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Os Doentes Do Doutor Garcia - Almudena Grandes
Os Doentes Do Doutor Garcia - Almudena Grandes
Título original:
Los Pacientes del Doctor García
© Almudena Grandes, 2017
Published by agreement with Tusquets Editores, Barcelona
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67975-8
Para o Luis.
Outra vez, e nunca serão bastantes
Hoje, quando da tua terra já não necessitas,
Ainda nestes livros te é querida e necessária,
Mais real e entressonhada que a outra;
Não essa, mas aquela é hoje a tua terra.
A que Galdós a conhecer te dera,
Como ele tolerante de lealdade contrária,
Segundo a tradição generosa de Cervantes,
Heroica vivendo, heroica lutando
Pelo futuro que era o seu,
Não pelo sinistro passado aonde à outra voltaram.
Hospital de sangue
É 25 DE JULHO DE 1936 E JOHANNES BERNHARDT ESTÁ EM BAYREUTH.
O compositor Richard Wagner, a quem esta pequena cidade do
Leste da Alemanha deve a sua fama universal, tem muito que ver
com a visita de Bernhardt. De facto, o carro que o trouxe de
Munique detém-se justamente diante da fachada de Wahnfried, a
bela villa que o músico aqui construiu graças ao patrocínio do Rei
Louco, Luís II da Baviera.
Em 1936, a proprietária de Wahnfried é Winifred Wagner, viúva e
herdeira de Siegfried, único filho varão do compositor, cujo corpo lhe
deu quatro filhos antes de a alma se entregar a outro amor. O
acontecimento mais importante da sua vida dá-se em 1923, quando
um jovem enérgico de trinta e quatro anos se apresenta à família
Wagner, depois de assistir a um espetáculo do Festival de Bayreuth.
É o líder do Partido Nacional-Socialista Operário Alemão, mas o
motivo da sua visita não é político. Está convencido de que não
existe obra comparável à de Richard em toda a história da música e
quer manifestar o seu fervor aos herdeiros do compositor. Em
segundo plano, a jovem esposa de vinte e seis anos assiste a esta
declaração apaixonada que lhe inspira uma paixão ainda mais
desmedida. Desde esse momento, Winifred vive exclusivamente por
e para Adolf Hitler.
Durante mais de uma década, a amizade íntima do Führer com
Winifred Wagner faz circular na Alemanha todo o tipo de rumores.
Johannes Bernhardt conhece-os decerto, e a sua ignorância acerca
da percentagem de verdade que terão talvez lhe aumente o
nervosismo, na antessala onde espera pela chegada do casal, que
assiste nesse momento a uma representação impecável de
Siegfried. Dali não se ouve a orquestra, as vozes dos intérpretes
que conseguiram arrancar Hitler de Berlim, trazendo-o uma vez
mais ao Festival de Bayreuth e à hospitalidade amorosa de Frau
Wagner. Johannes Bernhardt fez uma viagem muito mais longa para
estar ali.
Até à manhã de 23 de julho de 1936, a trajetória deste
empresário alemão de trinta e nove anos é uma sucessão anódina
de fracassos. Sem perspetivas no seu país, na primeira metade dos
anos trinta, emigra para Espanha, mas também não tem sorte na
Península. Vai procurá-la no Protetorado espanhol de Marrocos e
fixa residência em Tetuão, onde não consegue nada melhor do que
um emprego numa empresa alemã de importação e exportação.
Mas Bernhardt, membro veterano do Partido Nazi, opera também
em Tetuão como o homem da AO – Auslandsorganisation der
NSDAP –, a organização exterior do seu partido, mantendo
excelentes relações com o marechal Hermann Göring. Assim, a 17
de julho de 1936, a sublevação do exército espanhol em Marrocos
oferece-lhe a oportunidade que procurou durante anos com muito
esforço e pouco sucesso.
Bernhardt apressa-se a entrar em contacto com os militares
rebeldes. Não é, longe disso, o único nazi a viver em Espanha, nem
sequer o único de Marrocos espanhol, mas é o mais rápido, o mais
audacioso, aquele que, por isso, obterá o favor da fortuna. Sem
outros argumentos, sem nenhuma garantia além da sua própria
veemência, oferece-se como intermediário entre os militares
golpistas e o próprio Führer, e essa bazófia mudar-lhe-á a vida para
sempre.
O primeiro golpe de sorte de Bernhardt reside no facto de o
comandante militar das Canárias ser, justamente, Francisco Franco.
O segundo no facto de este aceder a reunir-se com ele em Tetuão
na manhã de 23 de julho, apesar de não ser, nem de perto, o
principal cabecilha de uma rebelião dirigida pelo general Mola, por
delegação do general Sanjurjo – chefe supremo dos rebeldes, morto
num acidente de avião três dias antes. O terceiro é encontrar um
avião da Lufthansa disponível e convencer o piloto, Alfred Henke, a
levá-lo a Berlim com o chefe do Partido Nazi no Protetorado, Adolf
Langenheim, e o capitão de aviação Francisco Arranz Monasterio,
chefe das forças aéreas sublevadas em Marrocos. Uma vez
completa a tripulação, os membros tiram uma fotografia diante do
aparelho com que vão atravessar meia Europa. Nela, Bernhardt
posa com um sorriso e com um envelope na mão.
A partir desse momento, a sorte, outrora esquiva, alia-se
descaradamente a ele. Às cinco da tarde do próprio dia 23, o
Junkers JU-52 descola do aeródromo de Tetuão rumo a Sevilha,
onde Henke arrisca uma aterragem perigosa porque a pista de
Tablada carece de luzes de sinalização e o motor do aparelho está
com uma avaria. Reparada no próprio aeródromo, prossegue o voo
até Marselha, onde se previa o reabastecimento de combustível. Os
franceses exigem o pagamento em francos, Bernhardt e os
companheiros não conseguem cambiar dinheiro, parece que a
viagem termina ali, mas também esses problemas se resolvem,
novamente por milagre, conseguindo eles prosseguir até Estugarda,
apesar de Henke, inicialmente, se recusar a aterrar em solo alemão
com receio das represálias que a Lufthansa pudesse exercer contra
ele, um piloto civil que saiu da base sem autorização. De Estugarda,
o voo até à capital da Alemanha é um passeio.
Rudolf Hess, responsável máximo do NSDAP em Berlim na
ausência de Hitler, recebe Bernhardt – autoproclamado chefe da
expedição apesar de Langenheim ter um posto superior no Partido –
e decide apoiar a causa. Oferece aos recém-chegados a sua
avioneta particular e acompanha-os a Munique, onde os aguarda
um carro que os deixa em Wahnfried ao cair da tarde do dia 25 de
julho, enquanto Adolf Hitler desfruta da música de Wagner no
camarote da sua amiga Winifred.
Ela organizou uma pequena receção para o convidado, mas o
Führer está mais interessado na carta que Bernhardt lhe traz de
Tetuão. Escrita à mão pelo próprio Franco, o conteúdo não
ultrapassa meia folha, deixando espaço livre para a tradução. No
entanto, o portador, que se deu ao trabalho de a copiar, nunca a
verteu por escrito para alemão. No momento culminante da sua
existência, preferiu ler diretamente na sua língua materna estas
palavras de Francisco Franco.
Excelência,
O nosso movimento nacional e militar tem como obje vo a luta
contra a democracia corrupta no nosso país e contra as forças
destru vas do comunismo, organizadas sob o comando da Rússia.
Permito-me dirigir-me a V. Ex.ª através desta carta, que lhe será
entregue por dois senhores alemães que par lham connosco os
trágicos acontecimentos atuais.
Todos os bons espanhóis decidiram firmemente começar esta
grande luta, para o bem de Espanha e da Europa.
Existem severas dificuldades em transportar rapidamente para a
Península as experientes forças militares de Marrocos, por falta de
lealdade da Marinha de Guerra Espanhola.
Na minha qualidade de chefe supremo destas forças, rogo a V.
Ex.ª que me facilite os seguintes meios de transporte aéreo:
10 aviões de transporte com a maior capacidade possível; além
disso solicito:
20 peças an aéreas de 20 mm.
6 aviões de caça Heinkel.
A maior quan dade possível de metralhadoras e de espingardas
com as suas munições em abundância.
Também bombas aéreas de vários pos, até 500 kg.
Excelência,
Espanha cumpriu em toda a sua história os seus compromissos.
1
Institución Libre de Enseñanza. (N. da T.)
2
No dia 14 de abril de 1931, proclamou-se a Segunda República Espanhola. (N. da T.)
É 6 DE JANEIRO DE 1937 E CLARA STAUFFER ESTÁ EM SALAMANCA.
3
Pinche pendejo: grande imbecil (parvo, palerma). A palavra pinche tem inúmeras aceções
que dependem da utilização. Pode ser usada como aumentativo do substantivo ou adjetivo
que precede, ou individualmente, com o significado de maldito, péssimo, miserável,
insignificante… (N. da T.)
4
Chamaca: miúda. (N. da T.)
5
Ni modo: Não há nada a fazer. (N. da T.)
6
Órale: vamos lá. Outro vocábulo mexicano com inúmeros significados. Dependendo do
contexto, órale pode ser uma expressão de estímulo, de concordância, de alegria. (N. da
T.)
7
A poco? / a poco no?: não me digas; a sério. (N. da T.)
8
Cuate: amigo. (N. da T.)
9
Hijo de la chingada!: Grande filho da mãe. Vocábulo com inúmeras utilizações,
chingado/a é sempre utilizado para adjetivar de uma forma violenta e negativa qualquer
expressão. (N. da T.)
10
Pinche gachupín: espanhol de um raio. Gachupín, como galego, é usado no México para
designar os espanhóis. (N. da T.)
PORTUGALETE, 18 DE JULHO DE 1937
11
A sombra é um exercício praticado no boxe em que o pugilista treina golpes e
movimentos com um inimigo imaginário. (N. do E.)
MADRID, 19 DE NOVEMBRO DE 1937
Processos infecciosos
ANTUÉRPIA, 20 DE SETEMBRO DE 1941
12
Pebetas: raparigas. (N. da T.)
13
Pelotudo: tonto, estúpido. (N. da T.)
PALÁCIO DE POKROVSKAYA, FRENTE DE LENINEGRADO, NOITE DE NATAL DE
1942
14
¿Viste?: Sabes? Percebes? Bengala linguística usada na Argentina. (N. da T.)
15
Mina: miúda, rapariga. (N. da T.)
16
Plata: dinheiro ou riqueza na América do Sul. (N. do E.)
17
Pibe: rapaz. (N. da T.)
18
Boludo: estúpido, tonto. (N. da T.)
19
Referência a uma canção natalícia espanhola. (N. da T.)
20
Nome pelo qual são denominados os espanhóis, independentemente da sua origem, na
Argentina e em muitos outros países da América Latina. (N. da T.)
21
Forma de tratamento informal entre amigos. (N. da T.)
É 2 DE FEVEREIRO DE 1943 E JOSEF HANS LAZAR ESTÁ EM MADRID.
O assessor de imprensa da embaixada do Terceiro Reich em
Espanha sabe tudo. Sabe que, a 30 de janeiro, promovendo
Friedrich Paulus à patente mais elevada da escala de comando do
exército alemão, o Führer lhe recorda que nenhum marechal de
campo do seu país alguma vez se rendeu. Que essa nomeação
significa que Hitler espera que ele se suicide antes de se deixar
capturar. Que o marechal de campo Paulus acaba de se render em
Estalinegrado, entregando à União Soviética o que resta do VI
Exército depois de ter perdido cerca de duzentos mil homens, dos
quais quase dois terços morreram.
Lazar sabe sempre tudo e sabe que o mais provável é que em
Estalinegrado se tenha perdido a guerra, ainda assim a única coisa
que o preocupa hoje é conseguir que os espanhóis não o saibam.
Fá-lo admiravelmente, como de costume. Na capa do ABC de 3 de
fevereiro, aparece uma fotografia dramática a preto e branco das
ruínas da cidade soviética e, em caixa, sob o nome Estalinegrado,
um breve texto que equipara a resistência dos últimos soldados
alemães à façanha do desfiladeiro das Termópilas e, evidentemente,
à glória pátria do Alcácer de Toledo. Em lado algum surgem
palavras como rendição ou capitulação e muito menos o nome de
Paulus. A 4 de fevereiro, o ABC mente airosamente aos seus
leitores nas páginas interiores, garantindo que o VI Exército se
recompõe a grande velocidade após o revés de Estalinegrado. E, no
dia 5 de fevereiro, surge com três fotografias que ilustram o que um
título qualifica como campanha submarina triunfal das armadas do
Eixo no Atlântico. A imprensa espanhola comportou-se mais uma
vez como um coro de crianças inocentes sob a direção de Hans
Lazar.
Os diplomatas aliados, que nunca conseguem contrabalançar o
descarado tratamento de favoritismo que o Eixo recebe em Espanha
– teoricamente um país neutro –, propagam, após o fim da
contenda, que tudo não passou de uma operação de compra e
venda, mas isto é só parte da verdade. É verdade que Lazar, o
único diplomata alemão em Madrid que se mantém inalterável no
posto, agindo com idêntica eficácia sob as ordens de três
embaixadores sucessivos, sabe gratificar com generosidade os
jornalistas mais influentes de todas as redações. Porém, o facto de
os meios de comunicação que ele comprou não se terem vendido
mais tarde ao melhor licitador, quando uma volumosa lista de
generais franquistas já cobrava gratificações em libras esterlinas, é
mérito exclusivo de um homem fora do vulgar.
Josef Hans Lazar nasceu em 1895, em Istambul, filho de um
diplomata colocado na embaixada austríaca do Império Turco e de
uma albanesa, de origem, pelo menos em parte, judia. Hans mudou-
se para a Áustria na adolescência para completar os estudos,
bruscamente interrompidos em 1914 pela eclosão da Primeira
Guerra Mundial. As feridas graves sofridas em combate nas fileiras
do exército imperial austro-húngaro provocam-lhe dores crónicas e
dependência de morfina. Reintegrado na vida civil, em 1927, aceita
o cargo de correspondente da Deutsches Nachrichtenbüro, a
agência oficial alemã de notícias, em Bucareste. Ali conhece uma
jovem aristocrata romena, a baronesa Elena Petrino Borkowska,
com quem se casa em 1937. Em 1938, muda-se com ela para
Berlim e torna-se assessor de imprensa da embaixada da Áustria
perante Hitler. O governo do seu país escolhe-o para o cargo graças
à simpatia pública que nutre pelo nazismo, esperando que os seus
contactos lhe permitam trabalhar eficazmente na preservação da
independência austríaca, todavia, mal chega à capital alemã, Herr
Lazar dedica-se a fazer exatamente o contrário.
Baixo, rechonchudo e com uma pele muito escura, o novo
diplomata está filiado há anos no partido de Hitler, apesar de a sua
genealogia infringir todas as leis raciais. As origens nunca lhe trarão
qualquer problema. O Terceiro Reich contrai com ele uma dívida
impagável enquanto trabalha sob as ordens de Goebbels no
gabinete da embaixada austríaca, na qualidade de um apaixonado
propagandista da Anschluss, a anexação do seu país pelo Reich
alemão. Quando o processo se consuma, ele próprio comunica em
Viena aos correspondentes estrangeiros que o país dos seus
antepassados é agora mais uma região da Alemanha de Hitler.
Depois do sucesso obtido nesta missão, o Führer decide enviá-lo
para Espanha, onde ele viverá o resto da vida.
Em junho de 1938, Hans Lazar apresenta-se ao governo de
Burgos como correspondente da agência noticiosa Transocean,
fundada poucos anos antes para propagar os ideais da nova
Alemanha em Espanha e na América Latina. Após a vitória de
Franco, ocupa o cargo de assessor de imprensa da embaixada,
onde, a avaliar pelos comentários que circulam pela cidade,
depressa granjeia mais poder do que o próprio embaixador, o
estilizado, bem-parecido, altíssimo e totalmente ariano Eberhard von
Stohrer.
Apesar do evidente aspeto de judeu de leste e do tom aciganado
da sua pele, Hans Lazar transforma-se numa estrela fulgurante da
vida social de Madrid no pós-guerra. Cosmopolita, poliglota,
cultíssimo, sempre vestido com uma elegância extrema e com um
monóculo de ouro no olho direito, sobressai em qualquer salão
graças aos modos imperiais e à cortesia refinada. É um homem
extremamente astuto e tão inteligente que compreende a essência
do regime melhor do que qualquer outro diplomata de qualquer
nacionalidade. Além disso, Hans Lazar – Bam para os amigos – é
muito simpático, engenhoso, divertido. E a mulher, a baronesa
Petrino – Lenta, na intimidade –, uma grande cozinheira com
enorme sucesso nos jantares seletos que o assessor alemão
oferece em casa frequentemente. Aí, alguns jornalistas, escolhidos
entre os obscuros redatores madrilenos que dificilmente sobrevivem
com os seus salários, além de desfrutarem da requintada cozinha
de Frau Lazar enquanto bebem os melhores vinhos, têm a
oportunidade de conviver, de igual para igual, com grandes
personagens do governo franquista e outros diplomatas nazis,
convidados habituais, em cuja companhia se sentem superiores,
escolhidos para roçarem os dedos no verdadeiro poder.
Assim, as habilidades sociais dos Lazar compram mais
vontades, e mais lealdade, do que os envelopes que Hans distribui,
permitindo-lhe concretizar verdadeiras proezas, como infiltrar-se na
recém-criada agência EFE para difundir a opinião de Berlim na
América Latina ou apoiar-se noutras organizações espanholas sem
que ninguém consiga provar que a embaixada, e muito menos o seu
governo, está por detrás de tais operações. Enquanto vai criando a
opinião pública mais favorável ao Eixo entre os países neutrais,
Lazar trabalha também em benefício próprio. A miséria dos
espanhóis nos anos mais duros do pós-guerra oferece-lhe
oportunidades únicas para reunir uma grande coleção de obras de
arte.
Hans Lazar é a peça-chave e insubstituível da embaixada do
Terceiro Reich em Madrid durante a guerra e mesmo depois. Porque
possivelmente o serviço mais valioso, o mais importante que prestou
na sua vida à Alemanha nazi, se consuma a 5 de junho de 1945.
Nesse dia, quase um mês depois da capitulação de Berlim, os
representantes aliados conseguem finalmente entrar na sede da
embaixada alemã depois de ultrapassados os inúmeros obstáculos
burocráticos com que as autoridades franquistas adiaram o mais
possível esse momento, e o que encontram é um edifício que
parece ter sido saqueado. Não resta nada. Nem documentos, nem
registos de qualquer espécie, nem dinheiro, nem ouro, nem
antiguidades, nem as obras de arte que decoravam as salas dias
antes. Os cofres estão vazios, as paredes nuas, e nem sequer os
móveis sobreviveram à derrota.
A única coisa que os aliados ali encontram é um senhor muito
moreno, envolto num roupão de seda, que avança no corredor.
Quando lhe perguntam quem é e o que faz ali, Hans Lazar sorri,
identifica-se e esclarece que não faz nada de especial, uma vez que
a sua residência privada fica no próprio edifício.
E aquele sorriso é a única coisa que os aliados obtêm da
embaixada alemã em Madrid.
MADRID, 16 DE JULHO DE 1943
Tumores infiltrados
É DEZEMBRO DE 1949 E SAI EM PARIS O NÚMERO 50 DA REVISTA LES TEMPS
MODERNES.
Fundada em 1945 por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e
Maurice Merleau-Ponty, esta publicação toma o nome do filme de
Charles Chaplin – Modern Times –, que em 1936 mostra ao mundo
os efeitos da crise de 1929 sobre o grau de exploração dos
operários norte-americanos. Além da declaração de princípios
implícita no título, Les Temps Modernes é um projeto de conteúdo
político, literário e filosófico, impregnado do espírito da resistência à
ocupação nazi que os fundadores militaram. As suas páginas são o
lugar ideal para a pré-publicação de um livro intitulado La fin de
l’espoir. Numa nota que acompanha o texto, os leitores de Les
Temps Modernes descobrem qual é a esperança que está a chegar
ao fim.
E nunca me arrependi.
A história que ouvi metia medo, mas também era excitante, era a
coisa mais emocionante que me acontecia em sete anos, anos
longos como quinquénios, a pequena eternidade que havia
decorrido desde que abandonei o meu cargo no San Carlos. A
clandestinidade não me assustava. Embora não tivesse um cartão
de militante, nem outras armas senão os velhos instrumentos
médicos que passearam por meia Madrid numa pasta de escritório,
vivia como um militante clandestino desde a primavera de 1941. A
minha contribuição prática para a resistência tinha sido muito mais
relevante do que os meus contributos teóricos para a constituição da
UNE e, no entanto, nessa noite, enquanto dava voltas na cama
como um adolescente deslumbrado com o primeiro encontro,
compreendi que as reuniões em Ciudad Lineal poderiam ser mais
importantes do que tinha julgado.
– Como pensas chegar à Stauffer? – perguntei-lhe durante o
pequeno-almoço do dia seguinte. – Tens algum contacto com ela?
– Nenhum – confessou-me. – Agora o que mais me preocupa é
escolher uma identidade. Pensei que seria mais fácil, mas a Meg
está bastante desanimada, embora ainda não tenha terminado de
compilar informações. Quando decidir quem serei, teremos de
encontrar alguém que me apresente à Clarita, mas vá-se lá saber…
Isso também pode acabar por ser um problema.
– Talvez não. – Sorri. – Se calhar, posso tratar disso.
Manolo ergueu as sobrancelhas, olhando para mim com os olhos
muitos abertos.
– Tu conhece-la?
– Não, mas conheço uma mulher que a odeia.
Depois de estudarmos o calendário, escolhemos o dia 18,
quarta-feira, suficientemente próximo da noite de Natal para que em
casa dos ricos tivesse aumentado o tráfego de moços de recados e
visitantes, e suficientemente distante para que aqueles que
passavam o Natal nas suas regiões de origem estivessem ainda em
Madrid. Antes de sair do escritório, preenchi uma guia de remessa
com os dados de um envio fictício, sem especificar o conteúdo, e
meti-o num envelope juntamente com um dos meus cartões de
visita. Trabalhar na transportadora dava-me muita liberdade de
movimentos. Ninguém se admirava que eu saísse do escritório nas
horas de expediente, porque precisava muitas vezes de visitar
clientes ou supervisionar a carga ou a descarga de algum camião.
Tentava não abusar do privilégio e costumava atender os meus
pacientes durante o almoço, nas três horas que o meu horário
deixava livres. Essa não foi uma exceção.
Um empregado carregado com um grande cabaz de Natal, três
andares cobertos por celofane sob uma fita que não escondia os
dois presuntos pata negra, antecipou-se-me uns instantes ao
perguntar ao porteiro pelo apartamento dos senhores Maroto.
Quando lhe disse que ia para o mesmo sítio, observou-me durante
alguns segundos e apontou para o elevador principal. Chegado ao
terceiro, esperei um pouco, para dar tempo a que as criadas
aceitassem o cabaz, antes de tocar à campainha. Uma empregada
fardada, com as faces tão coradas como uma atleta acabada de
cortar a meta, abriu-me a porta.
– Ah! Espere um momento, já o trago… – Tinha começado a
correr na direção do corredor quando consegui reagir.
– Mas o que me vai trazer?
– A gorjeta de Natal. – A rapariga olhou finalmente para a minha
cara. – O senhor não é…? – E tapou a sua com o avental antes de
voltar para trás. – Ai, desculpe-me, confundi-o com o carteiro. É que
estamos tão atarefadas…
– Margarita! – Ouvi os saltos da dona da casa antes de lhe ouvir
a voz. – Quem é…?
María Eugenia León emudeceu de espanto ao ver-me à porta da
sua casa. Haviam passado mais de dois anos desde que nos
despedíramos pela última vez e eu não tinha a certeza de que ela
ficasse satisfeita por me ver, mas também não encontrei explicação
para a expressão de terror que se apoderou da cara dela enquanto
caminhava na minha direção, tão devagar como se cada perna
pesasse mais do que conseguia suportar.
– Rafa, que surpresa… – Estava muito elegante, perfumada,
arranjada para sair. – Feliz Natal. – Voltou-se para a criada e
apercebi-me de que lhe custava comportar-se com naturalidade,
impor-se ao tremor da sua voz. – Volta para a cozinha, Margarita, eu
atendo. É um velho amigo.
A corredora desapareceu num instante, e Geni voltou a cabeça
para se certificar disso antes de me dar um abraço protocolar,
distraído.
– Entra, por favor – acrescentou em voz alta e só depois de
fechar a porta continuou a falar num murmúrio. – O que aconteceu
ao Sito?
– Nada. – Permiti-me o alívio de sorrir por ter deslindado o
mistério, mas tive a precaução de me explicar num murmúrio tão
silencioso como o que ela escolhera. – Bom, nada pior do que
continuar na prisão de Ocaña à espera de um conselho de guerra.
Mas já sabias disso, calculo. Detiveram-no em Barcelona, quando
se preparava para passar a fronteira pela serra.
– Sim, já sabia disso, claro, mas é que, ao ver-te, pensei… – Fez
uma pausa, desatou a rir, abraçou-me outra vez, desta vez a sério, e
beijou-me nas faces. – Bom, agora sim, estou contente por te ver.
Numa noite de fevereiro de 1944, apenas duas horas depois de
nos conhecermos, saímos ambos da casa de Monzón em último
lugar. A inexplicável desconhecida que María Eugenia León era
então para mim estendeu-me a mão no gradeamento do jardim e
dirigiu-se para um carro estacionado em frente, mas deu a volta a
meio do caminho.
– Está uma noite péssima – comentou, e era verdade porque a
neve rala que caía parecia querer transformar-se de um momento
para o outro num bom nevão. – Para onde vais?
– Para o centro – respondi, consciente de que teria de andar um
bom bocado até à paragem do elétrico. – Para a calle Bilbau.
– Ah, somos vizinhos… – Abriu a porta do lado do condutor e
chamou-me com a mão. – Eu vivo na calle Almagro. Anda, eu levo-
te.
Não reagi imediatamente. O seu desembaraço não me
surpreendeu porque nos tínhamos conhecido numa reunião onde a
norma era tratar toda a gente por tu, porém, depois de me levar à
primeira, Pepe avisara-me para que tivesse cuidado. Aqui hás de
conhecer muita gente, disse-me textualmente, ainda assim, mesmo
que conspirem connosco, nem todos são de esquerda, ou até
republicanos, pelo que convém evitar familiaridades porque nunca
se sabe… De todas as pessoas que conheci em Ciudad Lineal,
ninguém encaixava melhor do que Geni nesse aviso, mas aceitei a
oferta dela pelo motivo insignificante de não ver nenhum motorista
dentro do carro.
– Uma mulher a conduzir – comentei, sentando-me ao seu lado.
– Há anos que não via uma.
– Não me surpreende. – Conduzia com uma grande destreza, os
olhos fixos no espelho da esquerda, sem parar de falar. – Eu deixei
de usar o carro porque estou farta de que olhem para mim como
para um macaco amestrado. Quando os miúdos começaram a gritar
comigo e a rir-se nas esquinas, deixei de conduzir, mas para vir
aqui… Pedi-lo ao motorista do meu marido não era viável.
– Imagino.
– Bom… Posso perguntar-te uma coisa? – Não esperou pela
resposta. – É que, ao ver-te, pensei… Tu não tens a pinta dos
outros que estavam lá dentro, sabes? E dei-me conta de que és
muito amigo do rapaz do dente torto, mas… – Parou por momentos
para escolher as palavras. – Não quero ofender ninguém, mas
naquela casa tinham todos pinta de operários ou de pequenos
funcionários públicos e o que quero dizer é que… Se calhar soa-te
mal na mesma, mas a verdade é que pareces um tipo de boas
famílias…
– Olha quem fala.
Aquele comentário fê-la rir-se com tanta vontade que o seu riso
me aproximou dela, como me tinha aproximado do dono da casa de
onde havíamos acabado de sair no dia em que a conheci.
– Pois, mas é que eu sou amiga do Sito há muitos anos. As
nossas famílias conhecem-se desde sempre, em miúdos
brincávamos juntos todas as tardes, no parque. Ele gosta de dizer
que foi o meu primeiro namorado…
Voltou-se para mim e calculei que fosse retificar o que tinha
acabado de dizer. Depressa aprenderia que essa era a forma
natural de se expressar, avançando dois passos e retrocedendo um,
sem nunca perder o fio à meada.
– Vejamos, eu devia ter doze anos e ele onze, ou por aí. Naquela
época, era muito mais espevitado do que eu, embora, com o tempo,
eu tenha melhorado bastante, essa é a verdade… Depois
frequentámos durante uns tempos o mesmo grupo, em Pamplona,
até que me calhou casar-me, e ele decidiu tornar-se comunista.
Nessa altura, deixámos de nos ver, mas continuámos a gostar muito
um do outro. Quando ele me convidou para vir aqui, não pensei
duas vezes, embora não perceba muito bem qual o meu papel em
tudo isto… Também és comunista?
– Não. – Sorri ao lembrar-me da Experta. – Mas sou, de facto,
um menino de boas famílias.
Na primeira noite, despedimo-nos à porta da casa dela. Na
segunda, ela convidou-me para subir e tomar um copo. Antes de
abrir a porta, pediu-me que não fizesse barulho para não acordar os
filhos e levou-me por um andar enorme, através de três grandes
salas que comunicavam entre si, até outra mais pequena, situada
perto do seu quarto.
– Vou ver como estão as crianças – disse-me, antes de apontar
para uma cómoda de madeira com embutidos, cujo aspeto não
denunciava o conteúdo. – Serve-te do que quiseres, já venho.
Quando regressou com o gelo, a única coisa que não tinha
encontrado naquele bar camuflado, atrevi-me a fazer-lhe a pergunta
por que ela esperava.
– E o teu marido?
– Em Paris.
Voltou-se, observando-me, enquanto se servia de uma bebida, e
reparei num fundo de amargura a pairar sobre o seu perpétuo
sorriso irónico, de mulher mundana, que até então havia
interpretado como um traço de personalidade.
– O meu marido está sempre em Paris.
Foi assim que ela me permitiu descobrir que aquela expressão
radiante era menos e muito mais do que parecia, a máscara
perfeita, muito bem maquilhada, atrás da qual a María Eugenia León
se escondia do mundo.
Estivemos juntos até às quatro e meia da manhã. Contou-me
que vinha de uma família de vinhateiros de La Rioja que sempre
repartira o seu tempo entre um andar em Pamplona e uma grande
propriedade rodeada de vinhedos, em Haro. Eu falei-lhe do meu
avô, diverti-a com a sua vida tripla de comissário da polícia,
dramaturgo respeitável e autor clandestino de textos para revistas
lascivas. Não lhe escondi o seu republicanismo, nem o meu, mas
também não lhe revelei os motivos que me haviam levado à reunião
daquela tarde, e ela não me perguntou. Quando nos despedimos,
ela disse-me que se tinha divertido muito, e eu respondi com a
verdade, porque me divertira tanto como ela. Por isso, na terceira
noite, quando entrámos no elevador, ela não carregou no botão do
segundo andar, mas no do sétimo.
– Este é o apartamento dos encontros do Esteban – explicou
com grande naturalidade enquanto abria a porta. – Ele não sabe
que eu tenho uma cópia da chave, mas, como está em Paris… Aqui
podemos falar alto sem incomodar ninguém.
Fizemos mais qualquer coisa e foi bom, prazeroso e superficial
para ambos. Comprovei que continuava preso à maldição da
Amparo, à lembrança daquela paixão que não conseguia comparar
com nenhuma outra e que bastava para envenenar a atração que
pudesse inspirar-me qualquer mulher no instante em que caíamos
nus numa cama. O sexo, depois da Amparo, tinha passado a ser
uma brincadeira de crianças, um passatempo previsível, cujas
regras eu conhecia e aplicava mecanicamente para obter uma
compensação minúscula em comparação com a que recordava,
como se, ao desaparecer da minha vida, ela tivesse levado para
sempre um ingrediente da minha natureza, mas não fui o único
amante incompleto no ninho de amor do senhor Maroto. A María
Eugenia León também não era totalmente dona de si. Aquela
mulher atraente, divertida e sensual, estava apaixonada pela vida,
não pela sua, que no encontro anterior havia partilhado comigo, mas
por outra, que lhe tinha pertencido antes de a perder e que nunca
mais recuperaria.
– Que tens aí dentro?
Antes de se despir, ela tinha tirado o relógio e os brincos, mas
mantivera uma corrente fina de ouro de onde pendia um pequeno
medalhão ovalado que lembrava as joias antigas que escondiam
uma madeixa de cabelo. Enquanto se movia em cima de mim, vira-o
dançar, bater-lhe suavemente no peito e, quando os nossos corpos
se separaram, também vi como o beijava.
– Aqui… – Voltou a beijá-lo antes de me responder. – Aqui está o
amor da minha vida. Não posso vê-lo porque mandei soldar as duas
metades para que ninguém descobrisse, mas sei que a cara dele
está cá dentro.
Nunca falei da Amparo à Geni, no entanto ela contou-me a
história de Fernando Villa, a sua vida, o amor deles, as prisões, a
morte e o rancor infinito que guardava aos culpados.
– Não devia dizer isto. Não devia falar assim porque à minha
volta há demasiada gente a sofrer e a verdade é que vivo muito
bem. Tenho três filhos bons, saudáveis, e posso vê-los crescer,
brincar com eles. Sou uma felizarda em muitas coisas, mas… –
Beijou novamente o medalhão e olhou para mim. – Mesmo que não
acredites, o rancor é a única coisa que me dá forças. Só o rancor
me faz levantar da cama todas as manhãs e me sustém até tornar a
deitar-me todas as noites. Por isso, estou disposta a colaborar com
os comunistas, com quem quer que seja, no que quer que seja.
Porque a eles, nunca lhes perdoarei na minha vida. E a elas, nem
quando estiver morta.
Voltámos a ir para a cama depois de cada reunião, mas nunca
marcámos encontro algum fora da agenda da União Nacional.
Também nunca mais falámos de Fernando, embora eu não me
tenha esquecido das suas palavras. Quando a invasão do vale de
Arán fracassou, deixámos de nos encontrar e eu não senti
necessidade de a procurar, embora às vezes sentisse a sua falta. A
Geni havia sido um presente do destino, um prémio que eu não
tinha muita certeza de merecer quando o acaso que nos juntou
decidiu separar-nos. Senti que estava bem assim e fui deixando de
pensar nela, até que na noite de insónia que se sucedeu à confissão
do Manolo Arroyo vi a cara dela desenhada no teto do meu quarto
com uma clareza espantosa.
– Agora que já sei que não vens dar-me más notícias… – No dia
seguinte ficou a olhar para mim com uma curiosidade indisfarçável,
depois descartar qualquer intenção romântica ou sexual naquela
visita diurna e doméstica. – O que te traz por cá?
– Ias sair, não ias?
– Sim… – Esperou por um esclarecimento que preferi adiar. –
Tenho de ir a um almoço de Natal de uma associação de caridade,
uma seca, às duas e meia… – E poupou-me outra pergunta. – É
aqui ao lado, na calle Sagasta.
– Ótimo – acabei por dizer. – Vamos beber uma cerveja para
fazeres tempo.
Saímos juntos, e eu recusei o primeiro bar que ela propôs,
pequeno e cheio de gente, escolhendo um café maior, quase vazio.
– Aqui não há cerveja de barril – avisou-me mal me viu empurrar
a porta.
– Não faz mal, não tenho sede.
Conduzi-a até uma mesa do fundo e só falei quando o
empregado nos deixou sozinhos com duas garrafas e umas batatas
fritas.
– Vim ver-te porque tenho um amigo que precisa de uma
informação que te é muito fácil de conseguir. Não implica nenhum
perigo e não te comprometeria, mas a mim far-me-ias um grande
favor e uma sacanice à Clarita Stauffer.
– Ohhh! – Ergueu os braços, como se quisesse dar graças a
Deus, antes de meter a mão no decote, tirar o medalhão e beijá-lo
três vezes. – O que tenho de fazer?
– Quase nada. Precisamos de uma lista de pessoas, homens e
mulheres, do círculo de relações da Stauffer, pessoas de quem nos
pudéssemos aproximar para pedir que nos apresentem ou que nos
ponham em contacto com o círculo dela.
– E que mais?
– Nada mais. – Sorri ante a expressão dececionada que lhe
enrugou os lábios. – Só isso. Sei que tu própria nos poderias
apresentá-la numa festa, mas tu és suspeita, Geni, e isso não nos
convém. Precisamos de um intermediário de muita confiança, de
alguém em quem ela confie plenamente.
Ela fez uma pausa, aproximou-se e dirigiu-me um olhar entre
divertido e astuto.
– Isto é por causa dos nazis, não é?
– Quer dizer que tu sabes – admiti, remoendo lentamente o
espanto.
– Eu? – Soltou uma gargalhada. – Toda a gente sabe! Bom,
vamos lá ver… – Baixou a voz para retificar com uma expressão
cautelosa. – Mais do que saber, desconfia-se. O que quero dizer é
que, desde que os nazis perderam a guerra, a Clarita anda a pedir
favores a metade das empresas de Madrid para colocar alemães.
Impingiu dois ao meu marido, claro que ele não sabe que… Enfim,
não sabe que eu não falo com ela. Bom… – Como de costume,
retificou pela segunda vez. – Falar falo, porque não tenho outro
remédio, tu percebes-me. A questão é… Suponho que não me vais
contar por que razão o teu amigo precisa disso, pois não? – Neguei
com a cabeça. – Mas podes dizer-me se o que ele quer é lixar a
Clarita?
– Isso garanto-te. Se isto correr bem, mais do que lixá-la, vai
fazê-la cair. E, se correr muito bem, o regime cairá com ela.
Ela voltou a beijar o medalhão, apagou o cigarro, rodou a cabeça
na direção da janela e observou a rua durante algum tempo antes
de olhar novamente para mim.
– Já sei o que vamos fazer. – Os olhos brilhavam-lhe de repente,
como se tivesse febre. – A Sociedade Alemã de Beneficência
organiza todos os anos uma festa para entregar brinquedos às
crianças pobres. Costumam fazê-la na semana a seguir ao dia de
Reis e é a Clarita quem trata de tudo, de coletar o dinheiro, de
comprar os presentes, da lista de convidados… A mim já não me
convida, mas uma das irmãs do Esteban vai todos os anos porque é
casada com um manda-chuva dos Sindicatos, e eu dou-me muito
bem com ela, pelo que não se importará que eu a acompanhe. A
maior parte dos convidados dessa festa são amigos da Clarita e eu
conheço-os quase todos, com certeza, até me parece que vou
almoçar com algumas delas daqui a pouco. Posso dar-te uma lista
em meados de janeiro. É isso que pretendes?
– Sim. – Peguei-lhe numa das mãos e apertei-a com força. – Isso
seria maravilhoso. Obrigado, Geni.
– De nada, mas não posso fazer mais qualquer coisa? Ando tão
aborrecida, Rafa. Morro de tédio. Não sabes a falta que sinto das
reuniões de Ciudad Lineal. Já sei que não fazíamos nada, mas pelo
menos tinha a ilusão de estar a fazer alguma coisa e, agora… Ai, já
são duas e vinte! Tenho de me ir embora. É melhor não sairmos
juntos, não achas?
Levantei-me para me despedir dela, sem comentar os
conhecimentos que decerto adquirira a ver filmes de espiões e,
quando me estendeu a mão com uma expressão de menina
dissoluta, apertei-a com muita formalidade.
– Quando tiver a lista, como te aviso?
O Manolo recebeu os resultados da minha diligência com uma
frieza que me teria dececionado se ele não me revelasse a seguir o
motivo de tal atitude.
– A Meg acabou de sair. – Nem sequer levantou os olhos dos
papéis espalhados sobre a mesa. – E não trazia boas notícias.
A colaboração da Geni não teria qualquer valor se ele antes não
encontrasse um criminoso de guerra espanhol a quem pudesse
usurpar a identidade, mas até então não tinha aparecido nenhum
que servisse.
– Ela também não pode continuar a ver os processos de
Nuremberga porque o Burnstein lhe enviou tanta documentação que
não lhe deixa tempo para fazer o seu trabalho. Mas eu posso fazê-lo
aqui, se não te importares que transforme a tua sala num escritório,
agora que vou ter de voltar para casa da María Aránzazu.
– É evidente. – Ele olhou para mim com as sobrancelhas
levantadas e eu fui mais explícito. – É evidente que vais ter de voltar
para casa da María Aránzazu e é evidente que não me importo que
venhas trabalhar para aqui. Ela ficará mais tranquila quando souber
que encontraste um emprego e eu até posso dar-te uma ajuda ao
fim da tarde.
– Está bem, porque… Isto está com mau ar, na verdade. Em
quatro meses, a Meg só encontrou dois criminosos de guerra
espanhóis com paradeiro desconhecido. Um deles tem menos treze
anos do que eu. E o outro passou metade da guerra de cadeia em
cadeia, acusado de furtos, de insubordinação, de violações, enfim…
É tudo menos um nacionalista exemplar, pelo que não creio que a
Clarita mexesse um dedo para o salvar.
– Porra! – resumi. – E não há mais?
– Não. Parece mentira, apesar da quantidade de divisionários
que foram parar às SS, ela não encontrou mais nenhum.
A María Aránzazu convidou-nos para jantar em sua casa na noite
de Natal e, uma semana depois, a Meg desistiu do cocktail da
embaixada porque quis que fôssemos comer as passas para a
Puerta del Sol. Depois, demos as boas-vindas a 1947 no
apartamento dela com uma bebedeira monumental. Com essas
duas exceções, e a correspondente ressaca de Ano Novo, o Manolo
não fez outra coisa senão ler atas judiciais e relatórios da polícia
aliada na Alemanha, de 20 de setembro de 1946 a 14 de janeiro de
1947.
– Como correu? – perguntava-lhe todas as tardes ao voltar do
trabalho, e ele respondia-me abanando invariavelmente a cabeça.
Eu sentava-me ao seu lado, pegava na primeira pasta da pilha e,
mais cedo ou mais tarde, sucumbia ao mesmo desânimo. O único
fruto desta parceria foi o de aliviar o trabalho de Manolo. Só
encontrei dois nomes espanhóis, ambos de reclusos de
Mauthausen, que haviam sido testemunhas, e já tínhamos
começado a desesperar quando ele chegou à ficha de um oficial das
SS chamado Ernst Kleiber.
– Aqui… – Aquela palavra soou como um grito. – Aqui… Aqui,
aqui, mas como é que ele se chama? – Ficou tão nervoso que se
levantou, começou a andar em círculos sem parar de ler, e não me
ocorreu nada melhor além de segui-lo. – Como se chama? – Dei
duas voltas à sala atrás dele, como se jogássemos ao macaquinho
de imitação. – Diz-me, filho da puta, diz-me como é que ele se
chama…
Chamava-se Adrián Gallardo Ortega, mas demorámos algum
tempo a descobrir.
Quando consegui que se acalmasse o suficiente para se voltar a
sentar, contou-me que esse tal Kleiber tinha sido acusado de
recrutar um grupo de homens que participaram no extermínio de
mais de dois mil judeus, prisioneiros de um campo na Estónia, e de
assassinar a sangue-frio um soldado alemão que recusara cumprir
ordens. Os seus subordinados tentaram atribuir-lhe a
responsabilidade, mas Kleiber insistiu que todos, incluindo o
insubmisso que tivera de executar, haviam sido voluntários e
ofereceu-se para os identificar. O primeiro homem que implicou era
um espanhol que havia competido como pugilista profissional antes
de ir para a frente russa e que andava sempre com um indivíduo
muito estranho de nome flamengo e apelido alemão, mas nascido
na América do Sul. Tinha-se esquecido do apelido do espanhol,
porém lembrava-se do outro: Schmitt. O documento incluía um
anexo com a identificação dos subordinados de Kleiber e a
informação que haviam fornecido. Nessa lista, Jan Schmitt aparecia
com um ponto de interrogação, em penúltimo lugar. O último era
ocupado por um nome próprio que poderia ser espanhol, embora
estivesse transcrito sem acento, Adrian, e com outro ponto de
interrogação.
– Não tenhamos ilusões. – A euforia do Manolo durou pouco. – A
interrogação não significa que tenha desaparecido, é muito possível
que esteja morto, mas… – Levantou-se da cadeira de um salto. –
Vou descer e telefonar à Meg. Devem existir listas que possamos
consultar…
– O quê? – interrompi-o, agarrando-o por um braço e obrigando-
o a sentar-se novamente. – Não sabemos o apelido.
– É verdade. – A expressão de abatimento voltou a surgir-lhe no
rosto.
– Mas foi pugilista profissional, não é verdade? Será por aí que o
encontraremos. Adrián não é um nome muito comum e não há
assim tantos pugilistas.
Para a vice-conselheira de Comércio da Secretaria de Negócios
dos Estados Unidos em Espanha foi muito simples telefonar à
redação do ABC e pedir para falar com algum jornalista desportivo,
especializado em boxe. Decidimos que o melhor seria a Meg
inventar um amigo norte-americano, cronista de desporto em algum
jornal, que estivesse a escrever um livro sobre o boxe e a guerra e
precisasse de uma lista de pugilistas espanhóis que tivessem
combatido nos conflitos da última década. O jornalista que a
atendeu foi muito amável e não desconfiou das suas intenções, mas
avisou-a de que precisaria de algum tempo para consultar os
arquivos. Fevereiro já tinha começado quando ele a contactou e a
convidou a passar na redação para ir buscar a pasta que havia
preparado para ela.
Estava tudo ali. Um combate numa barcaça fundeada no porto
de Bilbau, em março de 1938, o Campeonato de Castela de pesos-
pesados em 1940, o vice-campeonato de Espanha em 1941, um
nome com o acento no sítio, Adrián, e dois apelidos, Gallardo
Ortega. No parágrafo inicial de uma entrevista publicada nas
vésperas do combate de Barcelona figuravam outros dados, entre
eles que pertencia ao clube Ginástica Ferroviária de Madrid.
– Claro, claro que sim. – O dono do ginásio lembrava-se muito
bem dele. – O Tigre de Treviño, como lhe chamávamos. Era bom
rapaz, muito forte, ainda que muito lento, embora o treinador tenha
feito maravilhas com ele. Poderia ter sido campeão de Espanha,
mas foi-se abaixo de repente, não sei porquê…
Na cidade de Madrid de 1947, era completamente impensável
uma mulher, mesmo estrangeira, aparecer sem mais nem menos
num ginásio para dar uma vista de olhos. Que o homem que, pouco
tempo depois, passaria a ser Adrián Gallardo Ortega tivesse lá ido
perguntar por si próprio teria sido ainda pior, pelo que me calhou a
mim. Don Fernando, um homem baixo e rechonchudo com aspeto
de quem nunca havia sido atleta, estava sentado diante do ringue
onde lutavam dois rapazes, embora prestasse menos atenção ao
combate do que ao charuto que rodava entre os dedos. Estava tão
aborrecido que teria aceitado qualquer pretexto para ir beber um
café, e a visita de um velho companheiro de armas de Adrián que
procurava por ele para reatar a sua amizade pareceu-lhe tão bom
como qualquer outro.
– Não sei dizer-lhe onde está, não faço ideia. Foi para a Rússia.
Sabe disso, não é verdade?
– Sim, soube disso, mas calculava que tivesse regressado.
– Por aqui não o vimos. Temos as malas dele guardadas desde
que se alistou e não veio buscá-las. A verdade é que há uns dois
anos… – Franziu o sobrolho como se precisasse de se concentrar. –
Ou três, é possível, não sei, porque ele ainda estava na Rússia…
Escreveu-me de lá. Dizia que pensava voltar aos combates como
profissional. Queria contactar o treinador, mas eu contei-lhe a
verdade, que o Pirulo estava na prisão, de modo que…
– Pirulo?
– O treinador dele. – Desatou a rir-se. – Eu sei que parece
mentira, mas era assim que lhe chamávamos. De qualquer maneira,
encorajei-o a voltar, ofereci-me para lhe procurar outro treinador,
mas nunca mais soube nada dele.
Antes da minha visita ao ginásio, a Meg já tinha começado a
procurar Adrián Gallardo Ortega em todas as listas de que o
Conselho de Controlo Aliado em Espanha dispunha. Não podíamos
pôr de parte a hipótese de ele ter morrido, mas, nesse caso, teria
sido enterrado sem identificação ou esta não constava em nenhum
documento. Não estava ferido, não estava fugido, não estava preso.
Nem sequer surgia em nenhuma lista oficial de desaparecidos. A
última coisa que se sabia dele era que tinha participado na defesa
de Berlim. Depois, parecia ter-se esfumado no ar.
– Órale – convidou-nos a jantar nos primeiros dias de março para
celebrarmos. – Já o temos.
Ergueu o copo para brindar e o Manolo tocou nele com o seu
copo exibindo uma expressão grave. Para ele tinha chegado a hora
da verdade. Para mim também, embora a minha hora e a minha
verdade fossem diferentes.
A 20 de janeiro de 1947, quase um mês e meio antes daquele
brinde, María Eugenia León viera ver-me ao escritório.
– Aqui tens. – Estendeu-me três folhas de papel datilografadas. –
Como me aborreço tanto, pus os nomes por ordem alfabética e
sublinhei a vermelho os convidados que conheço o suficiente para
os convidar a almoçar contigo. Bom, contigo e com o teu amigo, se
é que existe.
– Muitíssimo obrigado, Geni. – Dei uma vista de olhos por alto,
vendo que ela tinha identificado umas quarenta pessoas e
sublinhado mais de metade. – Não esperávamos tanto, de facto.
– Também inseri as direções que sei, caso vos conviesse. A
verdade é que naquela festa estava meia Madrid, embora a
simplória da minha cunhada não conhecesse quase ninguém. Não
percebo aquela mulher, a sério. – Deixei-a falar enquanto ia lendo
os nomes, um por um. – Aos anos que vai a estes sítios e não sabe
nada. Cumprimentamos e vamo-nos embora, disse-me ao entrar, e
eu estive quase para lhe responder que não, embora depois tenha
pensado, olha, é melhor assim, ela que se vá embora e eu circulo
como me apetece, mais à vontade…
De repente, deixou de falar, e eu nem sequer me dei conta disso.
– O que tens, Rafa?
Ouvi a pergunta e não reagi, como se nunca tivesse respondido
por esse nome.
– Rafa! – A Geni assustou-se. – Ficaste branco…
– Não é nada – acabei por responder. – Bom, de facto é… Está
aqui um nome… Amparo Priego Martínez.
– Martínez? – Ergueu muito as sobrancelhas. – Não sabia o seu
segundo apelido.
– Eu sim. Eu… – Alarguei o nó da gravata, limpei a testa com a
mão, apesar de não estar a suar, percebi que não poderia ter sido
de outra maneira. – A família dela tinha muitas ligações com a
Alemanha, claro, e ela estudou no Colégio Alemão… – recapitulei,
mais para mim do que para a Geni, antes de a olhar novamente. –
Conhecemo-nos desde crianças, os nossos avós eram vizinhos.
– Bom… e que mais?
– Muito mais – reconheci –, mas o que interessa… A Amparo é
amiga da Clarita?
– Sim. Bom, vamos lá ver… Amiga íntima não sei se é, mas de
que a conhece tenho a certeza.
Foi assim que soube que um grupo de senhoras de Madrid, entre
as quais se contavam várias dirigentes da Secção Feminina, tinha o
hábito de ir à missa aos domingos na igreja de Santa Bárbara.
– Não sei se vou dar-te uma alegria ou um desgosto, mas… – A
María Eugenia León inclinou a cabeça para olhar para mim de lado,
como se assim conseguisse descobrir o que eu não lhe quisera
contar. – A Amparo não costuma faltar.
22
Me vale madres: estou-me nas tintas. (N. da T.)
23
Chamaquito: menino, rapazinho. (N. da T.)
24
Ya no chinges: para de chatear. (N. da T.)
BERLIM, 24 DE FEVEREIRO DE 1947
Pontos de sutura
MADRID, CASA DE CAMPO, 1 DE JANEIRO DE 1950
26
Progre: progressista. (N. da T.)
27
Durante a guerra civil espanhola, mas também no período que se lhe seguiu, utilizou-se
contra mulheres e meninas uma forma de repressão que consistia em rapar-lhes o cabelo.
Muitas vezes esta punição vinha acompanhada de outros atos de humilhação pública. (N.
do E.)
V
Nota da autora
A 22 de julho de 2013, comprei um caderno de capa verde-clara
numa papelaria do centro de Rota, a povoação da baía de Cádis
onde passo o verão. Ao voltar para casa, escrevi na sua primeira
página a data, o título e o subtítulo deste romance, e antes de voltar
a escrever qualquer coisa, inseri na barra do browser duas palavras
que já tinha escrito muitas vezes: Clara Stauffer. A minha busca
vomitou conteúdos que eu já conhecia e, em quinto lugar, uma nova
referência que me deu uma alegria e, logo a seguir, um desgosto.
Clara, que eu perseguia havia anos, só esteve ausente do meu
pensamento durante a primavera de 2013, enquanto terminava Las
tres bodas de Manolita. E a minha sorte, tão boa ou tão má como a
de Manuel Arroyo Benítez, determinou que justamente nesse
período em que eu não conseguia pensar noutra história senão na
que tinha entre mãos, um alfarrabista de Madrid pusesse à venda
um álbum de fotografias tiradas pela própria Stauffer entre os meses
de dezembro de 1948 e dezembro de 1949, durante uma longa
viagem pela Argentina, Peru, Bolívia e Chile. O site, que reproduzia
integralmente o seu conteúdo, anunciava na última linha da sua
descrição que o tinha vendido a 19 de março de 2013.
Há mais de vinte anos que partilho a minha vida com um bibliófilo
e com a sua biblioteca. Sei que os alfarrabistas conhecem muitas
vezes os seus clientes e entrei em contacto com este a toda a
pressa, para lhe dizer que estava disposta a comprar o álbum a
qualquer preço, até a pagar para que o seu dono me permitisse vê-
lo, manuseá-lo, fotografá-lo, mas nem sequer consegui saber o seu
nome. O livreiro contou-me que o tinha vendido rapidamente e a
única coisa que pôde acrescentar foi que o comprador tinha tido
mais sorte do que eu. Foi buscá-lo à loja, pagou em numerário e a
história acabou aí. Não era seu cliente, não sabia como se chamava
e não voltara a vê-lo ali.
Pensei em escrever um artigo, e até em pôr um anúncio, mas
ambas as opções me pareceram igualmente patéticas e
condenadas ao fracasso. Se quem o adquiriu fosse um
colecionador, não estaria interessado em partilhar o seu tesouro
comigo. Se fosse um fanático da obra de Clara, eu seria a última
pessoa a quem quereria fazer um favor. Ocorreram-me outras
opções, mas nenhuma era boa, de modo que me contentei em
guardar as imagens, em ampliá-las o mais que pude e em examiná-
las atentamente para escrever no meu caderno verde os nomes e
as datas que consegui decifrar entre as esmeradas anotações feitas
pela própria Stauffer, a caneta branca sobre cartolina preta.
Entre as recordações da sua viagem estavam as fotografias de
dois casamentos, dois nubentes, irmão e irmã, com os mesmos
apelidos. Não fui capaz de identificar o nome feminino. O masculino,
no entanto, lia-se com bastante nitidez, mas a minha busca na
internet de Hannibal D’Angelo Rodríguez não apresentou
resultados. Nessa altura, lembrei-me de que Clara Stauffer tinha
estudado na Alemanha. Experimentei a grafia espanhola do mesmo
nome e acertei em cheio, o que quase me consolou pela perda de
um álbum que nunca tinha sido meu.
Mais uma vez, a ajuda dos meus amigos foi imprescindível para
escrever Os doentes do doutor García.
Há muitos anos, antes de este romance ter título, e ainda menos
subtítulo, a minha amiga Belén Guerra, velha companheira de
ativismo republicano, emprestou-me o seu exemplar de El fin de la
esperanza, de Juan Hermanos. O livro impressionou-me tanto que
ela mo ofereceu. Nunca me esqueci dele e quando planifiquei este
romance, decidi que a disparatada e emocionante rebelião
estudantil de dezembro de 1946, ignorada por todos sempre e
desde sempre, merecia aqui um lugar, mesmo que as velhas armas
dos seus protagonistas não brilhassem tanto como os galões dos
SS.
No momento certo, o meu amigo Eduardo Becerra facilitou-me o
contacto com o professor Francisco Caudet, autor da magnífica
introdução da edição espanhola do livro de Hermanos. Ele
respondeu às minhas perguntas com enorme paciência e
amabilidade e autorizou-me a contar a história de Marc – Marcelo –
Saporta, que tentou em vão permanecer escondido atrás do seu
pseudónimo fraternal durante toda a sua vida.
Ao meu querido Rafa Reig devo, além da sua amizade, dias
maravilhosos em Cercedilla, excursões a Camorritos e a Fuenfría,
refeições na Casa Gómez e longas conversas em Peña Pintada, a
casa rural que já foi uma estalagem. Sem a sua ajuda e o seu
entusiasmo, Manolo e Guillermo nunca teriam subido de burro até à
casa de Herr Messerschmidt. Graças a Rafa, a única coisa que tive
de inventar foi o nome espanhol – don Eduardo – do nazi mais
famoso de uma aldeia onde abundaram muito mais do que ela
merecia.
Como as personagens deste romance espanhol acabam por
viver muito mais longe de Espanha do que os protagonistas dos
meus restantes Episodios, tive de recorrer também à generosidade
e à sabedoria de alguns amigos estrangeiros que amo, e que me
amam o suficiente para suportarem o abuso da minha curiosidade.
Graças a eles pude situá-los corretamente no tempo e no espaço.
Assim, de Berlim, Dieter Ingenschay escolheu o bairro,
Schöneberg, e até a rua, Winterfeldstrasse, onde vive a família
Müller, e além de calcular o tempo que Agneta demora a pé da sua
casa até à Porta de Brandeburgo, tendo em conta os escombros,
acrescentou também que esse bairro de Berlim, onde ele viveu e
que eu visitei há muitos anos, ficou famoso por causa de uma
canção na qual um rapaz conta como beijou ali uma rapariga no
mês de maio. Quando ouvi a versão de Marlene Dietrich, não pude
resistir à tentação de transformar essa canção numa personagem
com que não contava.
Nunca poderei agradecer o bastante a Elena Boledi por tudo o
que fez para situar Manolo Arroyo em Buenos Aires. O mérito é
partilhado também por Adolfo González Tuñón, que se deixou
arrastar por ela e caminhou ao seu lado enquanto ela escolhia para
mim o bairro de Balvanera e a zona do Palácio da Justiça, dando-
me as coordenadas exatas para uma pensão e para uma academia,
e mencionando no fim a existência do maravilhoso Café de los
Angelitos. Foi também Elena quem decidiu situar a fazenda Bley nos
arredores de Junín, perto do sítio onde ela e Eva Perón nasceram.
Os capítulos portenhos deste romance teriam ficado muito piores e
muito menos autênticos sem a sua ajuda preciosa.
Num dia de 1953, Luis Zori Martínez estava a descer a Gran Vía
quando, por alturas da igreja de San José, no número 43 da calle
Alcalá, lhe tiraram uma fotografia num passeio cheio de gente.
Muitos anos depois, fotografou-se comigo em duas cerimónias,
quando nenhum de nós poderia adivinhar que essa fotografia em
que está tão bonito se transformaria na capa do romance. Quero
agradecer-lhe não só por ser meu leitor, mas por me ter permitido
usá-la. Também lhe agradeço ter consentido que o
transformássemos num señorito, engomando-lhe o casaco e
inserindo uma gravata que não existia na imagem original.
28
Sendo naturalmente intraduzíveis, optou-se por manter algumas palavras e expressões
típicas do México e da Argentina, de modo a evitar que a perda fosse total. (N. da T.)
As personagens
(Nesta lista só aparecem as personagens que intervêm nos
capítulos de ficção deste romance. Os nomes em itálico identificam
pessoas reais.)
Três impostores
GUILLERMO GARCÍA MEDINA,nascido em Madrid, em 1914, conhecido
como RAFAEL CUESTA SÁNCHEZ a partir do mês de abril de 1939.
Também conhecido como ÁNGEL VALVERDE ROLDÁN entre outubro de
1968 e fevereiro de 1969.
Um weekend em Taplow
ROBERT, BOB, MCKAY, agente da CIA residente em Gibraltar.
SOLEDAD, SOLE, RUIZ, imigrante espanhola em Nova Iorque que,
antes de sair do país, trabalha como criada em Madrid, em casa de
CLARA STAUFFER.
JEAN-JULES LECOMTE, burgomestre de Chimay, na Bélgica, durante a
ocupação nazi, membro do Partido Rex e das SS. Criminoso de
guerra.
HORST CARLOS ALBERTO FULDNER, cidadão alemão nascido na
Argentina, membro da Sicherheitsdienst, ou SD, organização de
inteligência das SS.
WALTER SCHELLENBERG, general de brigada das SS, dirigente da SD e
chefe de Segurança da Gestapo.
Em Rockport, Massachusetts
MICHAEL MORRISON, congressista do Partido Democrata por Rode
Island.
ANDREW SANDERS, adjunto do porta-voz do Partido Democrata no
Congresso dos Estados Unidos.
SARAH, empregada do Bearskin Inn.