tanto metodológico-conceitual quanto políti-
co-vital do curso A sociedade punitiva, aliamo-nos a Veyne
(1982) para, no presente artigo, tratá-lo como um acon-
tecimento. Com tal intuito seguiremos, aproximadamente
— não há garantias quanto ao “descaminho daquele que
conhece” (Foucault, 1984, p.13) —, o seguinte roteiro: em
um primeiro momento, privilegiaremos aulas em que são
notáveis as inflexões metodológico-conceituais; em segui-
da, com a colaboração de comentadores — Fréderic Gros
e Daniele Lorenzini —, procuraremos sumariar essas in-

20 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

flexões em relação ao curso anterior, Teorias e instituições


penais (TIP), assim como inserir ASP menos em conti-
nuidades do que em coerências; por fim, surpresas provo-
cadas pela leitura do curso de 1972-1973, quando de sua
edição, serão apreciadas, facultando uma aproximação às
ressonâncias tanto das relações entre Foucault e Deleuze
quanto de ASP na atualidade.

foucault leitor de foucault


Em pesquisas sobre Michel Foucault, é quase impos-
sível manter a rota. Qualquer que seja o objetivo inicial,
não há como impedir o (desejável) descaminho promo-
vido por seus deslocamentos metodológico-conceitu-
ais. Insistimos nesse adjetivo hifenizado, pois Foucault
em nada se assemelha a um “metodólogo” — categoria
cunhada por Howard Becker (1994, p. 9) para lamentar
os destinos das ciências sociais a partir do momento em
que a metodologia nelas se tornou “uma área especial de
conhecimento esotérico”. Como Becker, Foucault decer-
to considerava a metodologia “importante demais para
ser deixada aos metodólogos” (Idem, p. 17). Demasiado
importante, igualmente, para que a crítica — interroga-
ção sobre os limites do método e dos conceitos — fosse
deixada a cargo de outrem: as inflexões que povoam seus
cursos e livros remetem não só a um Foucault leitor de
seus objetores como a um “Foucault leitor de Foucault”
(Chartier, 2002).
Apoiadas nessas considerações, como antecipamos, a
princípio nos aproximaremos de ASP por meio de cinco
aulas em que esse “Foucault leitor de Foucault” diagnos-
tica limites de seu próprio percurso para, em função desse

verve, 44: 18-61, 2023 21


44
2023

diagnóstico, propor direções renovadas — fazendo “o ca-


minho ao andar”, qual o verso de Antonio Machado.

3 de janeiro de 1973
Nesta primeira aula, após breve exposição sobre Tristes
Trópicos — livro no qual Lévi-Strauss afirma que as socie-
dades se dividem em antropofágicas (assimilam o que há
de hostil) e antropoêmicas (excluem-no ou o “vomitam”)
—, embora não rechace a hipótese do etnólogo e reco-
nheça dela já ter feito uso (e talvez abuso), Foucault não a
considera operacional para uma análise histórica.
Nesse aspecto, apreende-se uma das coerências3 fou-
caultianas: o filósofo frisa que a noção de exclusão fora
útil para contrapor-se a noções psicológicas, sociológicas
ou psicossociológicas — como desvio, inadaptação, ano-
malia —, tendo possuído até certo momento uma função
de “inversão crítica”; presentemente, contudo, ela só nos
ofereceria o estatuto de indivíduos ou grupos excluídos
“no campo das representações sociais” (Foucault, 2015, p.
4), sendo incapaz de analisar as relações de poder a partir
das quais a própria exclusão se efetua. Tal noção parece
referir-se, ademais, a uma espécie de “consenso social”
veiculado por um ato global, ao passo que talvez existam
“várias instâncias perfeitamente especificadas, por con-
seguinte definíveis, de poder que são responsáveis pelos
mecanismos de exclusão” (Idem, p. 5).
Um motivo adicional para o descarte da noção remete
ao par assimilar versus rejeitar, “metáfora digestiva” inca-
3
É quase onipresente a estratégia foucaultiana de conceder valor a conceitos
ou procedimentos até certo ponto do tempo, para rejeitá-los quando,
modificadas as condições, não mais se mostram politicamente úteis.

22 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

paz de apreender determinados mecanismos, pois “não


há exílio, reclusão que, além daquilo que caracterizamos
de modo geral como expulsão, deixe de comportar uma
transferência, uma reativação desse mesmo poder que im-
põe, coage e expulsa” (Ibidem). Nessa perspectiva, no ma-
nuscrito4, a exclusão aparece assim definida: “efeito repre-
sentativo geral de estratégias e táticas muito mais finas”
(Ibidem, nota a).
Foucault rejeita, adiante, a ideia de transgressão, da
qual igualmente já fizera uso. Durante certo tempo, tam-
bém ela possibilitara uma inversão crítica, afastando no-
ções como anomalia, culpa, lei: “Possibilitou ordenar todas
essas noções não mais em relação à noção, maior, de lei,
mas à de limite” (Ibidem, p. 7). Já no manuscrito, pode-
-se ler: “Falar de transgressão não é designar a passagem
do lícito ao ilícito (para além do proibido): é designar a
passagem ao limite, para além do limite, a passagem para
aquilo que não tem regra e, por conseguinte, não tem re-
presentação” (Ibidem, nota a). Ao ver do filósofo, contudo,
a ideia de transgressão permaneceu presa ao sistema geral
das representações — contra o qual, justamente, se havia
voltado. Concluindo seu afastamento das duas noções an-
tes utilizadas, Foucault propõe falar “em poder, ao invés
de lei; em saber, em vez de representação” (Ibidem, p. 7).
A aula se encerra pondo ênfase na guerra civil como
matriz de todas as lutas de poder — tema que permeará
todo o curso.

4
Além da transcrição feita por Jacqueline Germé, a edição se baseou no
manuscrito preparatório.

verve, 44: 18-61, 2023 23


44
2023

31 de janeiro de 1973
Foucault sublinha a impossibilidade de derivar a pri-
são da literatura jurídica do século XVIII. Em nova varia-
ção quanto a posturas anteriores, especialmente quanto a
Teorias e Instituições Penais (TIP), observa: “Até agora, es-
tudávamos [...] de que modo, no interior do sistema penal
[...], se interligam ideias ou instituições. Agora, trata-se
de descobrir quais foram as relações de poder que possi-
bilitaram a emergência histórica de algo como a prisão.
Após uma análise de tipo arqueológico, trataremos de fa-
zer uma análise de tipo dinástico, genealógico, sobre filia-
ções a partir das relações de poder” (Ibidem, p.78).
Ao longo dessa aula, rejeitando análises representati-
vo-simbólicas — a prisão como um análogo laico do con-
vento —, Foucault se volta para certos movimentos sociais
ingleses que, em suas ações de enquadramento moral de
populações, inauguram um exercício de poder que se pode
chamar, como faziam metodistas e quakers, de “penitenci-
ário”: “Termo incrível. Com efeito, como se pode falar de
penitência numa época em [...] que só pode haver crime
quando a sociedade é lesada, e só pode haver pena quando
a sociedade tem de se defender, não podendo haver rela-
ção fundamental entre pecado e crime, pena e penitência?”
(Ibidem, p. 83).
Não acompanharemos Foucault nos detalhes relativos
a essa “cristianização do crime”, contentando-nos em res-
saltar que ela não se faz por derivação lógico-proposicional,
mas pelas formas propagativas, e quase sempre paradoxais,
que caracterizam as relações de poder. Nosso interesse é
sublinhar momentos do “andar” foucaultiano através dos
quais ele compõe os seus (e os nossos) “caminhos”. No

24 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

caso, a impossibilidade de derivação jurídica, descober-


ta via análise documental, conecta-se à experiência do
Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), conduzindo
a um trabalho “dinástico” ou genealógico.
Não é a primeira nem a última vez que a passagem à
genealogia é problematizada. A vertente genealógica, em
correlação com a vertente crítica, já fora assinalada na aula
de abertura (1970) do Collège de France, A ordem do dis-
curso (Foucault, 1996). Em 1972, uma entrevista prévia
à viagem ao Japão chama-se “Da arqueologia à dinásti-
ca” (Foucault, 2003a), utilizando um termo que acabará
por ser abandonado. O curso O poder psiquiátrico (1973-
1974) reativará a ênfase na genealogia (Foucault, 2006),
assim como já ocorrera naquele ministrado no Brasil, em
1973, A verdade e as formas jurídicas (Foucault, 2013b).
Uma conversa com estudantes em Los Angeles (1975),
publicada como “Diálogos sobre o poder”, voltará ao tema
(Foucault, 2003b), cuja formulação mais provocadora re-
mete à primeira aula, datada de 1976, do curso Em defesa
da sociedade (Foucault, 1999).
Essa série de referências exibe a dificuldade associada
à definição de genealogia. Professoras, somos convidadas
a “simplificar” a tarefa, indicando um só texto ou curso.
Enfatizando a coerência de Foucault, mas preservando
suas inflexões singulares, é comum que nossa resposta se
limite a afirmar que a genealogia privilegia as forças e não
as formas, efeitos das primeiras.

verve, 44: 18-61, 2023 25


44
2023

21 de fevereiro de 1973
Foucault revê posições que defendera em TIP: a emer-
gência da prisão fora, na época, associada à repressão pela
burguesia da “plebe sediciosa”, articulando-se o par políti-
co repressão-plebe ao par conceitual prisão-delinquência.
As objeções foucaultianas a categorias pautadas na ne-
gatividade são acompanhadas, nessa aula, pela substitui-
ção da ideia de plebe sediciosa pela de ilegalismos populares.
Como assinala o filósofo: “... parece-me que o mecanismo
que trouxe a formação desse sistema punitivo é, em certo
sentido, mais profundo e mais amplo do que o mecanismo
de simples controle da plebe sediciosa. [...]; até o fim do
século XVIII, certo ilegalismo popular era não só compa-
tível com o desenvolvimento da economia burguesa, como
também útil a ele; chegou um momento em que esse ile-
galismo [...] tornou-se incompatível com ele” (Foucault,
2015, p. 130).
Foucault assevera que, no século XVII, havia três tipos
principais de ilegalismo: o popular, o comercial e o privi-
legiado. Mas considera primordial um quarto, que fazia o
sistema funcionar: o ilegalismo do próprio poder. A res-
peito, adenda: “Os representantes diretos do poder — in-
tendentes, subdelegados, tenentes de polícia —, [...] mais
que agentes da arbitrariedade ou da legalidade estrita, [...]
eram árbitros do ilegalismo [...]; o poder intervinha como
regulador desses ilegalismos” (Idem, p. 132).
O termo “ilegalismo” — objeto de gestão mais que de
interdição — foi desconsiderado pelas perspectivas pouco
matizadas de parte dos tradutores de Foucault no Brasil,
que muitas vezes o transformaram em “ilegalidade” —
caso da tradução de Vigiar e punir, por exemplo. Cumpre

26 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

sublinhar que considerar os ilegalismos como alvos de ges-


tão ajuda a abandonar a ideia de que os dispositivos le-
gais existam para ser aplicados de maneira generalizada e
igualitária, desconsiderando com isso os múltiplos modos
de exercício do poder, campo problemático da genealogia.
Levando a perspectiva genealógica ao limite e, decer-
to, desagradando a muita gente, Foucault arrisca a dizer:
“A Revolução de 1789 foi o resultado final desse longo
processo de ilegalismos acumpliciados graças aos quais
a economia burguesa conseguiu abrir seu próprio cami-
nho” (Ibidem, p. 135). E ainda agrega, exibindo a faceta
primordial dos processos de gestão: “... o que a burguesia
queria fazer não era tanto eliminar a delinquência. O es-
sencial do objetivo do sistema penal era romper aquele
continuum de ilegalismo popular e organizar um mundo
da delinquência” (Ibidem, p. 138).

28 de fevereiro de 1973
A aula dá seguimento ao debate sobre os ilegalismos
populares, a partir de certo momento sob cerrada vigilân-
cia da burguesia, ao contrário do que ocorrera no perío-
do pré-revolucionário, quando lhe eram primordialmente
benéficos e, em consequência, amplamente tolerados. O
que mais nos interessa nessa lição, porém, são detalhes
metodológico-conceituais situados nas últimas páginas.
Não é difícil perceber em ASP um curso corajoso e,
por esse motivo, incômodo para muitos. Ao longo da li-
ção em pauta, Foucault dá realce a brochuras anônimas,
arquivos departamentais e/ou escritos de juristas do início
do século XIX. Depois de análise detida da maneira como,

verve, 44: 18-61, 2023 27


44
2023

nesses textos, é focalizada a classe trabalhadora, afirma:


“Sempre se tem o hábito de falar da ‘burrice’ da burgue-
sia. Pergunto-me se o tema da burrice da burguesia não é
um tema para intelectuais: estes imaginam que os comer-
ciantes são limitados, os endinheirados são cabeçudos e os
que estão no poder são cegos”. Com apoio nessa proposi-
ção desafiadora, Foucault assim define os intelectuais: “...
aqueles sobre os quais a inteligência da burguesia produz
efeitos de cegueira e burrice” (Ibidem, p. 151).
Essas palavras não têm objetivos unicamente provoca-
tivos, embora não sejam deles desprovidos. Conectam-se
às questões de método, que resumimos a seguir, acom-
panhando a argumentação foucaultiana: (1) tudo o que
estava acontecendo na implementação do sistema penal
foi dito; (2) o princípio de análise de discursos na for-
ma de uma busca do não-dito é próprio dos que não
conseguem enxergar o cinismo (no sentido vulgar) da
classe dominante; (3) o intérprete não precisa se abismar
em profundidades, pois os interpretados disseram tudo;
(4) nunca será nos textos de um autor ou em uma obra
específica que se deverá buscar esse cinismo e essa inteli-
gência da burguesia; (5) as categorias autor, escritor, obra,
texto são unicamente o que a escolarização da sociedade
isolou em relação à massa estratégica dos discursos.
Proposições como “a burguesia é burra”, “as coisas não
são ditas” e “o importante são as obras” comandam, para
Foucault (Ibidem, p. 132), um tipo de análise textual que
é necessário abandonar, porque: (1) dizer que as coisas es-
tão ditas é admitir o cinismo da burguesia, que pode ser
cínica porque exerce o poder — dimensionando a am-
plitude daquilo contra o que se luta; (2) admitir que o
importante são os discursos (e não autores, obras, textos)

28 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

é recolocá-los onde podem ser atacados, ou seja, em sua


função estratégica.
Na mesma perspectiva, no manuscrito se encontra a
indicação seguinte: “... opor a série ‘texto-não dito-inter-
pretação’ à série ‘fora do texto-ato discursivo-estratégia’.
Isso possibilita discernir posições, alianças, bloqueios,
pontos fortes e fracos. Em suma, fazer uma crítica que
faça parte imediatamente das lutas” (Ibidem, p. 153, nota
a). Tudo está igualmente dito, por conseguinte, no pla-
no metodológico-conceitual, por esse Foucault ensinante
que, qual Nietzsche, quer construir uma história da moral
como estratégia de luta e que, mediante tal proceder, bus-
ca desfazer o que certos discursos fizeram de nós.
Vale acrescentar que algo do que Foucault diz nessa
aula aparecera em sua conversa, de 1972, com Deleuze, no
fragmento seguinte (quem fala é Foucault): “O discurso
da luta não se opõe ao inconsciente: ele se opõe ao segre-
do. [...] Existe uma série de equívocos a respeito do ‘ocul-
to’, do ‘recalcado’, do ‘não dito’ que permite ‘psicanalisar’ a
baixo preço o que deve ser o objeto de uma luta” (Foucault
e Deleuze, 1979, p. 76).

28 de março de 19735
Como não lhe era incomum, Foucault parece que
usará a aula de encerramento à guisa de resumo. Nessa
direção, reativa a pergunta “por que a prisão?”. Sim, pois
era (e ainda é) preciso perguntar por que, dado que ela é
historicamente nova (nasce no começo do século XIX),
teoricamente estranha (indedutível das teorias penais do
5
A última aula de ASP foi publicada no Brasil em 1979, sob o título “O
poder e a norma” (Foucault, 1979a).

verve, 44: 18-61, 2023 29


44
2023

fim do século XVIII) e, ao menos superficialmente, dis-


funcional (não reduz a criminalidade, leva à reincidência
e confere coesão à delinquência). Esses paradoxos se fa-
zem menos incômodos quando ele decide encarar a pri-
são como forma social e, em decorrência, perguntar a que
sistema de poder ela pertence; talvez melhor, indagar em
que sistema de poder funciona. Nem arqueologia nem
epistemologia, tampouco sociologia da delinquência, mas
genealogia de uma forma social se torna seu objetivo.
“Está na hora de falar desse poder” — diz ele.
Possivelmente surpreendendo quem nos lê, suspendemos
momentaneamente a apresentação dessa última aula, para
retomá-la na terceira seção do presente artigo.

quando o comentar fomenta insurgências


Leitores atentos, ao longo deste escrito, devem ter evo-
cado os “ordenadores do discurso” analisados por Foucault
em diferentes ocasiões. Entre eles, destaca-se o comen-
tário — prática que, como professoras, invariavelmente
exercemos. Foucault também a exercia, por mais que pro-
curasse sempre um desvio do esperado. E o esperado seria:
repetir o já dito e/ou interpretá-lo em busca do não-dito.
A apreciação da aula de 28 de fevereiro nos deu acesso,
anteriormente, à retomada genealógica da arqueologia do
comentário, e nos impulsiona agora a procurar modos ou-
tros de comentar, e de comentar Foucault.
Potte-Bonneville (2011) escreveu um artigo decisivo a
esse respeito, ao se interessar pela maneira como Foucault
resenhava. Ao invés de uma postura pretensamente sobe-
rana, as resenhas de Foucault exibiam uma “arte impura”:

30 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

forjavam alianças, compunham vizinhanças e promoviam


ressonâncias. Assim caracteriza Potte-Bonneville essa éti-
ca de leitura: “... não se restringir ao elogio ingênuo de
uma palavra inferiorizada; não se apresentar tampouco
como a autoridade intelectual suscetível de conferir a essa
palavra ainda obscura para si própria sua plena significa-
ção [...]; reinscrever tanto o texto que se lê quanto o que
se escreve no prolongamento comum de uma ruptura na
ordem dos enunciados” (Idem, p. 173).
Nessa perspectiva, aproximamo-nos a seguir de dois
comentadores que, ao contrário de parte significativa dos
leitores de ASP, tramam positividades insurgentes, aten-
do-se singularmente ao dito, em lugar de forjar não-ditos
empalidecedores.
Comecemos por Fréderic Gros. Em um texto datado
de 2010, publicado na revista Pouvoirs — antes da publi-
cação de ASP, portanto —, ele nos convida a escapar da
ilusão produzida pelo título, que remeteria, aparentemen-
te, a uma sociedade intolerante em tempos, os nossos, de
alegada flexibilização. Na sequência, distribui a análise da
prisão no curso por três mecanismos correlacionados: o
“penitenciário” (genealogia religiosa), o “carceral” (funcio-
nalidade política) e o “coercitivo” (pertinência econômica).
Antes disso, porém, adverte que “a grande internação”
focalizada em História da Loucura (1961) teria promovido,
no que tange às análises do poder por parte de Foucault,
certa expectativa de apelo a uma exclusão originária e fun-
dadora. Ao mesmo tempo, o período 1971-1972 corres-
ponde à vigência do GIP, engendrando nova expectativa: a
da denúncia. Quanto aos dois aspectos, ASP só oferecerá,
felizmente, decepções.

verve, 44: 18-61, 2023 31


44
2023

Segundo Foucault (2015, p. 13), a prisão é um analisador6


de estratégias de poder, não um modelo que “representaria” a
sociedade capitalista-burguesa. Não se trata, ou pelo menos
não se trata mais, de ideologia repressiva e/ou de violência
contra a sedição popular. A prisão não é o efeito institucio-
nal de um gesto monótono — suprimir a contestação —,
como fizera pensar Teorias e instituições penais. Cumpre, por
sinal, acrescentar às ressalvas de Gros que, a partir de ASP,
Foucault abandona os conceitos-valise, massivos, relativos
a processos globais — com nomes geralmente terminados
em “ão” — e sai à procura da raridade: a crítica do que até
então fizera alimentar sua pesquisa genealógica no presente
e igualmente no futuro próximo, pois os cursos de 19747,
1975 e 1976 se engajarão em movimento análogo.
Nesse sentido, Gros dá destaque à expressão “táticas pe-
nais” para designar o aprisionamento, dado que existem ou-
tras possíveis, como banir, multar, marcar, que não vieram a se
implantar em definitivo nem a predominar. Assim justifica o
uso da expressão: “Fala-se aqui de ‘táticas penais’ porque não
se trata de fazer com que os procedimentos dependam de um
sistema de representações ou de uma mentalidade, mas de
uma certa maneira, para os grupos sociais, de conduzir, entre
eles, a guerra” (Gros, 2010, p. 7). Ao invés de simbolizar-se
em um brasão unitário, toda sociedade, para Foucault, se en-
contra atravessada por uma relação guerreira. Não a guerra
6
A presença da noção de analisador em Foucault, embora irregular, não é
infrequente — o que favorece pesquisadoras, como nós, próximas tanto da
genealogia foucaultiana quanto da Análise Institucional.

7
Gros nos parece preciso ao ligar certas expectativas quanto à análise
foucaultiana do poder a História da Loucura (1961): já na primeira aula do
curso O poder psiquiátrico (1973-1974), Foucault (2006a) efetua uma análise
crítica de inúmeros aspectos de sua tese doutoral.

32 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

de todos contra todos, na qual esses “todos” são os indivíduos


naturais, como propunha Hobbes, mas a guerra civil, em que
grupos enfrentam grupos ou, melhor dizendo, em que gru-
pos são engendrados.
Cumpre igualmente estar atento, segundo Gros, à de-
nominação atribuída ao criminoso nos textos legais do fim
do século XVIII: “inimigo social”. Através dela, tenta-se
desvincular o crime da tradição, da moral e da religião, as-
sociando-o à ruptura do contrato social. Gros assim reúne
os dois aspectos, ambos vinculados, de forma inambígua, ao
modelo da guerra: de um lado, “... a prisão deve ser compre-
endida como um instrumento tático em uma guerra civil
contínua [...]; de outro lado, um certo número de textos
[...] requalificam o criminoso como inimigo social” (Idem,
p. 8). Mas igualmente previne: “... não liguemos depressa
demais os dois aspectos; caso contrário, veremos na prisão a
resposta ao inimigo social” (Ibidem). Cumpre dizer, quanto
a isso, que Beccaria e Brissot, entre outros, não defendiam
a prisão, e sim “a infâmia, o talião, o trabalho forçado ou a
deportação, os quais se coadunam melhor com uma estra-
tégia de contra-ataque social, pois diversificam as respostas
segundo os tipos de ameaça pública” (Ibidem).
Se, como vimos, a prisão não é uma escolha jurídica,
somos convidados a vê-la como o reinvestimento de velhas
estruturas de enclausuramento parajudiciário, quer reme-
tendo ao procedimento francês das lettres de cachet8, quer

8
O procedimento permite internar pessoas sem julgamento legal, bastando
que o tenente de polícia forneça uma carta com selo real. Pesquisas
documentais de Foucault mostraram que as lettres de cachet foram menos um
dispositivo do absolutismo contra adversários políticos do que uma prática
disseminada entre pessoas comuns contra desafetos. Consultar Foucault e
Farge, 1982.

verve, 44: 18-61, 2023 33


44
2023

ao de sociedades religiosas inglesas, metodistas e quakers9.


De acordo com Gros, as duas vertentes se conjugam no que
Foucault chama de “penitenciário”, isto é, na ideia de um
aprisionamento “que sanciona menos a infração a uma lei
do que a irregularidade de comportamento” (Ibidem, p. 9).
Falta explicar, todavia, como se impôs a evidência “carce-
rária”, que não existia antes e era estranha à cultura judiciária.
Foucault encontra tal explicação nas grandes transformações
econômicas: emergência de um capitalismo de produção
industrial e de generalização da propriedade agrícola. Mas,
como enuncia Gros, “explicar não é compreender” (Ibidem,
p. 10): não se percebe facilmente como “penitenciário” e “car-
cerário” se ligariam à generalização/exclusividade da pena de
prisão, a não ser apelando à reabsorção da mão de obra exce-
dente ou, uma vez mais, à repressão da plebe sediciosa.
Um terceiro elemento, portanto, precisa se agregar à
dupla citada para que a prisão emerja com a necessária
singularidade. Isso ocorrerá ao longo das aulas de ASP me-
diante a introdução dos conceitos de ilegalismo e de “co-
ercitivo”, que, para Gros, correspondem respectivamente
a uma “utilidade social” e a uma “utopia social” (Ibidem).
Sobre os ilegalismos, ele assim discorre: “O apareci-
mento do capitalismo industrial em grande escala supõe a
constituição de estoques, a criação de fábricas agrupando
máquinas caras e a acumulação de produtos manufatura-
dos, ao passo que a extinção progressiva das terras comu-
nais faz com que qualquer terreno apareça como proprie-
dade de alguém” (Ibidem, p. 10). E se certos ilegalismos
9
Grupos privados ficam encarregados do controle da moralidade dos
integrantes de uma comunidade. A princípio, tentavam evitar os rigores
da legislação, em que era frequente a condenação à morte; paulatinamente,
tornaram-se aliados do Estado burguês.

34 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

populares, como a sonegação de impostos, por exemplo,


tinham sido até mesmo apoiados pela burguesia, a partir
do momento em que o proletariado se viu diretamente
confrontado aos bens, tornaram-se inadmissíveis: havia o
risco de que ele se apropriasse das riquezas ou as depre-
dasse. Sobre isso, afirma Gros: “... tratar-se-á, no fundo,
de cassar essa velha tradição do ilegalismo popular, susci-
tando um ilegalismo específico e funcional: o da delinqu-
ência, que servirá simultaneamente como contra-modelo
e meio de infiltração” (Ibidem, p. 11). A prisão, portanto,
constitui o meio delinquente ou, mais precisamente, forja
uma delinquência “útil à classe dominante e própria para
desencorajar qualquer ilegalismo político” (Ibidem).
Soma-se a tudo isso o “coercitivo”, que corresponde às
instituições que enquadram a vida do nascimento à morte:
internato, creche, fábrica, caserna, escola, hospício, hos-
pital. Todas funcionam segundo um mesmo modelo, que
compreende a vigilância contínua dos indivíduos — com
isso, a bem dizer, constituindo-os como indivíduos —,
bem como o exame regular de suas atitudes, sancionado
por um sistema de punições e recompensas. A produção
de um saber normativo, isto é, de um saber que identifi-
ca cada um segundo sua proximidade ou afastamento de
uma norma, é aspecto basilar do coercitivo, continuamen-
te registrado em dossiês e relatórios. Não se deve omitir
que as instituições do “coercitivo” promovem, fundamen-
talmente, uma organização rigorosa do emprego do tem-
po. E, mais ainda: juntamente com as instituições “pesa-
das”, “arquiteturais”, entram em ação dispositivos como a
caderneta de trabalho, as caixas de poupança e as cidades
operárias para normatizar condutas e desencorajar com-
portamentos como o alcoolismo, a instabilidade familiar,

verve, 44: 18-61, 2023 35


44
2023

laboral ou habitacional. Com base no exposto, Gros acres-


centa que “a prisão não mais pode aparecer como símbolo
de um abuso de poder, visto que se assemelha a toda uma
série de instituições paralelas e perfeitamente acatadas so-
cialmente” (Ibidem, p. 12).
Fazendo ressoar as considerações foucaultianas sobre
as ciências humanas, Gros ainda frisa a impossibilida-
de, a partir de então, de haver pesquisas devidas à mera
curiosidade: perguntas relativas a “como estamos”, “o que
fazemos” ou “o que sabemos” despertam “o medo de ser-
mos punidos se a resposta trair um afastamento em rela-
ção a uma norma [...] e mesmo a certeza angustiada, se o
afastamento for demasiado grande, de acabar na prisão”
(Ibidem).
Associando-nos a Foucault e a Gros, transcrevemos
abaixo parte do texto impresso na Carteira de Trabalho
e Previdência Social de uma de nós, emitida em 1971: “A
carteira, pelos lançamentos que recebe, configura a histó-
ria de uma vida. Quem a examinar, logo verá se o portador
é um temperamento aquietado ou versátil; se ama a pro-
fissão escolhida ou ainda não encontrou a própria voca-
ção; se andou de fábrica em fábrica, como uma abelha, ou
permaneceu no mesmo estabelecimento, subindo a escala
profissional. Pode ser um padrão de honra, pode ser uma
advertência”.
Tal texto não demanda interpretação: tudo está
dito. Como ressalta Gros, fazendo ecoar as palavras de
Foucault, o “coercitivo” que gradativamente se implanta
destina-se a “transformar o tempo da vida em força de
trabalho” (Gros, 2010, p. 13.). E, se Marx, em O capital,
mostrou a forma como o capitalismo transforma a for-

36 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

ça de trabalho em força produtiva, Foucault ousa dar um


passo atrás para mostrar como foi engendrada, a partir
do tempo da vida, a própria força de trabalho — trans-
formação que é o objetivo último das instituições coer-
citivas, as quais perseguem qualquer forma de dissipação
ou dispêndio. Para percebê-lo mediante poucas palavras,
convém pedir ajuda ao poeta, evocando Mario Quintana
(2013, s/p): “Dizem os comunistas que a religião é o ópio
do povo; outros dizem que o ópio do povo é precisamente
o comunismo; se pedissem a minha opinião, eu diria que
o ópio do povo é o trabalho”.
Passemos agora ao artigo “A sociedade disciplinar:
genealogia de um conceito”. Em estratégia análoga à de
Gros, Lorenzini (s/d) opta por organizar o texto via um
trio de noções, cada uma delas, no caso, remetendo a um
deslocamento ocorrido entre 1971-1972 (TIP) e 1972-
1973 (ASP).
Assumindo uma posição que tem analogias com a
nossa, Lorenzini (s/d) se queixa do abandono, pelos estu-
diosos de Foucault, dos trabalhos relativos às disciplinas,
quase integralmente substituídos pelos consagrados à bio-
política e à governamentalidade. Presume que essa atitude
corresponderia, de forma pouco nuançada, às proposições
presentes em “Post-scriptum sobre as sociedades de con-
trole”, datado de 1990. Nesse breve texto, Deleuze (1992)
assevera que às sociedades disciplinares se teriam seguido
as sociedades de controle: enquanto nas primeiras não se
cessaria de passar de um meio fechado a outro, nas últimas
o “indivíduo” se faria “divíduo” — mera cifra, mutável a
cada ocasião ou instância de registro. Com isso, modu-
lações constantes se aplicariam, “ao ar livre”, a todos os
aspectos da vida dos seres humanos. Lorenzini (s/d) não

verve, 44: 18-61, 2023 37


44
2023

repudia as perspectivas deleuzianas, mas interroga quanto


a elas, ou quanto a seus efeitos nos leitores, dois aspectos:
o entendimento das sociedades disciplinares como orga-
nizadas em grandes meios fechados e a certeza absoluta
de sua substituição pelas sociedades de controle.
Nesse sentido, ele se propõe a buscar as condições pro-
piciadoras do estudo foucaultiano do poder e da sociedade
disciplinar menos na comparação entre meios fechados e
abertos do que nos deslocamentos ocorridos entre TIP e
ASP; mais especificamente, no manejo diferencial das no-
ções de repressão, exclusão e transgressão.
No curso de 1971-1972, sequer são mencionados o
substantivo disciplina e o adjetivo disciplinar. Com pro-
priedade, Lorenzini (s/d) ali percebe um Foucault que
interroga, por intermédio da análise das instituições ju-
diciárias do século XVII, o nascimento da justiça penal
como sistema repressivo. Em termos tomados a Louis
Althusser, supõe que se poderia ver essa justiça como
Aparelho Repressivo de Estado (ARE), embora Foucault
sublinhe, mesmo em TIP, que os sistemas repressivos por
ele abordados respondem “a intenções estratégicas em
relações de força” (Foucault, 2020 apud Lorenzini, s/d,
p. 2). Apesar dessa ressalva, Teorias e Instituições Penais
chega a desorientar os estudiosos acostumados a ver, em
Foucault, o objetor radical à negatividade do poder. Em
decorrência, Lorenzini (s/d) interroga: que vantagem via
o filósofo em inscrever a justiça penal em uma análise dos
sistemas repressivos? E responde de imediato: a de evitar
que o problema fosse colocado em termos de moral: bem
ou mal; sociológicos: desvio ou integração, e psicológicos:
delinquência ou bom-mocismo. Foucault estenderia, pois,
à negatividade do poder (repressão, aparelho repressivo)

38 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

— ao menos se pensada em termos marxistas — as vanta-


gens que, em ASP, atribui, “até certo momento”, às noções
de exclusão e transgressão.
Segundo Lorenzini (s/d), três instituições constituem
o núcleo da apreciação foucaultiana da prisão em TIP:
uma justiça centralizada, a polícia e o enclausuramento.
O termo “centralizada” sugere uma justiça localizada nas
mãos do rei, destinada não só a reprimir a sedição popular
como a controlar os próprios encarregados do controle; a
polícia seria, nesse caso, uma força repressiva pouco custo-
sa, preventiva e vantajosa quando comparada ao exército;
por fim, o enclausuramento como forma de punição vi-
saria a colocar fora de circuito uma parte da população10.
Lorenzini (s/d) enfatiza ainda a coincidência entre o cur-
so de 1971-1972 e o auge das lutas do GIP, que remetiam
aos embates do povo contra o poder.
No ano seguinte, porém, tudo muda: desde a primeira
lição de ASP, como acentua Lorenzini (s/d), Foucault in-
siste na produtividade do sistema penal, que nada teria de
rotineiro ou centralizado. Tal sistema, ao contrário, produ-
ziria uma gestão diferencial dos ilegalismos, articulada ao
movimento de produção de uma força de trabalho.
Para entender como se realiza tal ruptura entre TIP e
ASP, Lorenzini (s/d) relê a aula de 21 de março de 1973,
quando, ao tratar da (suposta) repressão sexual nos colé-
gios do século XIX, Foucault mostra de que maneira tan-
to se impede (fisicamente) a heterossexualidade como se
mantém a homossexualidade em latência, abrindo espaço
10
Nesse sistema centralizado, tampouco os tribunais e o código penal
constituem exceção. O possível contraste entre essa forma de justiça e uma
“justiça popular” foi problematizado em um debate, de 1972, entre Foucault
e alguns maoístas. Ver Foucault, 1979b.

verve, 44: 18-61, 2023 39


44
2023

permanente para uma intervenção. Mais do que uma nor-


ma interna, forja-se assim algo a ser socialmente difun-
dido, de modo a que a heterossexualidade seja permitida
como recompensa, ao passo que a homossexualidade se
configure, com todas as consequências disso, como mar-
ginal e anormal. Constrói-se, pois, uma “ficção social” que
se faz norma externa e que torna possível o exercício do
poder. Como diz Foucault, “a instituição de sequestração,
em um caso como este, tem por função fabricar o social”
(Foucault, 2015, apud Lorenzini, s/d, p. 4).
Passemos agora à transgressão. Sublinha Lorenzini
(s/d) que em uma entrevista concedida alguns meses an-
tes de TIP, Foucault assim anunciara seu interesse pelo
sistema penal: “Tal é minha preocupação: o problema da
transgressão da lei e da repressão da ilegalidade” (Idem, p.
5). No manuscrito da aula de 1 de março de 1972, por sua
vez, o filósofo sustenta que “se o poder se encontra lesado
pelo crime, o crime é sempre [...] ataque contra o poder
[...]” (Ibidem, p. 6).
Se passarmos a ASP, contudo, veremos, na aula de 7 de
fevereiro, que Foucault traça uma “simetria histórica” entre
a dissidência religiosa do século XVIII, que se propunha
a moralizar a sociedade, e “os movimentos de ‘dissidên-
cia moral’, que, no século XX, na Europa e nos Estados
Unidos, lutam pelo direito ao aborto, à homossexualidade
e à constituição de grupos sexuais não familiares”. Estes
últimos lutam “pela desculpabilização das infrações penais,
tentando [...] desatar o laço entre moral, defesa das relações
de poder próprias à sociedade capitalista e aparelhos de
controle garantidos pelo Estado”. Este trabalho não seria o
mesmo que fazem ‘os não conformistas’, isto é, “aqueles que,
em nome da transgressão, ignoram a lei ou a consideram

40 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

irreal, pois entrar em dissidência moral utilizando a ilegali-


dade como arma [...] significa atacar diretamente a conexão
entre moral, poder capitalista e Estado” (Ibidem).
Adicionando nuances ao exposto, Lorenzini afirma que a
crítica da noção de transgressão opera em dois níveis: de um
lado, para Foucault, existe um “preconceito intelectual” em
pensar que antes de tudo haveria interditos e só depois trans-
gressões, ao passo que “não se pode analisar qualquer coisa
como uma lei e um interdito sem os recolocar no campo real
do ilegalismo no interior do qual funcionam” (Ibidem, p. 6);
de outro lado, a noção de transgressão sugere uma oposição
binária entre lutas e poder, resistências e dominação, quan-
do não há, efetivamente, um dentro e um fora do poder, so-
mente “configurações táticas móveis em que as resistências se
apoiam nas relações de poder procurando inverter seu sen-
tido e o poder se transforma a fim de tentar se apropriar das
práticas de resistência, curvá-las a seus próprios objetivos ou
torná-las ineficazes” (Lorenzini, s/d, p. 6)11.
Na sequência, Lorenzini (s/d) passa a comentar a quá-
drupla crítica que, na última aula de ASP, Foucault endere-
ça aos esquemas hegemônicos de análise do poder. Como
os abordaremos em detalhe na terceira seção deste artigo,
limitamo-nos a citá-los: apropriação, localização, subordi-
nação ao modo de produção em relação à ideologia.
Reunindo o que desde o começo de seu escrito anali-
sara por meio de contrastes, Lorenzini conclui citando o
curso de 1972-1973: “... é graças aos mecanismos de poder
que os hábitos são formados, por um jogo de coerções e de
punições, de aprendizagens e castigos, e que os indivíduos
11
A partir de ASP, Foucault repudiou em definitivo esses binarismos, quer
inserindo as resistências nas relações de poder, quer dizendo agonísticas, e
não antagônicas, tais relações.

verve, 44: 18-61, 2023 41


44
2023

são fixados ao aparelho de produção. Assim, o poder


disciplinar e notadamente o poder de sequestração e de
internamento fabricam a norma, isto é, ‘um tecido de há-
bitos pelo qual se define a pertença social dos indivíduos a
uma sociedade’” (Foucault, 2015, apud Lorenzini, s/d, p.7).
Retomando seu mote inicial, Lorenzini (s/d, p.7) en-
fatiza que embora a prisão tenha alguma importância em
ASP, a definição de poder disciplinar não lhe é redutível;
tampouco essa modalidade de poder e o curso que o in-
troduz devem ser remetidos exclusivamente ao estudo dos
meios fechados que caracterizam (ou caracterizaram) nossa
sociedade. Arriscando-se a algum anacronismo, antecipa
Vigiar e Punir (1975), livro no qual é explicitada a distin-
ção entre disciplina-bloco e disciplina-mecanismo. Pois, con-
soante Foucault, só se pode falar de sociedade disciplinar
“nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie
de quarentena social, até o mecanismo indefinidamente ge-
neralizável do panoptismo” (Foucault, 2004, p. 232, apud
Lorenzini, s/d, p. 7). Com efeito, no modo foucaultiano de
analisar os meios de enclausuramento, seus mecanismos se
difundem ao exterior e dão forma à sociedade por inteiro12.

foucault, deleuze, foucault - 28 de março de 1973 e


além
Após nossa aventura “pirotécnica”13 por aulas de ASP e
dos planos de consistência fornecidos por dois comenta-

12
A sequência dentro-fora seria assim tão evidente em Foucault? Seria tão
nítida, ademais, a distinção dentro-fora?

13
“Eu sou um pirotécnico” é o título de uma entrevista concedida por
Foucault (2006, pp. 67-100), em 1975, a Jean-Paul Droit.

42 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

dores, retomamos a aula de 28 de março de 1973, aban-


donada exatamente quando Foucault dizia: “Está na hora
de falar desse poder”. Ora, comentadores como os que nos
incomodaram, e igualmente a Lorenzini, descartariam
essa última aula mesmo antes de lê-la14. Resmungariam,
talvez: “Passemos ao atual estado da arte, pois Foucault
morreu há quase 40 anos!”.
Talvez porque, a cada dois anos, convivemos com um
grupo de foucaultianos(as) nos Colóquios Internacionais.
Não parece ter decorrido tempo assim tão longo, não
exatamente desde a morte de Foucault, mas desde que, em
outro 28 de março (o de 1984), ele pronunciou suas últi-
mas palavras em cursos do Collège de France: “Mas já está
tarde demais. Então, obrigada.” (Foucault, 2011, p. 297).
A surpresa de que vamos falar na presente seção, en-
tretanto, não remete a efemérides — a expressão “tarde
demais” —, sabendo-se do materialismo de Foucault,
provavelmente tem mais a ver com os ponteiros do re-
lógio do que com premonições de adeus. A aludida sur-
presa remete à inquietação que nos assaltou quando, pela
primeira vez, lemos a última aula de A sociedade punitiva.
Não é impossível que já tivéssemos folheado “O poder e a
norma”, que incluía seus pontos primordiais, mas, naquele
tempo, líamos Foucault de forma mais descompromissada
do que hoje, e possivelmente mais próxima daquela como
ele desejava ser lido. E se a pirotecnia não se perdeu com-

14
Foucault enfatiza serem os “textos nunca lidos” mais importantes nas
lutas discursivas do que qualquer “não-dito”. Ao definir genealogia no curso
Em defesa da sociedade (1976), situa seu gosto por esse nunca lido como
“maçonaria da erudição inútil” (Foucault, 1999, p. 7). Avaliamos que ela seria
bem útil, hoje, no que tange à relação dos comentadores com o próprio
Foucault.

verve, 44: 18-61, 2023 43


44
2023

pletamente, compromissos acadêmicos exigem, hoje, uma


condução mais regrada — quase impossível, reconhece-
mos, ao lidar com explosivos.
Mas, afinal, o que tanto nos surpreendeu? Sempre nos
agradou a exposição, na pena de Gilles Deleuze, dos pos-
tulados relativos ao poder que Foucault teria convidado
a deixar de lado, publicada inicialmente em um artigo
de Critique, datado de 1975, sob o título “Escritor não:
um novo cartógrafo”, e retomada, com poucas alterações,
no segundo capítulo — “Um novo cartógrafo (Vigiar e
punir)” —, do livro lançado em 1986 (Deleuze, 1988).
Durante bom tempo, pensamos que Deleuze fora capaz
de explicitar melhor do que o próprio Foucault as con-
cepções do último. Somente mais tarde, quando da edi-
ção de A sociedade punitiva, tivemos acesso à última aula
e notamos que a apresentação deleuziana apoiava-se, na
maior parte, no que Foucault então dissera. Isso em nada
desmerece Deleuze — seu estilo, ao falar em “recusa de
postulados” e ao ampliar seu escopo, talvez torne mais
acurada a perspectiva foucaultiana —, porém nos poupa
de afirmações fundadas no desconhecimento de séries
discursivas. Aqueles postulados rejeitados e substituídos
por outra coisa — perturbadora, crítica, prático-política
— fizeram vislumbrar, até certo momento, somente a ge-
nialidade e generosidade de Deleuze. Mas isso iria mudar
e, para entender por que, ou pelo menos como, voltemos a
28 de março de 1973.
Ao invés de retomar o que apresentara ao longo do
curso, Foucault discorre sobre seu (na época recente) dis-
tanciamento de quatro tipos de esquemas teóricos predo-
minantes nas abordagens do poder, inclusive no campo da
esquerda. Hoje facilmente diagnosticáveis — o que não

44 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

era o caso, em 1973 —, esses esquemas, já rapidamente


citados aqui, são: (1) o poder como apropriação; (2) como
dotado de uma localização; (3) como subordinado a uma
realidade mais básica; e (4) como dotado de efeitos ideoló-
gicos. A esses esquemas, tão hegemônicos quanto surrados,
Foucault contrapõe suas então novas perspectivas, quais
sejam: (1) o poder como exercício, relação belicosa e arris-
cada, sem garantias de manutenção; (2) como algo difuso,
disperso, não situado exclusiva nem prioritariamente no
aparato estatal; (3) como constitutivo de realidades, indo
muito além da mera reprodução de uma infraestrutura já
dada; (4) como algo não simplesmente mudo na violência
e loquaz na ideologia15, mas locus de formação de saberes
que possibilitam seu próprio exercício.
Sem reproduzir a farta exemplificação apresentada,
sublinhamos a ênfase posta por Foucault (2015, p. 211)
no processo de sequestração — o tempo da vida submeti-
do às necessidades da produção e a seus ritmos —, assim
caracterizado: “Um sistema de poder como o da seques-
tração vai bem além da garantia ao modo de produção; é
constitutivo dele. [...] O problema da sociedade industrial
é fazer de modo que o tempo dos indivíduos, comprado
pelo salário, possa ser integrado no aparato de produção
na forma da força de trabalho”. Cônscio de que toca em
pontos sensíveis para a militância marxista, ele adenda: “...
se é verdade que a estrutura econômica, caracterizada pela
acumulação de capital, tem a propriedade de transformar
a força de trabalho dos indivíduos em força produtiva, a

15
Fala-se de um acerto de contas, em ASP, de Foucault com Louis Althusser.
Mas também é necessário frisar que a amizade entre eles foi preservada,
mesmo quando do opróbrio de Althusser devido ao suposto assassinato da
esposa, Helène, e consequente internação psiquiátrica. Ver Eribon, 1996.

verve, 44: 18-61, 2023 45


44
2023

estrutura de poder que assume a forma da sequestração


tem o objetivo de transformar, antes desse estágio, o tem-
po da vida em força de trabalho” (Idem, p. 211).
A despeito das ressalvas feitas a qualquer leitura eco-
nomicista, insistindo na correlação entre economia e po-
lítica, a aula em apreço tem um tom “marxizante”. No
entanto, reativando afinidades batailleanas — das quais
se aproximara na primeira aula de ASP, embora, ali, para
rejeitar a ideia de transgressão —, Foucault afirma: “É fal-
so dizer [...] que a existência concreta do ser humano é o
trabalho. O tempo e a vida do homem não são por natu-
reza trabalho; são prazer, descontinuidade, festa, repouso,
necessidade, instantes, acaso, violência etc. Ora, toda essa
energia explosiva precisa ser transformada em força de
trabalho contínua e continuamente oferecida no mercado”
(Ibidem, p. 211).
Por mais que Foucault seja notável por deslocamentos e
rupturas, tais considerações fazem evocar palavras datadas
de quatro anos antes. Quando da candidatura de Foucault
ao Collège de France — a candidatura, melhor dizendo,
era da cátedra História dos Sistemas de Pensamento —,
ele e Jules Vuillemin tiveram vários encontros preparató-
rios. O fragmento transcrito a seguir decorre dessas con-
versas e exibe a coerência foucaultiana no que tange às
perspectivas marxistas: “A história dos sistemas de pensa-
mento não é [...] a história do homem ou dos homens que
os pensam. Afinal, é porque se mantém nos termos dessa
última alternativa que o conflito entre materialismo e es-
piritualismo opõe irmãos inimigos, [...] divididos quanto
à mesma questão: como sujeitos dos pensamentos esco-
lhem-se indivíduos ou grupos, mas sempre se escolhem
sujeitos. Quem é tentado a duvidar que releia esta palavra

46 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

de Marx, [...], distinguindo o arquiteto da abelha16, [...]


pois ele constrói a casa primeiro na cabeça. O abandono
do dualismo e a constituição de uma epistemologia não
cartesiana exigem mais [...]: eliminar o sujeito conservan-
do os pensamentos e tentar construir uma história sem
natureza humana” (apud Eribon, 1990, p. 202).
A última aula de ASP contém ainda mais páginas dis-
ruptivas, embora Foucault (2015, p. 215) pareça apenas
reafirmar algo já feito, ao dizer: “Aonde eu queria chegar?
Gostaria de fazer a análise de certo sistema de poder: o
poder disciplinar”. Além de enfatizar o adjetivo discipli-
nar em lugar de punitiva — mostrando-se, como quase
sempre, exímio em propor títulos enganadores17 —, ele
associa, então, o exercício do poder disciplinar ao ato de
levar alguém a adquirir hábitos: “Neste ano eu quis fazer
[...] a arqueologia dos aparatos de poder que servem de
base à aquisição dos hábitos como normas sociais” (Idem,
p. 215). É o bastante para que dê início a uma singular
discussão, ao que saibamos nunca retomada, sobre a noção
de hábito em David Hume. Foucault assevera que, como é
típico da filosofia política do século XVIII, tal noção teria
uma função essencialmente crítica. Trata-se, com efeito, de
indagar qual seria o fundamento daquilo que se apresen-
ta como instituição ou autoridade: tudo não seria, afinal
de contas, apenas hábito? Segundo Foucault, em Hume,

16
Como se vê, a abelha é desqualificada seja por Marx, seja por membros
do aparato ditatorial brasileiro – rever texto da carteira de trabalho –, por
não se submeter à equivalência entre vida e trabalho.

17
As vicissitudes associadas a esses títulos enganadores estendem-se de
problemas editoriais aos prazos estabelecidos pelo Collège de France para
o anúncio de futuros cursos.

verve, 44: 18-61, 2023 47


44
2023

de um lado, o hábito é sempre um resultado, veiculando,


portanto, algo de irredutivelmente artificial; de outro lado,
jamais está fundamentado em qualquer transcendência. O
hábito “vem da natureza, pois há na natureza humana o
hábito de adquirir hábitos. O hábito é ao mesmo tempo
natureza e artifício” — insiste Foucault (Ibidem, pp. 215-
216), apoiado no Tratado da natureza humana (1739).
Mas, se no século XVIII e em Hume particularmente,
o hábito tem função crítica — afastar as obrigações ba-
seadas em alguma transcendência para substituí-las pela
simples obrigação contratual —, desde o século XIX ele
passa a ser usado de maneira prescritiva: “...hábito é aquilo
a que as pessoas precisam submeter-se” (Ibidem, p. 216).
Em lugar de abrir espaço para o contrato, criticando a tra-
dição, o hábito se torna complementar ao contrato. E se o
contrato é o modo como os indivíduos estão vinculados à
propriedade, o hábito, agora, é “aquilo por cujo intermédio
aqueles que não possuem serão vinculados a um aparato
que eles não possuem” (Ibidem, p. 216).
Mediante tal perspectiva, a sequestração pode emergir
não só fixando os indivíduos a tal aparato — o da produção
— como “formando hábitos por meio de um conjunto de
prescrições e punições, aprendizados e castigos” (Ibidem,
pp. 216-217). Utilizando a noção de hábito, Foucault che-
ga a uma caracterização original da sociedade disciplinar:
a sequestração fabrica um tecido de hábitos, ou seja, algo
como uma norma. Logo, em lugar de monstros (a excluir),
ela tem por função “produzir normais” (Ibidem, p. 217).
Encerrando a aula (e o curso), o filósofo ainda diz al-
gumas palavras sobre o visível e o enunciável: até o século
XVII, marcas e cerimônias designam o soberano, ao passo

48 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

que a narrativa histórica, de tonalidade heroica, reatualiza


o passado para fortalecer seu poder; já no século XIX, o
poder não mais se efetua mediante a forma visível e ritual
da soberania, mas a do hábito, “imposto a alguns, ou a to-
dos, mas para que, de início e fundamentalmente, alguns
se curvem obrigatoriamente a ele” (Ibidem, p. 217).
Por intermédio da norma, o poder se oculta enquanto tal
e se apresenta como “sociedade” — consideração que abre
caminho para a elaboração de uma breve genealogia do sa-
ber-poder sociológico. Foucault ressalta que o papel da ce-
rimônia do poder, do século XIX em diante, será assumido
pelo que se costuma chamar de consciência social — locus, para
Durkheim, de uma nova disciplina acadêmica. Recorrendo a
O suicídio (1897), Foucault faculta perceber que Durkheim
entende o social, em oposição ao político e ao econômico,
como “sistema de disciplinas e coerções” (Ibidem, p. 218).
Inapelavelmente crítico do saber sociológico — nunca deixa-
rá de desmentir seu pertencimento a esse domínio —, acres-
centa: “A sociedade, como disse Durkheim, é o sistema das
disciplinas; mas o que ele não disse é que esse sistema deve
poder ser analisado no interior das estratégias próprias a um
sistema de poder” (Ibidem, p. 218).
Não apenas a sociologia se constituirá como um dis-
curso que, em lugar de defender uma história heroica,
acompanhará a nova forma de exercício do poder. Vários
outros discursos sustentarão a norma, descrevendo-a, fun-
damentando-a, tornando-a prescritível e gradativamente
persuasiva: trata-se do “discurso normatizador das ciên-
cias humanas”18 (Ibidem).
18
Foucault retoma assim, em versão genealógica, o que dissera em As
palavras e as coisas (1966) sobre a relevância da noção de norma para as
ciências humanas.

verve, 44: 18-61, 2023 49


44
2023

Poderíamos estender essa genealogia das ciências hu-


manas a futuros cursos19, mas outra direção nos soa prefe-
rível. Como dissemos, foi com espanto que descobrimos,
no Foucault de ASP, o que julgávamos ser uma invenção
algo mais tardia de Deleuze. Ninguém se surpreende ao
ver Deleuze “devorar” os filósofos dos quais se aproxima;
há que destacar, no entanto, que também Foucault “devo-
ra” Deleuze. Na aula de 28 de março de 1973, cuja apre-
sentação estamos encerrando, a referência a Hume dificil-
mente é um mero acaso: é possível que Deleuze estivesse
presente ao Collège de France20 e também que seu livro
Empirismo e subjetividade (1963) tenha sido um dos su-
portes para a apreciação foucaultiana do hábito. Além de
um Foucault-de-Deleuze, é bem provável que exista um
(menos estudado) Deleuze-de-Foucault.

aliança nômade, equipamento do presente


Leitores que nos acompanham podem estar insatisfei-
tos com o pouco que dissemos das relações entre Foucault
e Deleuze. Outra queixa pode estar ligada à ausência, até
o momento, de uma apreciação do valor de A sociedade
punitiva para uma discussão de nossa atualidade. Os dois
aspectos estão, decerto, interligados.

19
Entre eles, salienta-se Segurança, território, população (1978), onde “o
homem”, estudado arqueologicamente em As palavras e as coisas, é posto
em correspondência genealógica com a ideia de população e a biopolítica
(Foucault, 2008, p. 103).

20
O seminário de 1973 foi dedicado ao caso Pierre Rivière. Deleuze
participou dos encontros, embora não tenha contribuição escrita no dossiê
resultante, publicado no mesmo ano (Foucault,1988).

50 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

Dialogando com esses leitores, ofereceremos algumas


réplicas, pois, por mais que imaginárias, nem por isso
as queixas são falsas. Quanto à primeira, seremos bre-
ves: tudo o que desenvolvemos no presente artigo pro-
cura mostra o quanto ASP é irredutível às leituras a que
certos comentadores possam ter sido conduzidos por uma
(apressada?) leitura do pós-escrito deleuziano.
Foucault e Deleuze, até certo momento, foram grandes
aliados tanto na produção filosófica como na militância
— elementos para eles inseparáveis, frise-se, desde que
se leve em conta o caráter ético-epistemológico de suas
produções, exercidas como “óculos dirigidos para fora”
(Foucault e Deleuze, 1979, p. 71) face aos desafios po-
líticos dos anos 1960/1970. Em certo ponto do tempo,
afastaram-se — as explicações são muitas —, o que não
minimiza a relevância dessa amizade filosófica.
É possível citar — fragmentariamente, como prefe-
rimos — alguns explosivos deleuze-foucaultianos (ou o
oposto): Deleuze dizendo, ao longo de uma conversa, que
Foucault nos ensinou a “indignidade de falar pelos outros”
(Idem, p.70); uma pouco advertida nota de rodapé na
qual Foucault (2004, p. 57), pouco afeito a citações, afir-
ma lhe ser “impossível medir por referências ou citações
o quanto este livro21 deve a Gilles Deleuze e ao traba-
lho feito por ele com Felix Guattari”; certa declaração de
Deleuze (2008, p. 262) — “Os antigos prisioneiros, como
os prisioneiros atuais, pararam de ter culpa e vergonha”
—, datada de dezembro de 1972, momento em que o
GIP está para se encerrar; os confrontos de Foucault, no
Brasil de 1973, com alguns psicanalistas, entre eles Hélio
Pellegrino, devidos aos elogios rasgados que fizera a O
21
O livro é Vigiar e Punir.

verve, 44: 18-61, 2023 51


44
2023

Anti-Édipo (Foucault, 2013b, pp. 126-131); uma entrevis-


ta mais tardia (1986) de Deleuze, concedida ao periódico
History of the Present, na qual, indagado sobre a decepção
do amigo com os rumos tomados pelo movimento dos
prisioneiros, afirma: “Acredito que Foucault reteve apenas
o fato de que havia perdido; ele não viu o que tinha ga-
nho. [...] Agora há um tipo de enunciado sobre a prisão
que é sustentado normalmente pelos prisioneiros ou pelos
não prisioneiros, e que antes era inimaginável.” (Deleuze,
2016, pp. 290-296).
Em contraste com tantos fragmentos, encerramos esta
réplica à exigência de maior exploração das relações en-
tre Foucault e Deleuze com o auxílio de um comentador,
no caso brasileiro. A leitura de ASP conduz Leon Farhi
Neto, ao modo de contraconduta, a uma valorização do
nomadismo intelectual. Em face dos pedidos, sempre frus-
trados, de que o pensamento de Foucault nos oriente nas
lutas políticas, ele provoca: “Certamente Foucault não é
um orientador, mas, digamos, um ‘oriental’. Alguém que
observa as luzes supostamente límpidas das estrelas atra-
vés de nuvens propositalmente difratoras”. (Farhi Neto,
2018, p. 250). Para Farhi Neto, o eventual desconforto
promovido pela desorientação possibilita estratégias ou-
tras de pensamento, o que envolve “uma atitude não só de
conhecimento, mas também ética: precisamos superar o
desconforto com a desorientação de um pensamento que
se coloca constantemente fora de si, pela coragem da ex-
perimentação”. (Idem, p. 250).
Reafirmamos, nessa direção, o quão desejável é a ausên-
cia de teoria do poder em Foucault, ausência que lhe per-
mite, e também a nós, a cada passo, desfazer-se/desfazer-
-nos de mantos metodológico-conceituais aparentemente

52 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

protetores, mas em verdade fundados naquela qualidade


moral tão bem analisada no curso de 1972-1973: ter o
tempo da vida transformado em força de trabalho. Sendo
o nomadismo moral “aquele passeio do corpo por lugares
e disposições que não são o lugar e a disposição do corpo
fixado ao trabalho na usina”, a denúncia burguesa do mes-
mo é subtração da liberdade; melhor dizendo, subtração
da ousadia de dispor daquela “energia explosiva e perigo-
sa avessa ao trabalho obediente e servil” (Ibidem, p. 250).
Em ressonância conosco, Farih Neto lança mão de uma
fecunda analogia, apta a reunir, uma vez mais, Foucault e
Deleuze: “Na denúncia burguesa do nomadismo moral, a
liberdade mesma se torna imoral [...]; no nomadismo inte-
lectual, é o próprio pensamento que é considerado fora de
si” (Ibidem, p. 251).
Embora as considerações anteriores já componham,
em parte, a réplica à segunda objeção — a que interroga o
valor de ASP em nosso presente —, queremos prolongá-la.
Para tanto, não é preciso afastar-se demasiado, no tempo,
desse curso. Porque já em 1976 Foucault é convidado a
pronunciar uma conferência22, em Montreal, como parte
de uma Semana do Prisioneiro promovida pelo Instituto
dos Direitos dos Detentos. Nela se anuncia o “fracasso da
prisão” e se exaltam “alternativas”.
Confrontado com a expressão “alternativas à prisão”,
Foucault (2022b, p. 14) afirma não saber se responde “por
22
Uma primeira versão – transcrição sem proveniência definida – foi
editada na revista Actes. Em 1993, Jean-Paul Brodeur, criminologista da
Universidade de Montreal, descobriu a gravação no Centro Internacional
de Criminologia Comparada, transcreveu-a e a publicou em um número
temático de Criminologie (vol. 26, nr. 1). Em 2020, reunida a entrevistas,
a conferência foi publicada pela Editora da Universidade de Montreal,
tornando-se disponível em português dois anos depois (Foucault, 2022a).

verve, 44: 18-61, 2023 53


44
2023

um primeiro escrúpulo, por uma primeira dúvida ou por


uma primeira gargalhada”. E logo expõe, na forma de de-
safio, os motivos para tanto: “...e se não quisermos ser pu-
nidos por eles, ou por essas razões, e se simplesmente não
quisermos ser punidos?” (Idem).
Corremos voluntariamente o risco de praticar um ana-
cronismo ao sublinhar a semelhança entre a forma desse
repto e parte da conferência que Foucault pronunciará em
1978 na Sociedade Francesa de Filosofia. Nesta, intitula-
da “O que é a crítica?”, ele declara que, embora lhe pareça
impossível escapar integralmente a ser, de algum modo,
governado, a crítica deve ser preservada mediante a se-
guinte problematização: “como não ser governado assim,
por isso, em nome desses princípios, em vista de tais ob-
jetivos e por meio desses procedimentos, não desse modo,
não para isso, não por eles?” (Foucault, s/d, p.15).
Em 1976, como fará em 1978, Foucault opta por
permanecer com o problema23 — “E se afinal não fôs-
semos capazes de saber realmente o que significa punir?”
(Foucault, 2022b, p. 14) — a se envolver em declarações
peremptórias sobre a redução do prisional ou a engajar-se
na defesa de alguma alternativa “abolicionista”24.

23
No sentido adotado por Haraway, 2016.

24
Essas alternativas, à época, incluíam: a criação de estabelecimentos-
modelo; a redução de suas dimensões, facultando o controle das penas pelos
próprios prisioneiros; o sursis em penas curtas, com liberdade condicional;
a liberdade vigiada com utilização de dispositivos eletrônicos. Não sendo
Foucault partidário de nenhuma delas, afirma-se que ele não seria um
abolicionista (Ferri, 2022, pp. 74-75.). Para um debate crítico permanente
relativo às formas que o abolicionismo pode assumir, consultar a coleção da
revista Verve, do Nu-Sol.

54 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

Para tanto, por vezes, lhe basta se reler. Reativando ASP,


ele aponta, em todas as (alegadas) “alternativas” à prisão, a
presença de três conhecidos elementos: o trabalho como ins-
trumento, a família como agente e a autopunição como prin-
cípio (idem, pp. 19-28). Da cela individual (nos panópticos
de todos os credos) ao Conselho de Detentos (que adminis-
tra autonomamente punições e recompensas25), trata-se, para
Foucault, da mesma falsa questão. Pois eis o que é invaria-
velmente proposto: “...admitindo-se que vocês serão punidos
por tal pessoa ou por tal coisa, como acham que esse sistema
deve ser posto em prática? Essa prática será melhor com a
prisão ou com outro tipo de punição?” (Ibidem, p. 14).
“Segredo de polichinelo” a não ser desvendado (Lafleur,
2022, p. 68), a aventada redução, ou eventual extinção dos
estabelecimentos prisionais não parece voltada a abalar a
forma-prisão. Tal forma é um modo de gerir ilegalismos
que, apenas três anos depois de ASP, já parece dissemi-
nada por uma miríade de organizações e dispositivos,
levando-nos a subscrever as quatro “proposições táticas”
então apresentadas por Foucault (2022b, pp. 48-51): (1)
não é ruim, por si só, fazer a prisão regredir, desde que
isso não seja encarado como imediatamente revolucioná-
rio, contestatário ou progressista26; (2) uma crítica à prisão

25 Comparando penas que excluem (prisão) a penas que incluem (medidas


a céu aberto), Ferri (2022, p. 82-83) vê as primeiras como ablativas e as
últimas como oblativas; melhor dizendo, as penas inclusivas “acarretam
a adesão e mesmo a participação do indivíduo na boa execução da sua
condenação”.

26
Foucault considera, inclusive, que isso pode não configurar um incômodo
para o capitalismo contemporâneo. Relembrando os “rapazes corajosos”
(Foucault, 2022a, p. 46) do GIP – uma delinquência ainda forjada pela
prisão tradicional –, supõe que dificilmente estariam aptos a responder por
tráficos internacionais de armas, drogas, dinheiro etc.

verve, 44: 18-61, 2023 55


44
2023

que não desconfie da disseminação dos mecanismos pró-


prios a ela corre o risco de ser politicamente nociva; (3) a
teoria penal, a sociologia e/ou a psicologia do crime não
servem para abordar o problema da prisão, que remete a
uma “economia política dos ilegalismos”; (4) o essencial,
no (desejável) sonho de outra sociedade, não é imaginar
um modo de punir mais brando, aceitável ou eficaz, mas
indagar: “podemos realmente conceber uma sociedade em
que o poder não precise de ilegalismos?” (Idem, p. 51).
Para nada concluir, pois jamais se encontrará em
Foucault teoria e método aplicáveis a qualquer tempo e
situação, reproduzimos a última frase da conferência de
1976, pois nela se propaga o singular equipamento ofe-
recido, em A Sociedade Punitiva, para enfrentar as infi-
delidades do meio vital, social e político do presente: “O
problema não é o amor das pessoas pela ilegalidade, o pro-
blema é a necessidade que o poder pode ter de possuir os
ilegalismos, de controlar esses ilegalismos e de exercer seu
poder por meio desses ilegalismos” (Ibidem, p. 51).

Referências bibliográficas
Becker, Howard. Métodos de pesquisa em ciências sociais.
Tradução de Marco Estevão e Renato Aguiar. São Paulo,
Hucitec, 1994.
Chartier, Roger. “O poder, o sujeito, a verdade. Foucault
leitor de Foucault”. In: À beira da falésia: a história entre
incertezas e inquietudes. Tradução de Patrícia Chittoni
Ramos. Porto Alegre, Ed. da UFRGS, 2002.
Deleuze, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna
Martins. São Paulo, Brasiliense, 1988.

56 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

________. “Post-scriptum sobre as sociedades de con-


trole”. In: Deleuze, Gilles & Parnet, Claire. Conversações.
Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo, Editora 34,
1992, pp. 219-226.
________. “Aquilo que os prisioneiros esperam de nós”.
In: A ilha deserta e outros textos. Tradução de Luiz B. L.
Orlandi. São Paulo, Iluminuras, 2008, pp. 261-263.
________. “Foucault e as prisões”. In: Dois regimes de lou-
cos – textos e entrevistas. Tradução de Guilherme Ivo. São
Paulo, Editora 34, 2016, pp. 289-298.
Eribon, Didier. Michel Foucault, uma biografia. Tradução
de Hildegard. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
________. Michel Foucault e seus contemporâneos. Tradução
de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996.
Farhi Neto, Leon. “Foucault e o nomadismo intelectual”.
In: Rocha, Mauricio et al.(orgs.) Reinvenções de Foucault.
Rio de Janeiro, Lamparina, 2018, pp. 242-251.
Ferri, Tony. “Casa sob vigilância”. In: Foucault, Michel.
“Alternativas” à prisão. Michel Foucault: um encontro
com Jean-Paul Brodeur. Tradução de Maria Ferreira.
Petrópolis, Vozes, 2022, pp. 71-107.
Foucault, Michel. “O poder e a norma”. In: Katz, Chaim
S. (org.) Psicanálise, poder e desejo. Tradução de Chaim
Samuel Katz e Paulo Viana Vidal. Rio de Janeiro,
IBRAPSI, 1979a.
________. “Sobre a justiça popular”. In: Microfísica do po-
der. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal,
1979b, pp. 39-68.
________. História da sexualidade 2 – o uso dos prazeres.
Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio
de Janeiro, Graal, 1984.

verve, 44: 18-61, 2023 57


44
2023

________. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha


irmã e meu irmão. Tradução de Denize Lezan de Almeida.
Rio de Janeiro, Graal, 1988.
________. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga
de Almeida Sampaio. São Paulo, Loyola, 1996.
________. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria
Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
________. “Da arqueologia à dinástica”. In: Ditos e Escritos
IV. Estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lúcia
Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
2003a.
________ . “Diálogos sobre o poder”. In: Ditos e Escritos IV.
Estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lúcia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003b.
________. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis, Vozes, 2004.
________. O poder psiquiátrico. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2006a.
________. “Eu sou um pirotécnico”. In: Michel Foucault –
entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes
Carneiro. São Paulo, Graal, 2006b, pp. 67-100.
________. Segurança, território, população. Tradução de
Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
________. “Eu capto o intolerável”. In: Ditos e Escritos
VI. Repensar a política. Tradução de Ana Lúcia Paranhos
Pessoa. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010, pp.
31-33.
________. A coragem da verdade. Tradução de Marcos
Marcionilo. São Paulo, Martins Fontes, 2011.
________. La société punitive. Paris, EHESS/Gallimard/
Seuil, 2013a.

58 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

________. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de


Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim
Morais. Rio de Janeiro, Nau, 2013b.
________. ”O discurso de Toul”. In: Ditos e Escritos X –
Filosofia, diagnóstico do presente e verdade. Rio de Janeiro,
Tradução de Abner Chiquieri. Forense Universitária,
2014, pp. 76-78.
________. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone C.
Benedetti. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2015.
________. Teorias e instituições penais. Tradução de
Rosemary C. Abilio. São Paulo, WMF Martins Fontes,
2020.
________. “Alternativas” à prisão. Michel Foucault: um
encontro com Jean-Paul Brodeur. Tradução de Maria
Ferreira. Petrópolis, Vozes, 2022a.
________. “Disseminação ou redução do controle so-
cial”. In: Foucault, Michel. “Alternativas” à prisão. Michel
Foucault: um encontro com Jean-Paul Brodeur. Tradução
de Maria Ferreira. Petrópolis, Vozes, 2022b, pp. 13-51.
________. “O que é a crítica?”. In: Conferência proferida
na Sociedade Francesa de Filosofia, em 27 de maio de
1978. Tradução de Gabriela Lafetá Borges. Impressão sem
fins editoriais, lucrativos ou comerciais. Rio de Janeiro,
LUG editora, s/d.
Foucault, Michel e Deleuze, Gilles. “Os intelectuais e
o poder”. In: Microfísica do poder. Tradução de Roberto
Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 69-78.
Foucault, Michel e Farge, Arlette. Le désordre des famil-
les: lettres de cachet des archives de la Bastille. Paris,
Gallimard, Julliard, 1982.

verve, 44: 18-61, 2023 59


44
2023

Gros, Fréderic. “Foucault et la société punitive”. In:


Pouvoirs, 135, nov. 2010, pp. 4-15. Disponível em: https://
revue-pouvoirs.fr/Foucault-et-la-societe-punitive/
Haraway, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no
Chthuluceno. Tradução de Ana Luiza Braga. São Paulo,
n-1, 2023.
Harcourt, Bernard. “Situação do curso”. In: Foucault,
Michel. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone C.
Benedetti. São Paulo, Martins Fontes, 2015, pp. 241-281.
Lafleur, Sylvain. “Pensar nossa atualidade penal com
Foucault”. In: Foucault, Michel. “Alternativas” à prisão.
Michel Foucault: um encontro com Jean-Paul Brodeur.
Tradução de Maria Ferreira. Petrópolis, Vozes, 2022, pp.
53-69.
Lorenzini, Daniele. “La société disciplinaire: généalo-
gie d’un concept”. Universidade Católica de Louvain.
Disponível em: https://dial.uclouvain.be/pr/boreal/
object/boreal:188934/datastream/PDF_01/view
Portelli, Alessandro. “O que faz a História Oral diferente”.
In: Projeto História, nr. 14. Tradução de Maria Therezinha
Janine Ribeiro. São Paulo, Puc,1997, pp. 25-39.
Potte-Bonneville, Mathieu. “L’écriture du compte rendu:
um art impur?”. In: Artières, Philippe et al. (orgs.) Michel
Foucault. Paris, Éditions de l’Herne, 2011, pp. 169-174.
Quintana, Mario. Caderno H. Rio de Janeiro, Objetiva,
2013, recurso eletrônico.
Veyne, Paul. “Foucault revoluciona a história”. In: Como
se escreve a história. Tradução de Alda Baltar e Maria
Auxiliadora Kneipp. Brasília, Editora da UNB, 1982,
pp.149-181.

60 verve, 44: 18-61, 2023


verve
o curso a sociedade punitiva, um bibelô raro

Resumo:
A sociedade punitiva, curso de Michel Foucault no Collège de
France, é abordado como acontecimento, no intuito de fortalecer
suas ressonâncias no presente.
Palavras-chave: oralidade em Foucault, comentadores de
Foucault, inflexões metodológico-conceituais, Deleuze e
Foucault.

Abstract:
The punitive society, Michel Foucault’s lectures at the Collège
de France, is approached as an event, in order to strengthen its
resonances in the present.
Keywords: orality in Foucault, Foucault’s commentators,
methodological-conceptual inflections, Deleuze and Foucault.

The punitive society course, a rare trinket, Heliana de


Barros Conde Rodrigues & Rosimeri de Oliveira Dias.

verve, 44: 18-61, 2023 61


44
2023

incontornável anarquia

edson passetti

O céu parecia todo ele inquietação e a noite engoliu rapidamente a


região escurecida e pequenos pássaros cinzentos voaram com débeis
gritos ao encalço do sol. Ele instigou o cavalo estalando a língua. E
assim penetrou e penetraram todos na incerta perdição das trevas.
Cormac McCarthy

1972-1973, o curso foi A sociedade punitiva (Foucault,


2015). No ano de 1973, ainda aconteceram as aulas na
PUC do Rio de Janeiro que comporão A verdade e as formas
jurídicas (Foucault, 2014)1, e a publicação do indispensável,
Isso não é um cachimbo (Foucault, 1988), para implodir a
representação. Foucault veio para colocar revoltas, fogos
de artifício, fogo, danças novas, principalmente a partir
dos anos 1970.

1
Rodrigues, Heliana B. de C. “Michel Foucault no Brasil – Esboços da
história do presente”. In Verve 19. Nu-Sol: São Paulo, 2011, pp. 93-112.
Disponível em: https://www.nu-sol.org/wp-content/uploads/2018/01/
verve19.compressed_compressed.pdf e, em definitivo, em Heliana B. de C.
Rodrigues (2016).

Edson Passetti é coordenador do nu-sol (núcleo de sociabilidade libertária). www.


nu-sol.org. Contato: edson.passetti@uol.com.br

62 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

Em A sociedade punitiva, Foucault constatará, em


definitivo, a relevância anarquista que reaparecerá, com
mais ou menos vigor, em sua obra subsequente, num
vaivém, sem ou com resposta à pergunta: “será que sou,
até certo ponto, anarquista?”. Mas isso não é da ordem
da prateleira acadêmica e do pouco importa à filosofia;
importa e muito, pois a anarquia dos libertários rondará
Foucault em transformação até o trans historicismo em A
coragem da verdade.
É no exato momento de A sociedade punitiva que ele situa
a guerra civil, enfrentando a guerra abstrata que governava
o contratualismo hobbesiano (finalmente equacionadas
no curso Em defesa da sociedade), e estanca o ideal da
pacificação liberal da sociedade e da importância cúmplice
da sociedade civil no governo com o Estado reduzido ou
ampliado (Passetti, 2017). Aí está a explicitação do direito
do mais forte em força e astúcia (bebendo em Nietzsche,
e sem contar o beberico em Pierre-Joseph Proudhon).
Para Foucault, “o poder é, em essência, uma relação de
força, portanto, até certo ponto uma relação de guerra.
Consequentemente, os esquemas a utilizar não devem
ser tomados emprestados da psicologia ou da sociologia,
mas da estratégia. E da arte da guerra” (Foucault, 2012a, p.
54). Mais tarde, com a devida precisão, analisará a política
como a guerra prolongada por outros meios, enquanto nos
legará possibilidades de analisar a sociedade sem penas e
castigos.

um pesquisador
Na aula inaugural desse curso, Foucault situa as quatro
formas de táticas punitivas que abordará: exclusão;

verve, 44: 62-86, 2023 63


44
2023

organização do ressarcimento e imposição de uma


compensação; como se marca o corpo; o encarceramento
propriamente dito. A morte aos infratores não era mais
escolha pelo suplício, e sim pelo longevo encarceramento
com uma suposta absoluta segurança, fincando em cada
infrator e cidadão a esperança na reintegração social. As
táticas de punição foram os analisadores que ele lançará
mão. O elemento primordial é “a luta política em torno
do poder e contra o poder” (Foucault, 2015, p. 13). A
noção de guerra civil é que deve ser focada nas análises
do sistema penal como uma guerra permanente e, por
conseguinte, voltada para estratégia da reclusão e de seus
desdobramentos disciplinares. Está nomeada uma guerra
social, a “guerra dos ricos contra pobres, dos proprietários
contra aqueles que não possuem nada, dos patrões contra
operários” (Idem, p. 21).
Foucault não esconde as presenças do anarquismo
e do marxismo na história dos ilegalismos das classes
populares na luta contra o poder e sob efeitos de produção
de contrapoderes. É reconhecido o seu olhar atento
para a crítica à prisão humanista, que o aproxima dos
libertários e o afasta em definitivo do marxismo, posto
que o socialismo não prescindirá da ocupação do aparelho
repressivo sob uma alegada condução consciente. Foucault
está na ebulição do acontecimento 68, como ele próprio
reconheceu.
Repercute, também, nesse curso, a presença de Michel
Foucault no Groupe de Information sur les Prisons (GIP),
um dos resultados da relação íntima com Daniel Defert,
integrante da Organization des prisioners politiques (OPP),
de formação maoísta, que pretendia a partir da greve de
fome obter reconhecimento da diferença entre prisioneiros

64 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

políticos e prisioneiros comuns. Era entre setembro de


1970 e janeiro de 1971. “A greve de fome em janeiro
último coagiu a imprensa a falar. Aproveitemos a brecha:
que o intolerável, imposto pela força e pelo silêncio, cesse
de ser aceito. Nossa inquirição não foi feita para acumular
conhecimentos, mas para aumentar nossa intolerância e
fazer dela uma intolerância ativa” (Foucault, 2003, p. 4).
As pesquisas de Foucault, e a proximidade com os
anarquistas e o jornal fourierista La Phalange, o levarão
a compreender os efeitos positivos da indistinção entre
presos comuns e presos políticos no encarceramento,
situando o que é estar contra o poder (de encarcerar e do
Código Penal) e se apartar de uma das possibilidades da
compreensão do contrapoder como reforma que humaniza
as prisões. “Na verdade, não me interesso pelo detento
como pessoa. Interesso-me pelas táticas e estratégias de
poder que subtendem essa instituição paradoxal, a prisão,
a um só tempo sempre criticada e sempre renascente”
(Foucault, 2012a, p 53). Foucault foi mais radical do que
seu companheiro maoísta imaginou e o levou nessa.
Pela prisão e depois do Código Penal francês de
1810, levado adiante no período de 1825 a 1848, é
que se constrói a figura do delinquente no interior da
guerra social, relacionado à história de vida do infrator,
subordinado aos saberes humanitários do encarceramento,
e disponível à prisão pela correção psicológica voltada
para a sua hipotética inclusão social posterior. Será por
meio desse procedimento que a ordem esperava que
ocorresse a quebra e a supressão dos ilegalismos populares,
isolando um pequeno grupo tido como perigoso, anormal
e suspeito como alvo das “hostilidades e de desconfiança
dos meios populares dos quais saíram” (Foucault, 2012b, p.

verve, 44: 62-86, 2023 65


44
2023

34). Segundo Foucault, nessa entrevista publicada quando


do lançamento de Vigiar e punir em 1975, “no fim das
contas, o resultado desta operação é um gigantesco lucro
econômico e político. Um lucro econômico: as somas
fabulosas trazidas pela prostituição, pelo tráfico de drogas,
etc. Um lucro político: quanto mais houver delinquentes,
mais a população aceitará os controles policiais. (...)
Desde o Segundo Império, os operários sabiam muito
bem que os ‘fura-greves’ que lhes impunham, assim como
os homens dos batalhões antimotim de Luís Napoleão III
vinham das prisões...” (Idem).
As reformas nos dois séculos seguintes foram noticiadas
com maior ou menor estridência, mas o cerne das práticas
punitivas permaneceu mais ou menos irretocável. Para a
sociedade capitalista (passada a temporada de ameaça, a
de eventual consolidação socialista, a do welfare-state, e
a da permanência e ampliação no interior das práticas de
liberdade e punição neoliberais), o controle dos ilegalismos
e das populações subalternas permanece imprescindível,
mesmo produzindo certos contrapoderes que ajustam e
redimensionam a governamentalidade punitiva que vai
da casa à prisão e sedimenta costumes conservadores e
conformistas sob o regime da moderação de condutas. “De
fato, a sociedade busca, mediante o sistema penal, organizar,
acomodar, tornar política e economicamente vantajosos
todo um jogo de ilegalidades e de ilegalismos” (Foucault,
2012a, p. 54). Entre 1972 e 1973, acompanhando os Ditos
e escritos e cursos ministrados por Michel Foucault, o
pesquisador estará diante de consistente reflexão acerca
dos ilegalismos, dos encarceramentos, penalizações, das
jornadas prisionais e punições em geral voltadas para a

66 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

preparação em movimento dos originais de Vigiar e punir,


publicado em 1975.
O curso A sociedade punitiva é um ponto de inflexão e
complementaridade para a argumentação e a finalização
de Vigiar e punir. É, também, um espaço de raias para
a pesquisa sobre guerra, guerra civil, revolução, revolta,
ilegalismos, punições, recompensas, políticas de Estado e
medidas filantrópicas da sociedade civil. Em A sociedade
punitiva está situado de maneira nítida como passou a ser
importante o encarceramento na sociedade de hierarquias
rígidas ou flexíveis, com ou sem, mais ou menos direitos
humanos e demasiado humanos. Os alvos são sempre
os pauperizados ou quem contesta a ordem e sua
manutenção, reformas, restaurações ou que supostamente
a revoluciona, substituindo soberanos e dinamizando
disciplinas e controles.

a importância dos ilegalismos

[Michelangelo] Antonioni, em troca, diz que Foucault, mais que


nenhum outro, jogou luz sobre a inutilidade desta postura, dessa
maneira que tem o intelectual de (cita Foucault de novo) ‘dar um
pouco de seriedade a pequenas disputas sem importância’. Foucault
se define como pesquisador, não como intelectual. Inscreve-se no
tempo longo da pesquisa, não na agitação da polêmica. Ele disse:
‘os intelectuais não esperam, pela luta ideológica, se atribuir um
peso superior ao que tem na realidade?’”
Laurent Binet

verve, 44: 62-86, 2023 67


44
2023

A presença de Foucault entre os integrantes do GIP


(Rodrigues; Dias, 2017), sublinha sua intenção cada vez
mais consistente de interceptar o caminho de glórias dos
intelectuais prestativos aos governos e dos autodeclarados
conscientes ou profetas de uma nova sociedade por vir, a ser
moldada pelo revolucionarismo socialista autoritário ou,
no limite do século XIX para o XX, por certo anarquismo
revolucionário que se pretende preservado e protegido
moralmente, apesar de encostado na crítica da economia
política de Marx.
Os anarquismos têm sentido na obra de Foucault no
campo metodológico como séries que não se anulam e que
não desovam deterministicamente em revolução. Há uma
atitude que enfrenta a pacificação artificial do binarismo
pela dialética e pela transcendentalidade.
Os intelectuais, portanto, não são vanguarda nem
retaguarda dos movimentos. Os prisioneiros sabem
de si. Por vezes, promovem rebeliões que até podem
levar ao estrangulamento do encarceramento social
e seletivo, porém, na maioria das vezes, funcionam
como impulsionadores ou complementos de reformas.
Reformas jurídico-penais, de atendimento, triagem,
internação, sejam elas voltadas à supressão das penas
de mortes, mas fortalecedoras no cotidiano prisional
da justiça de Talião, das religiões, da moral lapidada,
sejam combatentes às formas de equacionamento da
delinquência e suas eventuais inclusões normativas. Em
todos os casos, os prisioneiros compõem os ilegalismos
prisionais envolvendo mercadorias, empreendimentos,
circulação de corpos, ajustes na contabilidade das penas
etc. Até mesmo nos novos empreendedorismos, com o que
chamam de “crime organizado”, compartilhando a gestão

68 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

das prisões com as devidas direções legais, governamentais


e a produção de produtos.
O pesquisador Foucault situa não haver reforma na
prisão como fábrica de delinquentes, sem os devidos
intelectuais. “Sabemos que a força calma do Estado
envelopa sua violência; suas leis, o ilegalismo; suas
regras, o arbitrário. Todo um pulular de abusos, excessos,
irregularidades forma não o inevitável desvio, mas a vida
essencial e permanente do ‘Estado de direito’” (Foucault
2012c, p. 60). O intelectual é o funcionário e o pastor
da reforma do Estado e do governo da prisão. “Meu
problema poderia enunciar-se assim: como se faz que em
uma dada época se possa dizer isto e que jamais tenha
sido dito?” (Foucault, 2014, p. 52). É disso que se trata,
e, para os propósitos deste artigo, está tanto o enunciado
do jornal La Phalange acerca dos objetos do direito penal,
dos mecanismos de suspeição, da cultura da instituição e
da jurisdição que não servem para nada (nada entendido
aqui como capacidade de integração moral e material
do preso à sociedade), como as análises de Max Stirner
sobre as prisões e como nelas seu governo procura evitar a
formação de uma sociedade para a união dos prisioneiros
(Stirner, 2003).
O reconhecimento do fracasso da lei penal e da prisão
são intrínsecos e fundamentais para a disseminação do
medo da prisão, das penas e das punições na sociedade.
O paradoxo faz funcionar a necessidade de prender e
encarcerar, contígua ao reconhecimento desse mecanismo
gerador do fracasso dos propósitos das instituições de
repressão, encarceramento e tratamento a presos, doentes
mentais, jovens infratores. O reconhecimento do fracasso
é o seu sucesso.

verve, 44: 62-86, 2023 69


44
2023

No regime das disciplinas, até não se separar os presos


políticos dos presos comuns, havia a politização para
a revolta e questionamento da prisão, de suas normas,
formas de vigilância e saber. Com as sociedades de
controle contínuos e a céu aberto com comunicação
constante, a principal medida foi a de ampliar a vigilância
com monitoramentos e, portanto, separar, em definitivo, os
chamados presos comuns de presos políticos, amparando os
últimos com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948.
A separação teve como objetivo precaver a instituição das
insurreições. Entretanto, criou condições para uma nova
forma de consolidação da economia do encarceramento,
para além das conexões já conhecidas entre legalidades e
ilegalidades. Abriu-se para o empreendimento racional
lucrativo e produziu sua versão do mercado como tribunal,
restaurando a lei de Talião e demais punições em nome
de uma superioridade, seja a legal ou a ilegal. A prisão
permanece como a instituição que explicitamente realiza
legalidade, injustiça e ilegalismos, agora compartilhando
a sua gestão governamental entre direção da prisão
e empresas organizadoras dos encarcerados como
produtores de produtos.
Ampliou-se pela sociedade, com base na racionalidade
neoliberal, a convicção de que é preciso punir mais e
melhor para o combate à corrupção e às impunidades.
Ganhou notoriedade o sistema de punições rígidas com
presídios de alta contenção para as também consideradas
altas periculosidades abrigadas no cumprimento de penas,
no Brasil, sob o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)2,
tido como a ordenação sob as regras mais rígidas. Criou-

2
Lei 10.792 de 1º de dezembro de 2003.

70 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

se a convicção de que infrações de pequeno porte seriam


punidas no regime de céu aberto e, com isso, haveria
um decréscimo no crescimento de prisões relacionado à
agilidade do sistema penal. Ledo engano. Novas condutas
criminalizáveis ampliaram o leque de penas que vai de
pequenas ofensas às inafiançáveis, com base nos direitos
inacabados de minorias, à proteção dos chamados assédios,
às medidas garantidoras de uma moral conservadora
e conformista. A céu aberto, sob a forma de punição
em regime aberto ou semiaberto, estarão as condutas
consideradas criminalizáveis de estratos superiores,
compostos por sujeitos que não são vistos como perigo
para a sociedade, até mesmo protegidos por colaborações
(delações) premiadas, presentes em várias leis3. As reformas
com base no refrão mais do mesmo apenas repetiram que
os suspeitos, perigosos, aberrações e similares são sempre
xs provenientes dos setores pauperizados. Quando,
excepcionalmente, encarcera-se sujeitos de segmentos
sociais superiores, reiteram-se os efeitos de exceções
incrustados nos regimes das penas desde os primórdios
do direito penal moderno. Modernizações e atualizações
aqui e acolá funcionam para deixar inalterado o princípio
das punições e das recompensas, mote fundamental dos
costumes liberais (Smith, 2021).
Sem ilegalismos não há ordem capitalista, Estado de
Direito, filantropia moderna, regimes de encarceramentos
mais ou menos rígidos, justiça penal mais ou menos
injusta e assim sucessivamente. Não há incompatibilidade
entre vigiar, monitorar, punir e sentenciar no Estado de
3
Em especial, Lei das Organizações Criminosas, lei 12.850 de 2 de
agosto de 2013, no governo Dilma Roussef, de autoria da senadora Serys
Slhessarenko (PT/MT).

verve, 44: 62-86, 2023 71


44
2023

Direito, na democracia e nos autoritarismos, assim como


é impossível prescindir de polícia mais ou menos violenta,
posto que o direito supremo e sagrado na sociedade da
propriedade (privada, mista e estatal) é a segurança. E
tudo funciona com obediência ao superior, sim. Porém,
a disseminação dessa subjetividade criada e ampliada
pelos que amam obedecer, serem conduzidos, idólatras,
veneradores do pastor, seja ele religioso, estatal ou laico,
como na atualidade a partir do cidadão-polícia (Passetti –
coord., 2019), é mais eficiente do que por meio repressivo
e, em especial, do encarceramento.
Não há como a sociedade hierarquicamente construída
e assegurada não consagrar seus delatores e informantes,
mas, principalmente, seus denunciadores voluntários e
acusadores, os adoradores da preservação da moral. Pouco
importa se esta é justa ou não. No mundo das redes sociais
digitais atuais, as fake news são verdades que carecem de
verificações por meio de argumentação científica, lógica
ou filosófica. Trata-se da efetivação explícita do direito
do mais forte e mais astuto, sob o regime do Estado de
Direito, suas normas, leis e ilegalismos. Gerar verdades
é o produto-chave resultante do uso da racionalidade
neoliberal.
Tudo é possível de ser verdade, quase tudo serve
como verdade, segundo a ocasião. É preferível seguir um
tirano qualquer à razão livre de cada um. Tudo (ou quase
tudo) deve girar em torno de manter a ordem a qualquer
custo, o governo a qualquer custo e a propriedade a
custos mais reduzidos. É o mundo das opiniões e dos
julgamentos nos seus referidos mercados, inclusive no
prisional e, obviamente, no dos ilegalismos. Do ponto
de vista político, vale tudo para se preservar o leque do

72 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

pluralismo, e, mais uma vez, assim antes e doravante, são


os subalternos os fortalecedores do assujeitamento aos
governos de sociedade e Estado à esquerda e à direita para
justificar realidades ou fantasias de Estado de Direito. Até
mesmo para se sonhar em atingir o socialismo (o paraíso,
de novo?), agora compatível com as práticas ativistas
da racionalidade neoliberal geradas pela mutação da
economia em ciência do comportamento humano pautada
na capacidade de inovação do capital humano para
sustentar a cooperação com o capital. Apoiar Xi Jinping
não é a aberração socialista produzida pela racionalidade
neoliberal. É a sua preciosa joia.
O ativismo (a produção do produto liberdade pelo
neoliberalismo) é a prática exercitada também pela
esquerda afoita e atônita para ocupar ou circunvizinhar-se
ao governo de Estado e pretender hegemonia na sociedade
civil onde confundirá, deliberadamente, solidariedade
com filantropia. Não tarda em explicitar o que criticava
como retórica: a inseparável e indestrutível relação razão-
religião modernamente instituída desde que se fez crer no
laicismo, na separação de Igreja e Estado, na proliferação
de religiões como sustentáculo metafísico para o físico
do Estado, e finalmente na projeção internacionalista
e cosmopolita por meio do ecumenismo, próprio da
sociedade de controle contínuo e comunicação constante.
Os herdeiros do iluminismo esqueceram-se que a religião
começa com Deus fazendo luz. Os socialistas esquecem,
em seu oportunismo do momento, que a derrocada do
socialismo na URSS não se deveu apenas às medidas
autoritárias e centralistas de Lenin; ao monumentalismo
autoritário de Stalin, com a sua programação econômica
e o imperativo das confissões inquisitoriais e suicídios; ao

verve, 44: 62-86, 2023 73


44
2023

livro exclusivo de Mao; à vodca de Leonid Brejnev e aos


seus chefes de polícia elevados à categoria de governantes,
como Mikhail Gorbatchov..., mas decorreu, também, da
guerra de palavras, dissidências, direitos humanos, Estado
de Direito e religião deflagrada desde o Vaticano contra
a URSS.
Só há guerras aceitáveis patrocinadas pelos Estados
responsáveis pela segurança do planeta que fundaram
e permanecem no Conselho de Segurança da ONU,
com direito a voto e veto. Não há guerra civil aceitável,
tolerável (contra Locke) como instante ou momento. Há
uma ordem de segurança a ser mantida. Há, também, a
ininterrupção da guerra social voltada para assegurar a
continuidade melhorada e sustentável das desigualdades.
Foucault, ao seu modo, anarquizou o direito, a punição,
as recompensas, as penas e os encarceramentos. Ele não
precisou definir suas medidas libertárias, mesmo porque
os anarquismos não tratam de medidas e valem-se de
análises. Precisam de pesquisadores e não de intelectuais.
E de desmedidas e ingovernáveis...

a sociedade civil é quem pune mais e melhor

O ‘liberalismo superior’ e o ‘liberal superior’, ou seja, o liberal sem


nenhum objetivo, só são possíveis na Rússia.
Dostoiévski

Noutra ocasião (Passetti, 2017), indiquei o caminho


percorrido por Foucault desde a noção de guerra civil até
à de guerra para situar a política como guerra prolongada

74 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

por outros meios, pois “se for verdade que a guerra


externa é o prolongamento da política, caberá dizer,
reciprocamente, que a política é a continuidade da guerra
civil” (Foucault, 2015, p. 31). Em A sociedade punitiva,
Foucault é certeiro: “o exercício cotidiano do poder deve
poder ser considerado uma guerra civil” (Idem, p. 30). A
sociedade civil, imprescindível à teoria liberal, é o lugar
onde ocorrem ilegalismos e os devidos combates. É nela
que está o chamado criminoso como inimigo da sociedade,
a sociedade lesada e ferida pelo crime, e a punição como
proteção e defesa da sociedade. O crime deixa de ser um
atentado à soberania e o criminoso comum ou político passa
a ser o inimigo social.
O objetivo da punição é desarmar o indivíduo. Deixá-
lo sem condições de prejudicar alguém ou reintroduzi-lo,
após o encarceramento, no pacto social. É o itinerário
das reformas constantes, dos fracassos contínuos, da
permanência das prisões e das justificativas para as
vigilâncias como forma de dissuasão aos infratores.
A sociedade civil é o espaço tanto de vigilância
das condutas, das convivências normativas nas zonas
periféricas das cidades, da vida na escola para quem
deve aprender a ser dócil e útil, da atenção para com a
vida em família e por meio da repercussão da conduta
normativa, em clubes, igrejas, organizações e meios de
comunicação. Sem sociedade civil cuidando pela caridade
ou pelos programas governamentais dos classificados
como necessitados, não se fortalece a crença no fim do
crime, a promessa liberal desde a tese da prevenção geral
com base no saber da estatística. Portanto, manter o medo
da população pela existência da prisão convive com seu
duplo, a expectativa de um dia acabar com o crime por

verve, 44: 62-86, 2023 75


44
2023

meio das reformas morais escudadas, inicialmente, na


religião e no trabalho e, depois, nos saberes humanitários
postos em funcionamento nas unidades de internação.
Falar de fim do crime, prevenção geral, encarceramentos
e tratamentos fez parte da crença liberal desde o século
XVIII até segunda metade do século XX, quando pela
racionalidade neoliberal se concluiu que jamais se chegará
ao fim do crime (Foucault, 2008), pois o crime passou a
ser entendido como constitutivo da escolha racional do
indivíduo, e que é preciso monitorar interna e externamente
os chamados criminosos. Na sociedade onde o punir mais
e melhor recobre o adocicado e o utópico da vivência e da
sobrevivência, a sociedade civil tem um papel relevante,
para além da convencional caridade, em sua missão de
manter a ordem.
A sociedade civil transmitirá, para além dos controles
que incrementa, novas exigências das comunidades
religiosas (incluindo as dissidentes), dos grupos de
autodefesa, do patrulhamento na proteção da burguesia,
das polícias particulares, dos grupos de controle de
marginais oriundos da classe trabalhadora, do qual dispõe
como exército de reserva de força de trabalho e de exército
de reserva de poder pela infiltração, delação, segurança e
polícias recrutados entre as populações miseráveis.
Os monitoramentos, por sua vez, incrementarão
as filantropias sob o regime de organizações não-
governamentais, parcerias público-privadas, com
institutos e fundações, todos voltados para melhorar as
condições de vida dos excluídos, incluindo-os de todos
os modos possíveis, por meio de intermitentes trabalhos,
precarizados ou não, qualificando minimamente a mão de

76 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

obra para o empreendedorismo, até mesmo incluir cada


pessoa, como elemento de um banco de dados voltado para
filantropias e políticas públicas. É a era da compensação
exponencial, do serviço social ampliado, do atendimento
humanitarista, da proteção mínima ao refugiado, de
atenção à população moradora de rua com comida, roupa,
agasalhos e habitação individualizada pelas calçadas sob
a forma de barracas industrializadas instaladas em filas
nas calçadas de avenidas, praças e sob viadutos. Tudo
distribuído pelas igrejas, ONGs, por meio de uma mão
de obra com formação universitária certificada, defensora
das melhorias das condições de vida, com resiliência nesta
aberração de sustentabilidade.
A sociedade civil é a parceira na governança com o Es-
tado. A ela cabe, por meio dos indivíduos, grupos, orga-
nizações, fundações, ONGs, institutos etc., a procriação
de meios para governar o pauperismo, o conformismo e
o desespero. Por isso nada menos surpreendente do que
constatar a proliferação de fascismos quanto mais se pro-
pagandeia a democracia e o Estado de Direito, os direitos
e a pletora de condutas criminalizáveis. A governança tem
algo de sublime, pois ela apaga a necessidade de repre-
sentantes, estimula a participação imediatista, consolida
os pastores religiosos e laicos, fortalece o cidadão-polícia
como agente de segurança, benfeitorias, monitoramentos
dos que estão ao seu lado abaixo ou acima nos condomí-
nios de edifícios e casas, na cidade e em suas periferias, na
praia, na zona rural. É preciso monitorar crianças, jovens,
adultos, casados, solteiros, noivos, quem gosta de sexo, es-
téreis e histéricas, casais hetero, homo ou diversificados,
quem preserva sua virgindade sob o manto da religião e
seus fundamentalismos. Ninguém deve se sentir ofendi-

verve, 44: 62-86, 2023 77


44
2023

do por zelar pela moral de si e do outro. Mundo dos ca-


res, aniquilando os cuidados de si, reduzidos a autoajuda
e medicalizações. Mundo ambíguo onde quase cada um
deixa ao outro um fica com Deus. Uma expressão onde o
verbo ficar pode assumir uma intimidade imprevista, se-
xual, ou a esperada, ficar sem sexo, num eterno empata
tempo até o casamento, numa correção de conduta, numa
terapêutica...
Foucault acompanha Canguilhem na aula de 7
de fevereiro, realçando que “a polícia é uma ciência
absolutamente nova na economia política” (Foucault,
2015, p. 102). É a polícia, também, como organismo
do Estado para controlar a moralidade, principalmente
das classes mais baixas. As prisões estão abarrotadas de
pobres e miseráveis de todas as cores, e os quadros das
polícias da ordem cada vez mais preenchidos e inchados
com pobres e classes médias. A polícia é o grande lugar
para os certificados moralizadores em políticas públicas
(policies) e em polícia (police): são os agentes primordiais
da governança ao lado de cidadãos-polícia e organizações
não governamentais em geral. A sociedade civil, na era
dos controles, é a sociedade voltada para a resiliência
e a governança. Isso alguns chamam de qualidade
de vida, era das recompensas ao capital humano e ao
empreendedorismo.
A sociedade civil também é a ampliação dos ilegalismos
apreciados por muitos. Trata-se de um governo pela lei de
Talião que se distende como garantia de ordem e moral4,
4
Estatuto do Primeiro Comando da Capital, divulgado em 2001, cf.: https://
pt.wikisource.org/wiki/Estatuto_do_PCC#:~:text=O%20partido%20
n%C3%A3o%20admite%20mentiras,todos%20e%20todos%20por%20um
(acesso em 12 de julho de 2023).

78 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

fundado na conduta econômica e nas gestões políticas


compartilhadas com legalidades financeiras e prisionais.
São empresas voltadas para o cultivo e comércio de
drogas ilegais, conectadas a polícias e que difundem
possibilidades de legalizações de algumas substâncias tidas
como ilícitas, mediante seu empreendimento médico-
farmacêutico como a maconha e o canabidiol. A maconha
para o lazer deve ser governada. Entretanto, as drogas
sintéticas ampliam suas presenças nos mercados. As
prisões recrutam trabalhadores e suas famílias enredadas
na economia dos ilegalismos de drogas. Resta à sociedade
civil pedir, clamar e berrar por mais segurança, execuções
(menos dos chamados inocentes, é claro).
A sociedade civil, também por esse fluxo, fortalece
a governança. Os demais elementos da sigla em inglês
(Environmental, Social, Governance) funcionam no
monitoramento do meio ambiente levado adiante em
parceria com o Estado e o social (completando ESG,
quase um plágio de Escola Superior de Guerra, ESG em
português). A sociedade civil está em inglês, assim como
a gestão política se espelha na democracia estadunidense,
no neoliberalismo estadunidense, nas lutas de minorias
estadunidenses, na moralidade estadunidense, na
produtividade acadêmica estadunidense, no politicamente
correto estadunidense, nos reparos decoloniais
estadunidenses, até no anarquismo estadunidense. E
este não repercute Foucault, permanece senil e próximo
ao marxismo, e de uma ambígua caracterização latino-
americana que divide a esquerda em tradicional e nova,
incluindo e subalternizando os anarquistas. Como
por lá tudo está dividido em legitimidades duplas,
como republicanos e democratas, não há lugar para

verve, 44: 62-86, 2023 79


44
2023

anarquismos que não seja no interior da esquerda, ou seja,


o anarquismo estadunidense faz política, e deu as costas
para a antipolítica.
Neste exato momento, os anarquismos encontram-
se condenados ao ostracismo. Ia usar o verbo parece,
mas é inadequado como sempre, pois os anarquistas são
engolidos pelo marxismo toda vez que resolvem conversar,
ou melhor, se tornar tolerantes com o marxismo libertário,
considerando as relações de parentesco entre anarquismo e
marxismo, que os confina, mais de uma vez, à condição de
pré-político, quando sequer a Anarquia é um movimento
político. Ou, enfim, enquanto não se desvencilhar da
obsessão kropotkiniana de construir um anarquismo
científico, e de bandeja uma teoria anarquista, e da
comodidade bakunista de combinar crítica da economia
de Marx com federalismo proudhoniano. Conversa para
anarquistas. Porém, como situou Foucault, também
pertence a uma intolerância ativa.
A incontornável anarquia em Foucault, está mais
próxima da analítica serial de Proudhon, na produção de
verdade voltada para a liberdade. Se é sempre bom lembrar
que o copo vazio está cheio de ar, “praticar a transgressão
é tornar a lei irreal e impotente num momento e num
lugar, para uma pessoa” (2015, p. 105). Eis a diferença:
o(a) marxista é um dissidente; x anarquista é transgressor.
“Falar transgressão não é designar a passagem do lícito ao
ilícito (para além do proibido): é designar a passagem ao
limite, para além do limite, a passagem para aquilo que
não tem regra, e por conseguinte, não tem representação”
(Idem, p. 7). A transgressão não pode ser conhecida.
Enfim, “bastan que dos personas sorban los deleites de la vida
de un modo anormal, para que se compreendan tanto más

80 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

intimamente, cuanto más extraña es la obtención del goce”


(Quiroga, 2019, p. 64).

abolicionismo penal libertário

É preciso se fixar no exterior de si, à beira das lágrimas, e na


órbita das fomes, se quisermos que algo fora do comum se produza
apenas para nós.
René Char

É fácil falar e constatar que a sociedade punitiva é real.


Entretanto, poucos ousam dizer e verificar que a sociedade
sem penas e castigos também existe.
O abolicionismo penal ganhou expressão depois dos
anos 1960 e obteve repercussão também entre anarquistas.
Simplesmente por colocar em questão a abolição do
castigo, em suma a invenção diária de liberdades por
meio de pequenas guerras, como salientou Proudhon,
impulsionando e potencializando uma educação
libertária em uma cultura libertária. Os comunistas,
mais recentemente no início do século XXI, tentaram se
apropriar do abolicionismo penal por meio das alavancas
ativistas e democráticas estadunidenses em torno da
junção racismo e prisões, propondo a abolição da prisão.
Todavia, para além da retórica e da incorporação falaciosa
de uma prática como palavra-chave, se houver em algum
momento a abolição da prisão nesses moldes somente
será reiterada a legitimidade na sociedade de controle na
qual prepondera um controle a céu aberto por meio de

verve, 44: 62-86, 2023 81


44
2023

monitoramentos que combina e ultrapassa a vigilância


e o panoptismo disciplinares. Portanto, a sociedade sem
penas já existe e é disputada pela cultura hierarquizada
que pretende estender seu domínio por meio de mais
reformas, sem abolir os castigos.
Para xs abolicionistas penais, a abolição da punição
para ocorrer necessita de uma abolição da punição que
aconteça em cada um. Portanto, uma nova linguagem
deve preponderar, os movimentos sociais devem enfrentar
as reformas das prisões, escolarizações, acomodações
democráticas, ou seja, produzir perturbação a uma
naturalização histórica dos castigos. Inventar relações
libertárias, explodir a família convencional repaginada.
Não se trata da acomodação em uma utopia quando o
mundo for comunista e igualitário, nem da utopia liberal de
continuidade infinita por meio de melhorias. É o combate
ao conformismo e em revestir as instituições do Estado
com sinonímias. Propõe a ampliação permanente e potente
da sociedade sem penas de hoje em dia. Como sociedade
sem penas? Basta x leitorx recordar-se de quantas situações
viveu nas quais encontrou a conciliação para o chamado
conflito ou situação-problema que enfrentou sem lançar
mão das instituições repressivas (Hulsman, 1993). Não
foram poucas, caso seja uma pessoa que preze a liberdade.
Caso contrário, num tempo conservador e conformista, se
está apelando a mais criminalizações e medicalizações de
condutas.
É muito mais simples educar crianças em relação
horizontalizada do que por meio do comando superior
exigindo obediência, de forma autoritária ou democrática.
É mais tranquilo viver entre pessoas liberadas de

82 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

conceitos que domesticam como infância, adolescência,


maturidade e velhice (ou similares). É dizer basta ao
que está instituído ou conformar-se como nova figura
da democracia participativa ou da ilusão da democracia
direta totalizadora. Xs anarquistas procuram em sua
militância ou nas invenções militantistas (Foucault, 2011)
deixar as crianças livres, fazendo desde aí as práticas de
sociedade sem penas. Você dirá, mas esta é uma condição
minoritária. Sim, o é minoritária potente (Deleuze, 2010).
Foucault foi objetivo ao constatar a sociedade punitiva,
curso que completa 50 anos, ao expor condições para
relações libertárias e ao colaborar para constarmos
a sociedade sem penas. Uma sociedade sem penas
pode acabar com o direito penal a qualquer momento,
substituindo o princípio da punição pelo da conciliação
no direito civil. É possível demolir o aparelho repressivo
sem revolução autoritária. Basta querer, uma atitude de
únicxs.

Referências bibliográficas
Binet, Laurent. Quem matou Roland Barthes?. Tradução de
Rosa F. d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
Char, René. O nu perdido e outros poemas. Tradução de
Contador Borges. São Paulo, Iluminuras, 1993.
Deleuze, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto de menos, o es-
gotado. Tradução de Fatima Saadi, Ovídio Abreu, Roberto
Machado. Rio de Janeiro, Zahar, 2010.
Dostoiévski, Fiódor. Os demônios. Tradução de Paulo
Bezerra. São Paulo, 34 Letras, 2004.
Foucault, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução de
Jorge Coli. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

verve, 44: 62-86, 2023 83


44
2023

________. “(Sobre as prisões)”. In: Manoel B. da Motta


(org). Michel Foucault. Estratégia, poder-saber. Coleção
Ditos & Escritos IV. Tradução de Vera L. A. Ribeiro. Rio
de Janeiro, Forense Universitária, 2003, pp. 4-5.
________. Nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
________. A coragem da verdade. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011.
________. “Michel Foucault, o ilegalismo e a arte de
punir. In Manoel B. da Motta (org). Michel Foucault.
Segurança, penalidade e prisão. Coleção Ditos & Escritos
VIII. Tradução de Vera L. A. Ribeiro. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 2012a, pp. 53-56.
________. “Do suplício às celas”. In: Manoel B. Motta
(org). Michel Foucault. Segurança, penalidade e prisão.
Coleção Ditos & Escritos VIII. Tradução de Vera L. A.
Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2012b, pp.
32-36.
________. “Prefácio”. In: Manoel B. Motta (org). Michel
Foucault. Segurança, penalidade e prisão. Coleção Ditos &
Escritos VIII. Tradução de Vera L. A. Ribeiro. Rio de
Janeiro, Forense Universitária, 2012c, pp. 59-62.
________. “A verdade e as formas jurídicas”. In Manoel
B. da Motta (org). Filosofia, Diagnóstico do Presente e
Verdade. Coleção Ditos & Escritos X. Tradução de Adner
Chiquieri. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2014, pp.
130-244.
________. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone C.
Benedetti. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2015.
Hulsman, Louk. Penas perdidas. Tradução de Maria Lucia
Karam. Niterói, Luam, 1993.

84 verve, 44: 62-86, 2023


verve
incontornável anarquia

MacCarthy, Cormac. Meridiano de sangue. Tradução de


Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro, Alfaguarra, 2020.
Passetti, Edson. ‘A arquitetura da revolta”. In: Margarth
Rago & Silvio Gallo (org). Michel Foucault e as insurrei-
ções. É inútil revoltar-se?. São Paulo, CNPq, Capes, Fapesp,
Intermeios, 2017, pp. 63-71.
Passetti, Edson. (coord). Ecopolítica. São Paulo, Hedra,
2019.
Quiroga, Horacio. Cuentos de amor, de locura y de muerte.
Barcelona, Editorial Alma, 2019.
Rodrigues, Heliana de Barros Conde. Ensaios sobre Michel
Foucault no Brasil. Rio de Janeiro, Lamparina, 2016.
________; Dias, Rosimeri de Oliveira. “O GIP como
modo de insurreição – ouvindo o ronco surdo da batalha”.
In: Rago, Margareth; Gallo, Silvio (org). Michel Foucault
e as insurreições. É inútil revoltar-se?. São Paulo, CNPq,
Capes, Fapesp, Intermeios, 2017, pp.73-84.
Smith, Adam. Teoria dos sentimentos morais. Tradução de
Lya Luft. São Paulo, EDIfashion/Folha de S. Paulo, 2021.
Stirner, Max. O eu e a sua propriedade. Tradução de João
Barreto. Lisboa, Antígona, 2003.

verve, 44: 62-86, 2023 85


44
2023

Resumo:
Um percurso anarquista em Michel Foucault a partir de A
sociedade punitiva até a sociedade sem penas e castigos.
Palavras-chave: anarquismos, ilegalismos, punição, sociedade
civil, abolicionismo penal.

Abstract:
An anarchist course in Michel Foucault from The punitive
society to the society without penalties and punishments.
Keywords: anarchisms, ilegalisms, punishment, civil society,
penal abolitionism.

Unavoidable anarchy, Edson Passetti.

86 verve, 44: 62-86, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

medidas socioeducativas:
o sentido produtivo da punição

estela scheinvar & esther maria de magalhães arantes

Talvez pudéssemos pensar que discutir o sentido


produtivo da punição, e em especial da prisão, seria um
retorno a tantos textos e a tantas análises já formulados,
sobretudo a partir da obra de Michel Foucault. Dois
elementos nos trazem de volta ao tema: de um lado,
a constante e extensa demanda por pesquisar, na
universidade, o sistema carcerário para adolescentes. De
outro lado, o reiterado uso ornamental da obra de Foucault
em estudos sobre a prisão, conduzindo afirmações que só
não botariam os cabelos do autor francês em pé por este
se de um careca. Nossa experiência avaliando propostas
de projetos de pesquisas e artigos na área mostra o quanto
a prisão é positivada, malgrado o reconhecimento de ser
um local de produção de violências inaceitáveis, de acordo

Estela Scheinvar é professora na Faculdade de Formação de Professores de São


Gonçalo – FFP e no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação
Humana – PPFH, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Contato:
estelascheinvar@gmail.com.
Esther Maria de Magalhães Arantes é professora na Faculdade de Educação e no
Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Contato: arantes@puc-rio.br.

verve, 44: 87-103, 2023 87


44
2023

com os mesmos candidatos que entendem ser necessário


reformá-la, na crença na boa punição.
A aposta na vida carcerária como solução para as
relações definidas como criminosas tem a força histórica
que projetou o pensamento positivista como explicação
científica da sociedade. Tendo por horizonte a coesão
social, esse pensamento determina que “todos os seres
da natureza, do mineral ao homem, dependem da
ciência positiva, quer dizer, tudo ocorre segundo leis
necessárias” (Durkheim in Castro & Dias, 1977, p. 50).
Em sua perspectiva evolutiva, esse pensamento defende
uma ordem instituída, uma natureza dada, que justifica a
coação de tudo o que poderia perturbá-la. “Pacto social”
(Rousseau), “guerra civil” e “crime” (Hobbes) convertem-
se em uma base filosófica que dá sustentação à política
de combate a qualquer movimento que possa perturbar
a coesão social, por entender que esta se apoia em “leis
necessárias”. Esse procedimento passa a ser entendido
como um marco civilizatório que justifica a submissão
de todos os comportamentos que de alguma forma —
e sem importar os motivos — ameacem a ordem social.
Constrói-se a ideia da boa e necessária punição.
Resgatando um pouco a história da construção da ideia
da boa punição, lembramos os anos pós-1822, quando,
em virtude da independência de Portugal, tem início no
Brasil a construção de legislações próprias, incluindo a
Constituição de 1824, o Código Criminal do Império de
1830 e o Código de Processo Penal de 1832. Pretendendo
abolir as chamadas penas cruéis como punição principal,
instituiu-se a pena de prisão como marco civilizatório,
seguindo o movimento penal em países europeus. De
acordo com Melossi e Pavarini (2006), essa nova prática

88 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

punitiva acompanha a forma-fábrica, sendo considerada


uma forma pedagógica para inserir ou, nos termos de
Foucault, adestrar (1987) o trabalhador que atentasse
contra a ordem instituída e, portanto, fosse enquadrado
como criminoso. Assim, não mais punir de maneira cruel
os homens livres (em um país com intensa escravização
no século XIX), exceto por alguns crimes para os quais
ainda se reservava a pena de morte, mas corrigir, para que
o preso tivesse a oportunidade de voltar ao convívio social.
Já não se trata mais de apenar a consciência dos que são
apontados como infratores, mas de retirá-los dos circuitos
a partir dos quais sua existência estorva. O convívio social
passa a indicar a imposição de um cerco normalizado,
que recusa toda subversão à norma. Não mais se expõe
em praça pública a pessoa infratora, nem se bane de um
território. O mundo do livre comércio reserva aos que
lhe afrontam a condição de incapazes e a necessidade de
adestramento para curvar-se às normas.
No curso de Foucault de 1973, A sociedade punitiva,
o autor mostra como o processo de judicialização e
de encarceramento produz o novo inimigo social, o
criminoso, cujo destino passa a ser o Estado com suas
estruturas punitivas e não mais o senhor soberano. Trata-
se de uma reforma civilizatória, pois não diz respeito
estritamente ao crime e à punição, mas a uma forma de
organizar a sociedade frente a novas formas produtivas
em ascensão, que tinham por alvo a formação de um
trabalhador diferenciado, um tipo de organização espacial
em torno dos lugares de produção fabril e um novo
conceito de ordem propulsionado pela produção desse
novo inimigo, o criminoso, cujo destino maior passa a ser
a prisão (Foucault, 2015).

verve, 44: 87-103, 2023 89


44
2023

Embora, como regra geral, essa reforma nunca se


efetivasse completamente, a regeneração do preso
continuava constando dos altos propósitos da prisão, com
o discurso da sua necessária melhoria, uma vez que eram e
continuam sendo, no Brasil, masmorras imundas, fétidas e
insalubres. No entanto, no século XIX, essa nova forma de
punir não era para todos, uma vez que as pessoas escravizadas
continuaram sendo passíveis de receberem chibatadas até
a morte (senão, qual seria o resultado do castigo de até 400
chibatadas, ainda que divididas em suaves prestações de 50
diárias, como medida de humanização?). Apesar das novas
regulamentações, as pessoas escravizadas, propriedades
dos senhores, continuavam sob a sua regulação. No Brasil
pós abolicionista, quando as populações livres passam a
circular amplamente, “... a posição do delinquente em
relação à produção [...] o define como inimigo público.
Destaca-se a vagabundagem como matriz do crime: a
ociosidade deixa de ter relevo perante o crime e o ato de
pedir coisas já não é punível, mas vaguear” (Idem, 2015, p.
43). A circulação é um ato central à economia mercantil
ampliada, própria ao capitalismo, convertendo a reclusão
em uma grande punição, por impedir a participação no
mercado. É nesse contexto que se discute a situação das
prisões como forma exemplar de punir, e apenas após as
leis abolicionistas, quando cresce o número de pessoas
pobres vivendo e trabalhando nas ruas de grandes cidades
como o Rio de Janeiro, que a justificativa para a apreensão
de crianças pobres, mas agora livres, será formulada.
Começa a tomar corpo, nos Relatórios do Ministério
da Justiça e demais documentos da época, a ideia de que
muito pouco se conseguirá avançar na reforma do sistema
penitenciário e do que se chama de regeneração dos adultos

90 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

criminosos caso o governo não se esforçasse em barrar o


desenvolvimento dos crimes pela educação preventiva,
correcional ou de reforma dos filhos desobedientes, filhos
de uniões ilícitas, enjeitados ou órfãos, menores da lei do
Ventre Livre; jovens vagabundos, ociosos e indigentes não
sujeitos à ação da Justiça Criminal, bem como dos menores
considerados delinquentes. Vemos emergir e consolidar-
se, no Brasil, uma concepção correcional análoga à
francesa, que mesmo sem a escravização em seu território,
no século XIX tem um olhar incisivo para com os pobres
perambulantes das grandes cidades, em especial os mais
jovens. Referindo-se a eles, Donzelot (1980) é enfático ao
dizer que “no interior dessas camadas sociais eles visam
um alvo privilegiado, a patologia da infância na sua dupla
forma: a infância em perigo, aquela que não se beneficiou
de todos os cuidados de criação e da educação almejadas,
e a infância perigosa, a da delinquência” (Donzelot, 1980,
p. 92).
No Brasil, da aprovação da Lei do Ventre Livre, em
1871, à aprovação em 1927 do primeiro Código de
Menores, todo um caminho teve que ser percorrido para
que um novo tutor legal, que não o senhor de escravos e as
instituições caritativas, fosse encontrado para os menores
pobres, mas livres, agora definidos como abandonados
moral e materialmente. Sob a forma judiciária cria-se
para eles um sistema assistencial-preventivo-correcional-
repressivo, com o objetivo suposto de diminuir a
criminalidade futura e, também, de protegê-los.
A partir desse complexo tutelar formado pelo Juiz/
Juizado de Menores, técnicos do campo social e pela rede
de internatos públicos e particulares, os assim definidos
como menores abandonados foram massivamente

verve, 44: 87-103, 2023 91


44
2023

encaminhados para os diversos tipos de internatos,


constituindo esse fato em verdadeiro encarceramento da
população infanto-juvenil pobre. O século XX pode ser
lido como o século do encarceramento, usado para todos
os propósitos, uma vez que foi legitimado como uma
forma pedagógica e restaurativa de assistir e punir. Ainda
hoje, vemos o apelo à boa prisão, à boa punição como saída
única em nome da proteção social.
Com práticas de tortura, morte, fome, adoecimento,
desaparecimento e todas as perversões agora fechadas
a sete chaves, o apelo à prisão ainda no século XXI é
renovado como recurso salvador. Tal encarceramento
foi agravado a partir do final do século passado com a
apreensão de adolescentes acusados de tráfico e uso
de drogas. Mais um elemento discursivo que solapa as
condições pelas quais alguns setores socioeconômicos e
raciais são os destinatários das prisões.
Sob o conceito de socioeducação, no final do século
XX, o Brasil anuncia ao mundo estar inovando em
matéria criminal juvenil, com o Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA (Brasil, 1990), por dar um sentido
pedagógico para os castigos aos infratores. De acordo
com o discurso oficial, seria esse instrumento legal, o
ECA, que romperia com o “atraso” das leis menoristas,
ou seja, o Código de Menores que em sua primeira
versão foi editado em 1927. Colocando em análise essa
perspectiva em sua tese de doutorado intitulada “A
invenção das medidas socioeducativas”, Édio Raniere
(2014) afirma que, “para além das grandes transformações
operacionalizadas pelo ECA, há um conceito menor que
o atravessa quase despercebido. Um conceito que parece
servir à atualização de um dispositivo nunca desativado.

92 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

Um dispositivo que teria escapado a todas as reformas ou


que, talvez, venha sendo sutilmente aperfeiçoado por elas.
Se as medidas já estavam presentes no Código de Mello
Matos desde 1927, e se continuaram sendo aplicadas ao
Código de Menores de 1979, por que o ECA, ao tratar
de adolescentes em conflito com a lei, faz questão de
denominá-las ‘Socioeducativas’?” (Raniere, 2014, p. 50).
Como aponta Raniere, as Medidas Socioeducativas
foram promulgadas como “o grande presente do Estatuto
da Criança e do Adolescente aos delinquentes de nosso
país” (Idem, p. 52). Seria um presente para os determinados
pela própria lei como infratores, por ser um viés pedagógico
mais do que punitivo. Porém, pergunta o próprio autor:
“Ao serem criadas as Medidas Socioeducativas, que tipo
de poder é fortalecido? Quais forças são ampliadas?
Quais são sufocadas e/ou diminuídas? [...] Seria a
Socioeducação um eufemismo criado para aperfeiçoar,
reordenar um procedimento que nunca deixou de existir?
A grande questão estaria na manutenção do mesmo, na
permanência daquilo que parece mudar, mas que continua
operando da mesma forma?” (Ibidem).
As aulas do curso de Foucault de 1972/73 engrossam
os argumentos para desmanchar reiteradas análises que
sugerem que, de acordo com Foucault, a nossa sociedade precisa
de disciplina e de vigilância frente aos delitos. De modo
microfísico, as aulas mostram que a disciplinarização é a
constituição de uma forma de poder chamada pelo autor
de punitivo. Não se trata de uma necessidade de disciplinar,
pois as análises tampouco são conduzidas por desejos
morais, mas sustentadas em acontecimentos produzidos
por forças que compõem campos de poder que, no contexto
dos séculos XVII e XVIII, apontam para a formação de

verve, 44: 87-103, 2023 93


44
2023

relações cujas mecânicas de governo se destacam pela


crença na punição, renovada há mais de quatro séculos.
Com Foucault, não há uma necessidade a priori de punir,
mas produções de formas de exercício de poder.
Trata-se, no caso do poder punitivo, de relações próprias
à formação do capitalismo, que tem como eixo político o
conceito de liberdade. Ventos liberais trazem a ideia de
liberdade como base para uma nova forma de produção,
sustentada no binômio “homem livre - forma salário”. Essa
relação entre liberdade e salário é a condição para comprar
e vender não mais pessoas, mas a força de trabalho. Como
diz Marx, é conceito abstrato, cuja concretude se dá por
unidades de valor, ou seja, por relações de compra-venda já
não de pessoas, mas do tempo em que se emprega a força
de trabalho. São postos em marcha modos de subjetivação
centrados na propriedade privada, na individualização, no
trabalhador individualizado (Sennett, 1999) que venderá
sua força de trabalho, mudando o foco do que é relevante
e ameaçador nas relações cotidianas e, assim, nos modos
de governar.
Buscando uma resposta para o sentido da proposta
do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA
(Brasil, 1990) de transformar a forma de punir os
adolescentes, Raniere se depara com o educador Antônio
Carlos Gomes da Costa, um dos redatores dessa lei,
considerado o responsável pela formulação do conceito de
socioeducação. É dele a seguinte formulação: “(...) assim
como existe educação geral e educação profissional, deve
existir socioeducação no Brasil, cujo objetivo é preparar
os jovens para o convívio social (...) porque o jovem
que cometeu ato infracional, na maioria dos casos, não
dá certo na escola, no trabalho e na vida não pela falta

94 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

de encaminhamentos para a escola ou oportunidades de


profissionalização, mas porque lhe faltou acesso a uma
educação mais ampla, que lhe possibilitasse aprender a ser
e aprender a conviver” (Costa, 2006, p. 57 apud Raniere,
2014, p. 68).
Abstraído do debate caudaloso da metade do século XX
no campo pedagógico e no da criminologia crítica, Gomes
da Costa permanece no discurso que instala a criminologia
liberal atribuindo a cada pessoa — fazendo uso da
liberdade capitalista — as suas possibilidades de ajustar-se
à norma. Sua proposta define quem é normalizado como
correto, educado, moralmente adequado, sem olhar nem
para as condições de vida e culturais dos diversos setores
sociais, nem para as ordens discursivas que alimentam a
cisão entre os normais e os irregulares ou infratores. Uma
formulação que conduz à escrita da lei de 1990, o ECA,
centrada nas individualidades, nas pessoas e suas famílias
como responsáveis por cometer ou não atos que serão
julgados como crime e que terão na educação escolar a
missão de tornar essas pessoas aptas a “conviver”.
O curso de 1972/73, intitulado A sociedade punitiva,
chega tarde ao Brasil. Em 2015. Tarde porque a sua
meticulosidade genealógica contribui a aprofundar o que
já tinha sido publicado décadas antes, em muitos textos,
entrevistas e conferências de Foucault — em especial,
Vigiar e Punir (1987) e A verdade e as formas jurídicas
(2008) —, bem como por tantos outros pensadores que,
malgrado traduzidos e publicados no Brasil, parece não
terem tido a menor ressonância quando discutida a
nova lei. Autores da criminologia crítica, como Rusche
e Kirchheimer da escola de Frankfurt, e da pedagogia
institucional ou da chamada pedagogia revolucionária,

verve, 44: 87-103, 2023 95


44
2023

dentre os quais se inscreve o brasileiro Paulo Freire — com


grande difusão e reconhecimento nacional e internacional
—, são abstraídos pelos herméticos ímpetos punitivos.
A nova lei se desdobra em práticas de acordo com as
quais a vida dos que não se enquadram não é reconhecida
como vida; sua convivência não pode ser respeitada como
convivência; sua educação não é aceita como uma forma
de educar; o seu convívio não é social... Verdades que vão
fazendo entender que é a certas pessoas que cabe temer,
sem abrir espaço para as condições históricas e políticas
que produzem o que se chama crime. Uma enunciação —
o crime —, que só atinge a uns, deixando outros imunes
frente a atos como aqueles que produzem a pobreza,
definem políticas urbanas de segregação e sofrimento,
é responsável por práticas de genocídio em bairros de
pobres e pretos.
A sociedade punitiva é uma obra que traz novos
elementos que contribuem fortemente a criar pontes com
um dos importantes paradigmas das ciências humanas e
sociais no século XX, qual seja, a economia política. Pode-
se dizer que lendo o modo de produção capitalista sob as
lentes de Karl Marx, Foucault convoca Nietzsche em sua
compreensão da moral como um elemento estruturante das
relações políticas. Essas duas bases conduzem a concepção
de Foucault de que a punição emerge como elemento
central das novas artes de governar. Esse pensamento
apresentado no referido curso chega ao Brasil 42 anos
depois de lecionado, sem ser nenhuma novidade. Não
se trata de uma obra salvadora que garantiria qualquer
purificação da leitura de Foucault — até porque teríamos
que acreditar em filtros únicos para ler o mundo.

96 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

Com inspiração nietzschiana, a análise de Foucault sobre


as mudanças trazidas pelo liberalismo transcende o olhar
economicista, entendendo que a nova forma produtiva
se dá, simultaneamente, por: 1) mudanças nos meios e
relações de produção; 2) sentido moral que organiza as
relações cotidianas e institucionais; 3) descentramento da
produção de riquezas, da posse extensiva de homens, terras
e recursos do planeta, para a reprodução e acumulação de
capital. Correlativamente, as novas formas de controle
não acontecem apenas na relação com o território, mas
principalmente sobre a população. Novas formas de
produzir bens materiais e modos de subjetivação; novos
assujeitamentos. Dentre eles, com a criação do assalariado,
do cidadão livre, é enlevado um sujeito que dará sentido às
formas de controle da liberdade apregoada: o criminoso.
Uma invenção centrada não no ato de delinquir, mas
na regeneração daquele que justifica a produção e
implementação sistemática das formas punitivas; daquele
que não fez o uso adequado da sua liberdade.
Raniere (2014) afirma que, no período que vai de
Mello Matos (Brasil, 1927) até a década de noventa do
século passado, todos os conceitos giram em torno da
reabilitação dos adolescentes infratores, tendo a pessoa
como centro do que a justiça consagra como crime. Vera
Malaguti Batista (2008) mostra como possibilidades de ler
o mundo, diversas do sentido positivista, foram ignoradas,
pois, “a partir dos 1970, a criminologia crítica constitui-se
como saber que deslegitima o sistema penal como solução
à conflitividade social. A partir daquelas leituras, já não
se podia crer nas ilusões “re”: reeducação, ressocialização,
reintegração” (Batista, 2008, p. 195). Mas foi e é o
pensamento presente na lei que se propunha, em 1990,

verve, 44: 87-103, 2023 97


44
2023

revolucionário no campo da criança e do adolescente. Não


apenas isso: “(...) haveria algo em comum entre o código
de Mello Matos de 1927, o código de menores de 1979 —
baseado na Doutrina da Situação Irregular —, o Estatuto
da Criança e do Adolescente de 1990, e o próprio SINASE
[Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo]?
Poderia um conceito ter escapado às reformas legais, e
estar sendo sistematicamente aperfeiçoado por elas? Seria
o SINASE a radicalização de um processo de regulação/
dominação sobre o adolescente infrator iniciado há quase
cem anos?” (Raniere, 2014, pp. 138-139).
A tarefa que temos pela frente é a de desativar
a Utopia Correcional. Na mesma linha, no sentido
das interpretações que nos fazem arrepiar os cabelos,
lembramos a pesquisa feita por Tatiane Vieira Curi
para sua tese de doutoramento na UFRJ (2021), que
teve por objetivo investigar a concepção de proteção
integral ao adolescente acusado de ato infracional no
âmbito do judiciário. Como recurso metodológico, Curi
utilizou a análise documental dos processos judiciais
vinculados à Vara de Conhecimento da Vara da Infância
e Juventude do Estado do Rio de Janeiro, em que houve
aplicação conjugada de medidas socioeducativas e
medidas protetivas, entre os anos de 2016 e 2019, além
de entrevistas com psicólogas(os) e autoridade judicial.
Os resultados indicaram o que Curi define como sendo
uma confusão de vias entre socioeducação e proteção, na
medida em que algumas medidas restritivas de liberdade
eram indicadas como medidas de proteção.
Esse é um cenário recorrente no Brasil em relação a
medidas que incidem sobre crianças e adolescentes negros
e pobres. Ou seja, como medida de proteção de crianças

98 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

e adolescentes pobres adota-se a internação compulsória


em internatos, em sua maioria verdadeiros cárceres, que
produzem justamente o indivíduo “incorrigível” que será
preso futuramente. Assim, por melhores que sejam nossas
intenções, é necessário compreendermos a mágica que
transforma encarceramento em produção de liberdade,
cidadania, autonomia e responsabilidade, conforme os
propósitos da socioeducação. Segundo ainda Raniere
(2014), a “genialidade” atribuída pelos discursos latino-
americanos a Gomes da Costa “está em fazer pelo
aprisionamento juvenil algo muito próximo que Lutero fez
pelo cristianismo: uma reforma a ponto de reestabelecer a
utopia, a esperança, a fé na correção do indivíduo. E é por
isso que entre os tantos redatores do Estatuto da Criança
e do Adolescente, penso que Antônio Carlos seja quem
melhor expõe o rosto das medidas socioeducativas, é ele
quem deixa claro aquilo que a socioeducação quer” (Idem,
p. 67).
Em diálogo com Raniere, podemos nos perguntar: o
que seria, então, o que a socioeducação quer? As práticas
prisionais para adolescentes deixam claro como o discurso
da socioeducação não é outro que a explosão de uma moral
sustentada no discurso liberal de liberdade, de acordo
com o qual liberdade e punição formam um binômio:
a liberdade é subjetivada como antítese da punição.
Antes de pensar em como punir, há um assujeitamento
à necessidade de punir como condição para a existência
da sociedade. Porém, embora sejam múltiplas as formas
de punir, a punição é simbolizada pela forma considerada
sua expressão extrema: a prisão. O que está em jogo não
é tanto a técnica punitiva, mas o assujeitamento ao poder
punitivo, que prevalece no capitalismo. Como sintetiza

verve, 44: 87-103, 2023 99


44
2023

Foucault (2015, p. 228), trata-se de “punição mais que


pena”. No dizer de Harcourt, o curso A sociedade punitiva
“vincula a economia política à genealogia da moral na
constituição de uma nova forma de poder, que torna
indissociável a forma-salário e a forma-prisão” (Harcourt,
2015, p. 244).
Ao se perguntar sobre o que querem as medidas
socioeducativas, lembra Raniere (2014) que Gomes
da Costa, embora com várias publicações voltadas para
a socioeducação, também tem publicações específicas
sobre empreendedorismo, tendo realizado vários projetos
em parceria com a Fundação Odebrecht (p. 72). “Ao
estimular o protagonismo do adolescente, a Fundação
Odebrecht vislumbra a formação de uma nova geração
de adolescentes, agentes das profundas transformações
que a sociedade contemporânea exige. (...) Nas ações
empreendidas pela fundação Odebrecht, os adolescentes
tornam-se muito mais parceiros do que alvos das ações e
projetos, participando ativamente da criação, organização,
realização e avaliação das atividades” (Costa; Vieira, 2006,
p. 259 apud Idem, p. 74).
Como apresenta Raniere, a utopia correcional do
SINASE apoia-se no mercado, no empreendedorismo,
no protagonismo juvenil, na criação e conclusão de metas.
Mas aqui cabem as perguntas: os adolescentes privados
de liberdade tornaram-se mais livres, mais responsáveis,
mais empreendedores e mais bem sucedidos, em função
da aplicação das medidas socioeducativas? As práticas
de torturas e humilhações deixaram de existir nas
unidades de internação? Diminuíram as reincidências, os
adoecimentos e as mortes?

100 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

Para Edson Passetti (1999, p. 371), o ECA “...


substituiu as penas por medidas socioeducativas, mas
manteve inalterado o princípio do encarceramento”. Na
prática, isso significa que: “O jovem a ser educado para ser
um cidadão na vida adulta está encurralado: se for pobre
e habitante da periferia da cidade, após cometer uma
infração e ser apanhado em flagrante, resta-lhe saber que
existe e existirá sempre a prisão/internato. Um sistema
espelhado na prisão para adultos, em que as medidas
socioeducativas atuais nada mais são do que a nova face
da crueldade com adolescentes pobres” (Idem, p. 372).

Referências bibliográficas
Arantes, Esther M.M. “Dos livres e dos cativos - Breves
apontamentos sobre a História das Crianças no Brasil”. In:
Serviço Social Em Debate, 5(1), 2022, pp. 6-18. Disponível
em: https://revista.uemg.br/index.php/serv-soc-debate/arti-
cle/view/6346 (acesso em 10 de junho de 2023).
Batista, Vera Malaguti. “Adeus às ilusões “re””. In: Coimbra,
C. M.; Ayres, S.M.L.; Nascimento, M.L. Pivetes. Encontros
entre a psicologia e o judiciário. Rio de Janeiro, Ed. Juruá, 2008.
Brasil. Código de Menores, 1927.
Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069 de
1990.
Brasil. Relatórios Ministeriais (1921-1960). Brazilian
Government Documents. Disponível em: https://www.crl.
edu/brazilian-government-documents (acesso em 10 de ju-
nho de 2023).
Curi, Tatiane V. Proteção Integral ao Adolescente a acusado
de ato infracional no Estado do Rio de Janeiro: Uma análi-
se da Confusão de Vias no âmbito do Poder Judiciário. Tese de

verve, 44: 87-103, 2023 101


44
2023

Doutorado em Psicologia da Universidade Federal do Rio


de Janeiro, 2021.
Donzelot, Jaques. A polícia das famílias. Tradução de M. T. da
Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1980.
Durkheim, Émile. “Aula inaugural do curso de Ciências
Sociais – Bordeaux, 1887”. In: Castro, Ana Maria; Dias,
Edmundo Fernandes (Orgs.). Introdução ao Pensamento
Sociológico. Rio de Janeiro, Eldorado, 1977.
Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão.
Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
________. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de
Roberto Cabral de Melo Machado e Educardo Jardim
Morais. Rio de Janeiro, Nau Editora, 2008.
________. A sociedade punitiva: curso do Collége de France
(1972-1973). Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo,
Editora Martins Fontes, 2015.
Harcourt, Bernard E. "Situação do curso". In: Foucault,
Michel. A sociedade punitiva: curso do Collége de France
(1972-1973). Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo,
Editora Martins Fontes, 2015, pp. 241-284.
Melossi, Dario & Pavarini, Massimo. Cárcere e fábrica: origens
do sistema penitenciário (séculos XVI-XVII). Rio de Janeiro,
Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2006.
Passetti, Edson. “Crianças carentes e políticas públicas”. In:
Del Priore, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São
Paulo, Ed. Contexto, 1999.
Raniere, Édio. A Invenção das Medidas Socioeducativas. Tese
de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul
-Instituto de Psicologia- Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social e Institucional. Porto Alegre, UFRGS, 2014.
Sennett, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias
da intimidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe. São
Paulo, Companhia das Letras, 1999.

102 verve, 44: 87-103, 2023


verve
medidas socioeducativas: o sentido produtivo da punição

Resumo:
A pesquisa genealógica apresentada no curso de Michel Foucault A
sociedade punitiva é uma expressiva contribuição ao debate sobre
o sentido produtivo da punição e, em especial, da prisão. Longe do
moralismo contido no ideário liberal, Foucault apresenta as práticas
punitivas, com foco nas institucionalizadas, como instrumentos
do Estado; como tecnologias de governo. A atualidade do seu
discurso, no debate sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
de 1990, está no fato de ele ser assumido internacionalmente
como uma legislação transformadora, malgrado propor “medidas
socioeducativas” que não são mais que modulações de um discurso
carcerário, incorporando explicitamente a educação formal à arte
do bem punir.
Palavras-chave: Medidas socioeducativas, punição, Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Abstract:
The genealogical research presented in Michel Foucault’s
course The punitive society is an expressive contribution
to the debate about the productive sense of punishment and,
specially, of the prison. Far from the moralization of the
liberal thought, Foucault presents the punitive practices,
above all the institutionalized ones, as State instruments; as
governmental technologies. The actuality of his discourse is in
the debate about the Child and Adolescent Statute of 1990,
assumed internationally as a transformed legislation, despite
it proposes the “socioeducational measures”, that are nothing
else than modulations of a prisoning speech, incorporating
explicitly formal education to the art of the good punishment.
Keywords: Socioeducational measures, punishment, Brazilian
Child and Adolescent Statute.
Socio-educational measures: the productive sense of
punishment, Estela Scheinvar & Esther Maria de
Magalhães Arantes.

verve, 44: 87-103, 2023 103


44
2023

azucrinar dissidências:
estrondos em constelações libertárixs

flávia lucchesi & luíza uehara

Do outro lado do planeta, no começo do século XX,


em 1905, de uma úmida e mofada cela de uma cadeia, o
anarquista Ôsugi Sakae escreveu sobre seus dias recluso:
“No mundo comum, ‘Destino: Sugamo’ apenas se refere
ao trajeto do bonde e não tem muita relação com a vida da
maioria das pessoas. Para nós, porém, significa ‘Destino:
Prisão’. (...) Fui enviado para Sugamo por três vezes. (...)
Acho que a antiga casa de detenção provavelmente ficava
em Kajibashi. Quando a demoliram, usaram as pedras
e os tijolos para construir a nova prisão aqui. (...) Esse
prédio também era um hospital onde ficavam cegos,
aleijados, idosos que não podiam se locomover bem,
deficientes e semi-inválidos. Duas vezes fui transferido
para uma grande cela nesse prédio. Na primeira vez em
que fui levado na cadeia de Tóquio para uma dessas
celas escuras e frias, fiquei desolado. Era meio-dia na

Flávia Lucchesi é pesquisadora no Nu-Sol. Contato: flalucchesi@gmail.com.


Luíza Uehara é pesquisadora no Nu-Sol. Contato: luiza.uehara@gmail.com.

104 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

primavera e o sol brilhava com o calor do início do verão.


No entanto, quando entrei naquela cela, senti, de repente,
o ar gelado percorrer o meu corpo. Bastou olhar para as
quatro paredes de tijolos cobertos de cal e a grande porta
de ferro blindado para me fazer estremecer. Quando fui
tocá-las com as mãos, o frio atravessou o meu corpo.
Em meio à escuridão havia apenas uma luz fraca vindo
de uma pequena abertura da janela que, de tão alta, era
impossível alcançá-la mesmo com muito esforço. Havia
tatames finos para sentar espalhados pelo chão de tábuas,
mas estavam pegajosos por causa da umidade. (...) A mesa
do guarda estava posicionada precisamente de frente para
mim. Estar o tempo todo sob observação dessa forma era
desagradável (...). Enquanto pensava nisso, o barulho de
alguma movimentação veio do corredor e o guarda abriu a
porta dizendo: ‘venha’. Além da porta, vi 20 presos sentados
no chão de concreto em duas fileiras, uns de frente para
os outros. Cada um tinha as duas mãos nos joelhos, de
frente para uma bandeja de comida. Eu me sentei no fim
da fila. ‘Reverência!’ Uma voz alta deu uma ordem que
por um momento não entendi. Todos inclinaram a cabeça,
mantendo as mãos nos joelhos. ‘Iniciar a refeição!’ A voz
alta ordenou novamente, e mais uma vez não entendi de
início, ouvindo apenas ‘refeição’. Cada um pegou a tigela
de arroz e os hashis imediatamente. Em seguida, muito
rapidamente, todos começaram a revolver a grande bola
de arroz endurecido que havia sido colocado no meio
da tigela. Deve ser isso que as pessoas querem dizer,
pensei, quando se referem a ‘almas famintas’. Os homens
separavam um pouco do arroz da bola, atiravam para
dentro da boca, engoliam, atiravam de novo, engoliam de
novo. O ritmo era frenético. Fiquei perplexo com o que

verve, 43: 104-128, 2023 105


44
2023

estava vendo. O guarda gritou algo novamente. ‘Número


0000!’ Assustado, virei-me para o guarda. ‘o que é que está
olhando? Anda logo, coma!’, ele gritou comigo. Olhei para
baixo e pela primeira vez percebi que meu nome de família
tinha se transformado em número 0000. Peguei minha
tigela rapidamente. Mas, antes de atirar para dentro um
pouco mais da metade da minha bola de arroz, os outros
já estavam sentados com as costas retas e as mãos nos
joelhos” (Ôsugi, 2002, pp. 150-151).
***
A descrição da sobrevivência em uma prisão do outro
lado do planeta, cuja tecnologia foi importada dos países
localizados no continente europeu, apresenta mais um
dentre tantos outros relatos de libertárixs encarceradxs.
Essas memórias evidenciam que não há vida livre na
prisão, não há reforma que possa salvá-la. Na prisão, só há
mortificação da vida e sufocamento da existência.
Porém, essa prisão-prédio é somente um dos pontos
limítrofes de irradiação das penalidades. Quase 70 anos
depois da carta escrita por Ôsugi, Michel Foucault
ministrou o curso A sociedade punitiva (2015) no
Collège de France. A partir das análises e ferramentas
apresentadas por Foucault naquele momento e que se
desdobrariam na publicação de Vigiar e Punir alguns
anos depois, é possível analisar e apresentar fragmentos
de lutas e resistências libertárias às relações de poder.
Esses fragmentos possibilitam construir uma constelação
de lutas em que não há síntese e nem a pretensão de ser
a história verdadeira, mas confrontos e explosões que se
desdobram em assimilações, e também em invenções,
tensões, novas batalhas. Uma constelação que pode levar

106 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

a singrar por outros mares, espaços outros, andando junto


com companhias surpreendentes. Uma constelação que
atiça revoltas.
Em A sociedade punitiva, Foucault construiu a noção
de guerra civil para a análise das penalidades, o que
possibilitou mostrar o funcionamento da prisão não
como um ponto nevrálgico, universal e de simples tomada
de poder de um sobre o outro, mas sim por meio das
penalidades, ao que respondem e como respondem. Ao
traçar essa análise, Foucault compreendeu que o poder
não é o que a suprime, mas o que trava e dá continuidade
à guerra civil. A noção de guerra civil apresentada por ele
é a continuação da política, e não é situada em termos
contratualistas como em Hobbes.
Para Foucault, a guerra civil não é anterior à
constituição de um poder unitário, como apresentado
pelos contratualistas. A guerra civil também não está
delimitada a um enfraquecimento do poder, ela acontece
no jogo próprio do poder, para mantê-lo ou conquistá-lo,
confiscá-lo ou transformá-lo. “A guerra civil desenrola-
se no teatro do poder [...] Seria possível mostrar que a
guerra civil é, ao contrário, aquilo que assombra o poder:
assombrar não no sentido de causar medo, mas no de
que a guerra civil habita, permeia, anima e investe o
poder integralmente. (...) O exercício cotidiano do poder
é de certa maneira travar a guerra civil, e todos esses
instrumentos, essas táticas que podem ser distinguidas,
essas alianças devem ser analisáveis em termos de guerra
civil” (Foucault, 2015, pp. 28-31).
Assim, já na segunda aula, Foucault aponta que
analisará as penalidades em seu nível tático, apartando-

verve, 43: 104-128, 2023 107


44
2023

se das concepções ético-religiosas de culpa, pecado e


impureza, mas perguntando quem pune, como pune,
quem é punido, por quais instrumentos.
Vale destacar ainda que A sociedade punitiva não é uma
demanda por justiça popular, como a que atiçou Sartre na
década de 1970 enquanto procurador-geral de um tribunal
popular para fazer o Estado assumir a responsabilidade
pela morte de mineradores, como recordou Daniel Défert.
Não se trata de propor um novo teatro do tribunal, como
explicitou Foucault em entrevista de 1971 ao apresentar
os objetivos de sua militância no GIP (Grupo de
Informações sobre as Prisões), enfrentando o insuportável
da vida aprisionada, “— Nosso propósito não é fazer obra
de sociólogo nem de reformista. Não se trata de propor
uma prisão ideal. Creio que por definição, a prisão é um
instrumento de repressão. Seu funcionamento foi definido
pelo Código Napoleônico, há quase 170 anos, e evoluiu
relativamente pouco desde então (...).
— Quais são as suas opiniões pessoais sobre o problema
que cria a existência das prisões?
— Não tenho opinião a respeito. Estou lá para recolher
documentos, difundi-los e eventualmente incitá-los.
Simplesmente, capto o intolerável. A insipidez da sopa
ou o frio do inverno são relativamente suportáveis. Em
compensação, aprisionar um indivíduo porque tem um
caso com a justiça não é aceitável!” (Foucault, 2010, pp.
32-33).
Para compreender o funcionamento da prisão e sua
continuidade, mesmo frente à bandeira dos reformistas
que alegam reiteradamente o seu aparente fracasso,
Foucault voltou-se às instâncias parapenais, notadamente

108 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

no século XVIII, que anunciaram a forma-prisão


consolidada no século seguinte. “Porque há cento e
cinquenta anos e durante cento e cinquenta anos a prisão?”,
questionou (Foucault, 2015, p. 206). Hoje, reiteramos:
porque há duzentos anos a prisão? E ecoamos: “em que
sistema de poder a prisão funciona?” (Idem, p. 207). Este
questionamento simples foi destacado pelo filósofo ao
final do curso A Sociedade Punitiva e, por si só, leva ao
desmoronamento da suposta universalidade da prisão.
Foucault indicou que, não apenas a arquitetura especial
das prisões, mas sua forma se vincula às sociedades atadas
ao Estado. Cerca de um ano depois do curso ministrado
por Foucault, também na França, o antropólogo Pierre
Clastres em A Sociedade contra o Estado (2012) constataria
seu apontamento. Em outras culturas, que não carecem
de Estado, mas se fazem contra o Estado, a forma-prisão
inexiste. Assim como não há polícia.

a dissidência: uma remoralização infindável


Ao realizar a genealogia do sistema penal, Foucault
retoma a passagem do século XVIII para o XIX, quando o
sistema penal francês absorveu a prisão como um castigo,
e demonstra como isso foi possível pela integração ao
aparato estatal centralizado e pelo desenvolvimento de
um mecanismo de vigilância igualmente centralizado.
Entretanto, foram imprescindíveis as instaurações de
instituições parapenais que buscavam conter as novas
formas de ilegalismos. Diante disso, com a exposição do
capital ao banditismo e à iminência dos furtos cotidianos,
foi preciso reformar certas maneiras de redução dos riscos

verve, 43: 104-128, 2023 109


44
2023

às fortunas da burguesia, “o problema era o enquadramento


moral das populações” (Foucault, 2015, p. 98). Um dos
efeitos dessa moralização é a emergência da polícia,
organizada por alguns habitantes de bairros londrinos em
patrulhas para garantir a vigilância e a ordem moral; o
recrutamento desses homens ocorria entre os notáveis e a
alta burguesia. Muito mais que uma sanção penal, havia
um ataque ao que seria uma falha moral. Tais relações
de forças incidiam preferencialmente sobre os corpos
dos trabalhadores, suas forças e seu tempo, cujas revoltas
não eram interessantes à burguesia como foram outrora
enquanto eram camponeses. A figura produzida pela
prisão — do delinquente — era a ameaça chave para o
exercício desse poder, e também entre os próprios súditos.
A religião foi fundamental para essa transmutação.
Mais do que a instituição e a Igreja, foi a dissidência
religiosa de metodistas e quakers que exerceu um papel
crucial ao anunciar a penitência, produzindo uma conexão
“jurídico-religiosa” (Idem, p. 85). Eles exerciam um certo
controle moral sobre si mesmos para escapar das penas,
que acabaram por deixar de ser uma autodefesa ante à
penalidade, para se tornarem demandantes de novas leis
e intervenções estatais. Não foram somente dissidências
religiosas, mas penais-judiciárias. Nas tensões das relações
de poder, a dissidência é um dos nós prontos a serem
absorvidos e recrudesce tais relações, no caso, as punições.
Nos anos 1760, na Inglaterra, os inspetores morais
metodistas, que examinavam os casos de adultério,
embriaguez e fuga do trabalho, puseram em funcionamento
métodos coletivos de controle entre a própria comunidade
religiosa pautados na punição do mal, que era definido
e delimitado pela moral e pela religião. Visavam: “impor

110 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

respeito aos domingos, ou seja, impedir que as pessoas


se distraíssem, fossem à taverna, lá se reunissem e
gastassem; impedir o jogo e a bebedeira, fontes de despesa
e obstáculos ao trabalho; eliminar a prostituição e tudo
o que pudesse ameaçar a família; reprimir os desvios de
linguagem” (Ibidem, p. 96). Quase simultaneamente,
nos Estados Unidos da América, os quakers ascenderam
à administração penitenciária na cidade de Pensilvânia,
entre as décadas de 1780 e 1790, quando fundaram a
Philadelphia Society for Alleviating the Miseries of Public
Prisons com o objetivo de humanizar as prisões e de
melhorar o processo de reabilitação dos egressos (Salles,
2011). De forma semelhante aos metodistas ingleses,
buscavam uma alegada “elevação espiritual” dos presos,
por meio do confinamento e da imposição de uma
dieta, pretendendo o esquecimento dos antigos hábitos
e paixões que seriam substituídos pelo divino. Ou seja,
pela introjeção moral e normativa, pela conscientização.
Eis a dissidência, sem qualquer novidade, mas, nesse caso,
reforçando a moral e a cultura do castigo.1
Os quakers, sociedade secreta cristã dissidente, foram
perseguidos na Inglaterra. Em 1662, o parlamento

1
Os quakers avançaram pelo século XX envolvidos com a questão penal.
Na década de 1980, organizaram a primeira Conferência Internacional
para a Abolição da Prisão (ICOPA). Foi uma importante procedência
para os movimentos abolicionistas anglófonos, propiciando espaços de
articulação das estratégias abolicionistas, nos quais Louk Hulsman teve
presença decisiva (Salles, 2011). “Hulsman soube destacar com precisão
a conduta religiosa da atitude dos quakers como abolicionistas” (Passetti,
2020, p. 5). Foucault, em um período entre Voltairine de Cleyre e Louk
Hulsman, fechou o cerco contra os quakers estancando como reforçaram a
autoridade do Estado no intuito de corrigir imoralidades e “dominar o mal
na sociedade” (Foucault, 2015, p. 157).

verve, 43: 104-128, 2023 111


44
2023

britânico promulgou o “Quaker Act”, que levou à fuga


de centenas de quakers para os Estados Unidos, então sob
domínio do governo colonial inglês. O Ato foi derrubado
em 1689 pelo “Tolerantion Act”. No “novo mundo”, os
tolerados quakers foram uma das forças ativas pela abolição
da escravatura, negavam-se a pagar impostos e a portar
armas. Embora ainda fossem considerados, também entre
os colonos puritanos, como perturbadores.
Em 1912, a anarquista Voltairine de Cleyre, ao tecer
suas considerações sobre a ação direta, mostrou como os
quakers agiam diante e contra as ações políticas desses
puritanos que aplicavam a lei, determinando exclusões,
deportações, multas, detenções, mutilações e, por vezes, o
enforcamento (De Cleyre, 2005). Frente às violências da
ação política, respondiam com ação direta não-violenta.
Para ela, apresentavam um exemplo de ação direta como
prática “contra a autoridade legalmente constituída e os
direitos de propriedade” (Idem, p. 09). Eram um exemplo,
dentre tantos outros encontrados na história, de gente
que não se acomodou diante da ação política e “foi e fez”.
Contudo, não se tratava da ação direta anarquista, como
ela pontuou. De Cleyre voltou seu olhar aos quackers
para sinalizar como a ação direta acontecia nas relações
cotidianas, no presente. Nesse sentido, era entendida
pontualmente como a atitude de “toda pessoa que já
planejou fazer algo, e foi e fez, ou apresentou um plano a
outrxs e ganhou sua cooperação para fazê-lo juntxs, sem
ter que recorrer às autoridades e pedir-lhes que, por favor,
o fizessem por elxs, foi uma praticante de ação direta.
Todos os experimentos cooperativos são essencialmente
ação direta. Qualquer umx que em algum momento de
sua vida teve que resolver uma diferença com outra pessoa

112 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

e foi diretamente à(s) outra(s) pessoa(s) envolvida(s) para


resolvê-la, de forma pacífica ou não, foi umx praticante de
ação direta” (Ibidem, p. 08).
A ação direta, segundo a libertária, manifesta a força
comum também aos demais seres viventes que não se
rendem sem batalhar, que não aceitam morrer mansos e
adestradamente. No campo das lutas sociais, evidencia
o combate em comum contra os apropriadores da terra,
das máquinas e das riquezas. A greve, jamais pacífica e
sempre violenta, explicitava a ação direta e sua força —
o que Foucault também mostrou, pela criminalização da
“depredação” como ameaça ilegalista. No caso das greves
de telégrafos, a libertária, pontuou: cortavam-se cabos; nas
de siderúrgicos: desajustavam-se as válvulas, destruíam-
se as caras prensas; nas de tecelões: incendiavam-se os
tecidos. Em todas essas, e nas demais fábricas, xs grevistas
enfrentavam os fura-greves, os dedos-duros, as milícias e
polícias oficiais (Ibidem).
Ação direta não é dissidência, ou uma oposição na
espera de ser assimilada. É uma prática libertária e
não uma conduta. A ação direta está em combate às
representações e não espera o momento oportuno ou
o mando de um líder para se concretizar. Em 1946, no
Brasil, o anarquista José Oiticica, ao retomar o periódico
Ação direta, destacou: “Fora da ação direta, só existe um
método: o colaboracionismo, o reformismo, as eleições
com vistas ao poder, numa palavra: ação indireta. [...]
Ação direta designa sua convicção firme de não lutarem
por procuração, de jamais confiarem nas blandícias do
lobo-Estado, por lgu-lo sempre traidor, mentiroso e cruel.
[...] Só a ação direta abala tronos, ameaça tiaras, convolve
mundos” (Oiticica, 2016, pp. 64-65).

verve, 43: 104-128, 2023 113


44
2023

Por vezes, anarquistas podem buscar sossego em


dissidências. O ilegalismo moral, manifesto pela recusa
ao casamento, foi enfrentado com radicalidade apenas
por algunxs libertárixs, que foram tomadxs como alvos de
investidas moralizantes também por parte de outrxs ácratas
que, igualmente, diziam-se contrárixs ao matrimônio.
É o que apresentam pesquisadorxs contemporânexs a
partir de arquivos da imprensa anarquista produzidos em
diferentes línguas, no final do século XIX e nas primeiras
décadas do século XX, tanto acerca do casamento quanto
do hábito de beber álcool e de jogar ou de frequentar
festas como o carnaval e prostíbulos.2 Desde diferentes
localidades, certas mulheres libertárias — como Emma
Goldman, Mimi FAI, América Scarfó, Pepita Guerra,
Lucía Sanchez Saornil, Maria Lacerda de Moura, Ito
Noe — já escancaravam a hipocrisia de muitxs ácratas que
pregavam uniões livres, mas não rompiam com as condutas
de marido e mulher, de pai e chefe de família e, muitas
vezes, condenavam as práticas de amor e de sexo livres.
Emma Goldman foi incisiva ao enfrentar o moralismo
majoritário entre ácratas. Para ela, não bastava apontar as
similitudes com os burgueses e religiosos, e não hesitou:
“a censura por parte de meus camaradas tinha o mesmo
efeito sobre mim que a perseguição policial” (Goldman,

2
No Brasil, Margareth Rago em Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar
e a resistência anarquista – Brasil 1890- 1930 (2014); na Argentina, Laura
Cordero Fernandez em Amor y anarquismo: experiencias pioneras que pensaron
y ejercieron la libertad sexual (2017); na Espanha, Richard Cleminson em
Anarquismo y sexualidad (España, 1900-1939) (2008) e Piro Subrat em
Invertidos y rompepatrias: marxismo, anarquismo y desobediencia sexual y de
género en el estado español (1868-1982) (2019); nos Estados Unidos, Terence
Kissack em Free Comrades: Anarchism and Homosexuality in the United States,
1985-1917 (2008).

114 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

2015, p. 403). Ela proferiu essa afirmação quando


“camaradas” tentaram dissuadi-la a não se posicionar
abertamente contra a perseguição às pessoas identificadas
como homossexuais.
Certa vez, Ôsugi Sakae e Ito Noe foram alvo
dxs libertárixs no Japão por praticarem o amor livre
dispensando a fidelidade monogâmica, mas construindo
uma relação de cumplicidade. Na Europa, Emilienne
Morin — a Mimi FAI, relegada à história como “a
companheira de Buenaventura Durrutti”, combatente da
Revolução Espanhola —, surpreendia xs revolucionárixs
ao dividir as tarefas domésticas com seu companheiro. Era
alvo constante de anarquistas que pretendiam estabelecer
uma nova moral em negação à burguesa e religiosa, mas
reproduziam e espelhavam essas mesmas condutas. Ao sul
da América, a libertária América Scarfó, então com 14
anos, também foi alvo de anarquistas que a condenavam
por sua vida amorosa com Severino di Giovanni, que
tinha o dobro de sua idade e era casado. Essas práticas de
camaradagem amorosa, como equacionaria Émile Armand,
não são dissidências e não estão dispostas a serem tragadas
por estados civis e nem identificadas por siglas ou letras,
apenas existem em suas intensidades próprias e únicas.
São insuportáveis às sentinelas da moral, algumas delas,
incrustradas e disfarçadas entre libertárixs.
No início da década de 1970, no curso A sociedade
punitiva, Foucault já alertava para o efeito das dissidências
entre os então recentes movimentos de minorias.
"Existe uma espécie de simetria histórica entre aquela
dissidência do século XVIII e o movimento atual de
‘dissidência moral’ na Europa e nos Estados Unidos.

verve, 43: 104-128, 2023 115


44
2023

Assim, esses [movimentos] que lutam pelo direito ao


aborto, à constituição de grupos sexuais não familiares,
à ociosidade, ou seja, todos aqueles que lutam pela
descriminalização das infrações penais ou contra o atual
funcionamento do sistema penal, em certo sentido fazem
o trabalho simétrico e inverso do trabalho feito no século
XVIII pelos agentes da dissidência religiosa que assumiam
a tarefa de interligar moral, produção capitalista e aparato
estatal” (Foucault, 2015, p. 104).
Em nota no manuscrito dessa aula,acerca da constituição
de grupos sexuais não familiares, Foucault evidenciou se
tratar do movimento pelo “direito à homossexualidade” e,
acerca da ociosidade, do movimento pelo “direito à droga”.
Cinquenta anos depois, esses movimentos de minorias
passaram da luta pela descriminalização à produção
de novas e intermináveis criminalizações das condutas
dos outros. Operou-se uma inversão, talvez similar à
que Foucault indicou em relação a esses movimentos e
às dissidências religiosas-penais do século XVIII. Eis
o funcionamento das dissidências. Articulam-se para
proteger os seus das penalidades sociais e, ao não romperem
com a sociedade fundamentada nos castigos, acabam por
refazer o mesmo trajeto – ou o trajeto do mesmo.
No final daquela década, entre 1977 e 1978, em um novo
curso no Collège de France, Segurança, território, população
(2008), Foucault retomou a questão da dissidência. Ao
diferenciá-la da revolta, definiu esse termo como “formas
de resistências muito mais difusas e muito mais suaves”
(Foucault, 2008, p. 264). As dissidências se afastam da
atitude e do impulso vital de revolta. Postulam novas
condutas que buscam responder, muitas vezes como mera
negação ou alternativa, às condutas dos outros. Um de seus

116 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

produtos não é de surpreender ninguém: criminalizações


de condutas, mesmo tendo sido elas próprias, outrora,
alvos de criminalização.
Hoje, principalmente pela conexão com as identidades,
a dissidência segue incorrendo entre libertárixs. De um lado,
pela aproximação com outras minorias,para as quais o termo
dissidência é muito comum, notadamente no contexto
latino-americano. É frequente encontrar essa palavra em
publicações anarco-queers ou transanarcofeministas, por
exemplo. Perseguem a afirmação de formas de resistência,
notadamente no âmbito do gênero e nas maneiras de se
relacionar sexual e amorosamente, mas não atentam para
o funcionamento próprio à dissidência na reprodução
e produção de assujeitamento e governo das condutas,
ou seja, em uma infindável remoralização indissociável
de castigos. De outro lado, frente à multiplicidade que
dá formas aos anarquismos, certas perspectivas tendem
a fomentar dissidências, disputas e cisões em torno do
que seria “o verdadeiro anarquismo”. Logo, qual seria a
conduta exemplar “do verdadeiro anarquista”? — por mais
paradoxal que isto soe.
Apegar-se a cartilhas como O Catecismo Revolucionário
de Sergei Nechayev ou ao Catecismo de Mikhail Bakunin
e tornar-se o seguidor das palavras desses escritos para
se definir como anarquista é não se atentar para as
lutas e urgências às quais essxs libertárixs respondiam
no século XIX. Por vezes, confunde-se a incessante
experimentação ético-estética com as fixas e inócuas
declarações identitárias. Anarquistas enfrentam com suas
mais variadas táticas as relações de poder no presente,
inventam novos modos de existir e se inquietam em como
dar formas à liberdade. Não à toa, as relações amorosas, a

verve, 43: 104-128, 2023 117


44
2023

educação libertária, uma alimentação livre de sofrimento


e aprisionamentos, o modo de lidar com a natureza e os
demais bichos, e invenções de outros costumes sempre
foram preocupações entre xs libertárixs para além de
qualquer instrução medicinal ou autoridade que diga
como se cuidar. Declarar-se anarquista é muito distinto
de fazer-se anarquista em suas relações, em suas práticas
cotidianas, em suas lutas infindáveis também de cada umx
contra si mesmx.

ilegalismos e penalizações da existência: a


resistência começa no corpo
No século XIX, concomitante às transmutações no
sistema penal, recrudesceu-se a função do infiltrado,
dedo-duro, alcaguete; da denúncia como conduta a ser
fomentada enquanto parte constitutiva da moralização do
operário. Todavia, todos esses recursos não foram capazes
de estancar os ilegalismos populares: “econômico (quebra
de máquinas), social (constituição de associações), civil
(recusa ao casamento), político (rebeliões)” (Foucault,
2015, p. 139). Anarquistas praticavam esses ilegalismos
não enquanto dissidência, mas enquanto um combate
incessante às relações de poder e seus efeitos. Como lançou
Foucault, em 21 de fevereiro de 1973: “pode-se dizer que
a força da ideologia anarquista está ligada à persistência
e ao rigor dessa consciência e dessa prática ilegalista na
classe operária — persistência e rigor que nem a legalidade
parlamentar nem a legalidade sindical conseguiram
absorver” (Idem, pp. 139-140). E como viria a concluir
em Vigiar e Punir, xs anarquistas “colocaram o problema

118 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

político da delinquência; quando pensaram reconhecer


nela a forma mais combativa de recusa da lei; quando
tentaram, não tanto heroicizar a revolta dos delinquentes
quanto desligar a delinquência em relação à legalidade e
à ilegalidade burguesa que a haviam colonizado; quando
quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das
ilegalidades populares” (Foucault, 2005, p. 256).
Xs anarquistas combateram a sequestração de seus
tempos pelas longas e duras jornadas de trabalho, por fim,
limitando-as a 8 horas diárias — às quais muitos estão
ainda hoje formalmente atados, mas diante das modulações
de empregos em empresas e empreendedorismos o limite
de horas já não é uma variável a ser questionada — e não
se acomodaram em sindicatos e representações políticas;
liberaram-se das conduções religiosa e partidária que
também administravam os tempos livres. Suas respostas
foram festas, ateneus, educação libertária, periódicos,
filmes, entre tantas outras invenções ácratas... Entretanto,
no começo do século XX, não eram incomuns os vetos à
embriaguez e à devassidão que, em sua maioria, deram
continuidade à reprodução da família e à renovação das
forças de trabalho nas fábricas. Apesar da preocupação
dxs anarquistas atravessar uma questão de saúde, com
o cuidado de si para estarem dispostxs à luta e para
manterem-se saudáveis em um momento em que a falta
de higiene sucumbia inúmeras pessoas, tal prática foi
absorvida rapidamente enquanto uma remoralização do
operário. Entretanto, olhares atentos já sinalizavam para as
absorções remoralizantes nas relações familiares e algunxs
anarquistas defendiam ferrenhamente a maternidade
voluntária, propagando métodos contraceptivos como
fizera Emma Goldman, a greve dos ventres como

verve, 43: 104-128, 2023 119


44
2023

propusera Maria Lacerda de Moura ou defendendo


abertamente a decisão da mulher acerca da reprodução,
como fizera Émile Armand.
Nesse momento, mais do que a depredação, despontava
um novo ilegalismo pela dissipação, não mais voltada às
máquinas e riquezas, mas ao próprio corpo e aos desejos
dos trabalhadores. Assumia três formas principais: a
intemperança, acusada de desperdiçar o próprio corpo;
a imprevidência, de dispersar o tempo; a desordem, pela
mobilidade ou o nomadismo em relação à família e ao
emprego. Certxs anarquistas também praticaram tal
forma de ilegalismo e experienciaram a liberdade no amor,
saindo de relações que não mais se constituíam pelo prazer
e pelo querer viver juntxs, e se lançando à intemperança
das paixões — como delineado por Foucault, “turbulência,
paixões anárquicas, recusa a submeter-se às leis, a fixar-
se” (2015, p. 173). O que implicava subverter e confrontar
a moral e, diante do governo da existência, escancarar
que a resistência começa no corpo com a invenção de
novas relações e costumes. Em uma carta de Severino
di Giovanni a Scarfó, o libertário incendiador afirmou o
amor e a vida livres diante das penalizações da existência:
“Em vez de apagar momentaneamente o incêndio que
me devora, cada um dos nossos encontros, cada uma de
nossas conversas, cada um de nossos abraços não servem
para outra coisa que dar alimento à chama acesa do
meu coração” (apud Ferrer, 2011, p. 163). Uma relação
apaixonada e insuportável a qualquer um que pretenda
reformar, restabelecer ou defender a moral.
Em 1840, ao analisar a família e sua vinculação ao
Estado, Max Stirner ressaltou o interesse e a ocupação do
governo do Estado sobre “tudo aquilo que tem a ver com o

120 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

princípio da moralidade” (Stirner, 2009, p. 290). Em outro


artigo, Stirner destacaria ainda como essa moralidade
é fundada no amor e no desejo em sacrificar-se e em
aniquilar-se pelo amor a Deus e ao Estado, sufocando o
impulso e a vontade próprios (2002). Conclusão à qual
Foucault chegaria mais de um século depois, esmiuçando
a moralização exercida por dissidentes religiosos que se
desdobrou na polícia e no “conjunto de controles da vida
cotidiana. O Estado torna-se assim o agente essencial
da moralidade” (Foucault, 2015, p. 102). Somada a essa
moralização do sistema penal, ele sublinhou o papel
imprescindível e indissociável de outra máquina, mais
refinada do que a penal, a operar pelo “mecanismo de
penalização da existência” (Idem, p. 177).
Tais mecanismos produzem penalizações difusas que
atravessam o cotidiano de cada um, como diagnosticou
Foucault. As penalizações incrustam-se nos costumes e
prolongam-se por toda existência. Não se trata somente
de um elemento judiciário, mas cotidiano, exercido pela
cultura do castigo com suas punições e recompensas
dentro da família, escolas, hospícios, fábrica, conventos,
prisões etc. Como detectou Foucault: “a sociedade inteira
porta o elemento penitenciário, do qual a prisão é apenas
uma formulação” (Ibidem, p. 94). E hoje, não mais limitado
aos espaços disciplinares, mas como parte constituinte
das condutas em controles e gestão de si e da família
enquanto investimentos. É o escoamento das instituições
parapenais para suas medíocres sobrevivências que jamais
dispensam um castigo.
Se anarquistas no século XIX e XX, como Max Stirner
e Émile Armand, já haviam afirmado a indissociabilidade
entre a família e o Estado, Foucault se atentou às relações

verve, 43: 104-128, 2023 121


44
2023

sexuais, familiares, laborais e de moradia: “o problema não


é tanto saber se essas outras instâncias de poder repetem a
estrutura do Estado. Pouco importa, no fundo, se a família
reproduz o Estado ou vice-versa. A família e o Estado
funcionam em relação mútua” (Ibidem, p. 209). Talvez
valha relembrar, como já fora feito por outrxs anarquistas,
as etimologias de família: “do latim famulus, escravo
doméstico, significa conjunto de escravos” (Silvestre,
2015, s/p); e de trabalho: “do latim tripalium, significa
tortura” (Baigorria, 2014, p. 16). Seguem funcionando
como formas de instituições parapenais indissociáveis
das punições, aplicadas pelos chefes — da família e da
empresa —, mas também por aqueles que se subordinam
às chefias e a reproduzem entre si, entre “os de baixo”.
Com os aparatos surgidos no século XIX, as instituições
se transmutavam da forma clássica de reclusão, passando
para sequestração descrita por Foucault: a ocupação dos
indivíduos em atividades produtivas o tempo todo, tanto
nas funções disciplinares, como na fábrica e na escola,
quanto nos momentos de lazer que não deviam ser vividos
livremente conforme o querer de cada um. “Essa repressão
do tempo e pelo tempo é a espécie de continuidade entre
o relógio do ponto, o cronômetro da linha de montagem
e o calendário da prisão” (Foucault, 2015, p. 67). A
sequestração do tempo da vida de cada um se deu pela
submissão ao tempo da produção. “O tempo da vida, que
podia ser ritmado por lazer, prazer, sorte e festas, precisou
ser homogeneizado de maneira que fosse integrado num
tempo que já não era o da existência dos indivíduos, de
seus prazeres, de seus desejos e de seu corpo, mas que
era o da continuidade da produção, do lucro. Foi preciso
organizar e sujeitar o tempo da existência dos homens a

122 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

esse sistema temporal do ciclo da produção” (Idem, pp.


193-194). Daí a definição de certos e novos hábitos como
ilegalismos: a falta e o atraso no trabalho; a preguiça; o
nomadismo; a devassidão; a farra, a bebedeira e as festas;
tudo que escapava à fixidez e à regularidade espaço-
temporal das instituições de sequestração.
A despeito de algumas aproximações da moral contrária
a estes ilegalismos — notadamente o repúdio aos hábitos
da embriaguez, da farra, da devassidão —, o trabalho
sempre foi encarado de modo diferente pelxs anarquistas.
Algunxs, que radicalizaram seus contraposicionamentos
frente à sequestração de seus tempos e corpos, tomaram a
fábrica e a exploração como alvos. Histórias, parcialmente
documentadas, são frequentemente alvos de desconfiança,
situadas como míticas. O que também ocorre acerca da
sabotagem ludista, mencionada por Foucault (Ibidem); do
levante de mineiros contra o trabalho na cidade alemã de
Dantzig, em 2 de maio de 1868; ou dos indícios de uma
Internacional dos Ociosos — a International Idle of the
World (IIW) — cujxs integrantes teriam rompido com a
Associação Internacional dos Trabalhadores e propunham
a redução da jornada de trabalho para cinco horas diárias
(Baigorria, 2014). Sabiam, como pontuou Foucault um
século depois, que “o tempo e a vida do homem não são
por natureza trabalho; são prazer, descontinuidade, festa,
repouso, necessidade, instantes, acaso, violência etc.”
(Foucault, 2015, p. 211).
Hoje, frente às modificações no campo laboral e na
produção, constata-se que a já ultrapassada hipótese de
que o desenvolvimento tecnológico reduziria o tempo
de trabalho resultou exatamente em seu reverso. A cada
dia se trabalha mais e ininterruptamente, respondendo

verve, 43: 104-128, 2023 123


44
2023

às convocações via redes sociais e ao monitoramento de


patrões, clientes, concorrentes, colegas de trabalho por
essas mesmas vias. A polícia introjetada em cada um,
desde as dissidências religiosas e o recrudescimento dos
alcaguetes, amplia-se e ganha outros recursos com os
aparatos tecnológicos. O tribunal da internet está disposto
e disponível para julgar e punir qualquer um; não faltam
orientações de como você deve governar a sua vida e a dos
outros; do que deve comer para ser saudável e de quanto
exercício precisa fazer por dia para ser equilibrado; e
inúmeros manuais sobre como modular a sua conduta para
vencer e ser feliz. O tempo livre hoje pode — talvez deva
— ser atrelado ao moderado consumo: de álcool e outras
drogas (lícitas e ilícitas; sintéticas e naturais), de festas e
celebrações, de sexo modulado às inúmeras identidades
de gênero e sexualidade e às relações poliamorosas, as
não-monogâmicas ou as tradicionais monogâmicas com
traição... Mas até mesmo esses momentos podem e
devem ser vistos como oportunidades empreendedoras
para novos contatos e conexões, para conquistar um job
ou uma indicação. Ou para ostentá-los, especialmente em
quantidade, como provas de sua vida feliz e bem-sucedida.
Todos protagonistas de seus destinos com itinerários por
vias paralelas e sem abrir mão da obediência. Como já
destacou o matemático libertário Theodore Kaczynski
“[nessa sociedade,] os requisitos são apenas alguma
inteligência, e acima de tudo, simples OBEDIÊNCIA.
Para quem os tiver, a sociedade oferece a segurança do
berço à cova” (s/d, p. 13).
A moral se reajustou e se atrela, também, às
normatividades contemporâneas e alternativas,
igualmente, e ainda mais produtivas e empreendedoras.

124 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

Assim como o entretenimento se faz altamente produtivo,


pondo em funcionamento algoritmos, “monetizações” e
propagandas, impulsionando novos e específicos produtos
para cada nicho de mercado, e empreendedorismos. No
intervalo entre o próximo dia no emprego, o funcionário
continua produtivo, útil e dócil, ou seja, um assujeitado
para o qual cada parcela de sua vida é vista como um ativo
que faz parte de sua empresa (ele mesmo) e que só precisa
de ajustes e investimentos para ser o novo case de sucesso,
como orientou o coach, o influenciador, o pastor.
Talvez, constelações outras, não acomodadas no sonho
e desejo de ser dissidência imbricada em remoralizações
e castigos e/ou ser empreendedor, estejam em órbita, sem
pretensão salvacionista ou de conduzir a si e aos outros
por um trajeto que espelha, em inversão ou não, o estilo
de vida majoritário e a ordem vigente. Acontecem por aí,
por aqui, agora. Sem medo de enfrentar as suas limitações,
transformar-se e reinventar-se a si mesmxs. É preciso estar
inquietx para enfrentar uma atmosfera tão acomodada e
rarefeita. E irromper outros ares que alimentam fogos
outros.

Referências bibliográficas
Baigorria, Osvaldo. “¿Prólogo? Preferiría no escribirlo” in
Baigorria (Org.) Con el sudor de tu frente: argumento para
la sociedad del ocio. Buenos Aires, Interzona Editora, 2014,
pp. 09-20.
Clastres, Pierre. A sociedade contra o Estado – ensaio de
antropologia política. Tradução de Theo Santiago. São
Paulo, Cosac Naify, 2012.

verve, 43: 104-128, 2023 125


44
2023

De Cleyre, Voltairine. Acción Directa. Tradução de


George Kape. Santiago, I.E.A., 2005. Disponível em:
https://anarkobiblioteka3.files.wordpress.com/2016/08/
accic3b3n_directa_-_voltairine_de_cleyre.pdf. Acesso em
06 de agosto de 2023.
Ferrer, Christian. “O coração empurpurado, epistolário e
história” in verve, n. 20. São Paulo, Nu-Sol, 2011, pp. 153-
200.
Foucault, Michel. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone
C. Benedetti. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2015.
________. “eu capto o intolerável” in Repensar a política
(Coleção Ditos & Escritos, vol. VI). Tradução de
Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 2010, pp. 31-34.
________. Segurança, território, população. Tradução de
Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
________. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Tradução
de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Editora Vozes, 2005.
Goldman, Emma. Vivendo minha vida. Tradução de Nils
Goran Skare. Curitiba, L.Dopa, 2015.
Kaczynski, Theodore. A sociedade industrial e seu futuro. S/d.
Disponível em: https://www.anarquista.net/wp-content/
uploads/2013/10/A-Sociedade-Industrial-e-seu-futuro-
Manifesto-de-Unabomber.pdf. Acesso em 07/08/2023.
Oiticica, José. “ação direta” in verve, n. 30. São Paulo, Nu-
Sol, 2016, pp. 63-67.
Ôsugi, Sakae. Memórias de um anarquista japonês. Tradução
de Ludmila Hashimoto Barros. São Paulo, Conrad, 2002.
Salles, Anamaria Aguiar e. Louk Hulsman e o abolicionismo
penal. Dissertação de mestrado. São Paulo, PUC-SP, 2011.
Silvestre, Leonor. “Creo que el feminismo, de seguir así,
un día estar en contra del aborto” in Pikara Magazine,

126 verve, 44: 104-128, 2023


verve
azucrinar dissidências: estrondos em constelações libertárixs

2015, s/p. Disponível em: https://www.pikaramagazine.


com/2015/07/creo-que-el-feminismo-de-seguir-asi-un-
dia-estara-en-contra-del-aborto/ Acesso em 6 de agosto
de 2023.
Stirner, Max. “algumas observações provisórias a respeito
do estado fundado no amor” in verve, n. 1. São Paulo, Nu-
Sol, 2002, pp. 13-21.
________. O único e a sua propriedade. Tradução de João
Barreto. São Paulo, Martins Fontes, 2009.
Passetti, Edson. Abolicionismo penal libertário. Rio de
Janeiro, Revan, 2020.

verve, 43: 104-128, 2023 127


44
2023

Resumo:
A partir do curso A sociedade punitiva de Michel Foucault,
apresenta-se uma constelação de práticas libertárias de
combate à moral, seus indissociáveis castigos e recompensas, e às
penalizações da existência. Não há sossego entre xs libertárixs,
nem síntese, dissidência ou hegemonia possível, mas uma
multiplicidade de lutas em invenções de vidas livres.
Palavras-chave: penalizações, castigos, dissidência,
resistências, anarquistas.

Abstract:
Michel Foucault’s course The punitive society, presents a
constellation of libertarian practices to combat morality, its
inseparable punishments and rewards, and the penalisations
of existence. There is no peace among libertarians, no synthesis,
dissidence, or possible hegemony, but a multiplicity of struggles
in inventions of free lives.
Keywords: penalisations, punishments, dissidence, resistances,
anarchists.

Disturb dissidences: rumbles in libertarian constellations,


Flávia Lucchesi & Luíza Uehara.

128 verve, 44: 104-128, 2023


verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

articulações:
a sociedade punitiva e os
cancelamentos midiáticos

maura corcini lopes & alfredo veiga-neto

introdução
Diante das inúmeras leituras e “aplicações” que a obra
de Michel Foucault nos oferece, neste texto exploraremos
algumas articulações entre, de um lado, vários insights
que o filósofo desenvolveu no curso La société punitive —
ministrado no Collège de France, no primeiro trimestre
de 1973 —, e, de outro lado, o atual fenômeno midiático
conhecido sob a denominação geral de cancelamento
midiático. Entendemos que, especialmente no Brasil,
tais articulações se ampliaram e se reforçaram graças aos

Maura Corcini Lopes é doutora em Educação. Professora na Universidade do Vale


do Rio dos Sinos (UNISINOS). Coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Inclusão (GEPI/UNISINOS/CNPQ) e coordenadora do Rede de Investigação
em Inclusão, Aprendizagem e Tecnologias em Educação (RIIATE). Pesquisadora
CNPq. Contato: maura@unisinos.br.
Alfredo Veiga-Neto é doutor em Educação. Professor Titular aposentado na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador do Grupo de Pesquisa
Currículo e Contemporaneidade (UFRGS) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Inclusão (GEPI/CNPq). Contato: alfredoveiganeto@gmail.com.

verve, 44: 129-143, 2023 129


44
2023

cenários fortemente marcados pela recente sindemia1


covídica que assolou o mundo inteiro.
O que segue pode ser lido como um estudo de caso
envolvendo questões que, propostas e desenvolvidas
naquelas aulas de 1973, são pertinentes para uma melhor
compreensão das atuais práticas de cancelamentos midiáticos.
E tudo isso levando em conta a atmosfera sociopolítica
que se alastrou pelo Brasil, nos últimos anos. Tal atmosfera
foi marcada principalmente pelos acalorados embates em
torno da sindemia covídica, tendo as redes sociais via web
como suporte de informação e contrainformação e, como
conteúdo: as discussões sobre as necessárias condutas
médico-sanitárias. E mais ainda: aqui queremos celebrar
a potência de um pensamento, cuja fecundidade continua,
meio século depois de pronunciado, extremamente
vigoroso e pertinente para a análise e a problematização
de nosso presente.
Este texto está dividido em quatro seções. A primeira é esta
“Introdução”. A segunda seção — “Notas sobre A sociedade
punitiva” — constitui-se num rápido apanhado sobre aquele
curso de Foucault, com alguns destaques acerca, principalmente,
das suas discussões sobre as punições nas sociedades
modernas. Na terceira seção — “Cancelamentos midiáticos” —,
abordaremos panoramicamente esse fenômeno midiático,
principalmente levando em conta os cenários sociopolíticos
e econômicos no Brasil, profundamente implicados com a

1
Usamos o neologismo sindemia, criado por Singer (2009) na década de
1990, para designar uma pandemia cujos efeitos resultam da combinação
entre um agente patogênico e diversos fatores socioeconômicos, culturais
e geográficos. Tais fatores em geral se reforçam (sinergismo positivo); mas
às vezes se anulam (sinergismo negativo). Para detalhes, vide Swinburn et
al (2019).

130 verve, 44: 129-143, 2023


verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

sindemia global da COVID-19. A quarta e última seção


— “Enfim...” — fecha provisoriamente as ideias aqui
desenvolvidas.

notas sobre A sociedade punitiva


Como bem sabemos, a exclusão social já vinha sendo te-
matizada há alguns anos por Michel Foucault quando, na
primeira aula do curso A sociedade punitiva, ele assumiu a
centralidade dos processos de exclusão como uma das formas
de punição nas sociedades ocidentais.
Se procedermos a um rápido rastreamento, veremos que,
na entrevista concedida a G. Armleder, no Journal de Genève:
Samedi Littéraire, em julho de 1971, o filósofo explicou: nos
séculos XVI e XVII, “nossa sociedade começou a praticar um
sistema de exclusão e inclusão — internamento ou enclausu-
ramento — contra todo indivíduo que não atendesse a essas
normas [sociais e econômicas]” (Foucault, 2010, p. 32).
Um pouco antes disso (no dia 2 de dezembro de 1970),
na sua aula inaugural no Collège de France, Foucault carac-
terizou a exclusão como aquele conjunto de procedimentos
“que têm a função de conjurar os poderes e os perigos [do
discurso], controlar sua ocorrência aleatória, esquivar-se de
sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 1999, pp. 8-9).
É aí que Foucault propõe, pela primeira vez, uma sistemati-
zação do que ele mesmo denominou procedimentos, princípios
ou sistemas de exclusão, nos e dos discursos: o interdito, a opo-
sição (entre razão e loucura) e a divisão (entre verdadeiro e
falso).
Se quisermos recuar ainda mais no tempo, veremos que
a noção foucaultiana de exclusão — por ele então chamada

verve, 44: 129-143, 2023 131


44
2023

de expulsão — já estava implícita na sua História da loucu-


ra, conforme ele mesmo mostrou e argumentou, na cáustica
resposta que deu às críticas de um tal Jean-Marc Pelorson
(Foucault, 2014).
Esse rápido rastreamento mostra o caminho que Foucault
percorreu até chegar à importante formulação explicitada na
primeira aula d’A sociedade punitiva: “Quero justificar o título
do curso e falar dessa noção de punição. Se tomei precisamen-
te essa noção banal, ingênua, frágil, pueril, foi justamente por
querer retomar as coisas no próprio nível de seu desenvolvi-
mento histórico, começando pela análise daquilo que pode-
ria ser chamado de ‘táticas finais da sanção’. [...] Parece-me
possível discernir quatro grandes formas de táticas punitivas,
que definirei com verbos em vez de substantivos” (Foucault,
2015, p. 7).
Logo em seguida, Foucault lista aquelas que são, para ele,
as quatro táticas punitivas: excluir, ressarcir/compensar, marcar
e encarcerar.
Aqui, para os nossos objetivos, interessa examinar como
o filósofo desenvolveu o excluir; ou, se preferirmos, a exclusão.
Para ele, a exclusão se dá pela expulsão, ou seja, pelo colocar
alguém para fora do grupo ao qual até então ele pertencia. O
excluído perde o direito de continuar vivendo no ou junto com
o grupo no qual até então vivia. Isso pode se dar em termos
simbólicos — um exemplo: pela imposição do silenciamento
tácito — ou em termos materiais, físicos, contundentes, em
cujo extremo está o isolamento pelo desterro enquanto afas-
tamento territorial e privação radical da hospitalidade de
que gozava, até então, aquele que passa a ser um excluído.
Em qualquer caso, a exclusão cumpre a tríplice função
de punição, higienização e exemplaridade. A saber:

132 verve, 44: 129-143, 2023


verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

a) punir as ações e os pensamentos desviantes em


relação aos padrões tidos como normais — e, por isso,
desejáveis — por um determinado grupo;
b) limpar o grupo, evitando que os seus demais
membros se contaminem no contato com o desviante;
c) servir de exemplo para que outros não se sintam
tentados a seguir os caminhos desviantes ou anormais do
excluído.
Compreende-se que, em cada caso, tais funções podem
se justapor e assumir diferentes ênfases.
Como um quase-ensaio para a magistral construção de
Surveiller et Punir (Foucault, 1975) — obra publicada dois
anos após o curso de 1973 —, A sociedade punitiva representa
o rompimento com o senso comum e com boa parte das
teorizações sociais que entendiam2 o poder numa perspectiva
ontológica. Tal entendimento toma o poder como “coisa” que
se possui e que, na sua completa negatividade, apenas reprime,
subjuga e pune. É a partir da plataforma desse quase-ensaio
que, comentando o curso, Bernard Harcourt diz: o “curso
de 1973 também significa uma ruptura com certas análises
anteriores — especialmente as análises que desenvolviam as
noções de repressão, exclusão e transgressão — e uma guinada
para a exploração das funções produtivas da penalidade”
(Harcourt, 2015, p. 246). Em suma, tal importante ruptura
ou virada foucaultiana ficará completamente clara a partir
d’A sociedade punitiva.
Vem daí o que mais adiante argumentaremos: até mesmo
os cancelamentos midiáticos — uma forma simbólica, atual
e poderosa de exclusão — podem ter resultados positivos,
seja em termos políticos, seja em termos éticos.
2
E muitas ainda continuam entendendo...
verve, 44: 129-143, 2023 133
44
2023

cancelamentos midiáticos
Para começar, aqui não nos interessa entrar nos debates
acerca das possíveis diferenças entre as expressões mídias
sociais e redes sociais. Basta compreendermos que ambas
assumem a praticidade, a potência e a plasticidade das
comunicações telemáticas via internet. Também não
nos interessam os detalhes sobre o funcionamento e a
qualidade das diferentes plataformas eletrônicas sobre as
quais operam tais comunicações.
O nosso interesse é explorar a produtividade e os efeitos
dos dispositivos envolvidos nas mídias e redes, na forma
daquilo que chamamos de tribalização telemática para, a
partir daí, fazermos as conexões entre os cancelamentos
midiáticos — ou, simplesmente, cancelamento — e o curso
A sociedade punitiva.
A potência, versatilidade, rapidez e o baixo custo
daqueles dispositivos funcionam como condições de
possibilidade para a formação de grupos afinados e coesos
em torno de crenças, princípios e objetivos comuns. Assim,
usamos as expressões “tribos telemáticas” e “tribalização
telemática” para nos referirmos, respectivamente, àqueles
grupos e aos processos envolvidos na sua formação e
funcionamento.
Por si só, a tribalização não é um conceito novo para
a Sociologia, a Psicologia Social, a Antropologia etc. O
que é novo agora é a ampla propagação e o fortalecimento
desse fenômeno, graças à combinação entre, de um lado,
as facilidades oferecidas pela telemática e, de outro lado,
o crescimento dos conflitos sociais e políticos de toda or-
dem, no âmbito planetário.

134 verve, 44: 129-143, 2023


verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

Assim é que a tribalização telemática tornou-se ex-


tremamente comum de uns anos para cá, principalmente
em cenários com fortes polarizações opinativas, seja sobre
questões econômicas, políticas e eleitorais; seja sobre ques-
tões religiosas, socioculturais e de costumes; seja, enfim,
sobre qualquer assunto que se coloque na ordem do dia.
Tais polarizações alimentam-se das pretensas certezas par-
tilhadas pelos componentes de cada grupo. De uma parte (e
internamente), o grupo tende a se reforçar na busca de uma
identidade própria, centrada em uma ou mais certezas e
verdades3 comuns. De outra parte (e externamente), o gru-
po tende a se reforçar pelo contraste em relação a quaisquer
outros grupos que não concordem com aquelas certezas e
verdades. Frequentemente, esses outros grupos passam a ser
vistos não simplesmente como “os outros”, antagonistas ou
opositores, mas sim como inimigos a serem severamente
combatidos e, se possível, até mesmo exterminados. Assim,
cada tribo sente-se tão mais fortalecida e arraigada em suas
certezas quanto mais criticada e atacada for pelos “outros”.
Em nosso país e nos últimos anos, tudo isso está no
circuito das certezas sobre todo e qualquer assunto e nas
acirradas lutas em torno dessas ou daquelas narrativas,
principalmente as de cunho político-partidário. E, mais
do que nunca, parece que todos estão continuamente obri-
gados a ter e a manifestar suas opiniões sobre tudo e sobre
todos. Com o crescimento exponencial dos grupos sociais
baseados em aplicativos telemáticos — insistimos: de bai-
xíssimo custo, simples de usar e com ampla abrangência
sociocultural e geográfica —, tornou-se muito fácil e rápi-
3
A verdade tem, nesse caso, um valor muito débil. Costuma-se usar pós-
verdade para designar a situação em que um fato, por mais objetivo e
verificável que seja, tem valor e credibilidade pública menores do que a
versão inventada sobre ele (D’Ancona, 2018).
verve, 44: 129-143, 2023 135
44
2023

do aglutinar e mobilizar pessoas mais ou menos violentas


em torno de suas certezas e correlatas verdades. Um tanto
pejorativamente, fala-se em “comportamento de manada”
para designar as adesões apaixonadas e pouco ou nada ra-
cionais. Seguir a manada tout court é uma atitude inversa
àquela que Hegel denominou “negação abstrata”, ou seja,
uma negação desprovida de razões para.
Não ter o que dizer sobre isso ou aquilo é visto, em
geral, como um demérito, fraqueza, desinteresse, carência
cognitiva e/ou falta de informação. Falar de acordo com
as falas de um grupo, reforça o grupo e garante, àquele
que fala, a permanência no grupo. Mas falar na contramão
da opinião partilhada pela maioria de um grupo é visto
como “o pior”; no limite, leva a uma punição: a exclusão
para fora do grupo. Nesse contexto, cancelamento midiá-
tico é a expressão que vem sendo utilizada para designar
tal punição. De qualquer modo, para permanecer no jogo
social — seja no grupo, seja contra o grupo —, todos têm
de ter e emitir opiniões — respectivamente, a favor ou
contra. Espera-se que essas opiniões sejam firmes e de-
finitivas, sobre seja lá o que for. E não esqueçamos que a
obrigatoriedade de participar é uma das manifestações da
competição que é, por sua vez, o tópos central da forma de
vida neoliberal (Foucault, 2008).
Pode-se dizer que o cancelamento midiático consiste em
tirar de circulação ou suprimir de uma rede social aquelas
pessoas cujas opiniões ou condutas desagradam os demais
frequentadores da rede. Às vezes chamadas de “lincha-
mento virtual”, esse novo fenômeno midiático tem sido
objeto de investigação e crítica por pessoas interessadas
em compreender melhor como acontecem e os efeitos que
produzem. Vejamos alguns casos exemplares.

136 verve, 44: 129-143, 2023


verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

Como um primeiro exemplo, citamos a pesquisa de


Lopes, para quem “a cultura do cancelamento pode ser com-
preendida como uma prática contemporânea de punição e
humilhação pública, por meio da qual um usuário de redes
sociais perde grande número de seguidores devido ao seu
comportamento ou seu dizer” (Lopes, 2022, p. 146).
Como um segundo exemplo, temos o artigo de Cunha
et al (2020), no qual as autoras estudam “a visibilidade dos
‘cancelados’, de maneira a compreender as repercussões des-
se cancelamento” (Idem, p. 1). Elas chamam nossa atenção,
entre outras coisas, para o fato de que as redes sociais fun-
cionam como um panóptico, na medida em que estabelecem
“um processo de constante vigilância pelos seus seguidores”
(Ibidem, p. 12).
Um outro bom exemplo é o artigo de Martins & Cordeiro
(2022), no qual as autoras afirmam que o cancelamento midiá-
tico é, para seus críticos, um “linchamento virtual”, enquanto
que, para seus defensores, é apenas um ativismo e radicaliza-
ção da democracia. Nesse ponto, lembramos que aqueles que
acusam os cancelamentos midiáticos como afrontas ao ativismo
e ao exercício de uma democracia radical revelam ou uma
dificuldade cognitiva, ou um desvio ético, ou ambos.
Ao longo daquele texto, as autoras desenvolvem discus-
sões bastante interessantes acerca dos aspectos teóricos e prá-
ticos dos desdobramentos dos cancelamentos. Elas chamam
nossa atenção para as consequências econômicas, profissio-
nais e de imagem pública, em geral danosas para aqueles que
são cancelados.
Como quarto e último exemplo, temos o artigo de
Santos et al (2022), no qual as autoras e o autor procuram
combinar o pensamento de Michel Foucault com o de

verve, 44: 129-143, 2023 137


44
2023

Pierre Bourdieu, a fim de relacionar os suplícios e o poder


disciplinar (estudados por aquele) com o par dominante-
-dominado (estudado por este). Uma das conclusões a que
chegam é de que “nas relações virtuais os indivíduos são
levados a serem condicionados e constrangidos dentro das
relações e por forças externas, que muitas vezes nem se-
quer são percebidas conscientemente” (Idem, p. 1).
Com essas referências acima, nosso objetivo foi tão so-
mente registrar alguns exemplos que, mesmo numa situ-
ação ainda inicial e de rarefação dos estudos acadêmicos
sobre um assunto muito novo, tematizam e problemati-
zam de modo instigante e criativo as muitas questões en-
volvidas com os cancelamentos midiáticos. Em outras pala-
vras, não nos interessou fazer uma análise crítica daqueles
textos, fosse ela positiva ou negativa. Quisemos apontar
que em todos aqueles estudos — bem como em outros
mais que compilamos — está sempre presente a ideia
de que os cancelamentos midiáticos podem ser entendidos
como tecnologias contemporâneas de punição.

enfim...
Em sintonia com os argumentos de Veiga-Neto (2017),
em Gloria victis,aqui sugerimos que os cancelamentos midiáticos
baseados em decisões radicais e aderentes à negação abstrata
hegeliana são um caso de “glória aos vencidos”4. Afinal, tais

4
Em latim, esta exaltação, conhecida como gloria victis — “glória aos
vencidos” — , aponta para o fato de que o heroísmo não está implicado
necessariamente com a vitória de um herói, mas sim com a sua capacidade
de enfrentar, contornar ou suportar as dificuldades que se lhe interpõem.
Assim, a glória não decorre propriamente da vitória, mas do enfrentamento
corajoso e estratégico diante das adversidades.

138 verve, 44: 129-143, 2023


verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

cancelamentos radicais acabam,um tanto contraditoriamente,


promovendo o fortalecimento e a expansão das ideias e ideais
dos “outros”, dos cancelados, daqueles que foram tidos como
inimigos e que, por isso, foram punidos com a exclusão. Em
muitos casos, esses cancelados, agora excluídos, se agrupam,
se reforçam e partem para novas revoltas.
Assim, justamente aqueles considerados “desviantes”,
aqueles que um grupo queria punir com cancelamentos
abstratos — porque irracionais, isso é, cancelamentos
“sem razões claras para” — podem acabar se articulando e
formando novo ou novos grupos. Chega-se à situação que,
passo a passo, tanto promove o enfraquecimento do grupo
original quanto acirra o conflito de todos contra todos.
Esse é o caso particular daquela circunstância geral já
bem conhecida e apontada por Foucault, especialmente
n’A sociedade punitiva e em Vigiar e Punir: as práticas
punitivas, quando saturadas, não raramente servem de
estímulo, fermento e principal condição de possibilidade
para que os punidos se reúnam e resistam arrojadamente
ou assumam estratégias contracondutuais. No primeiro
caso, logo se estabelece uma nova guerra de cancelamentos;
no segundo caso, aqueles punidos dão um by-pass e vão
adiante para fundar novo(s) grupo(s).
Como exemplo do exposto acima, temos a recente
onda de exacerbação opinativa e combatividade raivosa
dos grupos brasileiros da extrema direita. Encantadíssimos
com a ideologia reacionária, primária, ridícula e fascista
do Tradicionalismo de René Guénon5 e seguindo a
cartilha bizarra de Steve Bannon, Aleksandr Dugin e,

5
Para uma abordagem detalhada do Tradicionalismo como ideologia
reacionária, vide Teitelbaum (2020).

verve, 44: 129-143, 2023 139


44
2023

principalmente, de Olavo de Carvalho, os principais


mentores desses grupos deveras agressivos promoveram
enxurradas de cancelamentos. Lançaram-se numa verdadeira
fúria difamatória e cancelatória contra quem não rezasse por
aquela cartilha. Propagadores de ideias estultas e excêntricas,
eles esticaram tanto a corda a ponto de arrebentá-la em
vários pontos e, com isso, reverter em boa parte os resultados
pretendidos pelos seus adeptos e propagadores. Com seus
ataques e cancelamentos, esses dragões da maldade acabaram
enfraquecendo as suas próprias posições ideológicas.
Para nós, estes são assuntos ainda em aberto, à espera
de mais refinamento e novas investigações. Seja como for,
esperamos ter mostrado algumas das possíveis articulações
entre o pensamento de Michel Foucault — em especial,
as análises feitas no curso de 1973 — e os cancelamentos
midiáticos — principalmente em suas manifestações mais
radicais e retrógradas.
Com tudo isso, modestamente, também quisemos
celebrar os cinquenta anos decorridos desde as aulas d’A
sociedade punitiva.6

Referências bibliográficas
Cunha, Ana Carolina; Baroni, Lívia; Teixeira, Carla.
“Cultura do cancelamento: punição e controle das redes
sociais a partir da análise do caso Pugliesi”. In: 43º
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Salvador,
Intercom, 2020, pp. 1-14. Disponível em: https://www.
portalintercom.org.br/anais/nacional2020/lista_area_IJ-
DT6.htm (acesso em 10 de julho de 2023).
6
A autora e o autor agradecem ao Prof. Dr. Sandro Bortolazzo, pelas
sugestões e pelo material disponibilizado.
140 verve, 44: 129-143, 2023
verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

D’Ancona, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os


fatos em tempos de fake news. Tradução de Carlos Szlak.
Barueri, Faro Editorial, 2018.
Foucault, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison.
Paris, Gallimard, 1975.
________. A ordem do discurso. Tradução de Aura Fraga de
Almeida Sampaio. São Paulo. Loyola, 1999.
________. Nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
________. La société punitive. Paris, Gallimard, Seuil,
2013.
________. “Carta do Sr. Michel Foucault”. In: Foucault,
Michel. Ditos e escritos X: Filosofia, Diagnóstico do Presente
e Verdade. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 2014, pp. 55-60.
________. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone C.
Benedetti. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2015.
Harcourt, Bernard. “Situação do curso”. In: Michel
Foucault. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone C.
Benedetti. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2015, pp.
241-281.
Lopes, Michelle Aparecida Pereira. “A cultura do
cancelamento no dispositivo midiático: subjetividade
e prática de si”. In: Revista do GEL, v. 19, n. 1. Passos,
UEMG, 2022, pp. 146-164.
Disponível em: https://revistas.gel.org.br/rg (acesso em
10 de julho de 2023).
Martins, Tamires de Assis L.; Cordeiro, Ana Paula.
“A cultura do cancelamento”. In: Extraprensa, v. 15,
n. especial, maio. São Paulo, USP, 2022, pp. 29-47.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/extraprensa/
article/view/194383 (acesso em 10 de julho de 2023).

verve, 44: 129-143, 2023 141


44
2023

Santos, Gloria Maria de Souza; Santos, Sidnei Paixão;


Lima, Daniella Munhoz da Costa. “A cultura do
cancelamento nas redes sociais: a nova forma de suplício”.
In: ANPAD: XI Encontro de Estudos Organizacionais
— online. 2022. Disponível em: http://anpad.com.br/
uploads/articles/117/approved/1713a23c14b5033adb074
b5464fb6c66.pdf (acesso em 10 de julho de 2023).
Singer, Merrill. Introduction to Syndemics: a critical systems
approach to Public and Community Health. New Jersey,
Wiley & Sons, 2009.
Swinburn, Boyd A. et al. “The Global Syndemic of
obesity, undernutrition, and climate change”. In: The
Lancet Commission report, v. 393, n. 10173, January 27.
Amsterdam, The Lancet, 2019, pp. 791-846. Disponível:
https://www.thelancet.com/commissions/global-
syndemic (acesso em 10 de julho de 2023).
Teitelbaum, Benjamin R. Guerra pela eternidade: o
retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista.
Campinas, UNICAMP, 2020.
Veiga-Neto, Alfredo. “Gloria victis”. In: Michel Foucault
e as insurreições: é inútil revoltar-se? São Paulo, CNPq,
FAPESP, Intermeios, 2017, pp. 51-62.
________. “Mais uma lição: sindemia covídica e
Educação”. In: Educação & Realidade, v. 45, n. 4. Porto
Alegre, UFRGS, 2020, pp. 1-20. Disponível em: https://
www.scielo.br/j/edreal/a/FtpkV5RY3Q64nvBdvxbSXwg
/?format=pdf&lang=pt (acesso em 10 de julho de 2023).

142 verve, 44: 129-143, 2023


verve
articulações: a sociedade punitiva e os cancelamentos midiáticos

Resumo:
O texto aborda o fenômeno dos cancelamentos midiáticos como
atualização das práticas punitivas, articulando insights de
Foucault no curso La société punitive, ministrado no Collège
de France em 1973, com este fenômeno contemporâneo. Naquele
curso, Foucault explicita a exclusão como uma tática punitiva com
tríplice função: punição, higienização e exemplaridade. No Brasil,
os cancelamentos foram potencializados nos recentes anos de
governo fascista, em cenários marcados pela sindemia covídica.
As exclusões geradas pelos cancelamentos midiáticos podem tanto
gerar a eliminação do outro que diverge quanto produzir a glória
dos vencidos a partir da união e revolta dos cancelados.
Palavras-chave: exclusão, cancelamentos midiáticos, punição.
Abstract:
The text addresses the phenomenon of media cancellations
as a way of updating punitive practices,articulating
insights developed by Foucault in the course La société
punitive, taught at the Collège de France in 1973, with this
phenomenon of contemporary cancellation. In that course,
Foucault explains excluding as a punitive tactic fulfilling a
triple function: punishment, hygiene and exemplarity. I In
Brazil, media cancellations were enhanced in recent years
of fascist government, in scenarios marked by the covid-19
syndemics. The exclusions generated by media cancellations
can both generate the elimination of the other that diverges
and produce the glory of the vanquished from the approach
and revolt of the cancelled.
Keywords: exclusion, media cancellations, punishment.
The punitive society and media cancellations, Maura
Corcini Lopes & Alfredo Veiga-Neto.

verve, 44: 129-143, 2023 143


44
2023

impedimento e interdição:
a problemática da sexualidade na era
da sociedade punitiva

ernani chaves

O objetivo deste artigo é mostrar que numa breve


passagem da aula de 21 de março de 1973 de A sociedade
punitiva, Foucault indica o entrelaçamento entre as no-
vas formas de vigilância, controle e punição que se cons-
tituem a partir do final do século XVIII e seus efeitos
muito importantes na questão da sexualidade. Para che-
garmos, entretanto, até a apresentação específica desse
problema, proponho fazer um desvio, mas que considero
fundamental para esclarecer algumas das proposições de
Foucault nesse curso. Trata-se, grosso modo, de sinalizar
para o fato de que se torna imprescindível para ele analisar
a implicação moral da nova concepção de pena e punição,
assim como da de crime e criminoso, que ganhará toda a
sua amplitude e legitimidade no decorrer do século XIX,
e cujas consequências são sentidas até hoje. Esse desvio
significa mostrar a importância da leitura que Foucault
fez dos historiadores ingleses, em especial de Edward P.
Thompson, de tal modo que a leitura de Thompson tam-

Ernani Chaves é Professor titular na Faculdade de Filosofia na Universidade


Federal do Pará. Contato: ernanic6057@gmail.com.

144 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

bém se torna bastante esclarecedora para o entendimento


dessa passagem sobre a questão da sexualidade.1 Com isso,
levando em consideração o recente artigo de Florence
Hulak, gostaríamos de retirar do “silêncio” o diálogo que
Foucault estabeleceu com Thompson, mesmo que muitas
vezes o nome do historiador inglês não seja mencionado
por ele (Hulak, 2021, p. 185).
Um dos pontos fortes da argumentação de Foucault no
curso A sociedade punitiva é seu confronto com as teses de
Thompson acerca do surgimento de um sistema penal ex-
tremamente violento, coetâneo à constituição do capita-
lismo, em seu clássico A formação da classe operária inglesa,
publicado originalmente em 1963. Segundo Thompson
(1989), esse sistema penal violento surgiu como reação ao
medo suscitado pela “plebe sediciosa”, aquela que provo-
ca, frequentemente, motins e revoltas, que é considera-
da perturbadora da ordem pública, desobediente às leis
e regulamentações. Essas “práticas sediciosas” são ilustra-
das logo no começo do livro, quando Thompson relata as
atividades da “Sociedade Londrina de Correspondência”,
formada por operários em março de 1792, que lutava
pela implantação de uma monarquia parlamentar nos
ecos da Revolução Francesa, ou melhor, como diz o pró-
prio Thompson, da “revolução jacobina dos anos 1790

1
Já existe uma bibliografia significativa no Brasil acerca das relações entre
Foucault e Thompson. Entretanto, salvo engano, a grande maioria desses
trabalhos foram escritos antes da publicação de A sociedade punitiva na França,
em 2013, e no Brasil, em 2016. O estudo das fontes de Foucault é um projeto
que desenvolvo há alguns anos, como uma maneira de auxiliar na compreensão
do seu pensamento. Uma referência elogiosa à “escola histórica de Cambridge”
se encontra em “Sobre os modos de escrever a história”, entrevista de Foucault
em 1967 (Dits et écrits, I, 1994, p. 585). Todas as traduções de textos em língua
estrangeira são de minha inteira responsabilidade.

verve, 44: 144-164, 2023 145


44
2023

(Thompson, 1989, p. 16)2. Foucault, ao contrário, deslo-


ca a concepção de “plebe sediciosa” para a de “ilegalismos
populares”.
No início da aula de 21 de fevereiro de 1973,
Foucault estabelece uma distância crítica em relação
a Thompson. A questão inicial para Foucault era a de
mostrar de que maneira um sistema punitivo heterogê-
neo ganha uma unidade a partir do século XVIII, que
passou a ser garantida na medida em que o aparelho de
Estado toma para si a incumbência dessa unificação,
transformando o sistema penal em sistema penitenci-
ário, ou seja, tornando a privação da liberdade como a
forma modelo de punição, legitimando a criação da pri-
são no seu sentido “esclarecido”, lembrando o papel do
Iluminismo, da Aufklärung e do ideário da Revolução
Francesa, como pressupostos dessas modificações3. Uma
“sociedade punitiva” seria aquela, portanto, na qual o
aparelho de Estado judiciário assume, cada vez mais,
a responsabilidade pelas funções coercitivas e peniten-
ciárias. A tese defendida por Thompson e por outros
historiadores de sua geração, resume Foucault, era a de
que “o crescimento, e a instalação, do modo de pro-
dução capitalista provocou um certo número de crises

2
O volume III de A formação da classe operária inglesa se abre com a história
posterior desse “radicalismo popular”, que “não se extinguiu quando foram
dissolvidas as sociedades de correspondência, suspenso o habeas corpus e
proscritas todas as manifestações ‘jacobinas’” (Thompson, 1989, p. 9).

3
Quase um mês depois, na aula de 28 de março de 1973, Foucault mais
uma vez destaca o papel singular da prisão, na medida em que, após a
sua criação, as outras formas de punição clássica, tais como o pelourinho,
o esquartejamento, o enforcamento e a fogueira, foram desaparecendo
(Foucault, 2013, p. 228).

146 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

políticas, a vigilância de uma plebe que ao se proleta-


rizar implica a criação de um novo aparelho repressivo.
Em suma, o crescimento do capitalismo responderia
a toda uma série de movimentos de sedição popular,
aos quais o poder da burguesia teria respondido com
um novo sistema judiciário e penitenciário” (Foucault,
2013, p. 144).
Para Foucault, ao contrário, a “plebe sediciosa” era ape-
nas um caso particular de um fenômeno “mais profundo
e mais constante”, que fez com que a burguesia solicitasse
a intervenção do Estado e que Foucault chamará de “ile-
galismo popular”. A propósito, ele escreve: “Parece que,
até o fim do século XVIII um certo ilegalismo popular foi
não apenas compatível com, mas útil ao desenvolvimento
da economia burguesa; ele chegou no momento em que
esse ilegalismo, que funcionou engrenado com o desen-
volvimento da economia, se tornou incompatível com
ele” (Idem, p. 144). A aula seguinte, de 28 de fevereiro
de 1973, começa retomando esse posicionamento crítico:
“Venho tentando responder à questão da transferência do
elemento penitenciário no aparelho penal, mostrando que
a noção de ‘plebe sediciosa’ não era suficiente para resolver
o problema” (Ibidem, p. 159).
Evidentemente, que esse confronto não serve apenas
para marcar diferenças, uma vez que é muito claro o quanto
as análises de Thompson também ressoam positivamente
em questões e temas, que vão contribuir com muitas aná-
lises de Foucault. Um exemplo eloquente é o capítulo 2
do primeiro volume do livro de Thompson, intitulado “O
cristão e o demônio”. Nesse capítulo, Thompson analisa
entre outros a importância dos diversos grupos religiosos
que passam a existir na Inglaterra após a reforma angli-

verve, 44: 144-164, 2023 147


44
2023

cana, que incluem não só a própria Igreja Católica, mas


também uma série de dissidências no interior do anglica-
nismo, a “religião oficial”. Ele dá um destaque especial à
Revolução Gloriosa (1688-1689), que depôs Jaime II, um
rei católico em um país marcadamente protestante e que
favorecia os católicos, sendo substituído por Guilherme
de Orange. Com isso, a monarquia absolutista chega ao
fim, substituída por uma monarquia constitucional, intei-
ramente de acordo com os anseios da burguesia em ascen-
são, fortalecida por essa mudança.
As tensões religiosas atravessam a Inglaterra a partir da
Reforma e, desde a implantação do Anglicanismo, essas
tensões trazem ao primeiro plano do debate o entrelaça-
mento entre as questões morais, a luta entre “o cristão e
o demônio” — não por acaso o título do capítulo 2 do
primeiro volume do livro de Thompson — e as questões
políticas, estas “entre tendências democráticas e autoritá-
rias”. Seguindo a posição de Eric Hobsbawm no seu tam-
bém clássico Rebeldes primitivos (edição inglesa de 1959 e
primeira edição brasileira de 1970)4, Thompson nos lem-
bra do papel determinante dos Metodistas, cujo rompi-
mento com a Igreja Anglicana assume, na Inglaterra, al-
gumas funções do anticlericalismo francês do século XIX:
“Enquanto Satanás se manteve indefinido e sem domicí-
lio de classe estabelecido, o metodismo condenou a classe
operária a uma espécie de guerra civil moral — entre a
capela e o bar, os perversos e os redimidos, os perdidos
e os salvos” (Thompson, 1997, p. 47). Nessa perspectiva,
Satanás erigia fortalezas habitadas por “prostitutas, e ta-

4
Ver em especial o capítulo VIII (Hobsbawm, 1970).

148 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

berneiros e ladrões”, cujas almas formavam o centro das


disputas por evangelistas de toda ordem5.
Outro aspecto digno de nota é a referência a William
Blake na epígrafe do livro de Thompson. Blake, o grande
poeta romântico, que militava pela República e se posi-
cionava contra a pobreza, a injustiça social e que, apesar
de sua profunda religiosidade, criticava com vigor tanto
o poder da Igreja Anglicana quanto o do Estado. O tre-
cho citado é muito eloquente a propósito dos conflitos de
Blake com a religião institucionalizada, mesmo que ele
próprio fosse bastante religioso: “The Beast & the Whore
rule without control” (“A Besta e a Prostituta governam
sem controle”, tradução modificada). De todo modo, essa
epígrafe já nos coloca no cerne do livro de Thompson, que
defende a ideia, como já referido, de que o rigor do sistema
penitenciário da Inglaterra a partir do século XVII tinha
profundas motivações religiosas e morais.6 Assim sendo,
é como se Foucault também seguisse uma pista já aberta
por Thompson, que tanto enfatizou o papel da religião e
da moralidade. Lembremos, por fim, mais uma passagem

5
Segundo Patrick Colquhoun, que escreveu uma história da
polícia de Londres, publicada em 1797, na virada do século
XVIII para o XIX, havia em Londres “50.000 prostitutas, mais
de 5.000 taberneiros e 10.000 ladrões” (Thompson, 1997, p. 57).
Um dos mestres de Thompson, Christopher Hill, escreveu um
livro fundamental a respeito dos mesmos temas, o do cruzamento
entre religião e moralidade, com destaque às questões sexuais, que
Foucault, infelizmente, não cita: O mundo de ponta-cabeça. Ideias
radicais durante a Revolução Inglesa de 1640.

6
Esse trecho se encontra nas anotações de Blake para a Bíblia do Bispo
Watson (1797). Agradeço a Edesio Fernandes por ter me indicado a
referência precisa desse trecho.

verve, 44: 144-164, 2023 149


44
2023

bastante elucidativa de Thompson a esse respeito, que cer-


tamente chamou atenção de Foucault, referente ao “culto
do amor”: “(...) o culto do ‘Amor’ foi levado a um ponto de
equilíbrio entre as afirmações da ‘religião social’ e as aber-
rações patológicas de impulsos sexuais e sociais frustrados.
De um lado, a compaixão genuína pelas ‘prostitutas e ta-
berneiros e ladrões’; de outro lado, a preocupação mórbida
com o pecado e a confissão do pecado” (Thompson, 1997,
pp. 40-41).
Podemos encontrar ecos dessas análises tanto em A
verdade e as formas jurídicas, as célebres conferências na
PUC do Rio de Janeiro, em maio de 1973, ou seja, logo
após o curso A sociedade punitiva e, posteriormente, no
Vigiar e punir, que será publicado em 1975. Na quarta
aula de A verdade e as formas jurídicas, todas as referências
à Inglaterra e ao papel dos diferentes grupos religiosos na
formação de associações, que buscavam proteger os adep-
tos diante da dureza das penalidades que podiam atin-
gi-los, reenviam ao primeiro e ao segundo capítulos do
primeiro volume do livro de Thompson (Foucault, 2002,
pp. 89-95). Do mesmo modo, no Vigiar e punir, desde a
abertura, sobre os suplícios, podemos encontrar várias re-
ferências à situação na Inglaterra (Foucault, 1977, Cap. I).
Além disso, não podemos deixar de aludir ao fato de que
a presença de Marx no Vigiar e punir, que o torna um li-
vro com “forte tonalidade marxizante”, sem ser “de modo
algum um texto marxista”, como o diz Bernard Harcourt
na “Situação do curso” (2013, pp. 289-290), também deve,
entre outros, à leitura de Thompson. Mesmo em A socie-
dade punitiva, podemos ler na folha 2 do manuscrito da
aula de 28 de fevereiro de 1973, uma transcrição da edi-
ção francesa de uma passagem do livro sobre a história

150 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

da polícia de Londres (1797) de Patrick Colquhoun, ma-


gistrado escocês que criou a primeira polícia preventiva
regular da Inglaterra, retirada de um texto sobre a questão
do contrabando. Como Colquhoun é igualmente citado
por Thompson no capítulo 3, “As fortalezas de Satanás”,
do volume 1 de seu livro, é muito provável que tenha sido
essa passagem que levou Foucault a se interessar por essa
obra.
Voltemos a Foucault. É a partir da aula de 14 de março
de 1973, que ele procurará mostrar a passagem de um tipo
de ilegalismo baseado na “depredação” para outro baseado
na “dissipação”. No primeiro caso, o ponto de referência é
a ideia de “riqueza acumulada”, ou seja, daquela formada
pelos bens de consumo postos em circulação e à disposi-
ção tanto para uso próprio quanto para serem lançados
para a comercialização. Foucault chama a atenção, entre-
tanto, para o fato de que essa ideia não deixa de ser uma
abstração, uma vez que essa riqueza constitui o aparelho
produtivo, em relação ao qual o corpo do operário deve
ser transformado em força de trabalho, um corpo, por sua
vez, postado diretamente na presença dessa riqueza, a qual
não lhe pertence. Ora, um novo ilegalismo aparece, já a
partir do século XVII, quando esse corpo, cuja força física
se transformou em força de trabalho, e vai ser integrado
a um sistema de produção que o tornará “força produti-
va”, que veremos aparecer uma nova forma de ilegalismo.
Agora, entre esses dois corpos — o do trabalho e o da
riqueza — passa a se estabelecer uma relação cujo ful-
cro irradiador é sempre o corpo do operário como força
de produção. Esse novo ilegalismo se expressa na recu-
sa por parte do operário em permitir que seu corpo seja
apropriado como força produtiva. Foucault enumera en-

verve, 44: 144-164, 2023 151


44
2023

tão as principais modalidades dessa recusa ou, ainda para


usar uma outra palavra que ganhará destaque e relevo no
seu pensamento político, dessas “resistências”: opção pela
ociosidade, pela vagabundagem, pela recusa em oferecer
seu corpo ao mercado de trabalho, uma espécie de “roubo”
do próprio corpo, fazendo-o escapar à lei da livre concor-
rência, do trabalho, do mercado; a irregularidade no cum-
primento das regras de aplicação dessa força, opção por
“dissipar suas forças”, por recusar-se ao tempo da produ-
ção e insistir em estabelecer por si próprio as regras do uso
do tempo; a importância da festa e seus acompanhamen-
tos, a dança, a comilança, a embriaguez, uma forma de
“desperdiçar a força”. Assim, deixa-se de cuidar do corpo e,
por conseguinte, cai-se na desordem. Finalmente, a recusa
da família, recusa, portanto, de utilizar seu corpo para re-
produzir a força de trabalho na forma de uma família que
garanta os cuidados necessários aos filhos, responsáveis,
no futuro, pela renovação da força de trabalho e, em con-
sequência, da reiteração e aprofundamento da dominação,
privilegiando o concubinato e a libertinagem.
Trata-se, portanto, nessa nova configuração dos ilega-
lismos, da passagem de uma relação de desejo pela ma-
terialidade da riqueza, expresso na depredação muito co-
mum das máquinas, por exemplo, para a necessidade de
fixação do corpo ao aparelho produtivo (Foucault, 2013,
p. 193)7. Era preciso, portanto, encontrar uma maneira de
combater as ausências, os atrasos, a preguiça, as festas, a
libertinagem, o nomadismo, ou seja, tudo aquilo que esta-
va na ordem da irregularidade no interior da mobilidade
do espaço. Era portanto preciso “sequestrar” o corpo do
operário para fixá-lo ao aparelho produtivo. Certamente,
7
Todos os grifos em itálico são do próprio Foucault.

152 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

nos lembra Foucault, a ociosidade não foi uma invenção


do século XIX, mas nele, no momento em que a fábrica
se torna a unidade de produção por excelência, existe um
confronto entre a necessidade dessa fixação e as manei-
ras pelas quais se procura escapar da obrigação do traba-
lho, pelas quais se dissipa as forças destinadas ao traba-
lho, criando o imperativo de reter os corpos e fixá-los ao
aparelho produtivo. Entretanto, uma nova advertência de
Foucault é importante: isso não quer dizer que as depre-
dações acabaram, pelo contrário, elas continuam. Mas, os
ilegalismos das depredações se constituirão em problemas
morais, em casos de polícia, contra os quais serão mobili-
zados intensos mecanismos de controle, suscitando o apa-
recimento de uma rígida legislação, que os transformam
em delitos graves, objetos de penas severas. Os ilegalismos
da dissipação, por sua vez, considerados “doces, cotidianos,
permanentes”, vão requerer uma outra forma de interven-
ção, pois agora não se trata mais do “ladrão”, mas sim do
“preguiçoso”. O problema agora é escolher um modo de
vida baseado na preguiça — a “mãe de todos os vícios”
(sic!) — e na ociosidade, privilegiando o nomadismo, o
que significa o exato contrário da ideia de fixação (Idem,
p. 191). Mais ainda: o ilegalismo da dissipação tende com
muito mais rapidez a se tornar uma espécie de comporta-
mento comum às massas, sua difusão é muito mais fácil,
o que o torna potencialmente mais perigoso, enquanto o
ilegalismo da depredação exige uma organização, a pre-
paração de pequenos grupos treinados para essas práti-
cas, tornando-se, por essa especificidade, mais facilmente
controlados e combatidos. Em suma, os ilegalismos da
dissipação tomariam três formas principais: a intempe-
rança, como desperdício do corpo; a imprevidência, como

verve, 44: 144-164, 2023 153


44
2023

dispersão do tempo e a desordem, como mobilidade do


indivíduo em relação à família e ao emprego. Daí que os
alvos principais a serem combatidos são a festa, a loteria
(onde o indivíduo pode ganhar a vida sem trabalhar) e
o concubinato, como forma de satisfação sexual fora da
família (Ibidem, p. 197).
Se, na época clássica (séculos XVII e XVIII, delimita-
ção que encontramos desde História da loucura), o noma-
dismo era predominantemente físico, uma vez que estava
ligado à depredação, agora se trata de combater um noma-
dismo predominantemente moral, pois implica numa for-
ma de vida, numa escolha por uma vida em confronto com
as exigências de fixação ao aparelho produtivo. Para esse
controle vai se supor duas coisas: a primeira, a exigência de
uma moralização da penalidade, ou seja, esta deve incidir
prioritariamente para modificar hábitos e costumes, para
tentar substituir a moralidade do nomadismo, francamen-
te negativa, pela da fixação; a segunda, entretanto, é muito
mais ampla e radical, pois se trata agora de uma penaliza-
ção da existência, pois é toda a existência dos indivíduos,
do nascimento à morte, que precisa ser enquadrada numa
“penalidade difusa, cotidiana”, que consiste em “introduzir
no próprio corpo social os prolongamentos para-penais,
abaixo mesmo do aparelho judiciário” (Ibidem). Aparecem
assim novos tipos de controle, um sistema de penas e re-
compensas, que visa à população por inteiro: advertências,
ameaças, uma pressão constante, controle da embriaguez
no espaço público, controle da poupança, a caderneta de
poupança servindo como um enquadramento moral, a
apresentação da carteira de trabalho nas batidas policiais,
a caderneta de poupança como comprovação de conduta
ilibada, que tornava o seu portador privilegiado nos pro-

154 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

cessos seletivos para vagas de trabalho. Assim, no próprio


interior dos mecanismos econômicos, encontramos todo
um jogo de recompensas e punições que existe às expensas
da própria lei jurídica, tornando possível ao empregador
se livrar da pesada máquina burocrática do direito, consti-
tuindo assim um sistema punitivo extrajudiciário.
Entretanto, esses mecanismos de controle por si só não
são suficientes para promover a almejada mudança nos
hábitos e costumes, com a finalidade de fixação dos cor-
pos no aparelho produtivo. É necessário que apareça um
conjunto de instituições, cuja tarefa será a disciplina dos
corpos para que o ilegalismo da dissipação seja combatido
com eficácia. Foucault chamará essas instituições de “dis-
ciplinares” ou ainda de “sequestro”. Num procedimento
que se repetirá tanto em A verdade e as formas jurídicas
quanto no Vigiar e Punir, Foucault dá o exemplo logo no
começo da aula de 21 de março de 1973, de uma ins-
tituição organizada em torno de horários rigorosos para
o cumprimento de determinadas tarefas e que começam
ainda no começo da manhã e terminam no começo da
noite, na qual atividades propriamente de trabalho são
partilhadas com caminhadas e orações. À primeira vista,
parece que estamos diante do regulamento de uma casa de
internamento do século XVII, semelhante aos Hospitais
Gerais analisados na História da loucura, quando na ver-
dade se trata de uma tecelagem de seda. Assim sendo, ao
lado da fábrica, a prisão, o hospital, a caserna e a escola
vão se constituir, aos poucos, no conjunto das instituições
disciplinares, cujo objetivo, tal como a fórmula do Vigiar
e punir vai expressar, é o de tornar os corpos úteis para o
trabalho e dóceis politicamente. Cria-se, diz Foucault, um
conjunto de “utopias”, que devem funcionar para garantir

verve, 44: 144-164, 2023 155


44
2023

a produção de uma espécie de sociedade ideal, cujo funda-


mento será o modelo arquitetural do Panóptico de Jerome
Bentham (Foucault, 2013, p. 209). Mas o pleno funciona-
mento desse modelo arquitetural só é possível por meio
de um rigoroso e estrito controle do tempo, seja nas ati-
vidades de produção, seja naquelas propriamente discipli-
nares e até mesmo nos momentos de lazer. Desse modo,
as instituições disciplinares do século XIX se diferenciam
do Hospital Geral da Idade Clássica, uma vez que não
se trata mais de enclausurar os “desrazoados”, retirá-los
de circulação para só devolvê-los ao espaço público nas
épocas de demanda de mão de obra. À exceção, é claro,
dos loucos, incapazes para o trabalho. Nas instituições
disciplinares, o objetivo é o oposto, pois não se trata mais
de excluir, mas sim de incluir por meio de técnicas, que
visam à fixação do corpo ao aparelho produtivo: “(...) não
se trata, de modo algum, de marginalizar, mas de fixar no
interior de um certo aparelho de transmissão de saber, de
normalização, de produção” (Idem), diz Foucault ainda
nessa aula de 21 de março de 1973. É evidente que encon-
tramos também aqui uma função de marginalização, mas
agora se trata de marginalizar apenas os que resistem, os
“inadaptados” à escola ou às oficinas. As instituições disci-
plinares são, enfim, uma espécie de máquina, que trabalha
para desmarginalizar, para “corrigir, curar, retificar”. Sem
elas, a sociedade capitalista não poderia funcionar à per-
feição, pois são elas que operacionalizam o assujeitamento
do tempo de vida ao tempo da produção, pelo exercício
permanente de um controle direto ou indireto da exis-
tência de cada um, o qual recai, principalmente, sobre o
corpo, a sexualidade e as relações interpessoais.

156 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

É nesse ponto da argumentação de Foucault, já no


final da aula de 21 de março, que nos deparamos com a
questão da sexualidade, em especial a partir da maneira
como esta é controlada na escola. A primeira questão diz
respeito ao transbordamento das funções primordiais de
uma escola, qual seja, a de ensinar a ler, a escrever, assim
como a de ensinar boas maneiras. Ora, se são essas as
funções essenciais da escola, por que então ela seria uma
instituição privilegiada para a “repressão” da sexualidade?
(Ibidem, p. 219).
Para responder a essa questão, Foucault não deixa de
questionar o próprio uso da ideia de “repressão” para ca-
racterizar o funcionamento do exercício do poder. Como
sabemos, essa é uma das mudanças imprimidas na ques-
tão do poder por Foucault em relação ao curso anterior,
Teorias e Instituições Penais, de 1971-1972. Neste, Foucault
ainda tomava como referência a ideia de repressão. Agora,
por meio, justamente, da questão da sexualidade, ele põe
em questão o que o volume I da História da sexualida-
de chamará de “hipótese repressiva”. Em vez de repressão
— termo mais “embaraçoso” do que “exato”, diz o próprio
Foucault —, ele vai falar de “impedimento” e “interdição”.
O impedimento diz respeito à estrita necessidade de im-
pedir relações heterossexuais nas escolas, pois estas devem
se manter “monossexuais”. Entretanto, em complemento
e consequência desse impedimento, vamos encontrar a in-
terdição das relações homossexuais. Trata-se, portanto, de
um duplo sistema que caracteriza não apenas a função das
escolas dentre as instituições disciplinares, mas também
que difunde uma certa imagem da sociedade. De acordo
com essa imagem, a heterossexualidade funciona como
uma espécie de recompensa, enquanto a homossexualida-

verve, 44: 144-164, 2023 157


44
2023

de supostamente não existe ou, caso exista, deve ser con-


siderada um fenômeno marginal, “tão marginal, que ele só
pode dizer respeito a um número restrito de indivíduos”
(Ibidem), dando margem portanto à ideia de “minoria”,
que encontrará grande respaldo até bem pouco tempo.
De outro lado, para que haja controle, a homossexuali-
dade deve ser praticada até certo ponto, podendo desse
modo se tornar objeto de uma intervenção de poder, de
julgamento, de sanções. Assim, “sair do armário” e assumir
uma “identidade” não está ligado apenas a uma ideia de
liberação, tal como o ideário da revolução sexual dos anos
1960 propunha e diante do qual Foucault sempre perma-
neceu distante e crítico, mas também, de forma parado-
xal, para que um controle sobre o corpo, sobre os afetos,
sobre a vida privada dos indivíduos possa se exercer ple-
namente, suscitando uma “vigilância perpétua” (Ibidem).
Esse impasse sobre a questão identitária, tão em voga e
tão polêmica nos dias atuais, não significa que Foucault
não entenda que a “identidade” venha a possuir um papel
estratégico na luta política, mas que considerá-la como
a única e definitiva estratégia possível, como se sua afir-
mação fosse exclusivamente crítica do preconceito e da
exclusão, é um ledo engano.
Nessa perspectiva, podemos dizer que a parte final da
aula de 21 de novembro se constitui ela mesma uma pas-
sagem e um ponto de partida para o modo pelo qual a
questão da sexualidade vai ser tomada por Foucault, qual
seja, para além da questão da repressão. De fato, como ele
mesmo diz, a interdição da homossexualidade na escola se
desdobra a partir de um duplo aspecto: de um lado, ela es-
tabelece uma norma interna e ao mesmo tempo, difunde
uma norma externa. A escola colabora efetivamente com

158 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

a construção de uma imagem fictícia da sociedade, uma


imagem orientada por uma certa concepção de sociedade,
fornecendo aos estudantes o modelo de comportamento,
que deverá ser o seu. Ao se constituir em norma, essa ficção
social permite o pleno exercício dos poderes no interior da
escola, ao mesmo tempo que se torna a projeção de algo
que deve se tornar realidade na sociedade, ou seja, que a
heterossexualidade é permitida e a homossexualidade não
deve jamais existir. Desse modo, a escola, tal como as ins-
tituições disciplinares no seu todo, fabrica o social e não
o inverso, como nas análises costumeiras. Tal fabricação,
ao recusar a concepção althusseriana de aparelhos ideo-
lógicos do Estado, significa que esse sistema de controle
tem por função constituir uma imagem da sociedade por
meio do estabelecimento de normas, cuja consequência
mais importante é tornar as instituições de sequestro em
instituições de normalização: “O indivíduo é sempre des-
crito em função de uma brecha possível ou real relaciona-
da a alguma coisa que é definida não mais como o bem, a
perfeição, a virtude, mas como o normal” (Foucault, 2013,
p. 221). Trata-se agora, portanto, de pensar a sexualidade a
partir da partilha entre o normal e o anormal, entre o são
e o doente. O curso Os anormais, de 1974-1975, tratará à
exaustão esse tema, relacionando-o com a constituição do
discurso médico-psiquiátrico como aquele que cuida da
higiene social e prevê o aparecimento das condutas anor-
mais, transbordando assim os limites da instituição asilar
e se estendendo por toda sociedade.
O desvio — mais longo do que eu próprio supunha
— realizado para chegarmos à questão da sexualidade,
me pareceu de todo modo importante, na medida em
que ele procurou esclarecer o quanto a questão da sexu-

verve, 44: 144-164, 2023 159


44
2023

alidade pode desempenhar um papel fundamental para a


formação de uma “sociedade punitiva”. Nessa perspectiva,
o recurso ao livro de Edward Thompson mostra como o
estudo das fontes pode nos ajudar a entender muitos posi-
cionamentos que Foucault tomou em suas análises. O livro
de Thompson, que se encontra em continuidade com uma
tradição da historiografia inglesa, da qual Christopher
Hill, seu professor e mestre, é uma das figuras mais proe-
minentes, assim como os estudos de Hobsbawm, mostra
com clareza como as lutas morais e políticas no interior
das dissidências do Anglicanismo são fundamentais para
a reformulação das penalidades e para o aparecimento da
prisão na sua forma moderna. Nessas lutas entre “o cris-
tão e o demônio”, a questão da sexualidade ocupa lugar
preponderante.
Gostaria, por fim, de ressaltar como a presença da
questão da sexualidade nessa aula de 21 de março de 1973
introduz também um outro tema, para além daquele da
crítica da “hipótese repressiva”, qual seja o do tipo de dis-
cursividade, de um “campo de discursividade inteiramente
novo” (Idem, p. 220), à qual ela está ligada. A referên-
cia inicial aqui será, justamente, como afirma Foucault, a
“confissão católica”, que havia sofrido profundas modifi-
cações a partir do Concílio de Trento e à qual a História da
sexualidade I fará, posteriormente, referência. Na confissão
católica, é o próprio sujeito que fala de si, não havendo,
portanto, nenhum “arquivo”, mas cuja fala é apropriada
por uma “casuística” (Ibidem, p. 221), ou seja, pelo exame
de casos cotidianos e particulares à luz das regras e prin-
cípios universais norteadores da conduta, assim como pe-
las possibilidades de uma aplicação concreta dessas regras
transformadas em princípios normativos.

160 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

Entretanto, a partir do século XIX, o dispositivo da


confissão acoplado ao “dispositivo de sexualidade” vai ga-
nhar uma outra dimensão, de tal modo que o regime de
discursividade próprio à sexualidade muda de figura e de
lugar. Certamente, tal como a confissão católica, se con-
tinua retomando “o cotidiano, o individual, o íntimo, o
corporal, o sexual” (Ibidem), mas agora essa retomada só
será possível num espaço claramente definido pelas ins-
tituições de sequestro. Não se trata mais, portanto, pura
e simplesmente, de atar os acontecimentos cotidianos a
princípios filosóficos ou religiosos para poder, enfim, ava-
liar as condutas, mas trata-se de circunscrevê-los no in-
terior desses espaços próprios às instituições de seques-
tro: “É sempre do ponto de vista da totalidade do tempo
que a vida dos indivíduos vai ser percorrida e dominada”
(Ibidem, p. 221). O aparecimento e desenvolvimento de
técnicas inovadoras de controle tem por finalidade seguir
o indivíduo na totalidade de sua existência, de seu nas-
cimento até a sua morte. Constitui-se, portanto, novas
formas de discursividade, às quais, por sua vez, estão atre-
ladas à produção e à transmissão de saberes que ordenam
e organizam os discursos que instituem, por fim, as regras
da normalização.
Entende-se, portanto, porque a escola passa a assumir
o papel que antes era atribuído principalmente às igrejas:
nas transformações que se seguem à consolidação do ca-
pitalismo, a escola se tornará um elemento fundamental
para a produção dos corpos dóceis, na medida em que se
entra nelas ainda na mais tenra infância. Vigiar e punir
tratará exaustivamente disso. E produzir corpos dóceis
significa também combater todas as formas de “dissipa-
ção” das forças ligadas à sexualidade e reforçar, portanto, o

verve, 44: 144-164, 2023 161


44
2023

papel da boa descendência — da qual deriva a qualidade


da “força de trabalho” —, o que só será possível no interior
da concepção de família burguesa, baseada no casamento,
na monogamia e na reprodução contra todas as formas de
libertinagem atribuídas às classes laboriosas. Entretanto,
longe de ser tão somente uma prescrição moral e religiosa,
que fará da família o local por excelência da prática “do
bem, da perfeição e a virtude”, trata-se de uma discursi-
vidade que pretende definir, de maneira clara e distinta,
o que é o normal e o anormal. E, assim, entramos na era
da “sexualidade”, que é a era da “norma”, próxima da ex-
periência cristã da “carne” e muito distante da experiência
grega com os “aphrodisia”.

Referências bibliográficas
Foucault, Michel. La société punitive. Paris, Gallimard/
Seuil, 2013.
________. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis, Vozes, 1977.
________. A verdade e as formas jurídicas, 3ª ed. Tradução
de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim
de Moraes. Rio de Janeiro, Nau Editora/Editora Trarepa
Ltda., 2002.
________. “Sur les façons de’écrire l’histoire”. In: Dits et
écrits I. Paris, Gallimard, 1994.
Harcourt, Bernard. “Situation du cours”. In: Foucault,
Michel. La société punitive. Paris, Gallimard/Seuil, 2013.
Hobsbawm, Eric. Rebeldes Primitivos. Tradução de
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1970.
Hill, Cristopher. O mundo de ponta-cabeça. Ideias
radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução

162 verve, 44: 144-164, 2023


verve
Impedimento e interdição: a problemática da sexualidade...

e Apresentação de Renato Janine Ribeiro. São Paulo,


Companhia das Letras, 1987.
Hulak, Florence. “Michel Foucault et E. P. Thompson:
penser la resistence”. In: Brossat, A. et Lorenzini, D. (Dir.),
Foucault et...Le laisons dangereuses de Michel Foucault. Paris,
Vrin, 2021.
Thompson, Edward P. A formação da classe operária inglesa.
I: A árvore da liberdade. Tradução de Denise Bottmann.
3ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
________. A formação da classe operária inglesa. III: A força
dos trabalhadores. Tradução de Denise Bottmann. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1989.

verve, 44: 144-164, 2023 163


44
2023

Resumo:
O objetivo deste artigo é mostrar que a questão da sexualidade
é um tema necessariamente presente, quando se trata de
pensar o modo pelo qual se constituiu na nossa cultura um
modo de exercício do poder, relacionado à constituição do
que Foucault chamou de “sociedade punitiva” e que chamará
de “poder disciplinar”. Trata-se, no fundo, de entender duas
coisas: em que medida os argumentos de Foucault devem aos
historiadores anglo-saxões, em especial Edward Thompson, a
propósito do processo de moralização das penas e por qual razão
será justamente a escola a instituição encarregada de tornar
a questão da sexualidade parte fundamental dos processos de
normalização das condutas.
Palavras-chave: penalidade, moral, religião, sexualidade,
escola.
Abstract:
The purpose of this article is to show that the issue of sexuality
is a necessarily present theme when it comes to thinking about
the way in which a way of exercising power was constituted
in our culture, related to the constitution of what Foucault
called a “punitive society”. and what he will call “disciplinary
power”. Basically, it is a matter of understanding two things:
to what extent Foucault’s arguments owe to Anglo-Saxon
historians, especially Edward Thompson, regarding the process
of moralization of penalties and why school will be precisely
the institution in charge of making the issue of sexuality is a
fundamental part of the processes of normalization of conduct.
Keywords: penalty, morals, religion, sexuality, school.
Impediment and interdiction: the problem of sexuality in
the age of the punitive society, Ernani Chaves.

164 verve, 44: 144-164, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

a sociedade punitiva:
entre o cinismo dos ilegalismos
burgueses e as lutas anárquicas

alexandre filordi de carvalho & silvio gallo

propósito geral
Em largos traços, é quase imediato associar o nome de
Michel Foucault à autoria de Vigiar e Punir. No Brasil, o
aparecimento deste livro se deu em 1977, dois anos após a
sua publicação original. A recepção do texto não pode ser
desprezada do contexto da ditadura civil-militar pela qual
estávamos atravessados. Os componentes sócio-históricos
das violências perpetradas pelo regime ditatorial logo fi-
zeram que o acolhimento das ideias de luta em torno da
dissolução da punição ganhasse contornos de sentido. De
imediato, denunciar as formas pelas quais se pulverizavam
táticas punitivas, para além das torturas habituais, seques-

Alexandre Filordi de Carvalho é pesquisador permanente no PPGE/UNIFESP


e professor no DED/UFLA, além de pesquisador bolsista produtividade do
CNPq. Contato: afilordi@gmail.com
Silvio Gallo é professor Titular na Faculdade de Educação da Unicamp e
pesquisador bolsista produtividade do CNPq. Vinculado ao LIMA – Laboratório
Insurgente de Maquinarias Anarquistas, coletivo que ocupa a FE-Unicamp.
Contato: silvio.gallo@gmail.com.

verve, 44: 165-187, 2023 165


44
2023

tros e desaparecimentos, tornou-se maneira decisiva para


se impulsionar as teses de Vigiar e Punir.
Por conseguinte, praticamente veio a ser consenso a
perspectiva de que lutar contra qualquer punição envol-
via o enfrentamento das instituições que a disseminavam.
Desse ponto de vista, a banalização punitivista se estendia
à compreensão do funcionamento das relações de poder,
em forma de dispositivos, a atravessar as instituições que
disciplinavam para a obediência: prisões, quartéis, esco-
las — tão visados nos anos de chumbo —, mas também
hospitais, manicômios, monastérios etc. Nesse caso, com
total sentido, acasalava as investigações de Foucault acerca
da intricada mutualidade da punição com a arte de vigiar
e de disciplinar, instituindo formas constantes de exercer
o poder sobre os sujeitos, isto é, fazendo deles espécie de
célula social passiva de administração. E isso ocorre sem-
pre de modo produtivo e ativo. Sobre cada um, pairam
finalidades correspondentes aos motivos pelos quais pre-
cisam obedecer, sendo vigiados e punidos para tanto, a fim
de que, uma vez assim disciplinados, os comportamentos,
as atitudes, ações, reações — sem contar uma espécie de
internalização respondente sobre si mesmo —, transpare-
çam a eficácia objetivada das táticas disciplinares.
Embora correta, tal recepção moveu-se por demasia-
do, dados os limites históricos e suas especificidades, na
alocação de enfrentamento das relações de poder como
se estes fossem sempre exteriores à própria constituição
do modo de ser de cada um. Em outras palavras, é como
se tratasse de enxergar o que se produzia nos dispositivos
de poder materializados nas discursividades e nas práticas
institucionais, porém desprezando suas concretudes na

166 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

singularidade de cada sujeito, inclusive na do denunciante,


digamos, foucaultiano.
De lá para cá, muito se produziu em torno do pen-
samento de Foucault. E de Vigiar e Punir, ao menos ao
leitor mais familiarizado com o arcabouço da obra de seu
autor, sabemos que punição, vigilância e disciplina, afeitas
às relações de poder, estão para a produção positiva de
subjetividades. Quer dizer, não se combate a finalidade de
uma relação de poder sem outras relações de poder. Estas
são positivas porque ocorrem na concretude, ou, se prefe-
rirem, na positividade do que fazemos, de como agimos e
lidamos com o que vai nos constituindo, ou seja, a como
chegamos a ser o que somos.
Desse ponto de vista, o problema está justamente no
automatismo no qual nos reduzimos ou na repetição do
mesmo ao que chegamos a ser. É como se, doravante, pu-
déssemos dizer: combater a ditadura cívico-militar foi e
é imprescindível; mas combater as nossas microditaturas
também o é; os generais e os coronéis potencialmente
passíveis de encarnar em nossos gestos, olhares e rumores
cotidianos pela intolerância, denuncismo, exclusão e su-
cessivamente estão no mesmo rol do que devemos enfren-
tar. Ainda mais: em questão está a pilotagem automática
de modos de ser eficientes a um sistema sócio-econômi-
co-político capitalista que vai aderindo às suas engrena-
gens com respostas eficazes, adaptáveis e disciplinadas em
grande escala.
Anos antes da publicação de Vigiar e Punir, Foucault
ministrou, em 1973, o curso A sociedade punitiva no Collège
de France. Esse curso funcionou como espécie de labora-
tório para se ensaiar as pistas mais pertinentes acerca da

verve, 44: 165-187, 2023 167


44
2023

condensação da sociedade punitiva, consolidada nas estra-


tégias da vigilância, da punição e de relações de poderes
disciplinares. Estas últimas, contudo, foram ensaiadas na
prevalência dos interesses da ordem burguesa do capitalis-
mo industrial do século XVIII. Sob tal horizonte, a con-
cepção de sociedade punitiva amplia a compreensão da
eficácia do que Foucault denominou em Vigiar e Punir de
sociedade disciplinar.
Mas quem e como, em tal conjuntura, foi disciplinado?
Com quais objetivos e maneiras? Quais implicações a so-
ciedade punitiva trouxe para a face luminosa da história
ocidental, de um lado, e, de outro lado, quais implicações
lançou na penumbra da invisibilidade, precisamente para
não se revelar a perversão das formas pelas quais se con-
tinua punindo? Quais as consequências para o cenário
contemporâneo desses primeiros passos genealógicos na
investigação da punição e da disciplina? Haveria alguma
forma de pensarmos em experiências que suscitem condi-
ções de resistências e mutações na continuidade da conso-
lidação da sociedade punitiva?
Tais indagações orientam o objetivo deste artigo em
duas frentes. Na primeira, o enfoque recairá na compre-
ensão de alguns elementos fundantes das “escolhas” privi-
legiadas historicamente para se fundar e se manter a so-
ciedade punitiva. Para tanto, analisaremos algumas pistas
acerca da emersão histórica dos “ilegalismos” e como as
formas criadas pela burguesia para discipliná-los deflagra-
ram o condicionamento de uma nova constante antropo-
lógica: aquele que deve ser de perto vigiado, moralizado,
contido, punido e disciplinado. As implicações serão vistas
ao lado de uma justiça seletiva e de seu gerenciamento
pela burguesia capitalista, sendo espraiada banalmente

168 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

no grande Carcerário, alusão final de Foucault em Vigiar


e Punir, e que n’A sociedade punitiva se transparece na
forma-prisão voltada para os indivíduos que ameaçam a
estabilidade de um poder disciplinar produtivo. Tal mo-
vimento será importante para compreendermos por que a
consolidação da sociedade punitiva foi um modo eficaz de
se impedir revoltas e lutas contra o próprio capitalismo.
Na segunda frente, procuraremos analisar as possíveis
resistências à sociedade punitiva, constituindo-se tam-
bém como lutas contra o capitalismo. De modo interes-
sado, defenderemos um anarquismo que, se de um lado
se contrapõe ao Estado como centralizador do poder, de
outro lado, nutre-se aqui da analítica foucaultiana, com
o intuito de pensar as relações com o poder de maneira
mais abrangente, em uma dimensão microscópica, na qual
é importante lutar em um plano mais amplo e extensivo
contra os poderes múltiplos que enredam a teia social.

a sociedade punitiva: a alma mater do conformismo.


a quem interessa?
Em Vigiar e Punir, a correlação direta da emersão da
sociedade disciplinar com a consolidação do capitalismo
pós século XVIII pode ser encontrada aqui e acolá. De
algum modo, “é impossível separar sociedade disciplinar
de sociedade capitalista” (Filordi de Carvalho, 2015, p.
176). Mas, em A sociedade punitiva, Foucault foi muito
mais contundente, ao ponto de Harcourt (2015, p. 258),
ao situar o curso, afirmar: “o curso de 1973 deve ser lido
como um desfio dos grandes textos sobre a história do
capitalismo”.

verve, 44: 165-187, 2023 169


44
2023

Ocorre que a entrada na temática do capitalismo é


forjada pela correlação direta entre política, desigualdade
social, exclusão, punição, racionalidade burocrática tecida
pelas linhas de relações de poder visando à condução de
um conjunto específico de camada social que, ao cabo, era
também objeto a ser disciplinado, com o intuito de sufo-
car suas reivindicações, lutas e resistências. Trata-se das
camadas populares, dos pobres e dos vagabundos, noção
esta personificada pela moralização burguesa.
Foucault enxergou nos textos de Le Trosne, fisiocrata
que foi conselheiro de justiça da corte, o ponto da emersão
da localização política da ameaça do bas-fond ao futuro
espírito burguês. Escrevendo no final do século XVIII, Le
Trosne associou a pobreza à vagabundagem. Esta, por sua
vez, encarnava-se numa espécie de contrassociedade, vista
como inimigo público a ser combatido, pois era de delin-
quência que se tratava. Foucault (2015, p. 46) assim cita
Le Trosne: “São insetos vorazes que infectam e devastam
os campos, que devoram diariamente a subsistência dos
agricultores. Para falar sem linguagem figurada, são tropas
inimigas espalhadas pela superfície do território, que nele
vivem à vontade, como numa terra conquistada, arreca-
dando verdadeiras contribuições com o título de esmolas.
Vivem no meio da sociedade sem serem seus membros;
vivem nela no estado em que os homens estariam se não
houvesse lei, polícia nem autoridade (...).”
A relação entre infecção e devastação, consumo sem
trabalho e inimigo social, espacialidade controlada e
deambulação e, não menos importante, viver em sociedade
sem ter direito para isso, funda o delineamento do dispo-
sitivo jurídico visando a uma ortopedia social geral. Afinal
de contas, há um Estado onde há lei, polícia e autoridade.

170 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

E viver como se tal não houvesse prefigura a forma crimi-


nal primeira.
Em termos genéricos, o simples fato de não se ter si-
tuação civil localizada e regrada pelo ritmo reconhecido
do trabalho fez com que se deslocasse para essa complexa
massa a funcionalidade da punição como regramento de
enquadre social. No limite, poderia ser também o seques-
tro radical da liberdade, onde a prisão haveria de assumir
lugar de destaque.
Assim, Foucault revelou que a fixação da simbiose en-
tre sistema judiciário moderno e o investimento social
das formas de controle foi o que permitiu o ordenamento
inescapável ao fato de que todos, indistintamente, devem
pertencer ao Estado. Mas haverá uma fatal diferença en-
tre os que pertencem ao Estado, constituindo-o, e aqueles
que a ele pertencem por obrigação coercitiva, no sentido
da exploração necessária de suas forças vitais, garantindo
o lucro dos que fazem o Estado. A entrada na socieda-
de punitiva, a bem da verdade, é a nossa entrada na era
da produção de acumulação capitalista. Logo, anunci0ou
Foucault (Idem, p. 49), de maneira contundente: “(... a
partir do momento em que a sociedade se define como
sistema de relações entre indivíduos que possibilitam
a produção, permitindo maximizá-la, dispõe-se de um
critério que possibilita designar o inimigo da sociedade:
qualquer pessoa que seja hostil ou contrária à regra da ma-
ximização da produção.”
O inimigo da sociedade, personificado nos sinais de
mínima hostilidade às demandas produtivas da burguesia,
amplificou o repertório dos “insetos vorazes” a ser com-
batido. Para tanto, sucessivas arbitragens do ilegalismo

verve, 44: 165-187, 2023 171


44
2023

precisaram ser criadas, como Foucault explorou na aula


de 21 de fevereiro. Mas chama atenção o jogo astucioso
da burguesia em detrimento de sua defesa. Grosso modo,
o outro a ser capturado nas engrenagens punitivas sempre
foi a sombra ameaçadora a bloquear os sentidos perpe-
trados pelos interesses dos capitalistas, ou minimamente
a denunciá-los. Numa espécie de cortina de fumaça, a so-
ciedade punitiva é a personificação do cinismo operando
a favor de sua corrente, uma vez que ela mesma se valia do
ilegalismo quando este a favorecia. Entretanto, ela con-
tra-atacava na outra ponta, gestando a sua condenação,
quando o ilegalismo a desfavorecia ou ameaçava suas in-
cursões à dominação econômica e política.
A genealogia dos ilegalismos burgueses empreendida
por Foucault na aula de 24 de fevereiro, em linhas gerais,
coloca em cena três grandes dimensões. Todas elas são es-
pécie de fio condutor da compreensão do tratamento legal
dado, até hoje, aos deslocados da camada economicamen-
te privilegiada: a história vem de longe. De toda maneira,
os ilegalismos da burguesia foram marcadores decisivos
para situá-la e consolidá-la como classe privilegiada na
manutenção da mão punitiva em nossa sociedade.
Em primeiro lugar, Foucault argumentou que, des-
de a Idade Média, e não podemos ignorar isto graças ao
acumpliciamento do poder papal com a dimensão feudal,
a nobreza traçou rotas intrusivas na consolidação do di-
reito de punir. Ela o fez por intermédio da venalidade de
cargos públicos, ou seja, adquirindo títulos cuja notorie-
dade garantisse a sua capacidade de influenciar no aparato
judiciário.

172 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

Em seguida, sob o lastro da influência no aparato ju-


diciário, foi-lhe permitido se introduzir, cada vez mais,
no aparato estatal, não mais para influenciá-lo, mas para
regê-lo. Nesse âmbito, a pressão econômica coincidiu com
a decisiva marca de uma justiça regida conforme a defesa
desigual do caráter protetivo de que pudesse favorecer a
fortuna, tanto no sentido econômico quando do bom aca-
so histórico, dos mandarins econômicos.
Finalmente, e por consequência inescapável, já coin-
cidindo com o capitalismo fabril, a burguesia, herdeira
desta destinação de certo bom ilegalismo, foi capaz de
promovê-lo conforme seus interesses. Com efeito, no
fim do século XVIII, todo o aparato administrativo, po-
licial e de vigilância extrajudiciária, argumentou Foucault
(Ibidem, p. 134), “funcionava não tanto como represen-
tante da legalidade, mas como instância de arbitragem
dos ilegalismos”, sendo transformado, pela burguesia, em
“aparato judiciário encarregado precisamente de livrá-la
do ilegalismo popular. Esse aparato, que estava misturado
ao sistema geral de ilegalismos, foi açambarcado pela bur-
guesia, quando esta tomou o poder, e encarregado por ela
de aplicar sua legalidade”.
Ora, nessa trama está a compreensão das razões por
que se prende quem furtou o pacote de biscoito no mer-
cado e, raramente, o criminoso de colarinho branco.
Também se compreende por que marcadores raciais ten-
dem a ressaltar a condição do ilegal enquanto o branco
privilegiado é menos visado pelos “situas” da polícia, por
exemplo. No mesmo montante, subornar, recusar a pagar
impostos, ter acesso a advogados caros, influenciar nas to-
madas de decisão política e sucessivamente são derivações
dos ilegalismos capazes de influenciar na destinação da

verve, 44: 165-187, 2023 173


44
2023

performance do justo e do injusto. A história da sociedade


punitiva não deixa de ser a história do mesmo vocábu-
lo de como funcionam as desigualdades arbitradas pelos
interesses capitalistas de nossa sociedade, se não, vejamos
com fartura argumentativa: “Assim, pela força das coisas,
com a instalação da base da economia capitalista, esses
estratos populares [pertencentes aos ilegalismos popula-
res], deslocando-se do artesanato para o salariado, foram
também obrigados a deslocar-se da fraude ao roubo. Ora,
na mesma época, os privilegiados, pelo mesmo mecanis-
mo, também se viam sistematicamente transferidos da
exação (fiscal, judiciária, senhorial) para a fraude. Eles,
agora, reivindicavam o privilégio exclusivo de poder evi-
tar a lei, escapar aos regulamentos, direito que assumiram
duas vezes: na primeira, obtendo a possibilidade de não
sofrerem os golpes da lei penal graças a alguns privilégios
sociais; na segunda, obtendo o poder de fazer e desfazer
a lei. Praticar a fraude e escapar à lei, portanto, teriam
duas formas novas: fazer a lei e, por estatuto, escapar à lei.
O poder legislativo estava assim profundamente ligado à
burguesia, à prática do ilegalismo.” (Ibidem, p. 137).
Que temos, pois? O inimigo público, toda forma de
poder que pudesse assaltar a estabilidade dessa consolida-
ção de um ilegalismo favorável ao mandonismo do poder,
tornou-se alvo de combate. Combater o ilegal passou a ser
o favorecimento da licitude ilegal conveniente. As insti-
tuições de normalização daí advindas teriam perfil adap-
tado à voz de seus criadores: a burguesia capitalista. Tais
instituições, por extensão, transformaram-se na linha de
frente da proteção dos interesses das classes privilegiadas
dirigentes. Tratava-se de assegurar a destinação do corpo,

174 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

com sua força e desejo, ao hábito do servilismo adaptativo


da funcionalidade do trabalho.
Controlar e vigiar perpetuamente o corpo que ame-
açava escapar da geração de riqueza ao estrato burguês
sintetizam o sentido da criminologia a partir do século
XIX. O crime, então, é considerado doença a qual tem de
ser combatida, desde que seja o crime das classes popula-
res: o nomadismo, a vagabundagem, a recusa ao trabalho,
o vício, os imoralismos, a intemperança, a prodigalidade,
a imprevidência, enfim, tudo que pudesse distanciar o
corpo da integração no sistema de produção. A penali-
zação da existência, assim, começou na redução do cor-
po à funcionalidade produtiva imposta pelo capitalismo
em um Estado regulador de sua capilaridade. E o que fez
a burguesia nessa interface? Refluiu os ilegalismos para
favorecê-la, reduzindo o aparato coercitivo em sistema
penal e normalizador voltados para o confisco punitivista
de todos considerados inimigos sociais.
Foi nessas condições que Foucault usou o termo “vi-
giar-punir”. As instituições punitivas de nossa sociedade,
espelhamento eterno da sociedade burguesa e de seus in-
teresses, organizou a percepção do que é ilegal, toman-
do por bases seus próprios ordenamentos. Então, “o par
vigiar-punir instaura-se como relação de poder indispen-
sáveis à fixação dos indivíduos no aparato de produção, à
constituição das forças produtivas, caracterizando a socie-
dade que se pode chamar de disciplinar” (Ibidem, p. 180).
No curso A sociedade punitiva, a abrangência do vigiar-
-punir foi denominada por Foucault de forma-prisão.
Trata-se dos modos globais como a punição, considerando
os umbrais da emergência da produção capitalista, “prendeu”

verve, 44: 165-187, 2023 175


44
2023

e “puniu” a massa inteira de obreiros numa forma-salário. A


forma-prisão, assim, é espécie de decalque da forma-salário.
Em que sentido? No sentido que “assim como se dá um
salário pelo tempo de trabalho, toma-se, inversamente, cer-
to tempo de liberdade como preço de uma infração”. Aqui
há uma dupla punição. De um lado, um salário compatível
com a manutenção na linha da pobreza e da precarização
existencial, contudo, forjando continuidade com a ameaça
de que, sem tempo de liberdade, sequer há forma-salário.
De outro lado, replicando-se na matriz punitiva carcerária
o confisco do tempo: a prisão nasceu, assim, como parâ-
metro de ultrapassamento, porém para baixo, da pobreza e
da miséria. Em suma, a sociedade punitiva organizou, em
nome da forma-prisão, a sequestração e a gestão do tem-
po livre. Para Foucault, a forma-prisão é uma forma social
e não necessariamente a arquitetura dos presídios, embo-
ra seja aí abrangida. Em tal forma social, também se está
preso à forma-salário, sem transição de classe, pela qual o
corpo trabalhador via-se impelido ao mais-trabalho, prisão
imanente à sua condição existencial. A prisão física era a
ameaça constante da miséria mais miserável de todas, repli-
cação, às avessas, do ilegalismo insolúvel a ser reduplicado
por mais-normalização social, para além da forma-prisão.
Em Vigiar e Punir, Foucault alça a abrangência dessa
análise à categoria de o grande arquipélago carcerário. A
sociedade ocidental teria alcançado a maturidade de um
novo tipo de controle: o da normalidade e o da sujeição.
Doravante, “essa grande organização carcerária reúne to-
dos os dispositivos disciplinares que funcionam dissemi-
nados na sociedade” (Foucault, 1997, p. 283). O “normal”
do carcerário é o desdobramento da forma-prisão, dissi-
pada em todo tecido social. De uma ponta a outra, apren-

176 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

demos que foi, e continua sendo, “(...) sobre os corpos dos


vagabundos, das prostitutas, dos bêbados, dos nômades,
dos boêmios, das pessoas arredias aos horários fabris,
enfim, 'da gente do sonho caído', na expressão de João
Antônio, que a burguesia passou a investir. Afinal de con-
tas, a sociedade punitiva coincide com as demandas por
corpos eficientes e produtivos. A forma-prisão tornou-se,
com efeito, a punição concreta e virtual, eivada pela pres-
são da forma-salário que, por sua vez, confisca a plastici-
dade e a energia do corpo, higienizando-o, adestrando-o,
educando-o, numa palavra, moralizando-o” (Filordi de
Carvalho; Ribeiro, 2023, p. 39).
Entretanto, a vontade de punir por intermédio da ges-
tão dos ilegalismos também assinala para a potência late-
jante das relações de poder, embora desiguais e desequi-
libradas, porém passíveis de contestação e de mobilidade.
Foucault pensa, nessa direção, a sociedade pela perspectiva
da guerra civil. O modelo da guerra-civil ensina que, entre
os ilegalismos dos capitalistas e os ilegalismos populares,
o que se trava são relações de poder em constante movi-
mento. A guerra civil da sociedade punitiva se desenvol-
ve num campo de batalha infame e cotidiano: o sistema
punitivo na extensão do sistema econômico capitalista no
encontro da forma-prisão com a forma-salário.
E foi justamente a partir de tal conjuntura que Foucault
iniciou, de maneira mais incisiva, a investigar que “o poder
é coisa que não se possui”; mas “algo exercido em toda a
espessura, em toda a superfície do campo social, segundo
todo um sistema de intermediações, conexões, pontos de
apoio, coisas tênues como família, relações sexuais, mora-
dia etc.” (Foucault, 2015, p. 206). Embora existam clas-
ses sociais a ocupar lugar privilegiado na “espessura” do

verve, 44: 165-187, 2023 177


44
2023

poder, a cada instante, ele também se “desenrola em pe-


quenas disputas singulares, com inversões locais, derrotas
e vitórias regionais, desforras provisórias”, complementa
Foucault (Idem, p. 208).
Pensar essas possibilidades no registro da forma-
-prisão, desde a fixação da sociedade punitiva, não como
forma arquitetônica, mas muito mais como forma social,
demanda a compreensão do papel vital dos ilegalismos
populares como “desforras provisórias” de contestação e
de intervenção na vontade de punir interessada aos regen-
tes do capitalismo.

uma luta anárquica contra a sociedade punitiva


Na última aula (28 de março de 1973) do curso,
Foucault passou em revista seu percurso analítico daque-
le ano. Em uma espécie de virada, aponta ter, sobretudo,
abordado as relações de saber-poder, procurando compre-
ender que tipo de poder tornou possível uma sociedade
que, por cento e cinquenta anos, alicerçou-se em torno
da instituição prisional. Após ter nomeado esse poder de
punitivo, concluiu que seria melhor denominá-lo poder
disciplinar, visto que se baseia no disciplinamento dos in-
divíduos através da “aquisição de hábitos como normas
sociais” (Ibidem, p. 215).
Para tratar do poder, o filósofo toma o cuidado de de-
marcar seu distanciamento em relação a quatro posições
hegemônicas no pensamento social sobre o tema:
Poder como posse. Para ele, o poder é fundamental-
mente exercício, ação, que o coloca do lado de uma dinâ-

178 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

mica, não de uma posse. Quando analisamos a história


de modo a identificar qual classe detém o poder e qual
(ou quais) não o possui, partimos já de uma perspecti-
va equivocada, que mais esconde do que revela. A relação
de poder é sempre agônica, de disputa de forças, não de
apropriação, de modo que “a relação de poder não obedece
ao esquema monótono da opressão” (Ibidem, p. 207), mas
evidencia “pequenas disputas singulares, com inversões
locais, derrotas e vitórias regionais, desforras provisórias”
(Ibidem, p. 208).
Poder como localização. As análises tradicionais co-
locam o poder localizado em certos elementos de uma
sociedade, de modo especial nos aparelhos de Estado;
Foucault discorda, afirmando que são os aparatos estatais
que participam de um sistema de poder que é, ao mes-
mo tempo, mais amplo e que vai mais fundo. É preciso,
pois, discernir os sistemas de poder das estruturas polí-
ticas, pois “há sistemas de poder muito mais amplos do
que o poder político em seu funcionamento estrito: todo
um conjunto de focos de poder que podem ser as relações
sexuais, a família, o emprego, a moradia” (Ibidem, p. 209).
Subordinação do poder ao modo de produção. Ao con-
trário, para ele o poder é um dos elementos constitutivos
do modo de produção, não estando subordinado a ele, mas
sendo parte de sua própria operação material. No caso da
sociedade capitalista, o poder operando através das insti-
tuições de sequestro possibilita transformar “o tempo da
vida em força de trabalho” (Ibidem, p. 211), de modo a
fazer funcionar o modo de produção industrial.
Poder e ideologia. Afirma-se que os efeitos do poder
são ideológicos, que os saberes produzidos pelo poder são

verve, 44: 165-187, 2023 179


44
2023

ideologias e Foucault reage, explicitando a articulação in-


trínseca entre poder e saber, afirmando que o exercício de
um poder é sempre um lugar de formação, portando de
produção de saber, do mesmo modo que todo saber tor-
na possível um exercício de poder. De modo específico,
destaca que o saber disciplinar produziu historicamente
ao menos três tipos de saberes: aqueles ligados à gestão, à
administração; aqueles ligados à pesquisa; aqueles ligados
à investigação policial.
Precisamos, então, ter em conta tais considerações, de
modo a não nos afastarmos demasiado do quadro analíti-
co proposto pelo filósofo. E parece-nos interessante agre-
gar que, pouco tempo após o encerramento desse curso no
Collège de France, Foucault esteve no Rio de Janeiro, en-
tre 21 e 25 de maio daquele mesmo ano, proferindo uma
série de cinco conferências, que seriam publicadas com o
título A verdade e as formas jurídicas. Se fazemos menção
a essas conferências é porque elas parecem trazer uma in-
flexão do pensamento do autor que interessa em nossa
análise: A sociedade punitiva e Vigiar e Punir são marcados
pela analítica em torno da articulação saber-poder; já A
verdade e as formas jurídicas, ao mesmo tempo que retoma
elementos do curso daquele ano, reativa também aspectos
do curso de dois anos antes, Aulas sobre a vontade de sa-
ber, colocando a problemática da articulação saber-poder
em termos de relações com a verdade. Isso nos parece es-
pecialmente importante, na medida em que anuncia, de
algum modo, aquela que seria a perspectiva adotada por
Foucault em seus últimos trabalhos, desde 1980: o proble-
ma do governo dos seres humanos pela verdade, abrindo-
-se a todo o leque da subjetivação e seus processos.

180 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

Das aulas trabalhadas no Rio de Janeiro, destacamos


um elemento abordado na última seção, em 25 de maio
de 1973, de modo a articulá-lo com o curso francês.
Contrapondo-se às análises marxistas, já ao final daque-
la aula o filósofo afirmou: “(...) para haver sobre-lucro é
preciso haver sub-poder. É preciso que, ao nível mesmo
da existência do homem, uma trama de poder político
microscópico, capilar, se tenha estabelecido fixando os
homens ao aparelho de produção, fazendo deles agentes
de produção, trabalhadores. A ligação do homem ao tra-
balho é sintética, política; é uma ligação operada pelo po-
der. Não há sobre-lucro sem sub-poder. Falo de sub-poder
pois se trata do poder que descrevi há pouco e não do
que é chamado tradicionalmente de poder político; não se
trata de um aparelho de Estado, nem da classe no poder;
mas do conjunto de pequenos poderes, de pequenas ins-
tituições situadas em um nível mais baixo. (...) A última
conclusão é que este sub-poder, condição do sobre-lucro,
ao se estabelecer, ao passar a funcionar, provocou o nas-
cimento de uma série de saberes — saber do indivíduo,
da normalização, saber corretivo — que se multiplicaram
nestas instituições de sub-poder fazendo surgir as cha-
madas ciências do homem e o homem como objeto da
ciência.” (Foucault, 1996a, p. 125).
Percebe-se com sua análise que o poder é constitutivo
da máquina do capital. Mas não se trata de um poder de
Estado, de um poder centralizado, mas de uma miríade
de poderes microscópicos que, à força do confinamento
institucional, do disciplinamento dos corpos e das almas,
produzem o ser humano como trabalhador, como gerador
de riquezas, do sobre-lucro do empresário. O poder dis-
ciplinar é, pois, parte constitutiva do capitalismo, uma de

verve, 44: 165-187, 2023 181


44
2023

suas engrenagens centrais. Para pensar os jogos de poder


no capital, não basta olhar, pois, para os jogos políticos; as
lentes precisam focar a microfísica das relações sociais de
modo geral, revelando toda uma complexidade constituti-
va do modo de produção.
Em uma outra direção, ainda que complementar a
esta, destacamos que, na segunda aula desse ciclo carioca,
Foucault desenvolveu uma análise da tragédia Édipo Rei,
uma espécie de condensado do que havia desenvolvido no
curso de 1971, no Collège de France. Mas no Brasil reto-
mou sua análise sob o impacto da leitura de O Anti-Édipo,
de Deleuze e Guattari, publicado em 1972. No debate
com o público do ciclo de conferências, muitos deles psi-
canalistas, Foucault toma o partido de Deleuze e Guattari
em sua crítica à psicanálise, quando reage a uma pergun-
ta, afirmando: “(...) a análise de Deleuze, é nisso que ela
me parece muito interessante, consiste em dizer: Édipo
não é nós, Édipo é os outros. Édipo é o outro. E Édipo é
precisamente esse grande outro que é o médico, o psicana-
lista. Édipo é, se vocês quiserem, a família enquanto poder.
É o psicanalista como poder. Isso é Édipo. Não somos
Édipo. Somos os outros na medida em que, efetivamente,
aceitamos esse jogo de poder.” (Foucault, 1996a, p. 130).
A tragédia de Édipo, na leitura de Foucault, enfatiza
não a questão do desejo, como o fez a psicanálise freudia-
na, mas a questão do poder1, a dimensão política tal como
já havia sido analisada por helenistas franceses, como
Jean-Pierre Vernant. A inovação de Foucault é colocá-la
1
Isso fica claro quando examinamos o curso de 1971: Michel Foucault.
Aulas sobre a vontade de saber. Tradução de tradução de Maria Thereza
da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo, WMF
Martins Fontes, 2014.

182 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

no âmbito de uma “história da verdade”. Vale também


lembrar que, anos depois, em 1977, ao escrever um pre-
fácio para a edição de O Anti-Édipo nos Estados Unidos2,
Foucault saudou esse livro como uma “ética”, como uma
luta vital contra o fascismo, sendo que um dos imperati-
vos apontados pelo livro, em sua leitura, era: “não se apai-
xonem pelo poder” (Foucault, 1996b, p. 200). Com isso,
marca-se o fascismo como um apego desejoso ao poder, e,
se queremos combatê-lo, um primeiro ponto seria desape-
gar-se do poder. Isso não significa abdicar do poder, visto
que as relações de poder nos constituem e nos atravessam,
sendo o social uma rede de micropoderes, como Foucault
não cansou de enfatizar, mas ter sempre noção do lugar
que se ocupa nessas relações de poder, agindo mais como
resistência a ele do que como sua afirmação.
A analítica de Édipo Rei tendo como fio condutor uma
relação com a verdade seria retomada por Foucault no cur-
so de 1980, em suas primeiras aulas, preparando o terreno
para a análise das práticas de si no cristianismo primitivo.
Qual a razão dessa aparentemente estranha articulação?
Ora, nesse curso o filósofo trabalhou a fundo a sua mu-
dança de foco das articulações saber-poder para o governo
dos humanos pela verdade, que vinha sendo preparada ao
longo de toda aquela década. Nesse novo marco analítico,
o poder é substituído pela noção mais ampla de “governo”
(como condução de condutas) e o saber é substituído pela
noção mais abrangente de “verdade”. É analisando a tra-
gédia de Édipo, evidenciando sua relação com a verdade
— tanto a verdade socialmente instituída (análise política, no
2
Trata-se de Uma introdução à vida não fascista, publicado como prefácio a
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia,
New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. O texto seria reapresentado nos
Ditos e Escritos.

verve, 44: 165-187, 2023 183


44
2023

curso de 1971) como a verdade de si mesmo (análise ética,


no curso de 1980) —, que Foucault exemplifica esse percur-
so, para poder em seguida analisar práticas cristãs, como a
da confissão, como sendo aquelas que colocam os indivíduos
em relação direta com a verdade de si mesmos. Tais práticas
serão, como se sabe, a base dos processos de subjetivação.
E, nesse contexto — que abriria toda uma dimensão
de estudo das práticas de si antigas, estendidas pelos anos
seguintes, marcando uma forte preocupação com o sujei-
to como si mesmo, com os processos de subjetivação —,
Foucault colocou um outro imperativo importante, que,
a um só tempo, complementa e recobre aquele esboçado
antes, o de não se apaixonar pelo poder: agora ele afirma
ser absolutamente necessário desconfiar de todo poder, vis-
to que nenhum poder possui uma legitimidade intrínseca
(Foucault, 2014). Completa-se assim um arco que fez com
que suas análises fossem se deslocando do saber para o po-
der e, finalmente, para o sujeito e seus processos de cons-
tituição. Se o sujeito é o “ponto de chegada”, é importante
perceber que ele sempre esteve ali, ainda que não possuísse
centralidade analítica. Desse modo, podemos ler A sociedade
punitiva — e também Vigiar e punir — como processos
modernos de constituição de sujeitos através do poder dis-
ciplinar, em cujo contexto a punição teve papel central.
Assim, chegamos ao ponto daquilo que queremos defen-
der neste texto. Se a sociedade punitiva se constituiu como
um processo de disciplinamento que forjou subjetividades
através da docilização dos corpos confinados em espaços
como aqueles das escolas, dos hospitais, das fábricas, das
prisões, garantindo todo um processo de produção indus-
trial capitalista capaz de gerar um sobre-lucro pela forma-
-salário, isso só foi possível com o concurso de uma miríade

184 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

de sub-poderes na forma-prisão. A resistência ao poder dis-


ciplinar, portanto, não pode ser apenas e tão somente uma
resistência ao poder de Estado que instituiu e consagrou
a sociedade disciplinar; ela precisou e precisa capilarizar-
-se, lutando no âmbito deste conjunto de “sub-poderes”, de
poderes microscópicos que nos constituem como sujeitos.
Foucault nos incita a pensar em uma postura anarquis-
ta e anárquica que seja aquela de colocar em questão todo
e qualquer poder, em sua origem mesma. Isso não signi-
fica neutralizar esses poderes, mas não se deixar levar por
eles sem resistência, sobretudo não se permitir apaixonar-
-se por eles. Uma luta contra o Estado é necessária, mas
também é necessária uma luta contra a teia de poderes
que enreda uma sociedade e, em o fazendo, constitui a
cada um de nós como sujeito que age nessa mesma teia.
Enfim, uma leitura contemporânea de A sociedade pu-
nitiva não pode prescindir dos trabalhos posteriores de
Foucault. Acompanhar suas análises sobre a emergência
e consolidação do poder disciplinar, de uma sociedade na
qual o Estado se transforma em administrador, significa
também colocar em suspeita esse poder disciplinar, des-
confiar de seus intentos, questionar os jogos através dos
quais ele procurou legitimar-se, visto não ter uma legiti-
midade intrínseca. Ler esse curso hoje é questionar o que
somos, animar lutas contra aquilo que somos, de modo a
possibilitar construções novas.
Ao cabo, talvez, permanece uma grande lição: “Há
duas maneiras de se opor à sociedade: exercer certo poder
que crie um obstáculo à produção e recusar-se a produzir,
exercendo assim, mas de outro modo, um contrapoder que
se opõe à produção” (Foucault, 2015, p. 49).

verve, 44: 165-187, 2023 185


44
2023

Referências bibliográficas
Filordi de Carvalho, Alexandre. “Sociedade capitalista e
produção disciplinar excludente: a atualidade de Vigiar e
Punir na compreensão da função-sujeito contemporânea”.
In Alexandre Filordi de Carvalho; Silvio Gallo (org.).
Repensar a educação: 40 anos após Vigiar e Punir. São Paulo,
Editora da Física, 2015.
Filordi de Carvalho, Alexandre; Ribeiro, Carlos Eduardo.
“Como nos tornamos uma sociedade punitiva?”. In:
Revista Cult, n. 293, maio de 2023, São Paulo, Editora
Bregantini, pp. 39-42.
Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução
de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim
Morais. Rio de Janeiro, NAU/PUC-Rio, 1996.
___________. “O Anti-Édipo: uma introdução à vida
não fascista”. In Cadernos de Subjetividade. Tradução de
Fernando José Fagundes Ribeiro. São Paulo, número
especial, junho de 1996, p. 200.
___________. Vigiar e Punir. História da violência nas
prisões. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis,
Vozes, 1997.
____________. Do governo dos vivos. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2014.
____________. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone
C. Benedetti. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2015.
Harcourt, Bernard. “Situação do curso”. In: Michel
Foucault. A sociedade punitiva. Tradução de Ivone C.
Benedetti. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2015, pp.
243-281.

186 verve, 44: 165-187, 2023


verve
a sociedade punitiva: entre o cinismo dos ilegalismos burgueses...

Resumo:
Neste texto, analisamos o curso de Michel Foucault no Collège
de France em 1973, A sociedade punitiva, como um dos pontos
de inflexão em sua analítica do poder, propondo que ele pode ser
relido hoje a partir dos cursos posteriores, em que se marcaria
a mudança de uma analítica saber-poder para o contexto do
governo dos humanos pela verdade. Na primeira parte, o
enfoque recai sobre a compreensão de alguns elementos fundantes
das “escolhas” privilegiadas historicamente para se fundar e se
manter a sociedade punitiva; na segunda, analisamos as possíveis
resistências à sociedade punitiva, constituindo-se também como
lutas contra o capitalismo, em uma forma anárquica de desconfiar
e resistir dos micropoderes que enredam a teia social.
Palavras-chave: sociedade punitiva, poder disciplinar, resistência.
Abstract:
In this paper we analyze Michel Foucault’s course at the Collège de
France in 1973, The punitive society, as one of the inflection points
in his analysis of power, proposing that it can be read today from
the later courses, which would mark the change from an analytical
knowledge-power to the context of the government of humans by
truth. In the first part, the focus falls on the understanding of some
founding elements of the historically privileged “choices” to found
and maintain the punitive society; in the second, we analyze
the possible resistance to the punitive society, also constituting
struggles against capitalism, in an anarchic way of distrusting
and resisting the micropowers that entangle the social web.
Keywords: punitive society, disciplinary power, resistance.
The punitive society: between the cynicism of bourgeois
illegalisms and anarchic struggles, Alexandre Filordi de
Carvalho e Silvio Gallo.

verve, 44: 165-187, 2023 187


22 de novembro de 1923

[Os trechos a seguir são do interrogatório


de Kaneko Fumiko em 22 de novembro de 1923]

Pergunta: Por que você aderiu ao niilismo?

Resposta: Por causa das circunstâncias da


minha família e das repressões sociais que se
seguiram.

P: E a sua família?

R: Na realidade, eu não tenho família...


Fui abandonada pelos meus pais e separada dos
meus irmãos e irmãs. Eu não tive vida fami-
liar. Meu nascimento não foi registrado, en-
tão fui oprimida pela sociedade. É culpa do
sistema social... [Depois de vir para Tóquio]
li os escritos de Toshihiko Sakai e revistas
socialistas. A partir disso, os meus pais fi-
caram preocupados com a minha inclinação para
o socialismo. Por volta de 1922, conheci um
coreano, Pak Yeol, que era ninguém e não tinha
propriedades. Decidi morar com ele e avisei
meus pais... Depois que fomos morar juntos,
meu pai me escreveu uma carta, em maio da-
quele ano, alegando que eu era descendente
de um Chanceler do Reino Fujiwara-no-Fusame
(681–737) que viveu há mais de cem gerações.
E eu estava manchando essa ilustre linhagem
familiar Saeki para viver com um coreano qual-
quer. Ele me renegou e escreveu para que eu
não o considerasse mais como meu pai. Então
fui deserdada pelo meu pai, que já havia me
abandonado. Minha mãe também me abandonou...
Ela até pensou em me vender para um putei-
ro... Meus pais não me deram nenhum amor e
ainda assim procuraram obter de mim todos os
benefícios que pudessem. O amor deles é pu-
ramente interesseiro, uma forma de ganância.
Portanto, eu, objeto da ganância, não consigo
compreender o significado de amor aos pais.
A conhecida moralidade baseia-se na relação
entre os fortes e os fracos. Essa moralidade
é sempre manipulada para servir aos fortes.
Ou seja, o forte insiste em preservar a sua
liberdade de ação enquanto exige a submissão
dos fracos. Do ponto de vista dos fracos, a
moralidade significa um acordo que exige a
submissão aos fortes. Esse princípio moral é
comum em todas as épocas e em todas as socie-
dades. O objetivo principal daqueles que estão
no governo é preservar esse princípio moral
por mais tempo possível. A relação entre pais
e filhos também se constrói nesse princípio.
É apenas revestido com o termo atraente “amor
paternal”.
P: Como você se associou aos socialistas e
chegou eventualmente ao niilismo?

R: Três grupos intelectuais me influencia-


ram quando eu vendia jornais... Um era um gru-
po de salvação budista, o segundo era o grupo
do Exército de Salvação Cristão que tocava
seus tambores, e, o terceiro, os socialistas
com seus longos cabelos e que gritavam com
suas vozes desesperadas… Abordei primeiro o
Exército de Salvação.

[Kaneko relata suas experiências com Saitô


— nomeado em suas memórias como Itô. Ela ex-
plica que ficou desiludida com o cristianismo
quando ele declarou que teve de terminar sua
amizade com ela porque estava apaixonado por
ela.]

Que contradição extraordinária para um cris-


tão que prega o amor nas ruas e depois dei-
xa de seguir um amor puro. Os cristãos estão
acorrentados ao conceito de Deus que eles mes-
mo criaram. A fé deles não passa de uma fé co-
varde de escravos. A virtude e a beleza do ser
humano é viver naturalmente, sem ser governado
por forças externas. Decidi que jamais pode-
ria abraçar o Cristianismo e sua doutrina da
vida que conflita com esses ideais de beleza
e virtude. Então abandonei o Cristianismo...
[Posteriormente, ela fez amizade com um so-
cialista, Hori Kiyotoshi, mas também se de-
cepcionou com ele. De acordo com Kaneko, ele
era um hipócrita. Escondia o seu casamento com
uma mulher gueixa, por ter medo de que isso
o prejudicasse. Além disso, também fazia com
que seus funcionários em uma fábrica de im-
pressão fizessem todo o trabalho enquanto ele
passeava.]

Também conheci outra socialista, Kutsumi


Fusako. Sua vida familiar e seus princípios
não se diferenciavam dos de Hori. Kutsumi
preocupava-se com suas necessidades pessoais,
mas não com as necessidades de seus filhos.
Ela encontrava qualquer motivo para sair com
um rapaz e ficar fora o dia todo. Ouvi-a co-
mentar que tudo o que tinha de fazer era subir
à tribuna e fazer um discurso sobre o socia-
lismo e declarar “A sociedade atual deve ser
destruída” para conseguir a intervenção da po-
lícia. No dia seguinte, os jornais noticiariam
que Kutsumi Fusako fez um discurso extremista
e, por isso, a polícia censurou-a de falar.
Fiquei enojada com o desejo dos socialistas
de ter os seus nomes nos jornais. Nessa épo-
ca, Kutsumi não tinha dinheiro para comprar
comida, então penhorou minhas roupas. Depois,
deixou o período de resgate expirar e permitiu
que o penhor os vendesse sem minha permissão.
Não estou reclamando de ter perdido minhas
roupas, embora ela soubesse que eu precisava
delas porque o inverno havia chegado. Ela não
demonstrou nenhum senso de responsabilidade.
Detestei a atitude dela: uma socialista que
não se preocupa com os outros e só pensa em
alimentar a si mesma.

Eu imaginava que os socialistas eram pessoas


que ultrapassavam os costumes e a moralidade
de uma sociedade. Imaginava-os como corajosos
lutadores e sem nenhum interesse em ter fama,
honra ou reputação. Pensei que fossem guer-
reiros em luta contra essa perversa sociedade
de hoje e que se esforçavam para construir uma
sociedade ideal. Entretanto, embora denunciem
a irracionalidade e a hipocrisia da socieda-
de e finjam que não ligam para as críticas, a
fama e a reputação, na verdade, são governa-
dos e estão preocupados com a sociedade mun-
dana. Procuram assumir os valores convencio-
nais. Assim como os generais se orgulham das
medalhas que ostentam no peito, os socialistas
desejam registros de prisões para conquista-
rem o seu pão. Eles se orgulham disso. Quando
percebi esse fato, desisti deles.

Choquei-me, também, com a apatia dos campo-


neses, que estão mergulhados na dor, mas não a
sentem; e com a ignorância dos trabalhadores,
que trabalham arduamente enquanto são devo-
rados até os ossos. Se as correntes que os
prendem fossem removidas, provavelmente eles
se dirigiriam aos que governam, política e
economicamente, com as suas correntes e lhes
implorariam que os acorrentassem novamente.
Talvez eles sejam mais felizes se os deixarmos
dormir na ignorância. Então, fiquei enojada
com todas as correntes de pensamento e, a par-
tir da primavera de 1922, abracei firmemente
o niilismo que defendo hoje.

Sobre o meu niilismo… em uma palavra, é a


base dos meus pensamentos. O objetivo das mi-
nhas ações é a destruição de todas as coisas
vivas. Sinto uma raiva incontrolável contra
a autoridade parental, que me esmagou sob o
nome do amor parental, e contra a autoridade
estatal e social, que me violentou em nome do
amor universal.

Ao observar a realidade social: todos os


seres vivos na terra estão envolvidos em uma
luta infindável pela sobrevivência, se matam
uns aos outros para sobreviver. Concluí que,
se há uma lei absoluta e universal na terra, é:
os fortes se alimentam do fraco. Esta, acredi-
to, é a lei e a verdade do universo. Diante do
fato da luta pela sobrevivência e dos fortes
ganharem e os fracos perderem, não me junto
às fileiras dos idealistas e penso de modo
otimista, sonhando com uma sociedade sem au-
toridade e controle. Enquanto todas as coisas
vivas não desaparecerem da Terra, as relações
de poder baseadas neste princípio [do forte
esmagando o fraco] persistirão. Os detentores
do poder continuam a manter sua autoridade da
forma e a oprimir os fracos. A minha vida tem
sido uma história de opressão por todas as
fontes de governo. Decidi recusar os direitos
e todos os governos, revoltar-me contra eles,
e apostar não só a minha própria vida, mas a
de toda a humanidade nesse esforço.

Por essa razão, planejei lançar uma bomba e


aceitar o fim da minha vida. Eu não me impor-
tava se esse ato desencadearia uma revolução
ou não. Estou perfeitamente contente em sa-
tisfazer meus próprios desejos. Não pretendo
ajudar a criar uma nova sociedade baseada numa
nova autoridade.

P: Qual é a sua opinião sobre o Estado e o


sistema social japonês?

R: Eu divido o sistema social estatal japo-


nês em três níveis:

A primeira classe são os membros da família


Imperial.

A segunda classe são os ministros do gover-


no e outros integrantes da política.

A terceira classe são as massas em geral.

Considero a primeira classe, a Família


Imperial, como vítimas lamentáveis que vivem
como presidiários cujas idas e vindas são es-
tritamente reguladas, tal como o são para o
Imperador. Penso que são fantoches e bonecos
lamentáveis, manipulados pela segunda clas-
se, os verdadeiros governantes, para enganar
as massas. A terceira classe, as massas, como
mencionei anteriormente, são ignorantes sem
salvação. A segunda classe, os detentores do
poder político, são aqueles que têm a capa-
cidade de perseguir fracos como eu. Por essa
razão, não sinto nada além de um profundo ódio
por essa classe. Enquanto na realidade, a se-
gunda classe é o verdadeiro governo, a primei-
ra classe é o governo formal. Portanto, essas
duas classes andam de mãos dadas. Por conse-
quência, coloco a segunda classe em um local
secundário e dirijo minha revolta contra a
primeira classe. Também pensei em jogar bombas
em ambas as classes. Pak Yeol e eu conversamos
sobre isso.

Estou mantendo um diário sobre meus dias


na prisão. Em 6 de novembro escrevi: “Os di-
reitos do povo são atirados de um lado para o
outro pelos detentores do poder com a facili-
dade de tirar uma bola da mão. Os funcionários
do governo finalmente me jogaram na prisão.
Mas darei uns conselhos bons: se esperam que
o incidente atual não dê frutos, vocês devem
me matar. Vocês podem me manter na prisão por
anos. Assim que eu for solta, retomarei o pla-
no. Eu destruirei meu corpo e salvarei vocês
de problemas. Você pode levar meu corpo para
onde quiser: para a guilhotina ou para a pri-
são de Hachiôji. Todos nós morreremos algum
dia. Então façam o que quiserem. Vocês só es-
tão provando que vivi de acordo comigo mesma.
Estou feliz com isso.” Vocês esperam que eu
me comprometa com vocês, mudando como penso,
e vivendo de acordo com os costumes da socie-
dade? Se eu pudesse me comprometer com vocês
agora, eu já o teria feito quando estava na
sociedade. Vocês não precisam pregar isso para
mim. Tenho bom senso o suficiente para enten-
der. Estou preparada para o que quer que vocês
façam comigo. Então, façam o que quiserem. Não
hesitem. Para dizer a verdade, gostaria de
sair mais uma vez pelo mundo. Eu sei que tudo
o que tenho que fazer é declarar: “Eu mudei
meu coração” e abaixar minha cabeça. Mas não
posso destruir meu eu atual para que o meu eu
futuro possa sobreviver.

Oficiais, vou me proclamar corajosamente


mais uma vez: “No lugar de me prostrar diante
dos detentores do poder, prefiro morrer e ser
eu mesma. Se isso lhes desagradar, vocês podem
me levar para onde quiserem. Não tenho medo de
nada, nem do que vocês possam fazer comigo.”
Foi assim que me senti no passado e é assim
que me sinto agora.

P: Você conheceu Pak Yeol depois de começar


a pensar dessa maneira?
R: Isso mesmo. Depois que conheci Pak, con-
versamos sobre nossas ideias e descobrimos
que tínhamos perspectivas semelhantes. Então,
para trabalharmos juntos, começamos a viver
juntos.

[Durante o interrogatório, Kaneko revelou


abertamente seu posicionamento frente ao sis-
tema imperial.]

Antes mesmo de conhecer Pak Yeol, eu acredi-


tava que o Imperador era uma entidade inútil.
Pak e eu ficamos juntos porque concordamos nis-
so. Unimos as mãos como camaradas para derru-
bar o sistema Imperial. Por natureza, os seres
humanos deveriam ser iguais. E, no entanto,
os seres humanos que são iguais por natureza
tornaram-se desiguais devido à presença des-
sa entidade chamada Imperador. O Imperador
deve ser exaltado. No entanto, sua fotogra-
fia mostra que ele é exatamente como nós. Ele
tem dois olhos, uma boca, pernas para andar e
mãos para trabalhar. Mas ele não usa as mãos
para trabalhar e as pernas para andar. Essa é
a única diferença. Nego a necessidade do im-
perador porque acredito que os seres humanos
são iguais.

Fomos ensinados que o Imperador é um des-


cendente dos deuses e que o seu direito de
governar lhe foi concedido por eles. Mas es-
tou convencida de que a história dos três
tesouros sagrados [a espada, o espelho e a
joia: remontam à era dos deuses como emble-
mas da autoridade imperial] é simplesmente um
mito criado do nada. Se o imperador fosse um
deus, seus soldados não morreriam. Por que
dezenas de milhares de súditos foram mortos
pelo Grande Terremoto1 diante de sua presença?
Temos entre nós alguém que deveria ser um deus
vivo, alguém que é onipotente e onisciente, um
Imperador que deveria realizar a vontade dos
deuses. Porém, os seus filhos choram de fome,
morrem sufocados nas minas de carvão e são
esmagados até a morte nas máquinas das fábri-
cas. Por que é assim? Porque o imperador não é
nada mais do que um mero ser humano. Queríamos
mostrar ao povo que o imperador é um ser hu-
mano comum como nós. Então pensamos em jogar
uma bomba para mostrar que ele também morreria
como qualquer outra pessoa.

Nos ensinaram que a política nacional ja-


ponesa consiste numa linhagem ininterrupta da
família imperial que remonta a tempos longín-
quos. Porém, a genealogia imperial é muito
confusa. E mesmo que a linhagem permanecesse
ininterrupta através dos tempos, ela não sig-
nifica nada. Não há do que se orgulhar. Pelo
contrário, é vergonhoso como o povo japonês

1
O Grande Terremoto aconteceu em 1923 na região de
Kanto e devastou Tóquio e as cidades próximas.
tenha sido tão idiota a ponto de aceitar bebês
impingidos como seus imperadores.

Sob o sistema Imperial, a educação, as leis


e os princípios morais foram concebidos para
proteger a autoridade imperial. A ideia de
que o imperador é sagrado não passa de uma
fantasia. O povo foi levado a acreditar que
o imperador e o príncipe herdeiro representam
autoridades sagradas e invioláveis. Mas são
apenas fantoches vazios. Os conceitos de leal-
dade ao Imperador e amor à nação são só ideias
retóricas, manipuladas pelo pequeno grupo de
classes privilegiadas para satisfazer a sua
própria ganância e seus interesses.
verve
inferno na terra...

inferno na terra…1

alexander berkman

Primeiro discurso de Alexander Berkman após sua li-


bertação da prisão. Alexander Berkman saiu da prisão no
dia 18 de maio e foi direto para Detroit, Michigan, onde
fez o seguinte discurso no dia 22 de maio.

Suponho que vocês já tenham ouvido a história do ra-


paz que um dia, ao ser questionado por sua mãe se havia
realizado sua oração matinal, Joãozinho respondeu que
sim, e então perguntou: “Mãe, por que a minha oração é
tão longa? Maria já é uma moça e só faz uma oração pe-
quena”. E sua mãe responde: “Por que João, como assim?”.
E então o rapazinho conta que quando Maria ouve cha-
marem seu nome de manhã ela reza assim: “Oh, Senhor.
Eu odeio me levantar”. É assim que senti quando chama-
ram meu nome. Não que eu não esteja feliz por estar com
vocês novamente, meus amigos, longe disso. Mas, vejam
vocês, estou um pouco enferrujado, por assim dizer. Sou
naturalmente “recluso” e passei tantos anos em solidão que
agora não me sinto muito confortável em ser o centro das
1
Publicado em The anarchist library. Disponível em: https://
theanarchistlibrary.org/library/alexander-berkman-hell-on-earth.
Originalmente publicado em The Demonstrator, 6 de junho de 1906.

verve, 44: 201-209, 2023 201


44
2023

atenções. Além disso, suponho que vocês saibam que qua-


se não falei esse tempo todo, seja em público ou em par-
ticular. Alguns de vocês, entretanto, podem não perceber
o silêncio absoluto da vida do prisioneiro. Ilustrarei esse
ponto, para benefício daqueles entre vocês cuja educação
ao longo das linhas da prisão não foi tão liberal quanto a
minha.
Há cerca de um ano, depois de ter cumprido treze anos
na prisão estadual do Oeste da Pensilvânia, fui transferido
para a prisão do condado para cumprir o último ano da
minha sentença. Suponho que o juiz que me sentenciou
queria que eu visitasse todas as prisões do estado, para
que meus estudos penitenciários pudessem ser concluídos.
Ou talvez ele esperasse que eu não sobrevivesse para ver
a workhouse2 — mas isso é uma outra história. Quando
o xerife me trouxe para a workhouse, o agente encarrega-
do tomou nota do meu histórico, e me perguntou qual
era minha ocupação. Eu estava prestes a contar para ele
que eu trabalhava há treze anos na mesma empresa, mas
o xerife não me deixou falar. Ele falou para o agente da
workhouse que eu era um linguista. Suponho que o xerife
estivesse absorvendo todas as bobagens que os jornais de
Pittsburgh publicaram sobre mim na época. O agente dis-
se: “Um linguista? O que é isso?”, “Oh” disse o xerife, “ele
fala meia dúzia de línguas”. Então, o agente da workhouse
veio até mim e disse: “Meu jovem, deixa eu te falar uma
coisa: a gente só fala uma língua aqui, mesmo assim muito
pouco”. Sob tais circunstâncias, vocês hão de entender que
estou um pouco sem prática. Na verdade, eu praticamente
esqueci como se fala. E, portanto, não farei o dito discurso
2
Allegheny County Workhouse, prisão-fazenda localizada em Blawnox
(parte da área metropolitana de Pittsburgh), na Pensilvânia (N.T.).

202 verve, 44: 201-209, 2023


verve
inferno na terra...

hoje à noite, mas eu só quero conversar um pouco com


vocês.
Em primeiro lugar, quero dizer o quanto estou feliz
de estar entre vocês de novo. E vocês, meus amigos, estão
claramente contentes em me ver, mas por maior que seja
o seu prazer, o meu excede em muito o de vocês. E acho
que posso dizer que estive muito mais ansioso em vê-los
do que vocês a mim. Na verdade, tentei ao máximo vir
até vocês em diversas ocasiões, mas não ouvi nada sobre
vocês tentarem entrar no lugar em que eu estava. Mas não
os culpo absolutamente por não quererem irromper no
inferno.
Falando em inferno, isso me lembra de um incidente
que aconteceu comigo na manhã em que fui solto. Eu saí
da workhouse no dia 18 de maio, e, quando cheguei à esta-
ção ferroviária da Pensilvânia, um jovem jornaleiro me en-
tregou um exemplar. Eu o tomei e dei uma olhadela, uma
grande manchete em grandes letras pretas chamou minha
atenção. Nela se lia: “De volta do inferno”. Dizer que eu
fiquei surpreso é um eufemismo: quê!?, eu estava perplexo.
Vejam, alguns anos atrás, quando meu amigo Carl Nold
me fazia companhia na Penitenciária do Oeste3, tivemos
a ideia de escrever um livro sobre nossas experiências na
prisão. A maior parte foi escrita na prisão, e estávamos

3
Western Penitentiary, como era conhecida a penitenciária do Estado da
Pensilvânia localizada no oeste do estado, esteve em funcionamento de
1826 a 2017. Em 1882, a prisão mudou de localização, e o antigo prédio foi
transformado em Aviário Nacional. Atualmente, o lugar da penitenciária é
alugado para produção de filmes, e utilizado para treino de cães policiais.
A prisão também abriga uma grande colônia de gatos, que acredita-se que
estejam na localidade desde o início (https://www.pghprisoncats.org/)
(N.T.).

verve, 44: 201-209, 2023 203


44
2023

aguardando a minha liberação para publicarmos o livro.


O título deveria ser “De volta do inferno”. Agora vocês
podem entender minha surpresa quando vi a manchete
no jornal. Perguntei-me como isso vazou, se somente eu
e Nold sabíamos. Mas, logo, isso se esclareceu. Lendo o
artigo, descobri que de volta do inferno não se referia ao
nosso livro, mas a um sermão de um ministro protestante
de Pittsburgh, um tal Rev. Russell. Bem, não sei onde nem
como o reverendo conseguiu roubar o título de nosso livro
inédito, mas sei que o título não era nada apropriado ao
assunto. Nesse sermão, o pregador tenta provar que não
há inferno. Bem, se não há inferno, então como ele foi
e voltou, como o título de seu sermão levaria alguém a
acreditar? E se há um inferno e ele foi até lá, quê!?, tenho
certeza de que o pregador jamais teria voltado. Mas o pas-
tor Russell não se deu ao trabalho de investigar o assunto
a fundo. Ele está tentando provar que não há inferno por
meio do quê? Da Bíblia, claro. Agora… vocês sabem, a
Bíblia é um livro peculiar. É possível provar quase qual-
quer coisa por ela. Há pouco tempo, eu conheci um velho
— ele era pastor antes de vestir o uniforme listrado —
que tentou me convencer de que o fim do mundo estava
próximo. Perguntei por que ele achava isso? Então ele me
provou, pela Bíblia, que estava previsto que o mundo seria
coberto de óleo em preparo para a conflagração que o con-
sumiria. “E agora”, disse o meu pastor em uniforme listra-
do, “você pode ver a verdade do prenúncio bíblico, porque
João Batista Rockefeller saturou o mundo com Standard
Oil e Lawson está riscando o fósforo4. Veja a profecia
4
John Lawson foi um dos líderes do levante de trabalhadores conhecido
como Colorado Coalfield War, em que os trabalhadores organizados na United
Mine Workers of America (UMWA) entraram em conflito contra a companhia
Colorado Fuel and Iron (CF&I), pertencentes à família Rockfeller (N.T.).

204 verve, 44: 201-209, 2023


verve
inferno na terra...

se concretizando!”. Ressaltei ao colega que Lawson, em


vez de mergulhar o palito de fósforo em enxofre, o tinha
coberto com um amálgama de cobre5, e, portanto, estava
encharcado e não queimaria. Mas o pregador não com-
preendeu. Como a maioria dos pastores, ele precisou de
um empurrãozinho para entender a piada.
Mas voltando ao Rev. Russell. Quando li sua afirma-
ção de que o inferno não existe, realmente senti pena
dele. Ora, o que seria da religião, especialmente da reli-
gião cristã, se não existisse o inferno, ou, pelo menos, a
crença e o medo do inferno? Religião sem inferno seria
como encenar O Mercador de Veneza deixando Shylock de
fora. Recompensa e punição, paraíso e inferno, são as duas
pontas do suborno de Deus. E se não há inferno, não há
paraíso, e, daí, adeus ao cristianismo.
Mas o pastor Russell está errado. Há um inferno. Há
montes deles. Eu mesmo acabei de escapar de um. Um
inferno onde o fogo da vingança da lei queima em milha-
res de línguas famintas. Um inferno onde as chamas da
perseguição queimam na própria alma. Um inferno onde
o enxofre da humilhação brutal sufoca o próprio sopro
de vida. É um inferno onde a desumanidade do homem
torna o leite da gentileza humana no fel do ódio, deses-
pero e vingança. E neste inferno está o verme que não
morre, o Shylock da lei tirana. Esse inferno é chamado
de prisão. E o que é uma prisão? A prisão é o modelo
segundo o qual a sociedade civilizada é construída. Na
verdade, o que é isso que chamamos sociedade civilizada
senão uma grande prisão, um inferno capitalista tão vasto

5
A referência aqui é a companhia mineradora Anaconda Copper Mining,
conhecida na época como Amalgamated Copper Company (N.T.).

verve, 44: 201-209, 2023 205


44
2023

quanto o mundo. A mesma tirania e opressão, a mesma


injustiça e perseguição, prevalecem tanto nesta vasta pri-
são quanto na menor, apenas numa escala maior. Tal como
a pequena prisão, o mundo também está cheio de gritos
e gemidos dos infelizes que os demônios do deus-lei ati-
ram no fogo desse inferno capitalista. Vítimas inocentes
são massacradas aos milhares para satisfazer a ganância
da besta voraz do capital. O sangue das viúvas e órfãos é
impiedosamente prensado no vinho para o homem rico, e
o pranto dos bebês famintos é ouvido no farfalhar do ves-
tido de seda usado pela esposa do milionário. E o infer-
no de uma civilização onde as massas devem passar fome
porque há muita comida à mão, onde eles devem ficar nus,
pois há muita roupa sendo produzida, onde eles devem
estar desabrigados porque muitas casas foram construídas,
e onde todos devemos permanecer escravos abjetos para a
glória da liberdade capitalista. Nossa sociedade está cada
vez mais próxima de atingir a perfeição de seu modelo: a
prisão com barras de ferro e muros de pedra. A liberdade
se tornou um deboche vazio. A justiça é apenas o espor-
te da sala de contagem, e o direito é ridicularizado pelo
poder. A mão da tirania está no pescoço da nossa huma-
nidade e o calcanhar da opressão está esmagando a últi-
ma centelha da coragem e da independência próprias do
homem. A maldição do capitalismo penetrou nos órgãos
vitais de nosso corpo social, e seu sopro fatal se espalhou
pelo mundo todo, contaminando tudo o que toca com sua
imundície. E corrompeu cada membro do nosso corpo so-
cial, de modo que hoje não há uma única instituição em
nossa sociedade — nenhuma — que não está apodrecida
da cabeça aos pés, podre em seu próprio âmago.

206 verve, 44: 201-209, 2023


verve
inferno na terra...

Mas qual é a causa de tudo isso? Por que nossa socie-


dade é tão podre? Por que nossa sociedade é um fracasso
tão grande? A razão é simplesmente esta: nossa dita so-
ciedade civilizada é construída sobre o maldito alicerce de
mentiras; é construída sobre a tripla mentira da religião,
lei e propriedade privada, as três irmãs malditas que trans-
formaram um mundo belo em um verdadeiro inferno.
Um inferno de bestas selvagens, onde todo homem é um
Ismael, com as mãos do filho de toda mãe voltadas contra
seu irmão. Nos tornamos vítimas de uma falsa civiliza-
ção, escravos cegos dos deuses da nossa própria criação.
Perdemos todo o sentido do verdadeiro propósito e fina-
lidade da vida. Sacrificamos nossa humanidade e nossa
individualidade e hoje não somos mais do que os tolos
do padre, as vítimas da lei, os escravos abjetos de nossos
mestres capitalistas. A religião hipnotizou nossas mentes,
a lei sufocou nossa independência originária, e oh! Que
visão lamentável e terrível somos nós, parados ali, olhando
impotentes para o céu vazio para o qual o dedo do padre
mentiroso está apontado, enquanto a mão de ferro da lei
nos prende com segurança, mãos e pés, vítimas prontas
para o abutre do capital que está cravando suas garras fe-
rozes em nossos corpos, rasgando impiedosamente nossa
carne e sugando a própria força vital de nosso ser.
Companheiros, se não quisermos perecer e se quiser-
mos nos salvar, e sermos libertados, devemos romper esse
encanto fatal. Devemos quebrar as correntes que nos fa-
zem vítimas indefesas da tirania e opressão. Devemos des-
pertar rapidamente, liberar nossas mentes e corpos, para
que possamos nos erguer, antes que seja tarde demais,
na plena glória da nossa força, na humanidade livre das
massas — os produtores honestos do mundo — para que

verve, 44: 201-209, 2023 207


44
2023

possamos conquistar o mundo para aqueles a quem ele


pertence: a livre e independente Irmandade do Trabalho.
Antes de terminar, quero lhes dizer mais uma vez
como estou feliz em estar de volta com vocês, meus ami-
gos e camaradas. Passei tantos anos na companhia exclu-
siva de um seleto grupo de brutos e ladrões — alguns em
uniforme listrado, mas a maioria com seus botões de latão
— que agora faz bem ao meu coração estar onde posso
olhar para os rostos de trabalhadores honestos (isso não
reflete os senhores da imprensa ou dos seguros, se houver
algum presente).
Sim, meus amigos, estou contente por estar de novo no
meio de vocês, e estou contente por poder lhes dizer que
saí desse inferno são no corpo e, o que é mais importan-
te, são também no espírito. A pena de vinte e dois anos
que os cães da lei me impuseram, a morte viva da minha
existência na prisão e todas as perseguições especiais que
tive de sofrer por ser anarquista, tudo isso falhou em seu
propósito. Não conseguiram me matar e não conseguiram
quebrar meu espírito, e estou aqui esta noite para lançar
o meu desafio aos dentes do maldito inimigo, desafiando
a besta do capital, a sua serva, a lei, e toda a sua imunda
ninhada de mercenários para fazerem o seu pior. E aqui,
esta noite, quero declarar tão publicamente quanto posso
que sou um anarquista, o meu ódio eterno contra todos os
tiranos e opressores da humanidade, e a minha inimizade
eterna e ativa contra os assassinos da justiça e da liberdade.
O fato de estar aqui esta noite e ter sobrevivido a esses
quatorze anos de tortura infernal deve-se a esse grande e
nobre ideal, cuja maravilhosa força me manteve durante
todos esses anos de tortura e perseguição. O que é perse-

208 verve, 44: 201-209, 2023


verve
inferno na terra...

guição? O que é prisão, ou até mesmo a morte? Quão fra-


cos, insignificantes e impotentes são todos os tiranos do
mundo, mesmo em sua fúria mais selvagem, para apagar o
fogo da liberdade que arde no coração de todo homem e
mulher de verdade em todo o mundo.
Alguma vez a perseguição já sufocou a voz da verdade?
Alguma vez a prisão venceu o gênio da justiça? Será que a
forca, a guilhotina e o cadafalso já triunfaram sobre o es-
pírito heroico da liberdade? Não, mil vezes não. O sangue
das vítimas perseguidas e torturadas pela tirania sempre
fertilizou o vale da liberdade, e os maiores heróis da li-
berdade brotaram dos próprios túmulos de seus mártires
mortos.
Vestidos com a armadura de nossa grande e nobre cau-
sa, somos invulneráveis, invencíveis, imortais, e a própria
morte é somente nossa serva. Em nosso ideal, possuímos a
maior de todas as bênçãos, a consciência de estarmos cer-
tos e, sabendo que estamos certos, temos o desprezo zom-
beteiro da multidão convencional, desafiamos o inimigo e
o desafiamos a fazer seu pior, confiantes como somos no
triunfo final de nossa causa, sabendo que, em um futuro
não muito distante, plantaremos a bandeira da anarquia
em cada colina e em cada vale e proclamaremos ao mundo
uma fraternidade livre e universal.

Tradução do inglês por Eliane Carvalho.

verve, 44: 201-209, 2023 209


14 de maio de 1925

52º Registro de Interrogatório, 14 de maio


de 1925, Prisão de Ichigaya

(abertura omitida)

Pergunta 1: Está correta a sua declaração,


dada na última vez, de que a ideia de pedir
explosivos a Kim Han para usá-los no casamento
do Príncipe Herdeiro surgiu de suas discussões
com Pak?

Resposta: Isso está correto.

P2: Está correto, também, que seu pedido de


explosivos a Kim Han também era uma preparação
para o casamento do Príncipe Herdeiro?

R: Eu descobri que eles realizariam uma


cerimônia de casamento para o pequeno príncipe
em breve, na época em que Pak foi para Gyeong-
seong1 para fazer contato com Kim Han. Eu me
recordo que, na época, a data do casamento
do principezinho não estava completamente
decidida. De qualquer forma, eu esperava que

1
Nome mais conhecido da cidade de Seul, capital da
Coreia, até 1946, ano do fim do domínio japonês.
(N.E.)
o cortejo de casamento fosse realizado em um
futuro próximo. Lembro que foi por causa disso
que Pak foi para Gyeong-seong, para que eu
tivesse uma bomba a tempo para essa incrível
oportunidade.

P3: Quando Pak partiu para Gyeong-seong,


houve uma discussão entre você e ele sobre
chegar na hora certa para a cerimônia do
casamento?

R: Eu conversei bastante com Pak sobre


presentear com uma bomba o jovem príncipe
durante a cerimônia do casamento imperial.
Se isso foi algo que aconteceu antes de ele
partir para Gyeong-seong ou se foi depois,
não me recordo com clareza agora. De qualquer
maneira, desde o momento em que Pak partiu
para Gyeong-seong, eu pensei que seria melhor
usar uma bomba na cerimônia de casamento. Eu
acho que Pak provavelmente disse a Kim Han
para nos dar uma bomba a tempo.

P4: Depois de retornar de Gyeong-seong, Pak


lhe contou que tinha conversado com Kim Han
sobre ter bombas a tempo para o casamento?
R: Não ouvi de Pak que ele teve esse tipo
de conversa. A única coisa que ele me disse,
depois de voltar de Gyeong-seong, foi que Kim
Han finalmente dividiria as bombas conosco.

P5: Nesse caso, quando Pak retornou de


Gyeong-seong no final de 1922, você discutiu
com ele que não seria capaz de obter bombas de
Kim Han devido ao incidente de Kim Sang-ok2,
e sobre usá-las na cerimônia, uma vez obtidas
por ele, no final de 1923?

R: Houve muitas conversas entre mim e Pak


sobre o uso das bombas na cerimônia, mas não
tenho nenhuma recordação precisa sobre elas
terem acontecido naquele momento ou sobre o
quê.

P6: E na época do seu envolvimento com Kim


Jun-han3?

2
Sang-ok foi integrante da resistência à invasão
da Coreia no começo do século XX, lançou uma bomba
contra a polícia de Jongno em Seul em janeiro de
1923. Morreu baleado pela polícia alguns dias
depois.

3 Amigo de Fumiko e Pak, e integrava diversos grupos


radicais. Provavelmente se separaram por conta de
discussões entre Jun-Han e Pak em agosto de 1923.
R: Lembro-me claramente que, naquela época,
houve uma conversa entre Pak e eu sobre o uso
das bombas no cortejo.

P7: Em quem você jogaria as bombas?

R: No final das contas, estaríamos felizes


se atingíssemos o principezinho. Seria bom
matar o Imperador também, mas o cortejo era
uma oportunidade rara e o Imperador é um
homem doente, então o valor da declaração que
faríamos matando-o em vez do principezinho
seria diferente e não valeria a pena. Então
escolhemos o principezinho.

P8: Depois de conseguirem as bombas, quem


deveria jogá-las?

R: Claro que eu e Pak. Mas também pensei


em pedir a outros camaradas como Nîyama, Choi
Gyujong e Yamamoto Katsuyuki para fazerem
isso.

A ideia que eu tinha em mente era que Nîyama


e Yamamoto estavam preocupados com problemas
no peito há algum tempo e estavam preparados
para morrer, e Choi é o tipo de pessoa que,
uma vez empolgado, faria qualquer ação direta.
Pak e eu poderíamos fazer com que esses três
se dividissem e jogassem bombas em lugares
como a Dieta Nacional, Mitsukoshi4, a sede da
polícia e o Palácio Imperial. Jogaríamos as
nossas, simultaneamente.

Mas, então, no que diz respeito a Nîyama,


depois que ela iniciou um relacionamento
romântico com Kim Jun-han, sentimos que sua
presença não era adequada para esse tipo de
ação direta e abandonamos o plano de usar
nossos camaradas.

P9: Jogar uma bomba contra Sua Majestade,


o Príncipe Herdeiro, era seu único objetivo?

R: No final das contas, teríamos ficado


felizes apenas em matar o pequeno príncipe, mas,
se possível, gostaríamos de matá-lo juntamente
com o primeiro-ministro e outros verdadeiros
detentores do poder político. No entanto, caso
demorássemos para aproveitar a oportunidade
depois de colocarmos as mãos nas bombase e, se
fossemos apanhados pelos oficiais, teríamos de
fato parecido estúpidos, como eu, sentada aqui,
consideramos que, se realmente não tivéssemos
a chance, focaríamos em mandar uma mensagem,
e também consideramos lançar as bombas durante
eventos como as comemorações do Primeiro de
Maio ou a abertura da Dieta.

4
Uma rede de lojas de departamentos japonesa.
P10: Pak tinha o mesmo objetivo principal
de jogar uma bomba em Sua Majestade?

R: Ele tinha.

P11: Por que você tentou causar tantos danos


a Sua Majestade, o Príncipe Herdeiro?

R: Durante muito tempo, pensei profundamente


que todos os seres humanos são iguais. Sendo
todos humanos, todos devem ser iguais. Nisso
não há diferença entre estúpido e inteligente,
ou forte e fraco. Como seres humanos que
existem na Terra, acredito que todos os seres
humanos são completamente iguais e, seguindo
a única qualificação de serem humanos, devem
desfrutar completa e igualmente da atividade
humana.

Colocando isto em termos mais concretos:


todas as ações que foram, são e serão feitas
foram realizadas pelos seres humanos. Assim,
penso que todas essas ações, construídas
sobre uma base natural e executadas por seres
humanos na terra, deveriam ser reconhecidas
como atividades humanas iguais pela única
qualificação de serem feitas por seres humanos.
E, no entanto, essas ações naturais, esta própria
existência natural, são negadas e controladas
em nome de leis feitas pelos humanos. Humanos
que deveriam ser naturalmente iguais, quão
desigual é a situação deles nesta sociedade.
Amaldiçoo essa desigualdade. Há apenas dois
ou três anos, eu pensei na chamada nobreza5
da classe alta como uma raça peculiar, dotada
de forma e substância em todos os sentidos
diferentes dos chamados plebeus. Na verdade,
mesmo olhando as fotos no jornal, você pode
ver que a chamada nobreza não é diferente dos
plebeus. Com dois olhos, uma boca, duas pernas
para andar e mãos para trabalhar, parece que
não lhes falta nada.

Na verdade, não pensei que uma criança sem


essas coisas pudesse fazer parte de tal classe.

Esta compreensão, em suma, da classe da


casa imperial, a compreensão de que quando se
fala deles você instintivamente sente que está
falando de pessoas nobres e invioláveis, é algo
que provavelmente está enraizado nos corações
das pessoas. Em outras palavras, coisas que os
Estados e governantes do Japão exploraram um
pouco na linha da compreensão popular.

Desde o início, coisas como países,


sociedades, povos e governantes nada mais são
do que ideias. No entanto, para conferir aos
governantes dessas ideias majestade, poder
e santidade, existe neste mesmo Japão algo

5
A Era Meiji era dividida entre classes formais,
como a nobreza — os descendentes dos samurais — e
a plebe.
que representa o que acabei de escancarar:
o direito divino dos imperadores. Qualquer
pessoa que nasce em solo japonês recebe
essa ideia, até mesmo os alunos do ensino
fundamental. Com o objetivo de impressionar as
pessoas inocentes com noções de que o próprio
Imperador é descendente dos deuses, ou que
seu direito de governar é algo concedido por
decreto dos deuses, ou então que o Imperador
é alguém que controla o poder do Estado para
realizar a vontade dos deuses, e, portanto,
a lei é a vontade dos deuses. Isso é baseado
em lendas fantásticas, e eles se vangloriam e
oferecem solenemente louvores às coisas como
um espelho, uma espada e uma joia6 como se estes
tivessem sido dados pelos deuses, enganando
completamente as pessoas. As pobres pessoas
enganadas, envolvidas nessas lendas absurdas,
consideram coisas como o governo e o Imperador
como deuses incríveis e sem comparação. Mas
se o próprio Imperador fosse um deus ou
descendente dos deuses, se o povo estivesse
sob a proteção desses deuses, existindo sob
os espíritos de gerações sucessivas desses
imperadores-deuses, nenhum soldado japonês
deveria morrer em tempos de guerra, nenhum
avião japonês deveria cair do céu, e algumas

6
Itens conhecidos como os Três Tesouros Sagrados
(sanshi no jingi). De acordo com a lenda, eles
foram trazidos para a Terra pela linhagem imperial
japonesa.
dezenas de milhares de súditos leais não
deveriam morrer pelos deuses em seu próprio
quintal devido a um desastre natural como o do
ano passado7.

Mas essa coisa inacreditável se tornou


uma verdade inabalável. O direito divino dos
reis nada mais é do que uma suposição. Não
está evidente que as lendas em que ele se
baseia são vazias? E, independentemente de um
Imperador que é a manifestação todo-poderosa
e onipotente dos deuses e que implementa a
vontade dos deuses na terra ou não, algumas
das crianças desta sociedade não choram de
fome, se sufocam em minas de carvão, e morrem
miseravelmente esmagadas por máquinas? E isso
não é prova suficiente da verdade, nomeadamente
que o Imperador é apenas um pedaço de carne,
alguém em todos os sentidos igual ao povo, e
de que todos deveriam ser iguais a ele? Não foi
o mesmo para você, oficial? Fui ensinada na
escola primária que a nossa única glória como
seres humanos era ter a sorte de nascer numa
nação sem comparação que é este país, onde
vivemos sob o comando de um Imperador que faz
parte de uma linha contínua e ininterrupta,
e tivemos que colocar nosso esforço para
aumentar essa glória. E, embora eu não saiba
se o fato de serem de uma linhagem é verdade

7
Referência ao Grande Terremoto de 1923, quando
mais de 140.000 pessoas morreram, muitas delas por
conta do fogo que se seguiu após o tremor.
ou não, em todo caso, é uma tão grande honra
ser governada por uma única linhagem? Já ouviu
falar de um imperador que se afogou e virou
comida de peixe, Antoku,8 ou algo assim, que
assumiu a responsabilidade de governante do
Japão com apenas dois anos de idade? Será que
vangloriar-se de um ser humano tão incapaz
como seu governante é realmente a glória dos
governados? Em vez disso, conceder a uma linha
imperial de dez mil anos o poder de governar,
mesmo como uma formalidade, é a mais profunda
vergonha das pessoas nascidas em solo japonês
e a prova da ignorância do povo japonês.

A tragédia do ano passado, quando muitas


pessoas morreram queimadas ao lado do Imperador
que respirava, foi algo que provou que ele é
na verdade apenas um tolo pedaço de carne e
que, ao mesmo tempo, despreza a tolice e a
ingenuidade das pessoas.

A educação escolar se esforça para ensinar


em primeiro lugar aos humanos que existe
naturalmente na terra a palavra “bandeira”
e incute neles o espírito do nacionalismo.
E a grande variedade de atividades, que são
igualmente fundamentadas no fato de serem
realizadas por humanos, são divididas em certas
e erradas sob o único padrão de apoiarem a

8
Imperador Antoku (1178–1185) foi afogado por sua
avó quando ela pulou com ele no mar durante uma
batalha, para que ele não fosse capturado.
autoridade ou não. E esse padrão é a lei e a
moralidade criadas pelo homem.

A polícia, que administra a lei que ensina


apenas o caminho para uma vida melhor para
os vencedores da sociedade e a submissão à
autoridade, baixa as espadas e ameaça as ações
humanas, agarrando todos aqueles que eles
temem que possam abalar os pilares do poder,
e amarrando-os um a um. E os juízes, esses
funcionários respeitáveis, folheiam livros
jurídicos e emitem julgamentos arbitrários
sobre ações humanas, alienando-se das vidas
humanas, negando até mesmo a sua humanidade
ao cumprirem o seu dever como protetores da
autoridade.

Como quando o Cristianismo estava no seu


apogeu e, para proteger a sua santidade,
proibiu a investigação científica por medo de
abalar os pilares dos supersticiosos milagres
de Deus e das antigas tradições que eram
pregadas. Coisas como a santidade do Estado ou
a santidade do Imperador também são efêmeras,
e a força é usada para oprimir as ideias e
argumentos que as exporiam como nada mais do
que ilusões.

Assim, a terra está atualmente ocupada


e sendo pisoteada por um demônio chamado
poder, porque as vidas — que deveriam por sua
natureza ser desfrutadas pelos humanos que
são existências naturais na terra —, só são
permitidas se cumprirem a missão de servir.

E os representantes do diabo chamado “poder”,


que estão atropelando as vidas dos humanos na
terra, os quais deveriam ser todos iguais, são
o Imperador e o Príncipe Herdeiro. Todas as
razões para tomar o principezinho como alvo
procedem dessa ideia.

E para aqueles representantes que pisoteiam


nas vidas dos humanos como pisam na terra,
àqueles pedaços de carne iguais a pedaços
de sujeira chamados de Imperador e Príncipe
Herdeiro, as pobres pessoas que eles enganaram
dão-lhes uma santidade exagerada e lhes
fornecem posições superiores e invioláveis
enquanto são exploradas. E foi isso que eu
quis escancarar para o povo, para os que são
explorados: aqueles que então lhes apareceram
como poderosos, sagrados e invioláveis, — o
Imperador e o Príncipe Herdeiro —, são na
verdade pedaços de carne vazios, nada mais
que fantoches. Eles nada mais são do que
marionetes e manequins tolos usados por poucos
privilegiados para enriquecer, enganando
as pessoas que servem como sua fonte de
riqueza. A montanha de tradições de longa
data que conferem ao Imperador a divindade
são superstições puramente vazias. Escancarar
porque a substância vazia desta nação japonesa,
que é considerada a terra dos deuses, nada
mais é do que um sistema provisório usado
para aumentar os ganhos pessoais de poucos
privilegiados. A ideia do auto sacrifício
pela nação, chamada “lealdade e patriotismo”,
glorificada, propagandeada e até considerada
um slogan nacional, é na verdade nada mais
do que um desejo cruel de sacrificar a vida
dos outros em seu próprio benefício, envolto
em belos adjetivos, como forma de satisfazer
seus interesses próprios. Eu direcionei a
bomba ao principezinho para alertar o povo
de que consentir com isso de forma acrítica
significa consentir em ser escravo de poucos
privilegiados. Para que as pessoas saibam que a
moralidade altruísta fundamental exigida pelo
confucionismo, que o povo japonês até agora
manteve como o credo de sua vida, aquela moral
escrava que subjuga o coração das pessoas e
as inclina a serem governadas, é na verdade
uma ilusão que emerge de pura conjectura,
apenas um fantasma vazio. E ao permitir que
as pessoas saibam disso, abrindo seus olhos
para verem que deveriam agir inteiramente por
si mesmas, que quem faz o universo são elas
mesmas, perceberiam assim que cada “coisa”
existe para elas e tudo deve ser feito por
elas.

De qualquer forma, pensei que, ao lançar


aquela bomba, em breve poria fim à minha vida
nesta terra. A razão que acabei de lhe contar
para mirar no principezinho, com a ideia de
fazer uma declaração ao mundo exterior, ou
seja, uma explicação para o povo, esse plano
era, na verdade, algo que consistia em minhas
reflexões feitas para trazer uma tênue cor de
esperança e nada mais. Ou seja, era eu que
estendia para fora os pensamentos que haviam
sido dirigidos a mim mesma, o que significa
que meus pensamentos eram a raiz deste plano.

Com relação aos meus pensamentos, o


que chamamos de meu niilismo, já falei
detalhadamente sobre isso na última vez.
Para seguir o meu plano até à sua conclusão
lógica, o objetivo era negar a minha própria
existência, e o objetivo final positivo, o
cerne do plano em si, era a destruição de todo
o poder nesta terra.

Foi por isso que mirei no principezinho.

P12: Como está sua saúde física?

R: Minha saúde? Isso foi resolvido há muito


tempo.

P13: Você se reformou?

R: Não fiz absolutamente nada do que preciso


me arrepender. Na verdade, você poderia dizer
que minhas ideias, ações e meu plano são todos
ruins, porque causariam problemas para outras
pessoas, mas ao mesmo tempo são coisas das
quais eu mesma me beneficio.

Julgar as coisas de acordo com o seu


interesse certamente não é ruim; antes, é a
natureza humana, uma condição para viver. Se
julgar as coisas de acordo com o seu interesse
fosse ruim, a culpa estaria no fato de os
próprios humanos estarem vivos. Para mim, as
coisas que beneficiam vocês são consideradas
boas e as que prejudicam são ruins.

Mas não executei esse plano porque acreditei


ser bom. Eu só fiz isso porque quis. Assim
como não importa o quanto eu seja criticada
por outras pessoas como sendo má, eu não me
desvio do meu caminho, não importa o quanto
você possa me elogiar por ser boa. Se eu não
quiser fazer alguma coisa, eu não faço.

Continuarei fazendo as coisas porque quero.


Não posso prever quais serão essas ações, mas
é certo que, enquanto eu existir sobre a terra,
viverei o momento, perseguindo as coisas que
mais quero fazer.
verve
pena de morte

pena de morte

elisée reclus

Não tenho a honra de ser cidadão suíço e só conheço de


forma muito imperfeita a constituição da qual alguns peti-
cionários requisitam a supressão de um artigo; mas trata-se
aqui de uma questão humana discutida em todos os países
civilizados. Na qualidade de homem e de internacionalista,
tenho o direito de tratar dessa questão. Infelizmente, tam-
bém devo me ocupar dela como francês, pois minha pátria é
ainda um país de cortadores–de-cabeças, e a guilhotina que
nele foi inventada continua funcionando.
Inimigo da pena de morte, tenho antes de tudo que
tentar conhecer suas origens. Será justo derivá-la do direi-
to de defesa pessoal? Se assim fosse, seria difícil combatê-
-la, pois cada um de nós tem certamente o direito de se
defender e de defender os seus, seja contra os animais,
seja contra o homem feroz que nos ataquem. Mas não
é evidente que o direito de defesa pessoal não pode ser
delegado, já que ele cessa imediatamente com o perigo?
Quando tomamos nas mãos a vida de nossos semelhantes,
é por não existirem recursos sociais contra eles, é por nada
poder nos ajudar; da mesma forma, quando um homem
se aparta dos outros, colocando-se acima de qualquer

verve, 44: 225-231, 2023 225


44
2023

contrato social e fazendo pesar seu poder sobre cidadãos


transformados em súditos, estes têm o direito de se rebelar
e matar quem os oprime. Felizmente, a história fornece
numerosos exemplos de reivindicação desse direito.
A origem da pena de morte, tal como atualmente apli-
cada pelos Estados, é com certeza a vingança, a vingança
desmesurada, tão terrível quanto a que o ódio pode inspi-
rar, ou a vingança regrada por uma espécie de justiça su-
mária, ou seja, a pena de talião: “Dente por dente, olho por
olho, cabeça por cabeça”. Desde que a família foi consti-
tuída, ela substituiu o indivíduo no exercício da vingança
ou da vendetta. Ela exige o preço do sangue: cada ferida é
paga por outra ferida, cada morte por outra morte, e assim
os ódios e as guerras se eternizam. Era esse o estado de
uma grande parte da Europa na Idade Média, e foi esse,
no último século, o da Albânia, do Cáucaso e de muitos
outros países.
No entanto, um pouco de ordem foi introduzido nas
guerras perpétuas graças ao resgate. Os indivíduos ou as fa-
mílias podiam ordinariamente ser resgatadas, e esse tipo de
transação foi fixado pelo costume. Tantos bois, carneiros ou
cabras, tantas moedas sonantes ou acres de terra eram fixa-
dos pelo resgate de sangue. O condenado podia também ser
resgatado fazendo-se adotar por outra família, e às vezes até
mesmo por aquela que ofendera. Ele podia também se tor-
nar livre através de uma grande façanha; ou finalmente po-
dia decair tanto que ninguém se dignasse a puni-lo. Bastava
esconder-se atrás de uma mulher e a partir de então estaria
livre, seria demasiado vil para que se quisesse matá-lo, mas
mais infeliz do que se tivesse sido coberto de feridas. Estava
vivo, mas sua vida era pior que a morte.

226 verve, 44: 225-231, 2023


verve
pena de morte

Evidentemente, a lei do talião de família a família


não podia ser mantida nos grandes Estados centraliza-
dos, monarquias, aristocracias ou repúblicas. Nestes, é a
sociedade, representada por seu governo, rei, conselhos ou
magistraturas que se encarrega da vingança ou da vindita,
como se diz na linguagem da jurisprudência. Mas a histó-
ria prova que, apoderando-se do direito de punir em nome
de todos, o Estado, casta ou rei passou principalmente a se
ocupar de vingar suas injúrias particulares, e conhecemos a
fúria com que perseguiu seus inimigos e os refinamentos
de crueldade empregados para fazê-los sofrer. Assim, não
houve tortura que a imaginação pudesse inventar e que não
tenha sido aplicada a milhões de homens: ora eram cozidos
a fogo lento, ora seus membros eram sucessivamente esfola-
dos ou cortados, em Nuremberg o condenado era trancado
no corpo da “Virgem” de ferro, rubro pelo fogo; na França,
seus membros eram quebrados ou arrebentados ao serem
tracionados por quatro cavalos; no Oriente, os infelizes
eram empalados; no Marrocos, eram murados, deixando-se
apenas a cabeça para fora da parede. E por que todas essas
vinganças? Para punir verdadeiros crimes? Não. O ódio dos
reis e das classes dominantes voltam-se contra os homens
que reivindicam a liberdade de pensar e agir.
É a serviço da tirania que a pena de morte sempre este-
ve. O que fez Calvino, dono do poder? Fez queimar Michel
Servet, um homem cuja genialidade científica só é compa-
rável à de dez ou doze em toda a história da humanidade.
O que fez Lutero, outro fundador de religião? Incitou seus
amigos, os senhores, a perseguir os camponeses: “Matem-
nos, matem-nos, o inferno os acolherá mais cedo.” O que fez
a Igreja católica triunfante? Organizou os autos de fé. Foi ela
que acendeu as fogueiras, mantendo o nobre povo espanhol

verve, 44: 225-231, 2023 227


44
2023

aterrorizado durante três séculos. E recentemente, quando


uma cidade livre, culpada de ter mantido sua autonomia, foi
reconquistada por seus opressores, não os vimos matar mi-
lhares de homens, mulheres, crianças e usar a metralhadora
para elevar mais rapidamente as montanhas de cadáveres?
E aqueles que participaram do massacre, orgulhosos de seu
trabalho, não vieram cinicamente vangloriar-se dele? Aqui
mesmo puderam ser ouvidos.
(O orador faz alusão à repressão da Comuna de Paris)

Mas se o Estado é feroz quando se trata de vingar um


atentado a seu poder, aplica-se com menos paixão à vindi-
ta dos crimes privados, e pouco a pouco envergonha-se de
praticar a pena de morte. Não estamos mais na época em
que o carrasco, vestido de vermelho, mostrava-se por trás
do rei: não é mais o segundo personagem do Estado, não é
mais o “milagre vivo” como o chamava Joseph de Maistre;
tornou-se a vergonha da sociedade e nem mesmo se deixa
conhecer por seu nome. Vimos homens que preferiram se
livrar da mão direita a serem forçados a servir de carrascos.
Em muitos países onde ainda existe a pena de morte, as
decapitações, enforcamentos, garroteamentos só ocorrem
no interior das prisões. Finalmente, em muitos países a
pena de morte foi abolida; há mais de cem anos o san-
gue dos decapitados não macula o solo da Toscana, e a
Suíça é uma das nações que tiveram a honra de queimar
o cadafalso. E agora ela teria a honra de restabelecê-lo!
Realmente, ela preza pouco sua glória. Antes que ela ado-
te o restabelecimento da pena de morte, pelo menos seria
preciso provar-lhe que os países com menos crimes são
aqueles onde a penalidade é mais terrível!

228 verve, 44: 225-231, 2023


verve
pena de morte

Ora, é justamente o contrário que acontece, pois san-


gue chama sangue, e é ao redor dos cadafalsos e nas pri-
sões que se formam os assassinos e ladrões. Nossos tribu-
nais são escolas de crime. Não há seres mais vis do que
todos aqueles dos quais a vindita pública se serve para a
repressão: delatores e carcereiros, carrascos e policiais!
Portanto, a pena de morte é inútil. Mas seria ela justa?
Não, ela não é justa. Quando um indivíduo se vinga
isoladamente, ele pode considerar seu adversário como
responsável; mas a sociedade, tomada no conjunto, tem
que compreender o vínculo de solidariedade que a liga
a todos seus membros, virtuosos ou criminosos, e reco-
nhecer que em cada crime ela também tem sua parte. Ela
cuidou da infância do criminoso? Deu-lhe uma educação
completa? Facilitou-lhe os caminhos na vida? Deu-lhe
sempre bons exemplos? Cuidou para que ele tivesse tido
todas as chances para permanecer honesto ou de voltar a
sê-lo depois de uma primeira queda? E se ela não proce-
deu assim, o criminoso não poderia acusá-la de injustiça?
O economista Stuart Mill, esse digno cientista que deve
servir de exemplo a todos seus colegas, compara todos os
membros da sociedade a corredores aos quais um César
qualquer teria fixado a mesma meta. Um dos corredores é jo-
vem, ágil, disposto, outro já é velho; alguns são doentes, man-
cos, aleijados. Seria justo condenar esses últimos, seja à mi-
séria, seja à escravidão ou à morte, enquanto o primeiro seria
coroado vencedor? E agimos de outra forma na sociedade?
Alguns têm a sorte de serem felizes, de terem educação, saú-
de. Estes são declarados virtuosos. Os outros são condenados
pelo meio a permanecerem estagnados na miséria ou no ví-
cio: é sobre estes que deve recair a vindita social?

verve, 44: 225-231, 2023 229


44
2023

Mas há ainda outra causa que proíbe a sociedade bur-


guesa de pronunciar a pena de morte. É que ela mesma
mata aos milhões. Se há um fato provado pelo estudo da
higiene, é que a duração média da vida poderia ser dobra-
da. A miséria abrevia a vida do pobre. Certo ofício mata
no espaço de alguns anos, outro em alguns meses. Se to-
dos desfrutassem dos gozos da vida, eles viveriam como os
pares da Inglaterra, ultrapassariam os sessenta anos. Mas
condenados praticamente aos trabalhos forçados ou — o
que é pior — à falta de trabalho, morrem antes do tem-
po, e, durante sua curta vida, são torturados pela doença.
Não é difícil fazer esse cálculo. Pelo menos 8 a 10 mi-
lhões de homens são anualmente exterminados pela so-
ciedade somente na Europa, e, se não morrem fuzilados,
são obrigados a morrer por ter-lhes sido negado um lugar
no banquete da vida. Há dez anos, um operário inglês,
Duggan, suicidou-se com toda sua família. Um infame
jornal, sempre ocupado em enaltecer os méritos dos reis e
dos poderosos, cometeu a imprudência de felicitar-se por
esse suicídio do operário. “Que belo descarte, proclamou,
os operários para quem não há lugar, matam a si próprios,
dispensando-nos da desagradável tarefa de matá-los com
nossas mãos”. Cínica confissão do que pensam todos os
adoradores do Deus Capital!
Então, qual o remédio para todos esses assassinatos em
massa e ao mesmo tempo para os assassinatos cometidos
isoladamente? Vocês já conhecem o que um socialista
propõe. É uma mudança social completa, o coletivismo, a
apropriação da terra e dos instrumentos por todos aque-
les que trabalham. É assim que o abismo de ódio poderá
ser colmatado entre os homens, que a miséria e a busca
da fortuna, essa grande conselheira de crimes, deixarão de

230 verve, 44: 225-231, 2023


verve
pena de morte

excitar os cidadãos uns contra os outros, e a vindita social


poderá finalmente se aquietar. Já é tempo de fazer suceder,
ao direito da força que prevalece na natureza selvagem, a
justiça, que é o ideal de todo homem digno desse nome.
Mas, na sociedade transformada, ainda é possível haver
crimes. Fisiologicamente, o tipo do criminoso poderá no-
vamente se apresentar. O que faremos então? Mataremos
o criminoso? Claro que não. Cuidaremos daquele em que
o crime provém da loucura, como cuidamos dos loucos
ou dos outros doentes, protegendo-nos de suas violências.
Quanto aos homens que se tornaram criminosos por seu
temperamento fogoso ou o ardor de seu sangue, agora se-
ria possível propor-lhes sua reabilitação pelo heroísmo.
Como já se viu inúmeras vezes, condenados às galés
jogam-se ao fogo para salvar infelizes e assim se sentirem
renascer na estima dos outros homens. Os forçados que a
comuna de Cartagena libertou e que a França novamen-
te tornou escravos, foram sublimes de heroísmo durante
sua curta liberdade de alguns meses. Obedeçam, dizia o
Cristianismo, e o povo se aviltou. Enriqueçam, dizem os
burgueses a seus filhos, e estes buscam enriquecer a qualquer
custo, seja violando, seja, com mais habilidade, burlando a
lei. Tornem-se heróis, dizem os socialistas revolucionários,
e mesmo os bandidos poderão se reerguer pelo heroísmo.
Texto publicado na brochura nº 75
Das Publicações mensais de “L’idée libre”
Conflans-Honorine, 1923.

Tradução do francês por Martha Gambini.

verve, 44: 225-231, 2023 231


18 de julho de 1925
1º Registro de Interrogatório1 18 de julho
de 1925 Prisão de Ichigaya Kaneko Fumiko
(documento de interrogatório).

Relativo ao caso do referido arguido,


acusado ao abrigo do Artigo 732 bem como de
violação da Lei de Controle de Explosivos,
o seguinte interrogatório ocorreu na Prisão
de Ichigaya em 18 de julho de 1925, sendo
realizado com o Juiz Tatematsu Kaisei do
Tribunal de Apelações de Tóquio, encarregado
da audiência preliminar no âmbito do poder
especial pertencente ao Supremo Tribunal, e
com a presença do secretário Okuyama Gunji do
mesmo tribunal.

Pergunta 1: Seu nome?

Resposta 1: Kaneko Fumiko.

P2: Idade?

R: Oficialmente, tenho 24 anos, embora,


pelo que me lembre, tenha 22. Mas, para falar

1
Este foi o primeiro interrogatório desde que Kaneko foi
indiciada por acusações adicionais.

2
O crime de alta traição de acordo com o Código Penal
Meiji.
a verdade, também não acredito. E mais, não
preciso acreditar. Não importa quantos anos
eu tenha, isso não tem nada a ver com como eu
vivo minha vida agora.

P3: Sua formação?

R: Uma divina plebeia.

P4: Você está empregada?

R: Meu trabalho é destruir tudo o que existe


atualmente.

P5: Local de residência?

R: Prisão de Tóquio.

P6: Endereço permanente?

R: Prefeitura de Yamanashi, distrito


de Higashi-Yamanashi, vila de Suwa, 1236
Somaguchi.

P7: Local de nascimento?

R: Cidade de Yokohama.
P8: Você possui algum posto, condecoração,
insígnia de serviço militar, aposentadoria,
pensão ou cargo público?

R: Você não poderia me dar nada disso e,


mesmo que pudesse, eu não aceitaria.

P9: Você já foi condenada por alguma coisa?

R: Receberei uma em breve, não é?

P10: Leu o documento oficial de mudança de


jurisdição para você e os outros réus?

R: Eu li.

P11: Há alguma discrepância nos fatos


registrados nesse documento?

R: Não.

P12: Sobre esse ponto, você tem algum


comentário sobre o fato de o Procurador-Geral
ter processado você e Pak Jun-sik3 desta forma
e solicitado a audiência preliminar ao Supremo
Tribunal?

Neste momento o juiz leu a seção intitulada


“Acusações do Pedido de Audiência Preliminar”.
3
Nome de nascimento de Pak.
R: Sem comentários.

P13: Alguma objeção de que eu realize a


audiência preliminar por ordem do Chefe do
Supremo Tribunal?

R: Nenhuma objeção.

P14: Há algum erro no que você disse na


audiência preliminar do seu caso no Tribunal
Distrital de Tóquio por violação da Lei da
Polícia de Segurança e da Lei de Controle de
Explosivos?

R: Não.
verve
em defesa da democracia!

Resenhas
Em defesa da democracia!
ACÁCIO AUGUSTO

Resenha do livro Nilo Batista e Rafael Borges. Crimes contra


o Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Revan,
2023.

A diferenciação das pessoas aprisionadas pelo sistema


de justiça criminal entre as detidas por chamados crimes
políticos e as encarceradas pelos ditos crimes comuns
nunca se sustentou. Não há ação do sistema de justiça
criminal que não seja também política e, portanto, atra-
vessada pela moralidade vigente. Dizer que todo preso
é um preso político não é um juízo de valor, tampouco
uma nota técnica sobre o exercício do chamado poder
punitivo. Trata-se de uma afirmação que busca desfazer
antagonismos complementares que, por fim, emplacam
certa inevitabilidade da continuidade do sistema de justi-
ça criminal, vendo-o como incontornável. No entanto, no
século XX, com um planeta atravessado por mobilizações
de massas, guerras entre nações, execuções coletivas e re-

Acácio Augusto é pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) e


professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP, Campus
Osasco. Professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional
da UFES. Coordena o Laboratório de Análise em Segurança Internacional
e Tecnologias de Monitoramento (LASInTec) na UNIFESP. Contato:
acacioaugusto1980@gmail.com

verve, 44: 237-245, 2023 237


44
2023

gimes autoritários, ditatoriais e/ou totalitários, a depen-


der da matriz de classificação, havia certa disputa entre o
que caracterizaria um tipo penal criminoso ou enquanto
político ou enquanto comum. Com exceção dos anarquis-
tas, que, desde a emergência do sistema penal moderno,
declaram guerra à burguesia e constatam que toda prisão
é política. No limite, esta é ato da guerra civil contra as
ilegalidades populares. Antes da Segunda Guerra (1939-
1945), os Estados-Nacionais eram explícitos em legislar
para perseguir formas de ação político-social, tipificando
crimes políticos na letra da lei, como foi o caso das leis de
perseguição aos anarquistas existentes em diversos países
do mundo na época, sobretudo na América Latina.
Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), a reivindicação do caráter político da persecução
penal passa a ser a dos enquadrados pelo sistema de justiça
criminal, que alegam a condição de presos políticos como
forma de: 1 - se diferenciar dos chamados presos comuns
e reivindicar condição excepcional de reclusão; 2 -apontar
o Estado que os mantêm encarcerados como violadores de
direitos humanos. Conforme avançam os efeitos de hege-
monia da racionalidade neoliberal, em meados dos anos
1970 e nos anos 1990, a democracia e os direitos humanos
se tornam imperativos, de modo que essa disputa entre
delitos ditos políticos e crimes chamados de comuns se
arrefece. Isso, ao invés de explicitar inequivocamente o ca-
ráter político do Direito, produz uma supernaturalização
da persecução penal e uma planetarização da responsa-
bilização jurídica individual. O Direito, entendido como
humano, se veste de certa inquestionabilidade e as con-
dutas taxadas de criminosas tornam-se campo liso, como
se houvesse uma ontologia do crime, mesmo quando a

238 verve, 44: 237-245, 2023


verve
em defesa da democracia!

criminalização de determinada conduta é de produção


contemporânea. Basta notar como os discursos são mo-
bilizados na chamada opinião pública: hoje, dizer que al-
guma conduta é crime significa lançar sobre ela uma aura
de inquestionabilidade, de verdade imperativa da moral
pública a ser policiada por todos e por cada cidadão.
O livro de Nilo Batista e Rafael Borges, Crimes contra
o Estado Democrático de Direito, é um registro crítico-ana-
lítico de um tipo penal legislado recentemente no Brasil
que mostra esse movimento atual da atividade jurídica
que a tudo quer abraçar e prender sob uma pretensa ob-
jetividade para a qual não cabe questionamento político.
No entanto, ao recorrer à história, como fazem os autores,
tal pretensão de objetividade não se sustenta. Como aler-
ta Borges na apresentação, “embora o exercício do poder
punitivo implique invariavelmente no exercício do poder
político, pouco importa o enquadramento jurídico-penal
da conduta, tais crimes — ora repaginado sob designação
mais democrática — integram um núcleo bastante sen-
sível, em cujas entranhas a dimensão política do direto
penal vem sendo revelada sem travas científicas ou ela-
boradas pretensões legitimantes” (p. 6). Na contramão da
atual tendência planetária — em contexto de dominância
democrática neoliberal e sob a retórica dos direitos huma-
nos —, o caráter político do direito penal não desapare-
ce, mas se explicita sem travas, só não vê quem não quer.
Todo preso é um preso político!
Batista e Borges são juristas de gerações diferentes que
se destacam na contenção do poder punitivo, sobretudo no
Brasil, seja à frente do Instituto Carioca de Criminologia
(ICC) ou na atuação regular da militância advocatícia em
escritório no qual são sócios. Ao colocar em análise a Lei

verve, 44: 237-245, 2023 239


44
2023

nº 14.197/2021, conhecida como lei dos crimes contra o


Estado democrático de direito, refazem a história das leis
de defesa do Estado brasileiro, que remonta às Ordenações
Filipinas, vigente nessas terras até 1830, com o crime de
lesa-majestade. Nesse ordenamento imperial brasileiro do
século XIX, já se registram como alvo do poder punitivo
as figuras da sedição, da insurreição e da rebelião, palavras
que se repetem, com variações, até os dias de hoje. Com o
Código de 1890, na Primeira República Brasileira, toma
forma legislativa a diferenciação dos dispositivos de se-
gurança da governamentalidade liberal, criminalizando
atos de ameaça externa à segurança sob a nomenclatura
de traição, espionagem e provocação de guerra; e atos de
ameaça interna com os nomes de conspiração, sedição e
ajustamentos ilícitos. As primeiras leis brasileiras voltadas
para a defesa nacional foram formuladas, segundo os auto-
res, “com a legislação contra o anarquismo, especialmente
os decretos nº 4.269, de 1921 e nº 5.373, de 1927” (p. 18).
Essas leis abrem caminho para que no Estado Novo sur-
gissem, com a Constituição de 1934, as primeiras alusões
explícitas à segurança nacional, com especial atenção à lei
nº 38, de 1935, que definiu os crimes contra a ordem po-
lítica e social. Segundo os autores, encontra-se nessa lei a
matriz da tradição brasileira de legislação autoritária, não
fortuitamente uma legislação inspirada no fascismo italia-
no. E ainda que mais adiante, o Brasil tenha se alinhado às
forças da Aliança na II Guerra Mundial, a Constituição
de 1937 seguiu orientada pela Lei de Segurança Nacional.
Desta vez, esta recaiu também contra pessoas e agremia-
ções civis que aludissem ou tivessem ascendência de es-
trangeiros egressos dos países do Eixo, como os Decretos-
Lei 3.911/41 e 4.166/42, que, dentre outros efeitos contra

240 verve, 44: 237-245, 2023


verve
em defesa da democracia!

grupos e associações de imigrantes estrangeiros, forçou o


clube de futebol Palestra Itália, após intensa pressão de
representantes da burguesia paulista, a mudar seu nome
para Sociedade Esportiva Palmeiras.
Não pretendo nesta resenha resumir as referências le-
gais mobilizadas no livro, mas os destaques reunidos acima
visam mostrar a importância da compilação histórica que
o livro traz para expor uma tradição legislativa autoritária
que, apesar de mudar ao sabor dos acontecimentos nacio-
nais e internacionais, mantém como constante o mote de
defesa nacional para perseguir pessoas e grupos no inte-
rior de suas fronteiras. No Brasil, a guerra civil reinserida
nas instituições se manifesta, também, na forma da lei. Tal
tradição, que será encontrada no Decreto-Lei nº 898, de
1969, a Lei de Segurança Nacional por excelência da di-
tadura civil-militar (ver pp. 29-30), não pode ser ignorada.
Por mais nobre que possa ser a intensão do legislador em
defender as liberdades civis e políticas, a democracia, os
direitos humanos e o Estado Democrática de Direito, os
autores alertam para o fato de que empoderar o Direito
Penal produz, na história do Brasil, recrudescimento do
autoritarismo, atualização da tradição autoritária mais que
centenária do Estado brasileiro. Como alertam os autores,
lançando mão de uma citação de Swensson Júnior, mesmo
“a ideia de que a punição de crimes cometidos durante a
ditadura militar evitaria o estabelecimento de um novo
regime autoritário superestima a capacidade do direito” (p.
31).
Se esse legado histórico de legislação autoritária já se-
ria o suficiente para se desconfiar de uma legislação penal
específica para defesa do Estado, qualificado como de-
mocrático de direito, à medida que os autores passam a

verve, 44: 237-245, 2023 241


44
2023

analisar a letra da Lei nº 14.197/21 o que aparece é mais


que uma desconfiança, mas a confirmação da tradição au-
toritária brasileira, que tem no direito penal seu principal
instrumento de atuação e intervenção. Como observado
pelos autores ao analisar a nova lei, “haver suplantado
quaisquer referências à ‘segurança nacional’ em seu texto
não é propriamente sintoma de maturidade democráti-
ca. De fato, a chamada ideologia da segurança nacional
passou para a história como resultado das mudanças no
poder mundial, e está sendo substituída por um discurso
público de segurança cidadã como ideologia (...). A esta
transformação ideológica correspondeu uma transferência
de poder das agências militares para as policiais”. Ainda
que possamos discordar que essa transferência seja efeito
de um falseamento do problema real, mas sim uma for-
ma de funcionamento da distribuição da violência nas
democracias nas quais o próprio exercício da cidadania se
confunde com a conduta policial, não há como discordar
dos autores que aqui afirmam: “ao tempo em que o país
revoga sua última lei de segurança nacional, apropriando-
-se, em tese, de um discurso de defesa do Estado demo-
crático de direito, há também um acúmulo visível de poder
político nas agências policiais” (p. 55). A judicialização da
política e da vida e o empoderamento das agências poli-
ciais associado a uma conduta cidadã policialesca são, sem
sombra de dúvidas, a forma democrática contemporânea
dessa tradição autoritária de defesa do Estado brasileiro,
com suas reminiscências imperiais lusitanas, republicanas
escravistas e burocráticas militares.
Partindo dessa premissa, nesse livro de leitura incon-
tornável para os que pretendem fugir da algaravia opina-
tiva de defesa da democracia como ideia fixa, os autores

242 verve, 44: 237-245, 2023


verve
em defesa da democracia!

seguem com questionamentos sobre a letra da lei, entre


outros aspectos,os conceitos alargados de violência que ela
mobiliza (pp. 62-66), as desproporcionalidades de reco-
mendação de penas de reclusão em cada artigo e/ou mes-
mo os alargados campos interpretativos nomeados como
lei penal em branco (pp. 67-74). Isso sem entrar em por-
menores sociológicos como a presumível seletividade com
que essa nova lei seguramente será aplicada, segundo a
mobilização das autoridades policiais, políticas e jurídicas
da ocasião. Mais uma vez concordamos com os autores:
“cabe pontuar que defesa nacional é uma locução tão am-
pla quanto defesa do Estado democrático, podendo ser
entendida como expressões sinônimas” (p. 112). Aqui está
o enrosco e o alargamento do poder punitivo: as agên-
cias policiais, associadas ou não aos militares, que outrora
perseguiram, prenderam, torturaram e mataram em de-
fesa da segurança nacional, agora, pela nova lei, poderão
seguir com as mesmas práticas, mas, desta vez, em defesa
da democracia.
Se, como dito acima, o Estado Novo funda a matriz da
tradição legislativa autoritária brasileira a partir de 1935,
é com ele que se institui a pena de morte no Brasil. O
Decreto-Lei nº 431 de 1938 “se caracterizou por comi-
nar penas severíssimas. A pena de morte passou a ser dis-
tribuída com prodigalidade pelo legislador; quase todos
os crimes contra a segurança externa eram punidos com
pena de morte” (pp. 22-23). Em forma legislativa típica
do liberalismo brasileiro, a lei previa que era facultado ao
Ministro da Justiça comutar a pena ou transferir o conde-
nado de estabelecimento prisional como bem entendesse,
entregando a um ministro de Estado o poder soberano
de morte. Se na história política brasileira, como assina-

verve, 44: 237-245, 2023 243


44
2023

lam os autores, essa discricionaridade ministerial permi-


tiu que tivéssemos hoje o belíssimo Memórias do Cárcere,
do escritor comunista Graciliano Ramos, o registro de lei
que previa pena de morte no Brasil nos deixa dois alertas.
Primeiro, se a pena de morte já esteve inscrita no ordena-
mento jurídico brasileiro em nome da defesa do Estado,
nada garante, a despeito de impedimento constitucio-
nalizado desde 1988, que ela não volte a ser letra de lei
sob uma excepcionalidade qualquer em nome de alegado
bem genérico maior, como a democracia. Segundo, pelos
motivos já expostos acima, que acabam por empoderar as
agências policiais, a pena de morte é largamente aplicada
no Brasil por discricionaridade não legal, mas fática, das
polícias que agem, segundo a declaração de um ex-gover-
nador do estado da Bahia, em 2015, como artilheiro diante
do gol. Se a “liberalidade” de um ministro de Estado, em
1938, acabou por permitir que lêssemos as memórias do
cárcere de um prisioneiro-escritor, hoje, a pena de morte
largamente praticada por policiais em operações e chaci-
nas se antecipa a qualquer linha que pudesse ser escrita. Se
a tradição autoritária ditatorial se dava por contenção dis-
ciplinar em colônias penais sob a liberalidade de ministros
de Estado, a tradição autoritária-democrática opera por
fluxos de sangue derramado nas calçadas de ruas, becos e
vielas pela ação de policiais artilheiros, dando literalidade
à metáfora futebolística do goleador como um matador.
Uma nota final: em 2103, a Lei de Segurança Nacional
nº 7.710 de 1983, substituída agora por essa nova lei de
defesa do Estado democrático de direito, foi acionada
contra estudantes detidos em uma manifestação no cen-
tro de São Paulo, nas imediações da estação República do
metrô. Na época, foram poucas as vozes que alertaram

244 verve, 44: 237-245, 2023


verve
em defesa da democracia!

contra o acionamento do chamado entulho legislativo au-


toritário de uma lei penal que ainda remetia ao contexto
da ditadura civil-militar que vigorou de 1964 a 1985. Ao
contrário, houve professor universitário que nas páginas
de opinião de jornal defendesse que tal lei fosse acionada
inclusive contra quem defendia a liberdade de manifesta-
ção dos estudantes, muitos deles adeptos da prática black
bloc em manifestações. Só a partir de 2016, com o impe-
achment da presidente Dilma Rousseff e o acionamento
de tal lei contra militantes de movimentos sociais organi-
zados do mesmo espectro político da presidente deposta,
que se passou a chamar a atenção para o entulho legal
autoritário. Antes tarde do que mais tarde. Mesmo assim,
os que advogavam pela simples abolição do dispositivo
penal, como é o caso dos autores deste livro, eram igno-
rados. Volta completa, a lei, ao invés de abolida, foi subs-
tituída, e hoje encontra-se em virtual expansão, inclusive
pelas novas forças policiais federais de segurança pública,
como a Força Nacional de Segurança, criada pelo Decreto
nº 5.289, de 29 de novembro de 2004, confirmando que
nas democracias o golpe de Estado é permanentemente
acionado pelas forças policiais e perpetuado pelo desejo
de segurança dos cidadãos-polícia. Como mostra o livro,
a tradição legislativa autoritária brasileira encontra-se re-
gistrada nas leis penais deste país, mas ela é, antes de tudo,
a prática regular dos agentes estatais, sobretudo das forças
de segurança, e forma privilegiada dos amantes da ordem
que são incapazes de conceber uma vida democrática que
não seja securitária e cercada de punições.

verve, 44: 237-245, 2023 245


44
2023

ventos agitam o sul da américa


ADRIANA MARTINEZ

Edson Passetti, Sílvio Gallo e Acácio Augusto (organização).


Anarquistas na América do Sul. São Paulo, 2022, 234p. 1ª
Edição.

Em quatro dias entre os meses de agosto e setembro


de 2021, pouco após as primeiras vacinas contra o vírus da
COVID-19, porém em meio à propagação de novas cepas e
de uma política purulenta alastrando-se por todos os cantos
do planeta, o encontro “Anarquistas na América do Sul” foi
o vendaval que viabilizou respirar outros ares. Organizado
pela livre associação de três núcleos de pesquisa: Nu-Sol
(Núcleo de Sociabilidade Libertária, LIMA (Laboratório
Insurgente de Maquinarias Anarquistas) e LASInTec
(Laboratório de Análise em Segurança Internacional e
Tecnologias de Monitoramento, da UNIFESP), foi trans-
mitido ao vivo pela TVPUC.
As línguas portuguesa e espanhola, impregnadas de
seus sotaques locais, serpentearam nas rodas de conversas
e mesas de pesquisadorxs anarquistas. Mediadxs pelas te-
las de dispositivos eletrônicos, em momento algum amai-
naram o calor das apresentações e isso está latente nos
textos que compõem o livro resultante do encontro1. Seu
1
Outro livro intitulado Anarquistas na América do Sul. Vol. 2 contendo
textos de pesquisadorxs diferentes saiu numa versão digital lançada pela
editora Pedro & João Editores em 2022 e está disponível em <https://
pedroejoaoeditores.com.br/2022/wp-content/uploads/2022/07/EBOOK_
Anarquistas-na-America-do-Sul.pdf>

Adriana Martinez é pesquisadora e doutora em ciências sociais. Contato:


drimartinez.5@gmail.com.br

246 verve, 44: 246-250, 2023


verve
ventos agitam o sul da américa

título acompanha o nome do evento e foi publicado pela


editora Hedra em 2022. Os temas atravessaram múltiplas
ações libertárias, mostrando que SIM há anarquismos
neste território chamado América do Sul.
Disposto de acordo com a proximidade entre os as-
suntos, os dezoito artigos transitam por cultura, socia-
bilidade, educação, teatro, existências queer, dissidências,
insurreições, amor livre, dentre outros tantos temas que
vibram nas páginas. Nesta resenha, não se seguiu estrita-
mente a ordem do livro, tampouco foram incluídos todos
os textos. O intuito é provocar o interesse de saborear essa
publicação.
No decorrer das páginas, quem lê se depara com expe-
riências anarquistas que marcaram o século XX e ecoam
no XXI. Embora com diferentes táticas de lutas, nota-se
como ação direta, práticas coletivas, rebeldias e invenções
de vidas outras traspassam a história vívida da anarquia.
Experimentações anarquistas ocorridas no passado e
citadas em alguns trabalhos de maneira nenhuma devem
ser confinadas num tempo longínquo, uma vez que se co-
nectam com o presente e sacodem certezas sem fundar
verdades. Atualizar permanentemente os enfrentamentos
com novos ataques é indispensável para gerar relações li-
vres e demolir o que se pretende universal.
Exibe-se nas entrelinhas como, em ininterrupta cons-
trução, as ações libertárias vão além de teorizações e as-
similações promovidas pela academia ou pela chamada
opinião pública. Em certas passagens, registra-se que na
América do Sul, assim como em outros territórios, anar-
quistas combatem em toda sua espessura o Estado, a socie-
dade civil organizada e o capitalismo conduzido hoje pela

verve, 44: 246-250, 2023 247


44
2023

racionalidade neoliberal. Tais reflexões destacam a recusa


da mesmice configurada na busca por direitos, classifica-
ções morais, modelos identitários e regras de conduta.
Durante a leitura, detecta-se como atitudes antiau-
toritárias perpassam incontáveis atividades do cotidiano.
Como na região do Rio da Prata, onde se verifica desde a
produção de comidas com formatos e nomes irreverentes
com o objetivo de ironizar exército, polícia e Igreja, até o
incentivo de uma alimentação naturista vegetariana em
contraposição ao capitalismo industrial dos anos de 1900.
Do mesmo modo é indiscutível a presença libertária
na educação nas primeiras décadas do século passado.
Escolas anarquistas despontaram ao longo do continente
sul-americano, nas quais se motivava o exercício de ex-
pandir a liberdade de cada pessoa e do grupo fora dos
domínios estatal ou cristão. Dentre as propostas mencio-
nadas está a autogestão praticada por anarquistas como
autoeducação de si. Já na década de 1980, com o término
da maioria das ditaduras civis-militares na América do
Sul, os anarquismos chegaram às universidades, dando
início a pesquisas de acontecimentos antes solapados pe-
las teorias da reconstituição soberana.
Afora o âmbito escolar, discorre-se sobre outras práti-
cas de educação capazes de potencializar as lutas, tal como
o teatro, considerado um elemento de constituição educa-
tiva voltado para exercer a liberdade no agora e provocar,
por meio da arte, a insubordinação. Ou, ainda, os arquivos
libertários que proporcionam relatos de combates com os
quais se compreende como perturbaram em seu tempo os
princípios de autoridade e suas decorrências, fornecendo
material para atiçar novos confrontos na época atual. Por

248 verve, 44: 246-250, 2023


verve
ventos agitam o sul da américa

conseguinte, não são documentos mortos, mas registros em


constantes deslocamentos.
Sinaliza-se, também, o quanto as ações anarquistas são
impulsionadas em inúmeras situações. A exemplo da ocu-
pação de espaços físicos, em geral imóveis vazios vincula-
dos à especulação imobiliária, ou da concepção de espaços
digitais não centralizados nem hierarquizados. Ambos
com a finalidade de intercambiar materiais, experiências
insurrecionais e alastrar a cultura ácrata.
No decurso do livro, explicita-se porque quando li-
bertárixs celebram o amor livre desmantelam os valores
conservadores e reacionários. Torna-se inadmissível para
as moralidades devotas dos contratos religioso-jurídicos
abandonar o poder sobre outrxs e a própria submissão. As
relações contratuais esforçam-se para efetivar uma união
duradoura, já para anarquistas é vital ter a possibilidade
de partir livremente. Experimentar modos singulares de
relacionar-se aproxima os embates anarquistas de outras
práticas subversivas, como o entrelaçamento com as exis-
tências queer e anarcopunk.
Queer são corpos “não-catalogados” que contestam os
projetos de políticas públicas e direitos de minorias de-
fendidos por quem deseja inserir-se em pautas estatais
ou almeja reconhecimento social, desencadeando mais
judicialização e criminalizações. A perspectiva queer li-
bertária abala o Estado nos seus formatos democrático
ou ditatorial, estremece corpos e condutas consideradas
normalizadas.
Por sua vez, o anarcopunk irrompe da cisão com o mo-
vimento punk e assume vigor no período de pós-ditaduras
sul-americanas em oposição às novas democracias, encar-

verve, 44: 246-250, 2023 249


44
2023

regadas de reconfigurar técnicas de contenção de revoltas.


Invadem lugares públicos e privados, reforçam o inter-
nacionalismo libertário e rompem com organizações que
procuram hegemonias.
Em certos artigos, salienta-se que anarquia é antipo-
lítica enquanto rejeição à política velha ou à denominada
nova, que, na contemporaneidade, governa a esquerda e
a direita no campo democrático representativo-participa-
tivo. Na América do Sul, rebeliões que tomaram as ruas
neste milênio contêm elementos de antipolítica, insupor-
táveis para a política vigente que pretende proteger confi-
gurações baseadas nos discursos de segurança democrática
e formas organizativas pacificadoras. São mobilizações
contrassistêmicas que produzem modificações no jogo de
forças afastadas de qualquer eleição ou instituição e sem
querer reivindicar um novo contrato social. Dessa manei-
ra, somente mediante insurreições continuadas é viável
confrontar as próximas políticas.
Enfim, trechos do livro alertam anarquistas para que
não sejam enredadxs pela assimilação e trazem um con-
vite para deixar de ser o que somos. Trata-se de práticas
ingovernáveis prontas para ampliar a liberdade oposta
à liberdade liberal. Uma relação consigo em incessante
transformação com o propósito de arruinar a produção
de subjetividades moldadas no duplo mando-obediência
com o qual tentam reiteradamente nos governar.
Entre umas e outras folhas x leitorx muitas vezes se
arrebata com uma escrita a marteladas ou em fúria que
faz tremer o chão de classificações, padrões, identidades,
valores, análises acadêmicas e convicções. Textos estes que
impelem a ler e reler para deleitar-se com cada palavra.

250 verve, 44: 246-250, 2023


verve
josé maria, uma anarquia toda coração

josé maria, uma anarquia toda coração


SALETE OLIVEIRA

José Maria Carvalho Ferreira. Autobiografia de um gigante.


Lisboa: Clássica Editora, 2023, 625 p.

Já ouviu o farfalhar das folhas? Ler o livro de José


Maria nos faz ouvi-lo. Zé Maria criança sob a figueira ao
lado de sua casa. Uma figueira fulcral, como ele diz. Do
modo como o faz, nos leva junto com ele.
Estar junto ao Zé é ouvir esse farfalhar e ser arremes-
sado para o meio da canção Fruta Boa na voz de Milton
Nascimento. Saboroso é o nosso amor fruta boa. Coração é o
quintal da pessoa.
“Esta figueira foi fulcral para a minha meninice, por-
que possuía uma grande copa e folhagem abundante para
me albergar do calor, do frio, da chuva e dos olhares con-
troladores dos adultos” (p. 45).
Sob a figueira, o encontro do Zé com o gosto da liber-
dade junto com outras crianças entre brincadeiras com os
meninos e namorando as meninas.
O gosto desmesurado pela música e pela dança brotou
em criança e o acompanha até hoje.
“A liberdade tinha outra vantagem, permitia-me dan-
çar o fandango na taverna do senhor Ramiro Murteira,
pessoa de quem me tornei amigo para o resto da minha
vida. Esta taberna tinha sido criada em 1945 e tinha

Salete Oliveira é pesquisadora no Nu-Sol. Contato: saletemagdaoliveira@gmail.

verve, 44: 251-255, 2023 251


44
2023

por função servir os trabalhadores rurais e a população


de Bogarréus no consumo de vinho, aguardente, licores
diversos e outros produtos. De qualquer forma, passava
muitas horas na referida taberna a troco de rebuçados ou
alguns tostões. Ali, dançava eu o fandango com alguma
destreza e criatividade, pois para além de balancear as per-
nas e os pés ao ritmo do fandango ribatejano, eu ainda
conseguia entrelaçar e movimentar o lenço com maestria,
entre as pernas, quando dançava” (Idem).
Do corte trágico, após o suicídio de seu pai, experi-
mentava sem rodeios as delícias da amorosidade de sua
mãe e as exigências da lida extenuante com a terra. Entre
a figueira e a taberna o respiro de liberdade diante da vida
árdua de camponês, ainda criança, envolto com o trabalho
duro no campo, quando seu corpo era ainda tão tenro.
“Desde muito novo, aprendi a cavar e a raspar a vinha,
a vindimar, a transportar produtos agrícolas com uma pa-
relha de burros e uma carroça, a debulhar manualmente o
feijão, grão e fava. Aprendi ainda a ceifar o trigo e aveia,
a lavrar terra para sementeiras de centeio e trigo - tarefas
executadas durante as estações do ano que se revelavam
apropriadas para esse efeito, a primavera, o verão e o ou-
tono. O tempo de escolarização na escola primária foi,
para mim, muito importante, no sentido em que duran-
te uma parte do dia, na semana escolar, a escola permitia
subtrair-me às exigências de esforço físico assaz violento,
caso particular de trabalhos agrícolas relacionados com a
condução e o controlo de animais, na cava da terra com
charrua, puxada por burros para a consecução de semen-
teiras de trigo, aveia, cevada, batata, grão, feijão e ervilhas.
A cava, a raspa da vinha, e as vindimas também eram vio-
lentas porque exigiam muito esforço físico e, neste caso,

252 verve, 44: 251-255, 2023


verve
josé maria, uma anarquia toda coração

meu irmão Álvaro Ferreira exercia a força física com base


na relação interpessoal” (pp. 47-48).
Ler esse livro do Zé é estar junto de suas mãos. De
mãos dadas. Sentir a força de suas mãos. Dessas mãos
que conheceram tão cedo o trabalho e a lida com a ter-
ra. Dessas mãos tão carinhosas e delicadas. As mãos do
Zé são tão bonitas. Tal qual seus olhos traquinas. Atentos.
Sorridentes, alertas. Ele diz, também, com as mãos.
Esfrega-as uma na outra, mostrando a ouvidos atentos
que elas acompanham e complementam seus pensamen-
tos e suas interjeições. Os dedos da mão chacoalham, os
polegares dão voltinhas um em torno do outro quando
segura uma mão na outra. Os pés se mexem, uma das so-
brancelhas levanta e a boca emite um sonoro: arhhh. E
eis que continua a conversa, ou, então, a interrompe, para
retomá-la depois. Ou, então, um corte brusco.
De alguma maneira, a escrita destemida desse livro e
a do próprio José Maria, também, soa assim. O Zé é um
homem de escrita. Escrita longa. Expõe seus prolonga-
mentos, suas repetições, suas voltas e reviravoltas, suas
exaustões.
Escrever esse livro antes de tudo, em suas palavras, foi
fulcral para ele mesmo.
De volta às mãos do José Maria. Mãos rápidas e ágeis
como as de um mágico. Não como um truque banal, ou um
truque, tão comum aos surrupiadores de palavras e gestos,
intrínseco aos performáticos de ocasião. Mas as mãos de
um mágico, mesmo, que contagia de vida as crianças e os
amigos. Tanto em momentos de intensa alegria como na-
queles em que a força e a delicadeza brotam, sabe-se lá de
onde, diante de devastações na correnteza da existência.

verve, 44: 251-255, 2023 253


44
2023

O Zé é assim. E isso já não é mágica. É raro, muito raro,


de se encontrar.
As mãos de um camponês, de um operário, de um pro-
fessor universitário, de um pesquisador, de um editor de
periódicos, de um vinicultor autogestionário, e de muito
mais..., até mesmo de um ator de cinema no filme liber-
tário e surrealista intitulado Verde por fora e vermelho por
dentro (p. 358-359). Tudo isso está no livro. As mãos que
expropriam os proprietários, combatem o Estado, o capi-
talismo, a civilização judaico-cristã, as dicotomias... Mãos
resistentes aos revezes, resistem e não se entregam, atra-
vessam fronteiras, desacatando-as. Mãos que preparam
comidas, desde criança, em uma alquimia, só sua, trans-
formando o caracol que irrompe da terra e alimenta em
deliciosa iguaria.
O livro traz, minuciosamente, as passagens e desloca-
mentos do José Maria de Bogarréus para Lisboa, durante
o salazarismo. De Lisboa para Paris, após ser ludibriado,
pelos próprios marxistas com uma suposta ida a Cuba, e
o encontro com os efeitos de maio de 68 em Vincennes.
De sua presença no marxismo, na esquerda e ultraes-
querda, localizando o situacionismo e seus enredamen-
tos. Um alerta que se faz atual, também, para anarquistas:
enredamentos.
De seu retorno para Lisboa, após anos na França e as
tensões vividas pela Revolução dos Cravos sob os efeitos
de maio de 68 e de sua entrada como professor na univer-
sidade de Lisboa, na década de 1970. De seu encontro
decisivo com os anarquismos, na década de 1980. “Não sei
quais foram as razões plausíveis deste alheamento e desin-
teresse, mas penso que minha mente estava ainda muito

254 verve, 44: 251-255, 2023


verve
josé maria, uma anarquia toda coração

impregnada nas vicissitudes modelares do materialismo


histórico e dialético” (p. 319).
O livro se volta, na década de 1990, para os anarquis-
mos e a anarquia, com a presença de José Maria na edi-
toria da revista Utopia, com primeiro número publicado
em 1995, e na fundação da associação cultural A vida, ini-
ciada em 1994. Mas não só. Em 1988, o Zé Maria vem
pela primeira vez ao Brasil. O impacto com essas paragens
no Recife o deixa extasiado. Assim como ressalta sua ida
a Florianópolis no meio do ano de 1992. Mas o acon-
tecimento decisivo ocorre em agosto de 1992, no teatro
TUCA, em São Paulo, com sua presença no Encontro do
pensamento libertário internacional - outros 500, quando a
PUCSP ainda fervia.

Expansão de vida.
O querido Zé Maria é uma presença de saúde imensa
e incessante no nu-sol e na verve. Uma saúde amiga sem
tamanho nem medida na nossa existência.
O livro continua. Para além desta resenha. Na canção,
coração é o quintal da pessoa. E há momentos na vida que,
como diz o dito popular, coração é terra aonde ninguém vai.
Ouviu o farfalhar das folhas?
O Zé? O Zé é todo coração.

verve, 44: 251-255, 2023 255


44
2023

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária.

hypomnemata, boletim eletrônico mensal, desde 1999;

flecheira libertária, semanal, desde 2007;

observatório ecopolítica, desde 2015;

cinem@ nu-sol, desde 2023;

Aulas-teatro

Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007;

Eu, Émile Henry, outubro de 2007;

FOUCAULT, maio de 2008;

estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009;

limiares da liberdade, junho de 2009;

FOUCAULT: intempéries, outubro de 2009 e fevereiro de 2010;

drogas-nocaute, maio de 2010;

terr@, outubro de 2010 e fevereiro de 2011;

eu, émile henry. resistências., maio de 2011;

LOUCURA, outubro de 2011;

saúde!, maio e outubro de 2012;

limiares da liberdade, maio e agosto de 2013;

anti-segurança, outubro/novembro de 2013 e fevereiro de 2014;

drogas-nocaute 2, maio de 2014;

a céu aberto. controles, direitos, seguranças, penalizações e


liberdades, novembro de 2014;

terr@ 2, maio de 2015;

libertárias, novembro de 2015;

LOUCURA, maio de 2016,

A Revolução Espanhola, novembro de 2016.

a segurança e o ingovernável, maio de 2017;

greve geral em são paulo, 1917, 21 e 22 de novembro de 2017, 6 e 7 de


dezembro (Teatro Ágora-SP);

estamos todos presos. estamos?, 11 e 12 de junho de 2018;

68: invenções e resistências, 16 e 17 de setembro de 2018;

hécuba, de eurípides, 6 e 7 de maio de 2019;

256
verve

hécuba, de eurípedes 2, 7 e 8 de outubro de 2019.

DVDs e exibições no Canal Universitário/TVPUC (disponíveis em:


https://www.youtube.com/@nu-sol3478)

ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo; exibição de set


a out/2007, jan a mar/2008 e fev a abr/2009.

os insurgentes, edição de 9 programas; exibição de abr a jun/2008, jun a


ago/2008 e dez/2008 a fev/2009.

ágora, agora 2, edição de 12 programas; exibição de set a dez/2008, abr a


jun/2009 e jun a out/2009.

ágora, agora 3, edição de 7 programas; exibição de out a nov de 2010.

carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR, exibição de


out a nov/2010, 2011 e 2012.

ecopolítica-ecologia, exibição em ago/2012.

ecopolítica-segurança, exibição em nov/2012.

ecopolítica-direitos, exibição em abr/2013.

ecopolítica-céu aberto, exibição em dez/2015.

Vídeos

Libertárias (1999); Foucault-Ficô (2000); Um incômodo (2003); Foucault,


último (2004); Manu-Lorca (2005); A guerra devorou a revolução. A guerra civil
espanhola (2006); Cage, poesia, anarquistas (2006); Bigode (2008); Vídeo-
Fogo (2009).

CD-ROM

Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um


Incômodo).

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004

29 títulos.

Colóquio

colóquio internacional anarquistas na américa do


sul, agosto-setembro de 2021. https://youtube.com/c/
nucleodesociabilidadelibertarianusol.

Livros

ecopolítica. São Paulo, Hedra, 2019.

pandemia e anarquia. São Paulo, Hedra, 2021.

O abolicionismo penal libertário. Rio de Janeiro, Revan, 2021.

Os anarquistas na América do Sul. São Paulo, Hedra, 2022.

Os anarquistas na América do Sul, 2. São Carlos, Pedro e João


editores, 2022.

257
44
2023

recomendações para publicar na verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo


Conselho Editorial para possível publicação. Os textos enviados
à revista verve devem observar as seguintes orientações quanto à
formatação:

Extensão, fonte e espaçamento:


a) Artigos: os artigos não devem exceder 45.000 caracteres
contando espaços (aproximadamente 25 laudas), em fonte Times
New Roman, tamanho 12, espaçamento duplo.
b) Resenhas: As resenhas devem ter no máximo 14.000
caracteres contando espaços (aproximadamente 8 laudas), em
fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento duplo.

Identificação:
O autor deve enviar minicurrículo, de no máximo 03 linhas,
para identificá-lo em nota de rodapé, com endereço de e-mail
para contato.

Resumo:
Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 800
caractéres (aproximadamente 8 linhas) — em português e inglês
— e de três palavras-chave (nos dois idiomas).

Notas explicativas:
As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em
rodapé e não conter mais do que 4 linhas. Resenhas não devem
vir com notas explicativas.

258
verve

Citações:
Para as referências bibliográficas ao longo do texto, use:
(Sobrenome do autor, data), (Sobrenome do autor, data, página),
(Sobrenome do autor, data, on-line);
As referências bibliográficas devem estar ao final do texto
observando o padrão a seguir:

I) Para livros:
Sobrenome, nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora,
Ano.
Ex: Nascimento, Rogério. Florentino de Carvalho: pensamento
social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achiamé, 2000.

II) Para artigos ou capítulos de livros:


Sobrenome, nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade,
Editora, ano, páginas.
Montaigne, Michel de. “Da educação das crianças” in Ensaios,
vol. I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural,
Coleção Os pensadores, 1987, pp. 75-89.

III) Para obras traduzidas:


Sobrenome, nome do autor. Título da Obra. Tradução de
[nome do tradutor]. Cidade, Editora, ano.
Ex: Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Tradução de
Salma T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

259
44
2023

IV ) Para textos publicados na internet:


Sobrenome, nome do autor ou fonte. Título. Disponível em:
http://[endereço da web] (acesso em: [data da consulta]).
Ex: Lévi-Strauss, Claude. Pelo 60º aniversário da Unesco.
Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/
indexn1.htm. (acesso em: 10/10/2022).

As contribuições devem ser encaminhadas por meio eletrônico


para o endereço nu-sol@nu-sol.org salvos em extensão “.docx”.

Revista Verve
Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol)
Informações e programação das atividades do Nu-Sol:
www.nu-sol.org

260
cinem@
nu-sol
visite:
https://www.youtube.com/@nu-sol3478

Você também pode gostar