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Crime e guerra no Brasil contemporâneo

Vera Malaguti Batista(*)

Se aceitarmos o giro epistemológico proposto por Massimo


Pavarini sabemos que para entender a questão criminal temos que decifrar a demanda
por ordem de cada conjuntura histórica1. Uma análise da questão criminal no Brasil
contemporâneo exige que voltemos um pouco no tempo.

Ao longo de mais de trinta anos do fim do ciclo militar ao sul da


América pudemos observar uma crescente obsessão pela "segurança pública". Nilo
Batista já nos alertou quanto ao perigo desse campo estar comprometido "com a
imposição de penas, ou seja, a serviço da inflição autorizada e medida de dor a uma
pessoa humana"2. Ele aponta como Stuart Mill afirmava que o primeiro elemento do
sentimento de justiça residiria no desejo de punir. "Tive ganas de responder: justiça é há
séculos a palavra mais pronunciada nas proximidades de todos os cadafalsos no
ocidente cristão".3

“A segurança é o supremo conceito social da sociedade civil, o conceito


de polícia, segundo o qual toda a sociedade existe apenas para garantir a
cada um de seus membros a conservação da sua pessoa, dos seus direitos
e da sua propriedade (...) Pelo conceito de segurança a sociedade civil não
se eleva acima de seu egoísmo. A segurança é, antes, o asseguramento
deste egoísmo.”4

Nilo Batista mostra o fracasso da segurança como bem jurídico e a


sua expansão às custas das garantias individuais ou da segurança individual... É por esta

(*)
Professora Adjunta de Criminologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Secretária Executiva
do Instituto Carioca de Criminologia.
1
PAVARINI, Massimo. Control y Dominación: teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemónico.
México: Siglo Veintiuno editores Argentina, 1983.
2
BATISTA, Nilo. Criminologia sem segurança pública. In Revista Derecho Penal y Criminología. Buenos
Aires, 2013, ed. La Ley: v. 10, pp. 86-92.
3
Op. cit. p.5.
4
MARX, Karl. Para a Questão Judaica, trad. J. B.-Moura, S. Paulo, 2009, ed. Exp. Popular, p. 65.
1
razão que os governos do campo da esquerda que tiverem conhecimento da ampla e
histórica reflexão crítica sobre a questão criminal devem tentar construir políticas
públicas de contenção e redução de danos do poder punitivo e não expandi-lo através de
modulações e modernizações.

Na sua reflexão sobre segurança, território e população, Foucault


percorre a Alemanha e suas dificuldades no período da unificação que produziram um
sentido equivalente da ciência da política e da ciência da polícia, polizeiwissenschaft5.
Para o autor este deslizamento de sentido vai fazer surgir o "estado de polícia" destinado
ao controle da circulação de mercadorias mas também das formas de coexistência: "um
imenso domínio que vai do viver ao mais que viver"6.

Ao longo de mais de vinte anos de pesquisa pudemos observar a


crescente demanda por segurança pública, proporcional à crescente insegurança
produzida pelo capitalismo contemporâneo. Carlos Magno Nazareth Cerqueira
escreveu sobre o seu assombro com a "remilitarização da segurança pública" já em
curso apenas dez anos após a "redemocratização" no Brasil7. Podemos demarcar aí a
rápida passagem dos projetos no sentido de novas políticas públicas no setor para uma
crescente ânsia de segurança ancorada nos medos históricos advindos da paisagem da
memória escravista8. O Rio de Janeiro foi um dos centros do escravismo brasileiro e o
medo branco foi sempre o grande vetor de políticas de truculência e extermínio contra a
movimentação da população afrodescendente pelas ruas da cidade. Suas estratégias de
sobrevivência, resistências e suas próprias existências foram sempre alvo de
corporações policiais brutais e brutalizantes. A tortura e morte dos corpos negros é uma
permanência histórica de longa duração em nossa história e uma espécie de paisagem
natural do nosso cotidiano.

5
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 422.
6
Op. cit. p. 439.
7
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Remilitarização da Segurança Pública: a Operação Rio.
Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia,
1996, ano 1, nº. 1, 1º sem, pp. 141-168.
8
BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: Dois Tempos de uma História. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.
2
Nesse cenário, a criminologia positivista impôs-se como uma
cultura a partir do deslizamento semântico entre a saúde e a salvação no discurso
jurídico e político luso-brasileiro desde o século XVIII9. Essa perspectiva salvacionista
tão presente nos dias de hoje trabalha a pena como remédio contra as imagens de
desordem provenientes da mentalidade racista e colonial da nossa história. Nilo Batista
já nos havia chamado a atenção para as permanências históricas da inquisição ibérica
em nosso sistema jurídico-penal e como elas são convocadas em momentos de crise
tendo a tortura e a delação como método, a execução penal como catarse com a
exprobação dos suspeitos ou condenados, tudo isso costurado pelo dogma da pena como
solução mágica para todos os conflitos.

Nos anos noventa assistimos no Brasil ao que Wacquant analisou


como articulação das políticas econômicas e assistenciais do projeto neoliberal com o
que chamamos de adesão subjetiva à barbárie, trabalhando o conceito de barbárie em
Marx como excesso de civilização e não seu contraponto10. À crescente demanda
coletiva por castigo e punição se associa a "expansão e reorganização da prisão e seus
tentáculos institucionais que reformaram a paisagem sócio-simbólica”. Na direção da
direita e também da esquerda assistimos à proliferação de novos projetos de segurança,
expandindo as teias de controle para além do sistema penal, de uma forma invasiva e
capilarizada a partir dos seus arautos, "empresários morais atípicos"11.

Temos observado nesses trinta anos de pós-ditadura como


passamos da resistência à truculência policial à sua naturalização e agora ao seu
aplauso. A "guerra contra as drogas" foi um vetor fundamental no processo que
denominamos de constituição do sujeito matável. O historiador francês Jean-Pierre
Baud afirma que para que aconteça o genocídio, é necessário um sistema de legalidade
científica dominado por uma teologia e que essa política seja apresentada para defender

9
BATISTA, Vera Malaguti. O positivismo como cultura. In Passagens – Revista Internacional de História
Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro: UFF, 2016, pp. 293-307.
10
Adesão subjetiva à barbárie. In Vera Malaguti Batista (org.) Loïc Wacquant e a questão penal no
capitalismo neoliberal; Rio de Janeiro: Revan, 2012.
11
SCHEERER, Sebastian. Atypische Moralunternehmer, Kritische Kriminologie heute, em KriTJ, 1986,
anexo 1, pp. 133 ss. Sebastian Scheerer se utiliza do conceito de empresários morais em Howard
Becker para fazer uma crítica à demanda por pena e criminalização dos movimentos sociais,
alcunhados por Maria Lúcia Karam de Esquerda Punitiva.
3
o "ser coletivo"12. Zaffaroni demonstra como a letalidade dos sistemas penais latino-
americanos produz massacres a conta-gotas que acabam configurando genocídio,
através de discursos legitimantes do extermínio13.

Ao tratar, ainda nos anos noventa, a guerra contra as drogas numa


perspectiva geopolítica, Rosa del Olmo compreendeu a importância dessa empreitada
estadunidense na transição das ditaduras para os regimes "democráticos" do Cone sul14.
No Brasil a escalada bélico-penal é introduzida no período mais duro do governo militar
para ser conduzida na direção do que Nilo Batista nomeou como "política criminal com
derramamento de sangue”15. Olmo já nos havia demonstrado as características dessa
empreitada: militarização crescente das polícias, agora treinadas nos Estados Unidos,
estratégias de conflitos de baixa intensidade (a partir da experiência da derrota para o
Vietnam), o deslocamento do inimigo público do guerrilheiro para o traficante, a
demonização da América Latina como território produtor de coca e cannabis... mas ela
também demonstra como essa guerra reconfigura até os serviços de saúde através de
pautas de atendimento impostas, que nunca foram baseadas em estudos regionais sobre
os problemas de saúde pública de nosso continente.

O mais impressionante seriam as técnicas de neutralização da


grande mídia corporativa que sustenta essa economia de guerra, levando a que o grande
público não perceba que toda essa parafernália bélica só aumentou a produção, a
comercialização e o consumo das substâncias alcançadas pelo proibicionismo, bem
como o aumento da violência. Trata-se de uma política pública que não apresenta
nenhum sucesso em seus objetivos mas que se mantém por uma espécie de adição
subjetiva que legitima mortes pelos órgãos policiais. No ano de 2018 a intervenção das
forças armadas no Rio de Janeiro ostentou o número aberrante de cerca de 1.500 mortos
em confronto com a polícia. Seria a morte nas favelas e a contenção violenta dos pobres
seu principal objetivo? Há mais de vinte anos pesquisamos os efeitos dessa guerra na

12
BAUD, Jean-Pierre. Genèse Institutionalle du Genócide. In: Olff-Nathan, Josian (org.). La Science sous
le Troisème Reich. Paris: Seuil, 1993.
13
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo:
Saraiva, 2012.
14
OLMO, Rosa del. Geopolítica de las drogas. In Revista de Análisis, Medelín: junho de 1998.
15
BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In Rev. Brasileira de Ciências
Criminais, S. Paulo, - ano 5, nº 20, out./dez.1997, ed. RT, p. 129.
4
juventude pobre do Rio de Janeiro: a disseminação do uso de cocaína trouxe como
contrapartida o recrutamento da mão-de-obra jovem para a sua venda ilegal e constituiu
núcleos de força nas favelas e bairros pobres do continente. Aos jovens de classe média,
que a consumiam, aplicou-se sempre o estereótipo médico e aos jovens pobres, que a
comercializavam, o estereótipo criminal. Este quadro propiciou um colossal processo de
criminalização de jovens pobres que hoje superlotam os sistemas de atendimento aos
adolescentes infratores e as prisões.

Na constituição do sujeito matável é fundamental assinalar a visão


seletiva do sistema penal e as diferenças no tratamento das equipes técnicas quanto aos
jovens pobres, pretos e moradores de favelas. O olhar das equipes técnicas vai sempre
ressaltar a “desestruturação” das famílias, a periculosidade dos seus locais de moradia e
a demonização dos trabalhos ou estratégias de sobrevivência desses jovens. Essa
polifonia de discursos vai transformar populações inteiras em alvos de operações
militares truculentas. Essa visão vai erigir uma mentalidade quanto à letalidade policial
e uma aceitação da resolução penal para os conflitos sociais, de adesão subjetiva à
barbarie16.

Ao desenvolver a crítica do capitalismo em tempos de catástrofe,


Marildo Menegat analisa o desenvolvimento da sociedade burguesa imbricada com a
ideia da forma de vida em permanente progressão, construindo um modo
completamente reificado da memória da linha do curso. O capitalismo seria, então, uma
bem sucedida forma de controle da destrutividade, ancorada no mito do monopólio do
uso legítimo da violência pelo Estado. No entanto, o que se observa é que a revolução
da técnica se associa historicamente à ideia de progresso e a uma "assombrosa força
destrutiva". Os canhões construídos na conjuntura das guerras europeias entre os
séculos XVI e XVII potencializaram a revolução industrial e a fé no progresso a partir
da produção de valor17.

16
Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro. Revan, 2003 e Adesão subjetiva à barbárie. In Vera Malaguti Batista (org.) Loïc Wacquant e
a questão penal no capitalismo neoliberal; Rio de Janeiro: Revan, 2012.
17
MENEGAT, Marildo. A Crítica do Capitalismo em Tempos de Catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio
no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
5
O que ficou oculto nesse processo seria a maneira como a
necessidade lógica do progresso seria seu reverso, a regressão. A partir da grande crise
do capital na década de setenta do século XX nenhum estado nacional pôde bancar o
formato de bem estar social ou welfare state. Loïc Wacquant demonstra essa passagem
analisando o grande encarceramento, a passagem do estado social para estado penal nos
Estados Unidos dos anos oitenta18.

Marildo Menegat cita Agamben e o estado de exceção imposto


pelos monopólios econômicos no século XX, da crise de 1929 até a consolidação do
capitalismo vídeo-financeiro. A emergência militar se impõe em várias formas,
principalmente naquilo que Rosa del Olmo investigou como “conflitos de baixa
intensidade”. A I e a II Guerra Mundial foram fundamentais para o "progresso"
industrial dos Estados Unidos e da Alemanha.

Essas transformações aportam novas discussões sobre a teoria


marxista com relação à forma valor medida no tempo do trabalho social. O pós-
industrialismo aportaria novas categorias de trabalho imaterial, acirradas pela tendência
à automação nas técnicas de produção. Talvez essa fosse uma dificuldade política para o
reconhecimento de uma nova classe trabalhadora, com cara de lumpen, desorganizada e
sem consciência de classe.

Para nós no Rio de Janeiro o formato da guerra como política é


uma realidade concreta e palpável. No Brasil como um todo a retórica bélica se
apresenta na forma de diferentes "combates", contra a corrupção, contra as drogas,
contra o crime. Esse léxico pontua e funda a discursividade dos magistrados e
promotores, além da transformação de todos os níveis de polícia em combatentes, à
imagem das ocupações ocidentais do Oriente Médio. Esse deslizamento de uma intensa
policização para uma intensa militarização (até da polícia civil) tem efeitos no direito e
no processo penal como atestam os mandados de busca e apreensão coletivas nas
favelas "inimigas". As democracias burguesas se convertem rapidamente em máquinas

18
WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:
Revan,
6
de guerra. As estratégias de congelamento dos gastos públicos em educação e saúde se
contrapõem à concentração de investimentos nas batalhas da segurança pública.

A grande verdade é que a financeirização da economia


impossibilita a expansão de direitos, como atestam os trinta milhões de brasileiros fora
do mercado de trabalho e sem perspectiva de retorno. O caminho da flexibilização dos
direitos do trabalho e os questionamentos sobre a previdência são sinais dessa regressão.
No Brasil dos noventa, após a nova Constituição, a esquerda foi tomada por uma fé na
judicialização da vida e no protagonismo do judiciário e do ministério público para a
conquista de direitos. O problema é que a garantia do custo da moeda, a estabilização
monetária, vai corroendo as possibilidades de avanço nesse sentido. Como diria
Francisco de Oliveira, a moeda é o conversor público de todas as violências19.

Pensando as condições das mulheres periféricas em tempos de


catástrofe, Scheilla Nunes Gonçalves busca articular uma teoria da crise do patriarcado
capitalista, ancorada na crítica do valor-dissociação. Ela analisa a violência sexista, o
racismo e a criminalização da pobreza na condição das mulheres periféricas em tempos
de catástrofe20.

Para a autora é fundamental não só o esforço de compreensão das


categorias fundamentais que constituem essa forma social mas, sobretudo, estudar e
chamar atenção para o que fica à sombra de seu processo de desenvolvimento e que fica
mais nitidamente exposto no atual contexto de crise. A tese do valor-dissociação
argumenta que os conceitos de “valor” e de “dissociação” se encontram num mesmo
nível de abstração teórica e formam em conjunto a conceituação essencial (e
contraditória) da modernidade. Assim, se a formação teórica da modernidade abstrata e
universalista se relaciona, desde o Iluminismo, apenas à estrutura interna da forma-
mercadoria, determinada pelo ocidental branco e masculino, o que é dissociado dela se
torna estruturalmente inferior, privado de conceituação e excluído da lógica de
valorização. Desta forma, dinheiro, ciência, tecnologia, Estado e guerra são esferas que
19
Cf. Marildo Menegat, op. cit.
20
GONÇALVES, Scheilla Nunes. Mulheres dos escombros: a condição das mulheres periféricas em
tempos de catástrofes. Tese doutoral, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, março de 2018.
7
se constituem como espaços masculinos reservados especialmente ao homem branco
ocidental e orquestram o processo de valorização do capital.

Ela nos fala do quadro de colapso social do capitalismo que se


expressa na fome, nos extermínios étnicos, nos deslocamentos migratórios, no aumento
da violência contra a mulher, no encarceramento em massa e na catástrofe climática. A
barbárie incide nos “grupos humanos que são o outro do valor, ou seja, a humanidade
não-branca ocidental e as mulheres”. Ela trata também da relação entre o patriarcado
produtor de mercadorias e a guerra. A guerra é protagonista fundamental do capitalismo
contemporâneo.

Esse processo incide na paisagem urbana, tem efeitos na cidade


instituindo a demonização e criminalização dos lugares. Refletindo sobre o processo de
gentrificação, Pedro Cláudio Bocayuva menciona uma "guerra de trincheiras" que
constitui o pano de fundo da dominação urbana pelo capital, alimentada pela força da
segregação e destruição na produção de espaços criminalizados e portanto,
neutralizáveis. Para ele a questão urbana da modernização é substituída pela questão
policial no sentido dos usos espaciais. "O projeto de cidade se transforma por meio de
um exercício sobre uma imagem que parte da ideia de vazio de lugares, manejando as
forças de desterritorialização, abrindo para o desencaixe de populações e sua divisão e
realocação como condição do processo de valorização pela via de experimentação"21.

O Rio de Janeiro tem sido uma espécie de laboratório de políticas


de segurança pública. Ao analisarmos o medo como condutor histórico de políticas de
apartação e segregação, pudemos observar como uma cidade fundada sobre a
aniquilação dos povos originários e centro do regime escravocrata produz fantasmas que
assombram e questionam as políticas de ordem urbana. A cidade aparece como
monumentum, registro da memória de lutas entre a cidade-esconderijo e a cidade
armadilha. No século XIX o Rio de Janeiro concentrou uma população de africanos
escravizados que constituía a maior parte dos seus habitantes. As elites brancas temiam
as rebeliões escravas e a perspectiva do haitianismo assombrou os brancos proprietários
21
BOCAYUVA, Pedro Cláudio. A gentrificação forçada: acumulação primitiva e poder simbólico do capital.
In Segregações, Violência e Subjetivações. Rio de Janeiro: Revan, no prelo.
8
de todo o continente22. As políticas de segurança e a própria fundação da polícia no
Brasil, a partir da corte do Rio de Janeiro, foram construídas sobre o medo dos
escravizados. Um trecho de um editorial de jornal local do século XIX traduz o que
viria a ser a matriz fundacional da polícia brasileira: "... termos huma força armada
sufficiente, que pela sua disciplina, gente escolhida de que se compozer, nos inspire
confiança, e aos escravos infunda terror."23. Essa é até hoje a base das demandas por
ordem de uma sociedade rigidamente hierarquizada e desigual que não pode superar seu
passado escravocrata. A letalidade policial é a maior expressão disso quando
constatamos que o perfil de seus mortos é sempre o mesmo: jovens negros e pobres.
Assim, vemos em nossa história uma espécie de metamorfose dos motivos dessa
letalidade, seja pelas estratégias de sobrevivência, seja pela cultura, seja pelas formas de
luta e resistência... mas o alvo da brutalização é sempre a mesma população através dos
tempos.

A constituição do sujeito matável é então produto de uma cultura


de longa duração, quebrada apenas em alguns breves períodos em que governos
populares tentaram lidar com os medos de outra forma. Essa forças políticas acabaram
sendo demonizadas junto com suas bases, e o campo conservador e a grande mídia
corporativa produziram uma espécie de macabro consenso em que políticas de direitos
humanos eram (e são!) lidas como leniência e incentivo ao crime... É sempre
fundamental que as forças policiais "infundam terror". Essa escalada da militarização
que se apresentou logo após a redemocratização e que teve a guerra contra as drogas
como seu grande vetor, teve um grande influxo quando o Rio de Janeiro foi apresentado
ao mundo como a cidade-mercadoria do capital desportivo transnacional. Implantaram-
se aqui as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), baseadas num modelo
estadunidense e israelense de ocupação de territórios inimigos. Vendidas como projeto
social elas intensificaram a presença da polícia militar nas favelas estratégicas para os
eventos da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Cerca de 70 000 moradores de favelas
foram removidos sob o argumento das obras de infraestrutura. Os governos do PT
foram parceiros dessa empreitada empregando as forças armadas na ocupação das
favelas e também ampliando os projetos de expansão do encarceramento e de guerra às
22
O medo da revolução haitiana assustou os proprietários brancos ao longo do século XIX.
23
O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: Dois Tempos de uma História, p.192.
9
drogas. A esquerda tradicional parece ignorar solenemente toda a crítica feita à questão
criminal e à prisão pelos teóricos marxistas e críticos como Pashukanis, Rusche e
Bonger e seus seguidores, que são muitos na América Latina.

Ao analisar o papel macroeconômico da política criminal bélica no


Rio de Janeiro, Gabriel Salgado demonstra a captura do Estado para a máquina de
guerra neoliberal no século XXI: "com o estouro da bolha especulativa em cima do
preço dos commodities não há mais espaço para nenhum tipo de concessão social, o
Brasil ingressou na era pós-gestão da barbárie"24. Ou seja, a partir de 2004 os gastos
com segurança pública ultrapassam o gastos em saúde e educação. O Rio de Janeiro
atravessou (e atravessa) uma grave crise econômica, com dificuldades de pagamento de
seus servidores, hospitais e escolas abandonadas mas com uma nova intervenção
milionária das forças armadas que durou um ano e que apresentou, como dissemos
anteriormente, 1.500 mortos pelas forças de segurança.

A criminologia contra-colonial aponta uma saída para o paradoxo


que se apresenta. Nós que analisamos a questão criminal devemos servir à manutenção
da ordem no capitalismo ou servir de dique utópico à barbárie? Biko Agozino, a partir
da margem africana, afirma que a consequência imediata do modelo descolonizador
seria o deslocamento do foco da punição para a reparação do holocausto contra os
nativos e escravizados na África, nas Américas, na Austrália, na Nova Zelândia e contra
os povos do Oriente Médio25.

No caso brasileiro a realidade nos incita a percorrer e inventar


outros caminhos. A regressão proveniente dos erros de um progressismo acrítico nos
apresenta um cenário desolador de expansão da barbárie: aprofundamento da
militarização da vida cotidiana e pauta neoliberal na economia. Para uma conjuntura de
retrocesso o livro de Jean Tible, Marx Selvagem, nos incita a construir novos
arcabouços teóricos e novas práticas a partir do marxismo como uma teoria das lutas
dos povos oprimidos. Ele propõe um diálogo entre o conceito de abolição do Estado em

24
MEDEIROS, Gabriel Salgado Lacerda. Guerra sem fim: o papel macroeconômico da política bélica
neoliberal no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fevereiro de 2019, p. 132.
25
AGOZINO Biko, Counter-colonial criminology: a critique of imperialist reason, London, Pluto Press,
2003.
10
Marx e o de sociedade contra o Estado em Clastres26. Para tanto ele trabalha os cadernos
etnográficos de Marx, compostos de anotações sobre os escritos do antropólogo
estadunidense Henry Morgan, que se deteve sobre as práticas políticas para além da
Europa Ocidental. Tible se vale também do pensamento do peruano Mariátegui. Através
do perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro ele produz esse encontro entre Marx e
a América Indígena a partir da diferença entre perspectiva e representação. Talvez o
melhor exemplo seja o que ele nos apresenta como o discurso cosmopolítico de Davi
Kopenawa, liderança Yanomami da Amazônia brasileira. Kopenawa trabalha a
predação branca como crítica da atividade econômica dos brancos baseada no fetiche do
ouro, na "fumaça do ouro", ele teme que "essa euforia da mercadoria nunca tenha
fim"27, fazendo um apelo contra a "predação generalizada do Povo da mercadoria"28.
Para Kopenawa, meio ambiente são as terras que não foram cercadas, contrapondo à
propriedade privada a inteligência coletiva e as lutas dos povos indígenas no Brasil.

Nossa tarefa, então, é fazer dessa criminologia em tempos sombrios


uma teoria das lutas dos nossos povos contra o poder punitivo, colonialista e
racializante. Nem os povos indígenas e nem os povos africanos que constituem nossa
nacionalidade trabalhavam o castigo, a pena, como regulador de problemas ou conflitos
comunitários. No grandioso romance de Alejo Carpentier, O Século das Luzes, vemos
como o iluminismo chega ao Caribe com a guilhotina. Ao invés de assimilarmos
projetos de segurança pública a partir dos países centrais, reproduzindo uma espécie de
auto-colonização, nos atiramos à proposta de Zaffaroni de trabalhar a questão criminal
através das palavras dos nossos mortos, estudando a nossa realidade fora dos esquemas
teóricos de atendimento à demanda por ordem do capitalismo que só tem a nos oferecer
a guerra contra nós mesmos29. Só assim poderemos desmontar a histórica constituição
do sujeito matável.

Referência bibliográfica:
Poder Patriarcal y Poder Punitivo: diálogos desde la crítica latinoamericana. Gabriela L.
Gusis e Laura Farb (coords.). Buenos Aires: Ediar, 2020, pp. 299-312.

26
TIBLE, Jean, Marx selvagem. São Paulo: Annablume editores, 2013.
27
TIBLE, p. 248.
28
TIBLE, 243.
29
A Palavra dos Mortos, cit.
11

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